A ESCRITURA DO INVISÍVEL1 Historicamente a fotografia se difundiu no Brasil desde muito cedo. No entanto, mais rapidamente que em outras capitais brasileiras, essa técnica se multiplicou em Belém, por ocasião da chamada “era da borracha”, que representou o período mais próspero da economia amazônica até meados do Séc.XX. Época de uma ordem econômica e social em que emergiram a ostentação, o luxo e o esbanjamento da sociedade paraense, reduzida a grupos bem sucedidos de comerciantes, seringalistas e latifundiários. Em meio a esse quadro de acontecimentos políticos, culturais e econômicos chegaram os primeiros fotógrafos ao Pará, sendo que o “boom da borracha” e o movimentado cenário cultural que marcou a época serviram como pólos de atração aos profissionais, em sua maioria especializados e conhecidos pela qualidade de seus trabalhos. Posar para fotógrafos, em cenários montados em estúdios, tornou-se rapidamente um novo hábito para a elite emergente do látex, dentre tantos outros adquiridos do mundo europeu. Fragmentos desse período estão por toda parte. Na arquitetura de alguns prédios, no traçado de ruas, calçadas, em textos, cartões postais, coleções iconográficas públicas e particulares e, em menor proporção, nos álbuns de famílias. Buscar o retrato da cidade, ou os vários retratos de Belém em arquivos particulares ainda pouco explorados foi o ponto de partida que pretendia revelar um lugar tantas vezes cantado em prosa e verso por gerações e seus descendentes, responsáveis pela criação de um discurso ufanista e melancólico da ‘Belém Paris N´América’. Retratos, ‘carte de visite’, imagens de paisagens e um pouco da evolução urbana de Belém, ficaram para sempre eternizadas em emulsão e prata, contribuindo como ilustração, ora documental, ora ficcional, de uma metrópole que hoje compõe o nosso peculiar imaginário coletivo, originário de uma sociedade desaparecida prematuramente sob a névoa da decadência econômica do fim dos seringais. Nas três últimas décadas do Séc. XX, um outro “boom”, agora o da expansão da indústria fotográfica, espalhou pelo mundo diferentes recursos audiovisuais voltados para o mercado amador, tornando-os instrumentos capazes de reascender a vocação para recordação não só dos que aqui vivem, mas do homem moderno. Produzir retratos de algum ente querido, de um objeto, um lugar e até mesmo seu auto-retrato, gerou novos comportamentos na sociedade e uma nova visualidade passou a ser Este texto faz parte das considerações finais da minha Monografia ‘Pretérito Imperfeito de uma cidade especular’, de Pós-graduação em Semiótica e Artes visuais, no curso de Especialização do ICA/UFPA, de 2004 em Belém/PA 1
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armazenada como relíquias históricas pelas mais diferentes camadas econômicas, que a partir de então, puderam manifestar seus desejos e hábitos através da fotografia. Em alguns grupos, tais registros estão em número reduzido de formatos, técnicas e linguagens, já em outros foram multiplicados em profusão quase compulsiva. Susan Sontag observou que a partir do barateamento e multiplicação das imagens técnicas para o mercado amador “A fotografia torna-se um ritual na vida familiar precisamente quando, nos países industrializados da Europa e da América, a própria instituição da família começa a sofrer uma transformação radical. À medida que aquela unidade claustrofóbica, a família nuclear, pouco a pouco se constituía no interior de um grupo familiar mais amplo, a fotografia surgia para nos recordar e reafirmar simbolicamente que a coesão da vida familiar estava ameaçada e seu raio de ação vinha diminuindo. Rastro fantasmagórico, a fotografia nos traz à lembrança a presença simbólica da família dispersa. Um álbum de família inclui geralmente fotografias de toda uma família e, muitas vezes, é tudo que dela nos resta.” (SONTAG, 1983: p. 09)
Isso porque, diria Berger “As imagens foram a princípio feitas para evocar as aparências de algo ausente. Aos poucos foi se tornando evidente que uma imagem podia ultrapassar em duração aquilo que ela representava: mostrava, então, como uma coisa ou alguém havia antes se parecido – e assim, por implicação, como um assunto fora visto antes por outras pessoas. Mais tarde, também a visão específica do fazer de imagens era reconhecida como parte do registro. Uma imagem tornou-se um registro de como X tinha visto Y. Isso era o resultado de uma crescente consciência da individualidade acompanhando uma percepção crescente da História. (...) Nenhuma outra forma de relíquia ou texto proveniente do passado pode oferecer um testemunho assim tão direto sobre o mundo que rodeava as outras pessoas em outros tempos como a fotografia.” (BERGER, 1999: p.12)
Ao buscar nos guardados alheios os vestígios do que considerei ‘fragmentos de um discurso amoroso’ sobre Belém, pretendia me aproximar da imagem especular de cidade inscrita na memória coletiva de várias gerações, hoje ausente ou suspensa na invisibilidade da memória. Por outro lado, procurava materializar a imagem da minha própria cidade interior. O que tratei como ‘imagem especular’ no título da pesquisa, em primeiro lugar, foi uma apropriação à expressão usada por Arlindo Machado no livro “A Ilusão Especular”, que define o termo como “o conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelatório. [porque], A fotografia em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como o ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória.” (MACHADO, 1984: pp.10-11)
A esse caráter especulativo da imagem fotográfica incluí também uma conotação investigativa, ainda que ficcional, influenciada pela minha formação em Arquitetura e Urbanismo, além da predileção por temas memorialistas, que de alguma 2
forma sempre motivaram uma relação direta, às vezes explícita, outras vezes velada, entre minha paixão pela cidade e a fotografia. As fotos de Belém feitas por Hüebner, Dauer, Fidanza e tantos outros fotógrafos brilhantes da Belle Époque contribuíram para a formação da áurea encantadora e enigmática de cidade que habita na minha imaginação, e pela qual empreendi todos os questionamentos e hipóteses na criação do vídeo Pretérito Imperfeito. Sempre me perguntei o que esses documentos visuais poderiam trazer de informação sobre o espaço urbano e sobre seus personagens, e quais as influências subliminares que as fotografias antigas de Belém deixaram na maneira pela qual as gerações posteriores viram e retrataram a cidade nos tempos seguintes. Registros tão ricos de particularidades e, ao mesmo tempo, universalidades. Na minha interpretação criativa, desvinculada das amarras cronológicas e dos valores antropológicos que todos esses documentos suscitam, essas imagens carregam consigo uma carga infindável de significados que só são dados a enxergar se antes de compreendê-los, for possível torná-los parte indissociável da maneira como se experimenta a cidade. Na procura pela fisionomia de Belém, com suas praças, fachadas históricas, mangueiras e beira-rio, encontrei fotos de rostos, animais de estimação e interiores, em pequenas e grandes coleções de retratos de pessoas e objetos, em sua maioria, preciosos apenas para os seus proprietários. Raros foram os registros que tinham a cidade como tema, e o pouco encontrado ou eram velhos cartões postais (alguns de outras cidades) ou instantâneos de passeios por pontos turísticos, onde Belém aparece apenas como cenário de alguma data especial para os protagonistas envolvidos nas cenas. Independente dos grupos sociais representados nos registros coletados na pesquisa, o resultado material de qualquer criação fotográfica interfere continuamente na percepção da sociedade em relação aos tradicionais cânones históricos do saber visual. A manipulação criativa da visualidade, através da fotografia (e seus meios afins) carrega e sempre carregou esta dualidade de informar e inventar conceitos e significados para o mundo em nossa volta. Conforme a definição que lhe deu Vilém Flusser, a fotografia foi a primeira imagem técnica que introjetou em seu funcionamento as leis da visualidade, permitindo que à realidade do visível fosse dada uma camada interpretativa. Se neste sentido os signos midiáticos podem ser considerados interpretativos e, como tal, também a fotografia, uma das questões mais pertinentes ao seu estudo é saber se uma interpretação da realidade, sob a forma de uma imagem técnica, poderia somente ser pautada na objetividade que este tipo de signo pode suscitar figurativamente. Estudos de teóricos como Peirce, Barthes, Susan Sontag e Flusser, entre outros, demonstram a fragilidade da objetividade da representação fotográfica no que esta tem de mero instrumento duplicador da realidade. No meu ponto de vista, tal fragilidade fica evidente pelo poder sígnico que cada foto, fotograma ou frame possuem na sua gênese, capaz de carregar, ao mesmo tempo, as tricotomias características da relação do signo com seu objeto. Uma mesma fotografia pode ser ícone, índice e símbolo, principalmente quando assim o é para um interpretante, e 3
quando o mesmo passa a agregar a ele os códigos culturais de um grupo em uma determinada época, ou em várias. Chego a acreditar que a ausência de registros formais de cidade nas fotografias e vídeos amadores pode ser um indício da fragmentação urbana ao qual estamos todos expostos, dada a rapidez com que se desencadeiam as mudanças no cotidiano de uma metrópole. Com a velocidade e violência com que se processam as descaracterizações no perfil das cidades contemporâneas, nossos sentidos passam por processos de anestesiamento e banalização, causando a perda paulatina da percepção do todo espacial. Porém, como minha pesquisa estava direcionada para a elaboração de um trabalho ficcional, sem o compromisso imediato de analisar causas e efeitos das transformações intuídas ao longo do processo, deixo aqui nas minhas considerações finais, tais questionamentos alinhavados como hipóteses passíveis de aprofundamentos futuros. O verdadeiro foco da pesquisa ‘Pretérito Imperfeito de uma cidade Especular’ foi experimentar o processo de apropriação de signos visuais produzidos por terceiros, e adaptá-los à criação de nova(s) narrativa(s), a fim de testar (e atestar) o que de objetividade e ficção denotativa e conotativa tem a fotografia. Minha leitura sobre o grupo de imagens selecionado para o vídeo nada mais é que um exercício semiótico sobre a fotografia como linguagem capaz de criar sintaxes próprias, e, como diria Barthes, capaz também de operacionalizar a criação de novos idioletos. Ao final da seleção e criação de Pretérito Imperfeito percebi que a imagem da cidade, recortada pelo olhar amador, é o retrato que cada pessoa, fotógrafo ou não, faz de si mesmo. Como se a imagem das pessoas e seus objetos substituíssem o reflexo da cidade real, de pedra e cal. Porque o conceito de cidade muitas vezes se confunde com o conceito que temos de lugar. Lugar esse que mais parece ter o sentido de lugar interior, mental, objeto dinâmico percebido na invisibilidade do signo. Diferentemente das imagens postais que identificam Belém da maneira convencional, encontrei na grande maioria dos acervos pesquisados, imagens que pouco ou nada identificavam a cidade, a não ser quando inseridas no contexto particular do seu autor ou colecionador. Mesmo as fotos que nada denotam sobre a cidade concreta, em muitos aspectos conotam sentidos variados sobre uma cidade especular e sobre os que nela vivem, criando-a e recriando-a diariamente em imagens mentais, imaginárias. Daí a imagem da cidade tradicional ser substituída por outros traços que não os contornos das torres de igrejas, os perfis de esquinas ou as sombras de mangueiras; em seus lugares, ficam os reflexos dos seus habitantes, os sons e movimentos deslocados na invisibilidade de um tempo pretérito e imperfeito, porém carregado de mágica, como a revolução da própria fotografia, que “é a revolução dos ‘objetos deslocados’, que mostra-nos, anuncia-nos que as revoluções nas ciências e nas artes ocorrem na invisibilidade: invisibilidade das leis constituintes dos processos que fazem emergir os signos técnicos, como a fotografia, e invisibilidade para onde o olhar é deslocado: "no nada". No nada dos espaços urbanos que rivalizam com o homem um lugar de existência ou 4
entre-lugar de passagem, intervalo de subjetividade e afeto.” (CHAMARELLI FILHO, documento consultado via web)
O passeio de Samuel por entre os ícones, índices e símbolos da nossa cultura, ou mais apropriado seria dizer do meu entendimento particular sobre o que é nossa cultura urbana, se processa como uma viagem ao mundo das invisibilidades polissêmicas dos signos. Como uma grafia imaterial que se desencadeia no campo das idéias indizíveis. Passeio como os relatos de Ítalo Calvino no livro "As Cidades Invisíveis", onde ele mostra como é possível construir diferentes cidades (que no fundo é sempre uma, a mesma apenas) conforme se privilegiem determinados aspectos durante os relatos. O conceito de cidade só existe enquanto relação entre os diferentes grupos que interagem em um dado sistema produtivo. Cada grupo, com seu particular modo de ver o mundo ou com seus interesses voltados para aspectos específicos, pode construir e reconstruir a cidade criativamente, a partir de elementos selecionados de um incontável universo de possibilidades disponíveis na cultura de uma sociedade. Isso, claro, sem esquecer que “na leitura de uma cidade, precisamos ter cuidado para não confundirmos as imagens do mundo real e as que são por nós inventadas, motivadas por um desejo de ver e encerrar dentro de um conceito ou dentro de um repertório o objeto observado. É preciso dizer que por trás das imagens oferecidas à objetividade do olhar, existem outras que se mostram em doses homeopáticas, que são aquelas imagens instantâneas, surgidas da relação direta do sujeito com a cidade, principalmente quando ele é dominado por um estado de devaneio.” (ALMANDRADE, documento consultado via www)
E qual seria o risco do sonho, de um devaneio feliz de cidade? O risco de entender suas imagens como enigmas e ao tentarmos decifrá-los, lançar sobre eles também nossas interpretações subjetivas. O risco de transformar informações objetivas em relatos seletivos como os de Hermes, que segundo a lenda transformava o teor das mensagens de que era portador, subtraindo ou adicionando elementos conforme os interesses da sua seleção particular. Mas este é o verdadeiro risco de todos os sistemas representativos que todas as gerações dispõem. Cada época teve e provavelmente sempre terá seus simulacros, e a operação de simulação nunca cessa, nem cessará. FLAVYA MUTRAN Fotógrafa e Artista-pesquisador, é paraense e atualmente é Bolsista da Capes no Programa de PósGraduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Mestrado em Poéticas Visuais. REFERÊNCIAS ALMANDRADE, Antônio Luiz M. Andrade. A Imagem Urbana e o Enigma da Paisagem. In: URL: http://www.revistaautor.com.br/artigos/2005/43ext4.htm BERGER, John. Modos de ver (trad. de Lucia Olinto). Rocco, 1999 CHAMARELLI FILHO, Milton. Fotografia, Percepção e Subjetividade. In: URL: http://www.virtualphoto.net/artigos/artigos.php MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo/SP, Brasiliense/Funarte, 1984 (Col. Primeiros Vôos). SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro/RJ, Arbor, 1983. 5