Revista Ritos - Edição 09

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Ritos REVISTA DA AMARN * ANO VIII * Nº 9 * DEZEMBRO 2012

Caminhos da magistratura

Entrevista Futuro presidente do TJRN fala a Ritos. Viagem A experiência de assistir a uma copa do mundo.


LA N ÇA M EN TO


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// editorial CONSELHO EXECUTIVO

Caros colegas, Acabei de ler encantada a Revista Ritos. Tenho certeza que vocês também vão ficar. O mote dessa 9ª edição é mostrar um pouco da diversidade de interesses e capacidades dos juízes potiguares. O que faz, gosta, escreve e a que se dedica essa magistratura quando se despe da toga e deixa seu gabinete. Daí meu encantamento. Poesia, história, cultura, esportes, fotografia, feminismo, projetos sociais e ecológicos, hobbesiano, direito e democracia. O juiz é uma figura humana de muitas facetas e é isso que buscamos mostrar aqui. A AMARN deixa o seu penhorado obrigado aos colegas que deram sua contribuição e se desvendaram um pouco nas paginas dessa publicação. Manoel Onofre Jr, Paulo Sérgio, Assis Brasil, Geomar Medeiros, Virgínia Maques, Jessé de Andrade Alexandria, Cícero Macêdo, Fábio Athaíde, Fátima Soares e Rosivaldo Toscano. Obrigado pela maravilhosa contribuição e por terem nos brindado com um pedacinho de vocês. Destacamos também a presença de matérias importantes como a que aborda a imensa contribuição social dos colegas magistrados (fato por muitos desconhecido), devendo a participação ser enaltecida até pela dificuldade que representa a doação a trabalho e programas sociais voluntários, numa profissão tão exigente. Ressalto também a entrevista com o novo Presidente do Tribunal de Justiça, onde o Desembargador Aderson Silvino nos fala um pouco de si e dos seus planos de gestão. Por fim para coroar a edição, o inédito FÓRUM DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO, cuja realização foi realmente um sucesso para a AMARN, nos engrandecendo a todos a contribuição na discussão de uma questão tão crucial. O evento está todo registrado nestas páginas e certamente vai deliciar vocês. Deixo um abraço especial à equipe que toca a RITOS com empenho e carinho: Jessé de Andrade Alexandria, Assis Brasil e Paulo Sérgio, bem como a nossa querida jornalista Adalgisa Emídia. Por fim, quero desejar a todos um Natal maravilhoso, e que o Menino Deus esteja em todas as casas com sua presença amorosa. Um ano novo de muita paz, saúde e esperança de novas e maiores conquistas. Um abraço afetuoso.

Presidente Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Vice-Presidente Institucional Juiz Marcelo Pinto Varella Vice-Presidente Administrativo Juiz Cleofas Coelho de Araújo Junior Vice-Presidente Financeiro Juiz Odinei Wilson Draeger Vice-Presidente de Comunicação Juiz Paulo Giovani Militão de Alencar Vice-Presidente Cultural Juiz Jessé Andrade de Alexandria Vice-Presidente Social Juiz Jorge Carlos Meira e Silva Vice-Presidente dos Esportes Juiz Felipe Luiz Machado Barros Vice-Presidente dos Aposentados Juiz Francisco Dantas Pinto Coordenador da Região Oeste Juiz Breno Valério Fausto de Medeiros Coordenadoria da Região Seridó Juíza Marina Melo Martins CONSELHO FISCAL Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Juiz Fábio Antônio Correia Filgueira Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves Juíza Flávia Souza Dantas Pinto Juiz Gustavo Henrique Silveira Silva Juiz Luiz Alberto Dantas Filho Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues Juíza Manuela de Alexandria Fernandes Juíza Rossana Alzir Diógenes Macêdo Editora executiva Adalgisa Emídia DRT/RN 784 Projeto Gráfico e Diagramação Firenzze Comunicação Estratégica (84) 2010.6303 | (84) 2010.6307 atendimento@firenzze.com Fotos Elpidio Júnior Gráfica Unigráfica

Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte Condomínio Empresarial Torre Miguel Seabra Fagundes R. Paulo B. de Góes, 1840 Salas 1002, 1003 e 1004. Candelária - Natal-RN. CEP: 59064.460 Telefones: (84) 3206.0942 3206.9132 | 3234.7770 CNPJ: 08.533.481/0001-02

Hadja Rayanne Holanda de Alencar Presidente da AMARN

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Arquivo Pessoal

// Sumário

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artigo A gostosa barulheira da feira de Macaíba por Cícero Macêdo

O judiciário mais democrático Campanha "Diretas Já" é lançada em Natal

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

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Hobby Magistrados escolhem o esporte como qualidade vida

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Juiz Jessé de Andrade Alexandria faz uma viagem através do conto de Juan Ponce

Entrevista Futuro presidente do TJRN fala sobre nova gestão

errata: Legenda correta desta foto, na edição anterior: Por-do-sol na Chapada Diamantina.

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Conto

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Ser Juiz Das alegrias, dificuldades, desencantos e realizações na reflexão da juíza Hadja Rayanne

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// ARTIGO

O extermínio dos índios Manoel Onofre Jr. Desembargador aposentado, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

A guerra dos Bárbaros, também denominada Confederação dos Cariris, foi a maior sublevação indígena da História do Brasil. Explodiu por volta de 1687, com a espantosa reação dos Tapuias, habitantes do interior da Capitania do Rio Grande, às injustas e repetidas agressões dos desbravadores portugueses e brasileiros. Gonçalves Dias, um dos primeiros historiadores a tratar do assunto, refere-se à perfídia dos sertanistas: “Sabemos qual era a tática seguida geralmente pelos colonos, depois das leis que aboliram a escravidão dos índios: era injuriá-los nas suas pessoas e propriedades, incitá-los por todos os meios à guerra contra os seus vizinhos ou contra os próprios colonos e daqui tiravam plausível pretexto para os guerrear e cativar”1. Afirma o pesquisador Olavo de Medeiros Filho, em seu livro “Índios do Açu e Seridó”, que o levante teve início em 1683, prolongando-se até 1700.2 Houve um período de lutas encarniçadas entre 1687 e 1697 – a guerra

1  “Catálogos dos Capitães-mores e Governadores do Rio Grande do Norte”, in Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 17. 2  “Índios do Açu e Seridó” – Brasília: Cengraf Senado Federal, 1984.

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Aldea, por Albert Eckhout

propriamente dita3. Ver estudos de outros ilustres historiadores, como Vicente de Lemos, Tavares de Lyra, Afonso E. de Taunay e Câmara Cascudo.4 Em 1689 clamava o Senado da Câmara de Natal:

3  As hostilidades continuaram por muito tempo depois do término da guerra. Em carta régia de 13 de setembro de 1726, El –Rei manda que o Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco, Dom Manuel Rolim de Moura, opine sobre as postulações dos Oficiais da Câmara da Capitania do Rio Grande, expressas nos seguintes termos: “...seria mui conveniente para a conservação dos moradores da dita Capitania, e se impedirem as hostilidades, que nos fazem os índios, que houvesse nela o Terço inteiro de Paulistas e que este assistisse no Arraial do Ferreiro Torto, porque e por este meio não só se poderia guarnecer a Fortaleza, mas impedirem-se os repetidos danos, que nos fazem os Tapuias, nossos inimigos. “ (Documento transcrito da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - vol. XIV – Nºs 1 e 2 -1916 – pág. 35). 4  Vicente de Lemos – “Capitães-Mores e Governadores do Rio Grande do Norte” (1° vol.)- Rio de Janeiro: Tip.do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C.,1912. Tavares de Lyra – “História do Rio Grande do Norte” – Rio de Janeiro : Tipografia Leuzinger ,1921. Afonso E. de Taunay – “ A Guerra dos Bárbaros” 2ª. ed. (fac-símile : São Paulo : Revista do Arquivo Municipal, 2 (22), 1936) ETFRN; UNED; SECD/RN. Mossoró: ETFRN; UNED,1995. Câmara Cascudo – “História do Rio Grande do Norte”- Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura/ Serviço de Documentação, 1955.

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“Representará o levantamento de todo este gentio o grande poder que uniram e as mortes que fizeram em mais de duzentos homens e em perto de trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras e as ruínas dos mantimentos e lavouras para que S. Majestade ordene ao Governador Geral e os mais desta Capitania não faltem com os socorros a esta, ordenando ao Mestre de Campo dos paulistas e ao Governador dos índios de Pernambuco e ao Governador dos pretos de Henrique Dias assistam no dito sertão e dele se não retirem até, com efeito, se destruir e arruinar todo o gentio, ficando estes sertões livres para se colonizarem (...)”5 No longo curso da guerra travaram-se inúmeros combates. De uma feita são aprisionados mil índios: Sucedem-se depredações, incêndios, emboscadas. Um tufão de morte varre a Capitania. Na metrópole percebem, até que enfim, a extensão e

5  Fragmento de Instrução e Memorial – Livro II do Registro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal.

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Índia Tapuia, por Albert Eckhout

gravidade dos fatos. Mandam vir reforços. Mas, não me cabe aqui historiar toda a campanha. Vale dizer que, já em 1696, o Capitão-mor Bernardo Vieira de Melo vai ao palco das lutas e funda o arraial de Nossa Senhora dos Prazeres do Açu6. Poucos recontros verificam-se a esta altura. Na virada do século está consumada a “pacificação”. Rendem-se os bravos tapuias. Com pouco, muitos deles foram aldeiados sob a autoridade dos missionários. Em 1749 tínhamos as seguintes aldeias indígenas: GUAJIRU (Estremoz): invocação de S. Miguel. Caboclos da língua geral (Tupis) e Tapuias da nação Paiacu. Direção dos Jesuítas. APODI: invocação de S. João Batista, direção dos Religiosos de Santa Teresa (Carmelitas). Paiacus. MIPIBU: invocação de Santana. Caboclos da língua geral sob a direção dos Capuchinhos. 6  Atual cidade de Assu.

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GUARAIRAS (Arez): invocação de S. João Batista. Caboclos da língua geral sob a direção dos Jesuítas. GRAMACIÓ (Vila Flor): invocação de Nossa Senhora do Carmo, sob a direção dos Carmelitas Reformados. Caboclos da língua geral. Informação de Câmara Cascudo.7 Viviam os índios nas aldeias em regime de prisão aberta. A propósito vejamos o que nos dizem os Freis Fidelis Motta de Primerio e M. Cappuc, em seu livro “Capuchinhos em Terras de Santa Cruz”, com referência ao cotidiano dessas aldeias. Vale a pena a longa citação: “... ao alvorecer percorriam dois tambores o arraial despertando com os seus ruídos os habitantes. Durava esta tamborilagem nada menos de meia hora. Depois o sacristão tocava as três Ave-Marias, convocando a todos para o serviço divino. Punham-se os convocados à direita e à esquerda do corpo da igreja, homens de um lado, mulheres do outro; o missionário passava no meio corrigindo os erros. Então recitavam todos a doutrina cristã e findo este exercício, começava a Missa. Ao se dar a elevação, o coro das cunhãs entoava o Tantum ergo e outros belos cânticos espirituais, até o fim da missa. Finda a missa recolhia-se o celebrante à casa paroquial, onde o capitão-mor diariamente ia ter com ele a receber ordens para execução do programa do dia. À tardinha, nova convocação à igreja para recitação do rosário de Nossa Senhora. Às oito, anunciava-se o toque de recolher; os dois tambores durante meia hora rufavam, fechando-se as portas do quadro do arraial cujas chaves o oficial da semana entregava ao pároco. Um alferes, comandando uma ronda de quatro soldados , verificava se havia algum ausente, para isto indo de casa em casa. Se algum faltasse à revista devia o oficial levar o caso ao conhecimento do missionário”.8

7  “História do Rio Grande do Norte”- Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Serviço de Documentação, 1955 – pág.42. 8  Apud Gilberto Guerreiro Barbalho – “História do Município de São José de Mipibu” - Rio de Janeiro: Gráfica e Editora NAP S.A.,1961- pág.54.

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Dizem os referidos frades, de palavra insuspeita, referindo-se, ainda, à aldeia de Mipibu: “Aconselhava o antecessor de Frei Aníbal ao seu substituto que não deixasse de ser ríspido com os jurisdicionados. Nada de muita afabilidade”9. Mais adiante, estas passagens reveladoras da inadaptação dos índios: “Teve o missionário má impressão do estado de cristianização dos índios de São José de Mipibu. Iam à Missa mais pelo receio de penalidade do que por devoção”. (...) “... levavam os filhos recém-nascidos à pia batismal, mas já ao saírem da igreja para casa, os rebatizavam dando-lhes nomes de animais, aves ou quadrúpedes”.10 Na segunda metade do século XVIII, as Missões foram extintas, e instituíram-se as primeiras Vilas: Vila Nova de Estremoz do Norte (1760); Vila Nova de Arez (1760); Vila de Portalegre (1761); Vila de São José do Rio Grande (1762) (Mipibu) e Vila Flor (1762 – ou 1769?). Por determinação superior, são os pobres indígenas conduzidos, como rebanhos a caminhos do matadouro, para serem vilados. Entregues à própria sorte, decaíram mais depressa. E dissolveram-se etnicamente – na expressão de Cascudo. Dos valorosos Janduís, Canindés, Paiacus, Jenipapos, Pegas, Sucurus, Panatis, Caratius, Cariris, Icós – para não falar nos Potiguares, estes da nação Tupi, mais dóceis, logo subjugados – restou só a lembrança. Tinham virado caboclos, párias. Depois de dois séculos e meio de colonização, não mais havia nem sequer um só índio no Rio Grande do Norte.

9  Apud Gilberto Guerreiro Barbalho – ob. cit., pág.54. 10  Apud Gilberto Guerreiro Barbalho – ob. cit., pág.55.

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Mameluca, por Albert Eckhout

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// ARTIGO

Alimentos gravídicos

Fátima Maria Costa Soares de Lima Juíza de Direito da 1ª Vara de Família do Fórum Judiciário Distrito da Zona Sul

O Texto Constitucional, por seu art. 227, § 6º determina a igualdade substancial entre os filhos, proibindo toda e qualquer conduta discriminatória, materializando, de certo modo, o princípio da pessoa humana, iniciando uma nova fase de valores nas relações de parentesco, evidenciando o liame existente entre pais e filhos, eliminando o tratamento discriminatório encartado no sistema do Código Civil de 1916, que privilegiava apenas os filhos nascidos dentro da relação do casamento. Esse acontecimento no ordenamento jurídico pátrio, no sentido de proclamar a igualdade entre os filhos, independentemente da razão de sua origem, tornou mais importante o princípio da dignidade humana como instrumento garantidor do desenvolvimento da personalidade humana. A propósito, Gustavo Tepedino leciona, “traduz nova tábua axiológica, com eficácia imediata para todo o ordenamento, cuja compreensão faz-se indispensável para a correta exegese da normativa aplicável às relações familiares”.1 Essa nova estrutura constitucionalmente imposta à filiação certamente extinguiu todos os limites à determinação do vínculo familiatório à conduta materna/paterna, seja ele qual for. Daí, uma porta ampla abriu-se para as Ciências Jurídicas fortificando a primazia dos interesses superiores da pessoa humana trazendo, como conseqüência, o exercício da cidadania, vez que o reconhecimento da filiação passou a ser um instrumento garantidor da dignidade do homem, por ser um Direito justo. Evidencia-se, pois, o Princípio da Proteção do Estado na medida em que se tutela a dignidade humana independentemente da comprovação do vínculo familiar em defesa de um outro princípio já reconhecido pela La Convención 1  TEPEDINO, Gustavo, cf. Temas de Direito Civil, cit., p. 392.

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Internacional sobre lo Derechos del Niño que é o Superior Interesse da Criança, como uma preocupação de se buscar uma melhor maneira de tratar as questões das crianças. Essa Lei, surge como mais uma norma na legislação em defesa dos direitos das minorias, aparentemente o caráter contencioso se reserva, exclusivamente, para as matérias relativas ao direito de família. Porém, a sua existência se sustenta na idéia de proteger o direito da criança como garantidor do direito à vida do feto. Ora, tanto é assim, que os alimentos são devidos ao nascituro atravé da gestante e após o seu nascimento, com vida, estes serão convertidos em pensão alimentícia automaticamente, caso não haja revisão por interesse das partes. A efetividade do direito da existência de um comportamento que permite que um ser seja aquilo que ele veio ser se denomina Ética do Cuidado. Não resta qualquer dúvida, pois, que a Lei dos Alimentos Gravídicos reflete, igualmente, em todo o seu teor a Ética do Cuidado, porque consegue dá ao nascituro o que é realmente dele, principalmente o direito à vida, para que ele possa dar seguimento ao seu destino após o seu nascimento. Nesse sentido merece cuidadosa reflexão os ensinamentos de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, a seguir: Todo e qualquer tipo de relação paterno-filial merece proteção especial no cenário descortinado pela Constituição da República, o que, em última análise, corresponde à tutela avançada da pessoa humana e de seu (sic) intangível dignidade. Confirma-se, assim, que a pessoa humana é um valor em si mesmo, justificando a existência da norma jurídica (que é feita pelo homem e para o homem). (Grifo do autor) Passando em revista a digressão aqui procedida, é possível resumir da seguinte forma: com a normatividade isonômica constitucional, encartada na sua própria tábua axiológica (dignidade da pessoa humana, solidariedade social, igualdade e liberdade), infere-se, com tranqüilidade, que o direito filiatório infraconstitucional está

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submetido necessariamente a algumas características fundamentais: i) a filiação tem de servir à realização pessoal e ao desenvolvimento da pessoa humana (caráter instrumental do instituto, significando que a filiação serve para a afirmação da dignidade do homem); ii) despatrimonialidade das relações paterno- filiais (ou seja, a transmissão de patrimônio é mero efeito da filiação não marcando a sua essência); iii) a ruptura entre a proteção dos filhos e o tipo de relacionamento vivenciado pelos pais. Vale, aqui, pontuar o exemplo dos filhos socioafetivos que, embora não mencionados em qualquer texto legal, merecem a mesma proteção e não podem ser discriminados em relação aos filhos biológicos.2 Sem dúvida, por força disso, a Lei Nº 11.804, de 06 de novembro de 2009, veio, igualmente, convalidando o princípio da dignidade da pessoa humana na medida em que garante ao nascituro o seu desenvolvimento saudável, desde a sua concepção até o momento do parto, além de assegurar o seu sustento após o nascimento. Segundo a referida Lei, os alimentos gravídicos são aqueles alimentos necessários à gestação do nascituro e são fixados conforme os recursos da gestante e do suposto pai. Assim diz o seu art. 2º : os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes à alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes. Segundo Caio Mário da Silva Pereira: se a lei põe a salvo os direitos do nascituro desde a

2  FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Cf. Direito das Famílias, cit. P. 474.

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concepção, é de se considerar que o seu principal direito consiste no direito à própria vida e esta seria comprometida se à mãe necessitada fossem recusados os recursos primários à sobrevivência do ente em formação em seu ventre.3 Ora, como se observa, a Lei 11.804/2008, tem o caráter protecionista, tanto em relação à mulher grávida quanto ao nascituro. Em face disso, o foro competente é o do domicílio do alimentando, no caso, da mãe que na ação representará o nascituro. Segundo a teoria concepcionista, que é a teoria por ela adotada, o nascituro possui personalidade desde a sua concepção possuindo assim, direito à personalidade antes mesmo de nascer. Inquestionável, portanto, a responsabilidade parental desde a concepção justificando, dessa forma, a necessidade de tal norma jurídica. Sabe-se que na Lei de Alimentos (Lei 5.478, de 25 de julho de 1968) que regula o instituto da pensão alimentícia exige-se a prova de parentesco, de casamento e da união estável como pressuposto básico do pedido, diferentemente da Lei de Alimentos gravídicos que se requer apenas a comprovação de indícios da paternidade. Esse é o ponto crucial da Lei em análise, uma vez que ficará ao arbítrio do juiz a fixação dos alimentos com base na precária prova dos indícios de paternidade sem que haja uma instrução com a garantia do direito ao contraditório por parte do suposto pai. Esse consiste num dos pontos mais questionados em relação a essa legislação, já que tal pressuposto para o pagamento de alimentos fere veemente o Princípio da Presunção da Inocência, previsto na Constituição Federal. Segundo prevê o art. 5º, LVII, da Constituição Federal dispõe que, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Apesar da mencionada Lei está baseada na boa-fé e ser de extrema necessidade, o juiz não pode firmar o seu convencimento simplesmente por indícios para definir a paternidade ou não de determinada pessoa. Daí a discussão doutrinária quanto ao fato da inconstitucionalidade da Lei dos Alimentos Gravídicos já que ninguém pode ser considerado culpado sem que haja provas materiais para a 3  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direito de Família. vol. V. 16ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2006, p. 517-519.

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comprovação. O fato é que na forma da referida Lei, um homem pode ser obrigado a pagar pensão por indícios de paternidade e depois vir a comprovar-se que ele não é o pai. Como foi vetado o art. 10 que dispunha sobre a responsabilidade da autora da ação quanto aos danos morais e materiais causados ao réu, no caso de resultado negativo do exame de DNA, tem-se que suprir essa lacuna buscando outro amparo jurídico. Assim, necessário se faz que para melhor convencimento da existência de indícios da paternidade, antes que o juiz decida pela fixação dos alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré, mister se faz que se realize uma audiência prévia. Até porque se possibilitará a mediação e a conciliação. Na audiência de conciliação dá-se importância a Fala, a Ética da Linguagem e consequentemente a decisão final será muito mais justa. Os critérios para a concessão dos alimentos gravídicos obedecerão o binômio necessidade da gestante e possibilidade do suposto pai, conforme o parágrafo único do art. 2º da referida Lei. Ora, a legitimidade na propositura da ação de alimentos gravídicos é da gestante, mas conforme o art. 6º, parágrafo único, após o nascimento com vida, esses alimentos gravídicos serão convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite sua revisão. Se a autora agir com dolo ou com culpa por promover ação indevida, imputando a um homem as obrigação de pai no caso dele não ser o pai, esta responderá pela indenização cabível, conforme prevê permanece a aplicação da regra geral da responsabilidade subjetiva constante do art. 186 do Código Civil, cabendo ao aquele que for demando o livre exercício do direito de ação a teor do disposto no art. 186 do Código Civil, com a finalidade da reparação de danos morais e materiais. Acrescentem-se, ainda, que ao réu será dado o prazo de apenas 5 dias para responder a ação (art. 7º) e incidência dos alimentos será a partir do despacho da petição inicial e não, apenas da citação do réu. Concluindo, a Lei de Alimentos Gravídicos preserva, com primazia, o o superior interesse do nascituro, garantindo-

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-lhe o nascimento com vida e afastando do nosso ordenamento jurídico e da nossa sociedade a volta da antiga e descurada “Roda do Exposto” através do famigerado “Parto Anônimo”. É, na verdade, o melhor interesse do nascituro que se busca nessa Lei, e com isso se resiste as indefinições das lacunas existentes sobre a questão no nosso ordenamento jurídico. O direito a alimentos – nisto se escusa insistir – não é privilégio de pessoas com recompensa de normativa a determinadas virtudes morais, consiste numa prática fundamental de solidariedade humana, Resgatar vida é dever de cidadania, é prática imperativa e prévia da convivência social. É importante que essa Lei seja divulgada e implementada para que as gestantes carentes e sem o necessário apoio do suposto pai do nascituro, exercitem o seu direito de garantir a a saúde e integridade do seu filho durante toda a fase de gravidez e nos primeiros dias de vida, evitando o aborto e o infanticídio.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direito de Família. vol. V. 16ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2006, p. 517-519. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil - Direito de Família. 4ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 317. Revista Jus Vigilantibus, Sexta-feira, 5 de junho de 2009

REFERÊNCIAS COSTA, Jurandir Freire. Família e Dignidade. In: Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo : IOB Thomson, 2006. DIAS, Maria Berenice Alimentos Gravídicos? Disponível em: http://www.mariaberenice.com. br. Acesso em 08 de novembro de 2008. FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 727 p. JAIME, Couso Salas (Director). In: Revista de Derechos Del Niño. Número Uno/2002. Santiago de Chile, octubre 2002. NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito de Família. vol. 5. Rio de Janeiro : Forense, 2007. OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de. Alimentos e Investigação de Paternidade. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. 264 p.

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// Social

Dando sua parcela para melhorar a vida de quem

Por Juliano Freire Jornalista

Ações sociais, religiosas e de cidadania marcam o dia a dia de magistrados do Rio Grande do Norte, que não esperam acontecer e agem pensando no próximo

Fazer a diferença na vida de outros seres humanos, não só com ações físicas, doações em dinheiro, projetos audaciosos, são gestos e atitudes praticados por pessoas de forma conhecida ou anônima perante a sociedade. Há quem pense que magistrados são indivíduos que só fazem julgar, decidir o destino dos outros. Enxergam-nos apenas como aplicadores da lei ou criaturas especiais com poderes fantásticos emanados das togas. Felizmente, muitos magistrados vão além disso, dedicam parte de seu tempo a pensar e agir para melhorar a vida de seus semelhantes, em certos casos até mesmo para transformar existências tidas como sem rumo ou esperança.

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Justiça não é um bem restrito apenas às decisões judiciais proferidas em audiências. Pode ser maior do que isso, englobando relevante significado social, sobretudo, se contribui para recuperar pessoas. Há quinze anos este é o motor propulsor do programa “Caminhos da Justiça”, criado em 27 de maio de 1997 pela juíza Lena Rocha, quando atuava na Comarca de Mossoró. Desta data até hoje, mais de 1.500 apenados foram recuperados e nos últimos dois anos, não ocorreram reincidências. O foco é claro. Com apoio de uma equipe multidisciplinar, este programa trabalha com apenados, ex-presidiários e a comunidade de

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Juíza Lena Rocha na solenidade do programa Caminhos da Justiça.

bairros periféricos da segunda maior cidade potiguar. Palestras educativas e a assistência psicológica e social dão sustentação a esta iniciativa da magistrada. E tudo tem uma razão de ser, uma lembrança presente na memória da julgadora. Durante a leitura de uma sentença, um preso desmaiou ao saber que teria uma pena alta, em virtude do gravíssimo delito que cometera. Humilde, externou diante dos presentes que se soubesse que pagaria preço tão elevado, jamais praticaria o crime. “Pensei que muitas pessoas precisavam ser orientadas para conhecer seus direitos e deveres, para assim serem conscientizadas que por nenhum momento o crime compensaria”, recorda a juíza. Sua atuação à frente do programa é a de cidadã. Não existe doação em dinheiro. As famílias são apoiadas com alimentos, entre eles leite para as crianças. As possibilidades financeiras não são das maiores por isso a assistência é feita de acordo com os critérios adotados pela gerência do “Caminhos da Justiça”, caso a caso, para que sejam atendidos os mais necessitados. Dois órgãos prestam apoio vital a este trabalho. “Orientamos, a família a buscar a Defensoria Pública, quando não po-

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dem custear advogados, e caso sofram discriminação, devem procurar o Ministério Público”, observa a criadora do programa ao enfatizar que a maioria aceita o apoio do programa e voltam, dignamente, à convivência em sociedade. Sem o auxílio do Tribunal de Justiça e dos colegas juízes, pouco poderia ter sido feito nessa década e meia. Duas vertentes compõem esta missão social, a Ressocialização dos Apenados e a Cidadania Plena. A primeira prioriza aquele que está cumprindo pena e a segunda envolve a comunidade como um todo, incluindo a família do preso. O esforço vai além das palestras. São oferecidos cursos de artesanato, arranjos florais, crochê, bijuterias e outros que possam ser oferecidos dentro das possibilidades da equipe gerencial deste trabalho social. Ajudar esta população comumente segregada pela sociedade a andar com as próprias pernas é um dos trunfos desta ação cidadã. Um dos meios para permitir esse recomeço é o microcrédito. “Financiamos pequenos negócios com recursos próprios, sem juros e com carência de sessenta dias”, ressalta a magistra-

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da. E se for preciso, para que eles e suas famílias não passem maiores dificuldades, entra em cena a ajuda para o elementar, com a doação de cestas básicas, ofertadas por entidades como a Maçonaria e pessoas que se tornaram amigas do programa. De vez em quando, são realizados bazares com objetos doados pelos apoiadores para que renda seja revertida para este esforço social. Esses apoios servem para evitar que voltem à prática criminosa.

JUVENTUDE Jovens precisam de bons exemplos. Este é um dos principais aprendizados que o juiz José Dantas de Paiva recorta em bate papo informal quando é perguntado a respeito de duas décadas e meia de atuação na Pastoral dos Adolescentes da Paróquia da Candelária, Zona Sul de Natal. Lá, não há espaço para a toga. Predomina a ação do missionário cristão. Entra em ação, o cidadão responsável pela transformação do mundo, do universo daqueles que estão construindo a personalidade para enfrentar os desafios da vida. São trabalhos como o “Segue-me”, para jovens dos 18 aos 21 anos, “Encontro de Jovens e Adolescentes com Cristo”, dos 15 aos 17, entre outros grupos etários e de estado civil. Se for contado todo o tempo de sua dedicação a projetos e atividades na Igreja Católica, são mais de 30 anos dedicados por este natalense, criado em Jardim do Seridó, ligados ao encaminhamento, orientação e evangelização de crianças,

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adolescentes, jovens e adultos. Magistrado titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude de Natal, desde 1995, José Dantas, ajudou a criar a Organização Não Governamental “Amor Exigente”, especializada no atendimento a familiares de pessoas com dependência química, da qual é voluntário. “O dependente não adoece sozinho. Pai, mãe, irmãos, tios, avós e primos também sofrem com a doença”, observa após dez anos de existência deste grupo de apoio. Muitos pais, lembra o juiz são permissivos, sabem do problema enfrentado pelo filho e mesmo assim, dão dinheiro e não impõem limites. E as pessoas que dependem da droga podem se fazer de vítimas ou agir como manipuladores. E somente é possível ajudar aos dependentes, sejam adolescentes ou não, com a mudança de postura. José Dantas destaca que quando este quadro se instala em uma família, os pais tornam-se codependentes, adoecem junto com o drama enfrentado pelos filhos. E apesar de apenas um ente ser vítima da doença, surgem “as famílias com dependência”. Uma família fragilizada, onde não há estrutura de valores, é a porta de entrada para as drogas. Se o adolescente é portador de distúrbio comportamental, a curiosidade e o ambiente escolar, entre outros fatores, podem contribuir para se experimentar as substâncias entorpecentes, abrindo o caminho para a dependência. Este desenho para o vício baseia-se na vivência do magistrado como missionário em Candelária, com a interação junto a cerca de 2 mil adolescentes, e no atendimento a 750 famílias durante uma década de atuação no “Amor Exigente”. Há famílias que ficam três, quatro, cinco anos ligadas à organização, outras continuam participando do trabalho até hoje. “A gente só consegue prosseguir em um trabalho desses se souber equilibrar as dimensões espiritual, familiar e a profissional”, ensina. Um dos seus desafios mais recentes foi conciliar as três esferas com a missão confiada a ele e outros dois magistrados, um do Rio Grande do Sul e outro de São Paulo. A tarefa era a de traçar o Diagnóstico do Sistema de Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei, no país, a convite do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos anos de 2010 e 2011, quando percorreu unidades de internação em 15 estados. Para alguém oriundo de uma família de oito irmãos, sem muitos recursos financeiros, que teve de muitas vezes sair do bairro da Cidade da

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Esperança, a pé, para assistir aulas no curso de Direito, foi mais uma etapa a ser vencida. Para Dantas foi a experiência como assessor jurídico da antiga Fundação do Bem Estar do Menor (Febem) a inspiradora para abraçar a causa da Criança e da Juventude. “Para atuar nesta área temos de acreditar na recuperação do adolescente e na reestruturação social deste país”, assegura o juiz, casado há 33 anos e pai de três filhos. Tanta experiência ajudou a elaborar um manual sobre despachos, decisões interlocutórias e sentenças, com procedimentos e fluxo pronto a respeito de processos referentes ao segmento da criança e do adolescente. O orientador de tantos jovens da Candelária ainda acumula o cargo de juiz da 2ª Zona Eleitoral de Natal. “Precisamos educar o jovem para o mundo dos blogs, do Twitter, do Facebook, sem deixar de lado os valores”, defende. Costuma lembrar de uma moça que passou 15 anos lutando contra a dependência. Ela passou da maconha para a cocaína e desta para o crack. Resistiu, teve uma filha neste ínterim, recebeu o apoio da “Amor Exigente” e conseguiu se graduar em enfermagem e seguir em frente. As estatísticas mundiais apontam somente 30% de êxito na recuperação dos dependentes. “O primeiro passo é querer”. José Dantas de Paiva sempre acreditou que poderia fazer mais, nas trincheiras do bom combate que abriu em sua vida, como juiz. Uma vez por mês, leva sua mensagem para jovens da Candelária e de outras paróquias. Sempre tem alguém mais novo ao seu lado para “dialogar na mesma língua dos adolescentes”, com o testemunho de alguém que se recuperou. Os trabalhos pastorais com essa clientela se espalharam para várias cidades, como Goianinha, Nova Cruz, Macau, Ceará-Mirim e João Câmara, conduzidos atualmente por outros missionários. De vez em quando, depara-se na rua com alguém que ajudou a encaminhar na vida, com algum conselho ou preleção, ou teve de enviar para um centro de internação. “Mesmo quando tive de decidir, nunca os desrespeitei”. O maior aprendizado que leva consigo depois de tantos anos é o de que ninguém é mais do que ninguém e tudo é passageiro. “Não é pobreza que gera a violência, a infidelidade e a desonestidade” – ensina o missionário, voluntário e juiz José Dantas de Paiva. Quem segue a mesma trilha da prestação de serviço à co-

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munidade com raio de atuação que ultrapassa audiências e decisões é o juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior. De pronto, ele é capaz de citar cinco projetos ou ações como o “Elefante Verde”, “Dia Mundial de Ação de Graças”, “Atividades de Família Acolhedora”, “Universidade de Cidadã” e “Orçamento Público”. O primeiro tem como foco aproximar o Poder Judiciário da população, por meio de atividades que conscientize as pessoas a preservar o meio ambiente natural. Em Currais Novos, mais de 2000 pessoas foram reunidas para agradecer as bênçãos recebidas em suas vidas. Desenvolvidas em parceira com a “Casa do Pobre”, crianças abandonadas são destinadas a famílias que as acolhem, com todo apoio do Judiciário. Nesta jornada jurídica e cidadã, inspirada pelo magistrado e apoiada por entidades da sociedade civil, universitários são estimulados a integrar políticas públicas de conciliação. Quanto ao último projeto da lista, Pereira Júnior explica : “prestamos a nossa participação enquanto poder judiciário para a garantia de prioridade absoluta para crianças e adolescentes no orçamento público”. Com ações que envolvem coragem, determinação e desprendimento, percebe-se que magistrados ao irem além das togas podem ser verdadeiros heróis de carne e osso, fazendo a diferença para milhares de pessoas, de todas as idades e classes sociais.

Juiz José Dantas de Paiva

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// viagem

Copa do mundo na

Itália

Chegamos a Roma, eu e minha esposa, Roziany, por volta da meia-noite do dia 01 de julho de 2010. Ao iniciar o procedimento de pouso o Comissário de bordo pediu gentilmente para que levantássemos a proteção da janela, o que o fizemos seguindo o exemplo dos demais e por curiosidade. Qual não foi a nossa surpresa quando, minutos após, a noite escura foi dando lugar ao surgimento de uma bela metrópole com um show de luzes acessas, à maneira de um candelabro no chão e, coroando-a, lá estava, majestosa, a lua, em seu formato oval minguante, parecendo um enorme pingente todo reluzente, como que refletindo feericamente a coloração alaranjada das luzes artificiais da cidade. Um verdadeiro quadro que, por sobrepairar o Vaticano, tinha um ar de obra sacra. Já em terra, nos deslocamos para o hotel, onde, exaustos da viagem, adormecemos profundamente. Pela manhã, sob um sol escaldante do verão europeu, iniciamos a peregrinação dos turistas. No primeiro dia fomos logo ao Forum Romano (para não perder o costume, rrss), Campidoglio, Coliseu, Galleria Borghese, igreja de Santa Maria Mayor, terminando no grande e animado pátio da Piazza Navona para jantar em um de seus inúmeros restaurantes. Nessa viagem, talvez por ser período da copa do mundo, deparamo-nos com muito poucos brasileiros. No entanto, ainda foi possível ver um

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ou outro turista no meio da multidão vestindo o verde-amarelo do Brasil. Estava viajando nesse período porque, particularmente e contrariamente à maioria esmagadora da população, não me apetece muito jogos futebolísticos. Contudo, abro exceção para as finais de campeonato e, naturalmente, para a copa do mundo, quando, geralmente, o nível de qualidade dos competidores se eleva até ao máximo. Continuamos nosso passeio no dia seguinte, visitando la Piazza Spagna e Pantheón, de onde saimos em direção à famosa Fontana de Trevi, onde paramos para descansarmos, tirarmos algumas fotos no famoso monumento e jogarmos a famosa moedinha da sorte em suas águas seguido do pedido secreto. Numa travessa que dá acesso à Fontana de Trevi havia alguns restaurantes, com mesas nas calçadas. Sentamos em uma dessas mesas externas num restaurante denominado “Quirino”, sendo prontamente atendidos por um garçon chamado Andrea, naturalmente careca (não sei por que cargas d’água os italianos costumam raspar os cabelos). Fizemos o pedido para o almoço, conforme indicação do próprio Andrea: ossobuco acompanhado de Carciofi alla Romana, harmonizado com um cabernet souvignon, Promis, Borgio Conventi, Cà Marcanda, 2007, da região da Toscana. Magnífica combinação, de um prato da Lombardia (ossobuco) com outro típico da re-

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gião do Lacio (alcachofras), e um bom vinho da Toscana. Um passeio pela culinária italiana. Ficamos ali comendo, bebendo e, ao mesmo tempo, assistindo ao vai-e-vem de turistas de toda parte do mundo. É um fluxo cosmopolita agradável de se ver. Novamente vimos uma família de brasileiros passar estampando camisas da seleção. O destaque era inevitável, pois a quase totalidade dos turistas, assim como eu e minha esposa, parecia não se importar muito com o evento esportivo mundial. No entanto, havia um pequeno grupo de torcedores com aspectos nórdicos já formado e concentrado diante da televisão do restaurante da esquina da Fontana de Trevi. Nosso restaurante se situava no meio da ruela, e transmitia o jogo no seu interior, a portas fechadas, às nossas costas. Acompanhávamos o jogo sem vê-lo nem ouvi-lo. Apenas o percebíamos. De repente, escutamos claramente o alarido do grupo, mas sem efusão. - O Brasil fez um gol, disse-nos Andrea. Elevei, sem exaltação, a taça de vinho à boca, à guisa de comemoração, expressando ao garçon o

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orgulho de quem já é pentacampeão: - O Brasil é o melhor. Vai ser goleada. Veja só, estamos apenas a 10 minutos do início do jogo, e o Brasil já meteu um a zero. Espera mais para ver! Exclamei com a segurança de um nativo do país do futebol. Andrea apenas sorriu um sorriso de Monalisa. Terminou o primeiro tempo com o Brasil mantendo essa vantagem, o que nos deixava tranquilo e até seguro da vitória. Recomeçou a partida. Pedi a Andrea: - Quando fizer o segundo me avisa. - Ok, respondeu o prestativo e simpático garçon. Sete minutos do segundo tempo, uma explosão no restaurante da esquina. Fiquei meio atordoado, mas já esperando a informação de Andrea, a qual chegou em cima da hora: - Vim lhe avisar do segundo gol...Mas não do Brasil. Retruquei, confiante: Ah, o Brasil vai retomar a dianteira em poucos minutos. Não se esqueça que temos Kaká e Robinho. Uma ou duas pedaladas, e lá estamos! Andrea abriu um sorriso , querendo acreditar em mim. Continuei a bebericar o meu vinho, olhando os transeuntes que flanavam como se nada

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estivesse acontecendo no mundo dos esportes, quando, de súbito, irrompeu um grito uníssono de gol da mini-galera organizada, abafando e tornando desnecessária qualquer informação de Andrea. Bastou o seu olhar de piedade assestado para mim. A consumação do fato veio momentos após, ao sair de outro restaurante vizinho um senhor careca, anunciando na rua, alto e bom som, a todos que quisessem ouvir: “Holanda ha vinto!, Holanda ha vinto!”. Sorvi o restante do vinho, lembrando da célebre frase de Napoleão Bonaparte, ao abrir um champagne sempre que chegava de uma batalha: “Na vitória merecido, na

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derrota necessário”. Depois dessa derrota, o terceiro dia pedia uma visita ao Vaticano para se benzer. Para nossa decepção, porém, não vimos o Papa por seu encontrar fora da cidade em sua residência de verão, situado a pouco mais de vinte quilômetros de Roma, em Castel Gandolfo (como assim?! Como ir a Roma e não ver o Papa?). Pois é. Praticamos um sacrilégio contra a velha máxima popular. Compensamos a falta com a visita ao esplendoroso e interminável Museu do Vaticano. Um mundo de arte para todos os gostos, com especial destaque para a célebre Capela Sistina.

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Na capital não é aconselhável alugar carro. O ideal é percorrer tudo a pé, de ônibus ou de táxi. Ao sair de Roma, aí sim, deve-se alugar um carro para percorrer a maravilhosa Itália; e é aí que começou o nosso percurso de carro, que adiante passarei a relatar. Ao sairmos de Roma nos dirigimos à decantada região da Toscana, em busca de suas paisagens oníricas e do vinho regional. Pegamos então a autoestrada A1 até Montepulciano, terra do Vino Nobile di Montepulciano. Muitos restaurantes e tratorias oferecem degustação em torno da Piazza Grande. Montepulciano é uma cidade, como inúmeras dessa região, situada no alto da colina, com ruelas medievais estreitas, em que só é possível passar um veículo de cada vez. Em algumas delas, se passa quase raspando os retrovisores laterais nas paredes dos imóveis. Fica a 600m de altitude, proporcionando uma paisagem espetacular. De Montepulciano seguimos para Montalcino, passando por La Foce, Bagno Vignoni, catiglone Dórcia e Abbazia Sant’Antimo, todas com paisagens deslumbrantes, com destaque para as estradinhas sinuosas ladeadas de ciprestes, típicas da novela “passione”. Fizemos, ainda, uma visita à Abbazia Sant’Antimo, que fica em Castelnuevo dell’Abate, fundada ( a abadia) por Carlos Magno, no século IX. Montalcino também se situa no alto de uma colina, com características semelhantes a Montepulciano. Vale a pena visitar uma fortaleza denominada Fortezza (sugestivo), situada antes da entrada da cidade, a qual é dotada de uma boa enoteca, vendendo os famosos vinhos Brunello e di Montalcino. De Montalcino fomos à cidade de Siena, a cidade medieval mais preservada da Europa, centrada em torno da famosa Piazza del Campo. Para se provar bons vinhos e se comer bem, é interessante fazer um tour, indo a Castello di Querceto, seguindo-se um almoço descontraído em Greve, antes de provar mais alguns vintages na Villa Vignamaggio. Após a estada em Siena, fomos para Pisa, passando por Voltera, cidadezinha muito agradável, parecendo uma fortaleza no alto da colina, com suas muralhas que datam da época etrusca . Vale a pena passear pelas ruas até a praça central que pede um descanso e um bom café. Ao chegarmos a Pisa, com a sua famosa torre e a catedral,

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Juiz Paulo Sérgio da Silva Lima

situadas na Plaza del Miracoli, almoçamos uma pasta al pomodoro após, é claro, de tirar a foto padrão simulando segurar a torre inclinada. Em seguida rumamos para Firenze, a cidade artística da Itália. Em Florença as atrações são inúmeras, devendo ser dispensado pelo menos três dias para visitação e compras (cuidado com a febre do ouro que costuma recair sobre as mulheres – sofri na pele!). Uma coisa me chamou muito atenção em Florença - aliás não só aí mas em toda a Toscana - foram os estridentes e pungentes chilreados das Rondinelli (andorinhas). Era de cortar a alma de tão lúgubres e penetrantes. De Florença seguimos diretamente para Venezia, onde pegamos um vaporetto (espécie de ônibus aquático), o qual nos conduz à bela e encantadora cidade, ziguezagueando de ponto em ponto no grande canal. À medida que nos aproximávamos da cidade nos quedávamos mais e mais maravilhados com aquela inusitada e enigmática beleza flutuando num labirinto de canais e pontes. Chegando ao hotel, subimos ao quarto, quando tivemos a impressão, ao abrir a janela, que estávamos num transatlântico imóvel, pois, ao olharmos para baixo, vimos a parede do hotel imersa na água, e as gôndolas passeando suavemente pelo pequeno canal. Saimos para um passeio de reconhecimen-

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to da cidade, com destaque para a Piazza San Marco e arredores, local de concentração maior de turistas. Vimos vários noivos indo à igreja de San Marco para se casar, e outros que tinham acabado de fazê-lo, passeando nas gôndolas com as vestes matrimoniais. Isso nos incitou a fazer algo parecido. Resolvemos renovar o nosso compromisso, trocando, dentro da igreja do evangelista São Marcos, as nossas alianças que compramos na ponte Vecchia de Florença (uma das concessões feita à febre do ouro – muito útil esta, aliás). O ato foi realizado secretamente entre eu e minha esposa, diante do monumento sepulcral do autor do segundo evangelho, enquanto o Padre celebrava um casamento oficial. Em seguida, fomos tomar um prosecco em comemoração, num dos restaurantes que circunda a praça de São Marcos, assistindo a apresentação de uma bela orquestra sinfônica. Após, como não podia deixar de ser, tomamos uma gôndola para o famoso passeio pelos canais, discretamente, isto é, sem qualquer vestígio do himeneu realizado em secreto, a não ser o clima de pombinhos apaixonados, que não é raro naquele ambiente mágico. Como dica, vale a pena tomar um Amarone Della Valpolicella (vinho tinto) ou um prosecco (espumante) provenientes daquela região do Vêneto em um dos restaurantes-terraços na orla do grande canal. Particularmente o fizemos ao entardecer, no terraço do restaurante Mônaco e Grand Canal, observando o trânsito dos veículos aquáticos que, ao passarem diante do restaurante causavam miniondas, chapinhando constantemente abaixo de nós sob o deck de madeira. Imerso naquele deslumbrado estado d’alma, cantarolei: Que c’est triste Venise Lorsque les barcarolles Ne viennent souligner Que des silences creux De Veneza subimos para o teto da Itália, região do Trentino -Alto-Adige, na terra fronteiriça com a Áustria, em direção à Borca di Cadore, situada na provícia de Belluno, num estupendo cenário alpino. Ficamos no hotel Corte Delle Dolomiti, localizado em meio a montanhas, circundado de coníferas, lembrando o cenário do filme “Crepúsculo”. Da sacada do quarto se levantavam, imponentes e majestosas, as montanhas dolomitas. Um espetáculo à parte. Abri imediatamente uma garrafa de vinho, sentei-

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-me na varanda, e, extaticamente, passei a contemplar aquele sonho divino, do qual só fui despertado por fragorosos trovões que passaram a eclodir sobre as montanhas, o que, aliado ao efeito do vinho, me fizeram cair em sono profundo. Ah, em nossa passagem pela terra percorremos muitas vezes sendas maravilhosas e marcantes, caminhos que, de tão salutar e benfazejo, desejamos que não cheguem ao fim nem transpô-los. Queremos permanecer estáticos (calmamente ativos) e aproveitar o que nos circunda, como que encantados numa floresta mágica com o som da maravilhosa lira de Orfeu. Próximo a Borca di cadore, a cerca de 8 km, situa-se a bela Cortina D’ampezzo, famosa por sua estação de esqui, da qual não tiramos proveito por nos encontrarmos no verão. Vale a pena conhecer, contudo, em qualquer estação. Após um dia inteiro de passeio por essa maravilhosa região, voltamos ao hotel já ao entardecer. Tomamos um banho e resolvemos jantar em um restaurante que não fosse o do hotel, e no qual houvesse a exibição da final da Copa do Mundo. Sim, estávamos já na final da copa, cujos finalistas eram o nosso algoz, Holanda, e a Espanha. Sugeriram-nos o “Pub Birrarria Birreria”, localizado na parte mais baixa da montanha. Saimos do hotel, pegando o declive asfaltado em caracol. Cerca de quinhentos metros após, adentramos numa estrada vicinal que nos foi indicada, deparando-nos, logo em seguida, com um

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estabelecimento semi-iluminado, sozinho em meio à escuridão e envolto pelos ciprestes. Era a cervejaria que buscávamos. Desci do carro, e olhei a escuridão do bosque em volta. De pronto, assaltou-me a ideia de um uivo de lobo. Só imaginação. Ainda bem. Adentramos na cervejaria. Era um bar de design alpino, todo de madeira à base de cedros. Lá dentro, as pessoas vertiam canecas de cervejas, e conversavam animadamente enquanto não começava o jogo. Sentamos numa das mesas que enchiam o salão, e pedimos também uma cerveja da casa e lingüiças típicas da região, que eles denominam de Salumi. Um exagero, tanto a enorme caneca de cerveja quanto as linguiças. Mal dava para digerir uma delas. Começou a partida e, para a nossa sorte, a maioria da torcida era da Espanha, de maneira que pudemos torcer por ela sem constrangimento. Primeiro tempo, 0 x 0. Segundo tempo, 0 x 0. Aos dez minutos da prorrogação, o jogador da Espanha Iniesta estufou a rede da Holanda, provocando uma gritaria generalizada no interior do bar. Tomei o último gole da cerveja, e gritei em bom italiano aprendido com o senhor careca de Roma: “Espanha ha vinto! Espanha ha vinto!”. Saímos com a sensação de revanche, mesmo que de maneira indireta, mas ainda um tanto frustrados por não termos ouvindo um sonoro “Brasil ha vinto!” em terras italianas. Quem sabe em 2014? Sarà?...

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// ARTIGO

“Da livraria acadêmica e dos seus mestres do curso de amizade onde surtava o poeta sósia de Baudelaire”. (Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas trata-se de mera coincidência)

Desembargador Assis Brasil Juiz convocado

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-- “Não há vaga para emprego na firma, mas excepcionalmente, como estamos no período de venda de material escolar e se trata de um pedido do seu Waltércio, você começará amanhã a título de experiência”. – Assim falara o gerente “Seu” José Palmeira para o jovem Édipo e sua tia Concita em seu gabinete na Livraria Acadêmica. No dia 22 de janeiro daquele ano, Édipo assumiu o seu primeiro emprego como balconista de Waltércio Pedrosa S.A. Livraria e Papelaria, mais precisamente na Livraria Acadêmica localizada á Avenida Rio Branco no centro da Capital. Todavia, somente assinou o contrato de trabalho no dia 08 de fevereiro deste ano. Foi demitido exatamente no dia 30 de junho daquele mesmo ano. Este seu primeiro emprego fora conseguido para ele pela tia Concita que falara pessoalmente com o Sr. Waltércio, inclusive ele a estava acompanhando nesta ocasião. O Sr. José Palmeira era um dos sócios da empresa, exercendo o cargo de gerente. Era um cidadão de estatura mediana, de tez alvacenta, que se caracterizava pelas passadas largas que dava quando caminhava e pelo uso repetitivo do advérbio excepcionalmente quando conversava com o seu interlocutor, especialmente quando tratava com outrem sobre algum assunto de interesse da firma. Sendo o gerente da empresa, com obviedade era o patrão que mais diretamente convivia com os empregados e por causa disto, quando não estava trabalhando em seu escritório, ficava escondido atrás da escada que dava para o primeiro pavimento da loja em uma posição que não dava para ser visto pelos vendedores da seção de livros, mas, ao contrário, permitindo que ele os visualizasse por completo, observando o trabalho dos mesmos, provavelmente com o objetivo de flagrar uma ou outra eventual atitude inadequada de algum empregado no exercício de suas tarefas. Aliás, nenhum vendedor não podia se demorar nem sequer por alguns minutos em ler algumas linhas de um livro disponível em algum mostruário para a venda no

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interior da livraria, pois se o fizesse era logo admoestado, senão pelo gerente, até às vezes pelo próprio Seu Waltércio, caso este flagrasse um funcionário assim o procedendo. Sempre ao final do expediente, com as portas da livraria cerradas, quando todos os funcionários já tivessem saído, Seu Palmeira ritualisticamente se dirigia a única funcionaria ainda presente no interior da loja, que era a mocinha do caixa, que lhe repassava alguns envelopes contendo os diversos valores de cédulas de curso legal no Brasil daquela época, todo o numerário auferido das vendas do dia. Ele os conferia um por um e somente fechava o caixa se os valores batessem. O prédio onde funcionava a Livraria Acadêmica era um imóvel de três pavimentos contando o térreo que ia da avenida principal até uma rua de média patente, atravessando uma ruela de pequenos bares e contumazes ébrios que ficava entre as duas vias urbanas no centro de Natal. Durante algumas décadas, a livraria fora o ponto de encontro dos intelectuais do Estado. Em sua fachada principal à entrada, o livreiro Seu Valtercio mandara insculpir em letras garrafais em uma placa luminosa o seguinte: “Vós que adentrais neste templo do saber, quando ultrapassardes o vestíbulo desta catedral do livro, elevareis as vossas inteligências e fareis um curso de amizade com os mestres que a freqüentam”. Efetivamente o curso de amizade com os mestres que a freqüentavam ocorria todos os sábados pela manhã: reuniam-se ao redor de uma ampla mesa redonda de jacarandá, no primeiro pavimento da loja, advogados, magistrados, professores universitários, escritores, intelectuais, aprendizes de literatura e poetas lúcidos e mentecaptos. Havia também um ou outro parente plebeu do jovem Nilson, o filho mais moço do Seu Valtércio, cuja presença era considerada como intrusa e inconveniente pelo mancebo fidalgo que, acintosamente, não os cumprimentava, dando-lhes, de propósito, as costas. Um lanche consistente em um suco de frutas e biscoitos além do tradicional cafezinho eram servidos aos presentes por um funcionário devidamente vestido com o uniforme da empresa. - Como vai esta bandeira desfraldada? Era assim que o Seu Waltercio, diretor-presidente da empresa Waltercio Livraria e papelaria, costumava sempre saudar os seus amigos. Era um homem vocacionado para o comércio de livros, inclusive herdara a livraria do seu pai, a qual começara como uma sociedade

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Charles Baudelaire

anônima, mas depois se transformara em uma sociedade limitada. Esta era constituída por ele, que era o cotista majoritário, sua esposa, seu irmão e uns três outros sócios, sendo que o livreiro sentia prazer em empregar familiares, quer fossem de sua própria família, quer fossem da família de sua esposa, tal qual o jovem Édipo. A sua eventual chegada à tertúlia matinal dos sábados que ocorria no primeiro pavimento de sua livraria era comemorada com efusão por todos, pois ele, ao contrário do seu rebento Nilson, era um homem simpático, de gestos largos e de sorrisos pródigos. O Desembargador Márcio Portela era o primeiro que chegava sempre pontualmente às 8:15 horas. Era um homem de aproximadamente 60 anos de idade, apresentando uma pequena convexidade na coluna vertebral que lhe fazia o tórax um pouco inclinado para frente e por um vicio de linguagem pois jamais pronunciava corretamente a palavra faculdade, mas falcudade. Possuía uma erudição especial tanto em relação à filosofia do direito, quanto em relação ao direito civil. Era um verdadeiro francófilo, falando fluentemente o idioma francês, possuindo uma biblioteca de livros jurídicos em francês que eram lidos por ele no original. Possuindo uma admirável aptidão inata tanto para a magistratura quanto para o magistério superior, tornara-se professor da UFRN. Todavia, fora proibido de dar aula pelo Estado Maior das Forças Armadas já que, sendo um verdadeiro filosofo do direito, poderia ensinar aos estudantes a pensar reflexivamente sobre a ditadura militar que asfixiava o povo brasileiro daquela década, inclusive despertando-lhes a consciência contra os crimes que aquela cometera contra a vida, contra a liberdade, contra o patrimônio, enfim, contra a dignidade de milhares de brasileiros.

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-- “Chegou ao nosso conhecimento que o Senhor teria levado um grupo dos seus alunos da universidade até a mina da qual o Sr. vem a ser o diretor- presidente e os homenageado com um almoço, quando, na ocasião, um estudante de nome Justiniano, barbudo e subversivo, teria insuflado os operários da mina ao motim, à desordem, em um evidente atentado contra os postulados da revolução democrática de 31 de março de 1964 que salvou a nossa pátria do comunismo ateu”. - Assim discursara o superintendente da Polícia Federal do Estado o delegado Higo Politzer ao professor Marcio Portela na sede dessa repartição para onde ele comparecera atendendo a uma intimação daquela autoridade policial. - “Como assim? O que aconteceu foi o seguinte: a turma houvera por votação me escolhido como paraninfo e me pedira para que a levasse até a Mina Bretanha da qual sou o diretor-presidente. Então, decidi homenageá-la com um almoço lá na mina, mas nunca poderia prever que o aluno Justiniano se aproveitasse do evento para proferir algum discurso subversivo”. -- “Mas o Sr. deveria saber que o estudante Justiniano sempre foi comunista, inclusive participou, como guerrilheiro no sertão da Bahia, da luta armada contra a nossa pátria”. -- “Porém eu não poderia antever que ele, já alcoolizado, fizesse tal discurso”. -- “Em razão disto, vai ser instaurado um inquérito policial militar contra o Senhor, mas desde logo o seu nome será inserido pelos altos comandos militares da redentora revolução de 1964 no tenebroso livro dos filo-comunistas”. - Arrematara rispidamente o delegado federal determinando ao seu ordenança que levasse o professor até a sala da repartição policial onde seria ouvido formalmente pelo subversivo almoço que servira aos seus alunos da UFRN nas dependências da mina Bretanha. Filo-comunista. Pronto. O golpe militar também inventara no idioma pátrio, criando este neologismo filo-comunista, literalmente significando amigo dos comunistas. Mas seria com ou sem hífen? Depois vinha o professor Álvaro Fontana, emérito comendador de nossa universidade, de acentuada cultura humanística, com que abrilhantava as suas aulas de direito do trabalho proferidas na universidade e de contumaz viuvez que resistia ao cortejo de muitas candidatas casadoiras de todas as idades. Inobstante se tratar de um sexagenário, era alto e robusto, de tórax sempre expandido como se tivesse inspirado o ar mas não

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o tivesse expirado, possuindo um corpo atlético de fazer inveja à muita juventude. Realmente ficara viúvo há alguns anos e não se casara de novo porque fizera um juramento diante do esquife que continha o corpo ainda aquecido de sua recém-falecida esposa que somente o faria quando as suas duas filhas adolescentes e solteiras se casassem. Quem aportava de imediato à livraria como mais um mestre que ministrava as suas aulas no curso de amizade que aconteciam no primeiro pavimento daquela catedral do livro tal qual assim o definia seu proprietário, o seu Waltercio, era o professor Márcio Ribeiro Duarte, outro medalhado da UFRN, cujo singular saber filosófico especialmente sobre o direito, era proporcional à sua incomensurável vaidade intelectual, como também à sua comprovada inaptidão para a arte de ensinar. Malgrado conhecesse profundamente a ciência jurídica, não sabia transmiti-la aos seus discípulos da universidade, visto que ele vivia muito mais interessado em revelar que era um sábio não se preocupando em suas aulas em adotar algum processo didático para a transmissão dos seus conhecimentos. Fora ele quem ministrara a disciplina Introdução à Ciência do Direito à turma de Édipo no primeiro ano da faculdade em razão do professor titular que também se constituía em dos catedráticos mestres tanto do ensinamento da ciência jurídica quanto do exercício do pecado da vaidade estivesse assessorando diretamente a pessoa do magnífico reitor. Édipo e seus colegas, todos neófitos do curso de direito daquele ano da UFRN, praticamente passaram em branco por esta disciplina, sem assimilar os prolegômenos da ciência de Ulpiano. A rigor, o professor Márcio, que conhecia muito bem a ciência do direito mas ignorava por completo a técnica da didática, preocupava-se tão somente em demonstrar vaidosamente aos calouros estudantes do 1º ano do referido curso da universidade federal o seu imenso saber universal, desvirtuando as suas aulas em umas cansativas e pedantescas conferências de pansofia. O coronel Camilo, esposo de Dona Emengardinha, que se encontrava na reserva do exército brasileiro há algum tempo, era outro mestre que sempre freqüentava os saraus matutinos dos sábados da livraria do seu Waltercio. Quando a empresa era uma sociedade anônima, ele fora eleito pelos acionistas como

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um dos membros do conselho fiscal da firma. Aliás, conquanto possuíssem traços de personalidade diametralmente opostos uma vez que, enquanto o livreiro fosse prazenteiro e afável, o coronel circunspecto e grave, eram amigos fraternos, tanto assim que sempre aos domingos se visitavam alternativamente almoçando em algumas das poucas refinadas casas de pasto que existam em Natal daquela época. Ele viveu austeramente a sua vida até o dia em que seu único filho varão Rubinaldo, a quem devotava um incomensurável amor paternal de um pai generoso e justo como ele sempre foi, morreu de uma maneira trágica em um acidente de carro acontecido no interior do Estado, em pleno deslumbramento da vida. Depois desta tragédia que enevoou o seu lar, o sexagenário cabo de guerra também morreu, inobstante continuasse existindo ainda por alguns poucos anos, pois a leucemia que o acometera de natureza emocional oriundo pela perda do filho foi debilitando os seus tecidos e anoitecendo o seu coração, até que um dia feneceu como uma árvore estiolada que tombou na ausência completa de luz. - “Dr. Sebastião, este é o meu novo livro. Nele eu escrevi alguma poesia em louvor a Alá o deus único do universo”. -- Foi assim que o poeta Valfredo Queiroga, primo de Édipo, apresentou o seu mais recente livro ao médico Sebastião Loureiro, na entrada da livraria onde o poeta fazia ponto para vender os livros que escrevia. O Dr. Sebastião Loureiro tratava-se de um psiquiatra bastante conhecido em todo o Estado, tanto pelos procedimentos medievais de choques elétricos e surras homéricas que mandava aplicar por meio dos seus enfermeiros nos pacientes encarcerados nos calabouços do manicômio que dirigia aqui na Capital, quanto pelas mortes de emboscada dos seus inimigos que mandava realizar através dos pistoleiros de suas fazendas, cujas execuções sempre aconteciam nas sinuosas curvas das estradas do Sertão. Walfredo Queiroga, que era filho do casal Dr. Arquimedes Queiroga e de Dona Rosamunda Queiroga, estudara na tradicional faculdade de direito do Recife em Pernambuco, onde se bacharelara, mas, retornando para Natal, não seguira a carreira jurídica, dedicando-se à literatura e à poesia, especificamente ao estudo das obras do poeta francês Charles Baudelaire que vivera de 1821 a 1867, de quem se tornara seu discípulo, sendo seu verdadeiro sósia. O poeta Walfredo Queiroga não era um mestre assíduo no curso de amizade cujas aulas aconteciam sempre aos sábados pela manhã no primeiro pavimento da livraria. Aliás, todas às vezes que por lá aparecia, demorava-se pouco, uma vez que, como não admitia con-

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testação aos seus argumentos, irritava-se logo em seguida, sendo contido pelo seu sobrinho Gérson que, com toda paciência, o aconselhava a sair do local para ir ver alguma novidade de algum clássico da literatura francesa que aportara recentemente nas prateleiras da loja. Se Walfredo permanecesse participando das aulas, a discussão verbal que travava com os demais intelectuais degeneraria para alguma coisa pior, já que o poeta, perdendo o seu controle emocional, partiria para as vias de fato contra seus contestadores. Mas Charles Baudelaire e Walfredo Queiroga não se assemelhavam não apenas fisionomicamente, mas se pareceram até em seus destinos. Enquanto Baudelaire estudou no Lycee Louis-Le-Grand de Paris, em França, de onde fora expulso por um ato de indisciplina, Walfredo estudou no Ginásio Marista daqui de Natal, de onde foi expulso por um ato de revolta. Baudelaire fora enviado pelo padrasto para a Índia, preocupado com sua vida desregrada, mas abandonou a viagem no meio do mar, retornando a Paris. Walfredo ingressou na Marinha Mercante através da qual conheceu muitos portos, amou platonicamente diversas musas, desde castas donzelas até elegantes meretrizes, mas não sendo amado por nenhuma delas, abandonou a sua sina de marinheiro eternamente infeliz no amor para se recolher a um mosteiro trapista. Por fim, Baudelaire teve seus últimos anos de vida obscurecidos por uma doença nervosa que lhe provocou uma paralisia progressiva sem ter conseguido ingressar na Academia Francesa pois, com o lançamento de sua obra-prima “Flores do Mal”, fora acusado pela Justiça de ultrajar a moral pública. O poeta Walfredo Queiroga, acometido de esquizofrenia deste a juventude, terminou sua existência internado em um hospital para doentes mentais daqui de Natal sem nunca ter sido imortalizado pelos preconceituosos e provincianos intelectuais que faziam a Academia Norteriograndense de Letras da sua época porque, mediocremente, estes censuravam as suas obras, considerando-as obscenas e mórbidas, fruto de uma mente esquizofrênica capaz de produzir rompantes psicóticos. O poeta Walfredo Queiroga não morreu hemiplégico e sifilítico como morrera Baudelaire em Paris, na França, no dia 31 de agosto de 1867, mas foi encontrado enforcado em uma manhã de inverno de 1996 pelo enfermeiro da casa de saúde daqui de Natal onde ele estava residindo há muitos anos desde que surtara em público pela última vez, quando aquele adentrara em seu apartamento daquele hospital para lhe fazer a costumeira higiene matinal.

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// Entrevista

“É importante aproximar o Judiciário da sociedade” O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte vai empossar em janeiro de 2013 o seu quinquagésimo sétimo presidente, o desembargador Aderson Silvino. Há 12 anos no TJRN, o desembargador tem como uma das metas o aperfeiçoamento da

prestação jurisdicional. Nesta entrevista, o próximo presidente do TJRN fala da futura gestão, dos problemas enfrentados no Poder Judiciário do RN e sobre o projeto das eleições diretas nos tribunais de justiça.

Quais as metas para a próxima gestão com relação ao Poder Judiciário no RN?

afetou a imagem do Poder Judiciário ? Esse caso já foi superado?

A principal meta, que é um reclamo uníssono da sociedade, é o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, dando-lhe mais celeridade, de modo a evitar que a demora processual não se transforme em fator de injustiça. Para alcançá-lo, várias medidas serão diuturnamente perseguidas, a exemplo da expansão da virtualização do processo; da otimização da máquina administrativa, buscando dela extrair o máximo de eficiência; da realização dos concursos para os cargos de Juiz e de servidor, dada a gritante deficiência numérica constada nesses quadros; da valorização da atividade judicante e da funcional, buscando-se, com tudo isso, atender às imperiosas necessidades da atividade fim do Poder Judiciário.

Como é de conhecimento público, a atual gestão, presidida pela eminente Desembargadora Judite Nunes, tomou de imediato as medidas exigidas pela gravidade da situação. Tal postura demonstrou a maturidade e a altivez do Judiciário em resolver os problemas que surgem no seu interior. Ou seja, não foi órgão externo que detectou ou investigou as irregularidades dos precatórios, mas o próprio Tribunal. Assim, apesar do inevitável impacto negativo na opinião pública, gerado pela ocorrência referenciada, acredito, por outro lado, que a sociedade soube identificar a reação oportuna e incisiva da Presidente, que afastou qualquer suspeita de conivência. Além disso, houve a reestruturação do setor dos precatórios, dirigida pelo digníssimo Magistrado Luiz Alberto Dantas Filho, cujas competências e honradez são notórias. Desse modo, penso que se o episódio não está de todo superado, o caminho para

O Tribunal de Justiça enfrentou, nos últimos meses, uma série de denúncias envolvendo o setor de precatórios. O senhor acredita que esse caso

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consegui-lo já se encontra bem pavimentado, cabendo-me mantê-lo e aperfeiçoá-lo. Como o senhor pretende resgatar a imagem do Poder Judiciário no RN?

É importante aproximar o Judiciário da sociedade. Para que isso ocorra, deve-se, de antemão, melhorar a prestação jurisdicional, com a redução do tempo de tramitação dos processos, já que é um anseio dos jurisdicionados. Torna-se difícil recompor credibilidade quando a atividade fim do órgão jurisdicional deixa de atender às legítimas expectativas sociais. Também, há de se divulgarem com mais eficiência as ações positivas do Poder Judiciário e a sua verdadeira função constitucional, visando a desmistificar a complexidade burocrática que o afasta da maioria da população. Ainda, promoverei uma gestão honesta, transparente e democrática, na qual ouvirei as

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Arquivo Pessoal

Promoverei uma gestão honesta, transparente e democrática, na qual ouvirei as entidades representativas dos juízes, dos servidores e dos advogados, que poderão ajudar nessa aproximação entre o Judiciário e a sociedade

entidades representativas dos juízes, dos servidores e dos advogados, que poderão ajudar nessa aproximação entre o Judiciário e a sociedade. Por último, manterei o diálogo institucional com os demais Poderes do Estado, porém, ressalto, sempre preservando a autonomia e a independência do Judiciário. Como o senhor avalia a questão da eleição direta para presidente dos Tribunais, caso que vem sendo discutido pelas associações de magistrados ?

Não tenho qualquer crítica a fazer a uma eventual emenda constitucional que estabeleça as eleições diretas dos órgãos diretivos dos Tribunais, desde que tal alteração venha com o intuito de melhorar as instituições. Qual a importância de uma boa relação entre o Poder Judiciário e a sociedade?

Tenho a plena consciência de que nós, juízes, somos servidores do público, o qual é o nosso verdadeiro patrão. É indispensável que os agentes públicos, em particular os magistrados, deem satisfação dos seus atos administrativos e funcionais à sociedade. Ao fazê-lo, esta reconhecerá a importância e o significativo papel do Judiciário para a integridade da estrutura social, pacificando os conflitos de interesses, e para o atingimento de uma sociedade livre, justa e solidária, retrato fiel do Estado Democrático de Direito, delineado no Texto Magno. Sem dúvida, a compreensão mútua entre o Judiciário e a sociedade constituirá elemento facilitador do cumprimento da missão constitucional daquele.

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// Fórum

escolher Pelo direito de

Por Leandro Igor Vieira Jornalista

É bem provável que o auditório Ministro José Delgado, localizado nas entranhas do prédio da Justiça Federal no Rio Grande do Norte, tenha sido, no último dia 30 de novembro, palco de um momento histórico para o Brasil. Organizado pela Associação dos Magistrados do RN (AMARN), o Fórum de Democratização do Poder Judiciário avançou na discussão sobre a necessidade de eleição para os tribunais judiciários do país e lançou, aqui no Estado, a campanha “Diretas Já no Poder Judiciário”. Além de magistrados potiguares e de outros estados brasileiros, participaram do evento o deputado federal Henrique Alves, a deputada federal Fátima Bezerra, o senador José Agripino, o ministro da Previdência Garibaldi Alves Filho, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) desembargador Nelson Calandra, o juiz federal do Rio de Janeiro, José Carlos Garcia, palestrante do fórum, e o senador Vital do Rêgo, autor da PEC 15/2012, texto que apoia a legalização das eleições diretas. “Considero essa peça um avanço para a magistratura do Brasil. Nas pesquisas internas realizadas, mais de 95% dos nossos magistrados querem decidir quem serão os seus líderes”,

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comentou o senador. Vital se embasa em dados vistosos o suficiente para levar a sua ideia adiante. No país, existem, segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2010, mais de 16.000 magistrados em atividade. Boa parte desse contingente, no entanto, não dispõe de instrumentos internos que assegurem a efetiva democracia no processo de escolhas dos dirigentes desses tribunais. “A partir da discussão iniciada aqui no RN, acreditamos que os ventos da democracia levarão essa consciência para todo o Brasil. Essa é uma luta lícita”, disse o senador em uma de suas falas, ao final das quais foi aplaudido de pé pelo auditório lotado. O discurso de Vital foi seguido de perto pelos apoiadores do evento: AMB, AMATRA 21 e Associação dos Juízes Federais no Estado (AJUFE-RN). Ao subir no palanque, Nelson Calandra, presidente da AMB, fez questão de deixar claro a sua posição a favor da campanha. “Vamos continuar protestando. A democracia não aguenta mais esperar”, declarou. Na opinião do presidente, a discussão nunca esteve tão forte, em virtude da participação de importantes lideranças políticas do país no evento.

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A deputada Fátima Bezerra foi uma delas. Munida da sua usual assertividade, Fátima afirmou em seu discurso que é inteiramente a favor da tese apoiada pela AMARN e sustentada pelo senador Vital. “Quanto ao argumento que diz que a mudança iria trazer um excesso de politização aos tribunais, posso dizer que é um argumento muito fraco”, comentou. Para entender melhor o que o Fórum de Democratização pretendeu alcançar, é preciso ir mais a fundo nas PEC 15/2012, e 187/2012, do deputado Wellington Fagundes, duas proposições que serviram de esteio para a realização do evento, e que fortalecem a campanha “Diretas Já”. No caso da primeira, a democratização da gestão no Poder Judiciário é um dos pontos de destaque. Apresentada no final do mês de março, o dispositivo altera o artigo nº 96 da Constituição Federal, que diz respeito às eleições para cargos diretivos nos tribunais estaduais. De acordo com a proposta, a redação do artigo focaria o seguinte objetivo: “Eleger seus órgãos diretivos, por maioria absoluta, através do voto direto e secreto, dentre os membros do Tribunal Pleno, exceto os cargos de Corregedoria, por todos os magistrados vitalícios em atividade, de primeiro e segundo graus, para um mandato de dois anos”. Segundo a AMB, apenas uma pequena parcela de ma-

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gistrados participa das eleições para os seus órgãos diretivos. Estima-se que 15% da magistratura - seja estadual, trabalhista ou federal - possuam o direito de eleger os presidentes dos seus respectivos tribunais. Não bastasse isso, para ocupar a presidência de um tribunal é preciso ser o desembargador mais antigo da Corte, de modo que, mesmo num universo restrito, nem todos os desembargadores são elegíveis. Para o palestrante do dia, o juiz federal do RJ José Carlos da Silva Garcia, a situação gera uma “esquizofrenia institucional”. “Garantimos a democracia externa, mas não a interna; é preciso estabilizar a situação”, falou. O juiz ainda esclareceu que esse é um desejo antigo, vide a existência da PEC 12, de 1999. De acordo com ele, a maior relutância para que uma das novas propostas seja aprovada vem dos tribunais. “Até acho essa resistência compreensível, ninguém quer perder o poder, mas não se justifica. Não dá pra se apegar só ao critério da experiência”, comentou. Segundo texto da cartilha da AMB, material produzido para dar projeção à campanha, as consequências do modelo antigo são muitas, entre elas: déficit da legitimidade dos dirigentes perante os demais membros do poder, no caso de juízes de primeiro e segundo graus; ausência de projeto de governo que

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dê unidade de ação em todas as instâncias; carência de compromissos institucionais e ausência de participação dos membros do poder no planejamento estratégico, na elaboração dos orçamentos e na definição e execução dos planos de ação. “Uma mudança nesse modelo resolveria não só esses problemas, mas ajudaria na adesão das massas, que passariam a ver a instituição com outros olhos”, explicou José Carlos. Ainda segundo ele, as limitações que a inexistência de uma eleição direta impõe vão além de questões técnicas. Com o passar do tempo, vivendo nessa mesma condição, começou a crescer entre os juízes brasileiros a impressão de um apequenamento da função, sensação que pode afetar o desenvolvimento das atividades de magistratura. O deputado Henrique Alves, um dos que discursaram, comentou: “lamentei profundamente a não concessão do reajuste a ser dado aos membros do poder judiciário. Acho uma causa justa”, disse, referindo-se a mais um problema que contribui para o mal-estar da função.

A outra PEC Na Câmara dos Deputados, tramita a PEC 187/2012, de autoria do deputado federal Wellington Fagundes (PR-MT),

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que é presidente da Frente pelo Aperfeiçoamento da Justiça Brasileira. Em entrevista concedida ao site da AMB, Wellington Fagundes afirmou que fará campanha em todos os estados antes da votação no Congresso Nacional. “Conquistando o apoio da sociedade, faremos que sua vontade seja correspondida no Parlamento, registrando mais um passo importante da democratização no país, com um Judiciário forte, moderno e mais próximo da sociedade”, afirmou. As alterações propostas pela PEC 187 são muito semelhantes ao que prevê a PEC 15. Basicamente, permite que juízes, por meio de voto direto e secreto, escolham os membros dos órgãos diretivos das Cortes de Justiça no país para um mandato de dois anos, com exceção dos cargos da Corregedoria. Para os juízes presentes no evento, a eleição direta contribui para a construção de uma gestão democrática no judiciário, uma vez que esse processo democrático irá possibilitar uma administração comprometida com resultados. A eleição seria um momento de reflexão sobre os destinos da classe e os projetos para o futuro. Atualmente, o voto é permitido apenas aos desembargadores, uma das quais, inclusive, engrossa o coro do “Diretas Já”,

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“Os tribunais veem a mudança como enfraquecimento, eu vejo como força. Muitos não entendem a grandeza da proposta. Não é uma disputa interna, e sim a garantia da dignidade dos atendidos pelos tribunais do país”. Marco Bruno Miranda, diretor da AJUFE. “Essa é uma iniciativa inédita, por meio da qual será possível avançar na discussão democrática”. Presidente da AMARN, juíza Hadja Rayanne.

“Distribuir democracia é primordial”. Procurador-Geral Manoel Onofre Neto.

“A campanha tem tudo para dar certo. Vamos olhar para aquilo que nos une.” Nelson Calandra, diretor da AMB. “A instituição tem seus problemas, mas exerce, agora, o seu papel de debate, e o debate pode ser mais importante que o meu voto”. Senador José Agripino.

“Sou inteiramente a favor da tese que vocês debatem hoje aqui. Sou de uma geração que lutou por um estado democrático de direito”. Deputada federal Fátima Bezerra. “Essa campanha vem ao encontro do que o povo brasileiro quer: transparência, liberdade e democracia. Não é uma questão partidária.” Deputado federal Henrique Alves.

“Estou afastado do senado, mas se voltar, lutarei pela causa.” Ministro da Previdência Social Garibaldi Alves Filho.

a desembargadora Zeneide Bezerra. “É muito importante discutirmos esse assunto. Apoio a causa há muito tempo e posso dizer que a discussão foi maravilhosa, muito produtiva”, comentou. O evento, inédito no Rio Grande do Norte, contou ainda com o apoio de outras importantes figuras da área jurídica, como o promotor-geral de justiça, Manoel Onofre Neto. A presidente da AMARN, Hadja Rayanne, comemorou o sucesso da empreitada. "Foi um passo importante e eu só tenho a agradecer a presença de todos nesta luta pela democratização do Poder Judiciário", afirmou.

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“Para que a PEC tenha força, é preciso que o país se mobilize. Estamos aqui para começar essa mobilização”. Senador Vital do Rêgo, autor da PEC 15/2012

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// Opinião

Ser juiz

De glamour e pernas

Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Presidente da AMARN

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Dia desses fiquei lembrando da minha trajetória na magistratura. Ainda novinha, recém concursada assumi a comarca de Governador Dix-Sept Rosado na região oeste do Estado. A família, que queria toda estar presente para a assinatura do tal livro de posse, seguiu pela estrada de terra de Mossoró até o Fórum. Assinado o livro, feliz da vida, me deparo com minha mãe chorando. Pergunto o que aconteceu e ela me diz que pensou que ser juiz era uma profissão com muito glamour, mas aquele lugar de trabalho era horrível, a cidade sem estrutura e a segurança do local muito ruim... A sala de audiências ficava na cozinha de uma casa velha, onde eu podia enxergar pela porta sempre aberta (dada a falta de ar condicionado), bodes e ovelhas trafegando pela cidade. Disse então a ela que nada daquilo importava pra mim. Que justamente ali, cidade de tão poucos recursos, minha presença era mais importante e eu seria mais útil. Entendo perfeitamente a preocupação materna. Eu, criada com todo conforto e desvelo (à base de banana maçã, como diz um amigo querido), iria agora enfrentar situações adversas de trabalho. Um trabalho desempenhado em um ambiente sem glamour (como referiu minha mãe), mas com o atrativo ímpar de ser essencial. De lá para cá já se vão 16 anos de muitos acertos e erros. De outras cidades e Fóruns em que atuei, pessoas que condenei e absolvi, casais que uni e separei, direitos que garanti ou deneguei. Políticos que diplomei, outros cujos direitos políticos cassei.

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E assim vivi e vivo essa profissão cujo glamour impar reside não no salário (que é bom) ou na estabilidade ( que é ótima), mas na certeza inarredável da contribuição que pode dar à sociedade. Ah esse ser juiz... Tomo o verbo ser pois outros verbos não lhe servem de adjetivo. Nem o ter o status de juiz, que no fim das contas nada significa e nem o estar juiz, pois este pouco contribui para a toga. Não! O ser é realmente o único verbo capaz de adjetivar essa profissão de tantas alegrias, dificuldades, desencantos e realizações. Essas lembranças e reminiscências do meu passado e presente de magistrada, me tomam sempre que me deparo com o paradoxo completo que vive hoje o juiz brasileiro: nunca foi tão necessário e nunca foi tão atacado. Sem dúvida é difícil conviver com tal situação... Não. Fácil não é. Vejo muito desânimo e colegas desencorajados... Cansados não só da labuta diária nos Fóruns, das cobranças sem fim da profissão, mas principalmente da generalização negativa que nos achata e nos denigre. Me encontro com um colega que, triste, me diz que para ele a profissão acabou. Que o juiz era respeitado e que as pessoas acreditavam no seu papel e hoje elas o vêm com desconfiança. Que a mídia nos trata como marginais, que o CNJ no pressiona o tempo inteiro. Que está tão cheio de tudo que nem quer ouvir as novidades do que está acontecendo no Tribunal e fala e diz e repete e vai embora ainda mais triste. Aff. Me bate também um desânimo...As palavras do colega me atingem... Por mais que busque me manter tranqüila, noites insones me trazem a preocupação com uma profissão de importância fundamental para essa nossa democracia tropical. Se duvidam da importância dela, basta que consultem os números de processos que hoje tramitam no Brasil. É triste assistir essa magistratura agigantada pelo papel que lhe cabe, muitas vezes diminuída, cansada, abatida e cabisbaixa. Temo que esse período de dor (e não há aprendizado sem dor, como nos lembra Aristóteles) seja necessário. Necessário para trazer mudanças, alterações alvissareiras e avanços. Mas

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temo também que o prolongamento dele nos congele e nos paralise, tolhendo esses mesmos avanços. Com essas preocupações em mente saio de casa e vou para minha tarefa semanal: fazer a feira. Nos corredores do supermercado me aborda uma senhora. Sem reconhecê-la a cumprimento meio sem jeito e ela bem despojadamente me pergunta se não me lembro dela. Constrangida reconheço que não. Ela ri e me mostra a perna direita cheia de cicatrizes e me diz: “Olha doutora eu sou a Socorro e essa perna é sua”. Minha? Como assim? “É sua.. foi a senhora quem determinou que o plano me operasse e aí o médico salvou minha perna.” Me dá um abraço e sai feliz da vida me deixando, sem jeito, no meio de latas de atum, ervilha e congêneres. Demoro um pouco a processar o ocorrido e a prosseguir na feira com os olhos meio molhados... E sorrindo. Sentimento bom! Porque a profissão é difícil, o momento é de crise, mas puxa, bom mesmo é encontrar as Socorros e suas pernas funcionando... Isso sim é glamour! Quer saber? Tô nem aí pra nada! Eita profissão porreta! E vou me embora: eu, minha profissão sem glamour e minhas três pernas.

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// Conto

Juan Ponce A viagem de

“ - Algum viajante - lembrou o poeta Abdalmalik - fala de uma árvore cujo fruto são pássaros verdes.” (A busca de Averróis - Jorge Luis Borges)

E

ra o equinócio de outono do ano de 1521 de nosso Senhor. Propositadamente, desviei-me do caminho de São Tiago, rumando mais para o norte, em busca do Douro castelhano e de suas belas paragens, de suas fontes escuras e dos olmos centenários de sua mata ciliar. O vento, que me dera trégua nos momentos mais difíceis da escalada do monte Urbião, fustigava-me novamente as faces já rubras de frio. O corpo lasso reclamava-me um quarto, um cobertor quente

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e um bom vinho para retirar-me de vez as derradeiras forças e dar-me de beber um sono profundo. Caminhava a longo passo de Sória, e, nessas veredas montanhosas, o vento cortante do outono obriga os viajantes a procurar pouso antes do cair da noite. A montante, uma colina íngreme avançava ao norte, e, a algumas milhas depois de Covaleda, regatos ruidosos emulavam com rouxinóis que se agasalhavam em robustos choupos, nos quais as folhas precocemente caducas, já amarelecidas, resistiam ao vento. Ainda rio acima, uma alameda, salgueiros e cerejeiras se empertigavam entre as rochas escarpadas, retilíneas, uma das quais, de cujo cimo e sobre cujo rosto despencava uma densa cascata, de tão alinhada, parecia esculpida pelo cinzel de algum deus pagão. Andorinhas, em revoada, iniciavam sua longa marcha para o sul, repletando o ocaso de uma suave tristeza. Havia caminhado durante horas, quando, exausto, parei às margens de um regato. Descansei durante alguns minutos, não sem me dar conta de que havia que prosseguir pelo caminho tortuoso de Duruelo de la Sierra, monte acima. A noite se precipitava, e já me preocupava o fato de não recordar a localização de uma estalagem nas proximidades. Há muito tempo, estivera nas fontes do Douro, no cume do Urbião; todavia custava-me lembrar precisamente em que hospedaria repousara. Apressurei-me, seguindo o caminho do monte e, meia hora depois, em meio a um pequeno bosque de faias, deparei com um albergue à entrada de uma densa floresta de pinheiros, situada num altiplano. Bati fortemente à porta da velha construção de pedra, auxiliado pelo peso da espessa aldraba. Na fachada, talhado na rocha, o ano de sua fundação: 1234. Em meu socorro, veio de dentro da estalagem uma blasfêmia, seguida de passos lentos e o ranger metálico de um pesado molho de chaves. Pouco depois, ao roçar de uma trava seguiu-se um forte estalo. A porta abriu-se, e atendeu-me um velho muito gordo, cabeça enorme e calva, que, de chofre, sem nenhuma mesura, me perguntou o que me levava àquelas paragens num frio crepúsculo outonal. Antes de qualquer explicação, pedi-lhe que me cedesse um quarto para repousar apenas por uma noite, porquanto seguiria viagem no dia seguinte, aos primeiros raios da aurora. Acrescentei, com a firmeza que a necessidade exige dos espíritos nobres, que não tinha nem ouro nem prata, nem qualquer dádiva que

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Juiz Jessé de Andrade Alexandria

lhe pudesse oferecer, a não ser minha gratidão cristã e alguns momentos prazerosos que minha arte lhe poderia proporcionar naquela fria noite de outono, que se avizinhava. O velho deu de ombros, rosnou algo incompreensível e me disse que, naquele lugar distante do reino de Castela, os viajantes não eram sua melhor companhia, seja porque nada de valor lhe podiam oferecer, seja porque, quando seguiam viagem, nunca carregavam consigo as muitas pulgas que haviam deixado. Afirmou que somente os nobres que costumavam praticar a caça do javali naquelas paragens sorianas lhe presenteavam algumas moedas de ouro: a melhor gratidão que se podia oferecer a quem lhes dava repouso, comida e bebida. Quanto às prendas com que os viajantes costumavam perturbar-lhe o sossego, o estalajadeiro opôs que eram como os tributos reais: só agradavam aos espíritos ociosos, porque lhes compravam a preguiça. — Mas esses caçadores, senhor, também lhe deixam as pulgas de seus lebréus, e seus cães de caça levam as deixadas pelos viajantes — zombei. Mal acabara de pronunciar a última palavra, o pousadeiro me perguntou o que levava naqueles dois surrões velhos. — Minha música, senhor: flauta, viola, alaúde e rabeca — disse-lhe com indistinto orgulho. — Que tipo de jogral és: goliardo, histrião? Por que te desgarraste de tua farândola? — indagou. Objetei que era um trovador, chamava-me Juan Ponce, tocara na corte de Isabel de Castela e herdara a arte da música de meus antepassados, um dos quais se havia apresentado nos salões de Afon-

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so X, o sábio, de Castela e Leão. O velho riu, escancarando os dentes enegrecidos. — E, além de tudo, fabulista. Trovadores da corte não caminham por estas terras, vestindo andrajos e carregando surrões puídos, andarilho — rebateu. Nada redargui; tirei do surrão a viola, apoiei-a e, ao dedilhar suave as cordas, cantei os versos: Longe se ponha o sol Onde eu tenha o amor. Lá, o ocaso chegasse De meus amores viesse Antes que eu morresse Com toda esta dor. Longe se ponha o sol Onde eu tenha o amor. Lá, o sol desvanecesse e o meu amor encontrasse antes que eu findasse Com este rancor. O velho ficou algum tempo em silêncio, lábios hirtos e olhos pasmados. Como nada dissesse, perguntei-lhe se conhecia aqueles versos de minha autoria. — Reconheço um trovador, senhor, pela música. Peço desculpas a vossa mercê. É que seus trajes

não revelam sua condição. Chamo-me Gonçalo de Domas. Tenho um quarto que pode abrigá-lo, não é grande coisa, mas tem água quente e uma cama com um bom cobertor. Posso oferecer-lhe sopa, vinho e pão — respondeu o pousadeiro. Agradeci-lhe a hospitalidade e disse-lhe que, depois da refeição poderia mostrar-lhe algumas peças que havia colhido nas viagens a Córdova e Granada. Gonçalo de Domas meneou a cabeça em tom afirmativo e disse-me que poderia acompanhar-me num brinde. Assenti prontamente, afirmando que teria gosto em tê-lo como conviva. — Acompanho-o somente no vinho — objetou secamente. Mas logo abriu um largo sorriso, declamando versos que me eram familiares: Ave, color vini clari, ave, sapor sine pari, tua nos inebriari, digneris potentia... Depois da refeição, recuperei minhas forças, sentindo-me confortável e aquecido pele bebida. Seguia-me a rabeca, quando cantei para o pousadeiro os versos de uma cantiga de Santa Maria: Dizei, ó trovadores, Ao senhor dos senhores, Por que não louvais? Se vós trovar sabeis, Se a Deus haveis, Por que não louvais? Ao senhor que dá a vida, Que é bem comprida, Por que não louvais? A que nunca nos mente, A que a nossa dor sente, Por que não louvais? Conversávamos e bebíamos um bom vinho duriense. O estalajadeiro falava sobre como havia chegado àquele lugar. Contendas familiares e a proximidade de um irmão rival ao Conde de Medinaceli fizeram com que tivesse sido expulso de suas terras e fosse obrigado a pagar pesados tributos ao rei, o que consumira toda sua herança. Tais divergências entre os nobres de Castela chegaram ao seu ponto crítico nas Cortes de Ocanha, em 1469, precedidas de uma feroz guerra civil. Gonçalo de Domas perdera tudo, provavelmente acusado de traição. A duras penas, adquirira aquelas terras de um barão arruinado, mas

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estava proibido, por decreto real, de plantar e possuir rebanhos. Indaguei-lhe se era proveniente de Domas, como denotava o sobrenome. Respondeu-me que, em verdade, provinha de Berceo, onde um antepassado, cujo nome herdara, fez fama e fortuna, versificando e escrevendo sobre a vida dos santos. Perguntou-me se eu poderia cantar um romance da reconquista de Granada, pois, já que havia tocado na corte de Isabel, a católica, saberia cantá-lo como ninguém... Com o alaúde, cantei os versos de Juan del Enzina: Ó Granada enobrecida, por todo mundo aclamada, Até aqui foste cativa, e agora já libertada! Perdeu-te o rei D. Rodrigo por sua dita desditada. Ganhou-te o rei D. Fernando com ventura prosperada. A rainha Dona Isabel, a mais temida e amada, Ela com suas orações, e ele com muita gente armada. Segundo Deus faz seus feitos, a defesa era escusada, Pois, onde Ele põe Sua mão, o impossível é quase nada! Que é de ti, desconsolado? Que é de ti, rei de Granada? Que será de tua terra e teus mouros? Onde tens tua morada? Renega já a Maomé e sua seita malvada, Pois viver em tal loucura é burla malograda. Torna, torna, bom rei, à nossa lei consagrada. Porque se perdeste o reino, terás tua alma cobrada. Que é de ti, desconsolado? Que é de ti, rei de Granada? De tais reis, vencido, honra deve ser-te dada.

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Não se conteve o velho pousadeiro e louvou a interpretação daqueles versos. Agradeci-lhe comovidamente. Prosseguimos com a conversa sobre como Granada fora conquistada e como Boabdil fugira de Alhambra. O hospedeiro falava sobre as intrigas palacianas no reino muçulmano, das quais se aproveitaram os reis e a nobreza católicos para preparar, durante cerca de dez anos, a tomada de Granada, antes sob o domínio dos násridas. Então, voltei à viola com versos mais amenos, condizentes com a ocasião; um romance anterior à reconquista, em que Granada aparece como uma mulher a quem se pede em casamento: Abenámar, Abenámar, mouro da mouraria, O dia em que nasceste, grandes sinais havia, Estava o mar em calma, a lua estava crescida, Mouro que em tal signo nasce não deve dizer mentira. Ali respondera o mouro, bem ouvireis o que dizia: Direi verdade, senhor, ainda que me custe a vida, Porque sou filho de mouro e de uma cristã cativa; Sendo eu menino e rapaz, minha mãe me dizia Que mentira não dissesse, que era grande vilania; Portanto, pergunte, rei, que a verdade lhe diria. Te agradeço, Abenámar, essa tua cortesia. Que castelos são aqueles? Altos são e reluziam! O Alhambra era, senhor. E o outro, a Mesquita, Os outros, os Alixares, lavrados à maravilha. O mouro que os lavrava, cem dobras ganhava ao dia. E o dia em que não os lavrava, outras tantas ele perdia. O outro, o Generalife, horta que par não teria. O outro, Torres Bermejas, castelo de grande valia.

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Ali falou o rei D. Juan, bem ouvireis o que dizia: Se tu quisesses, Granada, contigo me casaria; Dar-te-ei, em arras e dote, Córdova e Sevilha. Casada sou, rei D. Juan, jamais me entregaria, O mouro que tem a mim, mui grande bem me queria. Gonçalo de Domas, conferindo um tom mais solene à voz, cada vez mais frouxa e abrandada pelo vinho, iniciou o que dizia ser uma história interessante, contada em sua família, pela primeira vez, por seu ancestral hagiógrafo: — Um viajante que descansou nessas paragens, há pelo menos três centúrias, contou a Gonçalo de Berceo que um rei desumano, odiado por seu povo, matara a um pastor, por ser este mui querido em sua aldeia. O monarca, enciumado, cortara-lhe a cabeça e enviara-lhe o filho a um monastério. O menino cresceu e voltou à vila, onde, já homem feito, passou a viver tocando flauta e viola. Havia aprendido a arte da música com os monges que o educaram. A filha do rei apaixonou-se pelo jovem (ela também amava muito a música, que os aproximara), o que despertou no soberano imensa revolta. O monarca prendeu o trovador numa fortaleza, da qual jamais alguém escapara. A filha do rei morreu de coração partido, pois o soberano jamais permitiu que a princesa tornasse a ver o trovador. Por haver perdido a única filha, a joia que mais amava, o rei decidiu que o prisioneiro não seria executado, mas lhe seria tomado o que mais amava. Ao dar liberdade a um companheiro de prisão do trovador, o monarca comprou-lhe um segredo: “É a música, majestade, aquilo que o trovador mais ama!” O soberano mandou que os festejos do reino fossem deslocados para o palácio mais distante. Nas aldeias, a música foi proibida. E não havia pena maior. Os aldeões que assobiavam ou cantarolavam eram presos e pagavam penas cruéis. A música só era tocada nesse distante palácio, nos confins do reino, presenciada apenas por suseranos e vassalos. Mesmo segregado, o trovador ainda versejava, ainda perseguia algo que lhe pudesse restituir a vontade de viver. O rei soube que o menestrel se alegrava com as aves canoras que se acercavam das grades da pequena janela do cárcere, às quais regalava migalhas de pão. O monarca mandou construir uma enorme rede em volta da torre na qual o mantinha encarcerado. Os pássaros se afastaram ou foram capturados e mortos. Mesmo

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assim, o trovador ainda encontrava alguma alegria, cantando: o soberano ainda não lhe havia arrancado a música. Um dos carcereiros disse ao rei que havia visto o trovador a cantar e tocar uma viola imaginária. O monarca impiedoso mandou cerrar a janela com pedras, ordenou que cortassem a língua do trovador e lhe furassem os tímpanos. Sem poder cantar e ouvir, só lhe restaria o silêncio da morte. Determinou, também, que ninguém poderia jamais cantar naquele reino, enquanto o prisioneiro estivesse vivo, sob pena de morte na forca ou em garrote vil. Decretou guerra aos pássaros do reino e reuniu um pequeno exército para exterminá-los. “Vivemos no Reino do Silêncio!”, diziam os aldeões. Tempos depois, outro carcereiro disse que, no silêncio da noite, o coração do trovador batia tão forte, que se assemelhava a um tambor que latejava, a marcar a passagem do tempo com pancadas sonoras e ritmadas. O rei não teve dúvida: ordenou que lhe arrancassem o coração e o jogassem às feras. Assim fez o carrasco, apesar de saber que o que fazia era uma infame injustiça: levou o prisioneiro para o lugar mais distante do reino e lhe arrancou o coração. Porém, o coração continuou a bater, forte e compassadamente, com as mesmas pancadas sonoras e ritmadas de antes. O verdugo, mesmo assombrado, levou o coração para ser atirado às feras. Nesse instante, apareceu-lhe um pássaro canoro, que lhe falou: “Não atires o coração às feras! Ele pulsa, está vivo!” Espantado, o algoz, as mãos trêmulas, respondeu-lhe: “Jamais quis atirá-lo às feras. Nem mesmo quis matar o trovador. Fui obrigado por meu senhor a fazê-lo”. O pássaro pediu que escutasse atentamente algo que lhe devia contar: “O coração que tens nas mãos deverá ser deixado no caule do mais antigo carvalho, na mais alta montanha do reino. A cada sopro do alísio, ressoará das entranhas do coração as primeiras melodias do homem, inundando de música todo o reino. Vejo remorso em teu coração. Estou certo de que teu arrependimento é sincero, mas terás de peregrinar pelo mundo, durante toda tua vida, aprendendo e ensinado tudo que puderes da arte da música. Não terás nem pátria, nem posses, mas apenas teus instrumentos musicais, nos quais se transformarão todos os instrumentos de tortura, suplício e morte que antes utilizavas. Apressa-te! Mas antes quero contar-te algo que jamais contei a alguém. Quando o criador fez o primeiro homem, esculpiu-o com a argila do rio da criação.

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Moldou-lhe o corpo como o seu. Mas aquela figura inanimada necessitava de um sopro de vida para caminhar sobre a Terra. E o criador soprou na concavidade do punho semicerrado de sua mão esquerda, produzindo um som melodioso, jamais ouvido. Fechou totalmente o punho e aprisionou o sopro de ar no peito da criatura de argila. Depois, abriu e fechou a mão algumas vezes e a retirou daquele corpo ainda sem vida, instante em que um pequeno tambor passou a bater compassadamente no peito da criatura. O criador deu-lhe o nome de homem, porque nascido da terra fértil; a música, sua alma, ressoa no coração durante toda a vida. Quando, um dia, o coração do homem parasse, a alma deixaria o corpo e se aninharia no tronco desse carvalho primevo, à espera de outro sopro divino”. O pássaro, antes de alçar voo, disse-lhe ainda: “Vai, o tempo urge. Após a aurora, este reino não poderá estar imerso no silêncio. Apressa-te!” Prosseguiu Gonçalo de Domas: — O carrasco deixou o coração no lugar indicado, que se incorporou ao velho carvalho. A música invadiu o reino: rompeu-se o silêncio. À sombra da árvore, repousavam uma rabeca, uma flauta e uma viola. O verdugo colocou-as em sua sacola e retirou-se, peregrinando de reino em reino, de aldeia em aldeia, de caminho em caminho, pelo resto da vida. Em seus últimos anos, vida que lhe foi muito longa, tocou seus instrumentos e cantou no califado da Córdova de Al-Andalus, inclusive para o próprio sultão, que, em gratidão, lhe presenteou um alaúde. Um dos copistas do monarca muçulmano escreveu essa história, ditada provavelmente por Averróis; no entanto, o manuscrito perdeu-se para sempre. Algumas músicas tocadas pelo menestrel chegaram até nossos dias pelas cantigas recolhidas por Afonso X, o sábio, rei de Castela e Leão, como a Cantiga de Santa Maria que reverencia o perdão. Conhecia a cantiga citada por Gonçalo de Domas e, tocando a rabeca, cantei para ele os versos: Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem De demonstrar haverá ela sinais de que lhe prazem Disto vos direi milagre, onde houverdes sabor Que mostrou Santa Maria com mercê e com amor A um mui bom cavaleiro, seu querido servidor Que em servi-la pusera o seu coração também

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Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem... E havia um seu filho a quem sabia mais amar Assim, matou-o um cavaleiro. E com pesar Do filho, foi ele prendê-lo e quisera-o matar Que um ao seu filho matara, por não lhe valer vintém Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem... E ele, ao levá-lo preso, numa igreja entrou E logo entrou o preso e do rival não se lembrou E, após ver da Virgem a imagem, o cavaleiro o soltou Curvou-se ante a imagem e deu-lhe graças. Porém... Se um homem fizer de grado pela Virgem algum bem... O pousadeiro contou, ainda, que o rei Afonso, o sábio, conheceu o menestrel pessoalmente, quando o trovador cantava na corte e nas aldeias de seu reino. Uma das cantigas inspirou o monarca a dedicar a vida a recolhê-las. Narrava a história de uma estalagem em que havia a imagem de Santa Maria numa távola, que, milagrosamente, se materializava na santa, o que ocorreu não só uma, mas inúmeras vezes. O rei perguntou ao menestrel onde havia ocorrido o milagre. O trovador disse não conhecer a pousada, justo porque nunca a estalajadeira se gabara das aparições. Talvez por essa razão, a história foi difundida por viajantes, chegando até a distante Damasco, sem que nunca mencionassem o lugar da revelação. De fato, ignoravam-no. Poderiam tê-lo inventado, mas nunca o fizeram. O rei vestiu-se de viajante e foi procurar a estalagem em seu reino e em outros vizinhos. Numa noite de céu claro, encontrou uma pousada na subida de um monte. Muito cansado, bateu à porta. Uma velha o acolheu, deu-lhe um quarto, um prato de sopa, alguns pedaços de pão e uma caneca de vinho. O viajante agradeceu-lhe a hospitalidade e lhe indagou se conhecia a hospedaria em que havia, numa távola, a imagem de Nossa Senhora. A velha respondeu-lhe que ali, naquele albergue, havia a távola a que o andarilho se referia. O viajante pediu-lhe permissão para ver a imagem. Num quarto muito escuro, cerrado por uma porta larga, havia uma mesa de carvalho, de tampo enegrecido. A velha

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acendeu um lampião. Lá, bem no centro da mesa, uma imagem de Santa Maria emergia dos nós cortados do caule do roble. O viajante ficou muito impressionado, ajoelhou-se e rezou. Pediu que Nossa Senhora lhe concedesse a graça da aparição. A velha contemplava-o com placidez, mas logo se retirou do quarto, deixando o viajante sozinho. O rei Afonso chorou, curvou-se durante horas ante a imagem da santa, mas esta não se revelou. O sábio monarca, resignado, tomou o caminho de volta para o seu reino e passou o resto da vida colhendo as cantigas em homenagem à Santa Maria. Gonçalo de Domas afirmou, com a voz um tanto roufenha, que reis não podem ser santos e que estes só aparecem às pessoas comuns: aos pastores, aos aldeões, aos pescadores. Acrescentou que rei e réu são palavras semelhantes, assim como seus significados. Era tarde, o cansaço já me invadia o corpo. A sensação de conforto transformava-se em sono. Desculpei-me com o pousa-

deiro, pois iria recolher-me. Antes, assenti em que sua história era mesmo muito interessante. Agradeci-lhe a hospitalidade, e, antes que me retirasse aos aposentos, Gonçalo de Domas disse-me, com ar fatigado, que a noite lhe havia sido muito prazerosa. Desejou-me boa viagem e pediu-me cuidado nas tortuosas veredas do Urbião, pois Don Beldur, o sulfuroso, carregara consigo mui-

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tas almas naquelas paragens, entre as duas águas boas. Era como se referia, em seu idioma basco, ao diabo e ao Urbião. Aos primeiros raios do alvorecer, continuei minha caminhada em direção ao cume do monte. O clima amenizara, o vento amainara, e o frio não me enrijecia mais os músculos. Caminhei por horas, embalado pelas cantigas entoadas na noite anterior, acompanhadas pela roçar do vento nas folhas que revoavam de álamos, salgueiros, choupos, olmos e pinheiros silvestres. Ouviam-se o canto de cardeais e o marulhar dos regatos que desciam ligeiro o Urbião e que formariam o Douro em sua longa caminhada ao mar lusitano. Pensei em como era feliz ao longo desses anos de viajante; em como pude olhar o mundo de forma diferente. O fato de não estar subjugado a nenhum senhor dera-me a liberdade de buscar a felicidade dia após dia. Meus lábios, dos quais haveria de manar a música até o fim de minha existência, testemunhavam-no. Se não fui feliz, o destino enganou-me e burlava de mim. Ao apertar o passo, subindo por uma encosta íngreme e pedregosa, encontrei uma ermida, construída nas cercanias de uma caverna, na qual teria vivido São Emiliano, o asceta, que distribuiu os bens de sua igreja entre os pobres e morreu centenário no último quarto do século VI. Uma cascata brotava entre as gretas de blocos graníticos que lembravam as escadarias de um palácio ou os degraus de um templo. Um veio vaporoso despencava em duas quedas num improvável zigue-zague. Subi monte acima, ao largo da cachoeira, por um caminho de seixos. O teixo milenar que buscava haveria de estar logo acima, no pico mais alto do Urbião. Escalei as gretas íngremes, galgando pedra por pedra, até um altiplano revestido por espesso prado, que circundava uma lagoa negra, sobre cujas margens, imponente e solitário, um teixo negro de pelo menos dois milênios se curvava. A história contada por Gonçalo de Domas era verossimilhante, porém, o manuscrito de Averróis não se perdera; haveria de estar ali, bem à minha frente. O teixo media pouco mais de trinta metros. Dez homens poderiam abraçar-lhe o caule completamente, não menos. Descansei à sua sombra. Retirei a flauta do surrão e toquei as melodias mais belas que conhecia. Os frutos venenosos do teixo ainda pendiam naquele início de outono. Um a um, começaram a cair. Os cardeais calaram, os regatos

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cessaram o marulhar. O vento dissipou o assovio, e não se ouvia o farfalhar das copas das árvores ou das borboletas. Logo que terminei de tocar as melodias, fez-se silêncio absoluto. Tateei, no tronco da conífera, entre os nós retorcidos, uma fenda que se abrira. Com as pontas dos dedos, retirei um papel rude, provavelmente da primeira fábrica árabe de meados do século XII, feito de cânhamo de Samarcanda. Inexplicavelmente, o papel se havia conservado. Abri-o com cuidado e examinei cada linha do manuscrito. Aprendi razoavelmente a língua e cultura árabes e acreditava que, indubitavelmente, todos os signos do texto dos copistas de Averróis poderiam ser interpretados. Tudo da história resumida por Gonçalo de Domas estava ali, descrita com apurado lirismo. A lenda ganhava cores, à medida que se narrava todo o martírio do trovador e a redenção de seu algoz, assim como descrevia a melodia que quebrara o silêncio do reino: uma música primigênia jamais tocada, que dera ao verdugo a imortalidade da alma, ou a aptidão para tanto. Uma clave, porém, parecia-me incompreensível. Inelutavelmente, malograva na decifração. A cifra ininteligível lembrava o ziguezaguear da cascata ao largo da qual subi os últimos rochedos até o cimo do Urbião. Durante horas, sentado à sombra do teixo, tentei debalde encontrar o significado daquele símbolo. Talvez fosse a nota de uma melodia celtibera, que se perdera e que eu ignorava, transcrita pelos calígrafos de Córdova. O sol viajou todo o arco da abóbada celeste num piscar de olhos. As horas haviam-me escapado como as lembranças da primeira infância. O silêncio da montanha invadiu a cratera onde se adensara, há milênios, a lagoa negra. Era inútil alcançar a decifração: a completa quietude trouxe a ilusão de um mundo sem tempo, sem luz, sem frio, sem calor, sem lembranças. O ocaso deu lugar à noite, e miríades de estrelas imorredouras cintilavam nos céus. O torpor não me incomodava. A alma gozava um estado indefinível. Os frutos vermelhos do teixo se dissolveram numa torrente, que me carregou o corpo para o fundo da lagoa. Mas já não havia lagoa, senão a imensa cratera de um vulcão extinto, que precipitava minha queda para as entranhas da Terra. Uma força telúrica, amalgamada ao sono, rodopiava-me entre as raízes do teixo, cada vez mais fundo, mais e mais e mais. Vi árvores silvestres despencando para o nada; riachos, pássaros precipitando-se para o centro da Terra. A rocha polida em que fora talhado o

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número da estalagem rolava entre os pedregulhos e seixos das cascatas. Uma lua minguada ao meio, os surrões atados pelas cordas da viola, o corpo de Gonçalo de Domas, tudo declinava, absorvido por uma força inumana. As raízes se transformaram em algaravias, e estas, em surdas notas musicais, plasmadas nas fibras do cânhamo de Samarcanda. Não havia melodia. Meu corpo viveu a plenitude do silêncio. Acordei com o estalo de uma trava, o roçar das chaves nas grades de ferro e a voz tonitruante do carcereiro. Abriram a cela e me trouxeram a flauta, a viola, a rabeca e o alaúde. Permitiram que eu tocasse pela última vez. O carcereiro olhou-me compassivamente. Enquanto tocava, um pássaro canoro veio visitar-me junto às grades da janela. Ofereci-lhe as migalhas de pão que sempre guardava da ceia anterior. O pássaro respondeu-me com um trinar doce, como a despedir-se de mim. Confiscaram-me os instrumentos musicais, prenderam-me e, em poucos minutos, arrancar-me-ão a vida à sombra de um patíbulo. Outro desejo me foi concedido, in extremis: escrever-lhe esta derradeira carta. Nada lhe deixarei, além desses arabescos e dessa história sem sentido: uma melodia inefável que jamais comporei. Suplico-lhe que deixe esta carta numa das fendas do teixo milenar, às margens da lagoa negra, no pico mais alto do Urbião. Alguém, um dia, a encontrará. Quiçá tente buscar essa melodia perdida, se ela existe. Quem sabe alcance sua decifração. Oxalá se interesse por minha história. Um padre veio rezar em favor de meu espírito, pleno de inquietudes. Rogou a Santa Maria que guardasse e protegesse minh'alma e a Deus que tivesse piedade de mim. Não espero clemência de Sua Majestade. Morrerei no equinócio de 1521. Devo reconhecer que é um belo dia. Adeus, Juan Ponce. Com essa história, deixo a vossa mercê o melhor de meus versos: Longe se ponha o sol... Para Irene Alexandria.

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// Hobby

Sentindo novos ares O esporte aliado à qualidade de vida

Paletó, livros, documentos, processos. Tudo isso, na maioria das vezes, numa sala fechada com ar-condicionado. Esse é o ambiente de trabalho no qual juízes estão acostumados, numa rotina pesada e de muito estresse. O sinal de alerta ficou ainda mais forte a partir do resultado de uma pesquisa feita pela Universidade Federal da Paraíba e a AMARN, em 2012, que apontou um índice elevado de estresse ocupacional entre os juízes do Rio Grande do Norte. 76,3% dos magistrados potiguares sofrem de sintomas de ansiedade e depressão. A busca pelo bem-estar nunca foi tão necessária em tempos onde, somente no Rio Grande do Norte os juízes são responsáveis, em média, por 2.400 processos. “O magistrado trabalha em

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ambientes fechados e climatizados, por vezes barulhentos, sem iluminação natural. Como precisamos nos concentrar em leituras, com o foco da visão a curta distância, isso favorece o aparecimento de miopia. A relação corpo-mente fica bloqueada, pois o trabalho é sedentário”, afirma o juiz Rosivaldo Toscano Júnior. O grupo de magistrados adeptos do esporte vem aumentando cada vez mais no Rio Grande do Norte, numa demonstração de que saúde e qualidade de vida são fundamentais para o equilíbrio das atividades profissionais e pessoais. Nesta reportagem, a Ritos ouviu três magistrados sobre a prática do esporte e todos destacaram mudanças positivas na sua vida depois de descobrirem o cliclismo, ou triatlo ou kitesurf.

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Fotos: Arquivo Pessoal

Juiz Rosivaldo Toscano JĂşnior praticando kitesurf


Juiz Paulo Giovani completando uma maratona

Juiz Mádson Ottoni e equipe de corrida

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Praticante do triatlo – natação, ciclismo e corrida – a pouco mais de um ano, o juiz Paulo Giovani começou incentivado por amigos e hoje leva uma vida de verdadeiro atleta. Já participou de várias maratonas e o desejo para o próximo ano é comemorar os 40 anos de vida no Ironman Brasil, maior prova de triatlo do Brasil, a ser realizada em Florianópolis, SC. “A partir do momento em que você se testa em uma maratona, passando por momentos sofridos, duros e dolorosos, onde não só sua resistência e condição física são testadas, mas também sua própria mente e força de vontade; os obstáculos naturais da vida ficam mais fáceis de serem encarados e superados. Você passa a ter mais disciplina, paciência e persistência em tudo na vida”, conclui Paulo Giovani. Não basta fazer uma atividade física, o comprometimento, a dedicação e disciplina fazem a diferença, principalmente para quem trabalha muito. Por causa, o dia começa bem cedo para o juiz da 9ª Vara Cível da Comarca de Natal Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues. Às cinco horas e quinze minutos, ele começa a rotina de treinamento para a corrida, além de musculação para evitar lesões. Magistrado há 21 anos, Mádson Ottoni começou a correr há 4 com um grupo da academia de ginástica e nunca mais parou. Já participou da corrida da Pampulha, em Belo Horizonte; a maratona do Rio de Janeiro e a meia maratona de Paris, na França. “O esporte para mim é fundamental. Fico mais tranquilo, tenho mais ânimo e concentração para o trabalho e mantenho a auto-estima elevada. Além disso, o ambiente esportivo é muito leve, saudável e a convivência com outras pessoas diminui a solidão do trabalho na magistratura, onde, mesmo involuntariamente, acabamos por restringir nosso ciclo de amizade”, afirma o juiz Mádson Ottoni. A falta de tempo, realmente, não é desculpa para o sedentarismo, segundo os juízes entrevistados. Eles foram unânimes em afirmar que a busca pela saúde e qualidade de vida falam mais alto. Acordar cedo, por volta das cinco horas, com os treinos de corrida e ciclismo e fazer natação, no intervalo do almoço, já

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Juiz Paulo Giovani no ciclismo

faz parte da rotina do juiz Paulo Giovani, pelo menos em dias alternados. “O triatlo requer muita dedicação e perseverança. Mas a mensagem que ele traz compensa. É muito bom testar seus limites e superá-los, descobrir que a pessoa que se imaginava ser, na realidade é bem inferior do que aquela que você é. Você nunca sai o mesmo no triatlo: sempre sai melhor”, diz com entusiasmo de atleta. Seja qual for o esporte praticado – ou por amador ou profissional – a satisfação pessoal é um das maiores conquistas. Aliar o prazer ao esporte é ainda mais importante, como prova o juiz

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Rosivaldo Toscano Júnior praticante apaixonado do kitesurf. Há 4 anos, ele descobriu um outro jeito de curtir a natureza com o sol, vento e o mar como cenários. “A sensação de saltar e o contato com a natureza são espetaculares. Já vi cardumes, tartarugas, peixes-bois, golfinhos e até um tubarão. O kitesurf é importante exatamente porque é praticado ao ar livre, ao sol. O ambiente é silencioso. O que mais se ouve é o vento soprando quando se acelera. O velejar restabelece a relação corpo-mente, sem falar que se trata de uma atividade física que aumenta a capacidade cardio-respiratória”, concluiu o juiz kitesurfista.

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// Conto

A degustação –I– A alma dos vinhos! Queria muito encontrá-la e, quem sabe, até me apaixonar. Disso só me desocupei na Cantina do Porto Vintage quando dei de cara com Armando Nobre, um amigo metido, toda a vida, com hábitos do luxo e da pompa. — Você é o cara, Armando! A urgência de ginasticar o paladar e agregar requintes se impunham a mim, filho do sertão de Pata do Elefante, fosse a que custo fosse. Quem sabe uma súbita fascinação me encorajasse a adquirir uma garrafa na faixa dos oitenta reais! Já seria, por assim dizer, uma firme resposta aos vexames pelos quais passei numa única noite, à mesa com enófilos, e que ainda tanto me ferroavam fundo. “Um ignorante é o que sou! Um bosta!”, flagelava-se o meu amor-próprio, e antes não tivesse ido, tivesse inventado uma desculpa e poupado estaria de sentir-me tão apequenado. – II – Geomar Brito Medeiros Juiz Titular da 11ª Cível de Natal

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Aqui em Natal, os hábitos das terras de clima temperado empestam e começam a imperar. Os restaurantes e as residências ganham adegas e caves. As lojas se especializam e já tratam os clientes através de seus sommeliers. O poder do vinho vai se

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espalhando, classificando as pessoas, e é chegado um tempo em que o homem que não souber recitar uma carta de vinhos estará se atestando de baixa categoria. As mulheres que carregam a primeira ruga já enxergam assim. Esquecido de que cada elite tem seu jogo próprio, com suas regras e cerimônias, faz coisa de dez dias que, a convite de uma namorada, fui à Confraria dos Amantes do Vinho para o que ela me disse ser uma noite de degustação. Programara de apanhar Valentina em seu apartamento ao escurecer da noite. A lua, feito uma foice em brasa, alimpava os céus. O calor estava insuportável. Pasmei quando vi Valentina metida num vestido vermelho, estilo redingote, e botas de cano alto. Ansiosa, dava a idéia de que ia ao encontro das derradeiras delícias, senão do paraíso, dessa terra que os pólos se derretem. Nossas roupas grudavam. Minhas axilas eram dois halos de suor, úmidas. — Amor, você assim, tão perfumado?! — foi a primeira alfinetada. — Não trouxe outra camisa, não? Esqueceu-se de que os perfumes embotam o olfato!? Pisei fundo no acelerador do meu Ford Ka e durante o percurso falei do aquecimento global, da emissão de gases, da Convenção de Copenhague e do terremoto do Haiti; ela, da possibilidade dos vinhedos serem dizimados. Contornamos viadutos, rótulas e, não demorou, estávamos diante da guarita de um luxuoso edifício no Alto da Candelária. Pegamos o elevador panorâmico. Toda a cidade pisca-piscava, embora já fosse janeiro. Ainda a imensa árvore de natal e os Reis Magos de néon a prumo, perfilados. Distante, no Parque da Cidade, o vigilante mirante de Niemeyer — um monumental periscópio de concreto armado — estava fincado na pele verde das dunas a espionar. Apertamos a campainha. Foi Domênico, o dono da casa, quem nos recebeu à porta. Vestia camisa branca e gravata borboleta preta; também pretos eram a calça e os sapatos. O aperto de mão pelas pontas dos dedos e os beijos nas faces de Valentina, por largas frações de segundo, trouxeram-me algum incômodo. — Ainda faltam quatro pessoas — observou ele, ao tempo em que abria o celular para ler uma mensagem. — É Zé Américo. Ele e a noiva estão a caminho trazendo as baguetes. —

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Consultou o pulso das horas, onde o Longines de ouro maciço: — Ninguém vai morrer por esperar dez minutos. Entreteve-nos como um guia, referindo com minúcias as artes de suas paredes e estantes. Depois, fomos ocupar os sofás capitonês na sala de estar que, climatizada a 18 graus, conjugava com a sala de jantar um só ambiente. Um velho de gorro de lã e cachecol, expert em organizar cartas para restaurantes finos, lamentava que a degustação não se desse em horas matutinas, quando os sentidos estão mais aguçados. Ainda apontou as falhas do serviço de vinho de um restaurante local que, a meu sentir, era frescura demais apontá-las. Mas o grosso da conversa girava em torno das viagens. Ah!, as viagens e os vinhos! Nada melhor do que uma viagem se presta, como pano de fundo, para o inesperado encontro com aquela garrafa, naquele restaurante, sobretudo se no velho continente! Eu, árido viageiro de escassas léguas, nada tinha o que fabular, sequer podia imaginar e sentir as delícias dos lugares referidos. Infelizmente, para mim, o mundo continuava tal e qual lá fora. — Chegamos! — anunciou Zezé, e empurrou a porta entreaberta. Para maior alívio, também chegou Pedro Brito, o eterno remanchão, e sua esposa Deise, que ajudavam o padeiro e a noiva a equilibrar os braçados de pães Boca de Forno. Uma salva de palmas comemorou a formação do grupo de onze entusiastas, eu metido nessa conta. — Tanto pão é esse, Zezé? — alguém brincou. — Por que não despacha essa carga para o Haiti? “O Haitiii, é aquiii!”, levantou-se cantarolando o anfitrião, ao tempo em que dava ordens a Agildo, o afetado doméstico de avental, para que fosse fatiar as baguetes e começasse a arranjar o serviço. O travertino da longa mesa de jantar estava coberto com uma toalha branca de linho. A alvura dessa toalha não era sem propósito: a coloração e a limpidez dos líquidos não podiam ser embaçadas. Do teto, a pender sobre a mesa, um lustre onde castiçais, pingentes e contas de cristal se emaranhavam. À frente de cada cadeira de alto espaldar, uma jarra d’água, um cuspidouro e, em semi-círculo, sete copos de cristal, de hastes longas, dos quais quatro eram mais bojudos, para os tintos. Agildo, servil e silencioso, ia e vinha a arrumar a mesa. As fatias de baguete, para a limpeza do paladar, se enfileiravam en-

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tre os panos das cestas de vime. Bandejas com cubos de queijo, brancos e suaves, “não muito recomendáveis numa prova séria”, alguém observou. — Meus confrades e amantes do vinho, aos prazeres desta noite! — anunciou Domênico. Entrou, a passos largos, para a cozinha. Desde antes retirara as garrafas da adega para alcançarem a temperatura ambiente. Radiante, já voltava empurrando, à sua frente, o carrinho de serviço. Solenemente, as garrafas e os rúbidos decantadores desfilavam diante de nossos olhos. Soaram as palmas novamente, e agora todos estavam de pé. Na verdade, não existia naquela confraria o contentamento espontâneo das ocasiões singelas, mas, diferente, pairava no ar aquela excitação de quem está a instantes de receber uma comenda. Domênico se apressou em apresentar os vinhos na ordem em que seriam provados, os brancos antes dos tintos, os encorpados depois dos leves: — Vejam este... Um branco da cepa Riesling Renana que alcançou a ideal maturação. É persistente na boca, harmonioso. Dele emanam notas minerais, e vocês poderão sentir um acentuado aroma petrolado, de querosene mesmo. E a garrafa foi entronizada, cerimonialmente, na cabeceira da mesa. Aquela descrição não deslizou bem, e, educação de paladar à parte, só em pensar eu sentia o meu goto áspero como lixa. Cheguei a temperar a garganta. Sons de escarro. Todos me olharam. Valentina ainda uma vez me transmitiu o sinal de censura. Bati no ombro do engenheiro da Petrobras e cochichei que tomaria daquilo em homenagem à sua pessoa. — Aqui — continuou o anfitrião — tudo que se espera de um bom vinho! De roupagem rubi — e sua atenção ancorou em Valentina —, exala aromas estonteantes e com toques animais. Tem caninos duros... — e ela sorriu, exibindo a alva dentadura. — Desculpem-me! Tem taninos maduros, um corpo que impressiona à língua, equilibrado, e aromas generosos... “Esse frutinha adamascada está de sacanagem comigo!”, pensei, e por pouco não voei, em ciúmes, ao seu colarinho. Outra garrafa passarelou diante de nossas vistas e foi destacada. Dois tintos italianos, com as identidades escondidas, respiravam em translúcidos recipientes. Domênico esclareceu as regras do que denominou de “uma degustação cega”.

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Eu estava desgostoso, sem concentração; meu paladar, amargo, espumava. Finalmente, a vedete da noite: o borgonhês La Tâche, um grand cru da Domaine de la Romanée-Conti, que ali chegara por via duma casa de leilão, e embora fosse um exemplar de recente safra, mil e tantos euros foram dispendidos na compra, o que jogou o preço da “vaquinha” para o alto. — Este tinto da Borgonha — e acariciava a garrafa apaixonadamente — dispensa comentários! Outro dia escrevi que essa criatura nos faz sonhar acordado e voar sem asas. É que ele não apenas existe, ele vive, e vive para nos dar a vida! Preciso dizer mais? Ao final, faremos o sorteio de sua rolha e casco. Tam-tam-tam-tam! O destino baterá na porta de alguém! Quem será o felizardo?! — Não entendi direito... – interferi, titubeante e inseguro. — Como é mesmo? Onde é que o destino baterá?! — Eu disse que a sorte poderá lhe trazer de presente uma rolha. Mas, por enquanto, fique frio. Con-te-nha-se! — respondeu-me o senhor do serviço. Todos riram. Sentamo-nos à mesa. Somente o dono da situação se manteve de pé, diligente em checar as exigências da etiqueta e dar começo ao ritual de girar taças e cheirar buquês. Realmente, eu tiritava de frio. Talvez mais pela falta de confiança, por não encontrar forças, dentro de mim, para virar aquela mesa. Desamparado, algumas vezes busquei, por debaixo da toalha, asilo e calor para as minhas mãos, mas as coxas de Valentina me eram negadas. — Não esqueço aquele italiano que conheci na sua casa, o Amarone della Valpolicella — disse ela baixinho, apoiando a luva no ombro da amiga do lado. — Ah, é um belo veronês: encorpado, firme. Fantástico! — completou a outra. — Uma bela companhia numa noite fria, hem? — Ok! Ok! — assegurou o dono da festa. — Tudo está como manda o figurino! — e já manejava o saca-rolhas sobre o primeiro branco, cuidadoso com o não estragar a cortiça. Em seguida, empalmou a garrafa e passou a verter a bebida na justa cota de cada um. Mantinha o braço esquerdo dobrado

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para trás, em reverência. Próximo de minha taça ser abastecida, levantei-me. Simulando atender um telefonema, fui praguejar contra a minha sorte lá fora, na varanda. Ao telefone, alonguei quanto pude o falso diálogo, evitando o recomeço do massacre. Acendi um cigarro para espairecer, e dei-me a contemplar os céus de minha embaraçada noite de verão. As nuvens deslizavam, apagando milhões de isqueiros pelo espaço, mas logo, logo elas, as estrelas, reavivavam-se. Voltei os meus óculos para dentro do apartamento. A cena, enquadrado pelo caixilho da vidraça, me lembrou uma produção do cinema francês. Os provadores, metidos em casacos sobrepostos, feito cascas de cebola, mais pareciam acautelados contra os rigores de inverno. Em meio a tudo, não posso negar, havia algo de hipnotizante quando alguém segurava a taça pelo pé, afastava-a pela distância de um braço, inclinando-a, e, em esvoaçantes rodopios, se achegava ao farejar de narinas. E se o degustador, com a outra mão, abaixava os óculos para mirar a transparência do líquido a taça, com expressão penetrante, por cima das lentes, aí ele ganhava ares de autoridade.

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Agora Domênico empunhava o derradeiro vinho decantado, que fecharia a degustação cega. Compreendi não poder mais me manter isolado na varanda, por mais que minha ausência fosse despercebida. Reingressei para a sala. O velho do gorro de lã repuxava as ventas e aspirava as inebriantes emanações. Consciente do domínio sobre toda a gama de vapores, soltava a imaginação ao explanar sobre as suas percepções: — O primeiro “vinho misterioso”, de um brilho delicioso, me deixou a impressão de encouramento, variando para um aroma de pelagem de cavalo suado. Posso dizer ser demais diferente deste outro aqui, de nariz puxado para o frutado, que me recorda uma bela garrafa que me ocorreu em Florença! Por sua vez, Pedro Brito girava a taça e, em rápidas e curtas fungadas, tragava os buquês. Num alumbramento, tentava expressar com poesia os aromas e as lágrimas que escorriam pelas paredes do cristal. Parecia que sobravam palavras naquelas descrições, tão obscuras que eram, e, em verdade, acreditei nunca poderem estar sendo sentidas. Cheguei a perceber quando Deise calcou-lhe a ponte do pé, por debaixo da mesa, na tentativa de lhe emprestar algum contato com o chão.

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Sentei-me ao lado de Valentina, que sequer deu fé ao meu retorno. Ela mantinha os olhos fechados e sugava o ar pelo biquinho da boca, deixando que o gole de vinho lavasse todas as áreas de sua língua. Só depois de quinze segundos foi que ela se inclinou sobre o cuspidouro e, mal roçou o guardanapo nos lábios, já me alfinetava outra vez: – Assim não dá! Como apurar as habilidades com cheiros de cigarro por perto?! Desapontado, peguei um dos copos e o emborquei de goela abaixo, sem a finura de antes cheirar. Quando do segundo, ainda bochechei, e dessa vez eu me senti como um estrangeiro cercado de censores por todos os lados. Só depois que cada apreciador tinha se excedido em considerações vagas — de dar inveja aos mais intrincados críticos de arte —, foi que o filho da mãe do Domênico, dizendo que “a melhor coisa sobre vinho é saber que você nunca saberá tudo”, aplicou uma lição à fraca sagacidade dos iniciados: — Saibam todos vocês, como evidência do que acabei de dizer, que essa degustação cega que preparei não passou de uma pegadinha. Saibam que os dois decanters continham um único vinho, vinho das terras de Petrolina, beira do Velho Chico. Aí eu cresci diante de Valentina, do velho do gorro de lã e de todos, todos cabisbaixos a medirem, em silêncio, o tamanho das asneiras e disparates pronunciados. Pela primeira vez nutri alguma admiração pelo filho da mãe, mas esta logo se desfez quando eu elevei-lhe um brinde e ele fingiu dar atenção para alguém do lado, desviando-se. E o borgonhês La Tâche? Ah, agora era a vez de vivenciarem a tão esperada apoteose: o La Tâche. Providencialmente, as saídas de som, distribuídas pelas sancas do teto e recantos da sala, amplificavam a música Chevaliers de la Table Ronde, de maneira a deixar o distinto borgonhês melhor ambientado. — Até que enfim: o Bicho! — alguém suspirou. Daí, passou-se a entornar e degustar cada uma das preciosas gotas, em langoroso prazer. Valentina buscou o sofá, querendo-se mais reservada e intimista. Mas o canastrão a seguiu; sentou-se à sua esquerda; e invocando a proteção de Baco, despachou a mão boba sobre as “valentes” coxas e lamentava que a humanidade não mais se de-

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liciasse com vinhos sobre camas em salões, como os imperadores de Roma faziam. “Escroque”, balbuciei. Toda aquela petulância e exibição de Domênico me traziam uma muda repugnância. Pior de tudo eram as pessoas, como se estivessem numa embriaguez coletiva, acatarem-no como o sabe-tudo. Ele foi até a cabeceira da mesa e, de braços erguidos, sugeriu: — Que cada um guarde consigo as delícias do Éden, pois as coisas sagradas, mais do que ditas, deverão ser sentidas e segredadas! — Olhou na direção de Agildo: — O jantar! A hora é para jantar! Queiram se sentar. Agildo distribuía os pratos quentes sobre a mesa. Alguns papeizinhos foram colocados dentro de um vaso para a rifa do casco e rolha. A julgar pela apreensão, essas peças tinham mais importância que o próprio Romanée-Conti. Alguém puxou um nome: — O sortudo é... — e desenrolava o papel — a bela Valentina Lisboa! Em meio a tristeza de tantos – e desta vez eu não estava sozinho –, a alegria incontida de Valentina estourou, ruidosamente. Na ânsia de se apossar dos preciosos restos, ergueu-se, num arranco, no que levou a sua cadeira a tombar para trás. Feito criança, ela saltava, cambaleava e retomava o prumo. Beijava a cortiça, elevou-a como troféu; embeiçava o casco seco, simulando tragos, chegando a virar o pescoço. Em triunfo, deu uma volta olímpica em torno da mesa e, de passagem, atiçava os outros convivas esfregando a cortiça nas suas cabeçorras. Servi-me do queijo Roquefort, do patê de foie grass e das amêndoas. Provei do cordeiro assado e ainda belisquei a garoupa na manteiga. Durante a volta para casa, Valentina levou todo o percurso a mimosear a garrafa entre os fêmures, alisando as rugas dos rótulos. Vez por outra ela me confortava, por comiseração, pois era de desventura o meu estado de ânimo. Despedimo-nos no vestíbulo de seu prédio, sem nenhuma graça. Percebi que toda a ardência que nela despertara, durante semanas e meses, apoucou-se como a lâmina em brasa de uma lua que míngua.

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Não mais a encontrei nos seguintes dias, sequer ao telefone. Meu fiasco estava celebrado: não tinha olfato para os buquês nem papilas gustativas para os néctares. Fiz um voto a mim mesmo: “Ainda farei bonito! Impressionarei!” – III – Confesso que folguei quando dei de cara com Armando Nobre na Cantina do Porto Vintage: as luzes focando garrafas das melhores cepas; catálogos, ricamente ilustrados, mostrando as vinícolas do Douro. E quando soube que ele era importador e também o proprietário da loja: — Você é o cara! — abracei-o, e pela primeira vez me senti à vontade entre vinhos. Sempre tive Armando na conta do que sonhei para mim e não pude ser. Versátil, ele se difere de mim por dissimular com mestria a sua origem sertaneja. Se lhe é conveniente, basta uma fala, um gesto de fineza ou uma cortesia, e o mundo se curva a seus pés. Da polidez no trato pessoal à elegância com que cuida das palavras, aveludando-as e umedecendo-as na ponta da língua, tudo que está à sua volta ganha estilo. Mas esse mesmo Armando, quando se põe entre conterrâneos, sabe como ninguém se despojar da máscara de ator. O mercado não poderia encontrar figura de melhor talhe para fazer a ponte entre Natal e as vinícolas lusitanas. — E aí? — indagou-me. — Eu procuro, a qualquer custo, a alma dos vinhos, se é que ela existe. Na sua cantina tem para pronta entrega? — É claro que temos — respondeu-me. — É só você escolher. — Como assim? — Aquela alma que ali está, por exemplo, você a leva pela ninharia de cento e oitenta reais. — Mas... — Aquela outra é bem mais distinta. Você deixa mil e trezentos pela garrafa e terá uma comenda na sua adega. — Mas é cara demais – retruquei. — Nunca mais diga isso! — e apontou-me o dedo na cara. — Para quem se quer comendador, as almas não têm preço.

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Gargalhamos. Falei de minhas inquietações, da necessidade de conhecer os vinhos e de me tornar um enófilo. De pouco em pouco, o engenhoso Armando, com extrema sabedoria, aplicava curativos na minha crise de identidade. — Pense nas frutas da nossa terra. De todas elas, qual a que você mais conhece? — Manga — respondi. — Pois vamos pensar com a manga. Se eu lhe servisse um suco de manga agora você seria capaz, só por sentir o sabor, de me dizer se a fruta estaria verde, madura, passada ou quase apodrecida? — Claro que sim. E não só isso. Pelo cheiro eu diria até a variedade: manga-rosa, espada, maranhão... — Pois bem. Um sertanejo criado entre mangueiras só pode mesmo é entender de suas mangas. — O que você quer dizer? — Ora, tivesse você nascido no Douro, em Bordeaux ou em terras do Piemonte; tivesse sido criado em volta dos vinhedos, aí, sim, naturalmente que saberia tudo das uvas. Tocaria a língua no vinho, e já mediria a maturação; cheiraria, e diria se da cepa Touriga, da Cabernet Sauvignon, ou da Nebbiolo. — Puxa, como você me tranquiliza. Mas... mas assim não comprarei mais uma só garrafa sequer. — O Cão me leve se eu quiser de seu dinheiro. Você é meu camarada, sabe disso. — Você é o cão, Armando Nobre! Você é quem sabe tudo. — Pois deixe as almas dos vinhos comigo que eu saberei negociá-las com os deuses, os deuses de fachada. E feito o cão chupando manga, vá tomar suas cuias de cachaça por aí... Saí da Porto Vintage com o ânimo e o amor-próprio inflados. Telefonei para Valentina, queria passar-lhe na cara umas verdades, de que ela só entendia de cajuínas e caipirinhas, e nada mais. Mas enquanto sua irmã me dizia que ela se metera com amigos pela Argentina e o Chile, de viagem às vinícolas do Vale do Aconcágua e Mendoza, eu me senti atraído por um outdoor que anunciava o Festival da Cachaça em Pata do Elefante, e estava de novo seguro de meu rumo.

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// Opinião

Outubro pink

Virgínia de Fátima Marques Bezerra Juíza de Direito da Vara Cível de Natal

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O advento do OUTUBRO ROSA instigou-me a pensar a vida, o entorno, as lutas pessoais. Inspirou-me a ver além da fronteira do nosso olhar humano. Olhar com o coração, com a alma. Se o símbolo internacional da luta contra o câncer de mama não fosse o laço cor-de-rosa, o mês dedicado a esse tema bem poderia ser nominado de “OUTUBRO COLORIDO”, “OUTUBRO ARCO ÍRIS” ou “OUTUBRO PRIMAVERA”, porque o “OUTUBRO ROSA” significa a luta pela vida e a vida tem muitas cores, sabores, aromas e amores. Amor de mãe, de pai, de “pãe”, de filhos; o amor entre namorados, de maridos, de “namoridos” e entre os amigos. E tudo isso torna a vida bela, completa, apaixonante. Mas nesse universo existem aqueles que estão alheios à temática do amor em quaisquer de suas modalidades... Desconhecem o amor. Desconhecem a solidariedade, porque estão abismados em sua própria dor. Nessa seara, trago para reflexão um caso verídico, que serviu de fonte de inspiração para esta crônica. Um flagrante da vida real chamou minha atenção e provocou minha indignação. A que ponto chegou a marginalidade em nossa sociedade! Uma câmera de um estabe-

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lecimento comercial registrou o momento em que um suposto cidadão, sorrateiramente, furtou o cofre de latinha que arrecadava doações para a Liga Norte-Riograndense contra o Câncer. É a constatação de uma nova patologia: a “egoesclerose”! O homem e seu ego agigantado, que somente enxerga suas próprias necessidades e desejos, alheio às agruras que permeiam a vida de muitos que dependem dos relevantes serviços prestados pela Liga. É um paradoxo do mundo moderno: enquanto muitos se desdobram na alquimia de amar (médicos, funcionários e anônimos que abraçam o voluntariado), outros como esse suposto cidadão, que desconhece que só se colhe o que se planta, que esquece que não sabemos o dia de amanhã, furta um patrimônio consagrado ao bem, o patrimônio de todos que compõem a cidade de Natal e que, mais tarde, poderia beneficiá-lo, em caso de necessidade de tratamento. A Liga foi criada para atender a todos, sem distinção. Esse cidadão, certamente, agiu sem refletir sobre o futuro e sem consideração com a vida do outro. Fundada em 17 de julho de 1949, passou inicialmente a funcionar como “Casa de Recolhimento”. Após o falecimento de Dr. Luiz Antônio, um dos fundadores da Liga, em 1961, a casa de recolhimento passou a ter o seu nome. A marca da Liga, desde os primórdios, foi a dedicação extremada, o zelo e a organização, realizando trabalhos diferenciados com a difícil missão de minimizar os sintomas dos pacientes. Com a criação da Rede Feminina, formada por um grupo de senhoras da sociedade, tendo a frente Maria Alice Fernandes, houve incentivo ao trabalho voluntário, aos pacientes e realizadas campanhas beneficentes para arrecadação de fundos. Em 1970, com o Dr. Aluísio Bezerra, primeiro médico no Rio Grande do Norte especialista em Oncologia pelo Instituto Nacional do Câncer, ocorreram diversas mudanças na instituição e no trabalho desenvolvido na Liga. A principal mudança foi a aquisição da primeira bomba de cobalto, e posteriormente do acelerador linear. Em 1989, foi fundado o Departamento de Ensino, Pesquisa e Educação Comunitária – DEPECOM – pelo Dr. Fernando Medeiros, sendo assinado convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para servir como base de ensino,

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pesquisa e estágio para os estudantes de Medicina. Com toda a estrutura de Diagnóstico por Imagem, Radioterapia e Medicina Nuclear, a Liga se firma como uma das melhores estruturas de combate ao câncer no Nordeste. A atual Presidência, constituída pelos Médicos, Dr. José Américo dos Santos Costa (Diretor Presidente) e Dr. Leão Pereira Pinto (Diretor Vice-Presidente), e a Diretoria Executiva integrada pelos Médicos Dr. Ricardo José Curioso da Silva (Superintendente), Dr. Roberto Magnus Duarte Sales (Superintendente Adjunto), Dr. Luciano Luiz da Silva Júnior (Coordenador do Hospital Luiz Antonio), Dr. Maciel de Oliveira Matias (Coordenador do CECAN), Dr. Ivo Barreto de Medeiros (Coordenador da Policlínica) e Dr. Aluísio Bezerra de Oliveira (Coordenador das Unidades de Apoio), a exemplo de outras, enfrentam o desafio diário de realizar muito trabalho, com poucos recursos. Reportando-nos no tempo, vemos que a Liga é incondicional em suas ações afirmativas de transformar a realidade. A Liga é o amor em forma de instituição. E todos nós aprendemos, desde tenra idade, com as histórias infantis, que o amor transforma. Sejamos a Bela que transformou a Fera, e a Princesa que transformou o sapo, desprendidos das aparências, enxergando o que realmente é importante, dando de si, sem nada querer em troca. Eis o amor incondicional e verdadeiro, como o devotado na Liga. Sigamos o exemplo em nossas vidas, em nosso cotidiano. Coloquemos em prática a filosofia do potiguar José Hermógenes de Andrade Filho, Mestre de Hatha Ioga, em suas sábias palavras: “O amor é a milagrosa ausência do ego. É incondicional quando nada mais importa. Quando aquilo que é externo, transitório, como beleza ou dinheiro, deixa de ter importância. Isso é amor.”

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// ARTIGO

Blindagem policial: seletividade punitiva e óbice ao Estado Constitucional

Fábio Ataíde Juiz de Direito e Professor de Direito Penal/UFRN

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A atividade policial é uma das práticas mais polêmicas da atual conjuntura, tratando-se de um desafio difícil para o Estado Constitucional, uma vez que a instituição policial, desde suas origens, exerce, paradoxalmente, funções e métodos antidemocráticos. Nesse mesmo sentido, pode-se afirmar que a força policial faz-se sentir, institucionalmente, sobre a seara dos direitos fundamentais dos cidadãos, notadamente dos menos abastados. Nesse prisma, não se pode olvidar para os métodos nada democráticos dos milicianos durante batidas policiais ou patrulhas rotineiras nas favelas, morros e subúrbios em todas as regiões do Brasil. Leonardo Oliveira aborda a questão da performance tradicional da polícia brasileira. Neste sentido, destaca que “em relação às classes populares ela age muitas vezes com desenvolta brutalidade, apesar do arcabouço legal de inspiração liberal sob que supostamente vivemos”. E, por isso, “quem, no Brasil, quiser conhecer de fato as funções que a polícia exerce, talvez descubra mais consultando as páginas policiais nos jornais populares do que abrindo o Código de Processo Penal” (2004, p. 60). Logo, é preciso que se exerça um forte controle por parte do Estado para com a atividade policial, que deve ser realizada com a seriedade que a questão requer, uma vez que da omissão desse controle podem decorrer arbitrariedades e ilegalidades dignas dos anos de chumbo. Esses atos podem, caso não sejam investigados, punidos e coibidos, se tornarem uma prática institucionalizada nefasta que em muito se assemelha com as práticas empregadas pelas ditaduras. O controle da atividade policial, pois, se dá em duas instâncias, pode-se dizer. Primeiro há o controle interno, onde se realizam, após os atos serem comunicados às autoridades competentes, as sindicâncias e/ou procedimentos administrativos, bem como do inquérito policial. O controle externo, por sua vez, é realizado pelo Ministério

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Público (Resolução n.º 20/07, Conselho Nacional do Ministério Público). O controle interno se realiza por meio dos procedimentos instaurados por atos da autoridade à qual o agente esteja subordinado. Na hipótese de policial militar, depois de uma fase prévia de constatação, pode-se determinar a instauração de um inquérito policial militar ou arquivar a sindicância e todos os procedimentos referentes àquele fato noticiado como criminoso. Nesse momento ocorre uma terceira filtragem da apuração dos crimes cometidos por policiais. Note que o primeiro filtro ocorre quando da cifra negra que acomete a grande maioria dos delitos perpetrados por agentes estatais de repressão no exercício de suas atribuições, pois que a grande maioria das vítimas civis fica intimidada de receber represálias como resposta às “denúncias”. Nesse sentido, é interessante perceber que a grande maioria das vítimas civis são moradores de comunidades marginalizadas, onde o policiamento é ostensivo e degradante, e que muitas vezes sempre são os mesmos policiais responsáveis pela área, de modo que todos se conhecem, sabem onde mora, quem são os familiares e amigos de quem, e isso facilita as intimidações e ações concretas de represálias. Prosseguindo na análise, o segundo filtro ocorre quando se consegue ultrapassar essa primeira barreira, e o fato noticiado pela vítima ou terceiros não enseja, na visão do responsável, o suficiente para instauração de procedimento administrativo disciplinar ou sindicância. Acaso se vença essa segunda barreira, a persecução esbarra em uma terceira, pois pode ser que o fato apurado na sindicância não enseje o inquérito policial. Isso até mesmo por consequência da falta de ação dos agentes responsáveis pela coleta de provas e apuração dos fatos. Essa prática, por esse prisma, se revela naturalmente impregnada de corporativismo, uma vez que em muitos casos, após a já difícil formalização (pelos motivos já expostos), a apuração é conduzida de forma a ser reveladora de uma ótica interna e não segundo uma perspectiva da realidade existente fora do sistema policial. A realidade se submete a uma visão de mundo construída interna corporis, revelando-se menos eficiente e, por vezes, orientada para racionalizar a conduta investigada. O terceiro filtro é a apuração do inquérito policial, ao tér-

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mino do qual será elaborado um relatório caracterizador do quarto grande filtro da persecução dos crimes praticados por agentes públicos no exercício da força monopolizada e legítima do Estado. Nesse momento, caso se indicie o policial, o procedimento é remetido à Justiça Militar e passa a ser conduzido pelo Ministério Público (iniciando a etapa do controle externo da atividade policial), o qual assume a ação penal em um momento geralmente muito posterior ao cometimento do fato. Portanto, temos que quando é instaurado o procedimento judicial, quando o Ministério Público assume a condução das investigações e passa, portanto, a diligenciar e oficiar no sentido de apurar a verdade do fato ocorrido, as provas muitas vezes pereceram, os depoentes já mudaram de endereço, entre outros diversos entraves que a instrução probatória tardia acarreta. No plano normativo, não existe nenhuma determinação ou vedação que impeça a realização simultânea de apuração por meio de inquérito policial ou outro procedimento administrativo disciplinar. Contudo, percebe-se que o indiciamento do acusados de tais crimes é retardado, pela prévia instauração de procedimento administrativo interno, o que acarreta muitas vezes a impossibilidade de obter a devida instrução probatória do caso. Nada obstante, as inúmeras idas e vindas das vítimas e testemunhas para prestar depoimento nesses diversos procedimentos intimidam essas pessoas, vez que ocorrem no interior das unidades policiais, com a presença de militares, inclusive dos próprios investigados. Nesse sentido, trata-se de um momento velado de intimidação institucional ou de cerimônia vitimológica degradante. Por conseguinte, nota-se que os procedimentos administrativos de controle interno da atividade policial não são, definitivamente, adequados para a persecução de crimes cometidos por agentes da força repressora estatal contra civis. Com isso, temos que a concretude dos objetivos fulcrais de um Estado Constitucional e Democrático de Direito ficam prejudicados, pois a atividade estatal que mais invade a esfera dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos é conduzida muitas vezes sem a necessária resposta institucional de apuração e punição de tais práticas. Deve haver urgentemente uma coalisão de esforços das va-

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riadas instâncias responsáveis pelo controle da atividade policial, tanto interna quanto externamente, cada uma no exercício sistêmico e harmônico de suas atribuições, a fim de que o direito fundamental e social da segurança pública, constitucionalmente tutelado, possa ser buscado com a maior eficiência que a Administração Pública requer. Devemos dizer que em nossa história recente as transformações impostas à sociedade encurralou a criminologia de tal forma que somente uma saída radical deu-lhe condições para sobreviver aos novos questionamentos. Não somente acadêmicos, mas inclusive agentes de governo tiveram que mudar o conceito que tinham sobre a violência. Sim, porque a mudança na expectativa dos cidadãos atinge diretamente as políticas públicas, especialmente a maneira como a autoridade se impõe perante o fenômeno crime. No entanto, por mais que o avanço neste sentido seja inevitável e presente, muitos países como o Brasil ainda continuam vinculados a posturas autoritárias, talvez devido ao fracasso das políticas que são incapazes de rejuvenescer um corpo institucional decrépito. As novas democracias como o Brasil, ainda em processo de consolidação, têm dificuldade para, sem a ajuda de um autoritarismo de memória recente, cuidar de seus assuntos em matéria de segurança interna. Sem chances a curto prazo para resolver o impasse, a maneira como as agências de controle tratam os acusados e as vítimas do crime em geral apenas simboliza os valores das estruturas predominantes no governo (LUM, 2009, p. 5). Devemos perceber, como adverte Lum, que as políticas criminais voltadas ao controle rigoroso da criminalidade são mais suportadas pela sociedade de países com democracia estabelecida (2009, p. 6), como acontece na América do Norte ou Inglaterra, mas isso pouco aproveita às democracias marginais em processo de consolidação. Em face dessas circunstâncias, o caso mais evidente tem sido o da aplicação da política de tolerância zero (broken windows policing), voltada ao combate da criminalidade por meio de técnicas muito familiares a nós que estamos acostumados com o autoritarismo. A utilização da prisão para o controle de qualquer crime é uma velha conhecida, que quase sempre chega acompanhada de abusos. Em geral, a política criminal repressora precipita um atri-

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to entre polícia e comunidades marginais. Diante do quadro, a estrutura de filtros, que impede a responsabilidade penal dos agentes do Estado, dificulta a proposta de renovação das estruturas punitivas e igualmente impede as novas políticas de orientação comunitária. A política criminal democrática exige uma ideia complexa de controle (LUM, 2009, p.16), em torno de políticas comunitárias não unicamente preocupadas em reduzir a criminalidade, mas, em igual proporção, ocupada pela legitimação das agências punitivas e diminuição do medo engendrados na sociedade midiática pós-moderna (LUM, 2009, p. 17). Por isso, a consolidação democrática depende de uma transformação dos agentes de controle, realçando o papel do Estado na proteção das minorias, assegurando devido processo legal e liberdade a quem no passado esteve excluído do poder, combatendo a discriminação e não discriminando.

REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Leonardo. “Sua Excelência o Comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica”. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. LUM, Cynthia. Community Policing or Zero Tolerance? Brit. J. Criminol. 26/6/2009, 49, 788 – 809. Disponível em <bjc.oxfordjournals.org>. Acesso em 20/09/2010,

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// Fotografia

"Caminhada ao por-do-sol" do juiz Bruno Lacerda

"Areando panela" do juiz Paulo Sérgio Lima

Magistrados do RN são destaque em concurso nacional de fotografia

O I Concurso Nacional de Fotografia para Magistrados, realizado em 2012 pela AMB, teve tema livre com o objetivo de promover a arte da fotografia entre magistrados brasileiros. Com uma comissão julgadora formada pelo desembargador Claudio de Andrade (TJPR – por mais de 10 anos manteve coluna de fotografia no mais importante jornal do Paraná, sendo premiado até internacionalmente em concurso fotográfico); desembargador Carlos Stroppa (TJSP – fotógrafo respeitado na área tendo sido jurado em vários concursos fotográficos e o jornalista Sérgio Marques (fotógrafo da Rede Globo, vencedor do último concurso AMB de Jornalismo, na área de Fotografia).

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No Rio Grande do Norte os juízes Bruno Lacerda e Paulo Sérgio da Silva Lima participaram do concurso e receberam menção honrosa pela qualidade das fotografias apresentadas. “O concurso promovido pela AMB, além de incentivar a produção cultural dos magistrados, demonstrou que a arte da fotografia é um excelente instrumento para satisfazer a necessidade que temos de praticar alguma atividade que nos permita “desligar” do nosso estressante dia-a-dia. Com a fotografia temos a oportunidade de desconectar do que está “fora do enquadramento” do equipamento fotográfico”, afirma o juiz Bruno Lacerda.

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// Crônica

buchudo Doutor menino

Rosivaldo Toscano

Rosivaldo Toscano Júnior Juiz da vara criminal do Fórum Varela Barca

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Ainda no início, idos de 2000/2001, estava como Juiz Substituto numa comarca de primeira entrância e começara também a responder por outra de segunda chamada Patu, cujo juiz anterior havia sido promovido. Na primeira semana de trabalho lá, deparei-me com a prisão de um sujeito chamado Juliano. A acusação era de porte de arma, um crime de pouca gravidade naquela época, pois o fato se deu três anos antes do Estatuto do Desarmamento. Juliano não tinha sequer antecedentes e o crime era de detenção. Concedi-lhe a liberdade provisória. À noite voltei para a minha comarca. No outro dia o delegado de polícia de Patu, doutor Fernando, amigo e contemporâneo de faculdade, liga-me dizendo que a soltura causou a maior celeuma na cidade, pois todos diziam que o rapaz era assaltante e que abriria um inquérito no qual o apontava como autor do roubo em um posto de gasolina realizado dois dias antes da prisão pelo porte de arma. Pediu que eu revisse a soltura. Disse-lhe que não iria agir com arbitrariedade. Que ele concluísse a investigação do roubo e pedisse, se fosse o caso, a prisão preventiva, mas pelo porte de arma não manteria preso. Três dias depois o delegado veio à minha comarca com o inquérito e a representação pela preventiva. De lá saiu com a decretação e o respectivo mandado de prisão. Na semana seguinte voltei a Patu para trabalhar. Despachei os

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feitos que havia, realizei audiências e ao final do dia, antes de voltar para minha comarca, resolvi dar uma volta na cidade para conhecê-la, e jantar, se encontrasse algum local que me interessasse. Ao passar pela praça central, deparei-me com o delegado Fernando sentado a uma mesa de um trailer de lanches. Ele me acenou. Parei a caminhoneta, tirei a gravata e o blazer, arregacei as mangas da camisa e fui fazê-lo companhia. De repente chega um sujeito embriagado. Era um comerciante da cidade. O trôpego sujeito se dirigiu ao delegado: - Doutor Fernando, meus parabéns pelo seu trabalho de prender os bandidos daqui, apesar de um juizinho com cara de menino que chegou aqui e que ainda não tive o desprazer de conhecer. O negócio desse “menino buchudo”* é soltar o povo... – O delegado olhou para mim com ar de riso e eu fiz um sinal para que ele não dissesse nada. – Copo de cerveja na mão, o comerciante continuou: - E o Promotor? É outro menino buchudo. A cada palavra do juiz ele abana as orelhas. Tá nem aí. Tá vendo Juliano, aquela bandido safado que o senhor bem fez em prender? Esse juizinho menino buchudo foi logo botando na rua. Depois parece que criou veeeeergonha na cara – disse com ênfase – e o prendeu! Foi então que me dirigi a ele e perguntei: - O senhor como se chama? - Jacaré. - Mas o nome do senhor como é? - Pode chamar de Jacaré mesmo. - Pois senhor Jacaré, qual a sua idade? - 56. - Então lembra que na época da ditadura militar as pessoas podiam ser presas sem qualquer motivo? – ele balançou a cabeça em concordância, ainda sem saber quem era aquele rapaz que falava com ele – E continuei:

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- Pois com a nova Constituição isso mudou. Agora não se pode sair por aí prendendo qualquer pessoa. Isso é um fato positivo, pois impede que qualquer pessoa, inclusive o senhor, seja preso por alguma autoridade arbitrária, por exemplo, porque ela não gosta do senhor. Quando soltei Juliano foi porque o crime do qual era acusado era somente um porte de arma. Depois então o doutor Fernando concluiu a investigação do assalto ao posto e por esse fato ele foi preso de novo. Entre pálido e confuso, Jacaré fez menção de questionar quem eu era ao delegado e este meneou a cabeça positivamente, confirmando suas suspeitas... Mal tentou se explicar, constrangido. Nem deu um minuto e apareceu uma mulher em igual situação de embriaguez. Era a esposa de Jacaré. - Doutor Fernando! Meus parabéns por prender os bandidos, apesar de um juizinho novo que chegou na cidade, um menino buchudo... – mal terminou de falar e seu marido a puxou repentinamente pela camisa, quase a fazendo cair, e sussurrou algo em seu ouvido. Assustada, ela completa a frase: - Um juizinho novo, maravilhoso e justo que está aqui ao lado – apontando pra mim! * “Menino buchudo” é um regionalismo nordestino. Significa alguém muito jovem e imaturo.

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// ARTIGO

A Feira de Macaíba – RN Cícero Martins de Macedo Filho Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda Pública de Natal. Especialista em Direito e Cidadania (UFRN), Mestre em Direito Constitucional (UFRN), Mestre em Sociedade Democrática, Estado e Direito (Universidade do País Basco – Espanha), Doutorando em Direito Constitucional (Universidade do País Basco – Espanha). Estudante do Curso de História (UFRN) e Presidente da Academia Macaibense de Letras.

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Em fins do século XVIII, numa povoação situada às margens do rio Jundiaí, viviam pessoas que se dedicavam ao cultivo do algodão, cultura de cereais e criação de gado. No local se destacava uma árvore, típica da região, denominada Coité, e por essa razão o povoado recebeu o nome dessa árvore. Com o impulso do ciclo do algodão e o incremento do comércio, a povoação de Coité foi bastante favorecida a partir de meados do século XIX, por estar situada em uma área estratégica e que possibilitava o escoamento da produção de algodão, feito através do rio, uma vez que na época não existiam estradas, nem mesmo para a capital. Os grandes navios não podiam entrar no Porto de Natal, em razão das pedras existentes na chamada Boca da Barra, o que criou a necessidade de que outro local pudesse receber os navios vindos da Inglaterra, que levavam a produção local de algodão e açúcar e traziam mercadorias diversas, que eram comercializadas em toda província. Podendo receber os navios pelo rio Jundiaí, a então povoação de Coité tornou-se, assim, um importante entreposto comercial, conseguindo atrair vários comerciantes de outros Estados. Vindo da Paraíba, o comerciante Fabrício Gomes Pedroza adquiriu o importante engenho Jundiaí, situado às margens do rio. Casou-se com a filha de um dos pioneiros da localidade, Capitão Francisco Pedro Bandeira, que construiu o hoje conhecido Solar do Ferreiro Torto, situado nas proximidades do rio Jundiaí.

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Participando ativamente da vida do povoado, Fabrício Pedroza incrementou o comércio local, e construiu um ancoradouro mais próximo da capital do Estado, no início da Estrada de Guarapes. Segundo registros de historiadores, havia no quintal de sua casa uma palmeira, conhecida como Macaíba, que ele admirava muito, e foi por essa razão que no ano de 1855, o mecenas, reunindo as pessoas da localidade, propôs mudar o nome da localidade, e assim o povoado de Coité passou a se chamar Macaíba. Antes mesmo da mudança de nome, Macaíba já tinha uma feira, que remonta ao ano de 1852, também idealizada por Fabrício Pedroza. A feira passou a ser ponto de confluência entre o sertão e a capital, em razão da posição estratégica do povoado, situado bem perto da capital, além de ter como escoadouro natural o rio Jundiaí, através do qual eram embarcadas as mercadorias trazidas em lombo de jumento e carroças, por tropeiros sertanejos. Desde o seu início, a feira de Macaíba é realizada aos sábados. Ocupando várias ruas da cidade, atrai feirantes e compradores de várias localidades . Chegou a ser considerada a maior feira do Estado, e até os dias atuais ainda é considerada uma das maiores. Em seu livro de memórias, o notável jurista, filósofo e escritor macaibense, Otacílio Alecrim , após descrever o ambiente festivo da feira nas primeiras décadas do século XX, informa que ali apareciam os mais famosos violeiros de então, vindos de vários lugares, e que faziam desafios de violas, louvações e improvisações, tudo em versos, destacando-se entre eles os lendários Fabião das Queimadas e o cego Aderaldo. A partir de meados da década de 1960, quando, ainda criança, passei a residir em Macaíba, a feira era ainda bem movimentada, embora já se notasse um certo esvaziamento, que aumentou a partir da década de 1970, em razão da modernização e expansão do setor terciário, especialmente o surgimento dos supermercados e outros concorrentes do gênero. Apesar desses fenômenos, e decorridos quase 160 anos do seu surgimento, a feira de Macaíba ainda resiste, conservando-se como uma das mais tradicionais do Estado. Por fim, devo dizer que a feira livre da minha querida cidade de Macaíba é uma das minhas melhores memórias da infância. Lembro com saudades daquele local cheio de sons, movimentos,

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cores, gritos dos feirantes, circulação das pessoas, bancas, tabuleiros, esteiras, barracas, produtos os mais diversos, numa “confusão” organizada, onde tudo parecia funcionar perfeitamente na hora e no lugar certo. Era um verdadeiro teatro cheio de personagens, cada um com sua história. Nos dias atuais, ainda é um ambiente com cheiros e sons que me remetem ao passado e, principalmente, à minha infância feliz, e era lá onde todos os sábados eu buscava vivenciar aquelas cores e luzes, descobrindo, explorando, aprendendo. Devo muito da minha formação cultural, do fortalecimento familiar, do respeito ao ser humano, ao que vi e vivi, na companhia de meu pai, e depois, sozinho, ou na companhia dos meus filhos, à feira livre da Macaíba da minha infância, adolescência, valores que cultivo agora na maturidade. Ainda hoje, forçado por um misto de saudade, desejo e curiosidade, frequento as feiras livres do Alecrim (Natal) e Macaíba, observando as almas encantadoras que nelas vão e vêm. E para homenagear esse popular e tradicional marco da minha querida Macaíba, que ainda é muito importante para o seu desenvolvimento e cultura, fiz os versos a seguir, como a abraçar simbolicamente, nas alegrias daqueles tempos idos, toda aquela festa que marcou a minha vida enquanto lá, naquela Província, agora submersa na saudade, eu vivi e convivi.

A FEIRA DE MACAÍBA (Macedo Filho – Natal, 22/08/2012) Aquela festa já bem antiga Foi palco de muita cantiga No seu espetáculo semanal Achava-se qualquer produto Conviviam doutor e matuto Não se via distinção social Esse é o retrato da feira Com gostosa barulheira Nos sábados da cidade Macaíba ficava em festa Parecia até uma floresta De muita gente à vontade

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Era a maior feira do Estado E após tanto tempo passado Ainda se mostra exuberante Tenho orgulho em isso dizer Se quiser, basta ir lá pra ver Todo seu alvoroço ambulante Até hoje referência comercial É uma “confusão” ambiental De sons, cores e movimento Gritos de fregues e feirante Num indo e vindo constante Em perfeito funcionamento Bancas, tabuleiros, esteiras Tambores, barracas, cadeiras Produtos, os mais diversos Nessa “confusão” organizada Com dia e com hora marcada Tinha gente que fazia versos Teatro cheio de personagens E de tantas e tantas imagens Com luz, cheiro e sonoridade Cada um com suas histórias Que evocam tantas memórias De Macaíba, a querida cidade Tudo funciona perfeitamente Nesse ambiente efervescente Ao poente a confusão termina Descobri, explorei, aprendi Andei, comprei, bebi, comi Vi e vivi toda aquela carpina Miniaturas de cavalo de barro Tecidos, rendas, botão e jarro Jabuticaba, sequilho e alfenim Caranguejo, aratu e goiamum

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Melhor não se achava nenhum E pra fazer vestido tinha cetim Se achava marrafa e leque Espelhinhos, fitas e crepe Caçuás de cajá e pitomba Periquito, porco e carneiro Tinha cego que era violeiro Em versos fazia quizomba A feira também era lugar Pra menina ir a passear E para comprar miudeza Pó de arroz e um perfume Pra não perder o costume De mostrar sempre beleza Carnes, verduras, legumes Eram os maiores costumes Nas compras da população Mas um prato deixou legado É a mistura chamada picado E feito com muita devoção Nas bancas se fazia o picado De vísceras, bem temperado Que se comia com farinha Podia ser de porco ou bode Sei que ainda hoje se pode Saborear tão boa cozinha Nas noites de sextas-feiras Viam-se panelas e chaleiras No preparo daquela iguaria O picado virou uma tradição E todo sábado lá ia o povão A comer com muita alegria Um picado com a cervejinha E também com a cachacinha

No sábado era a minha pauta Admirava aquelas cozinheiras Ficaram minhas companheiras Convivência que eu sinto falta Galinha feita à cabidela Para temperar a titela Os pés, asas e pescoço Feijão verde ou branco Bastava sentar no banco Para apreciar o almoço Vendia-se rolete de cana Daquela chamada caiana Também se bebia o caldo Pirulito enrolado em papel Tão doce que parecia mel Pra criança era o esbaldo Se vendia jarra e quartinha Pra deixar a água fresquinha E selas, arreios e cangalhas Barris e panelas de barro Também penico de escarro Lençol, cobertor e toalhas Achava-se cabra, bode e vaca Farinha, milho, feijão em saca A carne de sol era bem famosa Naquele tempo era bem feita Não havia nenhuma suspeita E não se ouvia falar em aftosa Tinha a feira de passarinho Golinha, concriz e canarinho Periquito e também papagaio E ainda lambedor e piperazina Pra controlar regra de menina Tava lá na banca de mangaio

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Arquivo Pessoal

Rapadura batida e encerada Avoador e arribação assada Peixe seco, camarão torrado Mocotó de boi pra panelada Também se vendia a rabada E até sebo de bode capado Fumo de rolo, cachimbo, charuto Apreciados por doutor e matuto Cigarros de palha e candeeiro Agulha de palombar, lamparina Vassoura de palha e creolina Pra lavar cozinha e banheiro Nas festas de São João A meninada corria então A comprar mijão e traque Peido de veia e estrelinha

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Pra brincar na fogueirinha Dos festejos em destaque Lanterna à luz de vela Alpercata, cinto, fivela Pra se dançar um forró Tudo o povo comprava Na feira pouco sobrava No sol ou chuva em toró Além da feira ainda havia Armazéns de muita varia Tanto em grosso e varejo E no de Carlos Marinho Dona Leni, com carinho Atendia qualquer cortejo Na loja de Zezinho Mafra

Fosse em seca ou safra O zunzum não tinha igual Vendia para rico e pobre Na caderneta ou no cobre A confiança era seu ideal Se alguém sentia uma dor Ia na farmácia de Bridenor Comprava uma cafiaspirina Enteroviofórmio ou fontol Cibalena, iodex, calcigenol Sal de Andrews e penicilina Pão doce e caldo de cana Ainda vitamina de banana Nélson servia com atenção No barraco junto ao mercado Aquele néctar adocicado

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Para o povo era sensação Em frente à rua principal Havia o Mercado Central Vendia secos e molhados Todo mundo se conhecia E na prática da mais valia A regra era a dos fiados Cheio de boxes e bancas Vendendo as bugigangas E café, cuscus ou tapioca Picadinho de carne ou ovo Faziam a alegria do povo Contava-se piada e fofoca Na feira também havia Um jogo com um tapia Pra se achar a bolinha O matuto era enrolado O jogo era manipulado Na hábil mão do fuinha Outra fato bem marcante Na feira era o ambulante Vendendo verso em cordel Padre Cícero e Frei Damião Maria Bonita e Lampião Eram os heróis no papel Na feira comprei berimbau Cavalo de barro e de pau Vi mágico fazendo truque E naquela zoada incrível Eu, em alegria indizível Me sentia como um duque Também ali vi tristezas Nascidas das miudezas Das brigas e confusões

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Na faca do mais forte O resultado era morte E a dor das privações A mulher matou a rival Na faca, em golpe fatal Com ciúme do marido Já com idade avançada Não queria ser trocada Nem ficar sem o fingido No júri fiz sua defesa E falei sobre a beleza Do amor por ela vivido Argui a violenta emoção Em razão da provocação E o júri ficou comovido A mulher foi absolvida Foi uma vitória vivida Pelo advogado iniciante Seu nome eu já esqueci Mas com vigor a defendi E a emoção foi marcante A feira dava a motivação Pra se buscar a perdição Na rua Rodolfo Maranhão Era lá a tal Rua do Gango Local de um bom fandango E para descarregar o tesão Tantos anos já passados Ficaram rostos marcados De muitos amigos feirantes Ah, como eu sinto saudade Da feira da minha cidade Que já não é como d'antes Meu pai foi minha companhia

E me ensinou, com maestria Escolher bem as mercadorias Depois, sozinho, eu continuei E aos meus filhos, eu ensinei A conviver naquelas cercanias Na minha formação cultural No meu gesto mais fraternal E no respeito ao ser humano A feira me deu o aprendizado Hoje tenho o coração apertado É saudade: eu não me engano! Infância, adolescência, maturidade Muito vi e vivi, e com intensidade Naquela feira tão bem colorida Quando vem a saudade e o desejo Para lá eu corro e nem pestanejo Ao encontro daquela gente querida São lembranças duradouras Das almas tão encantadoras Daquele frenético vai e vem Faço do coração minha feira De Macaíba, a minha ribeira Pois a saudade idade não tem Fiz dessa rima minha banca Como freguês de voz franca Da feira da minha imaginação Pra lembrar da minha infância Submersa naquela instância Que chamamos de coração Guardando daquele passado A lembrança daquele traçado De lonas, barracas, chão, povo Encerro aqui essa minha rima Na lágrima que a face esgrima Quem dera viver tudo de novo!

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