Fluxo Revista de Criação Literária - 3ª edição

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A Fluxo 3 traz a lume a efervescência de Políticas do Desejo: Contos e Poemas LGBT, refletindo as dinâmicas sociais, pessoais e relacionais, as vivências e experiências ansiadas e queridas no lugar comum e de respeitado direito histórico, social, político, privado e individual. As vozes que se levantam, levantam-se numa onda criativa de 13 poemas e 13 contos escolhidos entre muitos outros igualmente bons (todos eles mereceram a nossa cuidada observação no cumprimento por vezes desagradável de ter de excluir um em proveito de outro); as outras vozes, “emudecidas” por seleção (com tudo o que traz de arbitrário e contingente no seu momento), nem por isso deixaram de merecer o nosso grande apreço e carinho, o nosso desejo que retornem uma próxima vez à nossa embarcação. Portanto, a todos o nosso agradecimento pela participação neste número. Políticas do Desejo: Contos e Poemas LGBT. A expressão de uma sexualidade humana, ainda a relação entre o ativo e o passivo, entre o masculino e o feminino, que nas dinâmicas LGBT assume as suas formas particulares mas perfeitamente admissíveis ao corpo e ao espírito humanos. Não damos razões ao preconceito (que nos parece dominar as “políticas externas”), porque este efetivamente corta e dilacera a capacidade e a potencialidade de desenvolvimento e de realização humanas; e as vozes que aqui cantam e narram, fazem-no em absoluto reconhecimento da sua própria humanidade de direito, através precisamente da criatividade literária que a Fluxo tem todo o prazer de acolher e difundir. Oferecemos a oportunidade de que os leitores surfem nestas águas por vezes revoltas e rebeldes, com o intuito de que elas possam ser apaziguadas e mostradas tão só na sua profunda beleza transformadora e criadora. Bons ventos!


Expediente

Editores Angelita Santos da Silva Paulo Filipe Julio Dominguez Designer Editorial Eduardo Tavares ©2015 Publicado originalmente em setembro de 2015 Fluxo – Revista de Criação Literária Todos os textos são copyright de seus respectivos autores ©Ana de Oliveira / ©Anabela Borges /©Douglas Rosa / ©Edson Amaro /©Elaine Mattos / ©Erivaldo Mattüs / ©Fernando Cesar Borges e Silva/ ©Gabriel Madeira / ©Giovane Cavalcante dos Santos / ©Gregory O’brien Verona / ©Herena Reis Barcelos / ©Jamie Howlett / ©Jørge Pereira / ©Maria Rosa de Miranda Coutinho / ©Marcelo Moreira / ©Marina Feldhues / ©Mario Baggio / ©Nina Spim / ©Regiane Folter /©Rodrigo Domit / ©Rodrigo Menezes / ©Rosane Castro / ©Sara Timóteo / ©Thomas Brenner / ©Valéria Bicca Ferrari / ©Vinny Puttini Todos os direitos reservados



Índice Poemas 9 Encontro 11 Da Capela Sistina 13 Antinarciso 15 Homofobia 17 Desejosos amantes 19 De mi vida contigo 21 Orgasmo subliminar 23 Balada da barba 25 Que arde 27 Biografia de um arco-íris 29 Vai 31 Políticas do desejo 33 Coniunctio 35

Contos 37 Querida Diana 39 Eu vou chamar Iansã e Ogum e Oxalá [...] 45 Sedução vampírica 49 Dorinha e Ritinha 53 Dexistido 57 Jornada sobre o fogo 61 Viagem 67 Chegada 69 Sinuca de Bico 71 Roda - gigante 73 Viena 79 Desterro 83 A águia de Aquário 85



Poemas


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Encontro Sombras azuis sobem em volutas, como o rasto deixado pelo fumo das velas apagadas. E o teu corpo, abandonado no silêncio do que foi o deleite das horas passadas, guarda o cheiro desse santuário que somos: seres adejados de luz e treva, de quietudes e assombros e asas ansiosas. Os nossos olhos falam a língua dos pássaros, quando querem recolher-se nos beirais, e os gestos que trazemos conduzem-nos onde queremos, na pressa de atravessar ruas, gentes e umbrais. Sem mais.

Anabela Borges

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Da Capela Sistina ¹ Para Sergio Viula e Roberto Muniz Dias A Capela Sistina contemplando, Canto de Michelangelo o talento E a ousadia de pintar em grande bando A nudez, afrontando o pensamento Da Igreja que negava o corpo quando Novos mundos se abriam no Oceano. Era o Renascimento italiano Que renovava os clássicos valores. Às luzes que trouxeram, meus louvores Nos dez pés de martelo alagoano. O pintor pôs num cérebro abrigado Um Deus carnal com seu braço estendido Mas é Adão que está sendo criado Ou um segredo que vemos invertido? O Criador não terá sido inventado Pelo lóbulo crente num engano, Por isso parecendo Deus humano? Do artista que estudava anatomia – Em segredo – alto aplaudo a heresia Nos dez pés de martelo alagoano. Sete profetas foram retratados E do Gênesis cenas são mostradas No lugar dos apóstolos pensados Pelo papa das bulas consagradas. Nem cenas do Evangelho são tratadas No teto que parece tão profano No próprio coração do Vaticano. Até quatro Sibilas têm lugar: Pitonisas pagãs a versejar Nos dez pés de martelo alagoano? Na Capela infiltrado o paganismo Das Sibilas, dos fortes corpos nus, Defender já resolve o Judaísmo, Credo que professava o bom Jesus. Eis a marca amarela do ostracismo

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Que ao povo de Moisés provoca dano: Ancestral do Messias soberano, Aminadab a tem no próprio manto. Comentar tal detalhe causa espanto Nos dez pés de martelo alagoano! No painel do Juízo Universal, Que se vê na parede desse altar, Oito homens são felizes a trocar Beijos puros de amor terno e carnal. Dizem que o bom pintor samaritano Uma herege escondeu no céu mundano: Junto à Bartolomeu, junto a Maria, À Vittoria Colonna ocultaria Nos dez pés de martelo alagoano. Visões mil há nas tintas escondidas Que, no conclave, sempre são caladas. Se fossem as imagens debatidas, Corroendo ordenanças antiquadas, Tradições nunca antes discutidas Ver-se-iam questionadas ano a ano E, por mais que dissesse o Vaticano, Seriam contraditórias as leituras Dos painéis tal qual são das Escrituras Nos dez pés de martelo alagoano.

Edson Amaro

¹ Esse poema é um breve comentário sobre o livro Os Segredos da Capela Sistina, de Benjamin Blech & Roy Deliner, que apontam os detalhes históricos mencionados aqui.


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Antinarciso Amei o ódio com a força inabalável do corpo. Agarrei, sem perdão, a mão e o sexo. Temi e parti o tempo em momentos uníssonos, tanto feitos de amor e decepção. Não sou mais de mim mesmo, nem nunca o fui. É insuportável a leveza de não pertencer. Se formos tão feitos de invólucros, meu recipiente simplesmente não me comporta. Eu me transbordo. Transbordo-me tanto que, perfurada a pele, os olhos vazam. É impossível partir quando nunca se pode atravessar a primeira porta. É preciso demolir a casa, arrebentar as paredes e proteger-se dos escombros. Enormes pedaços de existência, concepção e realidade caindo mortos pelo assoalho. Assimilação é a única segurança de que nada visto se diluiu na incoerência. Almas são bulas. Bulas repletas de contraindicações e infortúnios. Porém é o limite da essência, é referencial. É lá que resido, como pedra fundamental sobre a qual edifiquei minha igreja, meu [templo, meu próprio desdobramento artificialmente puro e natural. Se um dia fui estranhamento e desalinho, hoje me venero justamente por descontruir. Observo, trôpega e lânguida, a beleza morta da sobrevivência passada. E por ser morta é bela. Não ser mais nada é ilusão. A norma adquire a vida assim que se passa a entender os dias como sequências de [obrigações. E, metro a metro, dia após dia, avança e engendra a tirania nos resistentes. E a complacência nos conformistas. A dicotomia que me trouxe por todo o caminho. Simples e plena, quase óbvia. Foi observar o contrapeso que sancionou minha própria medida. Sou um antinarciso, um androide dissimulado. Era o desatino transeunte entre o ser e o nada. Hoje sou.

Fernando Cesar Borges e Silva

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Homofobia Então, diz pra mim, O que você realmente sente? Não é desinteresse, Porque sempre me procura. Não é indiferença, Pois não me ignora, rotula. Sabe essas suas regras? Elas me prendem dentro de ti. Não será desejo Essa sua violência? Sabe o ódio que você carrega? Nutre também por si. Bobinho, Sabe essa sua intolerância? É, em essência, Simplesmente um amor travesti.

Herena Reis Barcelos

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Desejosos amantes Em um momento, não mais que em em um momento; As mãos que percorriam Corpos nús e quentes Tornaram-se pálidas, depravadas e indecentes. Não mais que em um segundo A natureza tornou-se imoral E a paixão entre iguais a chama do mal. Não mais que antes! Mas sempre tudo igual. Nossas penitências feitas com impaciência Não apagavam de nossos corpos O desejo fatal. Calam-se as bocas Daqueles que amam o mesmo, Fecham-se as pernas Dos desejos amantes. De repende, não mais que em um instante: O desejo tornou-se um lamento profundo, Consumidos fomos por nosso prazer estéril, Por um fruto infecundo. De repende, não mais que em um segundo.

Gregory O’Brien Verona

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De mi vida contigo Tendría que escribir De mi vida contigo De mis diecinueve años De las palabras que fueran dichas De la soledad Y de las ruinas de mi alma De tu voz feroz sobre la mía De tu cuerpo en llamas Sobre el mío, Pequeño pájaro azul De tus ojos claros De tu miedo del descubrimiento Tus orgasmos en mi boca El sexo El amor Tendría que escribir De nuestras pequeñas Muertes de mañana Pero ahora duerme bien, Rodrigo.

Jørge Pereira

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Orgasmo subliminar Larvas e vermes conduzem a dança Largados em cena de ruas estreitas Evocam dos céus prazeres banidos O culto aos vícios dos machos e fêmeas Num quarto escuro, romances profundos O lado selvagem dos bichos e bestas Orgias e caos aos olhos intrusos Frequências mundanas, fregueses espreitam Os filhos de Baco Penetram nos becos do palco do engano Transgridem esquinas do corpo astral Magia dual, teatro profano Luxúria real, suicidas mentais Nos campos etéreos, reflexos quânticos Ritos eróticos são termodinâmicos Os ogros psíquicos dos orbes dantescos Os sonhos impuros de dor e desejo Buracos imundos da “glória” humana Paixões pervertidas, amores doentes Dos atos nocivos, abismos do Tantra Força vital, ações deprimentes Laços da mente, cegueira insana Canais negativos, reações decadentes Dos fluidos do Inferno à loucura romana.

Marcelo Moreira

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Balada da barba Eu jรก acreditei em muitas barbas nessa vida... Cerradas, falhadas, bem feitas, umas grandes, outras aparadas. E hoje estou aqui, Nem um bigode sobrou pra mim. Peรงo uma cerveja com muito colarinho Para sentir o toque de um leve bigodinho E relembrar das noites de amor... Do tempo em que tinha meu rosto arranhado E meus ouvidos carregados De mentiras de amor. Agora, depois de mais um abandono, A cerveja jรก secou meu pranto, Vou ser feliz e viver... Deixarei minha barba crescer!

Marina Feldhues

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Que arde Vivemos em tempos duros de homens amargos sufocados por crenças brutas em que o amor é insulto e a violência da turba – desafogo de rotina é a cura

Rodrigo Domit

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Biografia de um arco-íris Seja um jovem reprimido. Odeie seus pais e sua família. Sinta-se estranho e incompreendido. Saia de casa. More sozinho. Faça um curso de humanas. Encontre o amor de sua vida. Apaixone-se. Tenha o coração partido. Desapaixone-se. Saia à noite. Dance música eletrônica. Beije bocas desconhecidas. Faça sexo em lugares ermos. Fume maconha. Declare-se ateu. Leia Nietzsche. Odeie os evangélicos. Odeie o Papa. Leia livros de autoajuda. Estude budismo. Ame coisas orientais. Acenda incensos. Faça uma tatuagem. Ame literatura.

Faça um blog. Escreva poemas. Ame artes. Faça teatro. Adote um gato. Faça trabalhos manuais. Coma sushi com os amigos. Viaje. Assista comédias românticas. Acorde num belo dia. Olhe pela janela. Sinta-se vazio. Chore no banheiro. Escute músicas tristes. Sinta saudades dele. Sinta saudades de você mesmo. Ligue p’ra sua mãe e diga que a ama. Faça terapia. Tome antidepressivos. Siga a vida. E um dia, Talvez, Quem sabe? Ela doa menos...

Rodrigo Menezes

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Vai Há tanto susto nos seus olhos redondos, moça, um ponto de interrogação no meio de sua testa, parênteses nos cantos de sua boca. Umas mãos magras deslocadas sem saber onde tocar, reticências em volta de sua juventude. Menina, fosse eu sua mãe, seu orientador, a moça que faz mechas em seu cabelos... fosse eu sua prima do interior, o barman performático, a cartomante charlatã do bairro, eu diria: vai, entregue-se pra’quela moça, dancem juntas e andem de bicicleta, bebam de vez em quando, ensine a ela suas artes, façam tatuagens complementares, depois venha aqui, tarde qualquer, me contar sobre seus beijos como se fossem os mais triviais dos dias.

Rosane Castro

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Políticas do desejo A nossa janela reflecte dois pares de seios nacarados, ou nem tanto: eu sou baunilha e tu tens na pele a declinação precisa de mil cores de café e chocolate. A janela não pode contar como cheiras a framboesa, a morango e como cedo ao sabor mais ácido do teu sexo proeza da floresta insubmissa que a mim se entrega em noites de verão mudas quando os peixes e os tritões vêm morrer na maré baixa e o nosso amor fecunda o areal de estrelas.

Sara Timóteo

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Coniunctio ¹ O sexo divide em sol e lua o eclipse; A carne, una e nua, em Hermes e Afrodite. Mas na névoa leve, leve névoa do ópio, os opostos se apossam: o sol enlaça a lua até os ossos. E desse laço o que sobra? Claras sombras, sua obra.

Thomas Brenner

¹ Símbolo alquímico que representa a fusão dos opostos.

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Contos


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Querida Diana Querida Dianna, Venho recebendo vários convites por sua causa. Todos eles feitos por pessoas que não possuem mais nada para fazer da vida, e querem atualizar outras pessoas que também não cuidam de seus afazeres. Tudo porque eu passei um bom tempo dividindo o ar com você naquele mausoléu. Tudo isso porque se importam muito com a sua vida, que parou de atualizar-se nas bocas curiosas da cidade – e outras tantas fora dela. Não sei como me descobriram, já que você sempre foi tão reservada. Mas, sendo assim, não perderam tempo em importunar a pessoa que esteve, por tanto tempo ao seu lado – da grande autora Dianna Leal que de repente sumiu da lente da mídia. E é óbvio, porventura, que recusei cada um deles. Vi as sobrancelhas dos caras de pau se unirem em interrogação. “Mas você não é a garota da Dianna?” perguntou-me um deles, depois daquele típico silêncio desconfortável, e de se remexer na cadeira umas mil vezes à procura de uma razão, no mínimo, plausível. Havia ausência de vontade de promover meu nome em cima do seu, coisa que parecia impossível de compreender. Eu não era então uma aproveitadora? Era apenas uma garota que passou tempo demais ao seu lado, e que agora não sabe agarrar as oportunidades de abrir o bico e ser comentada por todos? Eu não era, nem sou, nada disso. Sou a mesma pessoa que você conheceu, que apareceu na sua grande casa numa terça-feira de Setembro. Tio Jacques estava preocupado, suas mãos passeando nervosamente nos ralos cabelos embranquecidos – talvez pelo tempo, ou pela preocupação que andou acompanhando-o demais. Ele me contou, com significativos detalhes, sobre sua vida de porre.

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Você sabe que boas coisas não saíram da boca dele, por mais que o homem estivesse preocupado na escolha das palavras. Tio Jacques ainda tinha o mesmo pensamento do tal jornalista, de que eu era uma aproveitadora, e que iria divulgar todos os pormenores sobre você – aqueles que ainda não foram para o trombone. Senti que era uma luta interna, e que no fundo do fundo ele lutava para dar ouvidos ao anjinho pousado em seu ombro direito, que lhe dizia para confiar em mim. Que assegurava a ele, que eu era a melhor pessoa para apadrinhar você, e tentar de todas as formas tirar-lhe da bebedeira. Ou era eu, uma pessoa que ele supostamente conhecia, ou um estranho que tinha 50% a mais de chances de ser um cretino. E meu distante parentesco com ele não ajudava. Era meu tio, mas estava longe de ser presente, ou de saber as coisas básicas da minha vida. Tanto é que ele nem estava considerando o importante fato de que eu estava um pouco fragilizada, por causa do meu término com o Ivan, e a demissão de onde eu trabalhava. Tudo bem que eu não havia chegado no mesmo ponto que você, e que estava pelo menos a dois passos à frente só por estar sóbria, longe da devassidão. Contudo, ainda tinha aqueles pontos no meu coração que não podiam ser tocados. Aqueles assuntos, aquelas perguntas. E o medo de estar à beira de uma reação trágica em cadeia. Mas, ignorando tudo isso, e pensando apenas em você, ele começou a confiar. Com muito custo. O ato que selou seu ato de bravura, diante do enorme medo de fazer uma besteira, foi a mão dele apertando a minha. Estávamos fazendo um trato, o qual Tio Jacques esperava não se arrepender, e não ver você sofrer caso a pior hipótese se concretizasse.


Ele sorriu, e me guiou onde você costumava estar naquele horário. No escritório, gastando as primeiras horas do dia se convencendo de que o melhor café da manhã seria sua cigarrilha mentolada. Aquele cheiro impregnado em cada canto do vasto cômodo, fazendo parte dele. Mesmo quando você não estava lá, torturando seus pulmões. Tio Jacques estranhou sua ausência parcial naquele dia. Parcial porque o cheiro continuava ali, como se esperasse seu certeiro retorno. Então começamos a lhe procurar pelo resto dos cômodos, o que era uma tarefa chata, visto que tudo naquela casa era exagerado. O espaço em demasia sempre me fez sentir perdida e largada, mesmo quando era preenchido pela sua presença. Achamos você no jardim. Mais tarde entendi porque aquela situação era incomum. Você nunca pareceu ligar para o jardim dos fundos. Meu tio me disse que você sempre pensou que aquele era um lugar que servia muito bem como depósito de garrafas vazias, e de qualquer lixo vindo de uma de suas algazarras noturnas na mansão. Eu olhei para você, e de repente minha bagagem de problemas sentimentais parecia mais leve. Porque a sua era muito mais pesada, e difícil de aguentar. Era exatamente isso que seu ar denso e triste me disse quando lhe encontramos. Mesmo sabendo mais do que o suficiente, e mesmo sabendo do quão é ruim perder alguém, não entendi seu peso todo. Por que era tão pesado? Nem ao menos era uma morte. Você nem era viúva! Minha mania de possuir amor próprio e desejo de superação neblinava qualquer razão para a existência de sua interminável amargura. Por que que alguém precisa estar tão triste por outra pessoa que sequer se importa? Por que você merecia sofrer e se afundar na maior podridão? Eu não sabia exatamente o que motivou o rompimento com a sua amada, mas não conseguia imaginar nenhuma situação sentimentalmente hedionda que explicasse sua queda e suas feridas latentes. E mesmo quando eu soube, a compreensão não chegou até mim. Você supostamente havia feito tudo tão certo, e ela, errado. Você não era nenhum demônio, nenhum tipo de abominação. Ela certamente também não. Mas ela era um ser humano, que, como todos, errou. Errou feio, mas jamais mereceu que suas lágrimas caíssem por conta dela. Como eu poderia entender a extensão do amor que você fazia questão de nutrir? Como poderia ser explicado para mim que era possível alguém ter tão pouco, ou tão nada, de amor próprio?

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Como poderia ser possível amar alguém que lhe chicoteou tanto? Era muito difícil encontrar respostas satisfatórias. Nenhuma palavra jamais expressou o que você sentia. Todos os vocábulos, de todas as línguas que você tanto domina, não me diziam nem um pouco do que havia de tão sensato em seus atos contra a própria sanidade. Em um dado momento, dei minha busca por encerrada. Os juízos que eu tentava encontrar no seu ar masoquista e flagelado não importavam mais. Eu apenas queria ajudar-lhe. Queria ser sua muleta, já que visivelmente você mancava. Foi a partir desse ponto que começamos a aniquilar nossos demônios. Alguém muito esperto me disse que é preciso saber que nem tudo está sujeito à nossa compreensão. As razões distorcidas carregadas por você eram a prova dessa sentença. Eu estava lá para ajudar você, e não para lhe dizer o quanto de besteira tinha em suas ações e pensamentos. Até porque isso não ajudava em nada. Ainda bem que o Tio Jacques nunca me perguntou sobre quando foi que você passou a depender tanto de mim. Nem eu saberia responder. Mas sei que não foi do dia pra noite, porque você é gradativa. Até mesmo sua queda, no enorme abismo que se enfiou por tanto tempo, não foi de repente. Sei que, em um determinado dia, você sentiu minha falta. E quando isso aconteceu, pareceu que outro abismo se abriu na sua frente, quase convincente demais para que você resistisse ao convite. E eu também senti sua falta. De cuidar de você, estar sempre brigando com seus hábitos que volta e meia imploravam para um retorno em sua rotina. Mas era preciso ser sensata, e diferente de você, meu amor próprio existiu. Precisou existir, e dizer-me que eu não merecia ser comparada a todo tempo com seu antigo amor, ou ser ofuscada por ela. Estava na cara que o que começamos não se aproximava em nada de uma bela amizade, e o que quer que fosse aquilo que tivemos não precisava de suas dúvidas; de sua falta de confiança; ou então da mínima comparação que você insistia em fazer. Merecia muito mais que isso. Eu sei que você não estava inteira, nem eu estava – e nunca exigi que estivesse. Mas o pouco que eu queria era simplesmente ocupar o devido espaço em seu coração. Era pouquinho. Não era exagero, ou abuso. Queria que reconhecesse, tentando espantar o medo, de que estava tão apaixonada e entregue quanto eu. Ambas sofremos com o amor, somos diferentes, mas de nenhuma forma consegui enxergar da

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sua parte tentativas de fazer durar. Dianna, provavelmente sei da força que as minhas palavras chegam até você. Sei que o que estou fazendo não é nada saudável; não é como se eu estivesse apenas escrevendo para perguntar como você está. Até porque é uma resposta ao encontro imprevisível que nossos olhares tiveram alguns dias atrás. Não sei porque parece que você é uma criança que precisa de explicações quanto à origem das coisas. Mas talvez se soubesse minha versão do que vivemos, entenderia o que eu fiz. Entenderia que houve um ponto em que precisei cuidar de mim mesma, para evitar de encontrar o abismo novamente. Sei que dei todos os detalhes, e que há algumas perguntas aí na sua cabecinha, mas isso é tudo que você precisa saber. Eu precisava de alguém que estivesse disposto, entenda. Não dá para sustentar os dois lados da corda, quando eu mal consigo segurar um. Um relacionamento é uma troca, e, se não há nada vindo de sua parte, sinto que tudo é em vão. E não queria sofrer por alguém em vão. Não queria que fosse apenas porque eu te amo. Meus sentimentos não bastaram mais. Eu precisava mais do que isso para suportar todas as dificuldades que eventualmente encontraríamos como casal. Não cometa um erro. Não mais um. Entregue-se para qual for a pessoa que tenha roubado seu coração, e doe aquela metade que eu nunca conheci, e que você sempre guardou, porque achou que não era preciso ser mostrada. É aquela parte que eu procurei, que tanto ansiei. Mas que nunca encontrei. Não tenha medo. Tenha defesa. Defesa contra quem ousar quebrar seu coração. Tenha ciência de que estas pessoas, que quebram corações, não merecem nem um segundo do seu tempo. Entenderei se eu for uma delas. Errei, também. E não quero saber quem errou mais, ou menos, porque no final das contas nem importa. Erro é erro. Errar é tão humano quanto nós duas. Apenas tenha consciência de que lhe dese-

jo o melhor, e não importa se você me quer ao seu lado, ou não, porque acho que já acostumei a lhe amar de longe. Por mim, o que você achar melhor é o melhor. E estou fazendo mais uma vez. Sufocando meu amor próprio, colocando suas necessidades acima das minhas. Mas é isso o que o amor faz, ou tenta fazer. Eu não sei. Talvez eu queira uma resposta. Saber que a bebida continua longe de você, e que meu tio lhe arranjou um padrinho, ou madrinha, melhor para assegurar sua sobriedade e bem-estar. Mas por favor, não me responda se a resposta não for o que eu quero ler. Minhas noites não costumam ser lá essas coisas, e às vezes tenho muita dificuldade para dormir. Espero que esteja bem. Muito bem. Sincera nas muitas palavras escritas, Lívia.

Ana de Oliveira

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Eu vou chamar Iansã e Ogum e Oxalá [ou tudo aquilo que não importa e que deveria importar]¹

Quinta-feira, 13h37 Estou caindo (...) Acordo com a límpida sensação de estar no porão de algum lugar distinto da minha casa. Não identifico se as paredes do espaço são amarelas ou laranjas, se a decoração é mais um daqueles clichês horrorosos dos imóveis da burguesia, mas a última lembrança que tenho é que cai, despenquei, morri. Tudo aqui tem cheiro de incenso de hortelã; não, não sei se é hortelã ou menta, o que importa? Eu saberia dizer exatamente o cheiro do incenso se o odor do meu corpo não estivesse mais forte do que todos os outros odores presentes aqui, sinto-me despenado, como se a alma tivesse sido raspada. Será que eu levanto? Não, não, é errado. Tenho que ficar aqui, tenho certeza de que não é sequestro, ai! Sou filho de doméstica, meu pai era pedreiro me diga, me diga, me diga: quem sequestraria o infrutuoso? Paro de falar sozinho e escuto uma música ao longe, alguém está ouvindo Nina Simone, a música parece distante, não identifico a letra, mas parece real, mais real do que eu agora e aqui. Espera, espera, espera! A única pessoa no mundo que escutaria Nina Simone, não importando se é dia ou noite ou madrugada é Maurício, mas quem é Maurício? Não sei se astrologia é mais uma das formas frívolas de dar detalhamento para a dor que não se detalha, mas Maurício é o cara do parque casado, que se descasou, que se isolou e... eu o conheci. Sabe a Avenida dos Pinheiros paralela com a Rua Lima e Silva? Entre elas tem um parque inútil, desses que a Prefeitura não dá conta, que a população ignora e que os mendigos, ah, os mendigos, eles são

os únicos beneficiados: afinal, ganham lar. Ganham área pra viver. Eu me perco entre explicações, mas não se iluda é o cheiro do incenso de hortelã ou de menta – eles são culpados pela minha confusão mental de quem nada explica e nada esclarece. Ou deve ser meu odor de cachaça barata e cigarro caro? Não importa. Maurício, retomando ao que concerne ao âmbito astrológico, é ariano com ascendente em Leão, mas tem a Lua em Touro. Todos os dias pela manhã, quando caminho em direção a pequena agência de publicidade a qual sou contratado, tenho que passar pelo parque, os mendigos já me conhecem, tentaram me assaltar uma ou duas vezes dentro de um ano, mas agora já me conhecem; compro pão na padaria, quando não estou atrasado, e deixo com a mendigada do parque e... Não importa. Fazendo confusão mental estou eu novamente. Há um ano o parque começou a mudar, a Prefeitura começou a limpar a área e meus amigos mendigos foram removidos de lá, sinto até falta, acredita? Nessa rápida ação da narrativa Maurício aparece. A Prefeitura contratou uma empresa terceirizada para limpar o parque, trouxe homens para instalar bancos e uma estátua que agora-esqueci-o-nome e, de modo óbvio, deixou para uma empresa de engenharia elétrica, a qual Maurício fazia parte, o trabalho de iluminar o ex-lar mendigo (ou vulgo parque). Se antes eu tinha a companhia daqueles homens e mulheres que dormiam em caixas de papelão; agora, de segunda a sexta, quando passo pelo parque para me dirigir ao trabalho, encontro muita gente trabalhando, reformando, reconstruindo o local. O Maurício era um deles.

¹ Título inspirado na canção Eu vou fazer macumba pra te amarrar, maldito!, de Johnny Hooker.

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Não vou contar o resto porque o cheiro desse incenso de hortelã ou menta (não sei, mas não importa!) está me deixando tonto; Nina Simone aparece cada vez mais próxima, será que alguém aumentou a música? Não importa. Só sei que não vou e não quero contar como ele me deu o primeiro Oi e também não contarei como eu, após 1.256 Ois dados pelo Maurício, pensei e repensei e fui bater papo com ele, assim, com Coca-Cola na mão mesmo, olhos dissimulados e oblíquos (alô, Machado!) e cheio de vida, afinal, tenho em mim todos os sonhos do mundo, quem não? (alô, F. Pessoa!). Não sei se ele gostou do papo, mas eu ofereci Coca-Cola, fui educado e gentil? Não importa. Ele disse não e sorriu, eu gostava do jeito dele, tinha algo de sujo mas limpo, tinha algo de oculto mas visível, ele parecia todo paradoxal e ao contrário, como se soubesse que minha mente já é confusa e que confundi-la ainda mais era uma estratégia provida de bom senso, afinal, quem precisa de alguém com a mente ordenada, não é? Tu não está ouvindo essa Nina Simone? Eu a ouço cada vez mais próxima, ela parece estar cantando aqui dentro desse porão que não sei se é porão, mas é parecido. Não importa. Só sei que Maurício me disse uma vez que ouvia uma rádio que toca músicas das décadas de 50, 60, 70 e 80 e eu disse que ele tinha bom gosto, apesar de possuir conhecimento restrito sobre a produção musical neste período. Não importa a música, importa é que nosso diálogo virou rotina, todo dia, eu passava na padaria na esquina de casa, comprava Coca-Cola, pegava o ônibus, descia na Avenida dos Pinheiros e passava pelo parque e o Maurício sempre estava pronto, parecia que ele ia se casar, ele me esperava, ele adorava me ver, ai! Eu não sei, não importa. Um dia ele me perguntou por qual motivo eu tomo tanta Coca-Cola e eu sorri e disse que era para acordar, ele não ficou convencido e perguntou de novo e eu disse que não sabia. Ele riu. De um modo paradoxal – que eu já expliquei, inclusive. Três meses depois ele me disse que estava separado e eu não queria saber os motivos,

mas fiquei triste por ele. No outro dia, antes de chegar à agência, passei pelo parque e dei uma Coca-Cola para ele e ele sorriu com o tradicional-modo-paradoxal. Não importa. Eu gostei. Duas semanas depois ele me perguntou que horas eu saía da agência e eu disse que: saio ás 13 horas. Ele nem me deixou terminar e disse que poderia pedir dispensa pro chefe e eu falei algo em francês, ele disse: como é? E eu sorri e re-disse: Pode ser. Não importa. Saímos e ele tinha um Ford Ka 2006, e eu que não entendia de carros fiquei feliz por não precisar pegar ônibus, eu odiava todas aquelas velhas idosas animadas que saiam de manhã enquanto eu tomava Coca-Cola para acordar e, com isso, diminuir meu desejo secreto de matar uma delas. Contei isso ao Maurício e ele sorriu de modo paradoxal e eu pedi Coca-Cola para ele e ele insistiu que, antes da Coca-Cola, queria me mostrar alguma outra coisa. Fomos a uma Casa de Arte no Centro Histórico da cidade e eu fiquei surpreso, não sabia que Maurício era apreciador de arte moderna. A exposição tratava sobre os deuses do candomblé sob a perspectiva da proteção dos orixás e eu gostei. Uma mulher gorda e negra e linda, uma espécie de curadora da exposição, olhou para nós e disse, de modo objetivo, que nossos orixás eram Iansã, Ogum e Oxalá e eu não entendi. Não importa. Ah, sabe o que Maurício fez? Riu de modo paradoxal. Eu esqueci a Coca-Cola até, depois que saímos da Casa de Arte, dei-me conta de que estava tremendo e disse a ele que precisava comprar uma latinha e ele sorriu daquele modo paradoxal (de novo). Espera. A canção de Nina Simone está perto demais. Inclusive... Inclusive essa canção que toca agora aqui nesse porão ou perto dele, não importa, agora eu consigo identificar a canção, ela se chama I Put a Spell on You e, no momento, não para de tocar, e toca alto demais, quase berrando. Já disse, Nina Simone está aqui dentro. Por Ogum, essa música tocou no carro quando voltamos da exposição, sabia? Ela não tocou apenas uma vez, mas dez vezes ou mais, como agora. Eu

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lembro que não aguentava mais aqueles versos que diziam You hear me/I put a spell on you/ Because you’re mine. E esse cheiro de incenso de hortelã ou menta, eu não sei e não importa, está me incomodando. Droga. Enquanto a música tocava, via que estávamos saindo da cidade e questionei Maurício, mas ele só riu de modo paradoxal. Ficamos em silêncio por trinta minutos e, quando eu já me preparava para pedir para ele tirar Nina Simone, pois eu já não aguentava mais a canção, o carro parou. Maurício, sorrindo de modo paradoxal, disse: chegamos. E eu não lembro o que fiz. Não importa. Notei que estávamos em uma casa de construção antiga, com o pátio mal cuidado, mas a iluminação do lugar era adequada e questionei se Maurício tinha colocado todos aqueles postes e ele disse que sim. Emendado com este sim, ele disse: entra. Não tinha medo, não importa. Minha vida era um resquício de lixo e Maurício, mesmo sorrindo de modo paradoxal, fazia-me sentir bem. A casa estava limpa, mas tinha poucos móveis e ele disse que ali era a casa dele após a separação e que não tinha muita coisa, mas tinha Coca-Cola. Acho que a música da Nina Simone me deixou tão atordoado que não lembrei que tremia por ausência de Coca-Cola. Quando ele jogou uma latinha em minha direção eu sorri e bebi aquilo em quatro minutos. Estava com sede daquilo. Em seguida, joguei a latinha no chão, limpei a boca com o rosto da mão e puxei Maurício para mim. Sim, eu beijei o cara, quem se importa? Não sei o que aconteceu, nunca me imaginei fazendo isso, nunca pensei nisso, nunca desejei isso. Mas a música de Nina Simone me... desregulou.

está escuro e esse cheiro de incenso de hortelã e menta está cada vez mais forte. Eu pergunto ‘quem é?”. Eu reclamo ‘abaixa esse som!’. Eu resmungo ‘me deixa sair’. Mas eu sei que esse alguém que não vejo e que está aqui não irá nada fazer. Estou caído. Estou fora de mim. Depois de beijar Maurício, fomos para o quarto, transamos, eu, um rapaz de vinte anos e ele um homem de quase quarenta, não sei... não importa. Eu lembro que gostei e que gemia. Ele repetia Nina Simone quando me acariciava, dizendo You hear me/I put a spell on you/ Because you’re mine. Maurício está aqui. Eu vejo o seu rosto. Eu estou deitado e vejo o seu rosto e ouço a música e... Cadê Iansã e Ogum e Oxalá nessa hora? A moça negra e gorda e linda não disse que orixás eram uma espécie de protetores? O que Maurício quer? Não importa. Ele me olho e sorri. Sorri de modo paradoxal. Sexta-feira, 08h32 - Oi – diz Maurício. - Oi. Quer Coca-Cola? – respondo. - Não. Hoje será um dia de muito trabalho aqui no parque, que horas você sai? - Saio ás 13 hor... - Quer sair comigo? - Sim, eu topo. Não importa. E caí.

Como me desregula agora. Sinto alguém entrar no porão ou nesse lugar que lembra um porão, não importa. Ainda tudo

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Douglas Rosa


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Sedução vampírica Ela surgiu de lugar nenhum, como se tivesse nascido com a brisa noturna. E em questão de segundos, já estávamos frente a frente. Ela despida como a natureza, uma face pálida e olhos negros como a noite, com um olhar tão letal quanto o suas presas. Eu ainda estava com a roupa que usei no culto, assustada e paralisada por sua beleza. Olhou fixamente para meus olhos, aproximou-se em passos lentos e me deu um beijo suculento. Senti a língua passando entre meus lábios com uma suavidade que nenhum homem seria capaz. O sabor de sangue em sua boca me deixou a ponto de gritar, mas já era tarde. Eu estava seduzida e hipnoticamente submissa a uma estranha criatura lésbica e nem Deus poderia me salvar luxúria traduzida em seu beijo. Seu olhar acabava comigo. Calafrios seguidos de calor pélvico. Ela abriu minha blusa rapidamente mostrando que não perderia sequer um segundo em carinhos. Sutiã brutalmente arrancado. Meus seios estavam um pouco suados e os mamilos durinhos. Ela veio com a boca beijando meu pescoço de maneira intensa e descendo aos meus limões sem graça. Foi quando, finalmente, senti a língua passando de leve ao redor do meu mamilo esquerdo. O sabor do meu corpo parecia aluciná-la. Meu suor era o alimento de seu desejo. Agressividade foi tomando lugar em nossa fantasia mística. Senti sua mão apertar minha boceta por cima da calcinha. Não consegui ter mais estranheza nem medo. Era como se minha carne não existisse mais. Tornei-me um instrumento da luxúria, sou uma escrava do desejo. Sentia somente o prazer dentro de mim. Minha dominadora começou a esfregar a mão cada vez mais rápido e continuou a mordiscar meus peitos de forma brusca... Ahhhhhhhhh... Ela foi descendo a língua, levantou minha saia e puxou de lado a aba

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da calcinha. E quando senti sua língua chegar em minha xana encharcada, Deus havia me abandonado. Fui dominada prazer carnal! Escravizada pelo tesão. Ela olha em meus olhos, estica a língua para baixo e sobe até o clitóris. Oh Deus! Por que me abandonaste? Só para eu descobrir que pecar é a coisa mais gostosa deste mundo. A velocidade das lambidas aumenta, sempre de baixo para cima. Rápida, veloz e incisiva nos ataques. Rios vertem de minhas boceta lubrificando o ato. Não pude conter meus gemidos. Aquela língua passando bem no meio de minha xoxota e dando aquelas mordidelas de leve, virei doida varrida. Parecia que eu estava no paraíso. Tomei uma de suas mãos e comecei a chupar seu indicador para aumentar a dose de prazer. Fui enrijecendo as pernas cada vez mais e prendi sua cabeça entre elas. O gozo era eminente. Fui gemendo cada vez mais alto. Não aguentava mais de tanto tesão e... Ahhhhhhh...Ahhhhhhhh...Ahhhhhhhh... Ahhhhhhhhhhhh... Orgasmo total! Eu tive a melhor gozada da minha vida. Nunca senti algo assim, nenhum homem me tocou desta forma. Era algo além do prazer! Algo que transcendeu minha alma. E me crucificou num calvário de delírios. E, de repente, parou a movimentação. Minha vampira enfiou sua língua em minha xana e começou a fazer alguns movimentos até que excitantes, mas algo estava errado. Eu sentia sua língua ir fundo. Sentia cocegas e desconforto em meu abdômen. Algo estava errado, uma língua não poderia ir tão longe. Lambia todo o meu interior sugando todo o gozo como se estivesse recolhendo o prazer sentido e também minhas energias vitais. Ela ficava cada vez mais agitada como se estivesse faminta por mais. Comecei a sentir uma dor muito forte em meu ventre, como se ela o estivesse sugando minhas tripas. As for-


ças estavam acabando. Eu me sentia fraca, totalmente debilitada. Tentei bater em sua cabeça, mas já era tarde demais. Desmaiei na cama, sem a menor noção de suas verdadeiras intenções... De leve, eu sentia os raios do sol batendo em meu rosto. A fraqueza persistia, mas já conseguia me movimentar de forma branda. Eu estava debruçada em minha cama vestida como havia chegado do culto. Não havia ninguém além de mim no recinto. Minha mestra havia sumido como a brisa que a trouxera. Entendi que tinha sede de prazer e eu era o seu alimento. Meu gozo representava sua energia, sua fonte de vitalidade. E agora me sinto escrava de tal prazer. Um vício sublime e profano. Preciso senti-la novamente, preciso da sua língua desbravando meu corpo. Seria eu uma vítima vampirizada? Eu não entendo como tudo isso aconteceu, talvez nem queira entender. Fico orgulhosa de ser a escolhida. Debruçada em minha cama reúno forças para encarar o dia, e alimento grandes esperanças, pois sei que logo a noite chegará...

E. Mattüs

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Dorinha e Ritinha Barra do Carmo é um município localizado no sul da Bahia. Tem cerca de três mil habitantes, sendo que setenta por cento moram em fazendas da região. Restam cerca de novecentas pessoas morando na Cidade, que se resume a algumas ruas, uma igreja católica, o prédio da prefeitura onde funciona a Câmara dos Vereadores no segundo andar, um posto de saúde, uma igreja evangélica e uma escola. O comércio local tem uma loja de aviamentos, dois mercadinhos, uma lanchonete, uma loja de roupas- tipo um brechó, uma loja de som de automóvel e mais nada. Esse é o balanço atual da cidade. Os moradores não apenas se conhecem. Eles realmente se conhecem. Nome, sobrenome, filiação, estado civil, onde trabalham: a ficha completa. Os habitantes que não trabalham no comércio são funcionários da Prefeitura, ou assumem seus postos na calçada logo depois do café da manhã e ficam lá observando quem passa, quem se visita e quem fala com quem. E nesse cenário uma criança chamava a atenção da comunidade. Isadora ou Dorinha. Cortava o cabelo com máquina um, usava calção e camiseta. Adorava jogar bola no campinho atrás da igreja e bola de gude no canteiro da Prefeitura. As pessoas achavam Dorinha divertida com seu jeito de menino, mas sem muito filtro para encontrar a essência, todos conviviam harmoniosamente. Em contraponto à Dorinha, Ritinha se destacava na escola e nas brincadeiras de rua. Sempre arrumadinha com fita no cabelo e com vestidos novos que a mãe costureira fazia com gosto para a filha,; Dorinha e Ritinha brincavam juntas de pique

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e de pipa. No futebol Dorinha no Gol e Ritinha na torcida, sentada em volta do campinho. Todos frequentavam a única escola que era municipal pela manhã e estadual à tarde, cumprindo assim todas as etapas do ensino fundamental e médio. Isadora fez quinze anos e continuava a se vestir e a se sentir como um menino. Rita cada dia mais fogosa, com vestidos de alcinha de tecidos finos, quase transparentes. Dora ficava horas espiando Ritinha descer e subir a ladeira, como uma bailarina em uma coreografia ensaiada. Não demorou muito para Dorinha se descobrir completamente apaixonada por Rita. Uma tarde, Isadora estava assistindo a um filme americano na TV, em companhia da avó, onde um cavalheiro subia uma escada de incêndio, na lateral do prédio, com um buquê de flores em uma mão e uma caixa de bombons em embalagens vermelhas deslumbrantes, na outra e se declarava para a mocinha. Dorinha, como todos os adolescentes do local, eram muito pobres. Ela não tinha dinheiro para flores e bombons. Não havia onde comprar flores e a vendinha do colégio vendia uns bombons amareloss e já desbotados pelo tempo de exposição no pote de plástico rosa, que ficava em cima do balcão. Nas férias, Dorinha conseguiu um trabalho em uma fazenda, ajudando a capinar, dando comida aos animais e assim, ganhar algum dinheiro para levar seu plano adiante. Comprou os bombons da vendinha e recortou revistas durante dias, até encontrar todos os vermelhos que precisava para enrolar os bombons, que pouco a pouco deixavam de ser amarelos. Na casa principal da fazenda, tinha um jardim muito bem cuidado, que ficou um pouco desfalcado, depois que Isadora fez uma “colheita” de flores. Em casa, pediu a avó um laço de fita. A avó olhou incrédula para ela, pensando em como uma fita podia combinar com o visual da neta. Mas levantou, abriu uma caixa de costura, com retalhos, linhas e algumas fitas coloridas. Dorinha pegou as flores e amarrou cuida-

dosamente o buque. Colocou os bombons vermelhos em uma sacolinha transparente e desceu a rua em direção à casa de Rita. Eram nove da noite e todos assistiam à novela. Alguns em pé na rua, debruçados na janela do vizinho, outros amontoados em torno de um único aparelho de TV na vizinhança. Ritinha ouviu um barulho na varanda e ficou pálida quando viu a cena. Isadora tinha escalado a pequena varanda, com flores e chocolates em punho e se declarou para a Rita, perguntando: quer namorar comigo? Ritinha, que nunca sonhara em ter um cavalheiro batendo a sua porta, aceitou de imediato. Depois de refeita do susto, se deu conta que estavam oficialmente namorando. Precisou de pouco tempo para as pessoas se referirem a elas como: Rita de Dora e Dora de Rita. Isadora aos 17 anos concluiu os estudos e foi para Ilhéus fazer Faculdade. Fez administração. Mas de quinze em quinze dias vinha visitar a namorada. Quatro anos de Faculdade e um emprego em Ilhéu em uma firma conceituada. Ritinha continuou em Barra do Carmo depois de terminar os estudos que a cidade oferecia e era voluntária em um centro social, alfabetizando adultos. Alguns anos se passaram, Dora virou chefe, tinha um bom currículo, mas não queria mais ficar longe de Rita. Pediu demissão, voltou para Barra do Carmo e conseguiu um emprego de assessora de cultura na Prefeitura. Com seus contatos colocou Ritinha para tomar conta da biblioteca municipal, que abria três horas por dia, na parte da tarde e garantia um salário mínimo. A biblioteca não era nada além de uma loja no térreo, uma ex-garagem úmida, com três estantes e alguns poucos livros, com duas mesas e quatro cadeiras de plástico manchadas. Mas tinham vasinhos de flores e toalhas de crochê feito por Rita. Com salários fixos elas resolveram se casar. Alugaram uma casa, fizeram contrato de união estável em um cartório na cidade vizinha de Ta-

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baú, que ficava a 15 quilômetros de distância. Esse ano, elas comemoraram 25 anos de união, sem contar o namoro dizia Ritinha, sempre que perguntavam e ela aproveitava para contar a cena das flores e dos chocolates vermelhos. São respeitadas na Cidade. Dorinha é madrinha de não sei quantas crianças, é uma espécie de braço direito do Prefeito, sempre tentando levar algum tipo de progresso para a região. Conseguiu a construção de uma quadra poliesportiva para as crianças e briga por elas sempre que enxerga uma nova possibilidade. Frequentam a igreja até hoje e são felizes. Só brigam mesmo, quando Ritinha, já com quase cinquenta anos, quer sair aos domingos de shortinho curto ou vestidos de alcinha transparentes. Dorinha reclama, manda ela se vestir direito, mas Ritinha ri e desce a rua toda fogosa! Invariavelmente se escuta em alguma roda de cadeiras na calçada: - lá vai Rita de Dora... - Continua bonita essa cabrita! - E dando trabalho pra Dora (risos) E a rotina volta à Cidade.

Ellaine Matos

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Dexistido É como um dia qualquer. Você acorda, levanta, morning wood, faz malabarismos para mijar, põe a água para fazer um café e procura alguma rachadura no teto meio dormindo. Alguma mancha ou incrustação que não estivesse ali no dia anterior. A chaleira chia, o café faz cheiro bom. Som da unha raspando uma sujeira nova no apartamento alugado. A cozinha minúscula começa a impregnar-se de cafeína, o cheiro melhor que o gosto, pensa. A ramela do olho incomoda, o pijama mancha com uma gota de café que, perdida, acaba saindo do coador e encontra em cheio uma camiseta velha que foi do irmão mais velho. O dia suspenso no varal com a promessa de secar até o fim da tarde. O dia tem motivos de bolinhas vermelhas. Tem alguns momentos, logo ao acordar, pensa, que não sei bem quem sou. Fico por uns momentos pensando onde raios vim parar mesmo. São momentos de lembrar que a vida recém saiu da máquina de lavar. Uma vida limpa, poderia até dizer. Cheiro do companheiro na cama deixa você meio confuso. Como foi mesmo que ele veio parar aqui? Lembra do corpo excitado, duro, na noite anterior. É um cheiro que prima por algo distante, como uma orquídea esquecida num jardim de uma senhora solteira. Mas esse é o tom que ele adquire depois de decair sua meia-vida, após a sensação dessa coisa que não tem nome direito, essa coisa que só de sentir o cheiro, cheiro de homem,

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cogito, te enche de tesão. Tudo no fundo te deixa duro. Ainda está passando o café quando vê que a passagem dos dias já não faz tanto sentido. A vida está longe de secar, talvez devesse espremer ela antes. Veste-se: terno, gravata, maleta, de um jeito nem tão tradicional, allegro ma non troppo. Carro, tranqueiras, celular no silencioso, musiquinha no rádio, essa parte podemos pular. Pulemos? Ou será que acontece algo durante o carro, algum pensamento fugidio que faz tudo mudar hoje? Não, não vai ser agora. É preciso esperar pelo momento exato em que a metafísica nos atinja em cheio. Claro que esse momento não aparece com frequência. Não é que hoje é o dia? Mas aí eu estaria adiantando a história. Já adiantando: você chega no trabalho, bom dia, tudo bem, tudo e você, nem tanto, não te falaram? Ninguém fala nada, ninguém escapa uma palavra. Fica um vazio, espera por risadas estereotipadas de sempre, mas fica esse vazio e silêncio que chega a ser ensurdecedor. Não consegue entender, vai pra mesa, telefone fora do gancho, algo errado, algo muito errado, pois é você não atendeu o celular, sinto muito, ligaram para cá, falam e você lê a mensagem, lê várias vezes, lê de novo parece brincadeira, será que acordei mesmo? Sai correndo, a mensagem ainda nas mãos, punhos cerrados, você tenta gritar, emudece, tenta gritar de novo, a voz sumiu, caiu no próprio abismo de pavor, ninguém perto de você, eu digo que você devia ter saído mais, eu digo que você devia ter dado mais atenção, mais carinho. É tarde, é triste, a cidade inteira continua se movendo, mas tudo parou por que parei, parei para te ver, você achou que é sonho, mas te abraço, ri de tanta descrença e chora, a roupa está seca por que é tarde, chora por que a mancha velha do apartamento minúsculo, seminovo, que esteve sempre lá agora deixa simplesmente de existir.

Gabriel Madeira

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Jornada sobre o fogo Contundentes, as estimulações de certa parte de sua índole - as que comandavam o floreio sensual e a insinuação - formulavam-lhe termos cheios de ardor específico, e a sede incondicional, sede mágica assoladora, convincente e estonteante, bem maior do que seu próprio nome, tripudiava-lhe da garganta. Todos os termos da volúpia agitavam-lhe o rubor interno de forma vendaval; como estigma do pecado envolvente, deixava-se levar pelo prazer que sempre lhe superabundava a notória malícia inigualavelmente estimulada - mas, agora, a história se lhe ia tão profunda às camadas insondáveis do próprio corpo desejoso que custava crer no que lhe acontecia. Era bem real, alegrava-lhe a ronda, punha-lhe à pele vestígio renovado; capacitara-se a saciar e a fazer renascer cem amantes de passagem - só que, desta vez, em verve consolidada em fontes de água viva, dispensaria veementemente a maioria esmagadora daqueles para inebriar a felicidade extrema de apenas um: anjo ainda não consumado à sua regência ardente inigualável que lhe apresentava mistério embebido em refinada glória absoluta. Até onde as lembranças conduziam, vira-o antes, quando ainda não firmado como mitologia, não parando, portanto, para considerá-lo - entretanto, por fim, vicejara de repente, chegando para alumiar, e isso impunha sensação de se ver escancarar a deprimente redoma apartadora das obras sedutoras, a qual adiava o momento oportuno de bebê-las em delírios inquietantes, em momentos pródigos em graça, quase comunhão. Ainda se deliciava ao relembrar-se do sorriso nos lábios volumosos e de fruta fresca de Sergio: altaneiro, vívido, improvável aos medíocres, abrilhantando-se mais à medida que se confirmava - e tal resplendor avizinhava-se a uma castanha barba por fazer, que lhe servia per-

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feitamente de maior idade. A paixão em seu estado bruto se apossava das maravilhosas veias de sua procura por Sergio, proporcionando orgulho, já que nem todos conseguiam se submergir em tão intensa atmosfera fecunda e liberal daquele nível de caça atraente e abrupta. Sob o silêncio cúmplice, contaminava-se com o calor da descoberta cálida, esfuziante, que dominava seu ego sucumbente, incutindo-lhe fase longe de qualquer refúgio, sendo-lhe isto, no entanto, idílio capacitado, divinamente estruturado em suas ordens, libertador de suas águas curadoras. Entrou no quarto de hóspedes, fechou a porta com centuplicado cuidado, e o motivo de seu íntimo estar sob a Constituição da Flama lhe retiniu aos olhos sedentos: encontrava-se na cama logo à frente, a ressonar mansamente, cansado da viagem. Enterneceu-se ao contemplá-lo, como se respirasse a neblina total, onírica, provinda vigorosamente do peito de Sergio, a incendiar-lhe a existência. Ansiava por esfaimar-se, noite e dia, com o teor da excelência dele, o único belo teor dele. Parecia-lhe, pois, que o corpo dele não tinha conhecido inverno ou outro desânimo. Sergio. Ah, poderia explanar esse nome em vários, senão em todos os círculos próximos, totalmente entregue ao frenesi e à fascinação. Surgia sensação de tentar pegar a rosa à beira do abismo. Crepitavam-lhe ao peito muralhas de fogo. As quatro paredes se tornavam asilo, e a pele de quem investigava, insaciável e pueril em seu modo particular, vertia sedução legítima, acima de tudo que era desejo descrito pelas mentes simplórias. O lençol tombara-se aos pés da cama, não mais acobertando o ente desejado, exercendo sobre este, ainda mais, a condição de tentação convincente através da tocante obscuridade leitosa reinante. Apregoavam o paraíso encar-


nado como seu primo em segundo grau - mas para que os estudos da subordinação de genealogia justamente no deslumbrante evento? Para que calcular? Não tinha porque fazê-lo agora, nem o queria. Somente ganas de amá-lo, legitimidades sem titubeações, lhe vinham à baila. O ambiente, em esmerada essência irrespirável, acetinava-se, parecia menor, mais aconchegante, favorecendo a apreciação do desígnio majestoso impregnado de promessas de fortes emoções. As coisas ao redor perderam o valor em detrimento ao veludo trigueiro; deleitava-se com a visão do braço atlético apoiando-se jovialmente à cabeça; o tórax de contornos hercúleos com vincos, vales e montes acomodados sob a perfeita magistratura monumental e afogueada do ser. E como se não lhe bastasse o ápice mordaz deste instante gravado no lado ardente do tempo, informações sedutoras impostas mais cedo lhe voltavam sob a voz de Sergio, a qual, em estado avançado de despreocupação - peculiar a quem se banhara de beleza e de férias - falara-lhe sobre dormir nu, mas, em respeito à casa acolhedora, vestir-se-ia apenas com samba-canção, significativo e inclemente traço de pudor não condizente ao monumento esplêndido, cuja beleza fomentava, até na alma mais indiferente, a vontade de sibilar nas odisseias infamantes soerguidas imperiosamente pelo desabrochar daquela masculinidade. Antes da chegada do distúrbio entorpecente - galardão inestimável e inesquecível -, empalava-lhe a soberania física a certeza de que só a preparação, o estímulo arquitetado há algum tempo, o estudo do desejo consentiria vereda primorosa estabelecida ao destino do prazer carnal, em doce jogo de gato e rato com a conquista servil pretendida; sua parcela racional lho exigia e o comprovava com as investidas bem-sucedidas entre quem lhe partilhava da arte do prazer. Gostava de manejar calma e habilmente o cabresto rumo à sua cama, de obter a atenção exclusiva de quem lhe inspirava prazeres inexprimíveis, de conscientizar-se, em primor de altivez, às primazias floridas de quem lhe estendia quentes oferendas à sua

quimera selvagem. Vitimara-se imediatamente, contudo, com o excesso de beleza lirial vinda da aura Lolita, cujo provocar zombeteiro mesclava-se às manhas vibráteis de alguém muito cônscio de seu poder de sedução. Não havia queda em querer tal delícia, não havia apogeu - só existia a pele plenamente incentivadora de suas carícias! Reconhecia que sua urgência não tinha conhecido maravilha semelhante até Sergio expor-lhe a curiosidade sobre sua mitológica altura, sobre sua mansidão quase incoerente, sobre o deliciar-se ao comer as sobremesas à base de chocolate branco, sobre o gostoso som obstinado de seu sotaque tão definitivo... Enfim, a mentalidade morrera em prol da ação da prioridade de verdadeira fera inquieta, cuja marcha de todos os tons apreciáveis arranhava-se cegamente às ramagens da densa floresta e refletia-se na água do insustentável rio principal, fera abençoada pelo tempo e pela brisa, fera pautada pelo silêncio mesmerizante, hipnotizando gravemente o paraíso em volta até encontrar abrigo em alguma casa de paixão. Com instrução semeada pela malícia e pelo regimento atrativo, aproximou-se de Sergio, pé ante pé, ansiedade permanente, curvou-se ligeiramente e começou, sem encostar-se à pele de quem agradava a seus termos inegociáveis, a executar inspirado balé na escuridão... Respirava ao mesmo tempo em que a extensão macia em submissão ao sol; mordiscava o lábio inferior debaixo do desejo de interagir, integrar-se, martirizar-se sedutoramente à esplêndida e torniturante exatidão da triunfal façanha mais do que viva. Não se debruçava de todo sobre seu talismã inspirador por precaver-se às inconveniências gerais de deflorar o quadro mágico da inocência desprotegida misturada em igual parcela à bruta negociação da máscula pujança do instinto inconvencional que só renascia em Sergio. Longe mas perto, em movimentos de gaivota, circundou poeticamente o rude peito esquerdo, deliciando-se com os arrepios sobrevindos. Descia, descia suave, descia a mão sobre os músculos salien-

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tes do abdome, armando-se de vertigem avassaladora. Contorceu-se, reino ardente, até chegar-lhe ao umbigo, confirmando a louvável mudança de suas impressões digitais em primícias de fogo, a tracejar-lhe a fundura e a modelagem. Com pouco mais de sabor de tempo parado, de colheita de pérolas preciosas, de extração de vitória apaziguadora, a tântrica missão mirabolante da aranha de cortejo e de carne alojou-se, com ódio à inóspita gravidade acautelada, na parte mais vertiginosa e incontável da volúpia inquietante. Não se desviara a nenhum lado, seguira em retidão não perturbada. A boca aliciadora salivava pronta a ser redentora, e, outra vez, ambas as peles representavam otimamente os graus regentes da Natureza: uma era caça, outra, dominante. Ventos circulares e indomáveis vagas renasciam em forma de ungidos polegares e anelares anelantes. Não precisava se ater às palavras nem procurar outra justiça: Sergio e suas artimanhas discretas e movimentadoras bastavam avivadoramente a endoidecer cada um dos poros de sua sexualidade. Sergio remexeu-se na cama, singrando-se nos mares do total desprendimento de si próprio, o que bastou para que, no entanto, sem-número de sinais de alerta se constrangessem à cabeça de quem o visitava, a colaborar com o rompimento da teia da exploração noturna, intoxicante. Só havia espaço a uma pergunta em sua mente, esta agora considerada torpe: O que pretendia fazer? Súbito, recolheu, em incrível relâmpago, o instrumento utilizado a aprofundar suas rudimentares sandices inteiras, como se o primo tivesse queimado suas fundações mais secretas. Não que o tivesse despertado mas, mesmo assim, um pânico instantâneo, revelador, instruído, desenvolveu-se do nada, geração espontânea, fogo-fátuo incômodo em forma de corredor de imundícias pelo qual quase passara

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sem qualquer bravura. Medo extremo, estranho, insinuou-se-lhe. A coragem e a essência de vida em pecado escaparam-lhe. A dúvida maldita, outrora inacessível, despontou de maneira ferrenha: E se o parente acordasse? Se lhe adivinhasse os gestos sem misericórdias, de erotização evidente, primordiais à tentadora existência? Se Sergio se deparasse de repente com suas experiências à obscuridade? Por que o avanço agora maculava, visto que se habituara às leis da vontade e da luxúria? Querê-lo tanto estava pondo-lhe demência à vivacidade! Uma coisa jamais instaurada, improvável antigamente! Instaurava-se em dédalo consumado, enlouquecendo-se de um jeito que nenhuma aventura tinha lhe feito antes! Como um pavor deste naipe assolara alguém que já se especializara em espalhar paixões? As engrenagens das hipóteses configuraram-se em sua potência, trazendo-lhe de volta a sensatez; sentia medo disforme; poderia gerar contendas infindáveis na família, as quais não seriam abrandadas com simplórios pedidos de desculpas. Via as pontas soltas, as falhas do projeto, as piores falhas, e pleiteava-se com elas somente agora, quando quase vislumbre de auge especulava seus êxtases. Culpa. Vergonha de importunar alguém que não lhe conhecia os interesses... Era a primeira vez que o mal dos tímidos - o recuo, o receio de ultrajarem sua solicitação imperiosa - humilhava suas considerações para com a lógica. Orgulhava-se de ser atraente - figura amiga do pecado renovador e ressurgente a cada dia -, de controlar as regras do jogo sem preocupar-se com a opinião de quem lhe amava o corpo-, e... tudo mudara com a imposição do delírio de nariz meio tortinho e de jovialidade retumbante, inclassificável. Tudo se misturava, dentro de sua mente, dentro de sua alma. Nada havia sem Sergio. E o reconhecia: poderia operar qualquer ato para transitar nos territórios da paixão e do desejo sem nódoas dele, exceto aviltá-lo, corrompê-lo. Que ironia! Que loucura! A inconsistência, as inconstâncias vieram-lhe para atemorizar. Parecia-lhe o fato de ir àquele progresso interessante da humanidade, tão

inquestionável e anulador de suas intelectualidades atualmente vãs, uma loucura, uma ideia intolerável. Sentia-se a invadir um mundo que não lhe pertencia ainda, a faltar com respeito ao pretendido deus, a fazer frente viscosa a um referencial que não deveria ser violado. Sem falar que era um crime assediar sem permissão... Que horror! Que medo! Que paixão! A paixão, quando muita, faz qualquer um ter medo de magoar, de constranger, de não mais ser vivido. E isso lhe vinha! De repente, a paixão nascida em apenas um dia... De repente, o medo... Paixão... Medo... Os movimentadores do mundo ajuntavam-se à mesma vital constelação, apregoando-lhe a mudez, o tétrico, a ingerência, o conflito maior! Erguendo-se de modo discreto, deu um passo para trás, agarrando a mão que o bem e o mal talhara à plenitude revolucionária e completa da agrupação de perfumes masculinos que só o corpanzil irresistível de Sergio tinha a sapiência insinuante de produzir. Asco de exterminar absurdamente a força magenta que os reunira pelos férreos laços de família sagrou-se. Outro passo, sem esbarrar-se em objetos, fuga sem vida, entre pudores de destruir o quadro justificador de seu fôlego, mas que não lhe imaginava o irascível fogo. Virou-se, tentativa de escapar, incontrolável, sentindo-se sem predicados honrados, a emoldurar-se na escuridão indescritível. Outro passo, voltando-se em contorcionismo especial a ver Sergio de soslaio, louvando-o por ângulo ainda mais interessante, maravilhando-se, quase se convulsionando, querendo voltar-lhe à cama, não querendo voltar-lhe à cama, já não mais sendo quem era, em pandemônio de torpor, através da fome e do temor de interagir com tudo que Sergio lhe entregasse, lhe distribuísse! Regressou à porta, mais sem jeito do que toda a população que empesteia a Terra! - Rodrigo? O que tá fazendo aqui? - assustadiço, abrindo os olhos, ainda sonolento, virando o corpo à esquerda em velocidade prodigiosa, Sergio perguntou ao espectro insaciável difusamente confuso. Reconhecera-o devido à

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capacidade felina que muitos poucos possuem de conseguirem enxergar perfeitamente no escuro. Ninguém saberia definir que força sobrenatural o tinha despertado àquele instante, pois seu sono não fora confrontado por sonhos ou por pesadelos intuitivos, mas sentiu-se impelido a acordar, apenas isso. O que era pior: sua voz firmada não apresentava cor de desejo ou de fúria. Rodrigo, atarantado, estacou-se no lugar, trêmulo, sem voltar-se, o rosto pálido a mirar a porta de madeira, longe de qualquer espécie de paz.

Giovani Cavalcante dos Santos

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Viagem Já fazia um longo tempo que ela vagava pelas ruas carregando o peso da solidão. Cada peça de roupa, cada vidro de maquiagem, cada sapato de salto havia custado um ente querido, que não a queria. Os seios, recém comprados, custaram os dois melhores amigos, com os quais cresceu jogando bola, que a empurraram para a primeira namoradinha e que brindaram a sua formatura. Mas naquela cidade do interior, o seu interior não importava. Lá ninguém a queria verdadeira, nem mulher, nem diferente. É lá que vivem os amantes das páginas eternamente em branco, dos rostos pálidos e dos corações opacos. E, assim, cansada, maltratada, reunindo as últimas forças, encheu as malas com a única alegria que possuía. Alguns vestidos curtos com bordados barrocos, as roupas intimas que escondiam curvas entre os rendilhados, o álbum de família. Foi-se num fim de tarde, nos últimos raios de um sol dourado ofuscando o ônibus, que desapareceu na estrada. No crepúsculo seguinte, ela chegou a seu destino, com a felicidade agendada. Ele a esperava, ansioso. Ela o procurava, esperançosa. Quando os olhos se encontraram, as almas se reconheceram. Ela recebeu o primeiro abraço sem perguntas, o primeiro beijo se hesitações e as primeiras gentilezas gratuitas. Naquela noite viu as luzes da cidade, a vida que vibrava sob holofotes, e se encheu de alegria, brilhou, dançou, foi feliz como nunca houvera sido antes. E quando as estrelas já desapareciam do céu, ele a tomou nos braços e a beijou. Tocou seus seios e seu sexo com ares de primeira vez. Ela, que sempre fora comandante, se deixou comandar e se doou inteira. Nos braços dele, adormeceu protegida e sonhou com a prisão que deixara para trás. Num sobressalto, acordou e, ao vê-lo dormir tão sereno, acariciou seu rosto e tornou a se aninhar em seu peito. Suspirou, finalmente, tranquila. Estava salva. Estava livre. Estava completa. Era mulher.

Jamie Howlet

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Chegada A madrugada gelada da grande cidade anunciava um longo amanhecer. Na calçada - quase vazia - um vulto se movimentava, freneticamente, entre a forte neblina em direção ao sinal. Werá olhava atordoado para os altos edifícios girando o seu corpo sem encontrar, naquele instante, um ponto fixo. Apertava insistentemente seu colar de miçangas implorando segurança. Sentia-se vivo apenas na memória da aldeia que ficou trançando histórias entre a serra e o mar. Seu rosto magro, com os traços indígenas escondia a fascinação pelas oportunidades urbanas. A juventude lhe tornara ambicioso e confuso diante dos mistérios da multidão. Invisível, atravessou a larga avenida respirando as incertezas e diferenças. Aguardou o ônibus, inquieto pela demora. Resmungou algumas vezes, no seu idioma, o quanto estava perdido e encolheu os ombros. Sabia apenas que deveria embarcar no 0215, sentido bairro. Finalmente, avistou o transporte que o levaria à periferia. Tinha no bolso o endereço que o professor da aldeia lhe entregara antes de sua partida. Quem sabe teria sorte em sua busca, apressando assim seu descanso - pensava. Werá sentou-se lentamente na última poltrona - único lugar disponível - ao lado de uma jovem senhora. Acomodou no colo sua mochila velha, segurou firme na lateral de seu assento e abaixou a cabeça. A mulher interrompeu seus pensamentos quando perguntou sobre seu destino. Com voz baixa e um português compreensível, contou que deveria encontrar a casa de uma pesquisadora da universidade para se preparar e iniciar a faculdade. Contudo, tinha receio de não encontrá-la na cidade e

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perder a estadia arranjada por um professor Guarani. Durante toda a viagem, a mulher o escutou com atenção e o questionou sobre seus planos de estudo. Entusiasmada, manifestou admiração por sua determinada escolha profissional. Werá deixou seu povo para estudar Direito e um dia, talvez, defender seus espaços, suas ideias, seus sonhos. O ônibus já havia percorrido, aproximadamente, dez quilômetros quando o jovem ergueu-se para observar sua localização. A acompanhante, percebendo seu olhar aflito, o interceptou interessada no endereço que ele trazia consigo. A resposta foi precisa: ¨ Rua Novo Horizonte, número 21¨. Enquanto Werá olhava as ruas, ansioso, ouviu uma voz tranquilizadora: ¨ Este é o meu endereço Werá. Sou a pesquisadora que procura. Prazer, Liza Home¨. O ônibus parou e Werá caminhou em direção à porta com o sorriso tímido que levaria junto com ele sua guia. Tocou levemente o colar de miçangas memorizando cada cor. Lembrou-se da despedida na aldeia e do amanhecer em outro chão. Levantou a cabeça exibindo confiança. Naquele momento, o jovem Guarani sabia que a chegada era só o início de sua nova trajetória.

Maria Rosa de Miranda Coutinho


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Sinuca de Bico Ela é o que é, não tenho do que me queixar. Acho que a culpa é toda minha, mas fazer o quê a essa altura? Claro que as coisas poderiam ter ficado mais claras logo no começo, mas o impulso, entende?, o impulso, a vontade, a ocasião... e eu não sou de ferro, ora! Não prometi nada, ela também não prometeu nada, mas, pelo amor de Deus, às vezes as coisas não são o que parecem e no final a gente é pego de surpresa. - Oi, eu sou a Rayane Valéria, ela me disse aquela noite no balcão do bar. - Oi, eu sou o Marcelo Luiz, mas todos me chamam de Tiririca, eu queria me mostrar espirituoso. - Ai, que apelido mais engraçado!, retrucou ela com um sorriso malicioso naqueles lábios pintados de um vermelho que gritava. Ao mesmo tempo, inclinou-se para chamar o garçom e pedir uma bebida: o suficiente para que eu percebesse como eram lindas aquelas tetas redondas. Uma coisa leva a outra, eu sei que faço um tipo cafajeste que atrai as mulheres e – porra, isso é proibido? – duas horas depois estávamos na cama do quartinho de pensão em que ela morava, no centro da cidade. Duas semanas depois as coisas começaram a ficar pesadas: a Rayane grudou. Não parava de me mandar mensagens pelo celular e queria me ver todo santo dia. Eu não sabia mais como me livrar disso. Preste atenção: não é que não goste dela, pelo contrário, gosto muito, ela é muito carinhosa e tem mãos de fada, sabe como deixar um homem saciado, mas o que não me entra na cabeça é que ela insiste em oficializar nossa relação. Vou perder minha liberdade agora? Além disso, estou solteiro há muito tempo e sei que não é fácil conviver comigo, mas ela não desiste de ter um registro civil que formalize o nosso caso de amor. Hoje me decidi: não nego que vou sentir falta dela, mas o certo é pôr um ponto final nessa história. Não quero mais ouvir falar em Rayane Valéria ou – vá lá! - em Reinaldo, que é o seu verdadeiro nome. E, malditos sejam os políticos, logo agora eles tiveram essa ideia estapafúrdia de colocar em votação o projeto de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como sempre, eles não dão a mínima para os interesses do povo, aqueles biltres! Rayane Valéria já me ligou contando a novidade.

Mario Baggio

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Roda - gigante Quando algo termina, a gente sabe como é. Mesmo que demore alguns dias, há aquele momento no qual percebemos o fim. O tal ponto final. Machuca, porque lidar com finais nunca vai ser a qualidade de quem fica. Mas com começos é diferente: não há um exato ponto de partida, aquele click que nos faz cair a ficha. Pode começar bem assim: num dia você está ok, sentindo-se apenas mais uma e, três meses depois, encontra uma pessoa que a faz perceber que sentir-se especial é bom, é tudo aquilo que sempre quis. A partir de então, não há mais como retornar. Porque tudo já começou e refrear isso é como perder-se de si mesma. Todo começo é uma perda de controle. Um emaranhado de coisas simples e complexas que nunca, nunca mesmo, você será capaz de entender sozinha. Só vai entender se partilhá-las com outra pessoa. Aquela pessoa que, num dado momento, fez você sentir-se especial. Ela me fez querer sentir especial. A verdade é que eu nunca imaginei que alguém pudesse entrar na minha vida para modificá-la. Até que Mel, na primeira aula de Matemática com o novo professor carrasco, levantou a mão e soube responder o que eram Números Naturais. Não demorou muito para a turma começar a chamá-la de nomes poucos sociáveis e, assim, rebaixá-la a uma aluna excluída. Ao contrário da maioria, eu gostava de me dar bem na escola e, portanto, Mel se tornou alguém que diretamente eu admirava na sala de aula. Minhas primeiras notas do bimestre foram razoáveis e, na prova final de Matemática, pedi ajuda a ela. Ninguém, até então, tinha lhe requerido algo, sequer conversado com ela de igual para igual. Mas eu o fiz não somente devido a minha ânsia de conseguir o primeiro 10 naquela matéria; a verdade é que, quando a gente admira alguém, acompanhar essa pessoa de longe não é o suficiente. É preciso estar perto, saber decodificar seus pensamentos e entender quem é ela, de fato. Era isso que eu pretendia. Ser amiga de Mel. No entanto, nunca poderia imaginar que, já naquela época, ela estava mudando a minha vida. Quando o novo bimestre se iniciou, já éramos gru-

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dadas. Guardávamos segredos uma da outra, tínhamos piadas internas e partilhávamos as boas e más notícias. Não conseguia me recordar de tempos mais felizes do que aqueles. Não havia um dia sequer que eu não voltava para casa carregando um imenso sentimento no peito, que parecia assumir o fato de que ter Mel ao meu lado era incrível – era um sonho, o paraíso. Mel me fez querer ainda mais ser especial, mas para ela. É bom sentir-se especial para si mesma, mas é ainda melhor se for para outra pessoa, alguém que sabe reconhecer a sua expressão de tristeza, ou que entende um simples olhar irônico. No primeiro fim de semana das férias de inverno, há um mês, minha mãe me deu de aniversário uma noite no Parque Tupã. Chamei a Mel para me acompanhar, porque voltar a “ser criança” com a nossa melhor amiga é a melhor coisa da vida. Ganhei ursinhos em várias barracas, andamos de bate-bate umas cinco vezes e enfrentamos a montanha-russa. Quase no final, Mel olhou a roda-gigante e me puxou para a fila. Eu nunca tinha dado muita importância para esse brinquedo, já que ele não é agitado, nem nada assim. Mas compramos os ingressos, porque Mel parecia com muita vontade mesmo daquilo. Achei que fosse porque, apesar de a roda-gigante não ser muito alta, desse para ter uma vista privilegiada do parque. Mas não. Quando paramos por dois minutos lá no topo – realmente tendo uma vista incrível do parque e dos arredores dele –, Mel comentou num tom totalmente normal e casual: – Deve ser legal ser beijada no topo de uma roda-gigante. Eu, que nunca tinha sido beijada, só dei de ombros e concordei. Agora, já com 15 anos, aquilo meio que me preocupava, apesar de eu não fazer grande alarde sobre a questão. Os garotos da turma eram divididos em três categorias: 1) os que pouco falavam, de modo que não dava para ter uma conversa minimamente decente com eles, 2) os que falavam até demais e, por conseguinte, se achavam o máximo e 3)

os que eram alunos-modelo e, por isso, muito esnobes. Não era muito difícil imaginar que, se eu fosse beijar alguém, não seria nenhum deles. Hoje, estamos no parque de novo. É o último dia de descanso antes das aulas e eu ainda não beijei ninguém. Não que eu esteja desesperada – não é como se eu fosse encontrar um garoto em plenas férias e começar a sair com ele. Coisas assim parecem possíveis somente em filmes. E a minha vida não é um filme. Andamos pelo gramado por um tempo, antes de decidirmos qual é a nossa próxima parada. Rendo-me a um algodão-doce e, dez minutos depois, tenho uma ideia. Quer dizer, é como se eu não pudesse controlar essa ideia. É como uma enorme onda de inspiração, não dá para ignorar. Então, eu puxo Mel. – Caramba, Vivi, você vai arrancar o meu braço desse jeito! – ela reclama. Eu rio e confiro sua expressão também risonha. Quando entramos na fila, Mel estranha e comenta: – Você nem ficou animada com isso daqui naquela vez. Olho para o topo da roda-gigante, que está toda iluminada e todos os carrinhos coloridos parecem partes de arco-íris. – Eu não tinha entendido antes – respondo simplesmente, encarando-a. Apesar da franja, consigo observar Mel franzir as sobrancelhas claras. Ela fica me fitando por algum tempo, até que pergunta: – Entendido o quê? Não respondo. Em vez disso, dou de ombros. Sei que ela estranha minha atitude, já que sempre verbalizamos nossos pensamentos. Mas dessa vez, se quero fazer isso dar certo, tenho que ficar calada. Permaneço assim até nos ajeitarmos no acento. Quando a estrutura começa a se mover, sinto meu coração bater ainda mais acelerado. Sei que não é o efeito da altura. São precisas duas voltas para que, enfim, estejamos no topo, imóveis. O carrinho balança um pouco, mas estamos no ponto mais alto do parque. – Parece estranho – Mel fala – Não acho mais graça nisso aqui. Fico surpresa.

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– É por causa do beijo? Ela vira a cabeça instantaneamente para mim. – Quê? – questiona; os olhos divididos entre a desconfiança e o alarme. – Você disse que devia ser legal ser beijada no topo de uma roda-gigante. – É. E daí? Foi só um comentário. Ninguém entenderia isso. Quero gritar que eu entendi. É claro, demorei a entender. O começo é sempre nebuloso. Mas, aos poucos, tudo foi clareando como um amanhecer. A luz se infiltrou em meus pensamentos incessantes vagarosamente e, enfim, quando tudo era um clarão, tive que parar de negar e começar a admitir. – Eu não entendi naquela noite, sabe? – digo, meio incomodada. Dizer a verdade para ela parece difícil. Intimidante. Acho que é porque ninguém sabe ao certo como dizer uma coisa dessas a alguém, por mais que saiba que deveria. – Mas entendo agora. Mel se limita a uma palavra: – Ah. Fico ansiosa. Ela deveria estar olhando para mim e sustentando o seu ar divertido que aprendi a gostar. Mas não é isso que vejo. Seu rosto está virado quase que completamente para o outro lado, enquanto finge estar admirando as luzes da cidade. – Mel, eu sei. Eu entendo, porque eu sei. Isso a faz me olhar por uma fração de segundos. Parece que está brava comigo, pelo jeito que sua expressão está contraída. – O que você sabe, Vivi? Não há medo, nem pânico em sua voz. Existe, na verdade, um tom inconfundível de desafio. Ok, é a hora. Preciso dizer. – Sei sobre a roda-gigante. O beijo. Eu o quero também – ufa, parece uma boa resposta. Certo? Não que revele explicitamente toda a verdade, mas... Por ora, é isso que posso dizer. – Você nunca me contou – ela me acusa, mas parece que não está ligando muito para a minha confissão. É porque ela não entendeu a situação do modo como eu entendi. Sua compostura volta a se normalizar e a vejo mais relaxada.

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Torço meus dedos. Isso está saindo do controle, exatamente como nunca previ. Por que coisas assim nunca dão certo de primeira? – Não. O beijo. Você não entendeu – mal posso esconder meu tom de decepção. Minha ideia acabou de morrer. Suspiro. Ah, mas que novidade. Talvez seja por isso que eu nunca tenha beijado ninguém. As coisas não tendem a dar certo comigo. Acho que é porque, de alguma maneira, eu sempre acabo estragando tudo. – Não estou entendendo mesmo. Você está estranha hoje. Quer dizer, agora – Mel rebate, me olhando meio surpreendida – Parece que está falando em códigos. Talvez o amor seja um código, penso. Talvez seja por isso que seja difícil de entendê-lo. Poucas pessoas sabem decodificá-lo corretamente. – Tudo bem – eu digo. Inspiro com força e fecho os olhos. Vai dar certo. Vai dar certo, porque esse código eu conheço. Conheço Mel como ninguém da escola conhece. Conheço Mel de um modo que até gostaria de não conhecer. Mas coisas assim são inevitáveis. Ajeito-me no acento e a encaro. Vai dar certo – Eu sei que aquele beijo no topo da roda-gigante é sobre mim. Você quer me beijar no topo da roda-gigante, Mel. Sinceramente, essas palavras saem estranhas e distorcidas na minha cabeça. Parece que acabei de cometer um assédio verbal, ou algo assim. Mas sei que estou certa, pois Mel, no mesmo instante, afasta os olhos de mim. E tudo o que recebo é silêncio. – Não estou com medo – garanto. Parece a coisa mais idiota que já falei na vida, mas preciso dizer algo para amenizar o que estamos sentindo. –

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Não tenha medo também, Mel. – Eu não estou com medo – sua voz não parece nada convincente. E, então, a roda-gigante começa a se mover de novo, nos levando para baixo. Completamos mais uma volta e nos mantemos paradas lá em cima de novo. Mel arrisca um olhar de soslaio para mim. – Olha – ela está nervosa; posso constatar isso, porque suas mãos não param de alisar o cabelo –, você entendeu tudo errado. Não sinto nada. Nem raiva, nem mágoa. – É você que não tem coragem – respondo. Não é nada legal chamar a sua melhor amiga de covarde, mas às vezes é preciso. Isso surte efeitos nela: no mesmo segundo, ela crispa os lábios e parece expor um semblante culpado. – Eu sei – Mel sussurra a centímetros de mim. Encaramo-nos. Ela sabe? Não pergunto isso em voz alta. Não há necessidade. – Você entendeu certo, Vivi – Mel confessa – Só não sei se... – O que pode dar errado? – interrompo-a, arqueando minhas sobrancelhas. Ela está na defensiva, constrangida. – Esse é o lugar mais alto em que já estivemos juntas. Não parece perfeito? – pergunto. Mel assente, mas continua vacilante. – Não tenho certeza se... – ela ajeita o cabelo mais uma vez – Bom, se isso é certo. Parece o certo agora, mas e se não for amanhã? – Você está me perguntando se vou me arrepender? – eu sorrio. Não consigo ficar ofendida nem por um único segundo. – Não vou. Eu já disse que não estou com medo. – É, mas... – ela não termina a frase. E eu sei qual é o final dela. Ela está com medo. Ajeito seu cabelo e, depois, junto nossas mãos. Elas parecem feitas para isso. Não parece estranho, ou qualquer outra coisa. – Beijar alguém no topo de uma roda-gigante, hein? Isso nunca passou pela minha cabeça – eu digo.

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– Não sei por que passou pela minha – Mel responde. – É porque, quando gostamos de alguém, só conseguimos sentir. E tudo o que você queria sentir, naquela noite, era isso. Mel sorri para mim. – Como é que você sabe dessas coisas? Como você consegue estar dentro da minha cabeça? – ela quer saber. Não sei responder, então dou de ombros, soltando uma risadinha. Damos mais duas voltas completas e quando, pela terceira e última vez, o carrinho para no topo, eu sei que é a hora. Com ou sem medo. Minha mão que não está na dela para em seu cabelo. Nossos rostos se encontram e, em meio às luzes do parque, nos olhamos de perto. O mais perto que já chegamos uma da outra. Vai dar certo. Dá certo. Nosso beijo no topo da roda-gigante acontece. Dura apenas alguns segundos, simplesmente porque nem eu nem ela sabemos o que, de fato, precisamos fazer. De qualquer modo, é o suficiente para um primeiro beijo. Eu sorrio e, em seguida, ela me abraça. É inesperado, mas aceito o gesto imediatamente. Mel diz perto do meu ouvido: – Não sabia que seria tão incrível. – É porque estamos no topo. Ela se solta de mim e me encara. – Não. Não isso – Mel nega – Saber que quem amamos nos ama de volta. É incrível. Concordo com outro sorriso. Ficamos em silêncio até estarmos em terra firme. O amor até pode ser um código, mas, se lido nas entrelinhas, sempre funciona. E aquele começo nublado se torna somente um vestígio de algo que, agora, se engrandece. E, se tudo der certo, nunca haverá um final.

Nina Spim


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Viena Quando as notas soam, aquelas velhas notas conhecidas, Joel tem uma sensação de deja vú. Como se uma serena voz, não a da canção, mas uma bem parecida, dissesse “pois é, rapaz, está na hora de você relembrar algumas coisas”. E então ele se isola daquela correria insana que corrompe seus dias e noites insones, e começa a ver. Realmente enxergar, absorver o mundo que está intocado ao seu redor e que ele perde por estar encoberto pela pressa. Não haveria hora mais inoportuna para ele começar um momento reflexivo inesperado, definitivo e inadiável: Joel estava em um velório. Billy tinha vivido seus 22 anos de uma forma intensa, louca e rápida. Rápida demais. Ele estava vivo e tinha vontade, e isso lhe bastava, era o gás para aquele veículo desgovernado que ele chamava de vida. A intensidade era tanta e Billy era tantos que nunca se soube realmente quem era. Só o que ficou depois que ele partiu foi a lembrança de um jovem que não sabia como ir devagar. É engraçado o poder que uma música tem em nossas vidas. Em um momento é só um meio de entretenimento tão vazio quanto qualquer outro e no momento seguinte nos atinge como um raio, como uma revelação divina. O som invade nosso cérebro e conserta o que estava torto, o que não encaixava. Foi assim que Joel se sentiu ao ouvir as primeiras notas que um pianista começou a tocar, meio que brincando, no piano do canto do salão cujas teclas desgastadas já não produziam o melhor dos sons. Mas ainda assim, era aquela canção. E ele não teve outro remédio além de ser tirado do redemoinho emaranhado que era a sua cabeça e o seu coração e ter pela primeira vez em dias um momento de paz. Tudo era branco e não ha-

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via dor, preocupação ou outras interferências indesejadas. Depois de alguns segundos, tempo que levou para ele se acostumar a estar tão quieto, a lembrança que começou a passar em câmera lenta em sua mente era a memória de um rapaz moço demais, apenas mais um jovem que achava que sabia tudo sobre os mistérios da vida e da morte. Era uma memória de Billy. - O que você está fazendo em pé a essa hora? – perguntou Joel, emergindo da penumbra do quarto para a meia luz das estrelas que iluminava o terraço. Em pé, contemplando as emoções insanas da cidade que ainda permanecia acordada graças ao trânsito, os outdoors e os bêbados, Billy não se assustou. - Eu tive uma ideia. Uma ideia para o roteiro, eu digo. E quando tenho uma ideia, preciso sentar e escrever, se não ela foge. - São quatro horas da manhã. – respondeu Joel, tentando evitar o tom de sermão. Ele sempre falava com Billy com cuidado, com receio de ser mal interpretado. Isso era o que acontecia quando adultos quase na casa dos 40 resolviam se relacionar com crianças de 20 e poucos, pensava ele, amargurado. Billy deu de ombros, sorrindo enquanto jogava a cinza do cigarro já pela metade no mármore claro que cobria a sacada. E quando sorria assim, Joel se esquecia de todos os motivos racionais para não estar com ele. - Volta pra cama. - Só depois que eu acalmar minha cabeça e colocar as ideias no lugar. E no papel. – Billy indicou com a cabeça as muitas folhas soltas que


forravam a mesinha de ferro pintada de branco cuja única utilidade era servir de enfeite. O roteiro estava lá, sua história esparramada, seus personagens ainda meio perdidos. Joel pegou uma folha e leu alguns parágrafos, sem conseguir deixar de pensar até quando aquela mania de escritor iria passar e por qual próxima aventura Billy iria se enveredar depois dessa. - O que você não percebe é que Viena vai esperar por você… - O que disse? – perguntou Billy, distraído. Joel esperou que ele desse a última tragada para conduzi-lo de volta a sala e o fazer sentar ao seu lado no piano que ocupava dois quartos do espaço, mas que era tão indispensável para Joel quanto a geladeira. - Você conhece essa canção? – perguntou, dedilhando pela milésima vez as mesmas notas que um ano depois iriam atrair toda a sua atenção durante um velório e que a partir daquela noite perdida iriam carregar para sempre um significado completo. Billy ouviu, atento, sem tirar os olhos do rosto de Joel por nenhum segundo. Ouviu a canção sem sorrir, prestando atenção. E ele ficava tão belo assim, parado. Talvez porque nunca ficasse tanto tempo sem se mexer, é que parecia ainda mais bonito quando podia ser apreciado. O que é difícil se torna tão intocável e, assim, tão irresistível. Quando terminou, Joel não falou nada. Achava que não precisava. O que precisava ser dito, já tinha sido dito pela música. - É a primeira vez que alguém me faz uma serenata. – foi a primeira coisa que Billy falou para quebrar o silêncio. Colocou no rosto um sorriso travesso e passou a mão suavemente pelos cabelos de Joel, que por um instante se apavorou pensando se o rapaz perceberia o punhado de cabelos brancos.

- Você sabe o que dizem sobre Viena? Dizem que é a melhor cidade para se envelhecer no mundo. É engraçado você falar sobre Viena, porque eu pensei um pouco sobre envelhecer esses dias. Billy se levantou e deu algumas voltas pela sala, já de volta ao seu estado de constante movimento, os olhos varrendo incessantemente a sala, suas mãos gesticulando com uma rapidez e uma graça que Joel imaginava não serem possíveis de se combinar em qualquer outra pessoa. - Eu não vou envelhecer muito, Joel. Eu vou viver muito no sentido qualitativo, mas não no quantitativo. E para mim tudo bem, sabe? Não vou me acalmar. Não vou ir mais devagar e nem ser menos ambicioso – e nem menos jovem! Talvez exatamente porque nunca serei menos jovem. E isso não me assusta. – sua voz ia se tornando mais alto e mais límpida enquanto ele falava e não havia rastro de autocomiseração ou dramaticidade em sua fala. Isso ele guardava para os personagens do roteiro interminável que escrevia há meses. - E isso também não deveria te assustar. – disse ele, ajoelhando na frente de Joel e segurando suas mãos. Em seus olhos, uma ternura quase angelical. – Nós temos tanto a fazer e apenas tantas horas em um dia! – explicou, sem explicar, com uma frase contraditória o que a música dizia e que era a tradução dos seus próprios sentimentos. A memória se apagou como uma chama de vela se extingue. Joel se lembrava vagamente que depois de fumar mais alguns cigarros, Billy conseguiu extrair do pensamento mais uma página e meia de história e eles voltaram para a cama. E nunca mais se falou de Viena ou de velhice naquele apartamento. Conforme a memória daquela noite ia se afastando, Joel foi voltando aos poucos, re-

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cobrando a consciência. O retinir das vozes chorosas e o zumbido dos sussurros respeitosos encheram novamente os seus ouvidos e ele voltou a enxergar os vultos enegrecidos pelo luto que rodopiavam pelo salão. O pianista ainda brincava com algumas teclas, agora acertando as notas de outra canção.

loucas e que carregam dentro de si aquela ânsia, aquela necessidade de urgência, de vida. Mas Billy, assim como tantas crianças loucas, escolheu não esperar por Viena. E foi por isso que ele viveu e foi isso que o matou. Por ter uma crença absoluta que todos os sonhos poderiam se tornar realidade – e por sonhar demais.

A silhueta da mãe de Billy, parada ao lado do caixão, atraiu o olhar de Joel. Ela conservava no rosto a mais exemplar face de tristeza e adoração. Ao chegar no velório algumas horas antes, Joel se perguntou se ela sabia das loucuras do filho. Mas agora, depois daquela lembrança, ele percebeu que ela, assim como ele, sabendo ou não, não amaria menos o rosto, o corpo e a alma daquele rapaz inquieto e tão atraente que impregnava o espaço com sua unicidade mesmo depois de morto. Ele era lamentado, talvez não tanto pelas amizades ou inimizades que conservou, mas pela força que inspirava. O modelo daquilo que todos queremos ser e que poucos têm a coragem – ou o completo pavor – de realmente tentar.

Você pode conseguir o que quer, ou apenas envelhecer. Ou ouvir aquela canção de vez em quando, como Joel faz, para manter o imperfeito equilíbrio entre continuar encontrando novos fios de cabelo branco ao mesmo tempo em que vive diferentes vidas, diferentes sonhos. Porque cada fio de cabelo branco novo encontra uma cabeça diferente, mudada por se deixar entregar a todas as muitas oportunidades que estão à espera. Talvez esperar viver tudo que há para se viver seja arriscado demais. Talvez não. Mas no final de contas, independente do que decida, Viena continua esperando por você.

Billy viveu sua breve vida ambiciosa e jovem e não teve mais do que quis, nem menos do que sempre sonhou. E deixou sua marca por quem passou. Aquela sede de fazer, de ser, de tornar-se e voltar a se transformar. A confusão que ele provocava, com sua calma inabalável, era tão intensa que, antes que a pessoa se desse conta, já estava perdida. Perdida no mundo de possiblidades e portas abertas e realidades que poderia viver, que poderia experimentar. Mesmo que, para isso, tivesse que perder um dia ou dois. Ou a própria vida. Viena esperaria por Billy e por todos as outras crianças

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Regiane Folter


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Desterro Sentavam juntos, gostavam de coisas parecidas, algumas simples como o sonho açucarado com creme de confeiteiro amarelo, acompanhado por um Grapette gelado, o refrigerante de uva que efervescia, se aberto quente, saltando para todos os lados. No recreio, não eram dados a correrias, nada de se misturar com a turba que se empurrava tentando acertar a bola do espirobol. Preferiam caminhar pelos pátios, pelas galerias, do imenso colégio do início do século, conversando. Sempre tinham assunto e nem sempre concordavam. Discutir era um esporte apreciado por aqueles dois. Para tanto, se armavam com leituras de livros indicados pelo professor de Português, ou qualquer outro que descobrissem nas bibliotecas : primeiro, na da escola e depois, na municipal. Disputavam a liderança nas notas, é bem verdade, mas nunca deixaram de se ajudar. Um, não admitia seguir em frente, sem o outro. Quando eram mudados de lugar, na sala de aula, não deixavam de trocar olhares de cumplicidade e, na hora do trabalho em duplas, moviam montanhas de classes para se encontrarem.

Uma manhã, diante de um texto que redigiam, entraram em atrito por causa de uma palavra. Nem por ouro, nem por prata, ele cedia. A maldita da palavra não entraria na frase e ponto. Assim, sem muita explicação. Aquilo foi dito com tanta veemência, que ninguém ousaria discordar, nem quem apreciava uma discussão. “Se quer continuar o trabalho, tire logo esta palavra , não gosto e pronto. Encontre outra para colocar no lugar deste BASTA.”, disse exaltado. A reação desmedida possuía uma estreita ligação com algo que era possível intuir, sem, no entanto, compreender. Quem poderia saber que, em casa, a tal palavra era proferida com raiva pelo pai ao se deparar com as “esquisitices” do filho. E que, como era costume nas cidades interioranas, este filho seria induzido a ir estudar no exterior, por lá fazendo a sua vida, longe da maledicência do lugar, sem cobrir de vergonha a família. Quase cinquenta anos depois, ela ainda reluta em usar a palavra que ele rejeitou. Lembra, com saudade, do menino doce. Alto demais, magro demais, delicado demais para aquele mundo embrutecido.

Valéria Bicca Ferrari

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A águia de Aquário “O jovem Ganimedes cuidava dos rebanhos do pai, quando foi avistado por Zeus. Atordoado com a incrível beleza do mortal, Zeus se transforma em uma águia e rapta o rapaz, possuindo-o em pleno vôo. Ganimedes, no Olimpo, passa a servir o néctar aos deuses, uma bebida que oferece a imortalidade, derramando, depois, os restos sobre a terra” Mito grego simplificado. Pego na garagem o carro, que devo mais que a metade, e sombrio, rodo por uma cidade que parece uma caixa de camisas usadas. Não há perdão para os meus crimes, se crimes são. Teu jeito é vulgar, e já adivinho o gosto dos teus lábios, o desejo é muito maior do que eu e do que conheço de mim. Mas quero, quero sentir tua pobreza luxuriante, tocar teu peito safado, sentir que há um pênis derramando lágrimas de paixão, rasgando tabus e segredos que nem eu sabia que tinha. Sorrateiro e grandioso como a águia, alçamos voo. Nos conhecemos, de algum modo, sempre. Tua pompa e tua altivez, calcadas em quê? Voe. Tua boca era vulgar, sorridente, indecente, mas te desejei. Sórdido, sólido entre minhas pernas havia o desejo, muito maior que eu, outra vez. A tatuagem era o portal, o umbigo à mostra sabia de tudo que era necessário. A águia me chamava. No copo que bebeste o vinho, olhei para a marca. Ela me atraía. Eu não sabia quem era: homem ou vilão, era menino. Tuas costas eram grandes, teu cabelo tinha gel sem álcool. Eu ninguém era: só um homem de família boa, com quase sucesso, com um passado tolo, com uma passagem rumo ao nada, desejoso de que tudo fosse diferente. Morrer pode ser bom, pensei.

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Três vezes por semana vou à ginástica, ninguém diz que tenho mais do que quarenta anos. Na hóstia que comungo na missa, confesso meus sacros pecados. Tudo é beijo, e pouco me vale a oração. Penso numa panela grande, cheia de macarrão italiano, a mamma cozinha tão bem, por que tenho que ser tão sozinho? Você pode ficar comigo da meia-noite às quatro da manhã, não há segredos que devemos guardar para sempre. E falamos tanto, sem nada dizer, nós todos. Para quê? Se o que quero é alimentar meu corpo e minha alma com os teus? Era domingo, e meus olhos te perseguiam, na praça, e de primeira, a segunda viria cruel, com as velas dedicadas às almas na Igreja dos Enforcados. Eu estava pendurado e balançando, como os ponteiros de um relógio em desacerto. Eu não podia te amar, mas queria tanto. Deixei de lado todas as perguntas e me aproximei, cheio de sentenças graciosas, meus sintagmas seriam suficientes, como era o meu cheiro de perfume estrangeiro. Eu confiava no meu vocabulário, moeda de troca, fera na toca, presa e predador. Tua vantagem só era uma: a espuma que eu não via, mas pressentia derramando de tua boca e compondo sonhos que eu nem sabia ter e nutria-me: a pele tornara-se um imenso veludo brando, onde cada gesto bordava símbolos profanos, eu dava boas-vindas aos vampiros e me enrolava na mortalha. A armadilha estava pronta. Subimos uma escadaria encardida, tudo tão barato, os ratos lá embaixo, de tocaia, nos observavam, espe-

rando sobras. Eu nada dava – só pensava como seriam os movimentos, se lentos ou agoniados, se haveria gritos, se eu poderia chorar, se haveria emoção, se os mitos aflorariam. Nem cobras, nem lagartos. Só o sorriso de um gato preto bem vagabundo na janela de um prédio velho. Ao longe, ouvi a voz de um pastor, era um culto de imersão. Oremos alto, mais alto que o voo de qualquer águia: diabos, onde estão os anjos? Na Igreja de Nossa Senhora, a voz afeminada do padre me redimia, e nos terreiros, os batuques me assolavam, eu tremia. A velha senhora de saia rodada me perguntou se eu sabia. Não. Eu não sabia. Eu nunca soube. Eu jamais saberia, porque fujo dos mistérios, mesmo que eles existam. Só quero que me prendam as asas, é tudo que peço. Só podia contar comigo e meu inimigo, ali, tão meu. Rendi-me e tudo veio: as veias dilatadas eram um mapa de onde tocar, os mamilos enrijecidos pediam por água, regar flores do pó, viver ainda. Bebi da saliva, gostei. Ocultei as provas com minha habitual discrição e não me culpei. Deve haver uma lógica que ainda não compreendo, eis tudo. De outra vida, talvez. Palavras em cadeia linear não podem preencher buracos negros do outro lado do rio. Quanta pretensão, mas esta risada, este espanto, que bom poder ainda rir de mim mesmo. Lá em cima, Aquário derrama suas bênçãos: caos sobre a humanidade. Já se passaram dois mil anos e não aprendemos nada. A cidade renasceu sozinha. Entrei no bar, pedi um pão na chapa, café com leite e sorri. Eu pude, sem pudores, ser. Estivera absolutamente apaixonado pela eternidade de quatro horas.

Vinny Puttini

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