QUARENTENA LITERÁRIA: Escritos com Amor e Humor

Page 1


QUARENTENA LITERÁRIA Escritos com Amor e Humor Flávio Chame Barreto e Jota Carino (Organizadores)

1ª Edição Rio de Janeiro AmenabarcA Edições 2020

2


Ficha Catalográfica

Barreto, F. C; Carino, J; Corrêa, A. H; Huguenin, J; Nogueira, R; Barreto, M. A. O. C.

QUARENTENA LITERÁRIA Escritos com Amor e Humor CDA Ed, 2020 – Brasil: 188 f.: Il.

ISBN-13: 9798643903932

1. Contos. 2. Poesia. 3. Poemas. 4. Amor. 5. Quarentena. 6. Pandemia II. Título. CDD

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução dessa obra, mesmo parcial, por qualquer processo, sem prévia autorização por escrito dos autores.

Capa de Sami Souza, ilustrador, designer e quadrinista. Contato: samisamurai@gmail.com Portfólio virtual: behance.net/samisouza.

3



DEDICATÓRIA Dedicado a todos os profissionais da Saúde. Imersos nessa terrível pandemia, sem dúvida eles merecem ser chamados heróis. Porém, mais que isso, precisam de apoio, respeito e adequadas condições de trabalho, remuneração e proteção, para que, por falta disso, não continuem a ter que doar até as próprias vidas para salvar as nossas.

5



Sumário Dedicatória................................................................ 5 Apresentação ............................................................ 9 As queridas mãos e o coronavírus .......................... 11 Um pedaço de uma fita quase invisível com poder de mudar o mundo ...................................... 17 A janela ................................................................... 25 Avós e o coronavírus............................................... 43 Ser chata ou não, eis a questão .............................. 49 O voo ....................................................................... 57 Para que servem os velhos? ................................... 76 O velhinho e o coronavírus ..................................... 83 Pandemia na floresta .............................................. 93 Canto da quarentena ............................................ 117 O notebook e o coronavírus ................................. 127 A vida e as vidas de uma máscara ........................ 137 Um bater de asas e grandes ensinamentos ......... 145 7


Avós: da caverna à quarentena ............................ 155 Memória de sabores em tempos de quarentena 167 Confinapartamento .............................................. 179 Mais juntos que nunca ......................................... 183 O vírus e a ignorância na pandemia ..................... 185 Sobre os autores ................................................... 187

8


APRESENTAÇÃO Este livro é fruto da quarentena a que todos estamos submetidos. Seus autores vêm de variadas áreas de formação, indo da Medicina à Biologia, passando pela Filosofia e pelo Direito. Eles têm em comum, além de grande amor pela Literatura, o fato de todos pertencerem a Academias de Letras e Ciências. Conversando numa live, esse novo e utilíssimo recurso comunicativo possibilitado pela Internet e suas redes sociais, surgiu a ideia contida na expressão: “Faça de seu limão uma limonada”. O livro é esse drink, misturando observações, informações gerais, alguns comentários técnicos sobre o novo coronavírus, servidos na taça da interpretação literária, com pitadas de humor, umas raspas de metáforas e generosos toques de poesia, nesta incluindo-se as delicadas rimas de autoria de nossa colega Alba Helena Corrêa, premiadíssima trovadora. Não há outras pretensões, senão a de servir para leitura leve e destinada a uma rápida “degustação”. Porém, tudo de acordo com bases científicas, e da forma mais descomplicada possível.

9


Caso a leitura desta obra seja prazerosa, e ajude alguém a ocupar seu tempo durante o necessário isolamento social, imposto por esse mal que a todos atinge, seus autores sentir-se-ão úteis e orgulhosos de sua modesta contribuição, nesta hora de tanto sofrimento e angústia, mas pleno da esperança de que tudo passará o mais breve possível. Saúde!

10


AS QUERIDAS MÃOS E O CORONAVÍRUS Jota Carino Aqui estão vocês, minhas queridas mãos, sempre prontas, solícitas, dóceis e competentes. Agora mesmo, quando escrevo estas palavras, vocês trabalham, ágeis e prestativas, percorrendo o teclado. Eu as contemplo e penso que vocês, muito mais do que ossos, músculos, cartilagens e pele, são os instrumentos por excelência de nosso contato físico com o mundo. Aprender a usar vocês é um dos desafios mais difíceis, porém compensadores, desde que nascemos. Sua capacidade preênsil, ou seja, de pegar, agarrar, manipular, é um milagre. O chamado “polegar opositor” é um dos presentes mais preciosos que a Vida nos dá. Adoradas mãos, vocês são as mágicas extensões que levam nossos corações e mentes ao contato com o mundo. Tocar, segurar e manipular dependem de vocês – e disso dependem a escrita, as artes, as ciências, a manufatura... Ah, e nos gestos, mãos adoradas, como dependemos de vocês, para usar a linguagem corporal, 11


indispensável a qualquer comunicação em que de fato empenhamos toda a nossa alma. Mãos, mãos, sensíveis mãos, o que dizer de vocês quando nos representam nos carinhos do amor e nas carícias da paixão? Ou, quando suas extremidades, os dedos, se empenham no acarinhar a cabecinha de filhas, filhos, netos? Ou, ainda, quando possibilitam todos os afagos, inclusive compondo a complexidade maravilhosa, e tão humana, do abraço. Hoje mesmo, insuperáveis mãos, momento em que um vírus terrível nos assola, são vocês, quando pertencentes a médicos, pesquisadores e a todo o pessoal de saúde, as responsáveis por todos os contatos com os doentes, desde os gestos e procedimentos técnicos aos carinhos que permeiam as relações desses abnegados profissionais com seus pacientes. Queridas e insubstituíveis mãos, nem sempre nos lembramos de vocês, nesse mundo de correrias, em que a plena atenção é um artigo raríssimo. Agora, com a pandemia do coronavírus, numa grande ironia, precisamos cuidar de vocês, como talvez jamais tenhamos cuidado.

12


É imperioso, maravilhosas mãos, que banhemos e higienizemos vocês, demoradamente, após cada contato potencialmente perigoso. E isso sem as invencionices de fórmulas e receitas disseminadas, como um vírus, da ignorância e do pavor, que pululam nas redes sociais. Apenas água e sabão, ou álcool em gel, como aconselham os especialistas sérios e responsáveis, deverão ser as essências com as quais limparemos, carinhosa e cuidadosamente, vocês, inigualáveis mãos. Suas coirmãs, as mãos dos profissionais da Saúde, essas serão abençoadas, porque são heroínas nessa guerra sem fronteiras contra a terrível CoViD-19. E todos orarão e meditarão por aquelas que já tombaram para sempre por pertencerem a destemidos guerreiros de branco. Tenhamos calma e paciência, queridas mãos. Logo logo nossa quarentena findará e virá a hora em que os apertos de mão e os abraços em todos voltarão, deixando apenas uma lição dura e amarga a ser aprendida, pois sofrimentos sempre ensinam.

13


Desculpem, adoradas mãos, por não podermos usar, mesmo com as pessoas que mais amamos, seus insubstituíveis recursos. Por enquanto, minhas queridas mãos, junto-as, agora, palma com palma, pela saudade dos que se foram e pela esperança e confiança de todos os que estão sofrendo, contaminados ou confinados. Namastê!

14


Quando há dor e sofrimento é tempo de refletir, a quarentena é o momento: - Em que poderei servir?

15


16


UM PEDAÇO DE UMA FITA QUASE INVISÍVEL COM PODER DE MUDAR O MUNDO Flavio Chame Barreto Uma frase atribuída ao biólogo britânico Peter Brian Medawar, nascido na cidade de Petrópolis em 1915, e que, até o momento, é a única pessoa nascida no Brasil laureada com um Prêmio Nobel (Prêmio Nobel de Medicina em 1960), descreve bem o papel do novo coronavírus em relação à situação socioeconômica mundial atual. Ele afirmou que vírus é “um pedaço de notícia ruim embrulhado em proteínas”. Uma frase muito interessante para explicar de forma bem lúdica e irônica o que é essa microscópica partícula, composta basicamente por ácidos nucleicos, mas capaz de modificar a vida dos organismos vivos. Apesar de ser apenas um “pedaço de notícia ruim”, invisível aos olhos humanos, ele é bem verdadeiro, não é fake. É, sim, um algo bem concreto e real, carregado com uma quantidade de ácido nucléico (seja ele Ácido Desoxirribonucleico – DNA ou Ácido Ribonucleico - RNA), parcialmente envolto e protegido pelo Capsídeo, que é uma estrutura proteica, e 17


também, eventualmente, cercado por mais uma cobertura proteica chamada Envelope. Uma notícia ruim: propaga-se tanto no interior celular daquele que a absorve quanto fora deste, ao tentar compartilhar seu conteúdo nas células de outros hospedeiros ao entorno. Afinal, isto é vital para a sua mensagem se perpetuar. Viralizar, quase sempre é a meta de qualquer notícia ruim. No caso do novo coronavírus, sua viralização consiste em propagar-se intensamente pelo interior das células, já que sua mensagem, fantasiada em um vírus, somente se reproduz pela invasão e posse do controle da maquinaria de auto reprodução celular. Contraditoriamente, a mesma matéria-prima que compõe essa fita, contendo a mensagem indesejável, é a também responsável pela manutenção da vida e até da fisiologia vital dos seres vivos, ou seja, ela é composta pelos ácidos nucleicos (DNA ou RNA). Na prática, tanto o DNA quanto o RNA são formados por unidades menores chamadas nucleotídeos, que são a junção de uma base nitrogenada com um açúcar ou ribose, que definirá 18


qual seu tipo de ácido, se é Ribonucleico ou Desoxirribonucleico, sendo que ambos são naturalmente imprescindíveis para a produção de proteínas e manutenção da vida no ser humano. Eis a grande contradição dessa fita invisível: pode ser mortal em algumas situações, apesar de ser indispensável à vida, na maioria das vezes. Mais especificamente, no caso do novo coronavírus, que tem esse nome devido à presença de várias espículas em sua superfície, que lembram uma coroa (“corona”, em latim), são vírus com um genoma constituído de fita simples de RNA e polaridade positiva, com um formato esférico, envelopado, com cerca de 100 a 160 nm de diâmetro. Para se ter uma ideia do tamanho físico dessa “notícia ruim”, essa unidade de comprimento (nm) equivale à bilionésima parte de um metro. Além disso, dentre as proteínas estruturais que o envolvem, e inclusive originaram seu nome, as espículas de glicoproteínas presentes em sua superfície são ótimos receptores de ligação e especificidade que, assim, realizam com boa eficiência a fusão com a membrana da célula hospedeira. 19


Ao infectar uma célula, um vírus constituído de fita simples de RNA e polaridade positiva age prontamente como se fosse um RNA Mensageiro (RNAm) e, assim, ele de imediato é usado pelos ribossomos celulares que, desta forma, passam a produzir rapidamente as proteínas virais. Esse é o funcionamento básico do coronavírus. Da mesma forma, a presença do envelope em um vírus é um facilitador adicional para infectar as células- alvos, já que ele é uma estrutura externa aos capsídeos que protegem a fita de RNA, mantendo-a íntegra. Como, geralmente, parte deste envelope é adquirida durante o “brotamento” do vírus, quando ele sai da célula infectada, isto justifica sua maior facilidade para infectar novas células próximas e até em novos hospedeiros. Por outro lado, estes vírus envelopados são mais facilmente danificados pelas condições ambientais do que os vírus não envelopados. Isto é explicado porque o envelope pode ser destruído rapidamente no contato com solventes lipídicos, álcool, cloro, peróxido de hidrogênio, Fenol, assim como pelo aumento de temperatura por um período de tempo mais 20


persistente, congelamento e descongelamento rápidos, alteração brusca de pH abaixo de 6 ou acima de 8 etc. Isso explica também porque a higienização mais rígida, constante e atenta pode ser uma grande barreira para reduzir a propagação dessa “notícia ruim”. Afinal, se por um lado as características do envelope viral explicam, em parte, a sua rápida propagação ao contaminar humanos, por outro, as medidas sugeridas pelas autoridades, como lavar constantemente as mãos com água e sabão e o uso de álcool em gel, se justificam, pois são bem eficazes para reduzir o contágio. Como podemos ver, apesar de ser apenas um pedaço de “notícia ruim”, que chega dentro de um “envelope” invisível aos olhos humanos, o novo coronavírus é algo bem verdadeiro e que já circula em torno de nós. Essa ínfima fita ameaça pessoas que amamos, e bagunça um mercado dependente de seres vivos e saudáveis que fazem girar a engrenagem econômica, com maior ou menor velocidade.

21


Certamente superaremos, pois somos reconhecidamente uma das espécies mais fortes e bem sucedidas da natureza. Contudo, foi preciso que um ínfimo “pedaço de notícia ruim”, na verdade um vírus bem concreto e real, nos mostrasse como precisamos rapidamente voltar a ser, também, uma espécie bem melhor e até muito mais humana nesse novo mundo que ressurgirá, após essa pandemia.

22


Ter a pessoa querida, ao lado, pegar-lhe a mão, é um risco pra sua vida: o da contaminação!

23


24


A JANELA Ricardo Nogueira Morando há cinco anos naquele apartamento, Clóvis passava muito tempo do seu dia olhando através da janela do quarto, na esperança de um contato visual com a moça loira, curvilínea, que ele vira uma única vez, trocando de roupa no que parecia ser um dormitório no prédio ao lado. Onde morava, nos fundos, era restrito o seu visual do mundo externo. Uma janela na pequena sala permitia que ele enxergasse, abaixo, os telhados de prédios vizinhos e, acima, o céu, com suas variações de cores diurnas ou o reflexo prateado de luzes artificiais nas longas noites paulistanas. Clóvis morava sozinho e não tinha outros prazeres além dos bares que gostava de frequentar no bairro vizinho. Com a pandemia, ele estava sem saber o que fazer, sem poder sair de casa para seus encontros com os amigos, ocasiões em que sempre estabelecia novas amizades. Ele gostava de estar com as pessoas; dizia de si mesmo ser “das antigas”, onde o olho-noolho era imprescindível no contato inicial e posteriores.

25


Privado dessas oportunidades, ele sentia o coração apertado por estar sozinho. Na verdade, Clóvis era um paquerador nato, e tinha orgulho da sua capacidade de estabelecer novos vínculos afetivos, não importando se seriam duradouros ou não. Ele estava sempre aberto para novas amigas. Adorava ter amizades femininas. Por elas, seguia um ritmo sistemático de telefonar todo fim de tarde para marcar os encontros da turma nos botecos da cidade. Tudo mudou quando as medidas preventivas foram anunciadas, e uma delas foi extremamente traumática para Clóvis. O fechamento obrigatório dos restaurantes e bares desarticulou todas as noites daquele homem solitário e carente. Não gostava de ver televisão e poucos livros mereceram sua atenção ao longo da vida. Assim, isolado do mundo, só lhe restava a janela do quarto, alimentando a expectativa de um novo contato, o que seria um bálsamo na aridez dos seus dias em época de pandemia. Adquiriu o hábito de ir até a janela, diversas vezes ao dia e, com maior frequência, durante a noite. Nada ocorria no quarto da loira. Nenhuma

26


movimentação, vidros fechados o tempo inteiro, e nem brilho de luz ele via nas horas noturnas. Tentando ser invisível, ele buscava não aparecer na janela para não inibir uma esperada aparição da moça, pois assim, quem sabe, se ela aparecesse, ele poder desfrutar dos momentos mais íntimos daquela que, a cada dia, passara a ser o seu objetivo de vida. Com o tempo passando, gradativamente, a situação de quarentena foi se tornando insuportável de tolerar, sendo o acanhado apartamento considerado por Clóvis uma prisão. Entre olhadas pela janela, em vão, ele tentara outras maneiras de passar o tempo. Filmes na televisão, já vira a maioria deles, e os que não tinha assistido eram aqueles em que não apreciava o tema. Os poucos livros que tinha, alguns ganhos de presente em aniversários, não despertavam seu interesse, após passar os olhos em páginas abertas aletoriamente. No início do isolamento social, praticamente, na primeira semana, Clóvis ficava muito tempo conversando com as amigas nos aplicativos do celular; mas, as prosas foram rareando, porque o assunto se resumia aos efeitos da pandemia, alardeados por uma população desinformada que criava horrores maiores 27


do que aqueles registrados nas unidades médicas. Clóvis não suportava mais a mesma temática e decidiu evitar as conversas virtuais, que foram rareando. Poucas dessas prosas ainda ocorriam. Após alguns dias, ele não sabia mais o que fazer. Ficava horas deitado no sofá, ou mesmo na cama, pensando em como seria bom se a loira também estivesse de quarentena e frequentasse mais aquele cômodo que parecia ser seu quarto. Essa possibilidade lhe tirava da inação e o levava para a janela, onde escondido atrás da cortina passava longos minutos mirando a janela da vizinha. Uma noite, ao voltar da cozinha, ele observa o brilho que parecia ser proveniente de uma lâmpada de abajur no vigiado quarto da moça. Tomado por um súbito excitamento, verifica que são quase quatro horas da manhã. Estático, tenta controlar sua emoção. Respira lentamente para posicionar-se e não ser flagrado por ela. Após longos, aparentemente intermináveis segundos, uma bota feminina preta, de cano alto, é lançada no assoalho perto da janela, fazendo saltar o coração do nosso ansioso voyeur. Em seguida, o outro pé, do mesmo calçado, surge jogado no chão. Sombras 28


projetadas no assoalho dançam de um lado para o outro, tomando variadas e indefinidas formas, mostrando que, provavelmente, alguém se mexia em um canto escondido aos olhos do entusiasmado e solitário Clóvis. Em seguida, para delírio dele, um pequeno maiô esverdeado e muito brilhante é lançado, pousando bem ao lado da bota do pé esquerdo, que jazia próximo à janela. Clóvis, passa a mão na cabeça e, repuxando os cabelos, agradece aos deuses por receber, enfim, a tão esperada visão da loira em íntimo momento. Com esforço, ele se mantém quieto atrás da cortina. Enquanto ele elevava seus agradecidos pensamentos ao Olimpo, a loira aparece na janela e olha para fora. Sob as luzes do quebra-luz, seus longos cabelos bem claros brilhavam por sobre os ombros, emoldurando um rosto de linhas harmoniosas, aparentemente bonito e ainda maquiado. O corpo, deliciosamente curvilíneo, naquele instante graciosamente mostrado pelos lúmens da lâmpada do abajur, esbanjava a beleza corpórea daquela que habitava os pensamentos do morador do prédio ao lado. 29


Por exíguos segundos, a bela moça dá uma olhada despretensiosa pela janela e dela se afasta, puxando a cortina. Clóvis arregala os olhos, sente seu coração querer saltar pela boca e, sem pensar, solta um palavrão daqueles, que incorpora toda a sua decepção por ter sido alijado do seu momento de admiração. O som do seu reclamo ecoou alto na noite silenciosa, e ele saiu do esconderijo por detrás da cortina. Ainda com os olhos estampando o horror da inesperada frustação, Clóvis vê a cortina recémfechada ser reaberta e a loira aparecer. Ela olha para baixo e, em seguida, para cima, e encontra a origem da reclamação intempestiva na alta madrugada. Encarando seu admirador por um incontável tempo, sorri. Um sorriso largo e generoso, mostrando dentes alvos e bem cuidados. Clóvis novamente agradece aos deuses e, timidamente, lança um gesto manual, um tchau, aceno acompanhado de um forçado sorriso. Mentalmente, ele clama por toda a sua capacidade energética para que a comunicação seja enfim iniciada. Com a outra mão, faz sinal de positivo, elevando seu polegar com o punho fechado. 30


A loira torna a sorrir, respondendo com o mesmo gesto do dedo polegar, permanecendo os dois sorrindo um para o outro. Para ela, por nanossegundos; para ele, a eternidade cósmica. Clóvis tem vontade de subir no parapeito e pular para o da outra janela, só não o fazendo por entender que seu salto não terminaria nos braços da jovem e sim no chão cimentado quinze metros abaixo. Mas, sua mente, refeita dos choques iniciais, trabalha célere para encontrar um meio de esticar aquele momento e, não querendo chamar a atenção dos outros vizinhos, decide pela mímica. Com as duas mãos, ele faz o contorno de um coração, encostando-o no seu peito e lançando em direção à moça, que sorria graciosamente para ele. Após enviar vários corações para a loira, Clóvis aproxima dois dedos de seus olhos e aponta para ela, querendo dizer que está de olho nela. Ela entende e agradece, pondo os dois polegares para cima. Clovis, então, ainda com as mãos, manda beijos que saem dos seus lábios, tocam no seu peito e são lançados para a bela jovem que permanece sorridente, aparentemente sem se importar de estar vestida somente com calcinha e sutiã. Clóvis exulta com a 31


visão. Está acontecendo o que ele, na mais criativa das imagens, sonhou por sucessivos dias. Com as duas mãos, ele desenha no ar o contorno do corpo da jovem, seguido de polegar para cima e um beijo. Sorrindo, ela dá um passo atrás e faz um volteio, mostrando toda a exuberância dos seios volumosos e firmes, a rigidez da musculatura da inexistente barriga, as fartas e abundantes nádegas, rijas, e as belas coxas grossas, lisas e bem delineadas. Clóvis, surtado, não sabe mais o que fazer com as mãos para enviar mensagens para a jovem, que, por sua vez, após dar duas voltas em torno de si mesma, retorna, sorrindo, o olhar para seu eloquente admirador com seu infindável gesticular. O tempo parece parar para Clóvis, que não enxerga nada mais ao redor. É como se o mundo consistisse em duas janelas: em uma está ele, na outra, sua adorada e desejada obsessão dos últimos dias. “Ah! Bendita pandemia, maravilhosa quarentena, sem vocês duas eu não teria, jamais, a oportunidade de fazer contato com tão belo e generoso ser. Que mulher!... Que corpo perfeito! ... Que sorriso gracioso!”, pensava Clóvis, enquanto 32


admirava a sorridente e quase desnuda dama na outra janela. Querendo prosseguir no colóquio gestual, Clóvis deseja ter mais daquela mulher loira, como se fosse necessário alcançar dela o máximo possível, por ter ficado tanto tempo à espreita escondido atrás da grossa cortina do seu quarto. Com a mão direita, pega sua camisa e faz menção de tirá-la, indicando em seguida que era para ela fazer o mesmo. A jovem demora um pouco a entender, balançando a cabeça afirmativamente, o que leva Clóvis a compreender que ela achava legal ele retirar a camisa. Assim, ele não se faz de rogado, tira sua camisa, gira a mão por cima da cabeça e lança a vestimenta para trás de si mesmo. Ela solta uma gargalhada sem som e bate palmas sem barulho. Não era bem isso que Clóvis queria, e ele faz gestos para que ela o imite, fazendo a mesma coisa. Após algumas tentativas, ela enfim parece entender e com o polegar faz sinal de Ok. Então, entra, sumindo no quarto. Clóvis, desesperado, quase se lança no vazio para não deixar que ela vá embora. 33


Sem demora, ele ouve uma música conhecida e ela reaparece dançando no ritmo da canção. Clóvis dobra seus cotovelos no peitoril da janela, apoiando o queixo. Está extasiado, vendo os sensuais passos da loira dançarina. Uma imagem que, certamente, ficará gravada em sua mente. Na escuridão da madrugada, aquela janela é um quadro dinâmico, com uma linda mulher, quase totalmente despida, dançando exclusivamente para ele. Em seus sonhos mais criativos e ousados, jamais imaginara uma cena assim. Ao longo de, aproximadamente, cinco minutos, a loira caprichou na performance da plástica e sensual coreografia, com direito a abraços em si mesma, rodopios e simuladas retiradas das peças do exíguo vestuário. Após cada giro, ela sorria e lançava um beijo soprado para seu admirador. Ao final da canção, saltitando, ele bate palmas, sem se preocupar se são barulhentas ou não, recebendo as mesuras agradecidas da jovem loira. A ligação entre os dois é única; admirador e admirada, homem e mulher, macho e fêmea ligados num carinhoso liame poderoso e avassalador. Com um sinal para que ele espere, a moça novamente some da sua visão e logo retorna dançando em obediência a novas notas musicais 34


harmoniosamente tocadas. Em sua postura contemplativa, queixo apoiado na palma da mão esquerda, Clóvis balança a mão direita com suaves movimentos como se estivesse regendo a execução da música e os passos do bailado sensualmente executado pela formosa dançarina. Antes que a canção termine, em um gesto teatral, a moça retira o sutiã, dando liberdade aos dois belos seios, cheios, que pareciam apontar para a janela mais ao alto, para delírio do apaixonado observador. Ao término da canção, ele aplaude e ela, com mesuras, agradece e cobre os seios com as mãos, recuando até sumir no interior do aposento. O pudico gesto da moça atingiu direto o coração de Clóvis. Suspirando profundamente, ele sente o pulsar forte no peito, e uma ternura invade seus sentimentos. Cobrir os seios mostrou a cândida personalidade da moça, que, apesar da sensual dança, parece ter sido acometida da virtude que nela habita. Definitivamente, ele está apaixonado por aquela jovem mulher. Olhando para a janela, ele não consegue vê-la, mas sabe que ela não foi embora, porque enxerga novamente as sombras de um corpo em movimento. 35


Por tudo o que aconteceu, pelo laço estabelecido, ele não crê que ela vá sem se despedir adequada e carinhosamente dele. Aguarda pacientemente por longos minutos a reaparição dela. No silêncio reinante, novos acordes surgem, trazendo a bela em outra provocativa coreografia, inicialmente com as mãos cobrindo os seios, enquanto, malevolamente, desfila e se insinua, com requebros e balanceio corporal, no pequeno palco limitado pela abertura da sua janela. Os raios luminosos provenientes do abajur provocam brilhos distintos na pele da moça, em matizes variados e luzentes ao iluminar a pele sedosa e já suada. Um espetáculo a prender os olhos bem abertos do admirador, que, a essa altura, já não faz mais nada a não ser tentar controlar sua emoção e a paixão avassaladora que toma seu corpo e seu querer. Enlaçado pelo amor, Clóvis parece estar navegando em outra dimensão. Ele está amando. Com rodopios sucessivos, a dançatriz descobre os seios e por eles desliza as mãos, em gestual provocante, atiçando a libido do seu admirador. Ela sabe o que está se passando na mente dele, e quer explorar ao máximo esse momento onde reina 36


absoluta sobre os sentimentos mais primitivos daquele homem. Com olhar fixo e a boca entreaberta, Clóvis lhe dá a certeza de estar completamente subjugado. A música termina e toca novamente, sem comando, permitindo que a loira performe todo seu conhecimento da dança. Dos carinhos nos próprios seios, entre rebolados, as suas mãos deslizam pelo corpo suado e esticam o fino pano lateral da calcinha preta, última vestimenta, como se fora a guardiã das delícias que aquele belo corpo armazenava. Clóvis, atento, não tem pressa, apesar de querer ver e possuir a nudez total da loira, ele sabe que será o ato final, derradeiro, o encerramento de momentos de êxtase. Com a pandemia, ele não poderia ir até lá ou mesmo convidá-la para ir visitá-lo no seu pequeno apartamento. Entretanto, não faz nada, deixa que ela e os deuses decidam como será o momento seguinte. Ele assume ser o beneficiário expectador de tão sublime encantamento, e faz questão de ser somente, e tão somente, recebedor daquela dádiva. Parecendo ler a mente do seu apaixonado, a moça, de costas para ele, mexe lentamente o quadril, contorcendo-se e, com os dedos indicadores, vai puxando as laterais da última peça, fazendo-a 37


escorregar pelas ancas brilhosas e bem torneadas. A derradeira proteção desliza pelas coxas e pernas e vai ao solo. Ainda de costas para seu atado expectador, ela requebra e remexe o corpo brilhante e intensamente desejado por Clóvis. Com os últimos acordes, ela se joga ao chão e gira, abrindo as pernas e mostrando... a genitália masculina corretamente presa por um adesivo. O mundo trava! O ar desaparece! Os olhos de Clóvis parecem saltar da cavidade ocular. Paralisado, ele sente seus olhos umedecidos e uma enorme vontade de pular da janela, só não o fazendo porque suas pernas amolecem, dobram e ele escorrega do parapeito para dentro do quarto. Um barulho estridente e agudo de uma motocicleta faz com que Clóvis acorde. Suando e um tanto assustado, ele olha as horas em um pequeno relógio digital sobre a mesinha de cabeceira. Eram quase quatro horas da manhã. Dando um salto da cama, ele olha pela janela e vê a outra janela com vidros fechados e cortina estendida. Nenhuma luminosidade é observada.

38


Lá fora, a cidade adormecida ainda se resguarda, em quarentena, do efeito letal do novo coronavírus. Um sorriso amarelo aparece no rosto de Clóvis, que, tristonho, sabe que continuará a pensar em como passar aquela intolerável quarentena. No entanto, sabe também que não perderá mais tempo algum encostado na janela, observando a janela do prédio ao lado.

39



ร a mรกscara caseira muito fรกcil de fazer. Banque, pois, a costureira, e ela vai aparecer!

41


42


AVÓS E O CORONAVÍRUS Jota Carino Cá estamos, prudentemente, sofrendo fechados em casa por causa do Coronavírus. Porém, um outro sofrimento nos aflige: a falta de contato físico com nossos netos. Ah, como a casa fica vazia sem esses bebês, crianças e jovens que a preenchem! Sem o seu alarido; sem os seus abraços e beijos; sem que possamos sentir o contato com esses amorosos corpos que são a própria projeção de nossa vida; sem a radiosidade das netas e netos, a quarentena é quase insuportável. Mas sabemos que nosso infinito amor pelos netos inclui a responsabilidade. Nossa paixão por eles exige o completo afastamento, em benefício deles e de nós mesmos. Manter distância, eis o necessário desafio a vencer. Normalmente, a distância dos netos já é muito ruim. Para alguns, essa distância é pequena: um andar no próprio prédio; algumas ruas, no mesmo bairro ou no bairro vizinho. Mas, se a distância se alonga, com netos que moram em outra cidade, outro estado, outro 43


país, ela se torna torturante. Os encontros físicos ficam mais preciosos. Quando acontecem, são o baú do tesouro aberto pelos avós como riquezas imensas em suas vidas. Em tais momentos, há que compensar as ausências, com tantas histórias contadas, tantas perguntas e respostas e, sobretudo, tantos beijos e abraços – o que nos é vedado neste tempo de pandemia. Mas, dirão vocês, prezados avôs e avós, que hoje em dia a maravilha da Internet, com as redes sociais, encurtou imensamente essa distância. A alguns toques nas teclas, de computadores, tablets ou smartphones, netas e netos se nos apresentam nas telas. E a saudade provocada pela distância fica menor, atenuada pelas imagens que nos deliciam com sorrisos, gracinhas, conversas e todas as formas de amor e carinho possíveis, mesmo de longe. Porém, caros amigos, nossos companheiros avós de quarentena, vocês hão de convir que nada substitui a presença física, em que até o suor dos netos e netas, quando interrompem sua correria para nos envolver com seus bracinhos, torna-se o perfume mais delicioso que existe. Isto as redes sociais não podem propiciar. 44


O cuidado, a prudência, o amor de avós, enfim, nos obrigam a ficar quietinhos em nosso isolamento, dando graças aos céus por ainda podermos desfrutar de encontros virtuais. Caros vovôs e vovós, quando a solidão do isolamento, ou mesmo o medo de que essa terrível Covid19 possa nos afastar para sempre dos nossos netos, momentos em que uma solitária lágrima de saudade de nossas netas e netos insista em rolar por nossa face, não se deixem vencer pela angústia ou pela tristeza. Saibam que tudo isso vai passar. Quando o Coronavírus for vencido, veremos que, em lugar da pandemia, teremos o delicioso pandemônio dos netos e netas reinando em nossas casas e nossas vidas. Fiquemos, pois, em casa. É este, no momento pelo qual estamos passando, o melhor presente que podemos oferecer a nossos amados filhos, filhas, netas e netos.

45



Evite aglomerações, há estudo confirmado: no meio das multidões, fácil é ser contaminado.

47



SER CHATA OU NÃO, EIS A QUESTÃO Flavio Chame Barreto Em se tratando de um gráfico estatístico descrevendo a contaminação viral de um país, o ideal é que a curva fique rapidamente chata. Este é um jargão da área da Saúde, além de ser um consenso entre os epidemiologistas, que atualmente são ainda mais incisivos nessa afirmativa em relação à atual pandemia. Já para muitos economistas e alguns raros governantes, esse consenso ainda não está totalmente estabelecido, pois outras ações deverão ser agregadas às já propostas para mais rapidamente achatarem a tal curva. Na verdade, as divergências se devem aos prejuízos financeiros resultantes das ações sugeridas em busca desse achatamento, em especial se elas durarem um prazo um pouco maior do que a estabilidade ou solidez do mercado puder suportar. Ficar chata ou não, eis a questão – diria hoje William Shakespeare, em substituição ao seu clássico texto:

49


“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provações e em luta pôr-lhes fim?” (The Tragedie of Hamlet, Prince of Denmarke; Ato III, Cena I; peça teatral escrita entre 1599 e 1601). Provavelmente, a única convergência de opiniões entre os profissionais da Saúde e os especialistas da Economia é que explicar matemática ou ensinar como interpretar gráficos, para uma grande parte da população sem domínio destes dois saberes, é algo realmente muito chato, ou melhor, uma missão quase impossível. Ser chato ou não, eis a questão atual – repetiria Shakespeare quase quatrocentos anos depois, ao ver uma engenhoca chamada televisão transmitindo as falas dos diferentes governantes do mundo, inclusive, algumas bem contraditórias em momentos distintos, e o contraponto sempre imutável e defendido o tempo todo por cientistas e doutores da Saúde. Mas, afinal, o que é ser chato? Segundo o dicionário ¨chato” indica ser alguma coisa plana, sem elevações, sem protuberâncias ou 50


saliências. Por extensão, a palavra passou a ter o significado figurado de algo entediante, enfadonho, maçante ou aborrecido. Em outras palavras, seria algo semelhante ao que se ouve durante todo o horário eleitoral gratuito e obrigatório em época de eleição. Ser chato é imperativo – concluiria Shakespeare ao relembrar o histórico dos discursos de muitos chefes de estado, no início da pandemia atual, os quais posteriormente se renderam e afinaram suas falas com as dos cientistas. Nenhum termo hoje é mais próprio para quase tudo relacionado à pandemia: - a curva desejada pelos profissionais da Saúde para o surgimento de novos casos deve ser chata; - o isolamento social imposto pelos governantes é muito chato; - lavar as mãos com água e sabão ou álcool em gel com grande frequência é uma chatice; - usar máscaras para proteger o próximo é chato; - e até mensurar os prejuízos na economia neste momento tão imprevisível, obviamente deve ser uma tarefa bem chata. 51


Chato também é o adjetivo do momento para quase tudo relacionado ao novo coronavírus. Afinal, a origem dessa palavra vem do latim plattus, e do grego platus, ambos significando “algo achatado e largo ou de superfície com pouco relevo”. O problema maior é quando ele deixa de ser adjetivo e passa a ser substantivo, ou a originar alguns. Como, por exemplo, quando sua raiz latina plattus nos lembra que ela também origina a palavra plateia, que é o nome dado a um lugar amplo e largo para as pessoas se aglomerarem para assistirem a um espetáculo ou um discurso, seja este chato ou não. O problema não é ouvir um discurso chato, chatice é ser uma plateia obrigatória ou sem isolamento social. Chato não é ir ao hospital ou aos velórios, e sim não poder visitar seus entes queridos internados ou até se despedir deles bem distanciados, caso nos deixem vitimados pela pandemia. Chato não é ser um substantivo que designa uma pessoa entediante, e sim ter que ouvir alguém ao seu lado divulgando chatices pouco racionais sobre as 52


inevitáveis consequências econômicas, em detrimento de vidas. Chato é o mercado criticar a Saúde por tentar o achatamento da curva de contaminação, sugerindo ações mais rígidas, incomuns e até compreensivelmente chatas. Chato é esse vírus que não convocou uma greve geral, mas silenciosamente paralisou quase totalmente o mundo, ao mostrar que a vida humana possui um valor inefável, não mensurável e incompatível com a plena e pretensa exatidão mercadológica. Chato é um substantivo que, a partir de agora, poderá ter novos significados, muito além dos atuais encontrados nos dicionários. Aliás, a história da humanidade certamente se dividira, doravante em Antes do coronavírus (AC) e depois dele (DC). Chato também não pode ser um adjetivo da moda em relação ao novo coronavírus, até porque seria uma qualificação quase honrosa, se comparada com outras, do tipo, cruel, inclemente, oportunista, insano ou mortal, já tão presentes em todos os noticiários da Terra.

53


Enfim, a única forma chata admissível nesse momento em todos os países do mundo, é a posição de uma fria curva estatística de contaminação, sendo forçosamente achatada pela força da Ciência e pelo valor que possui a vida de cada ser humano.

54


Álcool em gel é importante na higienização: use-o, pois, a todo instante: é excelente precaução.

55



O VOO Ricardo Nogueira Naquela manhã, o aeroporto de Nova Sapé tinha um número reduzido de passageiros e funcionários das empresas aéreas. Por ser um dos mais movimentados da região, chamava a atenção a pouca adesão de pessoas às viagens aéreas. Em clima de pandemia, viase claramente que todos que tiveram que sair de suas casas observavam, na medida do possível, os procedimentos recomendados pelas autoridades sanitárias. Poucas aeronaves ainda voavam, obedecendo a uma programação aérea excepcional. Eram voos distribuídos ao longo do dia, para não aglomerar os viajantes no terminal e suas dependências e, mesmo em cada um deles, somente metade dos assentos foram disponibilizados pelos operadores aéreos. O voo da vez tem destino ao Rio de Janeiro com escala em Salvador. Os funcionários da empresa BarbaAir, com máscaras de proteção, organizam o embarque dos desconfiados cinquenta e quatro passageiros. Na fila, espaçada de dois metros entre os clientes, orientam quanto ao assento disponibilizado, 57


que é diferente do contratado na compra do bilhete aéreo. Informam que devem seguir com rigor as orientações da empresa no embarque, a bordo e, depois, no desembarque. Todos os passageiros são submetidos a um questionário e ao teste do termômetro para verificação da temperatura corporal. Um deles tinha febre de 39 graus e foi excluído da viagem, embora tenha jurado que não sentia nada. Soube-se depois que ele e a família tinham sido diagnosticados como positivo para a presença do coronavírus. Na sala de embarque, com portas e janelas abertas, para que ficasse bem arejada, adesivos vermelhos marcavam o posicionamento dos passageiros, embora a estada naquele ambiente, normalmente entre vinte a trinta minutos, tenha sido reduzida para menos de dez minutos. A medida tornou-se necessária para evitar que alguns ficassem muito tempo confinados em ambiente fechado. No andar inferior, na Sala de Operações da empresa BarbaAir, o comandante Flávio coça a sua extensa barba, mostrando rugas profundas na testa. Estava lembrando da conversa que tivera, antes de sair de casa, com sua esposa Angela, bióloga, com respeito 58


aos perigos do contágio e dos cuidados rigorosos para evitar a contaminação. Quando Flávio foi promovido a comandante, em voo de avaliação, foi orientado a deixar crescer a barba, ou simplesmente um cavanhaque, pois esse estilo era o que o diferenciaria de outros pilotos de transportadores concorrentes. Ele assentiu, pois sabia que todos os comandantes da empresa ostentavam algum tipo de barba. Durante três meses, ele lembra do incômodo que foi deixar crescer os pelos do rosto para incorporar a imagem que dava nome a companhia em que trabalhava. As rugas de preocupação, que sobressaíam por sobre as marcas de expressão em sua testa sulcada, também eram motivadas por um pedido da esposa para que ele raspasse a barba, pois, segundo os epidemiologistas, os pelos faciais facilitavam a contaminação pelo vírus. Flávio demonstrava um evidente desconforto em ter que realizar aquele voo. Aliás, o que minimizava o seu infortúnio era saber que ao pousar no Rio de Janeiro entraria em gozo de férias por trinta dias. Flávio e seu jovem copiloto Cirino haviam recebido as informações técnicas e operacionais do 59


voo, inclusive as de meteorologia, e sabiam que teriam tempo bom até a capital baiana; mas, na segunda rota, enfrentariam condições adversas motivadas por uma frente fria que avançava pelo Sudeste, após decolarem de Salvador, quando sobrevoassem o Espírito Santo. Haveria um paredão com nuvens espessas carregadas de gelo, muita água e intensas correntes de ar ascendentes e descendentes. Diante disso, os dois pilotos estavam escolhendo um nível de voo mais apropriado para minimizar os transtornos a bordo. Afinal, ninguém gostava de voar com turbulência e raios fustigando a aeronave. Ao chegarem à aeronave, eles encontram as três comissárias escaladas para o voo. Flávio sente um alívio ao ver que a chefe era sua antiga colega Márcia, com experiência suficiente e importante para um voo naquelas condições, com mau tempo, e os passageiros nervosos, com o comportamento transtornado, em decorrência da pandemia que atingiu suas vidas e o mundo todo. O sorriso largo de Flávio para Márcia parecia de agradecimento por ela estar voando naquele dia. O costumeiro briefing foi repetido, com ênfase nos procedimentos especiais recém-implantados por causa 60


da CoViD-19. Todos pareciam conhecer bem os cuidados necessários. Na cabine de comando, os pilotos prepararam a aeronave para a decolagem, receberam os comprovantes de peso e balanceamento, foram informados acerca do combustível abastecido e sobre a quantidade de passageiros. Nesse voo foram informados que viajaria uma senhora que requereu atendimento especial por dificuldade de locomoção. Olhando pela janela da cabina, Flávio observa a fila dos passageiros, tendo à frente a idosa na cadeira de rodas. Assim, que termina o embarque, Flávio ouve, via sistema interno de comunicação, as orientações da comissária Márcia para os passageiros, e faz um meneio de cabeça quando a ouve pedir aos embarcados que acionem o botão acima de suas cabeças para chamar o pessoa de bordo, em caso de necessidade. Tudo certo a bordo, a autorização para o início do taxiamento foi pedida e concedida pela torre de controle. Conduzindo o avião pela pista, Flávio recorda a última recomendação de Angela, que lhe dissera: “Amor, não fique perto de ninguém, mesmo que seja da tripulação ou um amigo muito chegado”. Ele olha 61


para seu lado direito e observa o colega Cirino em contato-rádio para a decolagem. Esta transcorre sem problemas, conforme planejado, e a aeronave sobe para o nível 330, com a ascensão efetuada já no rumo da aerovia. Com poucos aviões voando, o espaço aéreo quase vazio permitia que certos atalhos fossem executados, encurtando a duração das etapas de voo. Rapidamente, a aeronave é estabilizada no nível de cruzeiro e a comissária Solange informa aos passageiros que, em virtude da pandemia, o serviço de bordo não seria oferecido, tendo somente água mineral para quem quisesse, mas que enfatizava o uso do álcool gel após tocarem nas garrafas pet. Nesse momento, o passageiro da poltrona 23C, homem calvo, aparentando cerca de sessenta anos, musculoso, levanta-se, fica em pé no corredor e, em tom alto, reclama do que acabara de ouvir. - Comissária, eu não concordo com isso, pois sei que, do total do meu bilhete, parte do valor é referente ao serviço de bordo. Se vocês não vão servir, tudo bem; mas, eu quero saber quando vou receber de volta a grana do lanche não servido.

62


A chefe de equipe, pelo microfone, responde ao reclamante: - Senhor, por favor, retorne para a sua poltrona. Assim que pousarmos, no seu desembarque, o senhor poderá dirigir-se ao nosso pessoal de terra e requerer o que acha que lhe deve ser devolvido. Por favor, acalme-se. O homem, ainda em pé, sentindo-se ofendido, retruca com veemência. - Eu não acho, moça, eu tenho certeza: quero o meu dinheiro de volta. Avise ao comandante para entrar em contato com quem de direito, pois ao pousar quero isso logo resolvido porque tenho compromisso marcado. - Antes que a comissária pudesse responder, um alarido se ouviu, com muitas vozes falando ao mesmo tempo. - Senta aí, careca, não perturba! - Cala a boca, seu idiota, sovina do cacete! - Bota esse cara pra fora!

63


Muitos outros impropérios foram pronunciados, mas acabaram abafados pelas vozes mais potentes, deixando claro que a harmonia do ambiente havia sido quebrada por uma reclamação sem propósito e totalmente fora de hora. Alguns passageiros estavam de joelhos nos assentos e olhavam para o final da aeronave, a fim de identificar o perturbador. Este, vendo que estava sozinho naquele pleito, sentou-se e gritou a sua insatisfação. - Povinho sem honra, covardes sempre enganados e roubados, ovelhas dos lobos reinantes, vociferou enquanto voltava ao seu assento. A chefe Márcia aguardou o cessar dos xingamentos e, pelo sistema de som, agradeceu a compreensão de todos, pedindo que ficassem nos seus respectivos assentos com os cintos afivelados. Após desligar, vira para a colega Solange e dá um sorriso sem graça, suspirando profundamente. Solange, balançando a cabeça, murmura que tá com vontade de esmurrar o cara. As duas observam o ressonar da senhora sentada na poltrona 1ª, que não presenciou nada do ocorrido. Assim que a aeronave decolou, ela inclinou a cabeça e entrou em sono profundo. Podia-se ouvir o 64


seu ronco a metros de distância. Márcia e Solange entreolham-se e relaxam um pouco vendo a serenidade daquela simpática senhora, ali sentada, confiante de que estava em boas mãos. Uma bela moça bem vestida, mas de forma um tanto extravagante, aparentando pouco mais de vinte anos, sentada próximo ao reclamante, inicia uma conversa com ele, ouvida por quase todos a bordo, em face do silêncio que se instalara. - Mô, por que você está tão nervoso? Não acha que exagerou, que foi longe demais? - Tô nervoso porque o dente canino está mole, qualquer hora ele cai, e eu não posso pôr a mão na boca para ajustar. Isso tá dando nos meu nervos responde o autor da desavença. - Poxa, você teve na dentista ontem à tarde e não resolveu isso? - Era para pôr o definitivo, mas aquela incompetente não mandou buscar no protético e colou o provisório, parece que com saliva, porque hoje de manhã eu já senti o dente meio mole. Uma incompetente. 65


- Também, não vou depositar a grana que ela pediu. - Nossa, Mô, que desagradável. Você não pode ficar assim, é na frente né, já imaginou se ele cai, você com o sorriso esburacado? Olhando para a namorada, ele sente vontade de falar uns palavrões pra ela, pois tem certeza de que ela está se divertindo com a situação dele. Mas, pensa que dela ele cuidará depois. - Você lembra quando ela me disse que na minha idade só a gengiva subia? Quase dei um soco nela, naquela rabugenta incompetente. Antes que a mocinha pudesse responder, a passageira da poltrona 18C, que ouvira toda a conversa, levanta-se e, de pé no corredor, fala para o desagradável ocupante da poltrona 23C: - O senhor é uma pessoa de má índole, mal educado, destemperado ... um grosso. Como se atreve a falar assim da sua dentista? O senhor não tem direito de falar assim de uma profissional, que, com certeza, está fazendo o melhor possível para limpar essa boca nojenta que o senhor tem. 66


Pego de surpresa, o calvo dá uma gargalhada e manda a dona para aquele lugar, mostrando o dedo do meio para ela. Ofendida, a senhora parte para cima dele e é contida por um jovem que ocupa a poltrona 21D. Em seguida, o moço salta por cima das cadeiras vazias e dá um soco no rosto do sessentão. Daí em diante, a confusão tomou conta do corredor, no final da aeronave. O agredido tentou levantar-se, mas foi impedido pelo agressor, que tentava socá-lo novamente, só não conseguindo porque teve seu braço seguro pela mocinha extravagante que, agarrada ao rapaz impedia seu ataque ao namorado. Vários passageiros acorreram para separar a briga, provocando um corre-corre entre as poltronas, uns a favor do agressor e outros para evitar a agressão. Uma criança, ao fundo, começou a chorar convulsivamente e sua mãe, nervosa, não conseguia falar, demonstrando que tinha dificuldade de respirar. Logo começou a tossir. Márcia usando o som ambiente pedia repetidamente que os passageiros se acalmassem, enquanto Solange invadia a cabine de comando e relatava ao comandante o que estava acontecendo. 67


Nem um dos passageiros atendeu aos insistentes pedidos da comissária, e todos já estavam fora dos seus lugares discutindo uns com os outros. Logo, dois grupos foram formados, aquele contra o careca e o em defesa dele por ter sido agredido, Flávio fica surpreso com o que ouvira e decide sair da cabine para atuar, com sua autoridade de responsável pelo voo. Passa os comandos para Cirino e, ao sair da cabine, arregala os olhos com o que vê. A cabina de passageiros era uma praça de guerra. Na primeira metade, as pessoas gritavam umas com a outras. Tinha até um senhor idoso empunhando uma bem forjada bengala em direção a uma dona bem gorda que ameaçava partir para cima dele. Na metade mais ao fundo, a confusão era maior, com alguns passageiros literalmente aos empurrões e gritando palavras de baixo calão, aos borbotões, algumas desconhecidas do comandante. Bolsas eram arremessadas em direções diversas, outras eram usadas como tacapes para agressão. Todos discutiam e brigavam, naquela altura, sem saber o real motivo da confusão, em um descontrole emocional jamais visto por Flávio em seus quase 35 68


anos de carreira. Somente, uma vez, presenciou uma briga a bordo, que foi protagonizada por uma comissária que, inconformada com o assédio de um passageiro, não resistiu e soltou a mão na cara do galanteador mal-intencionado. Na verdade, uma espetacular bofetada. Essa lembrança veio à mente do experiente piloto, que lembra ter contido a colega furiosa, descontrolada, e ainda teve que segurar o passageiro agredido, com receio de ele querer revidar o tabefe bem recebido. Infelizmente, a empresa optou por desligar a funcionária, dando razão ao inoportuno cliente. No entanto, ele já ouvira, de outros companheiros, relatos de casos de briga de passageiros que resultaram em sérias lesões físicas. Rapidamente, Flávio resolveu acabar com aquela confusão antes que alguém se machucasse seriamente e ele fosse responsabilizado por não ter atuado como comandante da aeronave. Usando o sistema de som das comissárias, ele dispara em alto e bom som, no maior nível que seus pulmões lhe permitiram gritar: - VAMOS ACABAR COM ESSA CONFUSÃO, VOLTEM AOS SEUS RESPECTIVOS ASSENTOS IMEDIATAMENTE. ESTOU DANDO ORDEM DE PRISÃO! 69


SAIBAM QUE VOCÊS SERÃO TODOS ENCAMINHADOS PARA A DELEGACIA POLICIAL DO AEROPORTO DE SALVADOR! A rispidez da voz do comandante atingiu a todos, que pararam e voltaram seus olhares para a frente da aeronave. No silêncio que se seguiu, pôde-se ouvir o choro da criança no final da aeronave e a tosse da mãe. Todos olharam para o final do corredor. Parecendo que foram comandados, os passageiros trataram de correr para a frente da aeronave, empurrando uns aos outros, pois chegar primeiro próximo do comandante e das comissárias significava estar distante da profusão de vírus lançados no ar pela tosse interminável da jovem mãe da criança chorona. O movimento desarticulado de tantos passageiros, no mesmo sentido, deu causa a balanços na aeronave, o que provocou o desequilíbrio de alguns apressados, que caíram por sobre as poltronas e até por cima de outros. No fundo, restaram a mãe, a criança e o calvo, que, de joelhos, procurava, no piso embaixo das poltronas próximas, o seu dente provisório, que fora 70


arrancado com o soco desferido pelo jovem da poltrona 21D. Até a mocinha extravagante partiu em desabalada carreira para a frente da aeronave, deixando seu desafortunado namorado na busca pelo dente perdido. Ao microfone, Flávio, novamente em tom enérgico, exige: - MANTENHAM SUAS POLTRONAS NA POSIÇÃO ORIGINAL, PARA NÃO PROVOCAREM UM DESBALANCEAMENTO SÚBITO E INDESEJÁVEL DA AERONAVE, O QUE PODERÁ PÔR TODOS EM SITUAÇÃO TÉCNICA E OPERACIONAL INDESEJÁVEL. Essa fala parece ter soado com uma onda de energia paralisante, pois todos estancaram onde estavam e, lentamente, olhando para o comandante, foram ocupando os assentos próximos. O silêncio voltou a imperar na aeronave. Até a tosse e o choro foram interrompidos. Ausência de ruído, enfim quebrado pelo movimento da terceira comissária, que fecha a porta do banheiro localizado no final da aeronave. Giovana era novata e ficara sem ação durante toda a confusão que ocorrera perto da galley traseira, onde ela estava. Quando todos se

71


aquietaram, ela teve ânsias de vômito e correu para o toalete traseiro. Com a aeronave e os ânimos estabilizados, Flávio retorna ao seu posto na cabina e faz um breve relato para Cirino do que acontecera a bordo. Toma ciência de que já estão em procedimento de descida, sob vetoração radar, para pouso na pista 10 do aeroporto internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães. Flávio pergunta a Márcia como estão os passageiros e recebe como resposta que todos estão quietos e sentados. Então, suspirando, várias vezes, profundamente, ele pega a sua mochila e retira seu velho cachimbo, pondo-o, sem fumo, no canto esquerdo da boca. Cirino olha para seu comandante e repara, com orgulho, que a serenidade retornou ao experiente piloto. Então, devolve o comando da aeronave, reassumindo suas funções como copiloto. Ele tinha certeza de que aquele voo terminaria sem outras complicações. A descida e a aproximação para o aeroporto ocorreram rápida e sem interrupções, sendo suave o 72


pouso na pista recém-recapeada. Ao estacionar em frente ao terminal de passageiros, Flávio se dirige aos passageiros, informando que todos serão levados para uma ala isolada, para os testes de avaliação e triagem, em atendimento aos novos procedimentos sanitários, e que somente após liberados poderiam retirar as suas bagagens despachadas em Nova Sapé. O comandante informa, ainda, que, em face do desagradável incidente a bordo, as autoridades policiais iriam “entrevistar” todos os passageiros, em particular aos ocupantes das poltronas 18C, 21D e 23C. Em face das diligências policiais, os passageiros com destino ao Rio de Janeiro seriam acomodados em outro voo da empresa, assim que liberados pela polícia local, Com a porta aberta, as comissárias orientam a saída dos passageiros, observando o distanciamento de dois metros entre eles. Após todos terem desembarcado, Márcia acorda a velha senhora da poltrona 1A. - Oi, já chegamos? - Sim, senhora. Vamos. Nosso funcionário vai ajudá-la - responde a amável e sorridente comissária.

73


Com visível esforço, a última passageira a desembarcar da aeronave senta-se na cadeira de rodas oferecida um rapaz uniformizado e, ao despedir-se da chefe Márcia, agarrada em sua bolsa desgastada, diz com um alegre sorriso: - Minha filha, obrigado por tudo. Este foi o melhor voo que já fiz na minha vida.

74


Vai além de profissão. Tem nobreza a Medicina. Mais que trabalho, é missão: possui essência divina!

75


PARA QUE SERVEM OS VELHOS? Jota Carino Se o leitor pode não ter ouvido, ou não lembrar, do significado da palavra “senectude”, não se impressione, pois quer dizer apenas “velhice”. Mas, nestes tempos de corona vírus, creio ser interessante lembrar que a palavra tem origem no latim “senectus”. E daí, não se surpreendam, vem a denominação “senado”. Explico: Essa ideia, em torno dos velhos e sua participação na política, nasceu na Grécia, mas foi entre os romanos que se consolidou, e ganhou sua denominação e uma explicação para ampará-la politicamente. Para os romanos, nada era mais importante que Roma, a capital de seu império. E o que tem isso a ver com velhos, velhice ou senectude? Eis a justificativa. Quem estava mais apto para enfrentar as dificuldades do poderoso império senão seus mais jovens e saudáveis cidadãos? Mas como um homem idoso e experiente podia dar sua contribuição para esse poder e grandeza, já que não teria condições de fazê-lo, por sua idade avançada, sua senectude? 76


Desde a Grécia, percebeu-se que esses cidadãos encanecidos, e a maioria deles sem saúde e vigor para enfrentar batalhas com envolvimento físico, tinham algo muito importante a oferecer: sua experiência, acumulada em uma vida já longa. E a assembleias de anciões, já existente na Grécia, originou o romano “Senatus”. Os romanos atribuíam, então, um papel político aos seus idosos, julgando-os mais sábios, ou seja, mais aptos a aconselharem os homens mais novos, sobretudo na vida política. E aqui vai a explicação dos romanos para a significação da denominação cujo significado tentamos estabelecer. Os velhos seriam mais sábios porque, quanto mais velhos, mais perto da fundação de Roma tinham nascido. E os referenciais e fonte da sabedoria, das virtudes, dos valores, estavam lá, no momento histórico da fundação de Roma. Criaram, então, os romanos, seguindo os gregos, a instituição política que congregava os mais velhos e supostamente mais sábios, o Senado. Isso mesmo, prezado leitor, você já adivinhou: Senado... casa dos senectus.

77


Cabe lembrar que já na Grécia, nascedouro da filosofia ocidental, Platão, em “A República”, sustentava que os mais sábios deveriam governar, denominando esse regime de “sofrocacia”. Ora, caro leitor, fiz essa digressão maçante, apenas para exemplificar a importância dos velhos. Poderia ter remontado, também, à atitude comum entre os povos orientais de respeito aos ancestrais, aos mais velhos em geral, respeitados e merecedores de toda a atenção por parte de filhos e netos, em vida, e geralmente venerados depois da morte. Gostaria de lembrar apenas outro exemplo. O dos índios. Sim, os povos indígenas, no Brasil ou em qualquer parte, sempre reservam aos mais velhos da tribo papéis relevantes, como conselheiros ou pagés. Ou seja, se não têm mais o vigor para as atividades exaustivas, da caça ou das lutas tribais, servem de conselheiros para os mais jovens, com base em sua história de vida e a experiência acumulada nela. Ora, ainda hoje permeia cada jovem um certo respeito por pessoas idosas, parentes ou não. Por mais enturmados e envolvidos que sejam os jovens com sua vida, seus interesses; por mais malcriados, irascíveis, surdos ou incomodados fiquem quando recebem 78


conselhos; por mais aborrecidos que sejam certos papos que confrontam gerações, a presença dos velhos mexe com a sensibilidade dos jovens. Muitas palavras e gestos, provindas dessa fonte de experiência – e por que não dizer, quase sempre da sabedoria adquirida com a experiência – calam fundo. E, nesse momento, na maioria dos jovens, surge aquele incômodo pensamento: “Eu também vou ficar velho”. Escrevo enquanto enfrento aqui a necessária quarentena, vivenciando uma pandemia sem par da Covid19, que pode atingir todos, e é mais ameaçadora ainda aos que chegaram aos 60 anos de idade, sobretudo se possuidores de doenças pré-existentes. Os avós, os pais e todos os entes queridos, geralmente fontes de sabedoria prática, carinhosa, tão presente na vida dos mais jovens, estão terrivelmente ameaçados. O mínimo que os mais jovens podem fazer é mantê-los salvaguardados de ameaça de contaminação. E como fazer isso? Sabemos que, por enquanto, a contaminação pela

79


Covid-19 não tem uma vacina. Mas há um cuidado protetor simples de ser tomado com relação aos idosos: não contaminá-los. Infelizmente, a contaminação pode ser feita pelo contato físico ou até pelas gotículas lançadas pelos infectados. Dói em nossa alma saber que inclusive as demonstrações de carinho e atenção, quando se transformam em toques ou proximidade excessiva, constituem-se em ações que podem contaminar. Não resistir à vontade de beijar uma avozinha; de afagar os cabelos brancos de um avô; de apertar junto ao peito a mãe ou o pai, retribuindo o que fizeram com seus filhos e netos por toda a vida; de levar os netos para visitá-los... – tudo isso torna-se muito perigoso, sobretudo para os idosos e portadores de comorbidade, ou seja, de doenças pré-existentes. Há, por outro lado, uma forma terrível de “contaminar” os entes queridos idosos. Refiro-me ao abandono. Se a presença física é ameaçadora, neste tempo de pandemia, o “vírus da depressão”, que é inefável, também pode destruir ou matar. Se os “senectos” se sentirem rejeitados ou descartados como ameaça poderão ser arrasados por esse outro mal, tão em evidência e reconhecido hoje em dia como uma doença. 80


Ajudar com compras de mantimentos e remédios; fazer contatos frequentes pelas redes sociais, celulares, etc.; manter ligados, enfim, os fios da atenção e do carinho, fazer-se presentes, o mais possível, na vida dos idosos – eis o que pode ser feito. Porém, acima de tudo, os que estão fora dos grupos de risco com relação à idade podem oferecer aos já envoltos pela senectude um presente imensamente carinhoso: tomar todos os cuidados para não serem contaminados. Caso isso aconteça, transformar-se-ão em vetores de transmissão do vírus. Além disso, como as contagens de doentes e mortos estão evidenciando, poderão ocupar um leito indispensável para a assistência a um idoso. Mas, afinal, para que servem os idosos? Para desempenhar papel muito importante nas sociedades, quando lúcidos e saudáveis, como exemplificamos acima. E, quando o manto da senectude completa, a inevitável impermanência e, até, a sombra da desrazão e da finitude pairar sobre eles, servirão, ainda, para ter seus exemplos seguidos, para encantar nossa memória e encher a nossa alma com uma doce e terna saudade.

81


Comeรงou a epidemia e, ultra-veloz, alcanรงou a extensรฃo de pandemia, pois no mundo se espalhou.

82


O VELHINHO E O CORONAVÍRUS Flavio Chame Barreto O velhinho saiu do seu prédio e rapidamente já estava no calçadão que margeia a longa praia, para iniciar sua caminhada matinal. Uma rotina imutável e pontual. Como faz há vinte anos, sempre às sete da manhã, lá estava ele carregando suas oito décadas de vivência para se exercitarem. Naquele dia, percebeu que algo estava diferente, mas de imediato não conseguiu identificar o que era. Afinal, como sempre, o Sol brilhava um pouco acima da linha do horizonte; o mar espumava pequenas ondas que se diluíam em marolas e chegavam docemente na areia, exatamente igual ao dia anterior e a tantos outros, acumulados nas últimas vinte décadas da vida desse veterano caminhante. - Alguma coisa hoje mudou – falou em voz alta para si mesmo – e esse momento sentiu uma coisa estranha: parecia que havia alguém ao seu lado. Como num passe de mágica, julgou ouvir uma voz sussurrando em seus ouvidos: 83


- A praia possui um poder hipnótico para quem a olha do calçadão, e também guarda em si muitas histórias, independente do vaivém das suas ondas que suavemente refrescam a areia. Após uma breve pausa, o velhinho prosseguiu: - Daqui deste calçadão eu já vi as plásticas femininas mais perfeitas e as mais sedutoras celulites estiradas por toda a orla. Os mais variados estranhos transeuntes matinais e os mais esquisitos nadadores. Os físicos mais diversificados em larguras, alturas e áreas corporais expostas aos raios solares - prosseguiu com sua fala, como se fosse um monólogo. Sentiu novamente a mesma voz invisível murmurar ao seu lado: - Hoje o céu azul com pouquíssimas nuvens é quase exclusivamente seu – ouviu claramente a frase em seu cérebro. Parou sua caminhada e olhou mais atentamente ao seu redor. Percebeu que a frase, que supostamente sua imaginação criara, fazia sentido. A praia estava realmente vazia. Na rua, pouquíssimos carros passavam por ele. De fato, naquele dia, algo muito 84


diferente aconteceu. As pessoas sumiram da orla. Onde estariam? A pergunta agora soou silenciosa, pois indagou silenciosamente para si mesmo. Enquanto a brisa suave acariciava seu rosto, lembrou-se do noticiário repetitivo da televisão, nos últimos três dias, sobre algo chamado novo coronavírus. Afinal, nos dois últimos anos, seu aparelho de TV ficava ligado na sala praticamente o dia inteiro apenas por puro hábito. Uma rotina herdada desde os tempos em que sua amada esposa ainda era viva. Mas quase não prestava atenção nas notícias ou propagandas. Desde que ficou viúvo, a televisão passou a ser uma companhia bem contraditória; nisso até que havia alguma semelhança entre ela e sua finada esposa. Aquela máquina barulhenta também enchia o vazio da casa matraqueando o dia inteiro, mas ele não se interessava em ouvir grande parte do que era dito ou mostrado. Só muito eventualmente tentava assistir a algum filme, sentado no sofá, mas nestes momentos ela servia muito mais como um sedativo do que veículo de 85


entretenimento ou comunicação. Porém, curiosamente, tinha visto e ouvido vagamente alguma coisa sobre esse tal coronavírus. - Qual seria o papel desse vírus neste mundo? perguntou-se novamente em voz alta. - O mesmo que o seu, ou seja, propagar meu exclusivo material genético para assegurar a sua perpetuação pelo maior tempo possível – a voz invisível novamente respondeu ao seu lado. - Tem alguém aqui? A pergunta ressabiada do velhinho foi acompanhada de um giro no corpo, como se ele buscasse encontrar o dono daquela voz intrometida. - Sim - o som invisível respondeu prontamente e, após uma pequena pausa, se apresentou: - Eu sou um novo coronavírus e estou bem aqui do seu lado, pairando e tentando alcançar sua boca, seus olhos, nariz ou, na pior das hipóteses, suas mãos. O idoso ficou pasmo. Já tinha visto de tudo nessa vida, mas conversar com um vírus era realmente algo inusitado. Encontrar no calçadão da praia uma 86


quase invisível fita de RNA falante era só o que lhe faltava. Pensou em sair correndo e deixar para trás aquela coisa esquisita que falava e ele não via, mas sua curiosidade o impediu: - Eu escuto, porém não consigo ver você. Será que meu glaucoma piorou rapidamente e eu não percebi? Perguntou-se pausadamente, em voz alta, mesmo sem a menor pretensão de ouvir qualquer resposta naquele momento. Contudo, o invisível companheiro de caminhada continuou se intrometendo em sua conversa íntima. - É lógico que não consegue me ver com esses olhos de alcance tão limitado. Aliás, vocês humanos possuem uma estranha mania de só enxergar o que lhes convém. - Vírus ridículo – vociferou o velho, virando-se com a nítida intenção de deixar para trás o invisível falante. Mas, rapidamente desconsiderou. Afinal, ali se abria uma grande chance para entender algo sobre essas coisas virais: - Por que você gosta de matar os anciões? 87


- Eu não sou um serial killer. Aliás, eu preciso sempre de um hospedeiro vivo para propagar meu material genético ao máximo, enquanto ele viver ou ele me destruir. Entendeu? Eu não mato ninguém. Quem sucumbe, morre por causa do seu próprio sistema imunológico debilitado ou ineficaz que não reage adequadamente enquanto me prolifero e cumpro minha função biológica. O aparente sarcasmo da resposta era resultante de uma lógica incontestável. Realmente as pessoas mais suscetíveis, ou seja, aquelas dos grupos de maior risco, tinham muito mais dificuldades em destruir o vírus rapidamente, por conta própria. Mas, nada justificava a perda de uma vida humana. A paciência do idoso já estava se esgotando quando rebateu: - Seu coronavírus, essa sua função não é bem idiota e até desumana? Proliferar até morrer ou matar o hospedeiro? - perguntou o velhinho elevando a voz e com o dedo em riste na direção do vazio. As indagações soaram agressivas para quem olhava de longe. Parecia que ele estava em surto,

88


falando sozinho. Porém, ele próprio sabia que não estava surtado. - Desumana? Não sei o que é isso significa. Não sou um ser humano pleno ou completo – respondeu secamente o vírus, antes de concluir: - Sinto muito, mas esta é a minha única missão, bem diferente de você, que pode ter várias durante toda a sua vida. Enquanto, refletia sobre esta última fala do seu invisível companheiro, percebeu que dele se aproximavam duas pessoas. Ambas estavam com estranhas máscaras que escondiam seus rostos. Uns cem metros ainda os separavam, mas certamente, seriam malfeitores, pensou consigo mesmo. Afinal, quem esconderia a face ao se aproximar de alguém? O glaucoma realmente já lhe embaçava parcialmente a visão, mas seu instinto lhe dizia que possivelmente as intenções daqueles vultos desconhecidos, mas bem visíveis, poderiam não ser as melhores. Acelerou o passo. Atravessou a rua, se distanciando rapidamente do ponto onde estava parado no calçadão.

89


Enquanto se afastava, ouvia a voz invisível se perder, misturada aos outros sons: - Espere por mim. Estes dois aqui estão protegidos com máscaras e eu não vou conseguir cumprir minha missão. Espere... espere... Entrou em casa, ofegante e decidido: - Vou ficar um bom tempo aqui dentro. Lá fora, está cheio de coisas esquisitas e de pessoas bem estranhas – murmurou enquanto ligava a televisão e sentava no sofá. Um noticiário iria começar e, quem sabe, hoje, ele não traria alguma novidade interessante?

90


Coisas de uso coletivo requerem muito cuidado: coronavírus é ativo, fácil de ser propagado!

91



PANDEMIA NA FLORESTA Ricardo Nogueira No início da tarde, uma lebre sai em desabalada carreira para a parte mais longínqua da floresta. Vai ao encontro do seu amigo corvo pedir-lhe um urgente favor. O amigo é o responsável pela comunicação geral com o bando dos corvos. O pedido: que ele convoque todos da espécie para uma reunião com o Rei da Floresta, antes do pôr do Sol. Rapidamente, a solicitação foi espalhada. Como dezenas deles atenderam ao chamado do soberano, o Leão teve que subir em uma pedra bem alta para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo sem chances de mal entendimento. Após assegurar-se de que tinha o domínio da súbita reunião e dos inquietos expectadores, ele, enchendo seus pulmões de ar, solta um poderoso rugido, calando os mais indóceis. O gralhar foi estrondoso, com vários corvos formando pequenos grupos de discussão, gerando um ruidoso farfalhar que incomodou o imponente felino coordenador do encontro. Ciente de que não podia perder o controle das negras aves, o Leão libera um novo urro, ainda mais forte do que o anterior. Deu 93


certo, pois as azarentas criaturas silenciaram e voltaram-se para o monarca. Leão – Espalhem por todo o Reino que, nesta noite, no perigeu da Lua cheia, ocorrerá, na Clareira Real, uma reunião extraordinária para os doze membros do Conselho Florestal, tendo como pauta única a pandemia dos humanos. Que todos os habitantes saibam que o Conselho estará reunido para definir medidas para o enfrentamento dessa nova ameaça viral. Alguma dúvida? Alguma pergunta? O Leão dá um passo à frente, empinando seu dorso e aguçando os ouvidos. Silêncio total. Os corvos, diante da missão que acabavam de receber, demonstravam certa preocupação com o motivo da inesperada reunião. Muitos deles, em suas viagens para fora dos limites da floresta, já tinham ouvido da letalidade dessa doença. Assim, permaneceram silentes. Leão – Ótimo! mensagem a todos!

Vão e disseminem a minha

Um bater frenético de asas para todas as direções deu-lhe a certeza de que os corvos haviam entendido a missão, sua urgência e destino. Sua 94


Majestade acomodasse na pedra e leva seus pensamentos para uma conversa que tivera com o Coruja um pouco antes do alvorecer, quando os raios solares se preparavam para iluminar a floresta. Coruja – Meu respeitado soberano, sabes da última doença que vem vitimando milhares de humanos? Leão – Não, meu sábio amigo, que mal é esse? Nada ouvi até agora. Coruja – Dizem os pássaros, muitos deles, que a doença é transmitida pelo contato e, entrando pelos olhos, nariz e boca, ataca o sangue e se instala nos pulmões, levando a óbito os humanos mais velhos e os que possuem alguma morbidade prévia. Muitos já faleceram e todas as nações estão em quarentena. O Leão, acostumado com o palavreado rebuscado do Coruja, balança lateralmente a sua cabeça, passando a enorme pata esquerda por sobre a extensa e bem cuidada juba. Ele eleva os olhos para o alto, como se buscasse o entendimento nos céus, ainda escuros, daquilo que acabara de ouvir. Coruja – Pelo que ouvi, majestade, o caso é extremamente sério e exigirá algumas medidas 95


protetivas para assegurar a saúde dos habitantes do nosso Reino. Não seria de bom alvitre convocar o Conselho Florestal? Leão – Medidas protetivas? Assegurar a saúde? Convocar o Conselho? Mestre, poderia explicar o que significam essas palavras? O Coruja, após girar três vezes a cabeça, olha para o peludo felino e pensa que somente a força brutal e um histórico respeito mal explicado permitem que a condução dos destinos do Reino animal esteja nas mãos daquele brutamontes. Respira fundo. Coruja – Meu senhor, medidas protetivas são algumas ações em defesa do povo da floresta, não contra um inimigo visível como ocorre, vez por outra, contra reinos estrangeiros. São para defender a saúde de cada animal contra esse mal que parece ser invisível. Leão – Interessante, Mestre, e o que mais? Coruja - Ouvi falar de fechamento das fronteiras com outros reinos, de que as reuniões de grupos devem ser impedidas e que a circulação deve ser minimizada. Assim, convocar o Conselho é 96


imprescindível para que as medidas sejam erga omnes ... de alcance geral, para todos. Leão – Coruja, vou convocar uma reunião do Conselho. Por favor, converse com seus amigos alados para que voem pelas cidades dos humanos e nos tragam mais detalhes do que andam fazendo os reis de lá. Após essa conversa, o Leão isolou-se para refletir sobre o que ouvira e como deveria conduzir a reunião extraordinária, pois sabia que poderia ter votos contrários de alguns membros. Aliás, ele tinha certeza de que isso ocorreria, ao lembrar dos dois últimos encontros com os conselheiros. Assim, refletindo, ficou toda a manhã até pedir à lebre que chamasse os corvos. Naquela noite, a Lua resplandecia toda a sua exuberância prateada, iluminando a floresta como se tochas tivessem sido metricamente acesas, permitindo que detalhes da vida noturna fossem revelados aos olhos mais comuns da maioria dos animais. A própria Lua, como a se desnudar, mostrava figuras disformes e amorfas na sua superfície, como se também tivesse reunido seus entes para partilhar de tão importante assembleia. 97


Saindo do seu recanto, o Leão marcha para a Clareira Real, que pouco distava de onde ele se escondera. Olhando para cima, ele sente um agradável calor no corpo, um encantamento sob o lumiar lunar, e tem certeza de que tudo sairá bem ao final daquela plenária. Chegando ao local, o Leão encontra o Tigre, inquieto, movimentando seu corpanzil por um dos lados da Clareira. Do outro lado, a Girafa, absorta, realiza seu jantar, comendo, tranquilamente, algumas folhas de uma das árvores que circundavam o espaço naturalmente aberto. O Urso e a Zebra pareciam amigos de longa data, tal a fluência na comunicação entre eles. Um pouco afastadas, a Cobra e a Hiena observam, em silêncio, a chegada dos outros animais membros do Conselho e os observadores. Embora o encontro fosse obrigatório para os membros, a presença de outros animais não era vedada, mas sendo proibido que se manifestassem, ficando silenciadas durante os debates. Assim, vários outros animais não integrantes do Conselho compareceram para ouvir o que de tão importante poderia ser definido e mudar as rotinas e hábitos de todos. 98


O Leão cumprimenta a todos e diz que vai aguardar a verticalidade da Lua, no seu perigeu, para começar a sessão. Ele assume seu lugar empoleirado sobre o tronco de uma árvore que fora levada há muito tempo ao solo por um certeiro raio. De onde está, ele tem a visão privilegiada de todo o perímetro circular da clareira. Aos poucos, os membros restantes vão chegando. Um a um, cumprimentam, a seu modo, o Leão, que retribui com um meneio de cabeça. O PorcoEspinho, o Elefante, o Hipopótamo e o Macaco formam o último grupo no centro do vão da floresta. Vendo que todos chegaram, o Leão, num rugido, pede que assumam seus lugares designados, para que ele possa iniciar a reunião. Desde que assumira os destinos do Reino, ele definira que, a partir da sua direita, em ordem alfabética, deveriam posicionar-se os membros, em formato circular, como se estivessem sentados a uma távola redonda. Desta maneira, à direita do Leão, e seguindo o alfabeto, ele veria a Cobra, o Coruja, o Elefante, a Girafa, a Hiena, o Hipopótamo, o Macaco, o PorcoEspinho, o Tigre, o Urso e a Zebra fechando o círculo ao

99


seu lado esquerdo. Assim que todos assumem seus lugares, o Leão repara que o Coruja ainda não chegara. Preocupado com a ausência do mestre do Reino, o Leão, enquanto acompanha a chegada dos observadores, avalia como procederá sem a presença daquele que é o mais sábio de todos, e detinha as informações que ele pedira. Ansioso, desce do tronco e vai até o início da trilha, de onde esperava surgir o Coruja. Nesse momento, o Tigre solta um ronco, reclamando daquela espera por causa de um membro irresponsável, logo ele que havia sido o primeiro a chegar. O Leão somente olha pelo canto dos olhos e nada responde. Um murmurinho é ouvido por todos os presentes. Em respeito aos que deixaram seus afazeres e compareceram oportunamente, o Leão, calando os descontentes, decide começar os trabalhos, apesar da insegurança que sentia para deliberar sem a assistência do Coruja. Leão – Boa noite! Quero agradecer a presença de todos nesta reunião. Vou direto ao assunto. Todos sabem ou já ouviram sobre a existência de uma 100


pandemia que assola as cidades dos humanos, provocando inúmeras mortes entre eles. Observando a reações dos súditos, ele continua. Leão – Os reis das cidades estão, cada um a seu modo, impondo algumas medidas que devem ser observadas por todos. Dessa maneira, embora não tenhamos nenhuma vítima entre nós, quero, para o bem de todos, decretar aquelas providências mais usadas pelos humanos. Gostaria, agora, de ouvir, em ordem alfabética, os comentários de todos os membros. O Leão passeia os olhos pelos membros a partir da sua direita e tem, como resposta, um silêncio perturbador. Todos os conselheiros ficaram impassíveis. Esta postura perturbou o Rei, que esperava um amontoado de comentários de toda ordem. Enganara-se, tendo o mutismo como retorno. Durante alguns minutos, o Leão, desconcertado, procura apoio nos olhos da Girafa, do Elefante e do Hipopótamo, parceiros de longa data, que sempre votaram a seu favor. Mas, os três olhavam para o chão da clareira. Dirigiu seu olhar para esquerda, na

101


esperança do devido amparo vindo do Urso e da Zebra, mas eles olhavam para o esplendor da Lua. Com a insegurança crescente, ele vê que a Hiena tem um sorriso debochado no focinho e que a Cobra, toda enrolada em si, balança sua fina língua em repetidos volteios pela abertura da boca. Ao olhar para o Tigre, ele encontra um brilhante olhar desafiador. Não se ouve um ruído na floresta. Parece que todos os animais pressentem que o Leão não tem condições de conduzir aquela reunião, e que sairá enfraquecido perante os seus conhecidos opositores, particularmente, frente ao Tigre, que, por ser mais corpulento e agressivo, já manifestara a sua intenção de sentar-se no trono real. Tigre – Majestade precisamos de mais informações sobre essa suposta doença que, aparentemente, está ceifando vidas dos humanos. O que causou essa dita pandemia? Como ela se manifesta e quais são os riscos que o nosso Reino corre? Quais medidas de enfrentamento os reis dos humanos estão tomando?

102


Como o silêncio permanece, inclusive do próprio Leão, o Tigre aproveita o desconforto do Rei e prossegue roncando alto, olhando para os membros. Tigre – No meu entendimento, nosso soberano ouviu rumores e não verificou a veracidade. Ele está perdido e apressou-se em nos reunir para que nós indicássemos o que ele deveria decretar. Mostra, mais uma vez, que não está preparado para tomar grandes decisões em prol da felicidade e harmonia do Reino. Proponho um intervalo para que possamos trocar conhecimentos livremente uns com os outros. Um alarido de apoio foi ouvido, levando o Leão, a contragosto, decidir pelo intervalo. Ele permanece sentado sobre o tronco e vê os grupos se formando. Uma fria gota de suor escorre por sua fronte, em sintonia com o vazio no peito do monarca da floresta. A Hiena aproxima-se da Cobra e, com a cabeça, sugere ao Porco-Espinho que vá juntar-se a eles. O Elefante busca entendimento com a Zebra e o Urso, chamando o Hipopótamo para conversar. O Macaco, saltitando, percorre os pequenos grupos, tentando ouvir o que é tratado em cada um deles. A Girafa, tranquila, observa o ambiente, enquanto o confiante Tigre, isolado, contabiliza os votos que terá a seu favor. 103


Um corvo adentra a clareira e pousa ao lado do Leão, cochicha alguma coisa em seu ouvido, deixando o dirigente visivelmente nervoso. Balançando a peluda cabeça para cima e para baixo, o Leão vê o azarento pássaro decolar e dar um voo rasante por cima do grupo da Cobra, da Hiena e do Porco-Espinho. Ele franze a testa, mas não dá muita atenção ao que vira. Após algum tempo, o Tigre, roncando forte e agressivamente, diz que já é hora de recomeçar, dando a impressão de que assumira a condução da reunião. A petulante intromissão pegou o Rei da Floresta de surpresa - ele que estava a ponderar sobre a informação que acabara de receber pelo corvo. Contudo, ele reage. Urrando mais alto do que seu rival Tigre, o Leão conclama a todos para que, em silêncio, voltem aos seus lugares. Aguarda, impaciente, que a ordem seja cumprida e compartilha, em seguida, com os presentes, a notícia que recebera. Leão – Membros do Conselho, tomei ciência de que nosso Mestre Coruja sucumbiu no final desta tarde, vitimado por um tiro de arma de fogo, desferido por alguém nos arredores da cidade dos humanos, ao norte de nossa floresta. Estou profundamente 104


emocionado porque, além da perda de um amigo querido, importante membro deste Conselho, ele estava cumprindo missão que recebera de mim na parte da manhã. Decreto luto oficial, por três dias, em todo o nosso Reino. Tigre – Presumo que a morte do conselheiro Coruja deva ser creditada ao Rei, que, na sua incompetência, atribuiu uma missão suicida ao nobre sábio do nosso Reino. A Cobra, sibilando, rasteja até o centro da clareira, e dispara: – Não creio que o nosso Rei, abatido como está, tenha condições de conduzir, com parcimônia, uma questão tão delicada como essa suposta pandemia, que extirpa vidas humanas e poderá dizimar nosso Reino. Proponho que a reunião seja encerrada sem debates sobre o mérito causador do encontro. O Porco-Espinho, grunhindo, apoia o sibilar da Cobra, e se manifesta pelo encerramento da reunião. A Hiena, ululando, faz número em favor do término da assembleia, no que é apoiada pelos guinchos do Macaco.

105


Do lado esquerdo do Leão, ouve-se um relincho estridente e demorado. A Zebra diz que qualquer decisão deve ser proposta pelo Leão e que não concorda com o que recém ouvira de outros membros. Ao seu lado, o Urso, bramindo, junta-se a ela negando deliberar propostas que não venham do dirigente do encontro. O Leão, vendo que não estava sozinho, estufa o peito e, rugindo alto, resolve reassumir a condução dos debates. Leão – Agradeço os comentários e propostas. Mas, como uma urgente questão de ordem, eu gostaria de, por oportuno, propor que a mais frondosa árvore de nossa floresta, por todos conhecida, seja denominada, de hoje em diante, árvore “Mestre Coruja”, em homenagem ao amigo vitimado em cumprimento de importante missão. Diante da reação do felino reinante, os membros permaneceram silentes e imóveis, sendo a exceção pelos movimentos efetuados pela Girafa, que estendia seu enorme pescoço em direção ao centro da clareira, fazendo caretas com a boca aberta.

106


O Leão, entendendo que era apoio explícito, decreta que a sua moção tinha sido aprovada com um voto a favor, dez abstenções e nenhum contrário. O Tigre, ao tentar reclamar, é cortado pelo urro do Leão, que volta a discorrer sobre a pandemia e seus efeitos. Evidentemente, o Leão não sabia nada mais do que o Coruja, de maneira simples, havia informado na prosa daquela manhã. Contudo, ele entendia que bastava dizer que a doença era transmitida por contato físico, que atacava o sangue e terminava, gradativamente, retirando a capacidade respiratória dos doentes, que vinham a falecer. Assim o fez, urrando em alto e bom som. Os animais presentes murmuravam sons quase inaudíveis, e dos poucos que foram ouvidos pelo líder, nenhum foi considerado comentário pertinente e digno de ser lavrado no Livro de Registros pelo Coelho, feito secretário dessa reunião. O Rei prossegue com as informações que possui, relatando como os humanos, na maioria das cidades, estão evitando a proliferação da pandemia.

107


Leão – Basta, por ora, sabermos que a quarentena é a única maneira de evitar o contágio e as consequentes mortes no Reino. E o Soberano inventa, no momento, que os sintomas mais comuns nos animais são a perda gradativa do olfato, da visão, da força muscular e da dificuldade de respirar suficientemente, até a paralisação total da respiração. Tigre – Não aceito essa quarentena, pois preciso sair para caçar e alimentar-me adequadamente. Antecipo meu voto contrário. Cobra – Como ficar confinada? Meu alimento vai até a minha morada para ser consumido? Antecipo meu voto contra essa quarentena. Hiena – Também não vejo como concordar com o confinamento, pois vivo dos restos mortais dos animais e, estando todos confinados, como as carniças, normalmente disponíveis nas trilhas da florestas, serão acessadas? Não aceito. Leão – Tentem entender que temos de passar sacrifícios até que estejamos livres dessa doença, que está vindo dos humanos. Para que os animais possam continuar vivos terão que ficar restritos aos seus 108


habitats, evitando, a todo custo, a aglomeração em qualquer das trilhas da floresta. Diante da celeuma e das opiniões conflitantes, todos os animais passaram a proferir xingamentos e impropérios em seus sons naturais, visto que, há muito tempo, em reuniões gerais, era usado o “florestês” como idioma comum. Até mesmo o Leão já não tinha certeza se a quarentena seria adequada à sua espécie, caçadora por natureza. Os debates viraram discussões exaltadas, e logo se vê o Porco-Espinho preparando seus mortíferos ferrões para se atirar contra o Elefante que, por sua vez, já tinha lançado sua enorme tromba para cima de alguns exaltados. O Tigre já se preparava para abocanhar o liso e apetitoso pescoço da Zebra, que tentava esconder-se por detrás do Urso que, nesse momento, estava ereto sobre as patas traseiras. A Cobra havia se enrolado no corpo do Macaco, que guinchava sofregamente pedindo socorro. O urro forte do Leão interrompe a peleia iniciada, e todos olham na direção do Leão, sentado no

109


enorme tronco caído, outrora frondosa e centenária árvore da floresta. Leão – Meu povo! Parem todos já com isso! Não adianta nos atacarmos e nos destruirmos antes que a doença o faça. Parem de brigar. Estamos todos no mesmo barco, e onde todos gritam e brigam ninguém tem razão. Vamos ouvir o que a nossa conselheira Girafa tem a nos dizer. Todos olham para a Girafa que, enfim, parecia ter resolvido seu problema de engasgo com uma folha mais seca e bichada. Ela esboça um sorriso e emite sua opinião, que soa como um zumbido por um longo tempo. Contudo, o som era tão baixo que ninguém conseguiu entender. O Leão pede ao Elefante que, por possuir grandes orelhas, estar ao lado e gozar de ótima estatura, tente ouvir a opinião ponderada da conselheira pescoçuda. O Elefante ouve uma vez, outra e mais outra vez. Desistindo, informa ao Rei que, possivelmente, a frequência emitida pela voz da Girafa devia ser muito abaixo daquela que ele poderia ouvir e entender.

110


O Rei da Floresta não sabe o que fazer, pois o impasse estava estabelecido, os ânimos exaltados, e a única solução proposta tinha sido, maciçamente, rejeitada. O Coelho pede licença para falar, embora não o pudesse por não ser membro efetivo do Conselho Florestal. Diante do quadro caótico daquele encontro, o Leão, abrindo exceção nunca dantes permitida, dá a palavra ao Coelho. Coelho – Meu soberano, gostaria de dizer que, usando minha excelente audição, ouvi e entendi o comentário da nobre conselheira Girafa. A Girafa, balançando afirmativamente a cabeça, mostra todos os dentes e emite um zumbido parecendo de aprovação. Leão – Coelho, diga logo o que ouviu. É uma opinião sensata, aglutinadora, inteligente? Diga logo, meu caro comedor de cenouras! Coelho – A nobre Girafa tentava explicar que ela é a favor da quarentena, pois não lhe faltarão alimentos durante o período de isolamento. Após essa fala, e após breve silêncio, infelizmente todos os animais retomam as ações hostis que haviam iniciado antes do rugido do Leão. Este já 111


saltara para frente do Tigre e preparava seu ataque em defesa da Zebra. Tinha ao seu lado o Hipopótamo e o Urso. Até os outros animais, expectadores, já brigavam entre si. Uma ruidosa revoada é ouvida e vários pássaros adentram o círculo da Clareira Real, tendo, entre eles, a figura impoluta do Coruja. Alguns animais arregalaram os olhos. Aqueles que estavam quase se matando, pensaram até que já tinham morrido e estavam vendo o espírito do Mestre. Que grande susto! Todos os brigões paralisaram seus ataques enquanto observavam, incrédulos, o aparecimento de um ser declarado e homenageado como de cujus, ou seja, falecido. Sem saber o que estava se passando nas mentes dos animais, e o que significavam os olhares incrédulos de todos, o Coruja pousa, solenemente, no grande tronco caído, onde estava o felino reinante. O Rei da Floresta, ainda se recuperando do choque, salta e abraça, carinhosamente, o sábio amigo. Refeito da sincera emoção, ele ruge com satisfação.

112


Neste momento, o felino observa o ar de desapontamento nas faces aborrecidas da Cobra, da Hiena e do Porco-Espinho. Ele entende, então, que o corvo mentira sobre a morte do sábio com a intenção maldosa de deixá-lo inseguro, e não ter, assim, o sucesso planejado da reunião. Ele agradece ao Coruja com um novo e vibrante abraço. Leão – Mestre Coruja, pensávamos que não mais o veríamos entre nós. Estamos imensamente felizes com seu retorno. Diga-nos: o que ouviu dos humanos? Sem entender as palavras do soberano, o Coruja sacode o corpo como se estivesse arrumando as penas, olha para os curiosos animais e crocita o que soubera. Coruja – Meu estimado Rei e amigos da floresta, os humanos descobriram que nenhum animal, selvagem ou doméstico, é infectado por esse novo vírus. Somente os humanos são atingidos por ele. Nós somos imunes ao vírus. Alegria geral com todos se abraçando e dando vivas. O Leão, imediatamente, decreta sua mais nova medida real: DECRETO REAL 113


Na qualidade de Soberano Único da Floresta, em toda a sua extensão de selva e savanas associadas, e amparado no Estatuto Real, o Rei Leão decreta: Artigo Primeiro – Suspenda-se, imediatamente, o luto recém instaurado por restar imotivado. Artigo Segundo – O Reino deverá celebrar, por três dias, em livre manifestação por espécie, a alegria e a valorização da Vida. CUMPRA-SE!

114


Alguns, por demais ousados, dos alertas, transgressores, acabam contaminados, e pior... sĂŁo transmissores!

115



CANTO DA QUARENTENA Jota Carino Sou um canário. Daqui, de meu poleiro, vejo o mundo. Um mundo pequeno, mas muito interessante. Minha gaiola, dependurada na parede da varanda me deixa observar os passantes. A casa onde moro com meus donos hoje em dia é ladeada por muitos prédios, alguns baixos, mais antigos, outros novos e muito altos, com a imensa estrutura cobrindo grande parte dos raios do sol, que tanto me agradam, sobretudo nas manhãs de primavera inundadas de luz. Já não há muitas casas, na rua, no bairro, e acho que no mundo. Falam que uma tal “especulação imobiliária” é a responsável. Não sei bem quem ela é, mas deve ser terrível. Gosto de olhar a rua, virando meus olhinhos brilhantes em todas as direções, enquanto pulo de um lado para outro neste meu mundinho gradeado. E vejo gente muito interessante: o camarada engravatado que espera impaciente seu carro de aplicativo; a babá que empurra o carrinho do bebê, dividindo sua atenção entre a criança e a música que deve arruinar seus 117


ouvidos, tocando tão alta que chega a ferir meus ouvidinhos sensíveis. Outro que observo é o homem do correio, portador, hoje em dia, dizem, só de contas a pagar e jamais de cartas de amor e paixão, trocadas pelas mensagens eletrônicas curtas, que parecem transportar somente informações funcionais e raramente comunicações entre pessoas humanas. Há também gente que passeia cães. Às vezes, invejo esses amigos de quatro patas, porque têm mais liberdade que eu para andar por aí, embora, na maioria dos casos seja uma liberdade limitada pelo comprimento da guia com que o levam. Gosto muito de ver o faxineiro de um prédio vizinho. Ele é como eu: trabalha cantado. O lixo e a música estão por certo nos extremos das preferências de toda a gente: um é o rejeito, cujo descarte, embora necessário, sempre provoca repugnância, por seu aspecto e seu cheiro. Já a música agrada a praticamente todos. Música é o sublime em forma de melodias, e harmonias, ritmo. Música eleva a alma, encanta o espírito, mexe com os sentimentos e ajuda a enfrentar dificuldades, ou simplesmente é uma ótima distração. Desculpem eu falar de música, mas, 118


modestamente, esta é minha praia, com meu pobre mas sincero canto. Orgulha-me ser um pássaro cantor. Gosto do faxineiro porque consegue unir música e lixo, cantando enquanto lida com esses descartes naturais das pessoas e da sociedade, porém rejeitado por todos. Esse trabalhador-artista canta, talvez, para esquecer seus males, com isso beneficiando a todos que têm ouvidos para realmente escutar. Há muito outros tipos que observo aqui desta minha gaiola. A diversidade e a riqueza da natureza humana impressiona até um passarinho. Mas, deixeme falar de mim e de meus donos. Nasci num lugar de verdes abundantes, águas fartas e límpidas. Ainda lembro o que era acordar com o sol e, de tanta felicidade, soltar trinados, enquanto o vento eriçava minhas penas. A amplidão do céu, a extensão das matas, os cheiros das flores silvestres, os voos por entre os grossos pingos de chuva... ah, que saudade. Um dia, em pleno voo para fugir de um predador, sofri um acidente e minha asinha machucada não me permitiu mais alçar voos direito.

119


Condenado, provavelmente, a morrer, fui encontrado por um casal simpático que estava num hotel-fazenda e passeava pelas redondezas. Seu Hugo e Dona Lalá, que já amavam os animais, e tinham preocupações ecológicas naquela época, me recolheram, adotaram e, desde então, faço parte da vida deles e de toda a família, formada agora por quatro filhos e seis netos, sendo que um bisneto está a caminho. Infelizmente, não houve jeito de curar minha asinha e me devolver à natureza, como era o propósito deles. Então, passei a morar nesta casa. E tenho que ser mantido na gaiola, para minha proteção. Ganhei, então, um nome, que eu amo: Douradinho. Envelhecemos todos, a casa, eu, Seu Hugo, Dona Lalá, os filhos os netos. Sempre fui tratado com muito carinho neste lar, uma casa sempre cheia com os integrantes da família, parentes e amigos. Minha gaiola vai sendo dependurada em vários lugares da casa, o que me faz ser parte e observar a movimentação.

120


Já estou acostumadíssimo a, bem cedinho, ser tratado por meu benfeitor, a que dedico meus primeiros trinados da manhã. Agora, lamentavelmente, nossa amada casa está silenciosa, e a rua também. É mínimo o movimento das pessoas, que eu gosto tanto de ver. A cidade talvez esteja igualmente vazia. Falam de um tal coronavírus, mortal e muito contagioso, que está obrigando todo mundo a ficar fechado em casa, sobretudo as pessoas que passaram dos 60 anos, caso do meus donos, que já ultrapassaram de muito essa idade. Cuidados à distância pelos filhos e os netos, Seu Hugo e Dona Lalá estão seguindo à risca os cuidados estabelecidos para reduzir os danos que estão sendo causados por essa grave pandemia. E o primeiro deles é: não sair de casa, salvo por absoluta necessidade. Fico condoído quando Seu Hugo, depois de pendurar minha gaiolinha, senta-se na varanda, sei eu que triste por não poder dar seu pequeno passeio nas redondezas, encontrar uns amigos e voltar trazendo o pão quentinho para tomar café com sua amada companheira de toda a sua longa vida, Dona Lalá. 121


Dói mais ainda quando, sentados na varanda, eles reclamam por não poder receber a visitas e os beijos e abraços de seus filhos, netos, embora as imagenzinhas de celulares e a voz alegre deles lhes chegue várias vezes ao dia. Então, vejo grande tristeza em seus olhos. Mas não pense você, caro leitor, que está lendo este improvável relato, já longo, de um improvável passarinho escrevinhador, que Dona Lalá e Seu Hugo sejam dois velhinhos depressivos, desanimados e desesperançados. Nada disso. São confiantes de que, como tudo nesta vida, a crise vai passar, e a felicidade inundará as cidades, as ruas, as casas, como se o mundo acordasse de um pesadelo. A fé e a confiança dos meus benfeitores me animam e me fazem retribuir tudo o que fizeram por mim. Fico feliz de ter minha quarentena eterna, na gaiola, inserida na “gaiola” necessária da quarentena desses meus benfeitores tão queridos. E faço o que posso: saltito alegremente em minha gaiolinha, agradeço aos céus e canto, canto, canto. Nos dias terríveis pelos quais passamos, meu trinado talvez signifique:

122


“Xô, Corona Vírus!”

123



Lave bem a sua mão para a Covid espantar: bastante água e sabão pode, a vida, lhe salvar.

125



O NOTEBOOK E O CORONAVÍRUS Flavio Chame Barreto O isolamento social imposto pelo governo para reduzir a velocidade de contaminação da pandemia já estava na sua quarta semana. Um mês de clausura para aquele casal de idosos já começava a expor uma faceta de estresse e impaciência, o que é, inclusive, algo bem comum nestes casos. Ela tornara-se ainda mais obcecada por limpeza e higienização; ele buscava coisas para consertar, que se acumularam com o tempo, antes da reclusão forçada pela pandemia, por causa da preguiça de fazêlas imediatamente. Os contatos com o mundo lá fora se resumiam ao telefone e também ao celular e ao notebook que os conectavam com a vida real. Por meio destes equipamentos eles compravam, conversavam com amigos, liam informações e navegavam por horas a fio nas redes sociais, sem se exporem à contaminação viral. Naquele momento tinham tanto medo do novo coronavírus quanto de um vírus de computador que detonasse a Internet e os desconectasse do mundo, 127


excluindo o que a televisão escolhesse mostrar aos seus espectadores. A rotina dos dois aposentados era imutável. Ela, com os afazeres diários da casa e a preocupação adicional com a higienização; ele, com os reparos que deixara por fazer, acumulados na residência. Depois, ambos mergulhavam nos seus notebooks para viajarem pelo mundo a fora. Entre uma atividade e outra, conversavam sobre amenidades, relembravam bons momentos, passagens pitorescas e, obviamente, em algum instante, implicavam um com outro por qualquer motivo banal. Porém, quase sempre essa divergência durava no máximo uns cinco minutos. Aliás, isso era uma marca registrada daquele casal que completava, naquele ano, quarenta anos de casados. - Você se lembra do dia em que a nossa empregada “higienizou” o termômetro que aferia a temperatura da água do banho do nosso filho, quando ele era bebê? – rememorou a idosa. - Como esquecer isso? Você perturbou tanto a coitada, dizendo que ela tinha que ferver tudo que o nosso filho usasse, que ela acabou botando o 128


termômetro na água fervente, depois de usá-lo na banheirinha – comentou o velhinho. Eu nunca vou esquecer a cara de espanto dela quando viu o termômetro explodir na panela junto com as chupetas, mamadeiras e chuquinhas. E a velhinha completou, às gargalhadas, imitando a fala da serviçal: Não sei o que houve com barquinho que mede a temperatura da banheira do neném. De repente, do nada, ele fez puff! dentro da panela. As risadas ecoavam na sala, quando o interfone tocou. E ele atendeu e depois disse: O porteiro interfonou dizendo que chegou a minha encomenda. Vou lá pegá-la na portaria. Bota a máscara – recomendou a esposa quando o marido já ia saindo da sala. Enquanto, ele foi buscar o seu embrulho, a velhinha ligou o notebook dela. Queria pegar uma receita de um bolo na Internet.

129


Pela primeira vez o idoso e o porteiro ficaram frente a frente por apenas alguns segundos, e quase não se falaram. Com aquele embrulho entre eles demarcando uma distância segura, e também a máscara, como se fosse uma mordaça, mostraram que inexistia clima para uma conversa mais longa e descontraída. Algo raro, já que normalmente o papo entre os dois era sempre alegre e bem mais duradouro. A pandemia rapidamente impôs comportamentos estranhos e hábitos inimagináveis até pouco tempo atrás – pensou o idoso enquanto retornava para sua casa. Ao chegar, deixou o pacote na porta da entrada, pois precisaria abri-lo exatamente ali, com assepsia semelhante à que é feita em um hospital antes de quaisquer cirurgias. O local foi delimitado por sua esposa com linhas feitas com fitas adesivas coloridas coladas no chão, e era chamado por ela de “área de segurança”. Coitado daquele que entrasse com embrulhos ou sacolas e não os deixasse ali para serem previamente higienizados com álcool em gel. Sapatos, bolsas e outros apetrechos também não passavam 130


livremente por aquela região alfandegária viral, monitorada rigidamente pela velhinha. O idoso cumpriu o ritual. Deixou o embrulho, o chinelo e a máscara no quadrilátero higienizador das coisas que vinham da rua e finalmente entrou na sala. Foi quando viu o notebook ligado e ocioso sobre a mesa. Sentou-se. Pensou em navegar um pouco por sua rede social, já que o computador de sua amada estava ali, ligado e sem ninguém usá-lo. Mal tocou na primeira tecla e a voz estrondosa da esposa soou atrás dele: - Para!!! Você não lavou as mãos com sabão e nem passou álcool em gel. Você quer contaminar meu notebook? O velhinho ficou estático com o susto. - Sai daí agora e vai lavar as mãos! – o tom enérgico da voz da velhinha mostrou que a ordem não era para ser refutada em hipótese alguma. Obedeceu cabisbaixo e em absoluto silêncio.

131


Em seguida, a rotina de higienização com álcool em gel começou. Só que dessa vez o alvo era o notebook. Uma generosa dose do líquido foi derramada no teclado enquanto ela com luvas e um pano distribuía, por todos os cantinhos e teclas da máquina ainda ligada, aquela solução higienizadora. Enquanto o álcool penetrava por todas as entranhas do notebook, sua tela foi gradativamente perdendo o brilho, até que ele “morreu”. Mais uma vítima indireta da pandemia. O velhinho olhava por trás da esposa que, sentada, tentava ressuscitar a máquina, sem sucesso. Até que não se conteve e exclamou: - Realmente esse tal de coronavírus é bastante mortal. Ambos se olharam e as gargalhadas foram inevitáveis, assim como os abraços carinhosos que se seguiram. Sobre a mesa, o finado notebook foi fechado pelos velhinhos e nem chegou a ser velado antes de ser descartado por ela no fundo de um armário.

132


- Realmente o coronavírus é mortal – repetiu a velhinha enquanto fechava a porta do móvel, às gargalhadas.

133



Beijos, então, nem pensar: a saliva traz doença! Quando esse vírus passar, você tira a “diferença”!

135



A VIDA E AS VIDAS DE UMA MÁSCARA Jota Carino Olá! Sou uma máscara. Tenho vivido bastante durante minha longa existência. Ah, quantas aventuras! Aqui estou, depois de tantas peripécias, em total evidência. Eis algumas de minhas vidas passadas. Fui máscara de um assaltante de trem, daqueles que aparecem em filmes de faroeste. No momento trepidante da corrida ao lado do trem, protegi meu dono da penetrante poeira das pradarias. Na hora do assalto, escondi-lhe o rosto para tentar evitar que aparecesse depois nos cartazes de “Procura-se!”. Fui máscara no século XVI. Sim, há tantos séculos. Era máscara de uma linda dama da nobreza, em Veneza, então a mais rica cidade do mundo, do luxo inigualável e dos mecenas que financiaram alguns dos artistas geniais em pintura, escultura, arquitetura. Ainda hoje se podem ver, nessa cidade cortada por canais, as gôndolas, aqueles barcos típicos, que naveguem em meio a uma arquitetura ímpar. Eu era então uma máscara belíssima, cheia de arabescos feitos em fios de ouro. Minha dona me usava nos bailes 137


da corte, animadíssimos, que aconteciam em palácios suntuosos. De amores secretos, traições, intrigas e segredos, prefiro não falar... Fui a máscara de ferro de um cavaleiro medieval, no tempo das Cruzadas, em grandes batalhas, carnificinas promovidas em nome da fé. Com meu peso, meu dono sofria para equilibrar-se em cima do cavalo ou nas lutas mortais sobre pontes levadiças. Quantas pancadas levei nas tentativas de transpor fossos e escalar muralhas! Mas, inúmeras vezes, salvei a vida de meu dono. Fui a máscara de heróis do combate ao crime, desde os tempos dos gibis. Usada pelo Fantasma Voador, escondia a verdadeira identidade desse herói. Eu, Capeta, seu lobo treinado como um cão, e Herói, seu cavalo, participamos de todas as aventuras e dos encontros com os amigos pigmeus. Acho que éramos até mais próximos de suas aventuras que sua bela namorada, Diana Palmer... Eu ficava grudada no seu rosto mesmo quando flechas envenenadas, de inimigos dos pigmeus, passavam zunindo perto de sua cabeça. Agora, com os super-heróis do cinema, em muitas franquias, nós, as máscaras, começamos a ficar ainda mais famosas, presas nos rostos desses 138


modernos justiceiros e valentes defensores da verdade e da justiça. Numa de minhas vidas mais recentes, fui a máscara, nada mais nada menos, que do Homem de Ferro. Nesses tempos high tech, tenho movimento articulado automático e iluminação. Minhas reproduções, em bonecos destinados às crianças – e a uma legião de colecionadores jovens e adultos – são perfeitas. Orgulho-me de ajudar, com esses bonecos, a construir a imaginação desses fãs, fazendo-os viajar nos sonhos de incríveis aventuras. E ganhei uma vida virtual também, graças aos chamados efeitos visuais usados nos filmes e nos videogames. Coisa, afinal, parecida, ao que acontecia, no passado, com os hoje avós e seus gibis, não é mesmo? Vivi muitas outras vidas, mas mencioná-las, com suas características e peculiaridades, iria alongar demais este relato. Por isso, vou passar logo à vida que vivo hoje – que muito me orgulha. Nos dias de hoje, estou na linha de frente de uma grande guerra, seguramente uma das maiores que a humanidade já enfrentou. Participo da luta contra um inimigo poderoso, insinuante, capaz de se transformar rapidamente, surpreendendo seus adversários com nova faceta. É um guerreiro rápido e altamente letal, que acaba se utilizando das capacidades daqueles a 139


quem ataca, pondo-as a serviço de si mesmo, de seu poder altamente destruidor. Minha vida e missão de agora são altamente enobrecedoras, e me enchem de orgulho. Pertenço a uma moça morena clara, de cabelos castanho-escuros sempre presos por conta de seu tipo de trabalho e para facilitar minha fixação. Minha dona é médica intensivista. Bonita, magrinha, aparentemente frágil, essa doutora é cheia de energia e determinação. A prudência para protegerse não afeta a coragem com que enfrenta as dificuldades, vive os dramas e age pronta e eficazmente ao fazer seu trabalho, quase sempre todo realizado num Centro de Tratamento Intensivo. O ambiente de um CTI não é para qualquer um. Mesmo os médicos mais experientes muitas vezes fraquejam. Lutar contra a iminência permanente de morte é algo arrasador, para o corpo, o coração e a alma, mesmo desses admiráveis profissionais. Raros são os que não se abalam quando a morte sobrevém. E mesmo nas situações em que a luta parece irremediavelmente perdida, os médicos, enfermeiros e toda a equipe que atua num CTI se desdobram para que o provável, cientificamente, não aconteça. 140


Quando entro no CTI com minha dona, sinto a tensão no ar; percebo a mudança na respiração dela, e chego a sentir seu suor em mim. Mas o seu foco é permanente; a atenção, plena. Qualquer descuido pode significar sofrimento ou desconforto para os pacientes. Há momentos, poucos e muito humanos, em que minha dona para um pouquinho e, mesmo estando alerta, conversa um pouco, em voz baixa, com colegas. Nessas horas, alguns reclamam das condições de trabalho, da falta de equipamentos de proteção adequada para os próprios profissionais, do excessivo número de horas trabalhadas, de não poder estar em casa com a família... Com essa pandemia espalhada pelo mundo, fico imaginando a labuta incansável de tantos profissionais em todos os países, batalhando, dia e noite para dar assistência e conforto a doentes em tantos Centros de Tratamento Intensivo. Esses sim, são heróis de verdade, lutando para preservar o bem mais precioso – a vida. Olho agora em volta, no CTI, e vejo tantas coirmãs, as outras máscaras, em tantos rostos, usadas como proteção da equipe. Vejo então como é sublime 141


esta minha vida atual, nessa minha longa vida de ser máscara. E aí, sinto orgulho misturado com agradecimento. Opa! Um alarme tocou. Minha dona e outros colegas vão correr para assistir um paciente grave. Grato por você ter lido esses relatos de minha vida. Ah, e não se esqueça de, como recomendado, tomar todas as precauções, permanecer em casa, higienizar-se após tocar em qualquer coisa e, claro, usar-me, eu que sou a sua... máscara.

142


Complemento essencial, a máscara é proteção, barra os vírus do local de entrarem no seu pulmão!

143



UM BATER DE ASAS E GRANDES ENSINAMENTOS Flavio Chame Barreto A simples batida de asas de uma pequena borboleta no extremo oriente pode alterar o curso natural das coisas e talvez provocar um tufão no outro lado do mundo? Provavelmente, a primeira resposta da maioria das pessoas seria um sonoro NÃO. Então, vamos melhorar um pouco mais essa pergunta com uma indagação bem mais provocativa em direção à reflexão. Uma simples e microscópica fita de ácido ribonucleico (RNA), transvestida de vírus e liberada no ar de uma cidadezinha no extremo oriente pode alterar o curso natural das coisas e talvez provocar um tufão na economia mundial? Acredito que, agora, a resposta da maioria das pessoas soaria bem diferente. Afinal, a atual pandemia provocada pelo novo coronavírus mostrou que essa

145


suposta possibilidade é uma realidade bem clara e pertinente. Da mesma forma, o famoso “efeito borboleta”, descrito disfarçadamente na primeira pergunta e defendido pela primeira vez em 1963 por Edward Norton Lorenz, possivelmente, também afirmaria que sim. Naquela época, esse conceituado meteorologista e matemático norte- americano, ao construir um modelo matemático para prever como o ar se desloca na atmosfera, concluiu que variações insignificantes e praticamente desprezíveis nos valores iniciais das variáveis levavam a resultados finais muito divergentes e até inesperados. Essa sensibilidade às circunstâncias iniciais passou a ser conhecida como “efeito borboleta” e, segundo os teóricos que defendem esse pensamento, ele encontra aplicações em quaisquer áreas das ciências. Contudo, no quesito imprevisibilidade o atual “efeito coronavírus” se mostrou bem mais abrangente nos resultados finais do que o próprio “efeito borboleta” poderia propor. Afinal, o novo vírus impôs 146


novos e até indesejáveis caminhos em várias áreas, além das próprias de seus domínios, como a Medicina e a Biologia. Isto porque provocou e incluiu nas suas resultantes aspectos inerentes à Psicologia, à Sociologia e mesmo à Economia. No caso desta última, até uma pretensa exatidão em suas rotineiras previsibilidades matemáticas hoje está sendo facilmente abalada pelas ações inesperadas desta desprezível variável microscópica chamada coronavírus. Assim como o “efeito borboleta”, o que agora poderíamos até chamar de “efeito coronavírus” mostrou que ele se concretiza mais intensamente quando ocorre dentro de sistemas bem dinâmicos e bastante complexos. Como, por exemplo, nos sistemas naturais, nos biológicos e, quem sabe, até naqueles que tentam equilibrar em vão as múltiplas relações humanas, incluindo nestas os vários aspectos sociais, políticos, culturais e econômicos. Curiosamente, há mais de vinte anos, mais precisamente em 19 de fevereiro de 1998, os dados computacionais resultantes do sistema de previsão de tempestades tropicais dos Estados Unidos previram a formação de uma tempestade sobre o estado da Louisiana em três dias. 147


Contudo, um meteorologista da agência percebeu que havia uma ínfima discrepância nas medições executadas, mostrando uma pequena diferença no deslocamento das massas de ar em velocidade um pouco maior na região do Alasca. Em função dessa diferença mínima, houve uma realimentação de dados nos computadores que então previram que a formação da tempestade sobre a Louisiana não mais ocorreria. Porém, por outro lado, haveria a formação de um tornado de proporções gigantescas no centro do estado da Flórida, distante mais de 1.200 km do ponto definido para a tempestade na primeira previsão. Realmente, três dias depois, em 22 de fevereiro de 1998, um forte furacão atingiu a cidade de Orlando, na região central da Flórida. Ou seja, uma pequena alteração, de uma única variável, modificou totalmente o resultado final. Nascendo aí mais uma didática explicação para o “efeito borboleta”, sem os salamaleques e explicações dos cálculos do modelo matemático construído 35 anos antes por Edward Norton Lorenz.

148


Da mesma forma, podemos fazer uma íntima analogia desta explicação com o que está acontecendo atualmente no mundo. Afinal, países distantes milhares de quilômetros do início da contaminação pelo coronavírus, ao ignorarem pequenas variáveis, como as disseminações das pequenas massas de ar contaminante, logo no começo, em seus ambientes fechados, permitiram que alterações significativas mudassem drasticamente o curso da pandemia em seus territórios. Os resultados das curvas de contaminação, com a implantação precoce ou mais rígida do isolamento social feita em alguns locais, ao serem comparados com a aplicação mais tardia em outras localidades, comprovam cotidianamente essa verdade, independente do problema econômico que ambas acarretam. Um único vírus, após contaminar um humano, na China, rapidamente gerou um caos na humanidade inteira. Quebrou a economia mundial. E todos os efeitos provocados por essa microscópica partícula, oriunda do outro lado do mundo, chegou até nós de forma devastadora em um período curtíssimo de tempo, quase instantâneo. 149


Porém, outros efeitos imprevisíveis também foram trazidos por essa ínfima porção viral, que desnuda diariamente a imensa fragilidade humana em todas as suas dimensões. Afinal, a desproporção entre o tamanho da fita de RNA viral e o corpo de um homem mostrou que também é diretamente proporcional à prepotência de entendermos ou até controlarmos o curso de inúmeros eventos presentes na natureza. Uma fita simples de RNA viral subjugou e surpreendeu alguns bilhões de conjuntos de DNA humanos inserindo, no ambiente exclusivo deles, fatores inesperados e que jamais imaginaríamos, até então. Um simples vírus mostrou-nos como somos vulneráveis, frágeis, que não estamos no controle de nada, e que um simples bater de asas de uma borboleta ou de um mero morcego distante milhares de quilômetros de nós pode mudar de forma irreversível nossas vidas e até as nossas mais fortes convicções.

150


Enfim, grandes ensinamentos estão sendo ministrados gratuitamente para todos, mesmo com todas as escolas fechadas. Uma aula também imprevisível, porém bem didática e esclarecedora.

151


152


Para falar com amigos, telefone é a solução: você evita perigos e combate a solidão.

153



AVÓS: DA CAVERNA À QUARENTENA Jota Carino Nossos ancestrais mais remotos na linha da evolução da espécie, os hominídeos, são denominados vulgarmente os “homens das cavernas”. E são chamados assim por causa dos abrigos naturais em que viviam. Eram fragilíssimos fisicamente, se comparados aos seres de outras espécies concorrentes na luta pela sobrevivência, animais fortíssimos, com capacidades predatórias eficientíssimas, tornando a perpetuação da espécie um desafio descomunal para os futuros animais humanos. Mas estes acabaram levando vantagem, tornando-se a espécie mais bem adaptada dentre todas, mercê das transformações evolutivas e adaptativas, sobre as quais o genial Charles Darwin construiu sua teoria da evolução, majoritariamente aceita - desde que a argumentação seja fundada nos princípios da Ciência. Mas, prezado leitor, falar dessas teorias não é meu objetivo, mesmo porque me faltam, para tal, os conhecimentos dos paleontólogos, esses admiráveis

155


estudiosos das formas de vida desde priscas eras, em remotos períodos geológicos. Meu objetivo é chegar à caverna, mencionada no título deste texto. Mas, calma, caro leitor. Também não possuo conhecimentos reservados aos espeleólogos, outros admiráveis pesquisadores e cientistas dedicados aos estudos de cavidades naturais, como cavernas e grutas. Aliás, simplesmente me arrepia, para não dizer amedronta, a companhia de morcegos, aranhas e outras criaturas, no interior de uma dessas cavidades naturais, mesmo daquelas que revelam em suas entranhas, além de estalactites e estalagmites, lagos de água límpida, transparente e da cor de verdes turmalinas. Como resultado da evolução, o animal humano desenvolveu habilidades e qualidades que lhe deram, inclusive e especialmente, a vantagem-mor da autoconsciência, traduzida em razão, inteligência, essas capacidades que surgiram e se desenvolveram como armas para garantir, fisicamente, a perpetuação da espécie, na procriação, bem como outras capacidades, sociais, mentais, espirituais, artísticas. Como primeiras manifestações destas últimas, temos, por exemplo, a chamada arte rupestre, que é como são

156


denominados os desenhos encontrados nas paredes das... cavernas. Ora, paciente leitor, cá estou eu, agora chegando às cavernas de que desejo tratar. Imaginemos uma família de hominídeos. Sexo feminino, sexo masculino e sua prole. Com o desenvolvimento da inteligência de nossos ancestrais, no caminho evolutivo que os levaria a se transformarem no homo sapiens, surgiu-lhes na consciência, talvez ainda pálida e em formação, a necessidade de se abrigarem das intempéries e, principalmente, a de ter um lugar para estar fora do alcance dos predadores. Mas, coroando essas necessidades, estava outra existente em todos os seres vivos, dos protozoários aos seres humanos: garantir a perpetuação da espécie, já mencionada acima. Quando os nômades coletores cederam lugar aos seres rudimentarmente plantadores e cultivadores, ou seja, passaram a fixar-se à terra, surgindo a agricultura, uma outra necessidade se impôs: a da divisão natural do trabalho, ou seja, a divisão das atividades entre os gêneros feminino e masculino, de acordo com diferenças biológicas e fisiológicas entre essas duas modalidades de seres humanos. 157


Sei perfeitamente que existem eternas discussões sobre tais diferenças, e não é objetivo deste modesto texto discuti-las, já que isso é da alçada de antropólogos, sociólogos e outros estudiosos especializados nessa questão, mais do que oportuna, reconheço, nos tempos de hoje, nos quais, felizmente, multiplicam-se as conquistas femininas por seu mais do que justo direito à igualdade com os homens. Mas voltemos aos primórdios da divisão do trabalho. Nesta, cabiam aos homens as competências apoiadas no vigor físico, enquanto às mulheres eram reservadas as tarefas igualmente exaustivas, mas sobretudo garantidoras dos cuidados com o espaço em que a família nuclear vivesse. Naqueles primórdios, tal lugar era a caverna. Não necessariamente a formação rochosa como tal, mas quaisquer lugares minimamente seguros para o abrigo. Porém, para esta nossa conversa, mantenhamos nossa simbologia da caverna. Também já cabia às mulheres a função natural mais importante de todas, em termos da perpetuação da espécie: a procriação. Além de conceber, parir e alimentar, era ainda da mulher o papel feminino importantíssimo de cuidar da prole.

158


Esse “cuidar” tinha sentido amplo, incluindo o de educar, também em sentido ampliado, excluindo-se o de instruir nas práticas da caça e das lutas, funções atribuídas aos homens. Esse cuidado, de incumbência das fêmeas do animal humano, com certeza era exercido na caverna ou nas proximidades dela. Daí nasce aquela capacidade feminina de, a todo custo, defender sua prole, pois, com certeza, a fêmea humana se transformava numa guerreira terrível quando predadores se aproximavam da caverna. Aliás, não há nenhuma novidade nisso, não é, prezadas leitoras? Mas voltemos às situações de normalidade nesse dia-a-dia de nossos ancestrais. Com tantas dificuldades a enfrentar, não é preciso nem recorrer às pesquisas antropológicas para ter a certeza de que os hominídeos tinham vida curta, infinitamente mais curta do que chamamos hoje “velhice”, uma vida alongada mercê das condições de vida que foram sendo alcançadas no decorrer do processo civilizatório. Mas, o que será que acontecia com as “velhas” e “velhos” dessas famílias, especialmente com os machos, quando suas forças já fraquejavam, quando a 159


inevitável condição do envelhecimento os obrigava a reinventar suas atividades? Acresce que os homens, assim como as mulheres, envelhecidos, também careciam de proteger-se, visto que estariam praticamente desprotegidos diante de predadores, além de não poderem prover a própria alimentação. Voltemos, então, ao ambiente relativamente seguro da caverna, onde agora se viam também idosas e idosos. Elas continuavam naturalmente sua missão de cuidar da prole, além de ajudarem nos afazeres domésticos, beneficiando-se, também em termos de sua própria proteção. Você, atento leitor ou leitora, já adivinhou que aí surgiram as figuras da avó e do avô. O hominídeo avô substituiu suas atividades de caça ou guerreira por um papel de indireto educador dos netos. E provavelmente terá sido ele, ou a vovó, o pintor rupestre... Pois é, pacientes leitora e leitor, podemos agora fazer as comparações que explicam o porquê do título deste texto. 160


Será que existem comparações possíveis entre o homo erectus, ou o homo sapiens, e os avós de hoje, tendo em conta o confinamento do “idoso” homem das cavernas e o que hoje a pandemia impõe a nós, os avós neste momento terrível em que enfrentamos a pandemia do novo coronavírus? A pandemia da CoViD-19 a todos iguala em termos da possibilidade de contaminação, e está evidenciado que os idosos integram o grupo de risco. A idade avançada, com defesas do organismo naturalmente menos eficazes que a dos jovens, torna o contágio muito mais preocupante. Quando velhice se associa a comorbidades, são assustadores os números dos casos fatais. Permitindo-me um gracejo, em meio a tanto medo e dor, digo que esse micro-organismo, com parte em formato de coroa (corona), atinge mais brutalmente as e os “coroas”. Quase a totalidade dos especialistas, em todas as partes do mundo, chegaram à conclusão de que a quarentema, ou seja, o isolamento social, é a arma mais eficaz para evitar, ou pelo menos desacelerar as contaminações, possibilitando maior tempo, tanto para que os serviços de saúde sejam equipados para o 161


enfrentamento da pandemia, quanto para que haja tempo de se criar uma vacina eficaz contra o vírus. Quanto aos idosos, vejamos: integram o grupo de maior risco, e necessitam, portanto, mais do que todos, de se manter em suas casas. Ou – aí vai a comparação, em suas casas. Lá fora, a exemplo dos “homens da cavernas”, aterrorizante predador os ameaça, o novo coronavírus. Os avós hominídeos adaptaram sua rotina diária, nas cavernas e imediações, à nova condição de cuidadores e ajudantes. Exatamente como os avós de hoje, certamente criaram atividades, jogos para ocupar, distrair e educar seus “netos da caverna”. Nesta nova condição de quarentena por causa da pandemia, você, avó leitora, culturalmente um membro familiar educador, continua fazendo isso, embora confinada à casa. Igualmente você, avô leitor, que exerce um papel igualmente importantíssimo na vida de seus netos. Bem, lembrarão vocês, avós leitores, podemos ver e ouvir nossos netos usando os fantásticos recursos comunicativos, tanto em termos pessoais quanto 162


sociais, desenvolvidos durante o processo civilizatório. Porém, amorosas e amorosos avós, mas digam se isso basta. Certamente não. E os contatos físicos, em beijos e abraços? E os apertõezinhos nas bochechas rosadas? E as caminhadas, calçadas afora, levando ou trazendo as netas e os netos à escola, com papos sobre o mundo, as coisas, a natureza, os animais, o sol que se põe? Por mais aparelhada que sejam as casas; por mais high tech que sejam os avós; por mais hábeis no manuseio dos aparelhos que os conectam e participativos ao utilizá-los nas redes sociais, para superar a quarentena, sempre existe uma distância insuperável imposta pelo perigo da contaminação. Mas, se nós, os idosos, desenvolvemos nossa capacidade de amar, verdadeira e incondicionalmente, podemos fazer de nossa caverna moderna um mundo de trabalhos e entretenimentos, de tal forma a também não nos tornarmos um peso, uma preocupação para os nossos filhos e netos. Não podendo ajudar de perto, ajudemos de longe. Com certeza, com mais ou menos dor, em maior ou menor tempo, a pandemia será superada. Enquanto esperamos quietinhos em casa, como recomendado. 163


Nas cavernas pré-históricas, os reflexos das labaredas das fogueiras nas paredes iluminavam as pinturas rupestres, fruto da criação, dos sonhos e anseios dos nossos ancestrais. Do mesmo modo, deixemos que a luz dos nossos sonhos, desejos e da esperança ilumine nossa vida.

164


Ao lidar com infectados, os mĂŠdicos e enfermeiras podem ser contaminados: herĂłis em suas carreiras!

165



MEMÓRIA DE SABORES EM TEMPOS DE QUARENTENA Maria Angela de Oliveira A quarentena está me permitindo revisitar minha casa. Meus guardados, livros e fotos. Permitindo-me cuidar melhor das minhas plantas e ouvir meu marido retomar o contrabaixo. A casa está mais luminosa, mais calma, mais solar, com janelas e portas, antes fechadas, pois inabitada durante o dia, agora abertas, mantendo a casa arejada. As cadeiras na varanda estão por mais tempo ocupadas, o que possibilita contemplar borboletas voando entre plantas e flores que adornam a entrada da casa. Confesso que nesse momento, invejo as borboletas, pois livres, me lembram que preciso permanecer em casa respeitando o isolamento social. E nesse reencontro com o agora chamado “meu lar”, eis que me deparo com um livro. Não um livro qualquer, escrito por algum autor renomado ou mesmo um livro científico, mas, um livro de receitas culinárias! Nele redescubro muito mais que simples receitas; redescubro minhas lembranças, minha 167


história, pois, nesse livro estão contidas receitas escritas por mãos de pessoas da família, algumas, inclusive, que já não estão mais entre nós. Livro antigo, com todas as marcas do tempo, que me remete a lembranças afetivas com sabores, cheiros, imagens, texturas. Ao folheá-lo, uma onda de recordações me acomete. Seus escritos não relembram apenas os pratos, mas também episódios da infância que vão se costurando ao em torno deles. Lembro-me, por exemplo, dos vizinhos porque, depois de prontas, as receitas se transformavam também em uma alegre troca entre esses amigos da vizinhança. Como não lembrar a canjiquinha doce da dona Anita, vizinha de porta; o doce de banana da tia Leopoldina; a carne assada da Pequenina, minha madrinha de crisma; a sardinha frita do seu Correa e dona Odete, donos do bar em frente ao prédio onde eu morava; o bolo mesclado e a farofa feita com o caldo do bife do Neves, um aparentado distante, muito mais um amigo que propriamente um parente. Foi ele que me ensinou ver as horas no seu relógio de ponteiros. Aliás, acho que todas as crianças da família 168


aprenderam ver as horas com ele, bem antes de ingressarmos na escola. As comidas adentravam pelas portas da frente dos apartamentos ou por cima dos muros que separavam as áreas dos fundos, ou até mesmo subiam e desciam as escadas do pequeno prédio em que morávamos, com apenas dois pavimentos e quatro apartamentos. Aqui, mais uma vez, a realidade atual me faz imaginar como lidaríamos com esse isolamento social que impediria saborear aquelas iguarias viajantes. No rastro das lembranças que essa quarentena ressuscitou, posso perceber que a alimentação da minha família transitava entre a comida “de sustança” – como minha mãe, filha de portugueses, chamava o cozido, a feijoada e a dobradinha (que ela chamava de tripa, e era comprada no tripeiro que toda semana, passava nas ruas oferecendo todo tipo de miúdos de boi e de porco) - e a comida com pegada mais “gourmet” que meu pai nos apresentava. Curiosamente, ele propriamente não cozinhava, com exceção dos inesquecíveis siris cozidos e da sopa de siri que frequentemente fazia, porém sabia

169


combinar deliciosos pratos e especiarias, como ninguém. Meu pai, gerente da filial de um jornal, invariavelmente chegava em casa trazendo, nos bolsos das calças, várias receitas que ele recortava dos tantos jornais que lia diariamente. E era o tal do pato com laranja, que na maioria das vezes ficava duro; camarão com creme de abacate, que eu amava; nhoque de abóbora, que dificilmente ficava no ponto, e muitos outros; principalmente frutos do mar, pratos esses que, inclusive, eram servidos devidamente enfeitados e com seus talheres correspondentes. Como minha mãe não era afeita a esse tipo de pratos, meu pai contava com a ajuda da Rosa, uma negra, imensamente alta e com um largo sorriso, que às vezes ajudava minha mãe nos serviços domésticos, mas que gostava mesmo era de cozinhar. Desse modo, lembro bem do duelo que se travava entre minha mãe, a dona da cozinha, e a Rosa, que se apoderava do fogão seguindo os comandos de meu pai, que se divertia com esse embate. Ao escrever sobre os dotes culinários de um quase “chefe de cozinha”, que era meu pai, lembro-me de uma passagem que ocorreu em um Natal ou Ano 170


Novo, em que ele mandou assar um porquinho inteiro no restaurante onde almoçava todos os dias, no centro da cidade. Com a mesa posta para a ceia, eis que meu pai surge trazendo o porquinho, com a tradicional maçã enfiada na boca, e o coloca triunfalmente no centro da mesa, pois o mesmo era uma surpresa guardada a sete chaves por ele. Eu ainda não havia saído do quarto. Na euforia dos meus quase sete anos, me arrumava alegremente para participar do banquete. Ao sair do quarto e entrar na sala, deparo-me com a cena do porquinho e a maçã. Imediatamente caio em prantos e retorno rapidamente ao quarto chorando copiosamente com pena do pobre bichinho. Espanto geral na sala. Até que se deram conta de que o melhor a fazer seria retirar a iguaria da mesa e descartá-la. Só depois disso concordei em voltar à sala e participar da ceia. Confesso que até hoje não sei o destino dado ao pobre animal. Além dos pratos que iam ficando prontos na cozinha da casa, e muitos deles sob meus olhares 171


atentos, era habitual, na minha infância, as crianças participarem de todo o processo de confecção das receitas, e isso incluía a ida às compras. Feiras livres, por exemplo, onde observava minha mãe tomar conta da balança para que o feirante não usasse o artifício de colocar um sobrepeso e, assim, fraudar a pesagem. Observava também as infalíveis negociações entre minha mãe e o verdureiro para levar dois ou três molhos disso e daquilo, por um preço menor, porém que fosse justo para ambos, aprendendo assim, na prática, um pouco de economia doméstica. Também aprendia o nome dos alimentos e como escolher os melhores, fator imprescindível para o sucesso das receitas e, de certo modo, evitar o desperdício. Aqui, mais uma vez me pego imaginando o quão difícil seria hoje, durante esta quarentena, segurar em casa aquela matriarca com sangue português, sem ela mesma poder escolher os ingredientes necessários para a confecção das suas receitas. Havia também a mercearia, localizada no final da rua onde eu morava, onde comprávamos gramas de manteiga amarelinha retirada do galão com uma enorme colher de pau e jogada na balança envolta em papel manteiga. Da mesma forma, comprávamos 172


quantidades de grãos variados medidos em gramas, retirados dos sacos de aniagem com apropriadas conchas metálicas e que, após a pesagem, eram colocados em sacos de papel para, em seguida, entrarem nas nossas sacolas retornáveis. Cebolas, batatas e outros itens da culinária também saíam dos sacos de aniagem para nossas sacolas, após serem pesados. Aliás, esses sacos eram disputadíssimos durante o carnaval, para confeccionarmos fantasias cheias de criatividade que nos permitiam desfilar nos “blocos de sujo”, como chamávamos antigamente os blocos de carnaval de rua. Minha vaidade me permite declarar que eu era muito boa na produção dessas vestimentas, além de ser também uma carnavalesca convicta. Hoje, entendo que praticávamos reciclagem e cuidávamos do meio ambiente de forma espontânea e despretensiosa, porém eficaz. Havia também a loja de doces do seu Martins onde, com frequência, eu parava no caminho para a escola e comprava um ou dois pães de mel. Nunca fui muito afeita a doces, porém o pão de mel me encantava. Após adquiri-lo para comer na hora da 173


merenda, lá ia eu, saltitante, pelo caminho repleto de plantas que chamávamos dormideiras, cantando “dorme, dorme, dormideira para acordar na sexta feira”. Ao lembrar a loja de doces volto a sentir o cheiro do café moído na hora que perfumava todo o entorno do ambiente e era, talvez, um dos produtos de maior sucesso do estabelecimento. Com a lembrança passeando pelo comércio do bairro, me deparo com o aviário onde as galinhas ficavam expostas, vivas, presas em aramados, para serem escolhidas e, logo em seguida, chegarem mortas ao balcão, embrulhadas em jornal e atadas por barbantes. Os miúdos eram colocados em saquinhos à parte. A lembrança do aviário transporta-me à macarronada com galinha, feita aos domingos. Esse hábito foi introduzido na família pelo meu avô materno que, apesar de português e apreciar uma boa bacalhoada, também gostava muito de uma bela macarronada. Como havia galinha na refeição dominical, não podia deixar de ter a canja, que poderia ser tomada como entrada no almoço ou ser a única refeição do jantar, principalmente para meu avô.

174


Lembrei que aqueles miúdos trazidos com a galinha eram colocados na canja, assim como os pés da galinha, que só minha mãe se aventurava a destrinchar. Aquela canja tinha gosto, realmente. E ainda se tinha a opção de consumi-la com folhinhas de hortelã, hábito que mantenho até hoje. Minha mãe que, apesar de ter ojeriza a qualquer bebida alcoólica, se permitia regar a canja com um fio generoso de vinho tinto seco, o qual também me era permitido. Como aquele era o único momento em que eu podia saborear um pouco de vinho, que amo até hoje, esperava ansiosa pela canja do domingo. Em torno da mesa de refeições, nas várias conversas, lembro que havia um assunto que, quando vinha à tona, instigava minha curiosidade de criança. Era quando os adultos mencionavam a Gripe Espanhola. Sempre mencionavam os parentes que a haviam contraído, mas que conseguiram se curar, talvez por serem crianças na época. Porém citavam nomes de outras pessoas conhecidas ou vizinhos que não tiveram a mesma sorte. Na minha imaginação de criança, com o nome da gripe era “Espanhola”, eu ficava pensando como uma doença poderia estar vestida com um vestido vermelho, comprido, adornada

175


com uma tiara ao entorno dos cabelos e tocando castanholas! Como tão bem expressou o jornalista moçambicano Mia Couto, no conto “A avó, a cidade e o semáforo” do seu livro “O fio das miçangas”, de 2003: “Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno”. Também concordo totalmente com ele quando neste mesmo conto insere a afirmação: “Cozinhar não é serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros”. Enfim, em tempos de quarentena, onde utilizamos ainda mais a tecnologia para todo tipo de comunicação, podemos acessar receitas de forma rápida e fácil e até postá-las, depois de prontas, nas redes sociais. Porém ainda não há tecnologia que possa transmitir os sabores e cheiros que somente um contato físico permite. Assim, contraditoriamente, o isolamento social imposto pela pandemia, me aproximou dos meus. Em meus pensamentos cada receita levou-me a muitas lembranças boas. Pela letra eu sei quem a escreveu, visualizo o prato, lembro-me das conversas, de rostos, lugares, da mesa posta e de pessoas tão queridas e 176


saudosas. Lembranรงas inundadas de afeto em torno de um livro de receitas que forรงosamente a quarentena me permitiu redescobrir.

177



CONFINAPARTAMENTO Jota Carino Meu apartamento, recurso citadino de cidadãos apertados e empilhados, ajustemo-nos um ao outro - já que não tem jeito. Alegra-te, continente que me tem como conteúdo. Tua janela minúscula, pela qual entram, parcos e espremidos raios de sol, é agora minha visão real do mundo. (Visto que telas só me apresentam arremedos glamourizados da realidade). Atura-me, no meu confinamento. Em troca, relevo os descascados na tua pele-parede. E não reparo no pinga-pinga melancólico de tuas torneiras,

179


que vertem lágrimas fingidas. Somos só nós, na prisão voluntária imposta pela pandemia. Conheço cada cantinho do teu corpo-casa. Ou não. Trancafiado sem crime, descubro que tens vãos e desvãos minúsculos. Tens quinas, texturas, cantinhos escuros como os de almas desiludidas. Tu também não me conheces bem, já que não escolhes quem te habita. Tu não podes sair porque és fixo como certas ideias. Eu, sair não posso, emparedado que estou pela dura argamassa do cuidado ou do medo. Convivamos. Continue me abraçando, 180


com braços de pedra e cal, porÊm protetores de minha vida. Sobreviveremos.

181



MAIS JUNTOS QUE NUNCA José Huguenin Meu apartamento, Um ser Que não chega a ser vivo Nos se-para Uma opressão Brota no peito Diante de incerteza rara Em nossas casas Preenchemos como dá As horas vagas A poesia é voluntária Em favor da sanidade Da tenra e da madura idade Toda gente Pelo aparelho se pergunta se-parados? Não.... 183


Em movimento! Mais juntos que nunca!

184


O VÍRUS E A IGNORÂNCIA NA PANDEMIA Flavio Chame Barreto

A ignorância não acredita em pandemia, pois não vê nenhum vírus na esquina, nem passa ao seu lado durante o seu dia, e ele até inexiste no corpo que contamina. A ignorância é algo que rápido se ensina a partir de pouco ou mesmo quase nada. Nada vê, nada pressente, só se dissemina e na correnteza que gera, por ela é levada. A ignorância não é só um vírus de crueldade, que contagia quem não pediu, não viu, não quis, mas se torna bem visível ao chegar à morbidade. Apenas neste final a ignorância se contradiz, quando desmascara a sua gélida realidade. E, mesmo assim, quem a possui, até morre feliz.

185


186


SOBRE OS AUTORES FLÁVIO CHAME BARRETO. Professor e escritor. Graduado em Biologia, pós-graduado em Educação, com mestrado em Informática, Educação e Sociedade. Autor de inúmeros trabalhos e vinte e oito livros em sua especialidade, bem como de romances, contos e poesia. Pertence à Academia Fluminense de Letras (AFL). Também é membro correspondente da Academia Volta-redondense de Letras. Contato: flaviocbarreto@yahoo.com.br Site: www.flaviocbarreto.blogdpot.com JOTA CARINO. Professor universitário aposentado. Graduado em Sociologia, com mestrado e doutorado em Filosofia da Educação. Consultor em Recursos Humanos. Escritor, autor, entre outros, dos livros “Olhando a Cidade e Outros Olhares (crônicas), “Fios Tênues” (contos), “Eu, a Crônica” (crônicas) e “Poesia... porque sim” (poesia), estes dois últimos prestes a serem lançados em sua versão digital. Membro da Academia Fluminense de Letras (AFL). Contato: jotacarino@gmail.com ALBA HELENA CORRÊA. Pedagoga e pós-graduada em Orientação Educacional. Trovadora, cronista e contista. Membro da União Brasileira de Trovadores (UBT), Seções Nacional, Estadual e Municipal, da Academia Brasileira da Trova (ABT), da Academia Fluminense de Letras e da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC). Tem inúmeros livros publicados, sendo detentora de dezenas de prêmios em concursos, nacionais e internacionais.

187


JOSE HUGUENIN. Bacharel e doutor em Física pela Universidade Federal Fluminense, com estágio no Laboratoire Kastler Brossel – Paris – França. Professor do Instituto de Ciências Exatas da Universidade da Federal Fluminense em Volta Redonda – RJ. Publicou dezenas de artigos científicos e vários livros no campo da literatura, tendo recebido vários prêmios literários (poesias e contos). Membro do Grêmio Barramansense de Letras (GREBAL) e ocupante da cadeira 17 da Academia Volta-redondense de Letras. Contato: jose.huguenin@gmail.com Site: www.josehuguenin.com RICARDO NOGUEIRA. Aviador, Advogado com pós-graduação em Direito Aeronáutico e em Filosofia. Poeta e escritor. Autor dos livros “Lindos Passarinhos” – Sempre Juntos 68 (2018), Bastidores – Instintos Aflorando (trilogia) (2019), Doar – Um Ato de Amor (2019). Próxima obra, prevista para agosto 2020, Paulo Victor – O Dom de ser Goleiro. Pertence à Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil (ACILBRAS), cadeira 139. Contato: ricardonogueiraescritor@gmail.com MARIA ANGELA DE OLIVEIRA CHAMPION BARRETO. Graduada em Fonoaudiologia e Fisioterapia. Professora na Faculdade de Medicina da UFRJ, no Centro Universitário Celso Lisboa e na PósGraduação da Universidade Veiga de Almeida, e de Extensão, na PUC/Rio. Membro da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil (ACILBRAS). Publicou “Educação Inclusiva”, Ed. Érica, 2014.

188


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.