TRANS CENDÊ NCIA
Ananda Paradeda
CAP ÍTU LO1 Após uma noite maldormida e pensamentos errantes, Sofia tomou uma decisão importante, arbitrária e impulsiva. Levantou-se da cama e, ainda um pouco antes dos primeiros raios de sol banharem seu quarto, tirou do guarda-roupa a maior mochila que tinha. Estava velha, mas era forte: ia ter que dar. Guardou dentro dela o celular, carregador, fones, carteira com documentos e algum dinheiro (contou R$120,15), algumas coisas comestíveis que não estragassem quando fora da geladeira, e tantas roupas e acessórios básicos quanto pode. Deixou-a em cima de sua cama. Passou e repassou em sua mente inúmeras vezes todas as coisas que deveria lembrar, pois se esquecesse de algo não teria como voltar para pegar. Uma vez convencida de que lembrara-se de tudo, sem fazer muito barulho para não acordar ninguém, foi até o banheiro. Acendeu a luz, fechou a porta com cautela e começou a despir-se de sua camisola. Tomou um banho morno e silencioso, mas significativo. Relaxou e tentou aproveitá-lo como se fosse o último de sua vida,
sabia que talvez não viesse a tomar um desses em algum tempo. Lavou os cabelos com todo o cuidado, massageando o couro cabeludo. O ato todo parecia um ritual. Respirava tão calmamente que nem parecia que estava prestes a fazer a maior loucura de sua vida. Não tinha certeza se voltaria para casa, mas sabia que estava fazendo a coisa certa (quem sabe o que é certo acaba fazendo a coisa certa). Na adolescência, é bem assim que as pessoas funcionam. Tudo é certeza quando, na verdade, não se tem nenhuma certeza. Não havia a possibilidade de dar errado... na cabeça dela. Deixou a água escorrer pelo seu corpo nu, sentindo-a lavar cada pedacinho de sua alma. Precisava deixar para trás toda a bagagem de sentimentos que carregara durante a vida. Partir sem mágoas e sem ressentimentos, só com o pressentimento de que dali a algum tempo estaria de volta. Estava com a consciência límpida, livre de culpas. Talvez tanta certeza de que tudo daria certo lhe tirasse um pouco do juízo, talvez fosse um ato egoísta e suicida. Se ela vivesse de talvezes, nunca teria vivido de fato. Deixou, por fim, a água cair em sua nuca e fechou o chuveiro. Demorou tanto quanto seu senso de sustentabilidade lhe permitia. Secando os cabelos com a toalha, dirigiu-se ao seu quarto. Geralmente checava em seu celular os graus que fariam no dia, mas hoje não era necessário: o dia anterior fora quente e a noite estrelada indicava que hoje não seria diferente. Verão era sempre assim. Vestiu shorts jeans e uma blusinha justa, que não precisava de sutiã, e tênis. Parou na frente do espelho para escovar os cabelos. Fez com carinho e ternura. Pensou em seus pais e na dor que eles sentiriam ao acordar e ver seu bebê ter partido. Claro que ela não era desnaturada, deixaria um bilhete aos velhos; mesmo assim, não podia imaginar como eles se sentiriam. Nada bem, supõe-se, mas isso era algo que estava além de seu alcance.
Saiu do seu quarto e passou pelo corredor de portas fechadas, cruzou a sala até a cozinha e acendeu a luz (odiava andar no escuro pois tinha que andar com as mãos esticadas para frente para não bater em nada e se sentia uma criança ao fazer isso). O apartamento não era muito grande, a cozinha era especialmente pequena. Deu dois passos e já estava na metade dela, defronte a geladeira. Abriu-a e analisou seu conteúdo. Não estava com fome, mas era melhor comer bem antes de sair. Pegou a panela de arroz e a outra de feijão, colocou-as sobre o balcão atrás de si e, antes que a porta do refrigerador fechasse, pegou uma carne esquisita (mas que não parecia podre) e o suco de maçã verde que fizera na noite anterior. Com tudo em cima do balcão, pegou um prato e serviu-se. Sentiu-se muito estranha por fazer isso às 06h da manhã. Guardou tudo de volta aos seus lugares e puxou para perto um banquinho. Sentou-se e ali comeu em silêncio pensando como seria a sua viagem. Precisava fazer uma programação. No mínimo uma base de como faria, o que faria. Bom, pra começar ela usaria o mapa do seu telefone. Depois, precisaria prestar muita atenção nos seus movimentos. Diferente de muitos da sua idade, ela tinha plena noção de que poderia ser bem tola, inocente, e tinha que ter o maior cuidado pra que isso não cavasse a sua cova. Ela já ouvira falar em pedir carona. Sabia que normalmente caminhoneiros aceitavam, pois estavam acostumados a fazer longas rotas sozinhos. Aliás, seria ouro se ela achasse um com o mesmo destino que o dela, mas quais eram as chances? Além disso, quais eram as chances de ela pegar carona com um maníaco? Pessoas loucas existiam em todos os lugares. E aí é que está: elas estavam em TODOS os lugares. Então por que se preocupar com as estradas? Esse pensamento dava um pouco de base à sua loucura. Era nele que ela se agarraria. Precisava fazer
essa viagem, e esse era o único modo que ela via de realizar a sua necessidade. Seus pais provavelmente agiriam diferente perante esta situação. Adultos, racionais, pacientes. Juntariam dinheiro e comprariam uma passagem segura de avião. Mas ela era jovem, queria tudo pra ontem, tinha uma ânsia de viver que parecia faltar aos adultos. Respirou fundo. Não podia julgar sem conhecer. Depois que deu as últimas garfadas, lavou sua louça (com todo o cuidado do mundo para não tilintar) e deixou a cozinha toda em ordem. Sofia voltou ao seu quarto, passando pela penumbra da sala e sentindo que estava deixando fantasmas para trás. Sentou na cadeira de sua escrivaninha, abriu o caderno que jazia sobre ela na última página, pegou uma caneta esferográfica azul do porta-lápis e pôs-se a escrever:
“Mamãe, papai, meus amores, Parti para a maior aventura da minha vida. Infelizmente não posso dizer pra onde vou, pois certamente vocês viriam atrás de mim. Aliás, não coloquem a polícia atrás de mim, por favor. Vou manter o contato pra que vocês percebam como estou bem. Daqui a pouco estarei de volta em casa, atazanando vocês. Eu amo vocês, beijinhos mil, Sofia”
Foi rápido, breve, talvez até um pouco impessoal, mas o dia já amanhecera e ela não podia mais perder tempo. Daqui a pouco todos acordariam e ela teria que adiar a sua partida em mais um dia. Deixou o caderno onde estava, com a caneta deitada sobre o seu nome. Com algum receio natural, jogou a mochila nas costas, pegou o skate que guardava sob a cama e, na ponta dos pés, foi até a porta da frente, apagando por fim a luz da cozinha ao passar por ela. Girou as chaves vagarosamente e saiu de casa. Uma vez no corredor do prédio, desceu as escadas correndo até a porta de grade da frente, pela primeira vez no dia sem se importar com o barulho que fazia. Pronto, agora estava na rua, agora não tinha mais como voltar atrás. Olhou por cima do ombro. Realmente, não tinha mais como voltar. Adeus. Ligou uma última vez pro número de Liam:
oi, aqui é o Liam, deixa recado aí depois do sinal, falou?.
Há quase um mês ele já tinha ido embora. Não entrara em contato com ela nunca mais, depois daquela manhã no parque. Ele deveria ter feito parecido, como ela estava fazendo agora. Parecido, porque ela nunca deixaria de dar notícias, e mesmo que fosse a distância, se fosse o caso, ainda assim proporcionaria aos seus pais o direito de se despedirem. Ela não aceitava que, depois de todos aqueles anos de amizade, ele fosse embora daquela maneira. Sabia
que alguma coisa estava errada e sabia também que ele não desistiria dela, caso as posições fossem contrárias. Dobrou a esquerda e encarou a lomba que teria que subir. A sua rua ficava em um morro, e isso queria dizer que ela teria que subi-lo e depois descê-lo. Então começou a caminhar desatenciosamente. Seus passos lhe levavam na direção certa, guiados pelo seu coração, mas seu cérebro estava completamente fora de órbita. Passou pela banca de revistas do Tiozinho do Boné que eles sempre cumprimentavam e, sem querer, ignorou o “alô” que o velho lhe dera animado naquela manhã. Quando chegou na avenida que ficava no topo do morro, atravessou-a sem observar o semáforo ou sequer as vias. Do seu quase atropelamento, ela só pode sentir um ventinho fresco nas suas costas e saber que alguém lhe gritara xingamentos. Seu coração, que deveria ter levado um susto, continuou tranquilo. Só voltou a sua atenção para o presente quando parou e olhou para a descida da rua. Era a primeira vez que ela via aquela imagem, daquele ângulo, e não sentia vontade de descer a rua no seu skate, sentindo a adrenalina pulsando e o vento lhe embaraçando os cabelos. Olhou para o skate sob seu braço. Aquele era o ponto. Mas ela simplesmente voltou a olhar pra frente e desceu a rua sentindo a calçada sob a sola de seu sapato. Sabia o caminho para sair da cidade, mas não tinha muita certeza do caminho para chegar ao Rio. Olhou para o céu como se pudesse se guiar pelas estrelas (mesmo que pudesse, ela não saberia como fazer isso). As nuvens escassas, bem branquinhas, parecendo algodão, naquela imensidão celeste. Era algo muito novo e diferente que estava para acontecer. Ela podia sentir isso inundando a sua alma.
Ao chegar no fim da rua, dobrou à direita e jogou o skate na sua frente, pegou impulso e subiu no objeto. As rodinhas girando intensamente, ela podia sentir o atrito. A avenida estava movimentada, ela precisaria prestar bastante atenção, então sem fones de ouvido, por enquanto. Estava na calçada pois os carros andavam rápido demais, e ela não queria se arriscar a ir próximo ao meio-fio. Desviava das pessoas com certa leveza nos movimentos, a facilidade de quem já aprendeu a caminhar em cima de um skate. Sentia o vento bater de leve contra seu corpo e sua pele arrepiar-se de um jeito gostoso de sentir. A brisa estava ótima, mas o sol indicava que seria um dia quente. Bom, se naquela hora da manhã ela já estava de camiseta, o resto do dia com certeza seria o inferno na Terra. Sofia nem percebeu quando a avenida se transformou na autoestrada que saía da cidade. Na verdade, essa transformação era muito sutil, e como ela prestava muita atenção aos pedestres, só percebeu que o chão da calçada se transformara em asfalto quando ouviu o barulho do trem andando sobre os trilhos ao seu lado. O trem andava em paralelo à estrada. Andou pelo acostamento por algum tempo. Às vezes ia devagar, outras vezes ia mais rápido, e quando ia rápido conseguia alcançar a velocidade de um carro que ia devagar. Demorou algumas horas, mas quando já estava sozinha há algum tempo, parou e olhou seu telefone. Várias ligações de seus pais, algumas de alguns amigos, todos preocupados com o sumiço repentino da garota. O celular tocou novamente. Era sua mãe. Lhe doía o coração, mas não podia atender. Afinal, ela dissera que ela iria entrar em contato no momen-
to propício. Sentou-se sobre o skate, no capim que crescia ao lado da estrada. Era quase meio dia. Ficou olhando pra tela do telefone até ele parar de tocar. Não queria ignorar a ligação de sua mãe. Não tinha força pra isso. Abriu o mapa. Tocou de novo; esperou de novo. Viu a rota até o Rio. Então, ela estava na estrada certa, era só seguir por ela até o fim, afinal era uma rodovia federal. Parecia tudo muito fácil, se ela não tivesse que passar por 3 estados. Crispou os lábios e o telefone tocou de novo. Ela desligou o aparelho. Olhou em volta e viu, um pouco mais adiante, um posto de gasolina e uma loja de conveniência. Pelo menos não estava em um lugar desértico, no fim do mundo. Se levantou e pegou o skate sob o braço. Foi andando até ali. Na loja, decidiu que não iria comprar muita coisa, até porque não tinha muito dinheiro. Mas precisava saciar a sua fome, então comprou um cup noodles. - São 8 reais. – Anunciou a atendente com um sorriso vermelho carmesim e cílios exageradamente pintados.
Sofia demorou quase um minuto procurando o dinheiro na sua mochila. Primeiro colocara a carteira no seu compartimento secreto (o fundo do forro da sua mochila descosturara de um lado, criando assim um fundo falso onde ela botava tudo que tinha de valor para o caso de ser assaltada), depois demorara algum tempo juntando as moedas que pegara de seu cofrinho pra fechar os 8 reais. Quando terminou, teve que esperar a atendente contar o dinheiro, o que levou mais algum tempo, pois ela parecia ter algum problema com matemática. Quando ela afirmou que estava tudo certo, Sofi a perguntou: - Você se importa se eu usar seu micro-ondas? – E apontou para o que estava numa prateleira próxima aos salgados. A garota olhou para o micro-ondas, depois fez a volta no balcão e foi até a porta de vidro da loja. Olhou para o um lado, olhou para o outro, e provavelmente não viu quem estava procurando, porque com alguma destreza ela virou a plaquinha que dizia “aberto” para dentro e trancou a porta, fechando a loja. Voltou-se para Sofia, que ainda esperava por uma resposta, e que agora tinha um olhar desconfiado. - Vem comigo. Pode usar o da cozinha enquanto eu fumo um cigarro. - Tá no seu intervalo? - Tá sim. A garota que tinha o cabelo loiro de tamanho médio, preso num rabo-de-cavalo com o próprio boné vermelho do uniforme, passou por ela e se dirigiu a uma portinha ao lado que já estava aberta. Sofia não parecia ter muita opção a não ser segui-la. Entraram, então,
num cômodo pequeno, bem parecido com os resquícios do que um dia foi uma cozinha. Só o que parecia funcionar por ali eram a geladeira e o micro-ondas, e mesmo assim mal e porcamente.
- Pode usar ali. – A garota se recostou na porta do outro lado da cozinha que também estava aberta e dava para a rua. Sofia foi até o balcão e preparou sua refeição enquanto a outra acendia um cigarro. Tomou a liberdade de deixar seu skate na entrada, apoiado no balcão da pia, junto a sua mochila. - Você vai pra onde? – Sofia tomou um sustinho com a pergunta repentina. Olhou assustada para a garota, mas ao se dar conta de que era só uma pergunta, abriu um sorriso. Parecia que tudo acontecia numa fração de segundos com Sofia. - Pro Rio de Janeiro. – Respondeu, voltando a sua atenção para o copo de massa cheio de água que agora equilibrava até o micro-ondas. – Você é daqui? - Daqui onde, exatamente?
Sofia não tinha se dado conta. Aquilo era só um posto no meio de uma estrada. Não era uma cidade; não era sequer um vilarejo. Sentiu as bochechas corarem levemente.
- Ah, não sei... Não sei bem onde a gente tá, mas pra você trabalhar por aqui é porque deve ter uma cidade perto. – Sofia apertou os botões dos minutos que fizeram um barulho estridente ao serem tocados, e logo no iniciar. Virou-se de frente para a garota e recostou-se no balcão. - Ah, tem. – A garota falou, com um sorriso torto nos lábios e um certo tom de desdém. – Mas isso aqui não é lugar nenhum, não. É um fim de mundo, um lugar esquecido pela humanidade. E pelos Deuses, nem se fala! Quer dizer... isso se você acredita em alguma coisa. - Eu acredito que você não acredita nessas coisas. – Sofia deixou escapar. Como se para se punir por ter feito tal julgamento sem base em nada além do que lera no modo como a menina falara, apertou os lábios um contra o outro. - Se você vivesse num lugar desses, não acreditaria também. As pessoas acham que quanto menor a cidade, mais crente, né? Pois aqui é tão fim de mundo que até nisso é o contrário. – Ela deu uma tragada e Sofia acompanhou com os olhos a movimentação do cigarro. – Qual é o seu nome? - Sofia. O seu? - Prazer, Sofia, eu sou Nicole. – Ela acenou brevemente com a mão desocupada, e depois se apoiou com ela no marco da porta.
Sofia retribuiu o aceno com um sorriso simpático enquanto o micro-ondas bipava. Se virou e pegou o seu almoço, que estava pelando. Levando-o na ponta dos dedos, se lembrou de repente que não tinha talheres. - Puta merda! Tem um garfo aí pra me emprestar? Eu esqueci. Nicole apontou para uma gaveta podre. Sofia pensou duas vezes se queria encostar ali, então seu estômago lhe lembrou de que a sua situação estava ficando crítica, precisaria fazer alguns sacrifícios. Mas, quando abriu a gaveta, se deparou com talheres de madeira e aço extremamente limpos. Pegou um garfo e se sentou na soleira da porta em que a outra estava escorada. - Mas oh, você tem certeza de que tá no caminho certo? – Perguntou a atendente. – Eu nunca vi ninguém passando aqui pra ir pro Rio de Janeiro. Quer dizer... eu nunca vi ninguém viajando de skate, pra começar, muito menos pra tão longe. - É uma longa história. Mas eu tenho certeza sim. Sofia almoçava com cuidado. Nicole terminou seu cigarro e tacou longe a bagana em silêncio. Entrou, pegou uma marmita e veio se sentar ao lado de Sofia. A skatista observava o matagal a menos de três metros das duas. Ali era pequeno, mas devia ser bom viver sempre perto de tanto verde. Na cidade, não se tinha muito disso. - Me conta. – Pediu Nicole, trazendo Sofia de volta para o momento. - Ahn... Eu tenho um melhor amigo. O nome dele é Liam. Ele foi
pro Rio porque recebeu uma proposta de emprego, mas ele esqueceu de me dar tchau, então resolvi ir atrás dele. Eu não tinha como comprar uma passagem de avião, então estou indo de skate mesmo.
Nicole ergueu as sobrancelhas ouvindo tudo sem parecer dar muito crédito. Comia seu feijão com arroz sem muita vontade, como se não estivesse com nada de fome. - E como exatamente essa história é grande? - Eu não sei também. – Sofia respondeu após pensar por alguns segundos. Nicole riu uma gargalhada de encher a boca. - Acho que você tá é apaixonada por ele. - Eu o Liam??? Sem condições, ele é como um irmão pra mim. Nicole diminuiu o riso quando percebeu que a sua tirada não teve o efeito que esperava.
- Ah, não sei né, pra você fazer uma loucura dessas se imagina que ele seja o homem da sua vida. Mas tudo bem. Melhor amigo, tá tudo certo. Sofia achou melhor não responder. Não soube identificar se estava de frente a alguém que acreditava ou não em amizade entre homem e mulher. Ela, particularmente, nunca teve dúvida, e talvez por isso não conseguia entender como alguém podia não aceitar a existência de alguma coisa como essa. - Quantos anos você tem, Nicole? - Eu? Tenho 17. - Ahhhhh, não acredito! Eu também. - Você tem cara de mais nova com esse skate e esse jeito de moleca. - E você tem cara de mais velha com essa maquiagem toda. – Sofia agiu de novo, não como quem quer revidar algo que a fez se sentir ofendida, mas sim como se tivesse alguma intimidade com a garota. – Desculpa. – Se apressou a responder. – Não me leva a mal, é que quando eu encontro alguém legal eu tenho mania de agir como se já tivesse intimidade com a pessoa. Nicole olhou para a menina. Olhou de verdade. - O lado bom de você ter esse jeito de moleca é que você não parece com as patricinhas da minha escola. Ponto positivo pra você.
Sofia fez um movimento de vitória com o braço esquerdo, como se puxasse uma alavanca para perto de seu quadril, e sussurrou um pouco alto “yes”. Nicole riu mais ainda, e agora Sofia riu junto. - Mas então, você já deve ter tudo planejado né? Quais os planos pra hoje? - Andar até não sentir mais os pés, achar um lugar pra dormir... E é isso. Não sei se desvio um pouco da rota e vou pela costa ou se sigo pela estrada mesmo. – Sofia respondeu, dando de ombros. – A verdade é que não tenho nada planejado, só um roteiro bem básico. - Você é louca? Cair na estrada assim, sozinha, sem nem uma base? Nada? Como seus pais deixaram? Minha mãe não quer me deixar nem ir pra cidade fazer uma faculdade ano que vem! - Bom... Eles não deixaram... Na verdade, eles nem sabem onde eu estou... – Sofia respondeu com sinceridade, apesar de medo de retaliação. - Ah... Entendo... – Nicole respondeu, deixando as palavras soltas no ar. Todo mundo passava por um momento de rebeldia na adolescência. De certa forma, o momento de Sofia ainda não passara. Quer dizer, ela sempre fora uma garota responsável. Nunca repetira o ano, estava sempre presente nos momentos família, nunca tivera problemas com drogas ou com álcool - apesar de beber socialmente e fumar maconha
de vez em quando -, mas ao mesmo tempo nunca parava em casa. Talvez seus pais vissem essa viagem como um ato isolado de rebeldia, porque como nunca decepcionara seus pais, nunca tivera a sua liberdade controlada também. Por isso, acreditava ser bem madura para a sua idade, uma adulta já formada, apesar do jeito brincalhão de ser. Seu almoço acabou e Sofia se levantou. Jogou o recipiente de plástico do macarrão instantâneo no lixo e lavou o garfo. Deixou-o na pia secando. - Onde tem um banheiro? - Só tem o do posto, lá na frente. Você quer fazer xixi? Se for só pra usar a pia usa essa aí mesmo, porque a moça da faxina faltou e eu ainda não tive coragem de dar as caras lá. Deve ter merda pra todos os lados. - Ahn... Eu fico feliz só com a pia mesmo, valeu. Sofia foi até a sua mochila e caçou ali dentro uma escova de dentes e uma pasta, que estavam dentro da nécessaire que ganhara de natal da sua tia que só vinha nos natais. Escovou os dentes e não pode deixar de notar que, ao cuspir a pasta, acabou limpando um pouco a pia também. Voltou-se para a sua mochila e, no tempo em que estava pronta, Nicole tinha terminado seu lanche e jogado a marmita de qualquer jeito no balcão. - Bom, eu vou indo, então...
- Espera. Você é legal; deve ser uma grande amiga por tá indo numa missão tão arriscada assim pelo outro lá. Ele tem sorte de ter você. Por essas bandas de cá a gente não encontra pessoas assim. – Explicou Nicole. – Eu vou dar pra você um negócio pra ajudar na sua viagem, pra você lembrar de mim quando voltar e se tornar minha amiga assim também. - Ah, mas não é assim que funciona, eu vou ser sua amiga sem nada em troca, se você quiser. - Dá pra parar? Eu to tentando ser legal aqui e te dar um presente. Sofia riu. - Tá, desculpa. - Vem. – E Sofia seguiu a garota de volta para a loja. Nicole foi até atrás do balcão. Sofia fez a volta e ficou de frente para ela. Mesmo tendo ido até a cozinha do lugar, não se sentia muito confortável indo ao posto onde a outra ficava sentada o dia inteiro (ela observou de soslaio o banquinho verde de madeira descascada colocado ali) trabalhando. Enquanto Nicole se abaixava para pegar alguma coisa, sumindo da vista de Sofia, ela namorou os doces expostos no balcão, em silêncio. Mas não demorou muito para que Nicole se colocasse ereta de novo e logo em seguida Sofia a viu colocar sobre o balcão entre elas uma cesta cheia de guloseimas. - São os meus preferidos. Eu guardo um de cada aqui atrás pra comer escondido, porque como o posto é do meu pai ele não
desconta do meu salário. Eu vou dar pra você porque não vai me fazer falta e porque você tem uma longa viagem pela frente. Entenda como o meu humilde apoio à sua causa. Sofia quase não acreditou no que estava acontecendo. Seus olhos brilharam e ela perguntou se era sério, ao passo que a outra meneou a cabeça positivamente. Sofia abriu a boca, mas não conseguiu emitir o agradecimento que queria. Só o que conseguiu dizer foi: - Uau! A parte racional da sua mente sempre lhe dissera que aquilo que ela estava fazendo era loucura. Nunca imaginara que alguém viria e lhe diria, de certa forma, que aquela era a coisa certa a se fazer. Agora, sentiu que a sua mente emocional também valia a pena, além de ter sido inundada por um sentimento de gratidão muito forte. Num impulso, Sofia largou suas coisas e correu para dar um abraço bem apertado em Nicole, que se mostrou surpresa com a reação da menina. Passado o susto, ela devolveu o abraço de Sofia e fez um carinho nas suas costas. - Sábios são os que sabem quando ouvir o seu coração, Sofia. Eu acho que você é muito corajosa por fazer isso num mundo tão frio. Sofia ergueu o rosto e deu um beijo na bochecha de Nicole. Abriu um sorriso de orelha a orelha, transbordando felicidade.
- Eu vou voltar, Nicole, e vou levar você pra cidade pra conhecer pessoas que você vai adorar. Elas que me mostraram como a vida é bonita quando se tem uma pitada de romantismo. Soltou a garota, por fim, e voltou para pegar as suas coisas. Botou a mochila nas costas, o skate embaixo de um braço, a cesta pesadinha na outra mão. Nicole acompanhou Sofia até a porta, abriu-a (e reabriu a loja também) e as garotas se despediram com um tchau animadíssimo. Na saída, passou por dois senhores que conversavam em frente a uma das bombas de gasolina. Saindo dos limites do posto, deparou-se com uma curva que descia um pouco. Jogou o skate ao chão e subiu nele. Pegou velocidade e desceu a curva, de estrada vazia, com a mão que não segurava a cesta para cima e soltando um grito de guerra: - UHUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
~*~
Sofia ergueu os olhos para o prédio à sua frente. Era enorme, todo envidraçado, numa arquitetura de encher os olhos, mas ainda assim ela estava apreensiva. Olhou ao redor e a vida na cidade acontecia como se o medo dela não significasse absolutamente nada. As pessoas passavam por elas, algumas tristes, outras felizes; algumas com o celular na orelha e ternos de giz falavam veementes, de cenho franzido, outras conversavam com seus acompanhantes tranquilas, até taciturnas. A loura sentiu que tinha necessidade de entrar em harmonia com a cidade exatamente como aquelas pessoas pareciam estar fazendo. No entanto, nenhuma delas fora chamada pra entrar naquele prédio. Nenhuma delas caminhava ao encontro do desconhecido. Ela sabia que, para se livrar daquela sensação, só existia um meio, e por ele seguiu. O hall de entrada do prédio era amplo. À sua frente, um balcão de informações vazio. À sua direita, elevadores. À sua esquerda, sofás e uma mesinha de centro. Não havia necessidade de luz. Depois da pequena sala de estar, portas fechadas. Quando a porta de vidro pela qual entrara fechou-se atrás de si, o barulho da rua deu lugar a um silêncio profundo. Sofia tocou no único item que parecia poder lhe ajudar: uma campainha posta em cima do balcão. Olhou para um lado, olhou para o outro... Nada. Ninguém. Ergueu a mão para tocar a campainha novamente e uma mão feminina pousou sobre ela, parando-a. Sofia deu um pulinho para trás, sentindo o coração acelerar, e olhou para a figura ruiva e solene que estava à sua frente. - Sofia, correto? – Aquele olhar profundo a desconcertou. - S-sim. – Respondeu um pouco desajeitada. Aqueles cabelos ruivos, compridos e cacheados, as sardinhas vermelhas sobre a pele
alva, os olhos verdes como uma esmeralda, lhe transmitiam um sentimento muito bom para ser posto em palavras. - Que bom que você resolveu vir. Venha comigo. – A mulher voltou-se para os elevadores. Ela se movia de um modo tão sutil que parecia flutuar. Mesmo assim, Sofia conseguiu manter o bom senso. - Eu não vou, não. – A mulher olhou por cima do ombro. Sofia não havia se mexido, mas havia, sim, se sentido mal pela grosseria que não quisera ter tido. – Desculpe. É que eu recebi esta intimação e... bom, é que eu não sei nada sobre vocês. Não sei quem vocês são, o que fazem e muito menos o que querem de mim. Eu só ouço falar no poder absoluto de vocês e em como ninguém que é intimado volta, e... sabe? Eu não posso ir assim. A mulher fechou os olhos e suspirou pesadamente. Pôs uma mão sobre a outra, a frente do quadril, e voltou para a frente de Sofia. - Seu nome é quem você é, Sofia. Você tem uma capacidade incrível de manter a sua mente sábia ativa o tempo inteiro. – A mulher pousou uma das mãos sobre o ombro de Sofia, que desejou que ela não tivesse feito isso; transmitiu-lhe um sentimento de segurança tamanho. – Nós sentimos de uma maneira amplificada em relação aos humanos. Esse é o nosso maior problema. Isso impede que nós possamos agir
com maior clareza sobre as situações. E é por isso que precisamos de você. – A mulher falou o tempo inteiro olhando fixo nos olhos de Sofia, que, ao retribuir, acabou se perdendo naquela imensidão verde. – Vamos, você é muito valiosa pra perdermos ainda mais tempo. Nós vamos te contar tudo. – A ruiva abriu um sorriso tranquilo e confiante. A mão que tinha sobre o ombro desceu pelo braço até a mão, e os dedos finos entrelaçaram-se aos de Sofia. Guiou Sofia até os elevadores, e uma vez dentro do elevador (que tocava uma música típica de elevador e tinha barras douradas num forro vermelho escuro), subiram até um dos muitos andares do local sem que o elevador parasse uma única vez. A não ser por elas, o prédio inteiro parecia vazio. Enfim, pararam, mas Sofia estava tão absorta no mar de cabelos cor-de-fogo que não prestara atenção no andar. No pequeno corredor jazia uma porta à direita e outra à esquerda. Ambas de madeira, bem talhadas. Entraram na porta à esquerda e, assim que a mesma fechou-se atrás delas, Sofia parou de sentir o chão e, por reflexo, apertou a mão da ruiva. - Sofia, eu vou lhe mostrar a nossa história. Sofia caminhou com ela até algum ponto dentro do lugar, mesmo sem sentir o chão e sem enxergar nada. – Eu preciso que você solte a minha mão agora, mas não se preocupe, eu estarei bem aqui. – Sofia obedeceu e, ao se ver sozinha,
tanto procurou não se mexer com medo de cair que trancou a respiração. A ruiva pareceu observar Sofia, pois logo em seguida comentou: - Você pode respirar, Sofia, pois esse é o Caos. - O quê? – Sofia, ao perguntar, acabou voltando a respirar involuntariamente. No seu cérebro, as palavras da outra tanto não fizeram sentido que pareceram desconexas. - No início, surge o Caos. Ele é o espaço vazio primordial. Muito diferente da designação que o seu nome recebe hoje em dia, Sofia, é o seu verdadeiro significado. Caos não é a perturbação, como sugere o poeta Ovídio. Caos tanto é o nada que até dizer que ele significa o ar, ou o ato de respirar, é mais próximo ao seu ser do que dizer que ele é confusão ou desordem. - Eu não entendi o que você está tentando dizer. - Eu vou lhe contar agora a nossa história; preciso que você a entenda para poder nos ajudar. Preste atenção, Sofia. É importante. - Muito bem. Mas você não poderia primeiro me contar o seu nome? - Eu vou me apresentar quando o momento for oportuno. Agora, continuemos. Caos não é confusão, e sim é o nada. Ou melhor, é o tudo. - Nesse momento, o vazio do lugar se transformou numa infinidade de constelações, planetas, satélites, buracos negros e tudo o que há no universo. Sofia agora podia enxergar a outra à sua frente, mas estava maravilhada demais com o fato de estar no espaço sideral para dar atenção a ela. - Por isso podemos dizer que pode-se encontrar paz e felicidade até no caos. Aliás, essa frase está ligeira-
mente errada, pois é muito mais fácil encontrar paz no caos do que em qualquer outra coisa. Essa, Sofia, é a primeira desconstrução, e é importante que você mantenha a sua mente aberta, pois muitas mais virão. – A mulher fez uma pausa pra que Sofia entendesse a importância daquele dizer, e então prosseguiu. – Agora, assim como uma grávida, após 9 meses de gestação, gera um outro ser independente, Caos também gerou outros seres. - Mas mulheres ficam grávidas porque o homem ejacula dentro dela. São duas pessoas que geram uma outra. - Sim, mas estou falando da grávida, e não da mulher. Talvez não tenha sido uma analogia muito boa... Vamos ver se eu consigo me fazer entender se falarmos em nível celular. Caos é uma força catabólica que gera outros seres por meio da cisão, assim como os organismos mais primitivos estudados pela biologia se dividem através da mitose, como se reproduzem os seres unicelulares. Para tanto, Caos é tudo também. Ele tem todos os elementos dentro de si, e é através dessa separação que ele começa a se organizar. - Entendo, sim. Ele traz em si o feminino e o masculino? Isso parece muito equilibrado e imaginável para mim. - É, uma coisa é certa: Caos não tem forma. Ele é inimaginável até mesmo para mim, mas é uma questão de acostumar o pensamento. – A mulher viu Sofia menear a cabeça e então prosseguiu. – Pois bem, continuemos. Dessa separação, a primeira deusa (e, na minha opinião, mais importante) que surgiu foi Gaia. Ela é a mãe de todos os deuses, ela representa a Terra. Logo em seguida, surgiram Urano, que representa o céu; Pontos, o mar; e Tártaros, o submundo.
Na galáxia, agora, a mulher fez com que se aproximassem da Terra, mas apenas o suficiente para enxergarem a sua atmosfera. - Agora até mesmo a existência do Caos parece fazer mais sentido. - É porque agora houve um complemento. É a mesma coisa que a escuridão existir sem a luz; a luz dá razão a escuridão e vice-versa. Até podemos existir somente na escuridão, mas aí nos limitamos, e isso é algo muito perigoso, Sofia. Nunca devemos aproximar a nossa mente da limitação. Seres humanos têm uma tendência a isso pois é o mais fácil a se fazer, mas nos priva de muitas liberdades. Se você almeja o equilíbrio, deve ser livre. - Mas isso é impossível! – Sofia de repente pareceu voltar ao momento. – Nós somos desde sempre condicionados a pensar como o sistema demanda. Pra ter a vida que eu quero, sou escrava: tenho de nascer como o médico bem quer, tenho de obedecer aos meus pais que sempre vão reproduzir as mesmas ordens que lhe foram impostas pra que eu “me dê bem no mundo”, tenho de ir à escola, depois à faculdade, depois tenho de trabalhar, em pouco tempo me vejo aprisionada ao dinheiro. Nós já nascemos inseridos em um sistema que nem bem alguém comanda, pois é maior do que todos nós. E, caso me rebele, serei taxada de louca e não poderei obter o que quero.
- E esse é o problema, não é, Sofia? – A professora deixou um leve sorriso brotar nos lábios. – Humanos continuam querendo demais. É isso que os torna tão mundanos, que os impede de elevação. Eu, por exemplo, quero muitas coisas – Sofia franziu o cenho, sem entender -, pois não me diferencio tanto assim de vocês. A diferença é que o que eu quero não é material. O que eu desejo é amor, prazer, alegria... - É o que você exala. – Sofia sussurrou, sem esperar que a outra ouvisse. E, de fato, ela prosseguiu como se não o tivesse feito. - ... e eu entendo que se o mundo fosse feito só dessas coisas ele não seria perfeito. Mas eu não quero perfeição e você também não deveria querer. Não falo por ser chata, como muitos de vocês dizem, mas sim porque... – aqui o sorrisinho se desfez. – Bem, digamos só que a perfeição não é equalizada. Isso é o suficiente. Percebendo a incomodação na face da outra, Sofia buscou na memória as aulas que tivera na escola sobre mitologia grega. Ao fazer isso, várias perguntas começaram a borbulhar na sua mente, mas era melhor não se afobar e sair perguntando tudo. Se a sua ansiedade adolescente lhe permitisse, esperaria o momento de fazer cada uma delas.
- Mas eu me lembro de aprender na escola que Gaia era geradora de todos os deuses. - No mundo, várias versões da história dos deuses do olimpo foram contadas. Apenas uma é a correta, e você está aprendendo ela. Então, esqueça o que você ouviu e preste atenção no que lhe digo agora, pois a minha fonte é indiscutivelmente confiável. – A mulher falou de uma maneira um pouco mais veemente, mas ainda com carinho. – Gaia é mãe sim, mas não de todos os deuses. Os deuses celestiais foram descendentes de sua união com Urano; os deuses marinhos, de seu casamento com Pontos; os gigantes de sua relação com Tártaros; e as criaturas mortais foram nascendo de sua matéria terrena. Conta a história que um dia Gaia descobriu que seu marido, Urano, prendia seus filhos no submundo por medo de ser destronado por eles. Revoltada com a ação mesquinha e cruel do esposo, Gaia arma um de seus filhos, Cronos, com uma foice. No momento em que Urano fora unir-se a esposa em um ciclo perene de criação, Cronos castrou-o causando, assim, a separação do Céu e da Terra. – Enquanto falava, elas desciam em direção à Terra e, terminada a frase, Sofia sentiu finalmente seus pés voltarem a tocar o chão de gramídeas. Olhou à volta e pode perceber o verde em que pisavam se estendendo para a sua esquerda, o mar batendo contra o penhasco sobre o qual percebeu estarem a sua direita e, acima de suas cabeças, o céu azul celeste mais bonito que já presenciara. – O filho lançou às águas marinhas os testículos do pai. – A mulher à sua frente fez um gesto suave em direção ao oceano e Sofia pode ouvir a onda que veio bater um pouco mais forte. – Ainda assim, no momento do corte, algumas gotas do sangue do pai recaíram sobre Gaia que, fertilizada, concebeu as erínias. Mas você não precisa se preocupar: essa última parte é só mito.
- Então as erínias não existem? - Não. - Então quem nos pune? - Vocês mesmos. A mulher sorriu para Sofia e ela se sentiu um pouco mais aliviada. Seria essa a confirmação de que não existia, para quem fizesse o mal, nada além do submundo... que já parecia muito ruim por si só. Os pensamentos de Sofia lhe levaram, então, para uma conclusão não muito boa. - Eu acho que nosso senso de justiça é um pouco falho, sabe? Me parece que às vezes nos punimos por algo que não precisávamos o fazer. – Sofia comentou, deixando o abatimento transparecer no seu tom de voz. Ela sentiu a mão doce e delicada da mulher sobre o seu ombro. - Isso quer dizer que só o que espera você após a morte é paz. Se não for pro submundo. Mas isso não é algo que você deva se preocupar agora. Você tem uma missão aqui e é importante não se distrair. - Eu não sei, talvez Tártaros me queira por perto. – Sofia soltou uma risadinha nervosa.
- Eu espero que não, pois nele estavam as cavernas e grutas mais profundas. Os cantos mais terríveis do mundo dos mortos. Sim, o inferno, para onde todos os inimigos do Olímpo eram enviados e onde eram castigados por seus crimes. Você não é uma inimiga do Olímpo, não é? Até porque estamos juntas agora. – Sofia negou com a cabeça. – Então não temos negócio por lá. – A mulher tirou a mão do ombro da garota e apontou para cima. – Ali, sim. Urano é o nosso próximo tópico. Ele surgiu de Gaia e casou-se com a própria mãe. Tiveram, juntos, 12 titãs, e o resto é história. - Os primeiros 11 Urano trancou no submundo e o 12º foi Cronos. - Exato. A história fica interessante nesse ponto, pois da espuma que se forma no mar quando os testículos encontram as águas, nasce Afrodite. Acredito que nesse momento você já percebeu como titãs também são divindades, e não meros seres mitológicos. Sendo assim, falemos de Cr... – A mulher parou de repente e Sofia pode perceber seu olhar perdido no vácuo do tempo-espaço. A jovem fez menção de lhe chamar a atenção quando, repentinamente, ela voltou ao momento. – Que tolice a minha! Eu vou acabar confundindo você. Às vezes eu me perco, pois, sabe, é a história de uma família inteira. Vamos por gerações, sim? Onde eu parei... Caos, Gaia, Urano, Tártaro... Ponto. - Ponto? Ponto final? - Não, Ponto. O deus Ponto. – A ruiva mordiscou os lábios finos. – Ele era o antigo deus pré-olímpico do mar. Ele também foi filho e marido de Gaia e com ela teve os deuses marinhos Nereu, Taumante, Fórcis, Ceto e Euríbia. Sinceramente, eles não são importantes
pra nossa história. Você tem que saber, no entanto, que mais tarde Pontos casou-se com Tálassa e que com ela não teve filhos. Tálassa era filha de outros dois deuses primordiais: Éter e Hemera. Difere dos outros, percebe? Pois ela não era filha de Gaia. Os pais de Tálassa, por sua vez, foram gerados por Nix. Ela é a deusa da noite, irmã de Gaia, filha de Caos. Sim, uma das primeiras criaturas a emergir do vazio. Depois dela, do Caos surgiu seu irmão, Érebo. Eles tinham muito em comum, pois se Nix era a deusa da noite, Érebo era o deus da escuridão, o criador das trevas. Ele tinha seus domínios demarcados por seus mantos escuros e sem vida, predominando sobre o vácuo, logo acima dos mantos noturnos de Nix. - Um minutinho, deixa eu ver se eu entendi... O Caos originou Gaia, Nix e Érebo. Com Gaia, ele teve essa penca de outros filhos. Nix e Érebo tiveram Éter e Hemera, que tiveram Tálassa, que casou com Pontos, um dos filhos de Gaia com Caos? É isso mesmo? – Sofia foi fazendo as conexões devagar para não se perder. A ruiva abriu um sorriso de satisfação. - Você está entendendo como a coisa funcionou. – As mãos pousaram novamente sobre seu ventre, uma sobre a outra, em simplicidade. – Hemera era a personificação do dia. Algumas vezes até confundida com a deusa do Sol. Éter.. - ... é um composto químico. - Também. Mas era o ar elevado, puro e brilhante respirado pelos deuses, contrapondo-se ao ar obscuro que os mortais respiravam. Ele desconhecia a matéria por conta disso.
- Isso é legal! Efêmero. – Uma brisa suave bateu contra os corpos das duas e Sofia só fez apreciar o momento. A mulher deixou-a tomar seu tempo com ares de lição terminada. Quando a brisa parou de soprar, Sofia abriu os olhos e encarou a outra. Pelo canto do olho, pode perceber que estava de volta à sala vazia no prédio vazio. – Como você não quer me falar seu nome, eu vou apelidar você de Reddie, uma derivação carinhosa da cor do seu cabelo em inglês. - Você precisa realmente me chamar de alguma coisa? - Do contrário, como vou me referir ou me dirigir a você? - Você não vai se referir a mim. Estamos na caverna de Platão, onde você é o filósofo e eu sou a sabedoria. Nós acabamos por hoje, Sofia. Descanse e volte para mim quando estiver pronta para a próxima geração.
Blackout.