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ENVELHESCENTES

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Você já deve ter percebido que nossa população está ficando mais velha. Isso porque a expectativa de vida atual do brasileiro é de 77 anos. Mas nem sempre foi assim. Por muito tempo, a média de vida do ser humano esteve abaixo dos 30. Com a transformação dos padrões de alimentação, higiene, saneamento básico e avanços na medicina e tecnologia, nossa espécie, em um século, mais que dobrou a esperança de vida, chegando aos 66,3 anos em 2000. Se, por um lado, temos o privilégio de vivenciar o dobro de experiências que nossos antecessores, também precisamos lidar com o fato de que vamos – e estamos – envelhecendo desde o dia que nascemos. Aliás, a velhice é um tabu para você? Quão natural lhe soa a palavra "velho"?

A busca constante pela juventude, a pressão da sociedade para nos manter "jovens" e os estereótipos que temos em relação à terceira idade vêm trazendo reflexões, com maior ênfase nas mídias sociais, sobre o que chamamos de etarismo (também conhecido como idadismo ou ageísmo), que é o preconceito que se tem contra as pessoas com base na idade delas. A discussão sobre este tipo de discriminação veio à tona recentemente, quando um vídeo de universitárias do interior de São Paulo debochando da colega com mais de 40 anos viralizou e gerou indignação nas redes. Na gravação, julgavam que na idade dela, deveria estar aposentada, não frequentando uma sala de aula.

Diferente da forma como a mulher do caso citado acima foi recebida pelas estudantes, Lucia Lunardi, de 57 anos, foi acolhida de maneira empática e calorosa. A cozinheira

ESTEREÓTIPOS IDENTIFICADOS EM

RELAÇÃO À SAÚDE DOS JOVENS:

SAUDÁVEIS, FISICAMENTE ATIVOS, FORTES E ENÉRGICOS

PESSOAS QUE GOSTAM DE ASSUMIR RISCOS, USUÁRIOS DE DROGAS, ESTRESSADOS E ANSIOSOS cursa o terceiro período de Gastronomia na Universidade Comunitária da Região de Chapecó – Unochapecó e conta que, embora não tenha sofrido discriminação por parte dos colegas e da comunidade acadêmica, fora dela, passou por situações em que foi desmerecida por conta da idade. “Antes de entrar na faculdade, fazia um curso para me tornar chefe de cozinha em uma escola de formação aqui na cidade e o chefe lá falou que eu já estava muito velha para fazer um curso assim e que esse era um mundo muito masculino ainda, que iria sofrer. E quando eu queria começar a faculdade, me diziam ‘o que você vai fazer com um diploma?’. Algumas vezes já tive dificuldade em conseguir emprego, porque tenho um pouco mais de idade. Na universidade, encontrei pessoas maravilhosas, que compreenderam minha dificuldade em usar o aplicativo da instituição, de fazer alguns trabalhos, eles me ajudam, me dão suporte quando preciso mexer no notebook. O mais jovem da turma tem 21 anos, eu sou a mais velha. Se por um lado tenho certas dificuldades com a tecnologia, por outro, posso compartilhar minhas experiências na área com os colegas”.

Os preconceitos sofridos por conta da idade podem se manifestar de forma institucional, interpessoal e autodirigida, como descreve o Relatório Mundial sobre o Idadismo (2022), desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde. Quando as normas sociais, leis, regras, políticas e práticas institucionais restringem injustamente as oportunidades e prejudicam os indivíduos em função da idade, ocorre o idadismo institucional. Já quando surge em interações entre duas ou mais pessoas, é compreendido como interpessoal. E ainda temos o idadismo autodirigido, que está internalizado por alguém e é usado contra si mesmo (a própria pessoa se coloca numa posição inferior).

JÁ AS PESSOAS IDOSAS SÃO…

CALOROSAS E APRAZÍVEIS

RÍGIDAS, IRRITANTES, SOLITÁRIAS, FRÁGEIS, SEXUALMENTE INATIVAS, FACILMENTE CONFUSAS, DEPRIMIDAS E EXIGENTES DE MUITA ATENÇÃO

O idadismo pode se dar em três diferentes dimensões, através dos estereótipos (o que pensamos sobre o outro), do preconceito (como nos sentimos na presença do outro) e da discriminação (a forma que agimos em relação a isso). Embora seja muito atrelado ao idoso – isso porque quanto mais velha a pessoa for, maior a tendência dela sofrer idadismo – , a psicóloga Renata Scartezini Martins explica que ele afeta também os jovens. “Na verdade, quando acontece, significa que se está categorizando as pessoas, causando com isso algum tipo de injustiça, desvantagem, negando a elas o direito de se desenvolver de modo geral. Pode acontecer com crianças e jovens, independente da idade. O que temos é menos estudos voltados aos novos, embora o relatório traga muitas notificações em relação a isso”.

Para entender melhor como o idadismo afeta quem vive a etapa da infância, por exemplo, a psicóloga Renata Martins cita situações em que as crianças são excluídas, como em espaços que, mesmo sem uma justificativa plausível, acabam não sendo bem-vindos. Quanto aos adolescentes, lembra de quando são recusados em um emprego por não ter experiência – aliás, como ser experiente em algo sem oportunidades de desenvolver tais habilidades? – ou são "jovens demais" para entenderem e fazerem determinadas ações.

E como todo tipo de preconceito, Renata afirma que o idadismo também afeta diretamente a qualidade de vida de quem o sofre. O bem-estar é atingido, a pessoa se sente um incômodo perante a sociedade, acaba se isolando e não quer mais estar nos lugares, porque tem medo do que os outros vão pensar, ou eles não têm paciência. E com esse isolamento, vai internalizando que não tem mais idade para usar certas roupas ou agir de alguma maneira, nem capacidade para assumir espaços e expressar suas próprias opiniões. O desrespeito com a idade pode, inclusive, restringir os direitos humanos. “Já trabalhei em um local que tinha fila prioritária e o pessoal dizia ‘esses velhos que tão aí têm tempo, estão aposentados, e a gente que tem que trabalhar, precisa ficar esperando’. Meu avô, de tanto que as pessoas se incomodavam por causa da fila preferencial, deixou de usá-la. Isso acabou afetando um direito dele”, relembra a psicóloga.

Cren As Atravessampessoaisgera Es

Foi o contato com os avôs que instigou Renata a aprofundar os conhecimentos sobre o processo de desenvolvimento da nossa espécie. Doutoranda em Ciências da Saúde na Unochapecó, seu projeto de tese é voltado ao envelhecimento humano. Recentemente, realizou uma formação em Psicoterapia do Idoso e atende pessoas da faixa etária em seu consultório, através da abordagem cognitivo-comportamental.

Ela expõe que o avô materno Otaci, de 77 anos, tem concepções sobre as fases da vida muito diferentes das que tinha o avô paterno Pedro, que faleceu aos 99. Pedro queria aprender muitas coisas – ele mesmo escreveu esse desejo em um diário, ao qual a família teve conhecimento depois do seu falecimento. Com seus 80 e alguns anos, cursou História em uma universidade de Xanxerê/SC e compartilhava com os colegas e professores momentos históricos que tinha vivido. Fez aulas de espanhol, pintura e violino, fazia caminhadas e se alimentava muito bem, hábitos que o mantinha sempre ativo.

Entretanto, ela diz que o avô por parte de mãe tem crenças de total incapacidade, porque acabou não estudando e acredita que não é ninguém para entender algo ou dar opinião. “Olha só o quanto o preconceito autodirigido está presente na nossa cultura e achamos que é só entre as relações, mas às vezes nós mesmos vamos nos limitando e deixando de nos desenvolver. Nossas crenças pessoais, que estão diretamente ligadas às nossas escolhas ao longo da vida, interferem em como envelhecemos e chegaremos à terceira idade”.

Seu Otaci passou recentemente por uma cirurgia no coração, que lhe deu mais autono-

Estere Tipos Identificados Em Rela O

AOS JOVENS NO AMBIENTE DE TRABALHO:

ENÉRGICOS, AMBICIOSOS, CONHECEDORES DAS TECNOLOGIAS E TRABALHAM DURO (MEIA-IDADE)

NARCISISTAS, DESLEAIS, ACHAM QUE TÊM DIREITO A TUDO, PREGUIÇOSOS, DESMOTIVADOS E FACILMENTE DISTRAÍDOS

JÁ AS PESSOAS IDOSAS SÃO…

CONFIÁVEIS, DEDICADAS, EXPERIENTES, TRABALHADORAS, SOCIALMENTE HÁBEIS, BONS MENTORES E LÍDERES, CAPAZES DE LIDAR COM MUDANÇAS

IMPRODUTIVAS, DESMOTIVADAS, RESISTENTES A MUDANÇAS, DIFÍCEIS DE TREINAR, INCAPAZES DE APRENDER, INFLEXÍVEIS E TECNOLOGICAMENTE INCOMPETENTES mia para fazer as tarefas do dia a dia. Antes do procedimento, a família foi seu suporte nos momentos de dificuldade. Além da idade avançada, outro fator de risco para o idadismo é a necessidade de cuidados. Neste sentido, Renata analisa que culturalmente não temos paciência para lidar com as limitações do outro e lembra que na fase pré-operatória do avô, buscou oferecer condições para que ele não deixasse de realizar as atividades que fazia, como uma simples ida ao supermercado. “A gente poderia dizer ‘me dá a lista, que eu vou no mercado’, mas prezamos pela garantia da autonomia, para que ele pudesse decidir o que iria comprar e a marca desejada. O que a gente fazia em 30 minutos, talvez demorasse uma hora e meia, e para quem tem uma rotina maluca, é difícil, mas vai da gente perceber isso e encontrar a melhor forma de fazer. Não podemos dizer o que o idoso pode ou não fazer, temos que oferecer as condições e entender que existem limitações sim, mas não temos o direito de dizer ‘faça’ ou ‘não faça’”.

E se tem uma pessoa que quebra padrões relacionados à terceira idade é Ieda Battiston, de 71 anos. Vaidosa e divertida, ela frequenta baladas, adora um bom drink, vinho e espumante, e participa de grupos de jogos e de jantares. Desde 2018 reside em Balneário Camboriú/SC, mas conta que no tempo em que morava em Chapecó – cidade na qual viveu durante 40 anos – ia em muitas festas com o amigo jornalista, Thiago Freitas. A antiga Premier Bier era o principal point de divertimento da dupla e madrugavam curtindo os eventos. “Me sinto como se tivesse 25 anos. A idade é muito subjetiva, depende da pessoa. Cada um sabe da sua idade cronológica e espiritual. E de espírito, minha querida, eu sou muito jovem. Podemos nos divertir em qualquer idade, basta ter disposição”, expressa Ieda.

Autêntica e dona de si, está sempre bem arrumada e não sai de casa sem hidratante e base no rosto, nem que seja apenas para dar uma caminhada à beira-mar, atividade que realiza todos os dias. Ir ao supermercado, para ela, é um passatempo, e faz suas compras com tranquilidade. Apesar do direito adquirido pela idade em usufruir das vagas de estacionamento e filas prioritárias, este não é o hábito de Ieda, que diz não ter pressa e prefere deixar para quem precisa mais.

Por mais que hoje as companhias de Ieda sejam mais jovens, estão na faixa dos 30, ela conta que enquanto seu marido era vivo, faziam parte de grupos de pessoas com a mesma idade ou mais velhas que eles. Cuidou dele, que era cardíaco e lutava contra um câncer, até o final de sua vida, e ele desejava que a esposa vivesse, viajasse e fosse feliz. E como ela afirma, “feliz é quem vive bem consigo mesmo”. Viúva há 13 anos, optou por não casar novamente, mas experimentou novos relacionamentos. Não abre mão de um convite para um café, um jantar, uma baladinha. “Tendo uma turminha legal, sou companheira”. Atualmente, seu maior desejo é que a família tenha saúde, que ela continue tendo a energia e vida que tem no presente. “Sou uma pessoa que teve todas as suas etapas muito bem vividas, uma mulher que chegou à terceira idade feliz, realizada e desprovida de preconceitos. É um privilégio chegar aos 70 e poucos anos. E deixo uma mensagem para os mais novos: jovens, cultuem a alegria!”.

ESTEREÓTIPOS IDENTIFICADOS EM RELAÇÃO AOS JOVENS NA MÍDIA:

ATRAENTES CAUSADORES DE PROBLEMAS E CRIMINOSOS VIOLENTOS

“A IDADE É MUITO SUBJETIVA. PODEMOS NOS DIVERTIR EM QUALQUER IDADE, BASTA TER DISPOSIÇÃO”IEDA BATTISTON, 71 ANOS

JÁ AS PESSOAS IDOSAS SÃO… ENGAJADAS COM A VIDA SAUDÁVEL, PRODUTIVAS E INDEPENDENTES

POUCO ATRAENTES, INFELIZES, SENIS, MAL VESTIDAS, INATIVAS, DEPENDENTES, INSALUBRES, POBRES, VULNERÁVEIS, DIABÓLICAS

Já a Lucia, apresentada no início desta reportagem, tem o sonho de se especializar fora do País, fazer mestrado, tornar-se uma cake designer e ensinar técnicas de cozinha para mulheres vítimas de violência doméstica, para que possam ter uma renda extra. “Acredito que todo mundo deveria ter o brilho no olhar, amor, não ter medo de alçar novos voos e mudar o conceito de que a gente tem idade para fazer isso ou aquilo, porque a gente pode tudo. A idade não nos limita, o que nos limita é a forma como olhamos para ela”.

Um Mundo Para Todas As Idades

Ninguém gosta de ser julgado pela idade que tem, independente de qual seja ela. O envelhecimento é algo natural, inerente à vida. Acompanhadas dos anos, as doenças tendem a surgir e, em alguns casos, as limitações também. E como reforça a psicóloga Renata, precisamos olhar para o processo de desenvolvimento humano, entender quais são as necessidades e direitos de cada faixa etária, e analisar o que podemos fazer pela garantia deles.

O Relatório Mundial do Idadismo sugere estratégias a serem adotadas por governos, organizações da sociedade civil, instituições acadêmicas e de pesquisa e empresas, para que as políticas e legislações sejam cumpridas, beneficiando pessoas de todas as idades. São elas: fortalecimento de políticas e leis que abordam a discriminação, a desigualdade por idade e direitos humanos; intervenções educacionais em todos os níveis e tipos de formação, do primário à universidade, e em contextos de educação formais e informais, que desenvolvam pessoas que se cuidam e cuidam das que estão envelhecendo ao seu redor; e promoção do contato intergeracional (entre pessoas de diferentes gerações), possibilitando que os jovens compartilhem experiências da sua fase com os mais velhos e vice-versa.

É hora de construir um movimento para mudar o discurso em torno da idade e do envelhecimento. Todos nós precisamos fazer parte dessas transformações. O fato de ter conhecimento sobre o que é o idadismo e as consequências dele na qualidade de vida das pessoas nos sensibiliza à mudança. É necessário primeiro assumir que, em algum momento, todos já estereotipamos e categorizamos o outro com base na idade, e perceber o quanto nos limitamos também. Com essa consciência, estudar sobre o desenvolvimento humano, rever os conceitos que temos sobre o que é ser criança, adolescente, jovem e idoso, tornando o nosso envelhecimento e o do próximo um processo saudável, seguro e prazeroso.

Renata completa que hoje estamos minimamente modificando algumas questões na forma de ser e envelhecer por conta do acesso ao conhecimento. “Transformar uma cultura leva muitos anos, não é um processo fácil, mas acho que já começamos a plantar uma sementinha. Se pelo menos uma parcela da população estiver se aprofundando sobre o processo de envelhecimento humano, vamos aos poucos melhorando”, finaliza.

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