Unidade I - Linguagens, Leitura, Texto
Leitura e texto A linguagem é peça fundamental para a elaboração de raciocínios complexos, para o aprendizado. Aprendizado é aqui entendido como a capacidade de o indivíduo entrar em contato com alguma informação, decodificá-la e organizá-la mentalmente e, a partir daí, ser capaz de utilizar essa informação em outros contextos ou eventos.
Assim, o primeiro passo para aprender é ler uma informação. Existem vários níveis de leitura, desde decodificar os sinais gráficos até refletir sobre o que se lê. Existem, inclusive, testes que permitem avaliar os níveis de leitura. O famoso Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA –, por exemplo, pretende avaliar, entre outros aspectos, o letramento em Leitura. Visite a página inicial do PISA1 e conheça os objetivos do programa, em especial aqueles relativos ao Letramento em Leitura. Letramento é o nome que se dá a uma condição ou estado específico de indivíduos que aprendem a ler e escrever e usam essa habilidade em suas práticas sociais. Assim, um indivíduo letrado não só sabe ler e escrever (o que o caracteriza como alfabetizado), mas também utiliza esse conhecimento em seu cotidiano, decodificando textos variados (livros, jornais, rótulos de embalagem, cartazes etc.) e agindo conforme a sua decodificação. Essa definição é genérica e não engloba todas as questões relacionadas ao letramento. É possível pensar em diferentes tipos e graus de letramento. Mais recentemente, o conceito de letramento tem sido aplicado não só ao uso da língua escrita propriamente dita, mas também ao uso da linguagem no meio virtual, o que requer habilidades específicas.
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http://www.inep.gov.br/internacional/pisa
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Material Complementar Para saber mais sobre este assunto, leia também o artigo Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura, de Magda Soares, disponível em Biblioteca>Material do Professor ou no endereço: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf
A leitura é um processo complexo que se realiza sobre um texto. Considera-se texto, no sentido estrito, qualquer seqüência verbal (independentemente de sua extensão) a que se possa atribuir uma intencionalidade e que esteja vinculada a uma situação de produção. Assim, textos podem ser constituídos de apenas uma palavra, desde que seja possível relacionar a essa palavra um significado a partir dos elementos da situação de comunicação em que está inserida. Por exemplo, a palavra telefone, isoladamente, não constituiria um texto; quando vista em um contexto como uma placa em um aeroporto ou rodoviária, ou num site de compras na Internet, passa a ser um enunciado – no primeiro caso, identifica lugar para usar o telefone e, no segundo, lugar onde se podem comprar ou escolher modelos de telefone. Num contexto de diálogo, essa mesma palavra também pode adquirir significados diversos. Imagine o diálogo2 a seguir:
2
Retirado de WIDDOWSON. H. D. 1978, Teaching English as Communication. London: Oxford
University Press. 1978, p.29
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Agora, imagine a situação em que alguém está trabalhando e não pode ser interrompido e o telefone não pára de tocar. Essa pessoa grita: “Telefone!” O significado da frase “Telefone!”, nos dois casos, não é o mesmo. A principal diferença está em que, na primeira situação, alguém já atendeu a ligação telefônica; na segunda, ninguém ainda atendeu e o telefone continua tocando... Quando inseridas em diferentes situações de uso, produzidas com diferentes formas de entonação, as palavras se transformam em textos e adquirem significações particulares. Veja exemplos de uso da palavra “fogo”:
Além da compreensão dos papéis desempenhados pelos interlocutores, da atribuição de uma intenção ao texto, da percepção de como a situação interfere na produção e recepção de um texto, outros elementos, que se encontram concretizados no próprio texto, contribuem para sua interpretação: a coesão seqüencial, a coesão referencial e a relação que cada texto estabelece com o conjunto de textos já produzidos numa sociedade, ou conhecidos pelo interpretante/leitor. Chamamos de coesão sequencial as relações entre as sequências de enunciados que compõem o texto, que são estabelecidas através de conectivos (conjunções, advérbios, ou expressões que desempenham um papel relacional e que conectam proposições, explicitando a relação lógica que existe entre elas).
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Por exemplo:
Não atendi ao telefone porque estava no banho. O conectivo porque liga as duas proposições, mostrando uma relação de causalidade entre ambas. Também relacionamos enunciados por meio de elementos prosódicos (pausas, entonação) na fala, que, na escrita, são explicitados por elementos de pontuação: vírgula, ponto e vírgula, dois pontos, etc. Veja, por exemplo, a seqüência:
Não atendi ao telefone; não sei quem ligou. O ponto e vírgula substitui um conectivo que indica uma relação lógica de conclusão entre as proposições Não atendi ao telefone e Não sei quem ligou. Essa relação poderia ser expressa através de uma conjunção como “logo”, “portanto”, etc. Chamamos de coesão referencial a relação que se dá entre as entidades que estão sendo citadas no texto. Como exemplo, temos a seguinte seqüência:
O advogado perdeu a causa. Ele não conseguiu convencer o juiz, já que Ø não apresentou nenhum fato que evidenciasse a culpa do réu. Aqui, os termos “o advogado”, “ele” e o termo elíptico representado por “Ø” se referem à mesma entidade no mundo e estabelecem o que chamamos anteriormente de coerência referencial.
Atividade Vá em Módulo > Conteúdo Módulo no ambiente e-ProInfo e acesse a atividade 1 desta disciplina.
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Enquadres e esquemas de conhecimento Você viu, no início desta unidade, que uma seqüência verbal constitui um texto quando é possível atribuir-lhe uma intencionalidade, em um dado contexto de comunicação. Dependendo da situação de produção, do papel dos interlocutores, do suporte em que é apresentada, uma mesma seqüência verbal pode apresentar interpretações distintas. Veja a seqüência ilustrativa de representações distintas de um mesmo texto.
Cada leitor interpreta um texto com base em seus esquemas de conhecimento, em suas experiências prévias, em dados de sua cultura. Nesse sentido, é natural que os leitores tragam para os textos certos (pré)-conceitos3 que podem influenciar no processo de construção de sentido de um texto.
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Substantivo masculino: 1. qualquer opinião ou sentimento, quer favorável quer desfavorável,
concebido sem exame crítico; 1.1. idéia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão; 2. atitude, sentimento ou parecer insensato, esp. de
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Situações da vida cotidiana ilustram bem a interferência de fatores previamente concebidos.
É importante notar que a ativação de conhecimentos prévios é fundamental para orientar nossas ações cotidianas. Embora equívocos possam ser cometidos em situações semelhantes às dos exemplos mencionados anteriormente, na maioria das vezes a interpretação das cenas estará correta. Dificuldades de interpretação podem surgir quando ocorrem rupturas na cena esperada ou mudanças na seqüência de ações. Se tentarmos, por exemplo, lavar as mãos em uma pia cujo fluxo de água é ativado por um sensor e não pelo girar de uma torneira, certamente levaremos um tempo para ajustarmos nosso esquema de conhecimento àquela nova situação. Se vamos a um casamento e a noiva está vestida de preto, também estranharemos. Estamos acostumados com determinadas situações e esperamos que elas aconteçam sempre de forma semelhante.
natureza hostil, assumido em conseqüência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância. (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa)
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O Suporte No domínio do texto escrito, também ativamos nossos esquemas de conhecimento para interpretarmos o conteúdo da mensagem. A primeira informação que identificamos é o suporte em que o texto está sendo apresentado – um cartaz, um folheto, um livro, uma revista, um gibi, uma tela de computador etc. O suporte já nos traz muitas informações sobre possíveis objetivos do texto, sobre o tipo de texto que iremos encontrar e já direciona nosso movimento de leitura. O Título O título é outro elemento fundamental para a leitura de um texto. Ele pré-ativa um conjunto de informações e nos faz criar expectativas em relação ao conteúdo do texto. Leia o texto a seguir, do qual foi retirado o título, e descubra de que procedimento se está falando. Para usar este equipamento, o procedimento é muito simples. Primeiro você separa os objetos em grupos diferentes. Escolha um dos grupos para iniciar e coloque os objetos no lugar apropriado um a um, até terminar o grupo. Não ultrapasse o limite indicado. Insira os produtos necessários para obter o melhor resultado. Escolha uma das opções de acordo com as especificações do equipamento e as características dos objetos. Dê início ao processo. Espere o ciclo se completar. Recomece com outro grupo.
Agora veja como o texto ganha sentido quando lhe atribuímos um título: Instruções para lavagem de roupas Para usar este equipamento, o procedimento é muito simples. Primeiro você separa os objetos em grupos diferentes. Escolha um dos grupos para iniciar e coloque os objetos no lugar apropriado um a um, até terminar o grupo. Não ultrapasse o limite indicado. Insira os produtos necessários para obter o melhor resultado. Escolha uma das opções de acordo com as especificações do equipamento e as características dos objetos. Dê início ao processo. Espere o ciclo se completar. Recomece com outro grupo.
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Veja o quadro do pintor Picasso. Observe cada elemento representado: cabeças, pernas, pés, braços, coisas, fragmentos de pessoas, expressões de dor.
Retirado de http://homepage.mac.com/dmhart/Teaching/Picasso2.html
É uma obra de grande dramaticidade, mas que amplia seu significado quando conhecemos seu título4. Agora, com base nas idéias desenvolvidas no tópico Enquadres e Esquemas de Conhecimento, vá em Módulo > Conteúdo Módulo e, na tela 13 desta unidade, clique na palavra situação.
Intertextualidade e hipertexto Todo texto, ao ser criado, insere-se na história de uma cultura e, mesmo inconscientemente, seu autor segue ou recusa padrões, modelos, hábitos textuais de sua comunidade. Um texto, ao ser enunciado/criado, adapta-se a um gênero, a um suporte midiático, a um costume sócio-cultural. Algumas vezes, toma como ponto de partida essas mesmas referências, mas, ao contrário de reafirmá-las, nega padrões já estabelecidos, busca novas formas de uso da linguagem ou critica hábitos culturais.
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GUERNICA é o título da obra e o nome da cidade espanhola arrasada pelos aviões alemães a
pedido do ditador Franco. Morreram quase 2000 pessoas indefesas em um dos momentos mais trágicos da história espanhola. Você conseguiria pensar em outro título para essa obra?
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De uma forma ou de outra, os textos estabelecem ligações com outros textos, e a isso chamamos de intertextualidade. Às vezes, você percebe facilmente a ligação entre textos; porém, essa ligação nem sempre é óbvia. Podemos dizer que a intertextualidade pode ser mais, ou menos, explícita, isto é, admite diferentes graus de explicitude. Muitas vezes, a intertextualidade ocorre quando um texto remete ao repertório cultural de uma sociedade. No Brasil, as pessoas podem se programar para “antes ou depois da novela” ou “antes ou depois do noticiário da TV”; algumas pessoas dizem que jantam na “Hora do Brasil”. Implicitamente, todos sabem a que horário seu interlocutor se refere. Isso significa que, quando produzimos enunciados, levamos em conta um modelo mental que fazemos de nosso interlocutor: o que ele sabe, quais as informações que podemos deixar implícitas, quais devem ser enunciadas claramente, que conhecimentos ele compartilha conosco. A identificação de um texto referenciado está, portanto, associada ao conhecimento de mundo dos interlocutores.
A série de obras do famoso pintor brasileiro Candido Portinari sobre o tema D. Quixote, por exemplo, remete a diversas passagens do livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Todos podemos apreciar o talento de Portinari, mas aqueles que leram a obra de Cervantes têm a possibilidade de recuperar relações explícitas com essa obra5.
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Veja a série acessando o endereço http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/index.htm, e
clicando em Obra Conjunto > Série D. Quixote > Obras.
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O Discurso Quando aprendemos nossa língua materna, aprendemos também a fazer referências a outros textos. Assim, modificamos, resumimos, ampliamos, parafraseamos, criticamos e citamos textos produzidos por outras pessoas ou por nós mesmos. Alguns discursos institucionais, por exemplo, se constroem explicitamente através de citações: •
o discurso jurídico cita os códigos, os depoimentos, a jurisprudência;
•
o discurso jornalístico cita a fala dos entrevistados, o testemunho dos que presenciaram um acontecimento, a opinião dos jornalistas;
•
o discurso acadêmico6 cita teorias descritas em outros textos e se fundamenta na adesão ou rejeição dessas teorias, acrescentando ou eliminando idéias.
O Link Quando o texto é escrito linearmente, os recursos da citação se dão pela inserção de trechos de outros textos, pela paráfrase, pela nota de pé de página e pelas referências bibliográficas. Quando o texto é virtual, a citação pode ser feita através de links, ou seja, ligações diretas a outros textos ou trechos disponíveis no próprio ambiente de aprendizagem. Os links podem assumir diversas formas e apontar para vários caminhos:
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•
De um ponto do texto para outro trecho do mesmo texto;
•
De um texto para vários outros textos;
•
De vários textos para um texto só;
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Com a indicação de retorno ao texto anterior ou sem retorno explícito.
A citação é o recurso mais legítimo do discurso acadêmico. Citar alguém, para aderir a uma idéia,
acrescentar novos fatos a um modelo teórico ou novos passos a um método é o que constitui basicamente o discurso da ciência.
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Potencialmente, cada palavra de um texto pode ser uma via de conexão com outro texto, o que expande enormemente as possibilidades de leitura. Um texto passa a ser um verdadeiro banco de dados, ligado, por sua vez, a outros bancos de dados, que podem estar também ligados a outros bancos de dados. A esse sistema de referenciação interna de documentos damos o nome de hipertexto7. É importante notar que, em um hipertexto, o link pode remeter não apenas a outros textos escritos, mas a arquivos de imagens e de som. Assim, ao se ler um texto sobre a Amazônia, é possível ver também um documentário sobre a região, ter acesso a mapas de diferentes tipos (clima, vegetação, relevo), ouvir o som de animais etc.
Com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente, o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a Internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita
A revolução do texto digital A internet e os textos digitais provocaram uma verdadeira revolução no modo como o leitor interage com o texto. O texto deixou de ser necessariamente uma seqüência encadeada de informações, com uma ordenação determinada exclusivamente pelo escritor, para se tornar um espaço não-linear, com vários percursos possíveis de leitura, indicados por links. Assim, enquanto no meio impresso os intertextos explícitos são construídos a partir da incorporação do texto do outro – da citação, por exemplo –, no meio virtual, os intertextos explícitos são construídos via links, o que leva o leitor a abandonar, mesmo que provisoriamente, o texto inicial. Este deixa de ser o centro da atividade de leitura, levando o leitor a outro texto que pode, por sua vez, levar a outro(s) texto(s), sem que se garanta que o texto inicial seja retomado.
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Acesse o endereço http://pt.wikipedia.org/wiki/Hipertexto.
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Em um texto didático, a utilização de hipertexto deve ser muito bem planejada para evitar o risco de perda de foco, tão necessário à aprendizagem. Ao elaborar um hipertexto, o autor constrói uma matriz de textos potenciais8, podendo o leitor definir seu percurso de leitura. Nesse caso, pode-se dizer que o leitor passa a ser também escritor, pois ele estabelece, a partir de suas escolhas de navegação, uma dada seqüência narrativa. Muitas vezes, tal seqüência pode não ter sido imaginada pelo autor do hipertexto. Essa interferência do leitor na atribuição de significados na leitura não é um fenômeno exclusivo do texto digital. Sempre, de alguma forma, fazemos uma leitura pessoal de um texto e escolhas de seqüenciação da atividade de ler. Podemos ler, ou não, as notas propostas por um autor, por exemplo. Vários autores também realizaram textos em que indicam vários caminhos possíveis de leitura. No meio digital, no entanto, essa liberdade do leitor de escolher um caminho, uma seqüência, é potencialmente muito maior.
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LEVY, P. 1999. Cibercultura. São Paulo: Editora 34.
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