Revista CARBONO14

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a sua revista sobre arqueologia

ARQUEOLOGIA

TUDO O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE ESSE CRESCENTE RAMO DA ARQUEOLOGIA.

BIBLICA

UMA ENTREVISTA com

o presidente da maior rede ativista sobre arqueologia de Israel. A PREMIADA PESQUISA científica sobre Arqueologia Política.

E UMA COLUNA sobre um antigo artefato bizantino com o Doutor Pedro P. A. Funarill

E MAIS :

DESCOBERTA: Um

achado arqueológico que pode polemizar um grande investimento .

ETINICIDADE: Morales

tenta intervenção por meio de uma instituição e prende dois ex-executivos.

ARQUEOCULTURA: Moradores

da reserva de Barão dos Cocais guardam pinturas rupestres.

ESCAVANDO: O

trabalho,que coletará urnas funerárias de um cemitério indígena, é o pontapé inicial



A Revista Carbono 14, em sua primeiríssima edição, se apresenta trazendo uma valiosa contribuição aos estudiosos e interessados em Arqueologia, nos seus múltiplos enfoques, considerando-se a diversidade presente nas abordagens feitas pelos autores dos textos que compõem este exemplar. É importante destacar-se que, mesmo tratando de temática diferenciada, cada artigo traduz a preocupação e o compromisso de seu autor, no sentido de ampliar, aprofundar e mesmo provocar questionamentos, à luz de tudo que se conhece de arqueologia, antropologia, geologia ou arquitetura antiga. Os artigos, ora publicados, retratam os principais focos de interesses destes pesquisadores, contribuindo, sobremaneira, para o avanço nos conhecimentos e para a disseminação das informações de área tão importante, complexa e atual como a área de Arqueologia. Renata Bessi, na seção Descoberta, traz a pauta Sítios indígena no estaleiro de Jurong, e sua experiência em campo atrás de testemunhas dispostas a falar da expedição que resultou na descoberta de sítios arqueológicos indígenas, feita por uma empresa contratada pelo consórcio do estaleiro. E partindo de ponto de vista técnico e prático, Jorge Gamaliel, como matéria em destaque dessa edição, traz seu elaborado texto, Arqueologia Bíblica, uma explanação técnica de como age e funciona essa vertente pouco famosa da arqueologia convencional e científica. Frederico Füllgraf, nosso correspondente na América Latina, trás para a seção Etinicidade, o recente escândalo boliviano sobre as fraudes e roubos no Fundo Indígena Bolíviano, e as atitudes pouco satisfatórias a população, do presidente Evo Morales. Já na seção Arqueocultura, temos a matéria de Arnalvo Viana sobre a vida incomum de uma família, que passa os seus dias a proteger o Sítio Arqueológico da Pedra Pintada, em Barão dos Cocais, Minas Gerais. Na seção Escavando, Joana Moura nos apresenta as recentes descobertas de escavação no Sítio Arqueológico da Serra do Evaristo em Baturité, Fortaleza. Lá pesquisadores descobriram urnas contendo restos mortais de possíveis comunidades indígenas que viveram na região. Na seção Pesquisa, trazemos o premiado artigo de Lúcio Menezes Ferreiral, Arqueologia como Prática Política, que apresenta um novo ponto de vista social e prático de organização e execução de planejamento político. E para fechar a primeira edição apresentamos a entrevista com Yonathan Mizrachi, pesquisador da Oxford e presidente-ativista da maior organização de arqueólogos israelenses, que recentemente lançaram o livro “Arqueologia na sombra do conflito”.


DESCOBERTA

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Sítios indígenas no estaleiro de Jurong

DESTAQUE

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Arqueológia Bíblica

ETNICIDADE

Um achado arqueológico que pode polemizar um grande investimento.

Tudo o que você precisa saber sobre esse crescente ramo da Arqueologia.

12Corrupção entre os indígenas na Bolívia

Morales tenta intervenção por meio de uma instituição e prende dois ex-executivos por má administração


CARBONO 14 • março/abril 2015

ARQUEOCULTURA

ESCAVANDO

PESQUISA

COLUNA DÓRICA

ARKHÊ-PAPO

14 Família protege pinturas rupestres

Moradores da reserva de Barão dos Cocais guardam pinturas rupestres feitas há cerca de 6 mil anos e atrai estudantes e pesquisadores de todo o mundo.

16 IPHAN faz pesquisa em Baturité

O trabalho, que coletará urnas funerárias de um cemitério indígena, é o pontapé inicial para uma série de pesquisas.

18 Arqueologia como prática política

Uma artigo científico que traz a tona novos conceitos e ideologias para as práticas atuais.

21 Artefatos que importam

O doutor em Arqueologia de Artefatos e Antiguidades Pedro P. A. Funarill nos escreve esse intrigante artigo.

22 Entrevista Ativista

Abrimos nossa seção de entrevista com Yonathan Mizrachi Pesquisador da Oxford-EUA.


DESCOBERTA A dica veio de um trabalhador contratado para fazer o desmatamento na área do estaleiro da Jurong. Com a garantia de não ter seu nome revelado ele contou à repórter: “Além de mim, dois arqueólogos e mais 10 pessoas ajudaram nas escavações. Foi um trabalho delicado. Era local de moradia de indígenas. Local onde moravam. Encontramos materiais feitos de argila. Paredes de casa, recipientes utilizados para cozinhar, urnas”, afirmou. O mesmo operário disse que o material estaria sob responsabilidade da CTA Engenharia e Meio Ambiente, contratada pela Jurong para executar o trabalho, mas descobrir o paradeiro dos sítios arqueológicos não foi tarefa fácil. Procurada pela reportagem, em um primeiro momento a CTA afirmou que não poderia dar nenhuma informação sem a autorização da Jurong. Obtida a autorização, a empresa confirmou a descoberta de três sítios arqueológicos.

Depois de uma longa batalha, repórter confirma a existência de três sítios arqueológicos na área doada pela prefeitura de Aracruz à empresa de Cingapura

A gerente de Segurança, Meio Ambiente e Saúde (SMS) do Estaleiro Jurong Aracruz (EJA), Lani Tardin, afirmou que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) autorizou a retirada e que a preservação do material encontrado estava a cargo do órgão. Mas a informação não foi confirmada pelo funcionário técnico do Iphan-Espírito Santo, Yuri Batalha. Segundo ele, a responsabilidade pelo que havia sido coletado era da empresa responsável pelas escavações, a CTA. Por fim, a reportagem conseguiu falar por email com Celso Perota, arqueólogo do CTA, que garantiu que as peças estão depositadas na sede do Instituto Ecos, uma ONG sem fins lucrativos. “Atualmente o acervo está sendo marcado e catalogado”, afirmou o arqueólogo. Quando o trabalho for finalizado, disse o arqueólogo, o material será acessível “mediante a devida permissão do ECOS”. Não parece o destino adequado para as peças coletadas, como explicou a professora do Departamento de Geografia da Ufes, Simone Batista Ferreira. “Os sítios arqueológicos são a memória da humanidade. É o nosso passado coletivo. Não é um bem privado de quem encontra. A região norte do estado do Espírito Santo guarda testemunhos

Área de Jurong com as possiveis localizações dos sítios arqueológicos indígenas. Vista de sátelite

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“evidências que poderiam denotar a presença de sítios arqueológicos na área do empreendimento”. arqueológicos e históricos importantes. Há registros da presença de populações indígenas que ocuparam a região em um momento pré-conquista e outros eventos históricos importantes que tem início com a chegada dos europeus”, disse Simone. Também chama a atenção a rapidez com que o material dos três sítios foi resgatado. Do momento em que os sítios foram identificados, durante o programa de monitoramento arqueológico, até a coleta do material foram quatro meses, incluindo o processo de liberação das peças pelo Iphan. “A autorização do Iphan foi imediata, pois quando se identifica sítios arqueológicos durante a fase de

monitoramento, o resgate é feito de imediato”, afirmou o arqueólogo. “Como a área é muito grande, foram realizadas atividades de instalação do empreendimento concomitantemente ao resgate arqueológico nas áreas identificadas durante a prospecção”, explicou por email; Perota disse ainda que o processo de escavação ocorreu ao longo das etapas do licenciamento ambiental do estaleiro. Apesar disso, o Relatório de Impacto Ambiental, feito pela mesma empresa CTA – Engenharia e Meio Ambiente, em 2009, e pago pela Jurong, apenas apontou “evidências que poderiam denotar a presença de sítios arqueológicos na área do empreendimento”. Foram encontrados três sítios arqueológico com “conteúdos culturais” distintos, segundo Perota. Eles foram cadastrados no Iphan como sítio Barra do Sahy 1, sítio Barra do Sahy 2 e sítio Barra do Sahy 3. No primeiro havia cacos de cerâmica

que pertencem à Tradição Aratu; no Barra do Sahy 2, testemunhos cerâmicos vinculados à Tradição Tupiguarani. Já o Sítio Barra do Sahy 3 é um sítio colonial antigo, com conteúdo de cerâmica neobrasileira, vidros e conchas. De acordo com o cadastro de sítios arqueológicos do Iphan, o município de Aracruz possui 21 sítios registrados. A região foi definida pelo órgão como de alto potencial arqueológico, por ter características parecidas com a da margem esquerda do Rio Doce, onde há registros de cerca de 42 sítios arqueológicos.

por Renata Bessi 5 de março de 2015

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DESTAQUE

arqueologia

bíblica Uma vertente focada em uma verdade insólida, mas que gera uma movimentação mundial, de pessoas e investimento A arqueologia bíblica é um ramo da arqueologia especializado em estudos dos restos materiais relacionados direta ou indiretamente com os relatos bíblicos e com a história das religiões judaico-cristãs. A região mais estudada pela arqueologia bíblica, na perspectiva ocidental, é a denominada Terra Santa, localizada no Médio Oriente. Os principais elementos desta ciência arqueológica são, em sua maioria, referências teológicas e religiosas, sendo considerada uma ciência em toda a sua dimensão metodológica. Assim como se dá com os registros históricos de outras civilizações, os manuscritos descobertos devem ser comparados com outras sociedades contemporâneas da Europa, Mesopotâmia e África. As técnicas científicas empregadas são as mesmas da arqueologia em geral, com escavações e datação radiométrica, entre outras. Em contraste, a arqueologia do antigo Médio Oriente é mais ampla e generalizada, tratando simplesmente do Antigo Oriente sem tentar estabelecer uma relação específica entre as descobertas e a Bíblia.

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Funções da Arqueologia Bíblica

A arqueologia auxilia-nos a compreender a Bíblia. Ela revela como era a vida nos tempos bíblicos. O que passagens obscuras da Bíblia realmente significam, e como as narrativas históricas e os contextos bíblicos devem ser entendidos. A Arqueoloia também ajuda a confirmar a exatidão de textos bíblicos e o conteúdo das Escrituras. Ela tem mostrado a falsidade de algumas teorias de interpretação da Bíblia. Tem auxiliado a estabelecer a exatidão dos originais gregos e hebraicos e a demonstrar que o texto bíblico foi transmitido com um alto grau de exatidão. Tem confirmado também a exatidão de muitas passagens das Escrituras, como, por exemplo, afirmações sobre numerosos reis e toda a narrativa dos patriarcas. Não se deve ser dogmático, todavia, em declarações sobre as confirmações da arqueologia, pois ela também cria vários problemas para o estudante da Bíblia. Por exemplo: relatos recuperados na Babilônia e na Suméria descrevendo a criação e o dilúvio de modo notavelmente semelhante ao relato bíblico deixaram perplexos os eruditos bíblicos. Há ainda o problema de interpretar o relacionamento entre os textos recuperados em Ras Shamra (uma localidade na Síria) e o Código Mosaico. Pode-se, todavia, confiantemente crer que respostas a tais problemas virão com o tempo. Até o presente não houve um caso sequer em que a arqueologia tenha demonstrado definitiva e conclusivamente que a Bíblia estivesse errada!

antigo. Assim, se alguma catástrofe produzisse a destruição de uma cidade, a tendência era reconstruir na mesma localidade. Uma cidade podia ser amplamente destruída por um terremoto ou por uma invasão. Fome ou pestes podiam despovoar completamente uma cidade ou território. Nesta última circunstância, os habitantes poderiam concluir que os deuses haviam lançado sobre o local uma maldição, ficando assim temerosos de voltar. Os locais de cidades abandonadas reduziam-se rapidamente a ruínas. E quando os antigos habitantes voltavam, ou novos moradores chegavam à região, o hábito normal era simplesmente aplainar as ruínas e construir uma nova cidade. Formava-se, assim, pequenos morros ou taludes, chamados de tell, com muitas camadas superpostas de habitação. Às vezes, o suprimento de água se esgotava, rios mudavam de curso, vias comerciais eram redirecionadas ou os ventos da política sopravam noutra direção – o que resultava no permanente abandono de um local.

A Escavação de um Sítio Arqueológico

Por Que Antigas Cidades e Civilizações Desapareceram?

O arqueólogo bíblico pode se dedicar à escavação de um sítio arqueológico por várias razões. Se o talude que ele for estudar reconhecidamente cobrir uma localidade bíblica, ele provavelmente procurará descobrir as camadas de ocupações relevantes à narrativa bíblica. Ele pode estar procurando uma cidade que se sabe ter existido mas ainda não foi positivamente identificada. Talvez procure resolver dúvidas relacionadas à proposta identificação de um sítio arqueológico. Possivelmente estará procurando informações concernentes a personagens ou fatos da história bíblica que ajudarão a esclarecer a narrativa bíblica.

As cidades eram geralmente construídas em lugares de fácil defesa, onde houvesse boa quantidade de água e próximo a rotas comerciais importantes. Tais lugares eram extremamente raros no Oriente Médio

Uma vez que o escavador tenha escolhido o local de sua busca, e tenha feito os acordos necessários (incluindo permissões governamentais, financiamento, equipamento e pessoal), ele estará pronto para começar a operação. Uma exploração cuidadosa da superfície é normalmente realizada em primeiro lugar, visando saber o que for possível através de pedaços de cerâmica ou outros artefatos nela encontrados, verificar se certa configuração de

Sabemos que muitas civilizações e cidades antigas desapareceram como resultado do julgamento de Deus. A Bíblia está repleta de tais indicações. Algumas explicações naturais, todavia, também devem ser brevemente observadas.

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DESTAQUE solo denota a presença dos resto de alguma edificação, ou descobrir algo da história daquele local. Faz-se, sem seguida, uma mapa do contorno do talude e escolhe-se o setor (ou setores) a ser (em) escavado (s) durante uma sessão de escavações. Esses setores são geralmente divididos em subsetores de um metro quadrado para facilitar a rotulação das descobertas.

A Arqueologia e o Texto da Bíblia

Embora a maioria das pessoas pense em grandes monumentos e peças de museu e em grandes feitos de reis antigos quando se faz menção da arqueologia bíblica, cresce o conhecimento de que inscrições e manuscritos também têm uma importante contribuição ao estudo da Bíblia. Embora no passado a maior parte do trabalho arqueológico estivesse voltada para a história bíblica, hoje ela se volta crescentemente para o texto da Bíblia. O estudo intensivo de mais de 3.000 manuscritos do Novo Testamento (N.T.) grego, datados do segundo século da era cristão em diante, tem demonstrado que o N.T. foi notavelmente bem preservado em sua transmissão desde o terceiro século até agora. Nem uma doutrina foi pervertida. Westcott e Hort concluíram que apenas uma palavra em cada mil do N.T. em grego possui uma dúvida quanto à sua genuinidade. Uma coisa é provar que o texto do N.T. foi notavelmente preservado a partir do segundo e terceiro séculos; coisa bem diferente é demonstrar que os evangelhos, por exemplo, não evoluíram até sua forma presente ao longo dos primeiros séculos da era cristã, ou que Cristo não foi gradativamente divinizado pela lenda cristã. Na virada do século XX uma nova ciência surgiu e ajudou a provar que nem os Evangelhos e nem a visão cristã de Cristo sofreram evoluções até chegarem à sua forma atual. B. P. Grenfell e A. S. Hunt realizaram escavações no distrito de Fayun, no Egito (1896-1906), e descobriram grandes quantidades de papiros, dando início à ciência da papirologia.

fragmentos ajudam a confirmar o texto feral encontrado nos manuscritos maiores, feitos de pergaminho, datados do quarto século em diante, ajudando assim a forma uma ponte mais confiável entre os manuscritos mais recentes e os originais. O impacto da papirologia sobre os estudos bíblicos foi fenomenal. Muitos desses papiros datam dos primeiros três séculos da era cristã. Assim, é possível estabelecer o desenvolvimento da gramática nesse período, e, com base no argumento da gramática histórica, datar a composição dos livros do N.T. no primeiro século da era cristã. Na verdade, um fragmento do Evangelho de João encontrado no Egito pode ser paleograficamente datado de aproximadamente 125 AD! Descontado um certo tempo para o livro entrar em circulação, deve-se atribuir ao quarto Evangelho uma data próxima do fim do primeiro século – é exatamente isso que a tradição cristã conservadora tem atribuído a ele. Ninguém duvida que os outros três Evangelhos são um pouco anteriores ao de João. Se os livros do N.T. foram produzidos durante o primeiro século, foram escrito bem próximo dos eventos que registram e não houve tempo de ocorrer qualquer desenvolvimento evolutivo. Todavia, a contribuição dessa massa de papiros de todo tipo não pára aí. Eles demonstram que o grego do N.T. não era um tipo de linguagem inventada pelos seus autores, como se pensava antes. Ao contrário, era, de modo geral, a língua do povo dos primeiros séculos da era cristã. Menos de 50 palavras em todo o N.T.

Os papiros, escritos numa espécie de papel grosseiro feito com as fibras de juncos do Egito, incluíam uma grande variedade de tópicos apresentados em várias línguas. O número de fragmentos de manuscritos que contêm porções do N.T. chega hoje a 77 papiros. Esses Moeda datada entre 80-70 a.c. (foto: Yoruth Braga)

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foram cunhadas pelo apóstolos. Além disso, os papiros demonstraram que a gramática do N.T. grego era de boa qualidade, se julgada pelos padrões gramaticais do primeiro século, não pelos do período clássico da língua grega. Além do mais, os papiros gregos não-bíblicos ajudaram a esclarecer o significado de palavras bíblicas cujas compreensão ainda era duvidosa, e lançaram nova luz sobre outras que já eram bem entendidas. Até recentemente, o manuscrito hebraico do Antigo Testamento (A.T.) de tamanho considerável mais antigo era datado aproximadamente do ano 900 da era cristã, e o A.T. completo era cerca de um século mais recente. Então, no outono de 1948, os mundos religioso e acadêmico foram sacudidos com o anúncio de que um antigo manuscrito de Isaías fora encontrado numa caverna próxima à extremidade noroeste do mar Morto. Desde então um total de 11 cavernas da região têm cedido ao mundo os seus tesouros de rolos e fragmentos. Dezenas de milhares de fragmentos de couro e alguns de papiro forma ali recuperado. Embora a maior parte do material seja extrabíblico, cerva de cem manuscritos (em sua maioria parciais) contêm porções das Escrituras. Até aqui, todos os livros do A.T., exceto Éster, estão representados nas descobertas. Como se poderia esperar, fragmentos dos livros mais freqüentemente citados no N.T. também são mais comuns em Qumran (o local das descobertas). Esses livros são Deuteronômio, Isaías e Salmos. Os rolos de livros bíblicos que ficaram melhor preservados e têm maior extensão são dois de Isaías, um de Salmos e um de Levítico. O significado dos Manuscritos do Mar Morto é tremendo. Eles fizeram recuar em mais de mil anos a história do texto do A.T. (depois de muito debate, a data dos manuscritos de Qumran foi estabelecida como os primeiros séculos AC e AD). Eles oferecem abundante material crítico para pesquisa no A.T., comparável ao de que já dispunham há muito tempo os estudiosos do N.T. Além disso, os Manuscritos do Mar

Morto oferecem um referencial mais adequado para o N.T., demonstrando, por exemplo, que o Evangelho de João foi escrito dentro de um contexto essencialmente judaico, e não grego, como era freqüentemente postulado pelos estudiosos. E ainda, ajudaram a confirma a exatidão do texto do A.T. A Septuaginta, comprovaram os Manuscritos do Mar Morto, é bem mais exata do que comumente se pensa. Por fim, os rolos de Qumran nos ofereceram novo material para auxiliar na determinação do sentido de certas palavras hebraicas.

por Jorge Gamaliel 12 de março de 2015

Sítio arqueológico no Neserto de Negev, sul de Israel (foto: Yoruth Braga)

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ETNICIDADE Um escândalo no Fundo Indígena da Bolívia desestabiliza o discurso oficial sobre a probidade dos indígenas, considerados certa vez pelo presidente Evo Morales como a “reserva moral da humanidade”. O Governo teve de intervir nessa instituição, que recebe uma importante quantidade de dinheiro proveniente das exportações de gás do país para realizar projetos produtivos nas comunidades “originárias”. Seus dois ex-executivos foram presos. A Controladoria do Estado moveu uma ação contra eles dois e contra vários dirigentes camponeses e indígenas envolvidos na má administração de um montante que pode chegar a 277 milhões de bolivianos (mais de 120 milhões de reais).

Morales tenta intervenção por meio de uma instituição e prende dois exexecutivos por má administração

O presidente Morales requereu a investigação do Fundo Indígena depois de receber várias denúncias sobre a existência de uma trama para financiar projetos que acabavam não sendo realizados (“projetos fantasma”). Até agora foram detectados 153 projetos desse tipo e há suspeita de mais 100. Um caso ilustrativo é o do financiamento para plantar um hectare de alho para cada uma das famílias de um grupo de 500 que vivem em Puerto Acosta, povoado situado a 194 quilômetros de La Paz. Segundo a denúncia que processam as autoridades, três diretoras da Federação de Mulheres Camponesas Bartolina Sisa – organização fundadora do partido do Governo, o Movimento ao Socialismo (MAS)– enganaram as famílias e conseguiram que as mesmas assinassem testemunhos de que receberam o benefício completo em troca de meio quilo de alho para cada uma. As diretoras, por seu lado, obtiveram 1,2 milhão de bolivianos do Fundo Indígena. A corrupção foi facilitada pelos procedimentos do Fundo, que depositava dinheiro em contas pessoais dos representantes das comunidades beneficiárias, já que estas não possuem contas Indígenas protesteam contra o fato em Quillacollo, a 13km de Cochabamba (foto: Denis Navarro)

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conjuntas. Posto que o Fundo era uma “conquista” da luta realizada pelos indígenas há uma década por uma nova distribuição dos lucros petrolíferos do país, a instituição procurava evitar a mediação de organizações não governamentais e de municípios, entregando o dinheiro diretamente aos beneficiários. Pela mesma razão, oito dos nove postos da diretoria são ocupados por dirigentes nacionais dos camponeses e dos indígenas, todos eles militantes do Movimento ao Socialismo (MAS). Para Romero, ex-ministro e atual, as dificuldades se deveram a esse excesso de representação das organizações sociais, sem um contrapeso adequado do Estado. Da mesma maneira, o relatório da Controladoria afirma que a forma de organização e de trabalho do Fundo deixa “muito a desejar”. Para o vice-presidente Álvaro García Linera, por outro lado, “uma coisa são as responsabilidades pessoais

dos que têm de responder logo à Justiça e outra coisa é o movimento social, a organização, com sua história, suas estruturas, seu discurso e sua capacidade de ação; isso não está envolvido; as falhas no Fundo Indígena não envolvem em absoluto o movimento indígena”. Segundo García Linera, fazer esse vínculo é “racista e direitista”, por isso exigiu: “Não toquem na organização; a organização é sagrada, é histórica, é o que sustenta a vitalidade de nossa pátria… e nos sentimos orgulhosos dela”. O vice-presidente expressa a posição das próprias organizações, tanto indígenas como de outros setores, em relação às críticas da oposição boliviana contra seu desempenho corporativo no Governo, o qual considera a si mesmo um “Governo dos movimentos sociais”. Por isso, no contexto

Para Romero, exministro e atual senador, "as dificuldades se deveram a esse excesso de representação das organizações sociais"

de outra investigação sobre salários excessivos nas empresas estatais, Juan Carlos Trujillo, dirigente da Central Operária Boliviana, fez saber ao presidente Morales que “não permitirá que a Controladoria meta o nariz” nas conquistas de operários e funcionários públicos.

por Frederico Füllgraf 27 de fevereiro de 2015

Evo Moralles, em reunião. (foto: Max DiArrigua)

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ARQUEOCULTURA Estudiosos das origens dos homens sabem de cor e salteado o caminho que leva à Serra da Conceição, em Cocais, distrito de Barão de Cocais, e, mais precisamente, ao Sítio Arqueológico Pedra Pintada. Um tesouro natural com registros da presença humana na Região Central de Minas datados de 6 mil a 10 mil anos. No rastro dos cientistas, dezenas de estudantes secundaristas e universitários visitam os paredões de pedra para ver, fotografar e tentar entender as mensagens rupestres deixadas pelos primitivos em desenhos sobre rochas.

Moradores da reserva de Barão dos Cocais guardam pinturas rupestres feitas há cerca de 6 mil anos e atrai estudantes e pesquisadores de todo o mundo.

desenhos feitos nos paredões do sítio há millhares de anos por grupos de caçadores primitivos. (Foto: Elizabete Almeida)

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Os registros arqueológicos resistiram ao tempo e às mutações geológicas e foram catalogados em 1848 pelo paleontólogo dinamarquês Peter Lund, cientista que percorreu grutas de Minas em busca de legados pré-históricos. Mas a chegada à região do homem moderno com seu caráter desbravador passou a representar risco às nítidas representações de animais e pessoas gravadas por remotos habitantes da América. Felizmente, para o bem da ciência, uma família se interpôs entre a civilização e a história e preservou a integridade do Sítio Pedra Pintada. E de lá não arredou pé, passando a área de geração a geração, sempre disponível a estudos e à visitação. Quem conta essa história é a funcionária pública Elizabete Almeida, de 45 anos, em nome da família Diniz, que não tem nada de Diniz, sentada à mesa de madeira na área coberta em frente à sede do sítio arqueológico. “Meus bisavós deixaram este terreno com 17 hectares de herança para os filhos. Meu avô materno, José Sérgio dos Reis, também já falecido, que desde a infância era conhecido como José Diniz, comprou as partes dos irmãos e aqui se estabeleceu com minha avó Maria Adelina dos Reis. A família mostrou desde então consciência de que tinha em mãos um importante patrimônio cultural. Em 1989, José Sérgio, ou José Diniz, recebeu uma comitiva de pesquisadores da Universidade


Não é permitido fazer fogo na área. Recomenda-se ainda não levar comida. “Os estudantes lancham na nossa sede."

de preservação. Nossa luta é para mantê-lo aberto em bom estado”, diz Elizabete, que anda preocupada com a segurança. Tanto que vai encaminhar projeto à Secretaria de Estado da Cultura para instalação de uma guarita no portão de entrada com vigilância 24 horas.

O acesso é por estreita estrada de terra, a partir de Cocais, que a prefeitura mantém em boas condições. A Polícia Militar de Meio Ambiente está atenta a caçadores José Sérgio começou a investir em infraestrutura nos anos 1980. e desmatadores. Na Hoje, quem tem a posse da área divulgação, o Sítio Arqueológico Pedra são José Roberto e Maria dos Pintada conta com apoio Reis, pais de Elisabete, e os tios do sistema Fiemg, que dela José Romualdo e Piedade ajudou também em parte e Orlando e Nazareth. O sítio da construção da sede, está aberto aos visitantes de para receber os visitantes, segunda a domingo, das 9h às entre os quais turistas e 16h, a uma taxa de R$ 5 por pesquisadores da Europa, pessoa. O dinheiro é aplicado Japão e América do Norte na manutenção. Elizabete, e de todas as regiões do quando não está trabalhando Brasil. na Prefeitura de Barão de Cocais, é quem guia os turistas Diante de uma vista e pesquisadores. “Durante a semana, 60% de nosso público é inesquecível, a 1,2 mil metros de altitude, de estudantes.” Elisabete mostra, nos paredões, as figuras Não é permitido fazer fogo na gravadas com pigmentos área. Recomenda-se ainda não de terra: onças, lobolevar comida. “Os estudantes guará, peixes, veados lancham na nossa sede. Há espaço para refeições. Podemos e outros animais. Há a até servir almoço, desde que seja figura de uma criança e a cena de um parto. Pesquisadores pedido com antecedência.” A acreditam que se tratava de área está bem cuidada. “Graças um grupo nômade, de caça, de a Deus, fazemos um trabalho Federal de Minas Gerais (UFMG), que o alertaram também para o potencial turístico do Sítio Serra Pintada.

passagem pela região. Depois da visita, uma parada na lojinha do sítio, que oferece artesanato, compotas de frutas e mel. “Mas o nosso foco principal é o trabalho educacional”, reforça Elizabete, neta de José Diniz, que não era Diniz. Mas isso não tem a menor importância.

por Arnaldo Viana 10 de março de 2015

Elizabete e sua filha mostrando o desenhos esculpidos. (foto: Victor Aguiar)

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ESCAVANDO Fortaleza. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) irá iniciar, em março próximo, escavações arqueológicas na Serra do Evaristo, em Baturité. O trabalho, motivado pela descoberta de prováveis urnas funerárias na região, representa um momento singular para a Arqueologia no Estado, consistindo no pontapé inicial para uma série de pesquisas na localidade, onde vive uma comunidade quilombola formada por 140 famílias. As escavações serão iniciadas em março.

O trabalho, que coletará urnas funerárias de um cemitério indígena, é o pontapé inicial para uma série de pesquisas.

Duas, das três urnas achadas em Baturité. (fotos: João Macêdo)

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Embora há décadas peças arqueológicas sejam encontradas - de forma casual - na região, ainda não há dados precisos sobre o material escondido sob a superfície, o qual é composto por urnas que provavelmente compunham um cemitério indígena, fazendo com que a Serra do Evaristo seja um espaço com potencial para abrigar pesquisas em diversos campos da Ciência. As tradições de uma tribo antiga, que possivelmente habitou a região antes da chegada dos europeus, no século XVI,e os aspectos simbólicos ligados à compreensão da morte por parte dos índios são alguns dos elementos a serem pesquisados a partir dos trabalhos que serão iniciados neste semestre. De acordo com o professor da rede pública de ensino de Baturité, João Batista de Assis, nos últimos anos, vários indícios da existência de tribos indígenas que habitavam a região têm "aflorado" à superfície da terra, principalmente na estrada de terra que cruza a Serra do Evaristo, devido ao processo erosivo sofrido pelo terreno. Hoje, destaca, três urnas estão armazenadas na localidade. Uma delas, afirma, foi encontrada por acaso, enquanto moradores cavavam um poço. As outras duas, foram encontradas quando parte delas tornou-se visível na terra. Conforme o professor, em uma delas, foi encontrada uma arcada dentária. Após a surpresa em toda a localidade, as urnas foram então colocadas para exposição, em um espaço público, atraindo ainda mais a


atenção dos moradores. Várias outras urnas, afirma, já foram encontradas por moradores, mas não foram preservadas porque não se sabia do valor histórico que elas possuiam. Sem saber de que exatamente se tratava o material, que surgia com cada vez mais frequência conta o professor, os moradores começaram a procurar pessoas de outras localidades. Segundo Batista, foi feito então contato com o Iphan, para saber se as peças tinham de fato valor histórico. "E, agora, foi constatado que elas são urnas de um cemitério indígena". Segundo o técnico do setor de Arqueologia do Iphan, Jeferson Hamaguchi, o Instituto passou a ter interesse pelas descobertas logo "nos primeiros contatos" com as urnas funerárias, em 2009. Após constatar a importância das peças, indica, o Iphan passou a elaborar um plano de ação, que previa a escavação arqueológica no local. Concluído o plano, relata Hamaguchi, foi aberto um processo licitatório para escolher a entidade que executaria o serviço. Ao final, foi selecionada a empresa ArqueoSocio. Todo o trabalho, sublinha, será acompanhado por técnicos do Iphan. De acordo com um dos arqueólogos que participarão dos trabalhos, Igor Pedroza, a escavação na Serra do Evaristo terá grande importância do ponto de vista científico, indo além da Arqueologia, representando um material rico para pesquisadores de campos como Geografia, Biologia e História.

anos de existência. Ainda que peças arqueológicas sejam encontradas em outras regiões do Estado, salienta o pesquisador, o trabalho representa um momento significativo para pesquisas no Estado. "É uma oportunidade fantástica. Nós Segundo Pedroza, embora algumas vamos ter acesso a um registro arqueológico de um momento, que peças tenham sido encontradas é a morte". pela comunidade da Serra do Evaristo, ainda não é possível determinar de quando data o material encontrado. Apenas após por Joana Moura a análise das peças, informa, 9 de fevereiro de 2015 será possível precisar a idade das urnas. Segundo informações divulgadas pelo Iphan, é possível que elas tenham até cerca de mil Embora o acordo firmado com o Iphan preveja que os trabalhos se deem até o mês de junho, ressalta o arqueólogo, as escavações representam o pontapé inicial para pesquisas que se estenderão ainda por muitos anos.

Sem saber de que se tratava o material, que surgia com mais frequência, os moradores começaram a procurar pessoas de outras localidades.

Algumas amotras dos vestígios encontrados. (fotos: João Macêdo)

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PESQUISA A arqueologia iniciou-se, como disciplina científica, na esteira do imperialismo das grandes potências. A empreitada arqueológica inseria-se no domínio colonial, como parte de disputas estratégicas. Não à toa, os arqueólogos ligavam-se aos serviços militares ou de informação e serviam a agendas voltadas para o controle material e ideológico das periferias. Ao lado dessa vertente imperial, a disciplina, ab initio, esteve imbricada na construção de identidades nacionais, de cunho masculino, tendo como objetivo a coesão social e a uniformidade, no presente e no passado. A disciplina, assim, surgia e Lúcio Menezes FerreiraI; Pedro Paulo Abreu FunariII firmava-se como parte do amplo espectro de agenciamentos das normatizações, tanto em âmbito interno, em IUniversidade Federal de Pelotas cada Estado Nacional, como na relação com os sujeitos IIUniversidade Estadual de Campinas externos da opressão, nas periferias asiática, africana, médio-oriental e latinoamericana. Esse quadro mudou radicalmente nas últimas décadas. Nas potências centrais, emergiram grupos sociais e de interesse que implodiram as pretensões de homogeneidade e subordinação às normas, tão bem articuladas no primeiro século e meio da incipiente arqueologia. Nas sociedades ocidentais, as mulheres, antes ausentes ou subjugadas, emergiram como sujeitos sociais cada vez mais ativos. Se até a Segunda Guerra Mundial (19391945) as arqueólogas eram raras e em posições subalternas, depois disso multiplicaram-se e assumiram, muitas vezes, um protagonismo notável. Quem não há de lembrar-se de Kathleen Kenyon (1952), notável pioneira que inspirou tantas jovens arqueólogas a partir da década de 1940. Rompida esta barreira, outras muitas foram superadas, com o reconhecimento da diversidade de grupos humanos: hoje não causa espanto a arqueologia de gênero,queer ou a variedade de sexualidades, tanto dos arqueólogos, como dos seus temas de investigação (Schmidt e Voss, 2000). No âmbito internacional, essas modificações não foram menos importantes. A arqueologia tornou-se prática também periférica. Não apenas das elites das antigas colônias, mas espraiando-se ainda para os povos indígenas, as minorias, os subalternos. Um passo decisivo para essa nova configuração foi dado pela constituição do Congresso Mundial de Arqueologia, em 1986, com seu combate às hierarquias entre ricos e pobres, acadêmicos e público ou outras quaisquer (Funari, 2006). A arqueologia, de estudo do antigo, passou, como propugnavam

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em 1987 Michael Shanks e Christopher Tilley (1987), a ser o estudo das relações de poder. Michel Foucault (1969) e sua “Arqueologia do Saber” tornaram-se parte da reflexão da disciplina, e seu caráter político e social passou a ocupar cada vez mais o lugar de destaque. Nestas circunstâncias, entende-se este número especial do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, dedicado à “Arqueologia Amazônica”. Em artigo de abertura, que serve como introdução teórica ao número, Cristóbal Gnecco desmonta as engrenagens da arqueologia como máquina de violência epistemológica. Enfatiza como a disciplina aparelha-se como instrumento de violência ao forjar, na bigorna de projetos nacionais e coloniais, identidades culturais essencializadas. Longe de desmontar essa maquinaria, a arqueologia latinoamericana contemporânea, agora parafusada pelas políticas do multiculturalismo, reproduz a diferença cultural como entidade essencializada e constroi novos nacionalismos étnicos. Não superou, portanto, os projetos nacionalistas e colonialistas de aglutinação e normalização das diferenças culturais e, tampouco, renunciou à apropriação do conhecimento histórico dos grupos subalternos. A descolonização das metodologias e narrativas arqueológicas1 inventa-se, na verve latinoamericana de Gnecco, como arqueologia relacional, aberta ao diálogo com o público e com os movimentos sociais. Para Gnecco, a interação com as comunidades e um olhar crítico são, portanto, fundamentais, promovendo, inclusive, avanços na pesquisa

arqueológica. O artigo de Fabíola Andréa Silva, de cunho etnoarqueológico, exemplifica essa proposição de Gnecco. A autora, que há mais de uma década faz pesquisas de campo em terras indígenas do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (Silva et al., 2007), demonstra que os grupos indígenas têm suas próprias representações sobre os vestígios arqueológicos e acerca dos significados da pesquisa arqueológica. Pode-se dizer, inclusive, que Fabíola Andréa Silva desenvolve pesquisas em arqueologia comunitária, pois considera as representações das comunidades como elementos indiscerníveis das interpretações arqueológicas2. Assim é que, como argumenta a autora, a arqueologia e etnoarqueologia podem reforçar a luta indígena pela soberania territorial, pela preservação da biodiversidade e da sociodiversidade. A autora ressalta, ainda, a importância da etnoarqueologia para o conhecimento dos processos de produção, usos, distribuição e variabilidade dos artefatos no tempo e no espaço. O artigo de Martijn van den Bel mostra a justeza desse raciocínio. O autor indica como o estudo etnoarqueológico da atual produção cerâmica dos Palikur, que vivem na Guiana Francesa e no Amapá, permite o entendimento mais acurado dos complexos cerâmicos pré-colombianos. Realizando rigoroso trabalho de campo entre 1994 e 1998, van den Bel aquilatou informações preciosas para as pesquisas arqueológicas na Amazônia: os usos rituais das cerâmicas em eventos públicos como casamentos, iniciação e morte; o sistema pictográfico impresso nos

motivos decorativos das cerâmicas e suas profundas articulações com a história oral, as estruturas sociais e a identidade cultural dos Palikur. Martijn van den Bel atenta, ainda, para os processos de continuidade e de mudança culturais refletidos nas cerâmicas. Aponta que o colonialismo europeu, ainda imperante na região, abalou catastroficamente a densidade demográfica e o habitus dos Palikur e demais grupos indígenas amazônicos, levando-os a reelaborar suas identidades nas estampas da cultura material e nas fábulas da história oral. O artigo de Juliana Salles Machado também se envereda pelos processos históricos de continuidade e de mudança cultural na arqueologia amazônica. A autora examina, inicialmente, os conceitos de continuidade utilizados pelos arqueólogos, desvelando suas implicações epistemológicas. Apresenta, depois, os resultados de suas pesquisas etnoarqueológicas realizadas na ilha Caviana (PA), sublinhando que as geneticamente híbridas populações ribeirinhas da região mantêm laços de continuidade com os grupos indígenas do passado. Estribando-se numa gama variada de antropólogos e arqueólogos que trabalham na Amazônia, a autora argumenta que as populações ribeirinhas não apenas se assentam em sítios arqueológicos, como também reproduzem, reelaborando-os, modelos de interação com o ambiente e padrões tecnológicos indígenas. Três traços, para além da etnoarqueologia, enfeixam esses artigos: a exemplo do artigo de Gnecco, concebem a arqueologia como prática política;

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PESQUISA percorrem, cada um a seu modo, as trilhas da história das pesquisas arqueológicas na Amazônia; refletem sobre as relações entre arqueologia e fabricação de identidades culturais. O artigo de Lúcio Menezes Ferreira também segue essa pauta. Analisa as contribuições do zoólogo Emílio Augusto Goeldi para a arqueologia amazônica. Pontua como Goeldi estava plenamente inteirado do debate arqueológico nacional e internacional, organizou as coleções arqueológicas e etnográficas do Museu Paraense de História Natural e Etnografia e circunscreveu um problema regional de pesquisa. Calcando-se em literatura pós-colonial e em análises recentes em história da arqueologia, explora as relações entre as pesquisas arqueológicas de Goeldi e uma política colonial. Ao explorá-las, o autor não faz de Goeldi uma espécie de Kreigton, o espião, administrador colonial e antropólogo do romance “Kim”, de Rudyard Kipling (1954). Por outra, não transforma Goeldi num agente do império. Destaca notadamente uma dimensão específica das políticas coloniais: exatamente aquela que faz da arqueologia instrumento de apropriação simbólica de territórios. A intenção, pois, não é minorar as contribuições de Goeldi à arqueologia amazônica. Mas, sim, situá-las no contexto mais geral, político e científico, de onde elas brotam. Até mesmo porque as contribuições de Goeldi para a arqueologia amazônica são, indubitavelmente, valiosas. É o que evidenciam Nelson Sanjad e João Batista Poça da Silva, no texto de abertura da seção “Memória” desse número. Os au-

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tores nos brindam com a tradução, para o vernáculo, de três textos arqueológicos e etnológicos de Goeldi, escritos, em alemão, entre 1900 e 1906. Os autores cumprem, assim, um papel inestimável, ao traduzir textos de Goeldi cujo acesso é difícil ao público. As traduções são precedidas por comentários que contextualizam os textos de Goeldi, vinculando-os acertadamente à escola etnológica alemã e aos interesses do zoólogo pela lingüística e pelo estudo da cultura material.

sóbrio e moderado. Conta-nos quais foram as influências teóricas, os eventos e as colaborações com instituições e acadêmicos que a motivaram a interessar-se pela arqueologia amazônica. Examina suas pesquisas na Venezuela e seus primeiros trabalhos de campo na Amazônia. Discute, em seguida, os debates teóricos gerados por seus projetos de pesquisa no Baixo Amazonas. Por fim, por meio da comparação entre seus trabalhos no Brasil e na África Central, reflete sobre evolução humana, ecologia humana e história A seção “Memória” traz mais três cultural. importantes trabalhos. Klaus Hilbert apresenta a versátil vida de Peter O quarto texto da seção “Memória”, Paul Hilbert. Trata-se de um texto de Edithe da Silva Pereira, esboça biográfico. De um filho escrevendo um perfil das pesquisas realizadas sobre o pai. Em sua prosa clara e pela equipe de arqueólogos do Mulímpida, Klaus Hilbert não disfarça seu Paraense Emílio Goeldi nos últiternura e admiração pelo pai. Não mos dezessete anos (1991-2008). A escamoteia sua perspectiva pessoal autora argumenta que esse período sob o manto protetor da objetividade propeliu um salto qualitativo não apcientífica e, tampouco, a disfarça enas na história da pesquisa arquenuma pretensa distância narrati- ológica do Museu, como também da va. Klaus Hilbert equilibra, assim, arqueologia amazônica em sua totalemoção e análise, contando-nos a idade. O protagonismo da instituição história de um pesquisador pouco no palco da arqueologia amazônica, conhecido pelo público, que entre segundo a autora, revela-se no in1948 e 1961 foi arqueólogo do Mu- editismo de seus temas de pesquisa, seu Paraense Emílio Goeldi e, en- no aprimoramento de seus quadtre outros trabalhos, acompanhou ros profissionais, na qualidade de o casal Betty J. Meggers e Clifford sua infra-estrutura, na abrangência Evans em suas primeiras pesquisas de seus acervos e, finalmente, na na Amazônia, realizadas a partir de relevância de seus trabalhos em ed1949. ucação patrimonial. Anna Roosevelt, no terceiro texto da seção “Memória”, escreve uma história de suas pesquisas na Amazônia. Apesar de ser uma das mais importantes arqueólogas que pesquisaram na região, e talvez por isso mesmo, Roosevelt descreve seu trabalho sem jactância. Seu tom é

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COLUNA DÓRICA

Dr. Pedro Paulo Abreu FunariII Professor de Arqueologia da Unicamp

A mistura de concisão e redundância da linguagem antiga é irresistível, pungente como só o passado consegue ser: tôide tôn pôlemon epolemêon, ou “por estes a guerra foi guerreada”, se você quiser a tradução mais literal possível. A inscrição está na Coluna-Serpente, que ainda hoje, detonada por quase 2.500 anos de agressões, pode ser vista no Hipódromo de Constantinopla — aliás, Istambul. A ColunaSerpente é uma das poucas lembranças materiais da vitória gloriosa, e totalmente inesperada, de um punhado depôleis (cidades-Estado) gregas sobre o Império Persa em 479 a.C. O que vem depois da frase que eu citei acima é uma lista dessas 31 pôleis, a qual, no geral, é compatível com a que aparece na obra do historiador grego Heródoto, embora haja algumas divergências. Talvez você esteja se perguntando porque esse artefato de bronze é chamado de Coluna-Serpente. É muito simples, Comissário: originalmente, o topo da coluna era encimado por três cabeças de réptil, as quais, por sua vez, serviam de apoio para um caldeirão de ouro. O conjunto foi dedicado (isto é, ofertado) ao templo do deus Apolo em Delfos, o grande santuário “nacional” dos gregos, como sinal de gratidão pela vitória contra os persas. Nada mais natural do que oferecer uma serpente a Apolo, uma vez que o principal mito associado ao deus fala de sua vitória contra a serpente Píton na própria Delfos, evento que teria levado à fundação do santuário. A

ironia é que, na época da invasão persa na Grécia, os sacerdotes do lugar adotaram discretamente uma linha colaboracionista de ação — estratégia rapidamente esquecida quando os gregos venceram. Quando Constantinopla foi fundada no século IV da nossa era, o monumento foi levado para adornar o hipódromo da nova metrópole, onde está até hoje. Até o fim do século XVI as cabeças de serpente ainda faziam parte do objeto, como se pode ver nesta gravura da época otomana, abaixo. UPDATE, a pedidos dos leitores: embora não se saiba exatamente como as cabeças dos répteis caíram, pedaços de algumas delas foram recuperados e estão hoje num museu de Istambul. Último detalhe que me é um bocado caro: originalmente, a inscrição na Coluna-Serpente fazia referência não às cidades gregas, mas unicamente ao

Coluna-serpente em Stambul. (foto: Mário J.C.)

comandante-em-chefe da batalha decisiva contra os persas, o regente espartano Pausânias. Ao saber da insolência (Pausânias mandou gravar versos em seu louvor sem o conhecimento de sua pôlis), as autoridades de Esparta mandaram apagar a inscrição e substituí-la pela que conhecemos. Apesar de suas muitas falhas, os gregos tinham consciência de que os grandes feitos da história são forjados a muitas mãos.

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ARKHÊ-PAPO

Yonathan Mizrachi Pesquisador da Oxford-EUA

Emek Saveh é uma organização de arqueólogos e − Porque a cultura aqui era muito menor e tem muito ativistas comunitários enfocando o papel da arqueologia menos poder e riqueza do que os egípcios ou dos na sociedade israelense e no conflito israel-palestina. assírios, ou outro reino antigo conhecido. • Yonathan, como nasceu a Emek Shaveh? E nos fale como essa organização tem ajudado na sociedade israelense. − Nasceu com a iniciativa de um grupo de arqueólogos israelenses e ativistas. Começamos os passeios em sítios alternativos em Silwan, e se desenvolveram a partir daí. Nós lidamos com as questões da arqueologia e do conflito da arqueologia e seu impacto na vida dos A Carbono14 foi a primeira mídia brasileira a entrevistar moradores. a Yonathan Mizrachi, presidente da Emek Shaveh. • Sabemos que a arqueologia é um recurso para • Quais obstáculos vocês enfrentam para conseguir construir pontes e laços entre os povos, qual é a importância da Emek Shaveh para diminuir na achar determinados artefatos antigos? − Não se trata de obstáculos, é sobre o que você nunca dinâmica de conflito entre israelense-palestino? sabe o que vai encontrar. Podemos supor ou esperar, − Nós compartilhamos a idéia de que aprendendo mas as descobertas não será o que esperamos. Nós sobre o passado das culturas e sobre nossos podemos nunca saber as estruturas que vamos antepassados, podemos abrir nossa mente para aceitar nossos vizinhos e hoje sermos mais tolerantes à outras encontrar ou de qual o período. culturas. • Qual o maior sonho em termos arqueológico para vocês, qual artefato é de grande interesse para Israel • Quais as maiores dificuldades em escavar/ pesquisar um local, se é burocracia do governo, ou achar? − Os artefatos são importantes, mas não é o sonho os habitantes locais, etc.. principal. Não podemos achar que vai mudar o nosso − Como sempre: levantar recursos (dinheiro). entendimento de um lado para outro. As descobertas podem nos ajudar a entender um pouco mais sobre as • É uma grande honra entrevistá-lo Yonathan e levar culturas do passado, mas muitas vezes a descoberta para o mundo sobre a Emek Shaveh. Vocês são não é algo que entendemos exatamente o que era ou dedicados a mudar a visão de muitos através da arqueologia. Qual recado você deixa para todos que qual o seu uso. querem aprender mais sobre seu país e cultura? • Os achados arqueológicos feitos em Israel, não tem − Lembre-se que Israel é lugar multicultural, era assim uma dimensão grande em termos de divulgação ao no passado e é assim hoje. Um lugar de muitas histórias redor do mundo como os artefatos achados no Egito, e não apenas uma narrativa. porque isso acontece? Lançaram o livro “Arqueologia na sombra do conflito”, o tema deste livro é a arqueologia no coração de Jerusalém, uma das cidades mais complexos do mundo. “o sítio arqueológico não se refere apenas às camadas escavadas de um sítio, mas também a seus atributos nos dias de hoje” diz Yonathan. Sendo entrevistado pelo NY Times entre outras mídias.

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