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Ilha dos Sonhos (Dream Island)

Josie Litton

BestSeller 155 Londres, 1811 NOS BRAÇOS DE UM PRÍNCIPE... O país dos sonhos de Joanna Hawkforte tornou-se um símbolo de seu pior pesadelo. Nove meses atrás, seu irmão embarcou numa perigosa viagem a Akora, e Joanna nunca mais teve notícias dele. Acreditando que ele esteja aprisionado, ela arquiteta um plano desesperado para encontrá-lo... Filho de um lorde inglês e de uma princesa akoriana, Alex Darcourt passou alguns meses na Inglaterra, numa missão secreta. Agora ele está a caminho de sua terra natal, e de um destino desconhecido numa nação ameaçada e inquieta. Mas a descoberta de uma passageira clandestina no navio transforma sua viagem numa grande complicação. Joanna não tem ideia dos riscos que está correndo, e Alex espera conseguir protegê-la em um mundo no qual ela não será bem-vinda. O maior desafio, no entanto, será protegê-la de seu próprio desejo, e de uma paixão proibida que poderá colocar a ambos em grande perigo... Digitalização: Vicky B.


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Revisão: Alice A.

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Trilogia Akora 1. Dream Island (2002) - Ilha dos Sonhos – Bestseller 155 – e-book 2. Kingdom of Moonlight (2002) A Princesa de Akora – Bestseller 161 – e-book 3. Castles in the Mist (2002) – Castelos na Névoa – Bestseller 152 – e-book

Querida leitora, Embarque junto com Joanna para uma terra longínqua e mítica, com um pouco de Shangri-La e de Mil e Uma Noites, um lugar encantado e excitante chamado Akora... Ao descobrir uma passageira clandestina em seu navio, Alex, o príncipe de Akora, que está voltando de uma missão na Inglaterra, é obrigado a pôr Joanna a par de alguns segredos de seu país, um lugar onde estrangeiros normalmente não são bem-vindos. Florescendo numa nação politicamente conturbada e ameaçada, o recém-descoberto amor de Alex e Joanna os coloca em sério perigo... Leonice Pomponio Editora A lista de bestsellers do jornal The New York Times é baseada nos relatórios de vendas emitidos por comerciantes de livros dos E.U.A., desde pequenas lojas e distribuidores até as grandes redes de livrarias e megastores. Publicada desde 1942, a lista se tornou uma importante fonte de referência para as pessoas que querem saber quais são os livros que realmente vale a pena ler. Colocamos o selo para indicar ao leitor quais as autoras que têm essa distinção. A série bestseller só será composta de autoras que se destacam nessa lista. JOSIE LITTON é o pseudônimo mais famoso da autora Maura Seger, que já escreveu uma infinidade de romances de sucesso, e continua escrevendo até hoje, encantando as leitoras e figurando na lista de mais vendidos do The New York Times. "Com personagens fortes, ponderosa sensualidade e a capacidade de evocar as fantasias femininas, Josie Litton dá aos seus romances um toque especial, que os torna os favoritos das leitoras." Romantic Times

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Copyright ©2002 by Josie Litton Originalmente publicado em 2002 pela Bantam Books PUBLICADO SOB ACORDO COM JANE ROTROSEN AGENCY NY,NY-USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: DREAM ISLAND EDITORA Leonice Pomponio ASSISTENTES EDITORIAIS Patrícia Chaves Vânia Buchala EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Paula Andrade Hilgeland Revisão: Giacomo Leone ARTE Mônica Maldonado MARKETING/COMERCIAL Andréa Riccelli PRODUÇÃO GRAFICA Sônia Sassi PAGINAÇÃO Ana Beatriz Pádua Copyright © 2009 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 — 10º andar — CEP 05424-010 — São Paulo - SP www.novacultural.com.br Impressão e acabamento: RR Donnelley

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Capítulo I

19 de junho, 1811 Londres Estava quente e abafado demais. Não que Alex se incomodasse com o calor. Ao contrário, havia poucas coisas de que ele gostava mais do que se deitar sem roupas numa praia deserta e sentir o sol aquecendo seu corpo. Mas a atual circunstância era um pouco diferente. O pior de tudo era o cheiro. A combinação de odores advindos de dois mil corpos, todos exageradamente perfumados, sobrecarregava o ar, mas o aroma de cera derretida das velas dos candelabros de cristal espalhados pelo salão aumentava a sensação de sufocamento. O cheiro se impregnava na pesada tapeçaria azul, enfeitada com flores-de-lis em homenagem à realeza francesa exilada, cuja presença provia ao príncipe regente uma frágil desculpa para exibir sua última extravagância. As janelas altas estavam abertas, deixando entrar não só uma brisa refrescante, como também o odor das ruas de Londres e da multidão que nelas se aglomerava. Poucos, se as duas mil pessoas podiam assim ser caracterizadas, haviam recebido o cobiçado convite para ver a recente decoração de Carlton House. Durante semanas, as súplicas frenéticas dos excluídos assombraram os que temiam uma catástrofe social. Alex teria ficado feliz em conceder seu convite a qualquer um que desejasse participar do evento. Mas não tivera escolha. Era obrigado, por bem ou por mal, a permanecer naquela festa, nem que fosse por mais algumas horas. Sem dúvida, era difícil concluir o que era pior: o calor, o odor fétido, o burburinho dos convidados que queriam se fazer ouvir, ou os esforços dos músicos que tocavam apesar de não haver ninguém dançando. Mas, assim que chegou ao salão, Alex ganhou a atenção de uma morena charmosa. Lady Eleanor Lampert ficara viúva de um lorde abastado com quem se casara antes de completar dezessete anos, sendo que ele tinha setenta. Obviamente, o nobre conhecia os riscos de tal união. O coitado falecera seis meses depois, uma tragédia que, segundo os boatos, devia-se à fogosa esposa. Na atual condição de viúva, lady Lampert se mantinha muito ocupada. Não almejava um segundo casamento, pois prezava a própria independência e escolhia seus parceiros com cuidado. Alex a considerava uma amante talentosa, uma qualidade que lhe servia muito bem. Uma mulher agarrada ao seu braço era aceitável a curto prazo; mas uma dama agarrada à sua vida era outra história. Quando isso acontecesse, porque não restava dúvida de que um dia se casaria, ele preferia estar em outro mundo, um lugar do qual sentia saudades. O dever o mantivera na Inglaterra por mais tempo que o desejado. Sua vida, afinal, era baseada em deveres. Logo, não podia se queixar do curso que traçara para si. 2


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Mas teria de partir em breve. Suas responsabilidades, que o detiveram por demasia, haviam sido cumpridas. Portanto, em alguns dias, estaria livre...

Alguns dias. Era difícil acreditar que fazia tão pouco tempo que o procurava. Parecia uma eternidade. Percorrera Londres, batera à porta dele, deixara seu cartão e, por fim, descobrira que ele havia deixado ordens expressas para que ninguém a recebesse ou informasse seu paradeiro. Ainda sentia as faces queimar de raiva por causa de tal tratamento, mas estava determinada. A vergonha e a frustração não importavam tanto quanto o desconforto. Até a raiva passou a ser irrelevante. Ela o encontraria e se faria ouvir a qualquer custo. E teria sucesso, pois o fracasso lhe era inconcebível. Talvez não tivesse ocorrido ao aclamado lorde Alex Haverston Darcourt, marquês de Boswick, conde de Letham, barão Dedham, que lady Joanna Hawkforte possuía muito mais recursos além da teimosia inata. Podiam lhe faltar aliados na sociedade aristocrata, já que fazia questão de manter distância, mas tinha dinheiro suficiente para adquirir o convite mais cobiçado da temporada por meio de um simples suborno e contratar um homem esperto que, sempre à espreita, acompanhara os movimentos de lorde Darcourt. Ciente de que ele estaria na festa de Carlton House, Joanna não perdeu tempo. Escondida atrás de seu leque, ela poderia continuar sua investigação. Anos atrás, em uma época que parecia outra vida, sua adorada mãe lhe ensinara a linguagem do leque. Supostamente criadas por uma espanhola muito inteligente, as mensagens codificadas permitiam um mundo de comunicação que não alcançava os ouvidos mais curiosos. Joanna abriu o belíssimo leque de seda que pertencera à sua mãe. O adereço combinava com o vestido verde, que, por sua vez, ornava com seus olhos e cabelos castanhos. Mas não fora o modismo que a levara a usar o leque. Na verdade, necessitava de um apoio moral. A mãe, tal qual o pai, falecera alguns anos antes. O único parente que lhe restava devia estar em uma costa distante. Ela fechou os olhos por um momento e, quando os abriu, viu o homem, cuja beleza era de tirar o fôlego. Seu perfil se assemelhava às estátuas gregas que Joanna havia admirado cinco anos atrás, quando estivera em Atenas com Royce. Os cabelos eram tão negros quanto a noite; o nariz reto, os lábios carnudos e o queixo firme lembravam os deuses imortalizados nas imagens de mármore. Porém, tais estátuas não lhe faziam justiça. Darcourt irradiava vitalidade e uma masculinidade rústica que a perturbavam. Quando ele se virou, Joanna pôde notar a pele bronzeada. As sobrancelhas grossas, mesmo à distância, davam-lhe a aparência de um caçador. As faixas brancas no pescoço e na cintura destoavam do traje todo preto. Tal detalhe servia apenas para enfatizar a gritante virilidade. Mais alto que qualquer outro dos homens presentes, ele mantinha a cabeça erguida, transmitindo uma nobreza natural que condizia com o poder de seu corpo másculo. Havia membros da realeza na festa, claro, mas o pomposo príncipe e seus amigos franceses pertenciam a uma estirpe totalmente oposta. 2


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Aquela postura real era diferente. Estrangeira. E, segundo as lendas, antiga. Ele, contudo, era também inglês, algo que, de certa forma, a acalentava. De repente, quando Darcourt sorriu, Joanna reparou na mulher ao lado dele. A linda morena usava um vestido escarlate, cujo decote revelava certas vantagens. Joanna conhecia aquele rosto. Lady Eleanor Lampert. A notória lady Lampert, cuja recompensa por desdenhar os bons costumes era a adoração da sociedade. Uma sociedade caprichosa, sem dúvida nenhuma, e maledicente quando lhe convinha. O melhor, portanto, seria se concentrar no homem. Ou abordá-lo. Porém, tal tarefa se tornou um desafio, pois Darcourt estava rodeado de mais parasitas e bajuladores que o anfitrião. Prinny talvez se ressentisse, mas era obrigado a admirar Darcourt acima de todos os outros, inclusive do corajoso Wellington e do melindroso Brummell. Por isso, o elusivo marquês comparecera à festa. Ele devia saber que abster-se daquele augusto evento poderia magoar o príncipe regente. Prestimoso quanto às suas responsabilidades, deixara de lado sua aversão a tais festas. Não havia dúvida de que Prinny estava orgulhoso, assim como toda a nobreza, homens e mulheres, que se dirigia a Darcourt. Joanna tentou se aproximar dele, mas foi bloqueada por uma parede impenetrável de pessoas. Por volta de meia-noite, a exaustão ameaçava subjugá-la. Era aceitável permanecer na cama até o meio-dia, mas ela não conseguia chegar a tanto, já que a preocupação a deixava insone. Ir a Londres representara seu último recurso. Porém, quando não obtivera nenhuma ajuda do Ministério, tampouco a constatação de que Royce podia estar em perigo, ela concebera aquele plano desesperado. E para realizá-lo, precisava da ajuda de Darcourt. O indisponível Alex Darcourt, que continuava fora do seu alcance.

— Francamente, milorde, além de permanecer em Lisboa, não vejo o que Wellington conquistou a ponto de ser glorificado hoje em dia. É muita petulância, se me permite dizer. Alex não estava com disposição para discutir questões militares, um assunto delicado acerca do qual preferia não revelar sua experiência particular. Mas não podia ignorar o homem que dele se aproximara. Charles, o segundo conde de Grey e membro influente do Whig, era amigo íntimo do príncipe regente e pretendia obter o cargo de ministro das Relações Exteriores quando o Parlamento, enfim, removesse as restrições quanto aos poderes do regente, tal qual era esperado dentro de um ano. Presumindo, claro, que o debilitado George III não recuperasse a sanidade a tempo de terminar seu mandato. — Wellington está vencendo os franceses pelo cansaço — comentou Alex. — Napoleão está dragando seus homens e material bélico. Ele acabará se dirigindo a outro lugar. Grey forçou um sorriso gentil. — À Inglaterra, milorde? É isso que espera?

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Alex hesitou. Estava tentado a ignorar a pergunta, mas respeitava Grey. Além disso, um aristocrata devia saber como enviar uma mensagem sutil. Os Whigs queriam formar um novo governo quando Prinny assumisse autonomia e dispensasse os membros do partido conservador de seu pai. Alex acreditava que tal estratégia política não funcionaria. Mas não faria mal nenhum colocar um pouco de lenha na fogueira. — Para a Rússia — respondeu. — Nada mais compensará suas perdas contra os turcos. Grey pareceu surpreso, mas disfarçou a reação. — Milorde, a Rússia é aliada de Bonaparte. — Uma parceria desconfortável, não acha? Melhor seria encarcerar dois touros em uma mesma cela. — Talvez... Mas essa é a visão de Akora? É o que se espera para além dos Pilares de Hércules? — Não falo em nome de Akora, milorde. Não possuo nenhum mandato diplomático. Minha presença na corte é puramente extraoficial. — Não é a opinião que prevalece, sir. Acredita-se que o senhor fala em nome de seu meio-irmão, o vanax. Ou melhor, o senhor escuta por ele. Se me permite dizer, ambos são muito eficazes. — Agradeço o elogio, milorde, mas, como deve saber, Akora mantém sua soberania por meio da neutralidade. Quaisquer opiniões acerca da atual situação na Europa não são ditas para além dos confins de Akora. — Defiro sua sabedoria em tais assuntos, milorde. — Grey inclinou a cabeça com cortesia. No entanto, o sorriso malicioso sugeria que sua opinião quanto à verdadeira missão de Alex na Inglaterra não havia mudado. Grey voltou a atenção a lady Lampert, que exercia seu charme sem maiores esforços. Enquanto os dois conversavam, Alex apenas ouvia. Cumprimentava os que se aglomeravam ao redor de forma quase imperceptível e não se atinha a nenhum deles. O ritual era sempre o mesmo: homens gananciosos se gabavam de conhecê-lo, buscavam conexões políticas, clamavam raras oportunidades de negócios, a falsa camaradagem mascarava a inveja e, às vezes, o medo. E havia as mulheres. Entre as mães ávidas para casar suas filhas e as predadoras atraídas pelo mistério exótico que ele representava, Alex preferia abrir mão do sexo oposto. Felizmente, existiam pessoas como Eleanor que optavam por uma vida livre e sem compromissos. Tudo era tão diferente de Akora, sua terra natal! Lá, as mulheres eram... mulheres. Elas entendiam seu lugar na vida, sentiam-se contentes, nunca ousavam ou se descontrolavam como as inglesas, incluindo aquela que o observava por trás do leque. Alex a notou sem demora. Ela lhe parecera familiar, mas não soubera precisar quem era. Quando a fitou nos olhos, porém, sentiu o choque do reconhecimento. Aquela mulher de cabelos cor de mel, nem loira nem morena, lembrava-o das ondas turbulentas que invadiam as praias de Akora. E os olhos levemente amendoados o encaravam com rara inteligência e determinação. Vários dias antes, ela fora vê-lo. Alex nem sequer chegara a recebê-la. Pedira ao criado que a dispensasse. Da janela de sua biblioteca, ele a 2


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observara retornar à carruagem. Tal dispensa deveria ter encerrado o assunto, mas a dama parecia persistente. Apesar de tudo, sentiu certa simpatia por ela. Se os boatos espalhados por Londres estivessem certos, Royce Hawkforte se mostrara imprudente ou, no mínimo, obstinado. Alex cerrou os lábios enquanto a observava. O amor e a lealdade que nutria pelo meio-irmão o ajudavam a entender a preocupação da dama, mas não havia nada que pudesse fazer. Envolver-se no desaparecimento de um nobre britânico indubitavelmente comprometeria Akora. Além disso, embora compreendesse as ações da dama, ele também as desaprovava. O povo inglês era relapso em relação às suas mulheres. Nem o akoreano mais desleixado seria capaz de tal descuido. Mais uma vez, ele a fitou com intensidade para, em seguida, desviar o olhar. De soslaio, percebeu que ela entendera o recado. Alex a cortara diretamente, sem deixar dúvidas de que não desejava conhecê-la. Não pretendia criar nenhum mal-entendido. Para ela, o melhor seria voltar para a região campestre onde nascera. Alguns minutos depois, Alex arriscou olhar novamente, na esperança de que lady Joanna Hawkforte tivesse desaparecido. Ela ainda estava no mesmo lugar. Por mais incrível que parecesse, naquele exato momento, lady Joanna parecia empurrar as pessoas a fim de alcançar Alex.

Maldito. Como se atrevia a olhá-la como se ela fosse um reles mosquito? Após meses de preocupação, de esforços infrutíferos à procura de ajuda, tinha agora de se submeter àquele homem arrogante, obviamente acostumado a uma vida de privilégios e indulgência. — Milorde... Ele se deteve e fitou Joanna. O brilho dos olhos azuis foi tão impactante que ela quase titubeou. Mas Joanna se manteve altiva. Não lhe daria o prazer de vê-la vacilar. — Milorde, preciso lhe falar a respeito... Ele ergueu a mão em um gesto de comando. — Não posso acomodá-la, lady Joanna — Darcourt pronunciou com a voz grave. — Pensei que tivesse sido claro. Joanna sabia que as pessoas ao redor assistiam à cena, mas não se importou. Para ela, havia apenas Darcourt e o golpe devastador que aniquilava sua última esperança. — Milorde, entendo sua relutância, mas... — Não se trata de relutância — ele a interrompeu, frio como gelo. — É recusa. Dito isso, ele se virou. Desesperada, Joanna tentou se agarrar a qualquer coisa que a impedisse de tropeçar quando a multidão se fechou atrás dela. De alguma maneira, conseguiu atingir o topo da escadaria curva que dava acesso ao andar inferior da residência. Segurando o corrimão, desceu até o exército de criados que 2


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corriam de um lado para o outro, ocupados demais para notá-la. O aperto em seu peito amenizou quando entrou na biblioteca, cuja quantidade de livros era impressionante. Apesar dos defeitos, o príncipe regente era, pelo menos, um homem letrado com um amor genuíno pela literatura. Mesmo assim, duvidava que aqueles volumes fossem tão apreciados quanto os livros que compunham a magnífica coleção de Hawkforte. A lembrança de seu lar amado foi tal qual um bálsamo que lhe permitiu calma para refletir. Sem dúvida, Darcourt presumia tê-la dispensado e não mais se daria o trabalho de pensar em um assunto tão insignificante. Mas entre o que o insuportável Darcourt presumia até a real determinação de Joanna havia um golfo gigantesco. Afinal, era uma Hawkforte, e não podia se esquecer disso. Ignorando as têmporas latejantes e o cansaço, Joanna atravessou a biblioteca. Viu-se em uma sala particular com paredes e teto de estilo gótico. Fascinada com os desenhos em alto-relevo, prosseguiu e adentrou outra sala toda forrada de ouro. Não havia limites para a extravagância do príncipe regente? Pelo jeito, não, pois o cômodo era imenso, estreito e forrado de vidros. Devia ser um conservatório. A iluminação de uma centena de lamparinas chinesas cintilava sobre a enorme mesa no centro. Sobre ela estava disposta a porcelana mais elaborada que Joanna já vira. No centro da mesa, havia um pequeno riacho que circundava as sopeiras e travessas. Perplexa, ela se aproximou para espiar as pontes, montanhas e plantas em miniatura que decoravam o riacho, onde peixes dourados e prateados nadavam. Dessa vez, Prinny havia se superado. Considerando os excessos de sua vida, aquele parecia ser inigualável. A mesa aguardava o príncipe e seus seletos convidados. Joanna e os outros mortais da sociedade jantariam no jardim, onde o ritmo dos criados era agora frenético. Dúzias de homens vestindo trajes azuis e brancos, as cores do príncipe, apressavam-se com bandejas de sopas, assados, carnes frias, frutas, tortas e baldes e baldes de champanhe gelado em direção à tenda vasta que fora armada sob as estrelas. Era um cenário impressionante para os que se importavam com tais coisas. Joanna não ligava. Enquanto todos se regozijavam por participar de uma festa real, ela amargava o sabor da derrota. Pôde divisar Darcourt pelas janelas do conservatório, mas agora o homem estava inatingível. Ele se sentou à mesa ao lado de Prinny, que vestia a farda escarlate, uma honra que lhe fora negada por seu pai, um homem agora incapaz de objetar. A seu lado estava o futuro rei Luiz XVIII, irmão do monarca francês que fora decapitado. A sobrinha do futuro rei, a duquesa d'Angoulême, recebera também o privilégio de ocupar a mesa real, mas a atenção que Prinny lhe dispensava não aliviava o semblante taciturno da francesa. Diziam que a nobre sofria de fortes enxaquecas, mas Joanna acreditava que tal dor possuísse outra fonte. Quando menina, a duquesa, seus pais, a tia e o irmão haviam sido aprisionados. Um por um, todos foram decapitados. Fora o humor caprichoso do tribunal revolucionário que a salvara da morte, relegando-a ao exílio. 2


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A esposa do príncipe regente, a desprezível Caroline, estava em Londres, mas não entre os convidados. Diziam que Prinny havia ordenado a sua guarda de honra que impedisse, a qualquer custo, a entrada da princesa de Gales na festa. O rosto dela não era o único ausente. A rainha, desaprovando tanto os excessos como o casamento do filho, declinara o convite e impedira que as filhas comparecessem ao jantar. E havia o rei louco, aprisionado na insanidade que o abatera quatro vezes antes de se instalar definitivamente, uma circunstância que tornara o filho mais velho regente. No passado, Prinny e os irmãos divertiam-se ao imitar as falas delirantes e os trejeitos do pai. Apesar de tudo isso, ou talvez por causa disso, a maioria dos convidados parecia entusiasmada. Darcourt era uma exceção. Parecia... resignado. Por que ele estava assim, Joanna não fazia ideia. O homem era cortejado por todos, e lady Lampert se mostrava mais que agradável. Que bom para ele estar numa posição tão privilegiada, enquanto Joanna se consumia de medo e angústia por causa de Royce. Mas não podia pensar no paradeiro do irmão agora. Suportaria qualquer coisa, menos permitir que as lágrimas encharcassem seu rosto. O orgulho a resgatou. Em algum momento, aquela festa terminaria. Darcourt sairia, e ela também, logo atrás dele. Joanna o seguiria sem dó nem piedade. Dessa vez, ele não escaparia.

Os peixes estavam agonizando. Alex observava outro corpo dourado flutuar na superfície da água. O desperdício do príncipe regente parecia não ter fim. A quantidade extravagante de comida superava a capacidade dos convidados de a consumirem, e os alimentos pereceriam antes que o exército de criados pudesse aproveitá-los. Por mais que se esforçassem, os presentes não conseguiam beber o verdadeiro mar de champanhe, cuja maior parte acabaria azedando. As flores, suficientes para ocupar cem jardins, já estavam murchando. E agora os peixes daquele riacho ridículo morriam, um após o outro. De fato, aquela noite excedia a expectativa considerável de uma total falta de gosto. Lady Lampert, que Alex não descreveria como uma alma sensível, empalideceu e empurrou o prato. — Oh, Deus! — ela murmurou, enojada. A súplica do peixe atraía a atenção dos presentes à mesa. O príncipe regente parou de contar uma proeza militar imaginária ao perceber o desconforto alheio. Ele franziu o cenho e acenou com desdém, como se o gesto pudesse apagar aquilo que o desagradava. Infelizmente, falhou. O calor no conservatório fazia com que os peixes começassem a cheirar mal. Pela primeira vez, o humor de Alex melhorou. Eram cinco horas da manhã. O sol logo nasceria, anunciando o momento em que todas as festas de 2


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sucesso finalizariam. Claro que o evento em Carlton House seria considerado um triunfo, não fosse pelos peixes fedorentos. Discretamente, ele chamou a atenção de Prinny. — Sir, estou certo de que os convidados no jardim não poderiam encontrar um prazer maior neste fim de noite, exceto, claro, em sua companhia. Prinny piscou uma... duas vezes. Embora o excesso de comida, vinho e lisonjas enevoassem sua mente, ele entendeu a mensagem. — Está absolutamente certo, Darcourt. Ainda bem que pensou nisso. Por mais que eu aprecie a presença de todos, não devemos ser egoístas, meus caros amigos. Ele se levantou de forma tão abrupta que o criado teve tempo apenas de impedir que a cadeira real caísse. Os demais se retiraram, aliviados por se livrar do odor de peixe. — Graças a Deus — lady Lampert murmurou quando Alex lhe ofereceu o braço. — Eu não suportaria nem mais um minuto àquela mesa. Que vexame! Não parece haver limites para nada, não acha? — Prefiro acreditar que ainda há limites — Alex retrucou. Tal comentário era a crítica mais sutil que poderia fazer ao anfitrião. Mas suas preocupações em relação ao egocentrismo do príncipe jaziam no destino que a política britânica teria. Com o domínio de Napoleão no continente europeu, os britânicos buscavam poder e prestígio onde pudessem encontrar. A Austrália e a Índia não eram suficientes. Ambicionavam tomar o reinado estrategicamente situado para além dos Pilares de Hércules, à entrada do Mediterrâneo. Porém, se Alex pudesse evitar, nada disso aconteceria. O que dissera a Grey era verdade; ele não possuía nenhuma missão diplomática em nome do reinado de Akora. Seu único objetivo era impedir interferências. No jardim, centenas de convidados se aglomeraram ao redor do príncipe e seu séquito. Prinny, obviamente, acreditava que todos o bajulavam, mas, aos olhos sagazes de Alex, os convivas pareciam aliviados ao notar que a festa chegava ao fim. Nada poderia competir com os peixes mortos, um conto que seria repetido inúmeras vezes sem muita consideração aos detalhes. No entanto, o jardim precisaria de tratamento, pois parecia ter sido vítima de um vendaval. Arbustos foram arrancados do solo, flores destruídas, e várias árvores estavam prestes a tombar. A situação dos convidados não era muito melhor. A maquiagem dos homens e das mulheres estava borrada, as perucas pendiam, e os trajes elegantes ganharam manchas de comida e bebida. Após receber a gratidão dos convidados, o príncipe preparou-se para se recolher. Alex reprimiu um suspiro de alívio. Ao ver uma brecha em meio à multidão, puxou lady Lampert. Atingiram a extremidade do jardim no instante em que Prinny desaparecia no interior da residência. — Por aqui — Alex indicou quando viu uma abertura na cerca viva, que os levaria aos portões de Carlton House. A carruagem de Alex o aguardava no local determinado, distante da multidão para que o veículo pudesse se deslocar sem dificuldade. Enquanto os 2


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demais convidados, imprudentes, permaneceriam presos no tráfego intenso até depois do amanhecer, ele e sua companheira encontrariam facilmente o conforto merecido. Com um aceno para o cocheiro, que estava de prontidão, Alex abriu a porta da carruagem e subiu logo depois de lady Lampert. O landau se pôs em movimento segundos antes de ele se sentar. Joanna observava o landau com extrema satisfação. Previra que Darcourt sairia assim que possível da festa, e ele não a decepcionara. Que sorte a dela ter localizado a carruagem do conde, uma tarefa fácil dada a surpreendente perfeição dos animais que a puxavam. Enquanto Carlton House e a massa de pessoas ficavam para trás, ela se permitiu um suspiro de alívio. Não suportava a sociedade aristocrata e sentia-se grata por Royce não ter presenciado tamanha ostentação do regente. Porém, se ele estivesse ali, Joanna não teria comparecido àquele espetáculo. Ou se Darcourt tivesse se dignado a recebê-la dias atrás, ele a pouparia da cena vexatória, a qual a submetera, no salão do príncipe regente. Mas agora o arrogante conde a receberia, Joanna pensou, determinada. Sua carruagem seguia a dele e, antes que o homem pudesse abrir a porta do veículo, ela o abordaria e se faria ouvir, nem que tivesse de gritar no meio da rua. No entanto, havia um pequeno problema. Darcourt não tomava o caminho de sua residência. Na verdade, ele parecia seguir em direção ao rio. — Não o perca de vista — Joanna alertou o cocheiro. O aviso veio em boa hora, pois o nevoeiro sobre o Tâmisa se adensava. A luz do amanhecer, que iluminaria as ruas, agora se confundia com a fantasmagórica obscuridade. Joanna praguejou e voltou a olhar pela janela da carruagem. — Está vendo alguma coisa? — Não muito — respondeu Bolkum Harris. Era um homem baixo, bem-apessoado e de cabelos e barba negros. Bolkum trabalhava como ferreiro em Hawkforte, mas quando Joanna comunicara sua viagem a Londres, ele se ofereceu prontamente para acompanhá-la. Ela logo concordara, já que o considerava um velho amigo e um protetor. — Para onde ele está indo? — Pelo jeito, para Southwark. Estamos perto da ponte. O estimado Darcourt pretendia finalizar a noite nos becos escuros de Southwark e em companhia de lady Lampert? Definitivamente, Joanna não compreendia o que aquela sociedade entendia como diversão. — Não consigo enxergar quase nada, Bolkum. — Mas ainda conseguimos escutá-los — ele observou. Era verdade. O som das patas dos cavalos estava próximo. Havia outros veículos atravessando a ponte, mas não poderiam ser confundidos com o elegante landau.

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— Estão diminuindo — Joanna percebeu, minutos depois. — Vá devagar. Bolkum obedeceu até parar a carruagem. Ambos ouviram quando o landau, após percorrer alguns metros, também parou. Era seguida, houve um silêncio tão absoluto que se ouvia apenas o ruído da água do rio. — Não podemos permanecer muito tempo aqui, milady — disse Bolkum. — Do contrário, teremos dificuldade para encontrar o caminho de volta. — Em breve, o sol vai dissipar o nevoeiro. — Joanna desceu da carruagem. — Nesse ínterim, amarre os cavalos, por favor. Quero ver aonde eles foram. — Não é um lugar adequado para passear — advertiu Bolkum. — Eles devem estar por perto. Não vamos nos demorar. Joanna espiou através da neblina. Ainda escutava o ruído da água, mas também pôde ouvir vozes. Com Bolkum a seu lado, ela seguiu a alameda repleta de depósitos até atingir uma das inúmeras docas que faziam de Southwark o principal porto de Londres. O dia claro revelaria os mastros das embarcações mercantes, muitas delas armadas apesar da proposta de paz. A Marinha britânica ainda comandava os mares, mas Napoleão conquistava seu espaço. Em época tão turbulenta, ninguém se atrevia a navegar desarmado. Uma brisa repentina abriu uma brecha no nevoeiro. Joanna então pôde divisar uma forma inusitada. Por um instante, não acreditou em seus próprios olhos. Mais uma vez, a neblina se dissipou. Para além das construções que rodeavam a doca, ela avistou a proa de uma embarcação erguendo-se sobre a superfície da água. Cravado na madeira maciça, havia a imagem surpreendente de um touro de olhos vermelhos. O cordame preso ao mastro principal retinia suavemente. Quando escutou vozes novamente, Joanna viu vários homens montando guarda diante da prancha de embarque. Eles falavam em uma língua que ela não conhecia, mas que lhe soava bastante familiar. Bolkum enrijeceu e a puxou. Joanna não protestou, pois legitimava a preocupação do leal ferreiro. Aquele navio era diferente de todos os outros que estavam atracados no porto. Aliás, tratava-se de uma embarcação centenária, que pertencia ao legendário Reino de Akora, a fortaleza mítica e misteriosa. Um mundo para além dos Pilares de Hércules, onde quase nenhum estrangeiro aportava havia séculos. A terra para onde Royce fora e, possivelmente, morrera. — Akoreanos — Bolkum murmurou. Ele deveria ter dito "perigo", já que assim eram conhecidos os guerreiros daquela terra lendária. Havia boatos de que, anos atrás, uma força expedicionária francesa se aventurara nas águas de Akora e nunca mais retornara. Antes disso, existiram outras histórias sobre exploradores espanhóis, portugueses e ingleses que almejaram fama ao penetrar no reino escondido. Eles também desapareceram sem deixar rastro. Por mais antiga que fosse Akora, seus armamentos eram os mais modernos, e seus homens eram tão bem treinados que poderiam enfrentar as nações mais poderosas. — Então é verdade o que dizem do conde? — perguntou Bolkum, levando-a de volta à carruagem. 2


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— Que ele é metade akoreano? Perece que sim. Um arrepio a percorreu quando constatou que realmente existia alguém que personificava o mistério do reino distante e remoto. Joanna e Royce sempre foram fascinados por Akora. Portanto, não era de se surpreender que Hawkforte possuísse a única coleção de artefatos akoreanos que havia para além do reino em si. As joias e os outros itens tinham sido trazidos à Inglaterra sob circunstâncias misteriosas no ano de 1100, na época da Primeira Cruzada. Dizia a lenda familiar que um filho caçula permanecera em Akora e que, desde então, um parentesco fora mantido. Podia ou não ser verdade. O fato era que, após longas tarde chuvosas na biblioteca de Hawkforte, estudando tais artefatos, ambos alimentaram o insaciável desejo de saber mais. Para Joanna, não havia meios de satisfazer a curiosidade. No entanto, seu irmão conseguira um posto no Ministério das Relações Exteriores só por causa de seu interesse obstinado em Akora. — Se não permitem estrangeiros, como um homem de lá conseguiu se tornar um lorde inglês? — perguntou Bolkum. — Dizem que o pai do marquês naufragou na costa de Akora — Joanna respondeu, pensativa. — A vida dele foi poupada porque uma linda princesa o encontrou e se apaixonou perdidamente por ele. É uma bela história, mas deve ter um fundo de verdade, pois, muitos anos depois, o então marquês de Boswick, que sofrera por causa do desaparecimento do filho, anunciou, de repente, que tinha um neto. — O jovem bateu à porta dele? — Não sei quais foram as circunstâncias. Só sei que o marquês declarou o rapaz seu herdeiro. Cinco anos atrás, quando o avô faleceu, Darcourt se tornou marquês de Boswick e herdou os outros títulos. Só isso lhe garantiu ser aceito na sociedade, apesar do mistério que o rodeia. Ele é considerado o representante do governo de Akora. Royce o conheceu. A presença de Darcourt a bordo da embarcação akoreana significava que ele se preparava para deixar a Inglaterra, Joanna refletiu, apavorada. E com ele partiria sua última esperança de encontrar o irmão. — Suba, senhorita — pediu Bolkum, gentilmente, ao abrir a porta da carruagem. — Faria uma coisa por mim? — Joanna perguntou. — Claro, milady. Não precisa pedir. Grata pela lealdade do povo de Hawkforte, ela o instruiu: — Leve-me para casa e depois vá à residência do conde. Veja se há algum indício de que ele ainda ficará em Londres. Bolkum assentiu e tomou as rédeas. Assim que o veículo se pôs em movimento, ela se acomodou no assento acolchoado e permitiu que a fadiga a dominasse. O dia já tinha amanhecido quando Bolkum a deixou diante da graciosa residência em Mayfair, o lar dos Hawkforte em Londres por mais de cinquenta anos. Mas o grosso nevoeiro fizera com que Mulridge, a eficiente governanta, acendesse as lamparinas do hall de entrada. — Bem-vinda, milady — disse ela. — Imagino que a noite tenha sido 2


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satisfatória? — Foi... esclarecedora — respondeu Joanna. — Descobri um novo significado para a palavra "excesso". Por alguns instantes, ela permaneceu em silêncio, enquanto conjurava as imagens das últimas horas, culminando na visão do navio de Akora atracado no cais de Londres. Ciente de que Mulridge a observava, fitou os olhos profundos da governanta. Não fazia ideia de quantos anos Mulridge tinha, mas a boa mulher não mudara desde que chegara a Hawkforte, cerca de cinquenta anos atrás. — A senhorita gostaria de um banho? — Mulridge sugeriu. — Oh, sim, por favor. — Vamos. A água está quente. Tal como quando era criança, Joanna seguiu a criada escada acima. Na época, aos nove anos, ela ficara órfã da noite para o dia e extremamente assustada. Royce tentara consolar a irmã, mas era somente quatro anos mais velho e também sofria com a dor da perda. O povo de Hawkforte fizera tudo para ajudar as crianças, cujos pais haviam falecido durante uma violenta tempestade de verão. Mas fora Mulridge, taciturna e firme, quem acolhera os dois, secara suas lágrimas e os ajudara a reconstruir suas vidas quando tudo lhes parecera destruído. — Não consegui falar com Darcourt — comentou Joanna. — Tentei, mas ele não quis me ouvir. — Não achei que ele o faria — Mulridge replicou. — Maldito! — Não fale assim. Nem todos os homens são ruins. Mas eu sabia que o marquês não seria útil desde o dia em que se recusou a vê-la. — Porque ele não quis me ajudar? — Joanna murmurou, com os olhos marejados. — Quem sabe? Agora chega de conversa. Está cansada demais para raciocinar. Joanna só percebeu a dimensão de seu cansaço quando entrou na banheira de água quente. Nesse ínterim, Mulridge transitava pelo quarto, dobrando roupas e arrumando a cama. — Não fique muito tempo na banheira ou vai acabar enrugada. — Tarde demais. — Joanna riu. — Pelo menos, não estou cheirando a mofo. — A noite foi tão desagradável assim? — Foi pior. Ninguém se mostrou... verdadeiro. Eles usavam perucas, joias e maquiagem em excesso. Todos me pareceram artificiais. — Todos? Não, nem todos. Darcourt fora a única exceção em um mar de janotas. Um arrepio a fez estremecer quando se lembrou do jeito como ele a olhara. — Sim, todos, sem exceção. Joanna se levantou e pegou a toalha. Depois de vestir o roupão, aproximou-se da cama. 2


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— Não vou conseguir dormir durante o dia. — Talvez não, mas pode se deitar. Alguém bateu à porta. Mulridge a abriu e se deparou com uma das criadas. — Bolkum voltou, milady — informou a jovem. — Ele quer falar com a senhorita. — Diga-lhe para esperar — Mulridge a instruiu. — Sua Senhoria precisa descansar. — Não, está tudo bem. — Joanna vestiu uma capa sobre o roupão. — Vou descer. Bolkum a aguardava no hall. Ele ignorou o olhar severo de Mulridge e foi direto ao ponto. — Lamento perturbá-la, milady, mas acredito que esteja ansiosa pelas informações que consegui. Parece que a residência está fechada. Conversei com uma criada da casa ao lado, e ela me disse que o marquês dispensou a criadagem até segunda ordem. — Então ele está de partida — Joanna sussurrou. — É o que parece. Bolkum e Mulridge se entreolharam. A governanta segurou o braço de Joanna com gentileza. — Agora é melhor voltar para a cama. Sem saber o que pensar, Joanna obedeceu. Mais tarde, naquele mesmo dia, um plano começou a se formar em sua mente. No início, descartou a ideia, por ser absurda demais, mas, à medida que as horas se passavam, começou a achá-la razoável. O jornal devia estar em algum lugar. A entrega diária do The Times representava um dos poucos benefícios que Londres tinha a oferecer. Em Hawkforte, Joanna o recebia pelo correio, o que significava ler as notícias com um dia de atraso. Normalmente, folheava o jornal na sala de estar, onde costumava tomar o desjejum. Porém, naquela tarde em particular, não conseguia encontrá-lo. Apesar de suas expectativas, conseguira dormir um pouco, embora os sonhos agitados não lhe permitissem descanso. Acordar foi um alívio, tal qual a ausência temporária de Mulridge, que havia ido ao mercado, permitindo a Joanna uma hora inteira para se organizar. Mas, antes de tudo, precisava encontrar o jornal. Vasculhou nos lugares mais plausíveis, sem sucesso. Então percorreu os menos plausíveis, inclusive o assoalho. Por fim, mastigando um pão doce, marchou até o aparador do hall, onde a correspondência era deixada. Nada. Depois de engolir o último pedaço de pão, Joanna fechou os olhos, respirou profundamente e pensou no jornal. Sentiu o odor característico da tinta, escutou o farfalhar das páginas e... Abriu os olhos. Aflita, correu até a cozinha. A cozinheira fazia sua pausa merecida, enquanto as duas ajudantes se achavam no jardim dos fundos, brincando com uma ninhada de gatinhos.

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Vários criados lhes faziam companhia. Joanna parou e esquadrinhou o espaço amplo e claro. De súbito, avistou o jornal sobre a pesada mesa de madeira maciça. Conseguiria encontrar Royce dessa maneira? Tensa, ela se recusou a responder. Não havia motivo para duelar com as excentricidades de seu estranho dom. Podia, em circunstâncias favoráveis, encontrar objetos. Certa vez, localizara uma pessoa. Esperava que, com a graça de Deus, ela o fizesse novamente. Joanna abriu o jornal e logo achou o que procurava. O The Times publicava notícias relativas ao comércio, incluindo as idas e vindas dos navios mercantes e os movimentos das marés. Ficou apreensiva. O que contemplava era loucura. No mínimo, repetiria o mesmo erro que Royce cometera e que, talvez, o levara à morte. Mas que escolha ela tinha? Permanecer em Hawkforte, ignorando o destino do irmão e atormentada pelas piores possibilidades? Qualquer coisa era melhor que isso. Rapidamente, antes que pudesse reconsiderar, Joanna se sentou à escrivaninha da sala e escreveu, sem pausa, o que achava necessário. Em seguida, dobrou a carta, guardou-a no bolso do vestido e subiu para seu quarto, onde permaneceu.

O dia passou devagar. Alegando fadiga, ela ficou em seus aposentos. Cochilou um pouco e relembrou a bela paisagem de Hawkforte, com seus jardins majestosos, os muros de pedra agora cobertos de hera e a praia tranquila, na qual ela e Royce haviam brincado quando crianças. Ele não voltara a Eton depois da morte dos pais, preferindo ficar em Hawkforte junto com a irmã para que ambos se recuperassem da terrível perda. Continuara seus estudos com preceptoras que, inevitavelmente, acabaram ensinando Joanna. Na época em que Royce partira para Cambridge, ela já era fluente em várias línguas, adepta à matemática e tão versada na administração do feudo que seu irmão nem sequer cogitara a contratação de um contador para gerenciar o patrimônio. Em breve, Hawkforte começaria a preparar o feno. Joanna adorava todas as estações, mas tinha predileção pelos verões, quando a terra gerava seus frutos em abundância. Sem muito esforço, imaginou o calor do sol em seu rosto, a essência dos campos e o sabor adocicado da cidra como recompensa após um trabalho benfeito. Seu coração clamava pelo conforto do lar. Mas sabia agarrar-se a uma falsa esperança. Enquanto o paradeiro de Royce continuasse desconhecido, não haveria conforto em lugar nenhum. Do lado de fora, a noite começava a cair, trazendo certo alívio ao calor do dia. A rua estava deserta, e a casa, silenciosa. Joanna se aproximou da cômoda e lavou o rosto com a água fria da bacia. Então abriu o armário para pegar as roupas que havia escondido. Após se vestir, recolheu o que lhe seria útil e guardou tudo em uma trouxa. Agora restava esperar pela escuridão da noite. Embora estivesse agitada demais, Joanna resolveu se deitar antes de 2


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sair. Tão logo se acomodou, a exaustão a dominou, fazendo-a adormecer. Mais tarde, acordou sobressaltada e olhou ao redor. O quarto estava iluminado somente pelo luar. Nesse momento, o relógio tocou doze badaladas. Joanna gemeu e pegou a trouxa. Havia um risco real de se atrasar. Mesmo assim, deteve-se para deixar a carta sobre o travesseiro. Então, em silêncio, desceu as escadas. No hall de entrada, um criado roncava. Pé ante pé, Joanna passou por ele e entrou na cozinha. Lá, pegou biscoitos, carne-seca, encheu um cantil com água e guardou tudo em sua trouxa. Embora quisesse levar mais, sabia que não poderia carregar peso. No último momento, e por impulso, ela pegou uma faca e a jogou na trouxa. Em seguida, saiu pelos fundos e correu até o portão lateral. Apesar do ar quente da noite, ela tremia. Havia repassado a rota inúmeras vezes em sua mente, mas saber que caminho tomar era muito diferente de agir. À noite, as marcas familiares se apagavam. Sob a escuridão, Joanna não reconhecia quase nada. Tal empecilho, porém, era de se esperar, já que ela passara pouco tempo em Londres e a achava tediosa ao extremo. Seria tolice imaginar que se sentiria em casa naquela cidade. Joanna conhecia a rota. Precisava apenas confiar em sua intuição e segui-la. Quando chegou ao rio e o atravessou, em direção a Southwark, já era bem tarde. Aflita, correu até o cais, onde vira a embarcação de Akora. Se o navio tivesse zarpado... O alívio que sentiu ao avistar a enorme cabeça de touro, iluminada por tochas, foi substituído pela consciência do que estava prestes a tentar. Parou e se escondeu à sombra de um depósito. A qualquer momento, um dos vigias da doca a veria e acabaria com sua única chance de encontrar Royce. Havia um homem no final do quebra-mar, e outro na prancha de embarque. Havia mais no convés. Eles usavam túnicas até a altura dos joelhos, com cintos atados à cintura. Os cintos sustentavam bainhas que abrigavam espadas. Aqueles homens pareciam pertencer a outro tempo, aos afrescos da Grécia antiga. Joanna também notou que nenhum navio estava atracado ao lado do akoreano. O mistério e o mito que envolviam o Reino de Akora eram tão grandes que, por superstição, nenhum capitão ousaria ancorar nas proximidades daquela embarcação. Mais ao longe, em meio aos becos de Southwark, ela escutou risos. Se estivesse certa, encontraria o que precisava em uma das vielas. Havia uma taverna úmida, obviamente frequentada por marinheiros, diante da qual os fregueses aproveitavam a brisa noturna, enquanto bebiam e jogavam dados. Uma dupla de garotos vagava por lá. Joanna os observou por vários minutos. Embora desaprovasse a permanência de crianças em um lugar tão nefasto, não se cegou à realidade de que sua oferta poderia ser considerada uma pequena fortuna para eles. Aproximou-se, cautelosa, e esperou que um deles a visse para chamálos. Quando se afastou da taverna, não precisou olhar para trás. Escutou o som de passos, o que indicava que os meninos a seguiam. 2


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Joanna parou em um local onde pudesse ter privacidade e olhou para os dois. De mãos nos bolsos, eles a encaravam com um misto de curiosidade infantil e desconfiança. — Preciso que façam um trabalho para mim, pelo qual eu pagarei muito bem — foi logo dizendo. — Estão interessados? — Um trabalho? — o mais alto repetiu, medindo-a da cabeça aos pés. — Que tipo de trabalho? Você fala muito bem para alguém que se veste mal. Ele tinha razão. Usando as roupas masculinas que encontrara no sótão da casa de Londres, trajes provavelmente deixados anos atrás por Royce, e com os cabelos presos sob um chapéu de tecido, Joanna se parecia com tudo, menos com a dama que era. Podia muito bem se passar por um cavalariço. — Um guinéu agora e um guinéu depois. — Vendo que eles ainda a fitavam, céticos, acrescentou: — Para cada um de vocês. Joanna corria um tremendo risco. Sabendo que ela tinha dinheiro, os garotos poderiam simplesmente roubá-la. Mas a pobreza nem sempre sobrepujava a honra, e talvez os dois gostassem de uma aventura. — O que você quer? — o segundo garoto perguntou. — Preciso que me ajudem a embarcar em um navio atracado perto daqui. Quero que distraiam as sentinelas. Mas não quero que se machuquem ou corram perigo. Os garotos se entreolharam. — Que navio? — indagou o mais alto. — A embarcação akoreana, aquela com uma cabeça de touro na proa. Os dois arregalaram os olhos e a fitaram com respeito. — Vai embarcar naquele navio? — o mais baixo perguntou, espantado. — Ficou louca? — o outro retrucou. — Ninguém se atreve a chegar perto deles. — Sabem quem são eles? — Joanna indagou. — Sabemos. Aquele cais é só deles, e os armazéns também. Certo, Noggin? — o menor perguntou ao mais alto, que assentiu. — Os navios de lá chegam a cada três meses ou mais. Ninguém se aproxima ou se mete com eles. Joanna sentiu o coração se apertar, mas ignorou o medo. — Mesmo assim, tenho de embarcar naquele navio. Vou lhes pagar bem. Vão me ajudar? — Deixe-nos ver o dinheiro — pediu Noggin. Temendo ser roubada, Joanna tirou dois guinéus do bolso do casaco. As moedas brilharam sob as tochas da taverna. — E mais dois quando eu embarcar. Por um instante, os dois somente fitaram as moedas. Comovida, Joanna percebeu que nunca tinham visto tanto dinheiro. Noggin sorriu. — Queremos os quatro guinéus agora, porque no navio você não poderá nos pagar o resto.

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Mesmo a contragosto, Joanna assentiu e tirou mais duas moedas do bolso. — Está bem, mas venham comigo até o cais. Eles a acompanharam até as proximidades do navio akoreano. — Não quero que se machuquem, entenderam? — ela repetiu. — Claro que entendemos — Noggin respondeu. — Qual é o plano? — Distraiam os guardas. — Sim, e depois? Eu e Clapper distraímos os homens, mas como você vai entrar no navio? Não pretende atravessar a prancha de embarque, certo? — Por quê? — Joanna ficou indecisa. — Há algo de errado com a prancha? Noggin respirou fundo. — Nós conhecemos esses homens. Eles vigiam o navio dia e noite. Se causarmos uma comoção, alguns guardas vão ver o que é, mas eles não são tolos. São soldados de verdade. Há sempre sentinelas no convés para o caso de algum idiota tentar o que você pretende. Precisa encontrar um meio de enganá-los. — Tem as escotilhas — sugeriu Clapper. — Na proa e na popa. Devem estar abertas, porque a noite está quente. — Vá até a proa — Noggin instruiu. — Eu os vi embarcar várias cargas ainda hoje. — Ele a fitou, desconfiado. — Sabe nadar, não sabe? — Claro que sei, e agradeço a sugestão. — Antes que mudasse de ideia, Joanna lhes entregou as moedas. — Tenham cuidado. Os guinéus desapareceram nos bolsos das calças esfarrapadas e, no minuto seguinte, os dois meninos sumiram na escuridão. Joanna esperou, ansiosa, à sombra de um armazém. Não sabia se tinha sido roubada ou se estava prestes a atravessar um precipício que provaria ser fatal. Engoliu em seco e tentou respirar fundo para se acalmar. O tempo passou. Escutava a água batendo nos pilares do cais, o rangido das madeiras e os sons da taverna. O ar exalava o odor de sal. A qualquer momento, temia ouvir o ruído da âncora sendo elevada. E se os meninos tivessem fugido? O que ela faria? Tentaria embarcar mesmo assim? Ou simplesmente invadiria o navio, exigindo falar com Darcourt e rezando para que, dessa vez, ele a ouvisse? Nenhuma das opções lhe pareceu interessante, mas começou a considerar uma delas quando um assobio repentino cortou a noite. Ela olhou para o telhado do armazém em frente. Divisou duas figuras sob o luar, sacudindo os braços, pulando e gritando para todos ouvirem. — Ei, aqui em cima! Vocês do navio! Invadimos seu armazém. Ele é nosso! Venham nos pegar! Apesar de tudo, Joanna riu. Embora temesse pela segurança dos garotos, admirou tamanha ingenuidade. Os meninos estavam visíveis o suficiente para atrair as sentinelas, mas longe o bastante para serem capturados. Os akoreanos olharam para o telhado do depósito. Minutos depois, 2


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quatro vigias se precipitaram ao prédio, em uma manobra militar impressionante. Os outros guardas permaneceram em seus postos, porém mantendo a atenção voltada para os dois garotos que saltitavam no telhado. Chegara a hora. Com o coração disparado, Joanna saiu das sombras e correu ao longo do cais. Atrás de si, ouviu as vozes de Noggin e Clapper, que deviam ter descido do telhado para afastar os homens do navio. Mas os akoreanos não os seguiriam. Assim que verificassem a segurança do armazém, voltariam à doca. Isso lhe daria somente alguns minutos. À sua frente, Joanna avistou a proa do navio. Somente a determinação de encontrar Royce a fez prosseguir. Com um salto preciso, conseguiu agarrar uma corda presa à proa do navio e ao cais. Então, reunindo uma força que não sabia possuir, seguiu a extensão da corda, sem parar, até que sua cabeça colidiu no casco do navio. Joanna esticou o corpo a fim de localizar a escotilha mais próxima. Estava aberta e era larga o suficiente para ela passar. Dessa vez, pendurou-se à corda pelas pernas e arrastou-se em direção à escotilha. Conseguiu inserir a cabeça e os ombros. Algo pontiagudo rasgou seu braço, mas ignorou a dor. A corda se soltou no instante em que ela adentrou a escuridão. Uma questão de segundos. Uma vida inteira. Joanna tombou no piso de madeira e ali ficou, arfando, trêmula. Encolhendo-se no chão, olhou ao redor. A luz do luar, que penetrava pelas escotilhas, permitiu-lhe visualizar baús e caixas empilhados em um canto, uma mesa e dois bancos no centro do aposento. Pendurados à parede havia vários escudos e armas. Devia ser o alojamento da tripulação. Ela conseguira invadir justamente o local usado pelas sentinelas que tentava evitar! Felizmente, o lugar estava vazio, mas isso poderia mudar a qualquer momento. Cambaleando, Joanna se levantou e, ignorando a dor aguda no braço, correu para a porta e abriu-a, sem nem sequer considerar que alguém poderia estar do outro lado, montando guarda. O alívio ao ver o corredor deserto foi imenso. Logo à frente, no piso, avistou um alçapão. Precipitou-se até ele e puxou a alavanca de metal. Nesse instante, percebeu que encontrara a entrada do porão do navio. De repente, ouviu passos e vozes acima de sua cabeça. Aflita, passou pela abertura, fechou o alçapão e desceu para a escuridão total. A princípio, a negritude do porão parecia impenetrável. Quando o pânico ameaçou dominála, respirou fundo e devagar, pensando em Royce. Concentrando-se no amor que sentia pelo irmão, sentiu a coragem fortalecê-la. Aos poucos, o medo dissipou-se. De um minuto para o outro, todos os sentidos pareceram mais acurados. Joanna absorvia cada som, próximo ou distante, o rangido do casco, vozes abafadas ao longe e o ruído da carga conforme o navio balançava. O porão exalava um odor de madeira, sal e algo mais. Ela distinguia os aromas de azeite e vinho, feno e cavalos, couro e ferro. Joanna esticou os braços e deu alguns passos à frente. Seus dedos 2


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tocaram um objeto grande e duro, de metal, cuja extremidade era mais estreita que a outra e que estava preso ao porão por pesadas correntes. Cautelosa, inclinou-se para a esquerda e se abaixou. Outro odor inconfundível chamou sua atenção. Pólvora. O tubo de metal que ela tocava cheirava a pólvora. Um canhão. Os akoreanos tinham, pelo menos, um canhão naquele porão. Continuando sua exploração às cegas, Joanna encontrou mais dois, igualmente grandes. Poderia muito bem haver mais. Anos atrás, Royce vivera uma fase de fascínio por armamentos, como era comum aos garotos. E ela, é claro, sempre gostara de partilhar os interesses do irmão. Joanna jamais imaginara que tal conhecimento pudesse um dia lhe ser útil. Por isso, foi capaz de reconhecer os canhões e avaliar o tamanho da potência que possuíam. Os akoreanos eram famosos pela habilidade com arco e flecha e, aparentemente, não eram avessos a adquirir armas melhores para além de suas fronteiras. Tal armamento a surpreendia, já que também era sabido que eles rejeitavam qualquer influência estrangeira. Antes que pudesse refletir acerca daquela contradição, ouviu o barulho da âncora sendo erguida. Ela cambaleou até que suas mãos tocaram a parede. Encolheu-se em um canto, agarrada à trouxa, e tentou se acalmar. Agora tomava ciência do grau da loucura que fizera. Somente a absoluta certeza de que fora esta sua única escolha lhe oferecia algum conforto. No passado, aprendera a navegar e adorava o mar, mesmo depois de o destino lhe ter roubado o prazer da navegação. Apesar das circunstâncias, o movimento contínuo da embarcação dissipou a tensão de seu corpo, dando lugar à fadiga de quase dois dias sem dormir. Embora achasse impossível, Joanna adormeceu.

Ela acordou ao amanhecer. A luminosidade era fraca, já que o dia penetrava pelas frestas do convés acima dela. Mas foi o suficiente para tornar os arredores mais visíveis. Enxergou os canhões e se maravilhou com tamanha magnificência, antes de atinar para a enormidade do que havia feito. Joanna começou a se levantar, mas parou quando sentiu uma onda de dor. Gemendo, tocou o braço, espantando-se ao ver sangue na palma da mão. — O quê? Assustada, examinou a manga da camisa, agora toda ensanguentada. Aos poucos, lembrou-se de ter ferido o braço quando entrara pela escotilha. O choque e a exaustão a haviam cegado para a seriedade do ferimento. O corte se fechara durante a noite, mas agora estava reaberto. Com os dentes cerrados, ela arregaçou a manga. O que viu a fez gemer novamente. O corte, além de profundo, era longo, começando logo abaixo da curva do ombro. Se estivesse em Hawkforte, não perderia tempo em limpá-lo, costurá-lo e protegê-lo com uma bandagem. No porão do navio, com a quantidade ínfima de água em seu cantil, os parcos recursos em sua trouxa e sem ninguém para ajudá-la, não poderia fazer muita coisa. Ainda assim, precisava tentar. Pretendera economizar a água durante dois dias para somente então sair 2


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de seu esconderijo a fim de procurar novos suprimentos. Se fosse pega, ponderou, Darcourt não consideraria voltar à Inglaterra. Por mais furioso que ficasse, não ousaria jogá-la no mar. Pelo menos, Joanna esperava que não. Mas, agora, a água acabaria antes do previsto. Teria de dar um jeito de sobreviver sem ela até se sentir segura para ir buscar mais. Longos e dolorosos minutos se passaram enquanto Joanna limpava o ferimento e o envolvia em um pedaço de linho que rasgara da outra camisa que trouxera. O esforço a exauriu, obrigando-a a se sentar. Havia biscoitos e carne-seca na trouxa, mas ela não tinha forças para comer. Permaneceu, portanto, encostada à parede, tentando ignorar a dor latejante no braço. Algum tempo se passou. Acima dela, escutava vozes e movimentos da tripulação. Aquela altura, deviam estar próximos à costa da França. A esquadra francesa estaria patrulhando, mas Joanna duvidava que qualquer comandante francês tivesse coragem de interceptar uma embarcação de Akora. Ela cochilou um pouco e acordou com sede. Embora tentasse se conter, bebeu mais da metade da água que havia no cantil. Resignada, obrigou-se a poupar o que restava. Apesar da falta de apetite, consumiu a maior parte dos biscoitos e vários pedaços de carne-seca. O alimento não a sustentaria por muito tempo, mas precisava racioná-lo. Mesmo dolorida, levantou-se, na tentativa de aproveitar a luz do dia. Além dos três canhões que descobrira na noite anterior, havia outros três, do mesmo tamanho. Viu também dúzias de caixas de madeira, que, ela suspeitava, deviam conter armas. Ainda assim, o porão possuía espaço para mais cargas. A riqueza de Akora era tão legendária quanto a fortaleza que representava. Os canhões provavam que as histórias eram verdadeiras. Poderia Royce ter considerado tal armamento? Quando embarcara em sua jornada, ele concebera o imenso risco que estava correndo? Sim, sem dúvida, pois era um homem inteligente, sem inclinações egoístas ou comportamentos impulsivos. — Voltarei no Natal — Royce garantira antes de partir. — Não se preocupe comigo, Joanna. Tudo vai dar certo. Mas o Natal chegara e se fora, e Royce não dera sinal de vida. Impaciente, ela meneou a cabeça. Não podia deixar que o medo a dominasse. Precisava manter a mente clara a fim de lidar com o que viesse a acontecer. No entanto, à medida que as horas passavam, a dor no braço aumentava, sugando sua energia. Joanna se viu deitada, sem saber como o fizera. Pelo menos, o chão estava quente. Trouxera consigo uma manta fina, mas o calor que sentia era tanto que ansiava agora por um balde de neve para se refrescar. Sufocada, abriu o colarinho da camisa. Deviam estar rumando para o Sul, pensou. Talvez fizesse mais tempo que estavam navegando do que ela imaginava. Akora era quente naquela época do ano. Tal qual a Grécia, a terra de origem dos akoreanos, segundo diziam. Seria possível? Algo tão antigo teria sobrevivido? Royce acreditava que a lenda era verdadeira. Parte de seu desejo de ir a Akora jazia na convicção de 2


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que encontraria respostas às tantas perguntas acerca da Grécia antiga. Querido Royce, um irmão tão dedicado! Um bom homem. Seria uma injustiça, caso estivesse em perigo. O fato de imaginá-lo ferido era insuportável. Joanna despertou da febre e gemeu de dor. Pegou o cantil e bebeu o resto da água. Em seguida, tornou a adormecer. Quando acordou, já era noite. Precisava procurar água. Porém, quando se levantou, o navio balançou de repente, fazendo-a imaginar que haviam sido pegos por uma tempestade. Mesmo assim, cambaleou até a escada que dava acesso ao alçapão. Ergueu o pé para subir, mas perdeu o equilíbrio e caiu de encontro a uma caixa de madeira, que colidiu contra a parede.

Alex colocou a caneca na mesa e olhou para a porta do alojamento da tripulação. Como de costume, ele jantava com seus homens. Em Akora, os comandantes partilhavam muitas coisas com seus soldados, um hábito desconhecido na Inglaterra e no continente. Alex apreciava aquela camaradagem. O laço que criavam poderia fazer muita diferença entre a vida e a morte em um campo de batalha. Oficiais que mantinham distância, para ele, causavam o prolongamento desnecessário das guerras. Melhor era a coesão de uma unidade que poderia aniquilar o inimigo, salvando vidas por meio de uma vitória rápida. Em seu tempo livre, que era escasso, ele escrevia um tratado a respeito do assunto, contrastando os estilos de liderança dos comandantes akoreanos e britânicos. Havia trabalhado bastante em seu texto naquela noite. — Há algo errado, archos! — o homem sentado ao lado de Alex perguntou. Ele falara baixo, mas o uso do título de Alex em situações formais chegou aos ouvidos dos outros vinte homens que estavam à mesa. A conversa cessou quando todos voltaram a atenção ao comandante. — Escutei um barulho no porão. Alguma carga deve ter se soltado. Alex se levantou, seguido de seus homens. Todos sabiam ser improvável que a carga estivesse solta. Após centenas de anos acumulando experiências em alto-mar, qualquer akoreano comum sabia prender um carregamento de olhos fechados. Mas a tripulação do Nestor não era comum, tampouco a carga que transportavam. Em questão de segundos, Alex se aproximou do alçapão. Rodeado por vários homens que seguravam lampiões a óleo, ele ergueu a tampa de metal. Em seguida, pegou um lampião e desceu. Nenhum dos canhões parecia fora do lugar, muito menos as caixas. No entanto, Alex não duvidava do que escutara. Atento, observou os arredores à procura de qualquer coisa que lhe atraísse a atenção... como, por exemplo, um movimento súbito perto da parede mais distante. Em poucos passos, ele se aproximou e tocou a forma esguia. Sob a luz do lampião, Alex achou ter encontrado um rapazola magro. Mas, instantes depois, afastou as mechas de cabelos castanhos que encobriam o rosto e se 2


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deparou com um par de olhos brilhantes. Não podia ser!, pensou, chocado. Aquilo fugia a tudo que ele acreditava ser correto na vida. E, com a incredulidade, surgiu uma estranha sensação de fatalidade. Alex não era supersticioso, mas acreditava na filosofia de que existia uma certa ordem no padrão da vida. O homem traçava o próprio caminho, mas o destino existia e era real. Somente um tolo o tomaria como acaso. Alex dificilmente se deixava levar pelas aparências. Era um guerreiro e um líder, um homem com controle de aço que provara seu valor em combate, o mínimo esperado de alguém que aspirava ao título de archos. Havia marchado, nadado, escalado, lutado e resistido sem água, comida, descanso ou queixas. Jamais permitia que os sentimentos governassem as ações. Até aquele momento. A expletiva que irrompeu dele fez com que seus homens recuassem. Alheio aos olhares espantados, Alex agarrou o braço da garota e a tirou do porão. — De todos os esquemas imbecis temerários e perigosos, esse foi o mais insano! A cada passo, a fúria de Alex aumentava. Estivera certo ao concluir que os ingleses negligenciavam suas mulheres. Nada mais poderia explicar como uma dama bem-criada, que deveria estar vivendo na segurança do feudo da família, invadira o navio de um reino que abominava estrangeiros. — O que seu irmão pensaria diante de tamanha tolice? Além de fugir, você o faz sem considerar as consequências? O jeito akoreano era o certo. As mulheres sabiam qual era o lugar delas e aceitavam a própria condição. Apesar das mudanças que chegavam a Akora, graças aos esforços do rei e de Alex, tal premissa continuaria a mesma. Alex abriu a porta de seu alojamento e jogou a moça na cabine. Ela tropeçou e quase caiu, mas conseguiu se equilibrar. Sob a luminosidade da lamparina, lady Joanna parecia bem mais jovem e muito determinada. — Não me deu escolha! O Ministério das Relações Exteriores foi inútil e você se recusou a me receber. O que mais eu poderia fazer? Tamanho atrevimento o surpreendia. Ela deveria estar implorando perdão e indulgência. Porém, Joanna Hawkforte o enfrentava sem titubear. — Poderia ter feito o que qualquer mulher sensata faria: voltar para casa e deixar que os outros cuidassem do problema — respondeu Alex, contendo a raiva. — Foi exatamente o que eu fiz durante seis meses! Quanto tempo mais eu deveria esperar, sem saber se meu irmão está vivo ou morto? — Ela então se apoiou na mesa e apertou o braço esquerdo. Os cabelos cacheados ocultavam-lhe o rosto, mas Alex não era tolo. — O que há? — Nada. Estou bem. Deus, como eu gostaria que houvesse outra maneira... — A cada palavra, sua voz enfraquecia. — Está doente? Joanna meneou a cabeça. O que mais poderia esperar?, Alex pensou. Como se não bastasse invadir o navio, ela se ferira no processo. Não havia 2


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limites para a diversão dos deuses à custa de um homem. — O que aconteceu? — perguntou com gentileza, ao se aproximar. Joanna tentou recuar, mas ele foi mais rápido. Obrigou-a a se sentar em uma cadeira e tocou a face delicada. A garota ardia em febre. — Cortei meu braço quando entrei pela escotilha — explicou, fraca. — Mas já cuidei do ferimento. Não preciso da sua ajuda. A declaração foi ridícula, e o fato de ela acreditar no que dizia, surpreendente. Os ingleses talvez tolerassem a teimosia de uma mulher, mas para Alex isso era inconcebível. Ele ergueu a mão e rasgou a manga da camisa em dois. — O que está fazendo? — Joanna protestou, tentando se afastar. — Pare! — É uma criança que teme o que deve ser feito para seu bem-estar? — Alex indagou, retirando a bandagem ensanguentada. — Já disse que cuidei do ferimento! Ele prendeu a respiração ao examinar o corte na pele pálida. Estava aberto, e a área mostrava sinais de infecção. Isso explicava a febre. Também significava que ela devia estar sofrendo consideravelmente sem reclamar. Alex não sabia o que o deixava mais irado, se a estupidez ou o sofrimento. — Chama isto de "cuidado"? — ele questionou. — A ferida está infeccionada, e você está doente. Alex abriu o baú ao pé da cama. Felizmente, possuía treinamento médico. Deixou Joanna sozinha somente para ir à sala de banho adjacente à cabine a fim de lavar as mãos e encher uma bacia com água. Quando voltou, ela o observava com atenção. — O ferimento precisa ser costurado. Mas não tema — ele garantiu. — Vou lhe dar uma bebida que a fará dormir. Quando acordar, tudo estará terminado. — Não! Alex a encarou, perplexo. — São necessários quatro ou cinco pontos. Vai doer. Joanna afastou os cabelos para trás e o fitou. — Quando tinha oito anos, cortei o pé e eu mesmo dei os pontos. Sei que tipo de dor é essa. — Nesse caso, vai tomar a bebida que prepararei. — Não é necessário. Ficarei bem. A quem ela queria enganar? Não importava. Depois do primeiro ponto, mudaria de ideia. — Como quiser. — Alex começou a limpar o corte. Trabalhou o mais rápido que pôde, mas sabia que a dor devia ser insuportável. — Agora você vai tomar o preparado — tentou novamente. — Não. Acabe logo com isso. Hesitante, ele pensou em obrigá-la a tomar a bebida, mas sem dúvida a machucaria, se a pegasse à força. Frustrado diante de tamanha teimosia, Alex imaginou que ela cederia. No entanto, enquanto cada ponto era dado, Joanna 2


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permanecia imóvel e em silêncio, e assim foi até ele terminar. A testa de Alex estava molhada de suor. Ao cobrir o corte com uma bandagem, notou que suas mãos tremiam. Quando finalizou, olhou o rosto pálido à sua frente. — Não foi tão ruim — Joanna murmurou, antes de desmaiar. Que mulher teimosa, irritante e... corajosa. Por que não desmaiara no início, pelo menos? Ciente de que seus pensamentos eram irracionais, Alex carregou-a até a cama. Ela não se mexeu, mas a respiração cadenciada e profunda mostrava que mergulhara em um sono natural. Depois de lhe tirar as botas, notou que as roupas estavam em frangalhos, o testemunho da luta que ela empreendera para invadir o navio e permanecer oculta no porão. Sabia que a limpeza era essencial para uma boa recuperação. Portanto, não podia deixá-la daquele jeito. Com extremo cuidado, ele a despiu. A pele era macia, e os seios, embora pequenos, tinham um formato perfeito. Na coxa esquerda havia hematomas e arranhões, como se Joanna tivesse caído daquele lado ao tombar no porão. Como ela conseguira empreender tal façanha? Alex se lembrou de que seus homens haviam relatado sobre dois moleques no telhado de um dos armazéns, poucos antes de o navio zarpar. Afugentados, eles desapareceram nas ruelas que entremeavam as docas. Fora nesse momento que Joanna embarcara? Provavelmente. Ele teria de exigir atenção redobrada de seus homens em portos estrangeiros. Eles, por sua vez, também exigiriam uma explicação para a presença de uma inglesa no navio. Era evidente que ela embarcara sem o consentimento de Alex. Até resolver o que fazer, manteria a informação para si. Considerando a estranha preocupação dos ingleses em relação à nudez, Alex selecionou uma túnica em seu baú e vestiu-a em Joanna. Não correria o risco de presenciar uma cena, caso ela acordasse e se descobrisse nua em sua cama. Algum tempo depois, Alex se sentou à sua escrivaninha, mas não conseguia se concentrar. Olhava para a moça e se levantava com frequência para verificar seu estado. A febre havia baixado. Por impulso, pegou a trouxa que ela trouxera consigo e jogou o conteúdo sobre a escrivaninha. Um cantil vazio, um pacote de carne seca, outro de biscoitos, uma manta fina, uma camisa limpa e rasgada, vinte e seis guinéus de ouro, uma barra de sabão, uma faca, que ele confiscou e um livro: Especulações sobre a Natureza do Reino de Akora, de William, o conde de Hawkforte. Alex já havia visto aquele volume e até chegara a lê-lo aos quinze anos, quando fora à Inglaterra e ficara fascinado ao encontrar um livro sobre sua terra natal. De autoria do avô do atual conde de Hawkforte, o desaparecido Royce, a obra insinuava uma ligação antiga entre a família e Akora. Alex achava improvável, mas não impossível. Tinha um motivo pessoal para saber que a Fortaleza de Akora não era tão inviolável quanto os estrangeiros acreditavam. Depois de devolver o conteúdo à trouxa, aproximou-se novamente da 2


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cama. Não havia sinais de febre, o que significava que ela estava fora de perigo. Era tarde, e o dia logo nasceria com a promessa de ser, no mínimo, desafiador. A raiva estava sob controle, mas continuava presente. Se o intruso fosse um homem, Alex saberia exatamente o que fazer. Mas era uma mulher e, como tal, deveria ser tratada com respeito. Contemplando uma maneira de lidar com a inglesa imprevisível que invadira sua vida organizada, o príncipe de Akora subiu ao convés para dormir sob as estrelas. O repouso foi breve e agitado. Quando acordou, o dia começava a nascer, mas ele continuou deitado a fim de refletir sobre a situação. Sua missão na Inglaterra fora um sucesso; os canhões atestavam o fato. A compra exigira uma enorme discrição, ocorrendo sem o conhecimento do governo britânico. Ele também garantiu que a crise atual de Akora não ultrapassasse os Pilares de Hércules. Até onde os ingleses sabiam, Akora permanecia como sempre fora: um monólito poderoso e unido contra o mundo. Se um boato contrário emergisse, Alex tinha certeza de que os olhos ambiciosos, que já miravam Akora, desistiriam de qualquer intento diante do armamento que possuíam. Era vital que os problemas internos fenecessem rapidamente. Àquela altura, a intrusão da inglesa representava uma... preocupação. Sim, essa era a palavra certa e explicava por que não conseguia tirar a mulher de sua mente. A coragem de Joanna o desarmara, minando a raiva que considerava legítima. Nada o havia preparado para lidar com a criatura desconcertante que agora ocupava sua cabine. O que faria com ela, afinal? Joanna se mostrava leal ao irmão e tal lealdade precisava ser respeitada. E ela tinha coragem. — Archos? Alex olhou para o homem com o qual partilhara inúmeras missões. O rosto estava impassível, mas os olhos transmitiam preocupação. — Avistamos navios, comandante. Os olhos de caçador de Alex não tiveram dificuldade de divisar três navios se aproximando a leste. — Franceses? O homem assentiu e entregou-lhe a luneta. A lente fora produzida em Akora por um artesão que a instalara em um cilindro de metal que, quando estendido, podia alcançar duas vezes seu comprimento. Tais instrumentos existiam em Akora havia séculos e eram parte do motivo de o reino permanecer intacto, enquanto batalhas ocorriam pela Europa, civilizações se erguiam e tombavam, ditadores surgiam e morriam, e o progresso seguia seu curso. O isolamento de Akora era fonte de orgulho e segurança. — Eles possuem a bandeira francesa, archos. Alex sentiu certa empolgação, mas logo a reprimiu. Os franceses eram destemperados, mas não idiotas. Reconheceriam a embarcação akoreana e a deixariam passar, mesmo que desconfiassem de que ela vinha de um porto 2


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inglês. A menos, claro, que ele resolvesse abordá-los. Qualquer capitão francês ficaria encantado em fazer contato com um príncipe akoreano a fim de relatar a façanha aos colegas. E qualquer capitão francês ficaria feliz em capturar uma inglesa indesejável das mãos do afamado príncipe akoreano. Os franceses estavam em guerra contra os ingleses, contudo, eram civilizados. Depois da revolução sanguinolenta e da ascensão do aclamado imperador, estavam ávidos para provar que eram a epítome da cultura e do iluminismo. Joanna seria mantida na corte de Napoleão como uma "convidada" de honra, mas não lhe causariam nenhum mal. Após algum tempo, eles a mandariam para casa. Tudo seria uma experiência salutar para ela. Tal possibilidade teria sido tentadora, se não fosse a desonra de deixá-la em mãos inimigas, por melhor que a tratassem. — Ignore-os — Alex ordenou. O homem assentiu e voltou às suas tarefas, deixando o príncipe a sós com seu problema original. O que faria com ela? Em alguns dias, estariam na costa da Espanha. Poderia deixá-la com seus compatriotas britânicos, assumindo que ele identificaria corretamente a posição de Wellington. Mas não poderia largá-la no meio de uma zona de guerra. Era impressionante como uma mulher determinada podia dar trabalho. Mas Joanna Hawkforte também era uma jovem assustada que faria qualquer coisa para encontrar o irmão. Alex conhecia bem o amor e a lealdade que ela nutria pela família. Em total harmonia com o mar, sentou-se no convés, ainda indeciso quanto ao que fazer com a criatura. Poderia retornar para a Inglaterra e devolvê-la ao lugar a que pertencia. E o faria, se não tivesse de considerar os canhões. Havia pessoas na Inglaterra que desconheciam a compra dos canhões. Eram pessoas influentes, que não aprovariam tal aquisição. Voltar à Inglaterra com os canhões no porão seria o mesmo que abandonar seu dever. Preferia enfrentar qualquer coisa, menos isso. Assim sendo, lady Joanna Hawkforte realizaria seu desejo; iria para Akora. A questão era o que lhe aconteceria quando lá desembarcasse. Alex considerava as opções quando sentiu um aroma familiar. Vários homens haviam acendido um fogo sob uma grelha de ferro. Sobre ela havia uma panela na qual cozinhavam um ensopado de peixe. Marinos, o prato típico de Akora que era preparado de diversas maneiras, todas deliciosas. Após três meses à mercê da culinária inglesa, Alex seria capaz de matar por um punhado de marinos. Felizmente, tudo que tinha de fazer era se juntar a seus homens na proa. Aceitou uma tigela fumegante quando seus pensamentos se voltaram à passageira clandestina. Ela devia estar com fome. Por um breve instante, permitiu-se o prazer vingativo de deixá-la somente com a parca provisão que havia na trouxa. Mas, com um suspiro resignado, ele se levantou e foi à cabine.

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Que frescor abençoado! Joanna suspirou e roçou o rosto no... Linho? Estaria em Hawkforte?, perguntou-se, aturdida. Tudo não passara de um sonho? Um sonho estranho com... Não, não fora sonho. Fora mesmo a Londres a fim de procurar Royce, fora ignorada em público pelo insuportável Darcourt, invadira o navio akoreano, cortara o braço e... o marquês cuidara dela. Talvez o homem não fosse tão abominável, afinal. Joanna agora se lembrava de tudo. Abriu os olhos e, espantada, viu-se numa cabine ampla. As paredes haviam sido pintadas do teto ao chão com cenas de pessoas, animais, pássaros e peixes. Os desenhos eram tão benfeitos que pareciam criar vida. Sentiu o coração disparar ao se dar conta de que admirava os primeiros sinais de um mundo proibido. Por um longo momento, não conseguiu tirar os olhos dos murais. Com dificuldade, obrigou-se a esquadrinhar o resto da cabine. As escotilhas abertas permitiam que a brisa fresca do mar entrasse e, para além delas, Joanna avistou o esplendoroso céu azul. Abaixo das escotilhas, havia uma mesa presa ao piso, cujos pés possuíam uma forma geométrica complexa, as mesmas formas que, ao longo do chão e do teto, emolduravam os murais. Sobre a mesa, vários mapas se achavam abertos, e outros, enrolados. Ela conseguira! Navegava para Akora, o lendário reino envolvido em mistérios. O que Joanna e Royce tinham almejado durante anos a fio agora estava acontecendo. Quase não pôde conter seu contentamento. A febre a deixara fraca, mas não a impediu de se levantar devagar. Depois de dar alguns passos, sentiu que as pernas podiam sustentá-la. Havia duas portas na cabine. Joanna optou pela mais próxima e a abriu com cuidado para espiar o que havia lá dentro. — Meu Deus... O compartimento de terracota adjacente à parede do cômodo possuía os mesmos afrescos que a mesa. Alinhada à extremidade superior, havia uma cabeça de touro feita de metal. A boca do animal estava aberta, revelando um cano apontado para baixo de forma a molhar qualquer um que se postasse sob ele. Um dreno no chão parecia servir para escoar o excesso de água. Do lado oposto, havia uma válvula em formato de concha. Tomada pela curiosidade, Joanna girou a válvula. No mesmo instante, uma corrente de água saiu da cabeça do touro. Assustada, fechou a válvula e observou a água descer pelo dreno. Um banho em pé! Que impressionante... Anos antes, ela vira um dispositivo semelhante, mas muito mais precário, em uma casa de campo que ela e Royce haviam visitado. A invenção de um amigo excêntrico da família os divertira sobremaneira. Ninguém havia considerado que aquela engenhoca pudesse substituir o banho tradicional. No entanto, a mesma ideia, agora sofisticada, encontrava-se em uma embarcação akoreana, o que sugeria que aquele povo era bem mais avançado do que ela imaginara. Na verdade, o banho em pé parecia muito tentador.

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Após dois dias com as mesmas roupas, seria o paraíso... Não, ela não estava com as mesmas roupas. Agora usava somente uma veste larga e confortável de linho. Chocada, Joanna tentou se lembrar do que acontecera. Recordou Darcourt cuidando do ferimento, a dor que ele tentara lhe poupar e o alívio quando tudo acabara. Depois disso havia apenas um vazio, que deu asas à sua imaginação. Trêmula diante da possibilidade de o marquês tê-la despido, ela tirou a túnica e abriu a válvula. A sensação da água caindo sobre ela era estranha, mas em poucos minutos Joanna apreciou a experiência. Pelo menos, o banho a distraía de pensamentos mais pecaminosos. Encontrou uma pedra de sabão em uma caixa de madeira decorada sobre a pia de terracota. A fragrância era de limão e algo mais que ela não reconheceu. Tomando cuidado para não molhar o ferimento, ensaboou o corpo e os cabelos e, em seguida, deixou a água fresca tirar a espuma. Obviamente, aquela água devia vir de um suprimento no convés. Para não desperdiçá-la, Joanna terminou rapidamente o banho. Também encontrou uma toalha de algodão, com a qual se enxugou. Então, pegou outro tecido seco para cobrir os cabelos e se enrolou com a primeira toalha. Por fim, voltou à cabine a fim de procurar suas roupas. Não havia sinal de seus trajes. Avistou apenas a trouxa ao pé da cama. O conteúdo estava intacto, exceto pela faca, que desaparecera. Estava pensando o que fazer quando a outra porta se abriu de repente. O homem que entrou na cabine não era o mesmo Alex Darcourt que ela vira na festa de Prinny. O lorde austero e elegante fora substituído por uma figura bárbara. Vestia uma saia de linho branco, presa à cintura por um cinto. Os braceletes de ouro em seus pulsos harmonizavam com a faixa dourada, cravejada de rubis, que cobria parte da testa. Os cabelos negros e rebeldes chegavam à altura dos ombros. O peito, musculoso e amplo, estava nu, bem como as pernas, tão musculosas quanto o peito. A expansão considerável de pele era tão bronzeada quanto o rosto marcante. De repente, Joanna percebeu que não estava respirando. Inalou profundamente o ar, mas não conseguiu desviar o olhar. Alex colocou uma tigela sobre a mesa e a encarou. — Como se sente? A voz era profunda e suave, como água correndo entre as pedras. Ele tinha um sotaque que o distinguia dos ingleses. Mas os olhos eram azuis. O contraste da pele morena e dos cabelos negros os tornava parecidos com o céu em uma noite de luar. Por um tenebroso momento, Joanna só conseguia pensar que estava quase nua na cabine de um homem que parecia ter saído das páginas de Homero. Felizmente, as virtudes da coragem e da determinação que a vida lhe infundira a socorreram. — Bem melhor, obrigada — respondeu de queixo erguido. — Peço-lhe desculpas por minha intrusão. Espero que entenda que, dadas as circunstâncias, não tive escolha.

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Também esperava que ele não a jogasse em uma cela ou a abandonasse em uma costa qualquer. Alex respirou fundo. Fascinada, Joanna viu o peito largo se expandir. De fato, estava tão distraída que quase ignorou a resposta dele. — Suas ações foram impulsivas, imprudentes e perigosas. Sua presença gera sérias dificuldades. — Lamento saber — disse Joanna, espantada com tamanha racionalidade. — Farei qualquer coisa para remediar os problemas que causei. — O cozido está quente. — Ele indicou a tigela sobre a mesa. — Coma antes que esfrie. O marquês lhe trouxera comida. Devia ser um bom sinal, Joanna ponderou. Ele não a deixara morrer de fome, tratara do ferimento e lhe cedera a própria cabine. Mas a dureza do olhar e a frieza absurda que emanava de Darcourt não lhe permitiam relaxar. — Obrigada — agradeceu, tímida. Estava faminta, mas não poderia se sentar diante dele com tão pouco lhe cobrindo o corpo. Um instante se passou antes que Alex compreendesse a situação. — A nudez é algo comum em Akora — ele alegou. — Provavelmente por causa de nosso clima quente e das tradições culturais. Joanna ficou boquiaberta. Primeiro, porque ele a hipnotizava, e segundo, porque estava ciente da própria vulnerabilidade. — Não estou nua. — Claro que não. — Onde estão minhas roupas? — Aqueles trapos que vestia? Foram-se. Há mais túnicas nesse baú. — Ele indicou o pé da cama. — São grandes demais. — É tudo o que temos. — Alex abriu o baú e o vasculhou até encontrar o que queria. Mostrou a Joanna uma indumentária muito parecida com a anterior, mas de um tecido mais pesado. — Vai se sentir confortável nesta túnica. — Está ótimo. Obrigada. Ela correu à sala de banho e vestiu a túnica. A veste chegava até os joelhos e deixava os ombros à mostra, mas serviria para mantê-la menos exposta. Quando voltou à cabine, encontrou o anfitrião olhando por uma das escotilhas. — A que distância estamos de Akora? — indagou. — Dez dias de viagem, se o vento continuar forte. — Ele apontou a mesa. — Sente-se e coma. Dessa vez, Joanna obedeceu. O ensopado estava divino. Precisou se conter para não devorar tudo em questão de segundos. Quando terminou, suspirou de prazer. — Estava uma delícia. — Folgo em saber, pois, no futuro, terá somente a culinária akoreana 2


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para alimentá-la. Joanna tentou, em vão, ocultar o sorriso vitorioso. — Modere seu entusiasmo — ele rebateu. — Como eu disse, sua presença causa problemas. — Que tipo de problemas? — Você é uma xenos. — Estrangeira... — Joanna traduziu, ao consultar mentalmente seu conhecimento da língua grega. — Sim. Akora não admite xenos. Não permitimos a entrada de estrangeiros nem para o comércio. Assim, protegemos a pureza de nossa cultura e soberania através de gerações. Entende o que digo? O pânico ameaçou dominá-la, mas ela o ignorou. Conhecia os riscos, quando invadira o navio. — Ouvi rumores do que acontece aos estrangeiros que tenham entrar em Akora. Alguns anos atrás, quando a Força Expedicionária francesa desapareceu nas águas de Akora, especulou-se que a simples aproximação do local significava a morte. Mas nem tudo pode ser verdade. Os olhos azuis nada revelavam. — Por que não? — Porque você está aqui. Uma pessoa, pelo menos... seu pai..., não foi assassinada. Se isso tivesse acontecido, você não existiria. — E isso a faz pensar que seu irmão está vivo? — Além do fato de que nem todos os xenos são executados, meu irmão é um nobre britânico. Não acredito que o rei de Akora faria algo para enfurecer a Grã-Bretanha. Alex permaneceu em silêncio por um momento antes de corrigi-la. — O termo correto é rei. Não significa "rei" no sentido inglês. A tradução mais adequada é "O escolhido". — Eu não sabia disso. Mas a verdade é que não sei quase nada a respeito de Akora. — E mesmo assim, confia sua vida aos líderes de Akora. Joanna sentiu o rubor nas faces. — Como eu lhe disse, não tive escolha. Para mim, é impossível aceitar o desaparecimento de meu irmão. Preciso fazer qualquer coisa para ajudá-lo. Com a imponência do príncipe que era, Alex se aproximou de Joanna. — Por que acha que não faríamos nada para enfurecer a Grã-Bretanha agora? Ela deveria aprender a ficar de boca fechada. Mas era tarde demais. O olhar severo não admitiria mentiras ou evasivas. — Por causa dos canhões no porão — murmurou Joanna, assustada. — Estava escuro. Você ardia em febre. — Eu os senti. Aliás, inalei o odor característico. Ferro e pólvora são uma mistura inconfundível. Suponho que os tenha testado antes de embarcá-los no navio. 2


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Ele nada disse. Apenas continuou a fitá-la. — Quando o dia amanheceu, pude vê-los — Joanna prosseguiu, encorajada pela curiosidade. — São impressionantes. Não creio que existam tantas fundições que possam forjar canos tão grandes. — O que sabe a respeito disso? Pelo jeito, ele tinha uma péssima opinião sobre as mulheres. A bem da verdade, a maioria dos ingleses que Joanna conhecia menosprezava o sexo oposto. — Fabricamos nossos próprios artefatos de metal em Hawkforte, onde moro. Isso quer dizer que temos nossa própria forja. Portanto, sei o que envolve a manufatura de canhões daquele porte. Além do mais, tudo o que diz respeito a Akora interessa às pessoas. Se soubéssemos que vocês estavam adquirindo um armamento tão incomum, tal intento seria comentado. — Entendo... — murmurou ele, parecendo incrédulo. — As akoreanas não se interessam por esses assuntos? — Não, e isso nos leva de novo ao problema em mãos. Você terá de modificar seu comportamento. — Alex a encarou. — Do contrário, teremos dificuldades graves. — Porque sou uma xenos? — Sim. Levante-se. — Por quê? — Primeira lição: as mulheres são obedientes. Faça o que digo. Embora relutante, Joanna se levantou. O mínimo que podia fazer, já que Darcourt aceitara sua intrusão com amabilidade, era cooperar. Entretanto, a proximidade daquele peito musculoso a deixava nervosa. Sem aviso, ele puxou a gola da túnica, descobrindo o ombro esquerdo a ponto de quase expor o seio. — O que está fazendo? — Ela agarrou o tecido. — Quero ver se o ferimento está cicatrizando. — Está ótimo. Não se incomode. — Você molhou a bandagem sob o chuveiro? — Claro que não... Chuveiro? Foi isso que fiz? Tomei um banho de chuveiro? Ele assentiu e tirou a bandagem. — Gostou? — Adorei. Vi um mecanismo parecido na Inglaterra, no ano passado, mas era muito primitivo. O chuveiro é comum em Akora? Todos têm um em casa? De repente, Joanna notou que ele a distraía enquanto examinava o corte. — A infecção está sarando — comentou. Curiosa, tentou espiar o ferimento apesar de ele tentar impedi-la. Ainda ardia, mas a dor dilacerante não a perturbava mais. — Não me parece ruim. Você fez um bom trabalho. — Ela continuou a 2


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examinar a sutura. — Ganharei uma cicatriz, claro, mas não muito grande. Com um tecido limpo, Alex enfaixou o braço de Joanna. Quando terminou, ele a soltou, mas não se afastou. Ela se sentia estranha, incapaz de desviar a atenção do tórax, do pescoço e do maxilar que parecia enrijecido. — Não acho que seja uma boa ideia — ele murmurou. — O que não é uma boa ideia? — Joanna o desafiou, apesar do medo que sentia. — Minha ida a Londres, as tentativas de falar com você, a invasão ou meu ferimento? Ou talvez, para começo de conversa, possamos dizer que a presença de Royce em Akora não foi uma boa ideia. Poderíamos culpá-lo por tudo o que aconteceu. Alex tentava não sorrir. Joanna o observou até o momento em que ele não pôde mais se conter. O sorriso, embora relutante, foi devastador. — Pelo jeito, teremos de encontrar seu irmão e lhe dizer quão mal ele se comportou. — Essa ideia é excelente! Alex suspirou e se afastou, para decepção de Joanna. — Conhece bem meu irmão? — Não. Nos encontramos algumas vezes em eventos sociais, e ele me falou que pretendia ir a Akora. Disse-lhe que tal empreitada estava fora de questão. Pelo jeito, seu irmão não me deu ouvidos. — Royce não foi a Akora por capricho. Estou certa de que ele o fez por um motivo legítimo. Disse-me que estaria de volta no Natal. Isso foi há seis meses. Não tive nenhuma notícia dele nesse meio-tempo. — Saí de Akora há cerca de três meses. Até onde sei, nenhum inglês entrou no reino. Joanna sentiu o coração se apertar. — Não acredito que meu irmão esteja morto. — Mas, pelo menos, considera tal possibilidade? — Ele está vivo. É difícil explicar, mas sei que ele está em Akora, à espera de alguém que o resgate. — Nesse caso, temos de encontrá-lo — disse Alex, com extrema gentileza. De súbito, a exaustão dominou Joanna. Sem perceber, ela cambaleou. Alex a amparou no mesmo instante. — Creio que você esgotou suas energias. Felizmente, ainda temos tempo antes de atracarmos em Akora. — Eu estou bem. Não sou uma moça frágil, se é o que está pensando. Em Hawkforte, administro o feudo da família. As pessoas me acham muito capaz e responsável. — Ela riu, ao sentir que estava a ponto de chorar. — Mesmo assim, precisa descansar. Embora quisesse se manter forte e atenta a tudo, Joanna não resistiu à fadiga. Notou vagamente que ele a deitou na cama e que, antes de sair, acariciou-lhe o rosto com a ponta dos dedos.

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Quase uma semana se passou. Alex levava comida para Joanna três vezes ao dia, mas não permanecia muito tempo na cabine. Conversavam o estritamente necessário. Ele aceitara o fato de que Joanna cuidaria do ferimento sozinha, o que a deixou aliviada e, ao mesmo tempo, arrependida. Ser tocada por ele era perturbador. E também, mais estranho ainda, era a frequência com que o príncipe invadia seus pensamentos. Sabia que Alex dormia no convés e às vezes escutava-o conversando com seus tripulantes. Aos poucos, o dialeto akoreano se tornava compreensível para ela. Não era o grego que Joanna conhecia, mas a semelhança facilitava o entendimento de palavras e frases. O convés lhe era proibido. Alex deixara claro que nenhuma mulher, xenos ou não, tinha a permissão de invadir um local que, por tradição, era exclusivo aos homens. Tal regra se assemelhava à dos clubes ingleses. Os homens pareciam possuir uma necessidade incrível de ficar longe das mulheres e, simultaneamente, de persegui-las em outras situações. A lógica desse comportamento fugia à sua compreensão. Entretanto, havia compensações em sua clausura. O céu estava claro, e o vento, veloz. Em breve, a viagem terminaria. Enquanto isso, Joanna tratou de aproveitar o tempo, e seu dom, a fim de encontrar Royce. Hora após hora, ela o mantinha nos pensamentos, buscando qualquer sinal que pudesse revelar seu paradeiro. Ela encontrou... um pequeno martelo que caíra entre dois painéis da cabine... uma pena de prata embaixo da cama... um papel em branco esquecido atrás dos mapas... e, uma vez, pensou ter visto uma ilha pequena erguendo-se no mar, uma imagem que durou apenas um segundo. De Royce não veio nada, somente uma dor de cabeça latejante e a velha sensação de desamparo. No quarto dia, Alex notou a expressão pálida de Joanna. — Há livros naquele baú. Pode lê-los, se quiser — sugeriu. Tomada pelo desespero que a impotência lhe causava, abriu o baú e se regalou com o que encontrou. Havia tratados sobre táticas militares, construção de navios e vários volumes acerca de novos métodos de cultivar a terra. Mas o interesse de Joanna era outro. Ela descobriu que Alex lera os poemas de Coleridge, Keats e Wordsworth. Um livro que ela gostara muito de ler no ano anterior, A Dama do Lago, de sir Walter Scott, também estava no baú. De repente, achou a maravilha das maravilhas, a cópia de um romance do qual todos falavam, inclusive na pacata Hawkforte. Escrito por um autor anônimo que, segundo os rumores, tratava-se de uma moça do campo, Razão e Sensibilidade vinha atraindo muita atenção. Após algumas páginas, ela descobriu por quê. Perdida nas histórias da família Dashwood, ficou acordada até tarde só para saber como terminariam as aventuras românticas das três irmãs. Na manhã seguinte, quando acordou, Joanna notou que Alex havia deixado o desjejum sobre a mesa. O comportamento do príncipe era tudo o que se esperava de um cavalheiro inglês, embora ele também fosse akoreano. Depois de se alimentar e tomar um banho, Joanna voltou ao baú. 2


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Exclamou de alegria ao encontrar sob os romances ingleses vários pergaminhos. Selecionou um deles e o desenrolou com cuidado. A Odisseia. Em suas mãos estava uma cópia do grande épico de Homero, uma obra que ela conhecia muito bem. A linguagem possuía semelhanças com o idioma grego, mas com diferenças significativas. Tal qual ocorrera com as conversas que escutara no convés, ela conseguiu ler algumas partes da obra. O resto da manhã passou depressa. Lentamente, Joanna começou a compreender palavras que antes lhe eram desconhecidas. Não esperava se lembrar de todas e tampouco sabia se as pronunciava corretamente, mas sentia que progredia em seu estudo. A concentração era tanta que nem sequer notou Alex entrar na cabine. — O que está lendo? Sobressaltada, Joanna, que estava sentada de pernas cruzadas sobre a cama, tentou recobrar a compostura. A presença daquele homem algum dia deixaria de chocá-la? Pelo jeito, fazia dias que ele não se barbeava, o que tornava sua aparência muito mais ameaçadora em vários sentidos. — A Odisseia. É meu livro favorito — respondeu, sem fitá-lo. De soslaio, ela notou um sorriso breve. — É também o predileto em Akora. — Porque os akoreanos têm origem grega? Ele hesitou, como sempre fazia antes de revelar qualquer informação sobre Akora. — Essa é a teoria de seu avô, não é? — Como sabe? — Li o livro dele, Especulações sobre a Natureza do Reino de Akora, o qual, eu notei, acompanha você nesta viagem. Ele chegou a elaborar ideias interessantes, mas, em termos gerais, o livro não é preciso. — Então, os akoreanos não são gregos? — Sim e não. Alguns de meus ancestrais tinham origem grega, mas depois de deixarem a terra natal, a Grécia foi invadida e governada por outros. Foi uma época sombria. A Grécia, enfim, emergiu séculos depois. O que você lê na Grécia de Homero é muito diferente do que meus antepassados conheceram. — Apesar de toda a diferença — Joanna ponderou —, vocês usam o mesmo alfabeto. — Sim — ele concedeu, admirado —, porque adaptamos a linguagem dos fenícios. Tivemos um alfabeto anterior, mas era muito impreciso. Somos os únicos que o conheceram e fizemos algum uso dele. Joanna suspirou. — Aprendi muito sobre Akora nos últimos três dias, mas ainda não sei quase nada. E isso me preocupa, porque logo chegaremos lá. — Ela o encarou, na esperança de que Alex pudesse lhe dar mais informações. Como sempre, ele nada disse. Porém, para espanto de Joanna, a postura resistente se desfez quando Alex começou a falar. 2


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Capítulo II

Havia boas razões para Joanna obter maiores informações sobre Akora antes de chegarem, Alex refletiu. Ela teria dificuldades para se ajustar, mesmo munida de conhecimento a respeito do reino. Ainda assim, a reticência de uma vida inteira era dura de superar. Já em tenra idade, Alex soubera que não poderia adentrar o mundo exterior ocultando sua identidade. Clamara sua herança inglesa, mas permanecera fiel à sua origem. Acima de tudo, não revelaria nada que pudesse prejudicar Akora. O avô inglês compreendera tal situação, pois ficara farto de falar do lugar que lhe roubara o filho. Com os demais, era fácil ignorar ou se esquivar de perguntas. Mas não com Joanna. Não estava acostumado a mulheres de espírito independente, que discutiam aspectos políticos do Estado, restritos ao rei e seus aliados mais íntimos. Jamais questionara a coragem das mulheres. A capacidade de dar à luz era respeitada por qualquer guerreiro. Porém, a consideração de Joanna a ponto de levá-la a elogiar a sutura que ele fizera era inédita. O fato de ela não possuir uma beleza ortodoxa e, ao mesmo tempo, ser atraente representava um problema. Portanto, precisava manter cautela ao lidar com a dama de Hawkforte. — Sente-se — sugeriu, indicando o prato de comida. Meia hora depois, Joanna já havia terminado a refeição e degustava os últimos morangos. — Então atracaremos no porto principal em Ilius, certo? — perguntou, satisfeita. Alex assentiu. Enquanto Joanna se alimentava, ele lhe fizera uma descrição geral do que encontraria ao chegar. — Ilius é a cidade real e também o porto mais profundo. — Alex pegou um dos mapas e o desenrolou sobre a mesa. Apontou então a costa ocidental da Europa. — Aqui está a Espanha e aqui a ilha que vocês chamam de Gibraltar. Do outro lado, encontra-se o Marrocos e o monte Hacho. Juntos, eles formam os Pilares de Hércules que guardam o estreito, a única entrada para o Mediterrâneo. Joanna indicou o grupo de ilhas a oeste dos Pilares. — Esta é Akora? — É. — Pensei que Akora fosse apenas uma ilha, mas o mapa mostra duas 2


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ilhas grandes com três pequenas entre as maiores. — Ela o encarou, surpresa. — Como podemos ser tão ignorantes? Os olhos castanhos eram extremamente expressivos. E os cabelos, cujos cachos rebeldes emolduravam o rosto gentil, exalavam um perfume tentador. — Seus cartógrafos só conseguem observar a costa de um navio, e a uma distância considerável — explicou Alex, tentando se concentrar. — Não podem ver as entradas para o mar interno através das pequenas baías. Porque a formidável Marinha de Akora patrulhava as águas ao redor do reino e impedia que qualquer estrangeiro, ou xenos, se aproximasse. Joanna, entretanto, não seria afugentada. Estava a bordo do navio do príncipe de Akora e, em questão de dias, pisaria em uma das ilhas. Alex notou que ela atinava para o fato e chegou a sentir a empolgação. — Esta é Kallimos — falou, apontando a ilha mais ao leste. — Kallimos significa "linda", não é? — Sim, e ela é linda mesmo. Consegue ler as outras? Joanna estudou o mapa. — Esta a oeste é Leios. Já vi essa palavra... Tem a ver com uma planície? — O interior dessa ilha é muito plano, excelente para plantar milho e criar cavalos. — Estas três se chamam... Phobos... Deimatos... Tarbos. — Ela o fitou, assustada. — Não entendo. Esses nomes querem dizer "medo" ou "terror". As ilhas são maléficas? — Não. São, na verdade, bem bonitas. — Por que receberam esses nomes? — Porque representam a lembrança de algo que aconteceu há muito tempo. — Alex enrolou o mapa e o guardou. — Akora fora somente uma ilha. Seus habitantes a chamavam de Kallimos e o nome ainda pertence à ilha do Leste. — Como uma ilha pode se tornar várias? — O centro da ilha era um vulcão que permaneceu adormecido por milhares de anos. Certa noite, ele entrou em erupção. A explosão dividiu a ilha em duas. O mar invadiu seu interior, deixando apenas as três pequenas ilhas que são o testemunho do terror que as pessoas viveram quando seu mundo veio abaixo. — Que tragédia — Joanna murmurou. — Quando isso aconteceu? — Há mais de três mil anos. — Vocês têm acesso a dados históricos que ocorreram há mais de três mil anos? — Quando Alex assentiu, ela acrescentou: — Uma história oral? — Não, tudo está escrito. Os primeiros habitantes de Akora eram letrados. Alguns registros sobreviveram, e os que surgiram mais tarde foram escritos pelos sobreviventes. — Mas isso é extraordinário! Ninguém jamais escreveu uma história tão antiga. Nem mesmo os egípcios sabem a idade dos hieróglifos que, de qualquer forma, não podem ser lidos. E há aquela pedra indecifrável que os 2


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homens de Napoleão descobriram... — Ela arregalou os olhos, perplexa. — É de Atlântida! Alex suspirou. — Não, por favor. — Por que não? Platão disse que Atlântida estava a oeste dos Pilares de Hércules. Ele alegou que o historiador grego, Sólon, obteve as coordenadas diretamente dos sacerdotes egípcios e seus registros arcaicos. Afirmaram que a Atlântida era um reino poderoso que foi engolido pelo mar... — Como resultado de um tremor de terra, de acordo com Platão. E seu povo foi conquistado pelos gregos de Atenas antes de Atlântida ser destruída. — Meros detalhes. É claro que a história foi um pouco deturpada. Além disso, Platão era ateniense e, portanto, faria qualquer coisa para dar fama a seu povo. Shakespeare fez o mesmo, sabia? Ele se sentia lisonjeado por causa dos Tudor. — Você é bem informada para uma mulher — Alex observou, Joanna sorriu. — Há um detalhe em particular que não entendo — ela comentou. — Que detalhe? — Se os homens são soberanos em Akora e as mulheres devem apenas servir, por que se dá o trabalho de me pedir desculpas? — Não é assim que os cavalheiros ingleses agem? — Sim, mas vindo de você, me parece contraditório. — Está enganada. Ninguém gostaria de ofender ou magoar uma dama. Mas, caso isso aconteça, é correto se desculpar. — É o costume em Akora? — Sim. Aliás, é um bom momento para discutirmos outros costumes. A atitude mais simples seria entregá-la às autoridades akoreanas. Fariam os "procedimentos de praxe" e tudo estaria resolvido. O problema era que Alex não queria fazer o que era "de praxe" com Joanna Hawkforte. Dia após dia, tentara se convencer do contrário e falhara. Agora simplesmente aceitava o fato. — Você é uma xenos e, como lhe disse, isso causará dificuldades. Muitos perguntarão por que permiti que desembarcasse em Akora. Felizmente, sendo mulher, há uma explicação plausível. Uma explicação que enfureceria os conselheiros conservadores de seu irmão, que já desconfiavam do príncipe de Akora, mas não havia necessidade de informar tudo isso a Joanna. — Além de ela ser a escolhida para gerar meus filhos, existe outro motivo que justificaria a companhia de uma mulher nesta viagem. Alex calou-se ao ver o rosto de Joanna ruborizar. Não se tratava de recato, ele notou, mas sim de ultraje. — Ser a escolhida para gerar seus filhos? Que maneira extraordinária de se referir a uma esposa. — O que há de tão extraordinário nisso? Os ingleses usam o mesmo termo para enfatizar a produção de herdeiros. 2


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— Eles não se referem às esposas como se a única finalidade delas fosse reproduzir! — Quantos casais, especialmente na sociedade aristocrata, vivem juntos até o herdeiro nascer e depois se separam? — Está dizendo que os akoreanos apoiam essa total falta de moral da aristocracia britânica? — rebateu ela, indignada. — Depois que a escolhida para gerar seus filhos cumpre seu dever, está livre para se divertir onde quiser? Dessa vez, foi Alex quem corou. Como aquela mulher conseguia retalhar seu autocontrole e fazê-lo se sentir como um jovem inexperiente? Felizmente, havia um jeito akoreano de acertar o desequilíbrio entre ambos. — Não estou dizendo nada disso. — Ele se aproximou e, gentilmente, acariciou o rosto delicado. — As mulheres de Akora não precisam se perder. Os akoreanos as mantêm muito satisfeitas. Sei que os ingleses são negligentes nesse campo. Alex ficou contente ao ver os olhos expressivos se arregalar. De fato, teria aproveitado a pequena conquista se não estivesse tão maravilhado com a maciez da pele de Joanna. De súbito, lembrou-se de pétalas caindo de uma flor e ele, menino, tentando pegá-las. Por que tal lembrança o assolou, ele não sabia. — Ainda preciso explicar como justificaremos sua presença — falou, com voz rouca. Joanna queria rejeitá-lo, ele pôde sentir. Mas não o fez. Seria o orgulho que a continha, ou a suscetibilidade? — Há somente uma explicação plausível para eu voltar com uma xenos. Joanna baixou o rosto quando compreendeu o que Alex insinuava. — Porque decidiu ajudá-la? — indagou, voltando a fitá-lo. — Infelizmente, os príncipes não possuem tal luxo. Somos servos do dever, mas nos permitimos algumas indulgências. Você representará um capricho prazeroso. Uma bela inglesa que escolhi para aquecer minha cama em Akora. Em segundos, Alex testemunhou a suavidade de um rosto angelical se tornar fria como aço. — Você me confunde com lady Lampert. Nenhum horror virginal, nenhum rubor encantador, ou perplexidade; apenas o desdém de uma mulher para quem a honra representava a própria vida. Nesse momento, Alex sentiu-se fisgado tanto pela admiração quanto pelo orgulho ferido. Ela se curvaria perante ele, sim, e não apenas por sua excelsa vaidade, embora fosse honesto o bastante para saber que isso contava. Mas porque Joanna deveria fazê-lo pela própria sobrevivência. — A confusão é sua, lady Joanna. — Alex apelou para seu sangue inglês. — Eu disse que irá representar a amante. O objetivo é manter a aparência, não torná-la realidade. A surpresa que ela demonstrou foi gratificante, apesar de as faces se tornarem rubras novamente por conta do constrangimento. Alex cruzou os 2


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braços a fim de não sucumbir à tentação de tocar aquele rosto outra vez. — Compreendi mal. Desculpe-me — murmurou ela. A honestidade quase o levou a assegurá-la de que nenhuma desculpa era necessária ou merecida. No entanto, ele aprendera a grande virtude da discrição. — Muito bem. A fim de manter essa... ilusão, o fundamental é você agir como uma mulher adequada. — Uma mulher adequada que também é amante? A ideia pareceu confundi-la. Devia ser aquela maldita moralidade inglesa, ele concluiu. Felizmente, o treinamento de um guerreiro envolvia uma grande dose de paciência. — Em Akora, o termo correto seria "concubina", e trata-se de uma posição honrada. Há mulheres solteiras e viúvas, que não se casaram novamente. Porém, elas e suas irmãs casadas compartilham o mesmo código de conduta, o qual terá de aprender. Como mulher, deve ser amável, submissa, obediente e recatada. Seu único papel é servir ao homem ao qual pertence. Você não tem nenhum outro desejo ou preocupação. — Não acredito que existam mulheres assim — Joanna comentou, contendo o riso. — Esse é o problema. Você não sabe como são as mulheres. — Eu sou mulher. Cresci rodeada de mulheres em Hawkforte, eu as observei em sociedade e já viajei muito. Portanto, a criatura que acaba de descrever não existe nos lugares que conheço. Se em Akora elas são assim, só posso concluir que as akoreanas pertencem a uma espécie diferente. — Ouso dizer que tenho mais experiência que você. Logo, sei que a maior parte das mulheres é feliz da forma como acabo de descrever. — Feliz? As únicas mulheres felizes que conheci vivem em Hawkforte. São camponesas boas e sensíveis. Trabalham ao lado dos maridos no campo, no pasto e até em barcos de pesca. Algumas fabricam cerveja e tecem. Elas zombariam da ideia de servir a um homem, a menos que esse fosse o trabalho delas em uma taverna, por exemplo. Mas partilham uma vida com seus homens, cuidam deles e dos filhos. Homens e mulheres de Hawkforte, quando juntos, transmitem amor e alegria do coração. Uma saudade profunda cresceu dentro de Alex, sem aviso ou explicação. Tão logo tocou sua alma, porém, o sentimento feneceu. — Nesse caso, Hawkforte deve ser um lugar abençoado — comentou, sério. — Mas não me refiro a camponeses. Estamos ligados à corte real. Há certos decoros em Ilius, assim como em Londres. Sua presença causará especulações. Quanto mais circunspeta for, menos atenção atrairá. Joanna respirou fundo e o fitou com determinação. — Farei o melhor que posso. — Ótimo. Fui relapso quanto ao seu comportamento por causa do ferimento que requeria prioridade. Assim que chegarmos a Akora, isso vai mudar. Para começar, em minha presença, você não se manifestará, a menos que eu lhe dirija a palavra. — Alex esperou, enquanto Joanna assimilava a informação, felizmente sem questionar. — Você se levantará quando eu entrar 2


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no recinto. Em razão da suposta intimidade entre nós, é adequado que me chame de kreon. Alex se preparou para o ataque. Joanna conhecia bem a língua grega e aprendia o akoreano com extrema rapidez. — Kreon? — repetiu, pensativa. — Não quer dizer... "mestre"? — Esse é o significado arcaico. As palavras se desenvolvem conforme o tempo, como deve saber. Hoje em dia, é apenas um termo de respeito. — Ele falava depressa para não dar a ela a chance de protestar. — Seria muito interessante saber como a palavra, com seu significado original, veio a ser usada dessa maneira — Joanna insinuou, contendo a raiva. — Creio que isso aconteceu logo depois da erupção em Akora, mas não importa. Afinal, foi há três mil anos. — Você disse que as pessoas sobreviveram. Como era esse povo? — Pacífico. Criavam animais e pescavam. Eram artistas. Joanna esquadrinhou as paredes decoradas da cabine. — Pelo que vejo, os akoreanos ainda são artistas. Isso me surpreendeu. Pensei que fossem somente guerreiros. — Também são. — Mas os primeiros habitantes não eram. Então seus ancestrais, aqueles que vieram depois da erupção, deviam ser guerreiros. Como foi para um povo pacífico, cujo mundo fora devastado, de repente, viver entre guerreiros? Não tiveram escolha, certo? Ela era inteligente demais, Alex pensou, agastado. — Eles não teriam sobrevivido se meus ancestrais não tivessem aparecido. O calor da explosão destruiu quase tudo na ilha. A maior parte da população se foi, junto com barcos e florestas. O solo ficou queimado, incapaz de cultivar qualquer coisa durante anos. Se não fossem meus ancestrais, os sobreviventes de Akora teriam morrido de fome. — Seu povo os socorreu? — perguntou Joanna, cética. — Não. Eles conquistaram. Era assim que acontecia. Na época, meu povo foi conquistado em todos os lugares, menos em Akora. Lá nós prevalecemos. E isso era tudo o que Joanna saberia, porque ele não pretendia dizer mais nada. Para uma xenos, ela já havia obtido informações demais. — Faça o que lhe digo e teremos uma chance de sucesso — aconselhou. — Se eu cometer um erro... — Não vai cometer nenhum erro. Não permitirei. — Mas fazer-me passar por alguém que não sou... — Ela mordeu o lábio inferior, apreensiva. — Não sei se consigo. Nunca fui atriz. — Nesse caso, teremos de praticar. Ambos se olharam. As sardas sobre o nariz delicado começavam a sumir, sem dúvida, porque ela permanecia enclausurada na cabine. Mas continuavam visíveis e, Alex supunha, voltariam a aparecer em contato com o sol. Ele ouvira dizer que sardas não eram moda na sociedade inglesa. Pelo jeito, lady Joanna Hawkforte não apreciava a ditadura social. 2


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Ele então fitou a boca rosada. Os lábios carnudos pareciam macios. De repente, sentiu uma imensa vontade de beijá-los. — Seria também aconselhável não parecer uma corça assustada, cada vez que eu me aproximar de você. — Não — ela murmurou quando as mãos calejadas tocaram seu rosto. Alex não sabia se Joanna se opunha ao novo papel de amante ou à iminente aproximação. Mas não se importava. Os fios cacheados pareciam de seda. A essência feminina o inebriava. Dia após dia, imagens de Joanna flutuavam em seus sonhos e pensamentos. Dias repletos de um desejo ardente e da consciência de que ele não mais tinha controle da situação. Mas precisava daquele domínio. Havia muito em jogo: um reino, um futuro, o destino de milhares a quem ele servia. Portanto, suas inclinações particulares não contavam. E ele lhe dissera a verdade. Se tivessem sucesso, a presença de Joanna seria explicada e desculpada. A fraqueza de um rapaz em relação a uma mulher poderia facilmente ser perdoada como um capricho sem maior relevância. Fascinado, Alex inclinou o rosto e roçou os lábios nos dela. Permitiu-se um instante para saborear a suavidade e a reação de surpresa que, aos poucos, deu lugar à rendição. Segurou a nuca de Joanna com firmeza e a envolveu pela cintura. Ela gemeu e entreabriu os lábios. Alex a provou rápida e profundamente. A doçura do morango ainda permanecia, mas não foi isso que o incitou. O sabor e a fragrância de Joanna pareciam embriagá-lo. Os seios túrgidos o tentavam; sentiu os mamilos firmes através do tecido da túnica, o único traje que ela vestia. E a cama estava a poucos passos. Seria tão fácil... O navio atravessou duas ondas repentinas, e então mais uma. O mar, de repente, tornou-se revolto. Ele se segurou na mesa e amparou Joanna. Os olhos expressivos ficaram escuros, e o corpo feminino, imóvel. Como uma corça? Ou como um falcão quando flutua nas correntes de ar quente, preparando-se para atacar? — Represente seu papel — disse ele. — Sim. Pelo bem do meu irmão. Naquele instante, ficou claro que Joanna estava mentindo. Ou talvez ele desejasse que ela estivesse mentindo.

Joanna acordou sentindo um forte aroma de limão. Sonolenta, olhou em direção às escotilhas. O céu, ainda nublado àquela hora da manhã, aguardava o sol que dissiparia os vestígios da noite. A brisa parecia mais quente que nos dias anteriores. Mas não fora o ar tépido que a acordara. Fora a essência de limão, que invadira seus sonhos. Ela inspirou profundamente e, de súbito, veio-lhe à lembrança o vasto gramado de Hawkforte, onde costumava se sentar para saborear um copo de limonada. 2


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A curiosidade a fez levantar-se. Vestiu uma túnica, ajeitou os cabelos rebeldes com as mãos e olhou para a porta da cabine. Três dias haviam se passado desde que Alex informara que papel ela representaria em Akora. Ele continuava lhe trazendo as refeições, mas não ousava tocá-la, tampouco beijála. O que era uma pena. Joanna, sem dúvida, tinha uma mente contraditória. Estava prestes a realizar o sonho de conhecer a Fortaleza de Akora e só conseguia pensar naquele beijo. O problema maior consistia no fato de que nem sequer protestara ou o impedira. Outras possibilidades tentadoras, no entanto, surgiam em sua mente. Chegara aos vinte e quatro anos sem suspeitar de que possuía uma imaginação tão fértil. Talvez os anos em companhia das mulheres de Hawkforte fossem os responsáveis por tanta ingenuidade. Conhecia os aspectos que envolviam o acasalamento das ovelhas e sabia que os homens podiam excitar uma mulher. Esse conhecimento, porém, não a preparara para a realidade de um simples beijo. Claro que Alex possuía sua parcela de responsabilidade. Afinal, dissera que as mulheres de Akora se satisfaziam com seus homens. Joanna agora tinha uma boa ideia do que isso significava. Deus, tantos pensamentos a deixavam acalorada! O melhor seria se concentrar na viagem. Havia uma bandeja com o desjejum sobre a mesa, prova cabal de que dormira até tarde. Ignorando a comida e a sensação eletrizante de imaginar que Alex se aproximara dela enquanto dormia, Joanna arrastou um banco até uma das escotilhas. Depois de subir no banco, colocou a cabeça para fora e se contorceu até que boa parte de seu torso ficasse paralela à superfície da água. Foi assim que Alex a encontrou quando entrou na cabine. Ele clareou a voz para se fazer presente. Joanna voltou para dentro e sorriu, fingindo inocência. — Que lindo dia, milorde! — Ainda não conseguia chamá-lo de kreon, mas estava disposta a fazê-lo quando chegassem a Akora. Por Royce. — Algumas pessoas acham perigoso se debruçar na escotilha de um navio que navega a uma velocidade considerável. Nem o comentário sarcástico, nem o desejo que ele provocava poderiam estragar o bom humor de Joanna. — Não é bom saber que o mundo é feito de diferentes opiniões? Alex não disse nada. Apenas deixou outra bandeja sobre a mesa e franziu o cenho ao ver que a primeira não havia sido tocada. Joanna agradeceu, mas não se sentou. — Senti o cheiro de limão. — É assim que o aroma lhe parece? Interessante. Os limoeiros devem estar carregados agora, prontos para ser colhidos. Mas o tomilho ainda está em flor, e o oleandro também. Ambos produzem essa fragrância. 2


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— Estamos perto de Akora? — Avistamos a terra cerca de uma hora atrás. Se o vento continuar a nosso favor, logo chegaremos. Então ela sentira Akora antes de vê-la. Aquele perfume sedutor de essências a incitava. De repente, sentiu-se tomada por uma inesperada saudade de Hawkforte, com suas paisagens, aromas, sons e lembranças. Seu lar não tinha nenhuma relação com Akora, mas, mesmo assim, a essência de limão a remetia a Hawkforte. As ilhas pareciam desvelar uma interioridade desconhecida que clamava para ser ouvida. Que absurdo! Estava ali com o intuito de encontrar Royce. A saudade que sentia era do irmão. O limão, ou melhor, a mistura de fragrâncias era uma novidade agradável sem consequências. Alex a observava em silêncio. Joanna teve, mais uma vez, a impressão de que ele a via com profundidade. — Quando passo muito tempo longe de Akora — ele contou —, sinto seu aroma em meus sonhos. Foi o comentário mais íntimo que Alex fizera por livre e espontânea vontade. Joanna ficou tão surpresa que disse a primeira coisa que lhe veio à mente: — Por que os homens se referem à terra natal como se falassem de uma mulher? — Porque nascemos dela — ele respondeu, com um sorriso. Mais uma vez, estavam próximos demais. Nesse instante Joanna percebeu, sem saber ao certo a razão, que não foram os limões que a acordaram. Fora Alex quem invadira seus sonhos. — Pode ver mais agora — ele sugeriu. Ansiosa, voltou à escotilha. Uma exclamação suave escapou de seus lábios. Ao longe, erguia-se uma escarpa rochosa que parecia saltar das profundezas do oceano. Alex se postou atrás dela. O calor do peito nu aquecia as costas dela. — Levaremos algumas horas para atracar — informou. Joanna assentiu sem olhar para ele. Instantes depois, ouviu a porta da cabine se fechar. Soltou um suspiro profundo, mas não encontrou alívio. O tempo passou rápido. Enquanto seu corpo se movimentava a esmo pela cabine, a mente de Joanna vagava em outra época, quando o reino que a ilha abrigara fora destruído pelo vulcão. Como fora aquela noite terrível? Houvera tempo de fugir? Alex dissera que seus antepassados chegaram logo depois da tragédia. Por que se dirigiram a um lugar tão devastado? O que tinham encontrado? A parede do penhasco se tornou mais próxima, até dominar o horizonte. Rochas distorcidas e maciças se erguiam diante dela. Não havia somente uma cor, mas várias, tons de púrpura, marrom, vermelho, malva, cobalto, cinza e verde, borrando-se nas extremidades, tal qual as veias que percorriam uma peça de mármore. Joanna imaginou aquela rocha gigantesca se derretendo com o calor excessivo e sentiu novamente o terror que assolara aquele lugar. 2


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Mais algum tempo se passou e ela ainda permanecia à escotilha. Quanto mais observava, mais Akora se mostrava a fortaleza destinada a se manter distante do mundo externo. Em comparação, as muralhas do castelo mais poderoso da Inglaterra pareciam uma tentativa frágil de defesa. No final da manhã, a face do penhasco, que se assemelhara a um monólito, foi interrompida pelo aparecimento de uma abertura estreita. O que os europeus com suas lunetas haviam concluído ser uma pequena baía era, na verdade, a entrada oculta para o centro de Akora. Por volta do meio-dia, o navio adentrou aquela área. Depois de alguns minutos, Joanna ouviu um ruído no casco e se debruçou na escotilha para olhar a água. A princípio, nada enxergou, mas, após um instante ou dois, outra colisão ocorreu. De súbito, uma pedra enorme emergiu à superfície. Joanna soltou uma exclamação, temendo que a pedra abrisse um buraco no casco do navio. No entanto, a embarcação ao atingir a rocha empurrou-a para longe. Perplexa, avistou outras rochas serem levadas pelas ondas. Pedras flutuantes? Sim, claro, deviam ser pedras-pomes, rochas repletas de pequenos orifícios que a impediam de afundar. Sem dúvida, tratava-se de uma herança deixada pelo vulcão. Depois de passarem pela entrada da baía, um oceano vasto se abriu. A terra firme se curvava diante do navio e desaparecia à distância. Aquela costa era muito diferente dos penhascos que ela avistara em mar aberto. Campos férteis cintilavam sob os raios do sol, que tornavam o mar ainda mais azul. Peixes longos e prateados saltavam ao lado do navio, e gaivotas voavam sobre o convés. A embarcação rumou para oeste, onde a capital, Ilius, ficava situada. Ao poucos, uma construção branca surgiu, bem próxima à costa. Joanna prendeu a respiração ao avistar um pequeno templo cintilando sob o sol. Era parecido com os templos que ela já vira, mas, ao mesmo tempo, diferente. As colunas brancas se erguiam até um telhado que abrigava um pórtico. Porém, as paredes não eram completamente brancas como as das ruínas gregas. A parte inferior fora pintada com cores que pareciam dar continuidade à paisagem ao redor. Vinhas subiam pelas colunas, e no telhado jazia a estátua de uma mulher fitando as águas. A exaltação invadiu Joanna ao se dar conta da realidade. Conseguira adentrar o reino misterioso, superando obstáculos que gerações de exploradores, conquistadores e aventureiros tinham achado assombrosos. Lá estava ela, em um mundo fascinante que não se perdera com o tempo. Esperava apenas que seu irmão também estivesse tão vivo quanto Akora. De olhos fechados, Joanna murmurou uma prece para Royce. Quando voltou a abri-los, o templo e sua deusa tinham desaparecido. Então, a cidade de Ilius surgiu, de repente. Havia um porto profundo, no qual várias dúzias de desembarcadouros de pedra sobressaíam; um terço deles estava ocupado por embarcações tão grandes quanto o Nestor, e também por barcos pequenos demais para se aventurar em mar aberto. Carreiras de construções brancas emergiam em fileiras, partilhando o espaço com árvores e arbustos floridos. Ruelas serpenteavam entre as casas em direção à colina até atingirem muros altos, 2


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onde sentinelas se mantinham atentas. Além dos muros, ela avistou torres altíssimas cintilando sob o sol. — As torres de Ilius — murmurou, maravilhada. Se alguém lhe pedisse para descrever Tróia, ela a imaginaria tal qual Ilius, poderosa e linda. Emocionada, respirou profundamente a fim de absorver dentro de si a essência daquele lugar. Além do aroma de limão e tomilho, Joanna também sentia os odores do cais. O mar salgado, o cheiro forte de peixe e de cordas molhadas se misturando às fragrâncias que fluíam da multidão de janelas abertas àquele dia magnífico. Ao se aproximarem do cais, avistou pessoas caminhando pelo quebramar e nas ruas. A curiosidade era tanta que Joanna nem piscava, à medida que o navio avançava. A maioria dos akoreanos era morena, e a pele, quando não bronzeada, possuía o tom de oliva característico dos povos do Mediterrâneo. Mas também notou pessoas que pareciam mais claras. Aquela distância e por causa do movimento do navio, provavelmente se enganara. Apesar do comentário de Darcourt sobre a nudez, todos estavam vestidos. Homens e mulheres usavam túnicas, embora os trajes masculinos tendessem a ser mais curtos que os equivalentes femininos. As exceções eram os soldados, que usavam a mesma indumentária que tornava a aparência de Darcourt tão desconcertante. De modo geral, Ilius se parecia com qualquer porto que ela já vira, incluindo o de Londres. Porém, não havia como negar que as diferenças prevaleciam mais do que as semelhanças. De repente, percebeu que para cada lugar que olhava, fossem as docas ou a cidade que se erguia em direção ao palácio, não existiam sinais de pobreza, algo tão comum em Londres. Nenhuma criança mendigava, nenhuma mulher saía das sombras à procura de clientes, nenhum cão sarnento vagava pelos becos. Não havia bairros sujos com construções decrépitas bloqueando o sol com a mesma eficácia com que esmagavam a esperança. Tudo que se via eram paredes brancas e a essência da natureza. Quando Joanna conseguiu enxergar nitidamente o verde-pálido das ondas que batiam nos blocos de pedra do quebra-mar, Darcourt entrou na cabine. A descontração que demonstrara durante a jornada desaparecera. Agora o marquês mantinha o semblante austero. Ele desdobrou um tecido que trazia consigo, revelando um roupão longo de algodão branco com capuz. — Você usará isto para desembarcar. Haverá uma liteira coberta à sua espera no cais. Será levada aos meus aposentos no palácio. Preciso me encontrar com o rei, portanto vou me demorar. As criadas irão acomodá-la a contento. Joanna escutava em silêncio. Lembrou-se de que ele estava acostumado a dar ordens; que lhe devia gratidão; que sua única preocupação era encontrar Royce. O roupão era uma peça única sem abertura. Ela o vestiu ainda em silêncio. Por fim, encarou o marquês, cuja expressão era indecifrável. 2


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— Vai falar com o rei a respeito de Royce? — Falaremos do que tivermos de falar. Darcourt se aproximou da porta. Ele agia como se o medo, a determinação e o desespero de Joanna nada significassem. E quanto à promessa que o príncipe lhe fizera de encontrar Royce? Também fora insignificante? — Espere! Preciso saber. O que você fará para encontrar meu irmão? O que nós faremos? — Nós? — Alex a encarou com severidade. — Você fará o que for necessário para evitar problemas. É só com isso que precisa se preocupar. — Não espere que eu fique sentada sem fazer nada. Arrisquei muito para agora ficar passiva. No instante em que as palavras saíram, Joanna percebeu que cometera um erro. Alex avançou sobre ela e a segurou pelo braço bom. O ferimento no outro braço estava quase cicatrizado. Ele o verificara todas as vezes em que fora à cabine para levar o desjejum a Joanna e a encontrara dormindo. Mas, furioso ou não, Alex jamais ousaria machucá-la. — Não aprendeu nada sobre Akora? — ele perguntou. — Não entendeu nada? — Você me contou muito pouco. — Contei mais do que tinha o direito de... Alex se calou, tão logo percebeu a própria confusão. As barreiras eram grandes demais; uma vida de treinamento e de concepções tão profundas que ele nunca questionara em relação aos xenos, às mulheres e a tudo o que deveria ser e fazer. Entretanto, não estava prestes a romper essas barreiras e a desafiar esses conceitos? O que poderia dizer a ela? Que quando desembarcassem, enfrentariam uma situação ainda mais perigosa por causa da presença de uma inglesa em Akora? Que desde aquele beijo, ele vinha apelando para sua formidável disciplina a fim de evitar tocá-la novamente? Eles dormiriam na mesma cama. Tal fato Alex não pretendia revelar. Joanna o descobriria por si só. Não queria arriscar nenhum tipo de intriga entre os criados. A maioria deles ela leal, mas dado o período de incerteza, bastaria apenas um ser mal-intencionado para que a situação se tornasse ainda mais periclitante. Agora Joanna Hawkforte era sua responsabilidade. Ele a protegeria das ameaças que rondavam Akora, da impulsividade da dama em questão e, acima de tudo, de seus desejos. No entanto, não tinha a menor intenção de se explicar. Aprendera desde a infância a manter seus pensamentos em segredo. Não admitia exceções, nem mesmo entre aqueles que mais amava. O que jamais lhe ocorrera era que um dia desejaria mudar tal premissa. — Você não é ignorante — continuou, ao soltá-la. — Já lhe disse que, como mulher, deve ser... 2


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— Amável, submissa, obediente e recatada — Joanna completou. — Não esqueci nenhum detalhe, acredite. — Mas não pretende se comportar como deveria. Ela o encarou, apreensiva. Alex conteve o impulso de tomá-la nos braços para consolá-la. — Tenho a melhor das intenções — alegou ela, mais calma. — Depois de tudo o que passei para chegar até aqui, não sei como conseguiria ficar sentada, enquanto você ou outra pessoa tenta encontrar Royce. Alex sentiu uma ponta de compaixão. Se estivesse no lugar dela, acharia a passividade uma tortura intolerável. Mas por que pensava nisso? Ele era um homem, e ela, uma mulher. Nunca trocariam de lugar, pois possuíam marcas físicas e culturais bem distintas. — O que acha que vai fazer? — indagou. — Vasculhar montanhas e vales para encontrá-lo? Um sorriso sutil curvou os belos lábios. — Consigo me imaginar fazendo justamente isso. — Infelizmente, eu também. — Alex tocou o rosto suave. — Joanna, entenda que isso não será possível. Pronunciar o nome dela lhe pareceu natural, como se fossem íntimos havia anos. De repente, Alex teve vontade de ouvi-la dizer o dele. Que loucura... Eles se entreolharam. Poucos centímetros os separavam. Alex não precisaria de muito esforço para baixar a cabeça e provar novamente aqueles lábios tentadores... Nestor alcançou a doca e balançou gentilmente quando a âncora foi lançada. Os homens no convés festejaram a chegada da embarcação, como sempre faziam ao final de uma jornada. Alex sentiu um impulso repentino de ordenar que o navio voltasse ao oceano. Nesse momento, percebeu como era perigoso o terreno no qual pisava. Dever e honra. Palavras simples para qualquer homem. Para ele, eram a vida. Alex então deixou que sua máscara social o protegesse como escudo. — Faça seu papel. — Dito isso, o príncipe de Akora se retirou sem olhar para trás.

Alex foi diretamente para o palácio, sem esperar um cavalo ou uma escolta. No topo da colina, ficava o gigantesco portão, emoldurado por duas leoas de pedra. Não havia leoas em Akora. As estátuas eram mais uma lembrança da terra de origem de seus antepassados. Quando criança, ele cultivara o hábito de acariciar as patas da leoa da direita sempre que entrava na cidadela e as da esquerda sempre que partia. Tal ação o lembrava do que era real, do que realmente importava. Para além dos portões, o pátio estava molhado graças à chuva recente, o que indicava que o dia seria quente e abafado. O palácio se erguia diante do 2


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pátio amplo. Alex havia conhecido vários palácios na Europa, mas nenhum deles se assemelhava à Casa de Atreides. O de Akora era muito mais antigo, com cerca de três mil anos. No decorrer dos séculos, os senhores de Akora haviam conservado o exterior daquele palácio para simbolizar o poder. Nada fora deteriorado, esquecido ou descartado. Legiões de sacerdotes e sacerdotisas fizeram questão disso. Se quisesse, Alex poderia percorrer as câmaras, onde seus ancestrais mais remotos haviam observado através das janelas uma terra devastada retornar à vida. Agora ele mesmo podia vislumbrar o nascimento de um futuro, fundamentado na determinação de manter Akora tão orgulhosa e imponente quanto as gerações de seus antepassados a tinham encontrado. Tratava-se de uma visão partilhada com o homem que Alex fora ver. Apertou o passo, atravessando as imensas portas de bronze e adentrando o primeiro dos muitos saguões que compunham a área pública do palácio. Os guardas ergueram os ombros ao ver o príncipe de Akora, mas Alex nem sequer os notou. Tampouco tomou conhecimento dos olhares solícitos dos cortesãos que sempre reverenciavam tal fonte de poder. Continuou a atravessar as salas até chegar à última, a menor e a mais intima de todas. Mesmo assim, o espaço era grande o bastante para abrigar a multidão de Carlton House e uns tantos mais. Era também um local exclusivamente masculino. Lá o deus touro imperava através de afrescos e estátuas, e sua poderosa cabeça, com chifres de ouro, dominava a parede acima do trono que, naquele momento, estava vazio. Nenhum cortesão podia adentrar aquele recinto. Alex tocou a parede à esquerda do trono. A porta fora pintada de forma a acompanhar os afrescos, mas não estava totalmente oculta. Todos a conheciam, mas apenas uns poucos podiam usá-la. Atrás daquela porta estava o santuário privativo do rei e o último centro de poder de Akora. Era um cômodo simples, livre de excessos e ostentação. Havia uma única mesa próxima à janela, que ocupava a maior parte da parede. O homem sentado atrás dela olhou para Alex. Tinha pouco mais de trinta anos e era tão moreno quanto o meio-irmão. O semblante severo se amenizou ao exibir um sorriso de alivio e prazer. Levantando-se, o rei Atreus, filho da Casa de Atreides e o governante escolhido de Akora, foi ao encontro do meio-irmão. Os dois homens, igualmente moldados por uma vida de dureza e treinamento, se abraçaram. — Você chegou cedo — Atreus comentou. — Não o esperava antes da próxima semana. Alex sorriu ao ver o rosto tranquilo do irmão. — As questões foram encaminhadas mais depressa do que eu esperava. Atreus assentiu. Como tivessem somente dois anos de diferença, ambos haviam partilhado as mesmas aventuras e desventuras da juventude, mas o elo que os unia ia além da mera camaradagem. Eram separados por causa da origem; Alex, porque era metade xenos, e Atreus, porque estava destinado a governar. Cada um teria sido condenado à solidão do isolamento, não fosse a afeição que nutriam um pelo outro. Desde a infância na Casa das Mulheres até 2


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os dias e noites de treinamento nas colinas acima de Ilius, eles haviam criado laços de afeição e lealdade que jamais seriam desfeitos. Com a fidelidade, surgira o entendimento mútuo. Depois de soar o gongo para chamar um criado, Atreus encarou o meio-irmão. — Sua missão, portanto, teve êxito. Ótimo. Mas o que o atormenta? — Você é perspicaz demais — comentou Alex. — Às vezes, isso me assusta. Atreus riu e indicou as cadeiras ao lado da janela. — A verdade é que eu o conheço muito bem. — Ele se calou quando um criado entrou. — Vinho e algo para acompanhar — pediu. Voltando-se ao irmão, perguntou: — A comida inglesa continua ruim? — Está pior. Tão logo saímos do canal, os homens começaram a preparar os marinos. — Mesmo assim, um dia, ainda vou experimentar essa culinária que você tanto abomina... desde que as circunstâncias me permitam. O criado retornou com uma jarra de vinho, dois cálices e uma bandeja de pão e queijo. Em seguida, curvou-se, respeitoso, e saiu. Atreus serviu o vinho para ambos e suspirou ao primeiro gole. — Se os franceses tivessem descoberto o que as nossas vinhas produzem, não teriam enviado somente uma força expedicionária. — Ainda bem que desconhecem -— retrucou Alex. — Já temos problemas demais no momento. — Tudo parece sossegado, considerando a atual situação. — E o Conselho? — Continua como antes. Dos seis, três parecem predispostos a me apoiar. O restante... — Atreus deu de ombros. — É irônico que o membro mais jovem do Conselho seja também o mais resistente à mudança, mas você deve lembrar como Deilos agia quando éramos crianças. Alex assentiu, considerando o filho de uma das famílias mais antigas e nobres de Akora, uma linhagem que quase se comparava à dos filhos de Atreides. O garoto, que sempre se mostrara preocupado com a própria dignidade, fora criado por um homem frio e calculista, cuja nobreza pouco mascarava o que Alex acreditava ser uma natureza arrogante. — Mais irônico ainda é o fato de que Deilos, acima de todos, devia conhecer a sabedoria de sua política, Atreus. Afinal, ele chegou a sair de Akora. — As viagens de Deilos não o favoreceram com a mesma sabedoria que você adquiriu. Alex sorriu com uma ponta de sarcasmo, imaginando se o irmão o acharia tão sábio por trazer uma xenos a Akora. — E quanto a Troizus? — Está mais calado que nunca, mas resmunga pelos cantos. Dizem que Deilos sugeriu um casamento entre as casas de ambos. — Deilos não consideraria um rebaixamento unir-se ao clã de Troizus? — Alex ponderou. — Sabemos que ele almeja muito mais. 2


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— Mas sem sucesso. Kassandra não o aceitará, e tampouco estou inclinado a tentar persuadi-la. Os dois sorriram ao pensar na irmã caçula que podia, quando desejasse, representar a epítome da feminilidade akoreana, embora possuísse o orgulho e a vontade de Atreides e o sangue dos ancestrais ingleses. Como Alex, Kassandra era metade xenos, mas o fardo que ela carregava era mais leve porque, de uma mulher, não se esperava liderança. — Isso nos deixa com Mellinos — Alex concluiu. — Quais são suas objeções? — Ele alega defender os valores e tradições akoreanos e não admite que uma mudança "ineficiente" os abale. — A mudança é essencial para a nossa sobrevivência. — Concordo com você, mas há outros como Mellinos que temem qualquer modificação no que sempre conheceram. A mudança ameaça o poder, o prestígio e a identidade deles. Farão qualquer coisa para embargá-la. — Qualquer coisa? — Alex repetiu. — É uma afirmação veemente. Todos sabem que, enquanto o Conselho expressa suas visões livremente, é o rei quem decide. Isto representa valor e tradição. — Talvez eu organize um jantar — sugeriu Atreus, sorrindo. — Convidarei Mellinos e você. Dessa forma, poderão debater à vontade. Não tenho dúvidas de quem será o vencedor. — Se acredita que palavras resolverão esse problema, deveria estar menos preocupado do que está agora. — Pensei que o perspicaz fosse eu — Atreus brincou. — Voltemos ao começo da conversa, então. O que o perturba, afinal? Alex tomou outro gole de vinho antes de falar. — Lembra-se do inglês que mencionei a você, Royce Hawkforte? No ano passado, ele pediu permissão para vir a Akora. Na época, você e eu decidimos que, dadas as circunstâncias, tal visita não seria possível. Parece que Hawkforte não aceitou um "não" como resposta. Ele saiu da Inglaterra há nove meses, disse à irmã que voltaria depois de três meses, mas nunca mais foi visto. — Pode haver várias explicações para isso. Afinal, a Europa está em guerra. — Sim, mas o Ministério das Relações Exteriores recusou qualquer assistência à irmã. Se Hawkforte foi capturado ou morto no continente, certamente o governo britânico informaria a família. — Mas, se ele tivesse chegado a Akora, morto ou vivo, eu saberia. — Em circunstâncias normais, eu concordaria, mas não estamos vivendo uma época normal. Ambos permaneceram em silêncio por alguns instantes, antes de Atreus dizer: — Há rumores de que os opositores à mudança estabeleceram uma base, de onde podem agir contra mim quando acharem necessário. Alex se levantou e foi à janela. A paisagem tão familiar deveria lhe causar paz interior, mas só aumentou a raiva que crescia dentro dele. 2


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— Isso é traição, Atreus. — Há aqueles que dizem que o que planejo para Akora é traição. O rei possuía uma mente acurada demais para não perceber as implicações do curso que escolhia para si e seu reino. Tratava-se de um caminho que havia determinado com grande cuidado e após muita contemplação. Alex sabia disso porque representara um papel fundamental para ajudar Atreus a chegar ao lugar em que agora se encontrava. — O mundo está mudando, e depressa — Alex informou. — Nada, nem a invasão dos bárbaros ou a queda de Roma, iguala-se à revolta que jaz sobre nós agora. Esse novo "industrialismo" que está varrendo a Inglaterra vai engolfar o mundo. Se tentarmos combatê-lo, seremos destruídos. Atreus assentiu. — Não precisa me convencer disso. Os livros e o maquinário que você trouxe já me convenceram há muito tempo. — Por que então os outros, como Deilos, Mellinos e Troizus, não enxergam isso? Akora sempre permaneceu forte porque evoluiu ao longo dos séculos. Lutávamos com espadas de bronze, e hoje usamos aço. A pólvora não era conhecida aqui, e agora nós mesmos a fabricamos. Nossos navios são maiores, mais ágeis e muito mais armados do que no passado. Essa bobagem sobre Akora continuar a mesma não se baseia na realidade. — É verdade — Atreus concordou. — Mas o curso que traçamos significará uma mudança muito diferente da que conhecemos no passado. Não será apenas uma questão de fortalecer nossas defesas com o objetivo de nos mantermos isolados do mundo exterior. Nós nos tornaremos parte desse mundo que até então rejeitamos. — A passos lentos e calculados — Alex o lembrou. — E sempre com a devida consideração à nossa herança. Afinal, o objetivo principal é proteger o que mais amamos. Ao ouvi-lo, Atreus sorriu, embora sua expressão continuasse séria. — Eu poderia inseri-lo no Conselho. Ele é composto de seis integrantes há muito tempo, mas nada impede que esse número aumente. Houve momentos em nossa história em que o Conselho foi ainda mais numeroso. — Mas um xenos jamais o integrou. — Você não é só isso. — Metade xenos, então. Em se tratando do Conselho, muitos pensarão dessa maneira. — Mas todos sabem que você é o homem em quem mais confio. — E eu lhe agradeço — disse Alex com voz rouca. — Mas creio que seja melhor me manter na retaguarda. Há vantagens em poder ir e vir sem dar satisfações ao Conselho. Caso eu o integrasse, tal liberdade me seria tolhida. — Talvez tenha razão. Acha que Royce Hawkforte pode estar em Akora? — A irmã dele acredita que sim. Na verdade, tem certeza absoluta de que ele está aqui. — Falou com ela em Londres? — Não — Alex respondeu.

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Sua atenção agora estava focada nos guardas e criados que se aproximavam dos portões do palácio. Entre eles, vinha uma liteira coberta. Enquanto assistia à cena, notou que as cortinas da liteira se abriram um pouco. Tomado pelo riso e pela constatação de que Joanna teria mesmo dificuldade para representar a mulher cordata, Alex não reparou que o rei o observava. — O que você trouxe da Inglaterra, dessa vez, meu irmão? — Atreus perguntou, divertido. *** Enquanto espiava pelas cortinas da liteira, Joanna não conseguia conter o espanto. A visão de Ilius que tivera do mar não a tinha preparado para a realidade. A cidade toda era coberta de cores e desenhos. As paredes da maioria das construções eram pintadas em tons de creme, azul, vermelho e verde. Muitas possuíam murais belíssimos. Cada casa e loja alardeava ânforas gigantes com flores diante de janelas e portas. Atrás de várias construções, pôde divisar pequenas hortas e pomares. Alguns cachorros vagavam livremente pelas ruas, e gatos dormiam sob o calor do sol. Mas os outros animais, como cabras, galinhas e porcos, eram mantidos em áreas cercadas. A primeira impressão de que a cidade era limpa e próspera foi se confirmando à medida que a procissão subia a colina em direção ao palácio. As residências se tornavam maiores, e algumas podiam ser qualificadas como mansões. Mas, exceto pelo tamanho, não eram muito diferentes das casas dos cidadãos comuns. A enorme desigualdade entre ricos e pobres, tão comum na Inglaterra e em outros países, não existia em Akora. De súbito, os imponentes portões do palácio surgiram à sua frente. Joanna admirou as leoas gêmeas que guardavam a entrada e lamentou não poder descer da liteira a fim de se deliciar com as peculiaridades de Ilius. Tão logo passaram pelos portões, precisou lembrar a si mesma que não era uma camponesa ingênua. Afinal, havia viajado muito, e as maravilhas do mundo não representavam um mistério. No entanto, nada do que conhecera a tinha preparado para o que existia além das leoas. Todo o topo da colina parecia ter sido recortado pela mão de um gigante. Onde deveria estar o pico havia um pátio imenso, emoldurado por um palácio cuja beleza e graça eram de tirar o fôlego. Entre paredes e colunas decoradas com afrescos que já lhe eram familiares, uma escada ampla dava acesso à entrada central, onde duas portas enormes estavam abertas. Mas os criados não levaram a liteira para aquela direção. Seguiram para a ala oeste do palácio. Mesmo com o passo apressado, vários minutos se passaram antes que cruzassem o pátio e se aproximassem de outra escadaria que dava acesso à lateral do prédio. Joanna escutou vozes murmuradas pouco antes de as cortinas se abrirem. Para não ser vista acomodada sobre os travesseiros, ela desceu da liteira rapidamente. No momento seguinte, os criados se retiraram. Uma mulher magra e de meia-idade a recebeu. Ela juntou as mãos e se 2


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curvou de leve. Então, olhou para Joanna com uma curiosidade que logo foi disfarçada. — Sou Sida, senhora — disse, gesticulando, como se falasse com uma criança. — Criada da residência do príncipe Alexandros. Por favor, venha comigo. — Obrigada, Sida — Joanna agradeceu na mesma língua. — Sou lady Joanna Hawkforte. Como o idioma akoreano é novo para mim, por favor, sintase à vontade para corrigir meus erros. — A senhora fala muito bem para uma... — Sida se deteve e corou, envergonhada. — Para uma xenos? — Joanna indagou, sorrindo. — É gentileza sua, mas sei que ainda tenho muito a aprender. Sem maiores considerações, ela seguiu a criada até o interior do palácio. A sequência de janelas iluminava o cômodo, que era elegante e acolhedor. Bancos de gesso ao longo das paredes estavam cobertos por almofadas de tamanhos e formas variados. Em mesas baixas havia tigelas com frutas e flores. Próximo à porta, um jato de água saía da cabeça de pedra de um golfinho e caía em uma bacia ornamentada antes de escoar por um cano oculto. — Senhora — Sida indicou a água —, é costume lavar os pés antes de entrar em um aposento. Em um clima seco e quente, aquela parecia uma boa ideia. Além disso, tornava-se claro o gosto dos akoreanos pela limpeza. Descalça, Joanna pisou na água fresca da bacia, segurando a barra do roupão. Quando saiu, Sida segurava uma toalha para secar seus pés. — Obrigada. Ela pegou a toalha e completou o serviço, imaginando o que Mulridge diria caso soubesse que outra pessoa se atrevera a cuidar de sua patroa. Ao lembrar-se da gentil amiga de Hawkforte, uma onda inesperada de saudade a invadiu. Esperava que a carta que deixara em Londres proporcionasse algum tipo de consolo para seus entes queridos. Mesmo assim, Mulridge, Bolkum e os outros ficariam preocupados, mas não havia nada que ela pudesse fazer agora. O peso do que realizara, enfim, levou-a à dura realidade. Joanna estava a milhares de quilômetros de distância de tudo e de todos que conhecia. Embora Alex tivesse prometido ajudá-la a procurar Royce, ele nada dissera sobre o que aconteceria depois. Não oferecera nenhuma garantia de que ela e o irmão poderiam sair da fortaleza. Por mais certa que estivesse de que Royce ainda estava vivo em Akora, o medo ainda minava sua confiança. Existia a possibilidade de ele estar morto e, nesse caso, ela teria de suportar a angústia de perder o último membro de sua família entre estranhos. — Foi uma jornada longa, senhora — comentou Sida, parecendo perceber a aflição de Joanna. — É melhor descansar e se refrescar. Ela assentiu e seguiu a criada. As janelas do apartamento pelo qual passou ofereciam uma vista magnífica da cidade, do cais e de boa parte do mar entre as ilhas. Sida a conduziu por vários cômodos até chegar a uma suíte que compreendia um 2


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quarto de dormir, uma sala de banho e, aparentemente, a biblioteca particular de Alex. Quando a criada se retirou para buscar um refresco, a curiosidade natural de Joanna despertou. Apesar da tentação de tocar aquela infinidade de livros dispostos em prateleiras, ela apenas esquadrinhou o recinto da soleira da porta. O resto da suíte, porém, ela examinou sem cerimônia, notando particularmente que havia apenas uma cama nos aposentos. Sida retornou e depositou uma bandeja sobre a mesa próxima à janela. — Por favor, senhora, sente-se. Eu lhe trouxe marinos e um vinho da adega particular do príncipe Alexandros. Ela também trouxera pão fresco, uma tigela de cerejas e uma fatia grossa de queijo. Joanna se sentou, constrangida, mas isso não a impediu de saborear aquela farta refeição. — Voltarei logo, senhora — avisou Sida, depois de servir o vinho. Joanna nem sequer notou a saída da mulher. Estava com tanta fome que só tinha olhos para o banquete digno de um príncipe. Aliás, ouvir Sida referir-se a Darcourt como príncipe Alexandros fora um choque. Os soldados o chamavam de archos, provavelmente um título militar, e ainda havia a denominação kreon a assimilar. Mas a real condição de príncipe tornava um desrespeito a ousadia de invadir o navio e insistir para que ele a ajudasse. Isso, sem mencionar aquele beijo... Não, não se daria ao luxo de pensar nisso. Agora precisava ser madura e consciente, se quisesse convencê-lo a ajudá-la a encontrar Royce. Considerava as opções quando, de repente, um movimento atraiu sua atenção. A cortina que ocultava uma pequena porta em arco se moveu, indicando que alguém a observava. A sensação desagradável, somada aos avisos de Alex quanto a manter as aparências, fez Joanna estremecer. Embora desejasse puxar a cortina para revelar o espião, ela se conteve, pois sabia que uma concubina não agiria dessa maneira. O melhor seria se divertir com a situação. Forçou uma postura lânguida que esperava que fosse convincente. Em seguida brincou com o cálice de vinho, quase derramando a bebida em si mesma. Voltou então a atenção à cortina. Dessa vez, conseguiu ver um par de olhos. — Pode sair — avisou. — Ambos sabemos que você está aí. Houve um momento de hesitação antes que uma linda mulher se revelasse. Era um pouco mais baixa que Joanna e bem mais jovem. Os cabelos negros caíam como uma cascata de cachos sobre as costas. A jovem usava uma túnica branca simples que realçava os seios fartos e a cintura fina. Os olhos eram grandes e escuros, e a pele, dourada. Havia algo de familiar naquele rosto bonito, mas Joanna nem sequer tentou descobrir o que era. Uma mulher estonteante nos aposentos de Darcourt. Oh, Deus, devia ter imaginado! O fato de ele não ser casado não significava que não possuísse uma amante. Como explicar sua presença?, pensou. E, pior, como ignorar o ciúme repentino que a invadira? Joanna clareou a voz e se levantou. Fez menção de falar, mas, para sua surpresa, a jovem corou e sorriu.

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— Desculpe-me. Deve achar que sou a pessoa mais rude do mundo. Quando escutei os criados falando de você, não pude conter minha curiosidade. Inglês. Aquela bela akoreana falava inglês fluentemente, com um sotaque quase imperceptível. — Eu... não há necessidade de... — Há, sim! — A moça se aproximou. — Faz anos que espero a oportunidade de conhecer uma inglesa. Se cheguei a ofendê-la com minha atitude, ficarei arrasada. Ela se mostrou tão fervorosa que Joanna não conteve o sorriso. — Não me ofendi. Só fiquei surpresa. Sou lady Joanna Hawkforte. — E é inglesa? — Claro. — Maravilha! As criadas disseram que era inglesa, mas não acreditei. Oh, que falta de educação! Sou a princesa Kassandra, da Casa de Atreides. — Princesa... Em um gesto automático, Joanna se curvou, mas Kassandra a deteve. — Não precisamos de tanta formalidade, especialmente entre mulheres. Os homens podem ser exigentes nesse caso, mas você deve saber como eles são. Felizmente, Joanna não precisou replicar, pois Kassandra continuou a falar: — Sou a irmã caçula de Alexandros, uma condição que ele costuma me lembrar com certa frequência. Como se isso não bastasse, há também Atreus. Ele é nosso meio-irmão, e tão querido quanto Alexandros, mas os dois têm a tendência de ser protetores demais e de acreditar que sabem o que é melhor para mim. — Entendo... — Eu sempre quis conhecer a Inglaterra. Na verdade, quero conhecer qualquer lugar, mas principalmente a Inglaterra. Alexandros traz livros incríveis e conta histórias maravilhosas, mas não é a mesma coisa... Meu sonho é conhecer Mayfair, fazer compras em Bond Street, visitar o Ackermann's, saborear os doces da Gunter's e tudo o mais. Quero inclusive caminhar pela St. James, embora Alexandros diga que não posso porque lá estão os clubes de cavalheiros, e é considerado impróprio para uma dama sequer passar pela rua em uma carruagem. Que bobagem! Ou deveria dizer idiotice? Tento me manter atualizada, mas é impossível, dada a distância que me separa da Inglaterra. Ela suspirou. — É tudo tão estranho, exótico e misterioso... Enfim, consegui conhecer alguém... — Kassandra se calou quando Joanna riu. — Deve me achar uma tola! — De forma alguma. Estou rindo porque eu usaria as mesmas palavras para descrever Akora: estranho, exótico e misterioso. Londres, por outro lado, parece comum.

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Para não frustrar o entusiasmo de Kassandra, ela não acrescentou que Londres possuía muitos problemas. Ilius, em comparação, parecia muito mais bonita e contagiante. — Comum para você — disse Kassandra. — Mas é uma mulher do mundo. Você vive e eu... — Ela suspirou novamente. — Falo como uma donzela imatura. Não pense que estou me queixando. Reconheço minha sorte. Só invejo Alexandros porque ele pode ir e vir, enquanto eu devo permanecer aqui. — Porque é uma mulher? — Exatamente. — Kassandra fitou Joanna com certa cautela. — Quanto você sabe sobre Akora? Refiro-me à posição da mulher e... às outras coisas. Alexandros lhe explicou como funciona nossa sociedade? Desde o primeiro instante, Joanna gostou de Kassandra. Ela possuía uma naturalidade que dificilmente era encontrada entre as damas da sociedade inglesa. Acima de tudo, o título de princesa não parecia afetá-la. — Ele disse que as mulheres devem ser obedientes e... recatadas. Só isso. E também que não precisam se preocupar com nada, a não ser agradar ao homem a quem pertencem. Joanna não queria parecer petulante. Afinal, era uma hóspede naquela terra desconhecida. Mas a expressão de Kassandra indicava que a princesa havia compreendido muito bem o que ela dissera. — Alexandros acredita mesmo em tudo isso. Ou, pelo menos, parte dele acredita. O mais importante é saber que aqui em Akora nada é tão simples ou rígido quanto aparenta ser. Somos uma cultura antiga, sustentada pela história e tradição. Mas não se preocupe. Com o passar do tempo, você compreenderá o que digo. — Espero que sim — Joanna murmurou, perguntando-se quanto tempo a princesa acreditava que ela ficaria em Akora. Kassandra não havia questionado a presença de Joanna, mas mencionara achá-la uma mulher do mundo... Deliberadamente, ela comentou: — Conheço o príncipe Alexandros há pouco tempo. — Verdade? E ainda assim ele a trouxe para Akora, algo que meu irmão nunca fez, embora tenha outras concubinas na Inglaterra. As pessoas vão estranhar, claro, mas isso é comum em certos lugares. Não se deixe perturbar. Pessoalmente, acho maravilhoso que esteja aqui. Se tiver paciência, tenho milhares de perguntas a lhe fazer. Eu a ajudo a conhecer Akora, e você pode me falar da Inglaterra. Acha justo? — Muito justo. — Joanna esperava que Kassandra não tivesse notado o rubor em suas faces ao ser chamada de "concubina". A jovem princesa era implacavelmente franca. Seria a natureza dela, ou as akoreanas aceitavam os fatos da vida sem questioná-los? Mais um mistério daquela fortaleza que a intrigava. — Vou adorar conversar sobre a Inglaterra com você — disse Joanna. — E conhecer Akora, é claro. Por onde começamos? — Pelas roupas. As duas se viraram quando Sida entrou com os braços repletos de belos 2


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tecidos. — O príncipe Alexandros está com o rei, mas mandou dizer que lady Joanna precisa de um guarda-roupa. Tomei a liberdade de selecionar algumas peças para sua apreciação, senhora. Espantada, Kassandra olhou para Joanna. — Veio para cá sem roupas? Que impulsiva você é... Ou seria meu irmão o impulsivo? Joanna corou de novo. Confusa, resolveu se concentrar nos tecidos. Quando Sida os espalhou pelo quarto, ocupando as cadeiras, a mesa e a cama, o cômodo ficou parecendo a caverna de Ali Babá. — Poderia tirar o roupão, senhora? — pediu a criada. Joanna acatou o pedido e logo se arrependeu de tê-lo feito. Ao ver que ela usava a túnica de Alex, Kassandra abriu um sorriso largo. Sida também demonstrou certa surpresa, mas se absteve de fazer comentários. — Muito bom. — O contentamento de Kassandra se foi no instante em que notou o ferimento no braço de Joanna. — Meu Deus! Como isso aconteceu? — Foi um pequeno acidente. — Joanna puxou a manga da túnica para esconder o corte. — Nada sério. Kassandra, no entanto, não pareceu satisfeita com a resposta. Para distraí-la, Joanna comentou: — Que tecidos lindos! Espero que você me aconselhe a usá-los corretamente. — Claro. Uma das desvantagens de ser uma virgem é vestir somente trajes brancos. Sonho com o dia em que tal cor não mais existirá em meu guarda-roupa. — E esse dia chegará logo? — Joanna perguntou, ainda com a intenção de distrair Kassandra. Tinha a impressão de que a princesa vira mais do que deveria. — Não, se minha opinião valer alguma coisa. Atreus diz que sou uma romântica, mas não me importo. Quero me casar com um homem que toque a minha alma e que compreenda a minha necessidade de conhecer o mundo. Sida resmungou algo incompreensível, o que fez a princesa rir. — Sei que minhas ideias são chocantes. Mas não vou me casar com um guerreiro só porque assim manda a tradição social. — A princesa pensa demais em tais coisas — Sida comentou, enquanto comparava um tecido com os cabelos de Joanna. — Houve uma época em que essas questões eram decididas entre os homens. Uma jovem cordata não era informada até que o acordo fosse selado. — Os tempos mudaram, Sida — Kassandra anunciou, animada. — E vão mudar ainda mais. Agora me responda, quantas donzelas realmente ignoraram a identidade do noivo até serem comunicadas formalmente? Quantas donzelas se casaram ainda donzelas? — Não faço ideia, princesa — a boa mulher respondeu. — Mas sei que se preocupa sem necessidade. O homem certo aparecerá, acredite.

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— Não ligo a mínima se ele não aparecer. Sei que o rei um dia concederá meu desejo de viajar. Mas, se me casar, meu marido terá autoridade sobre mim. E ele poderia muito bem me impedir de ver a luz do dia. — Kassandra estremeceu só de pensar. — O casamento é tão ruim assim em Akora? — perguntou Joanna. — Claro que não — respondeu Sida. — É muito bom para a maioria das mulheres — Kassandra completou. — E talvez seja bom para mim também. Afinal, tenho certas responsabilidades. — Você aceitaria um casamento político? — Se fosse obrigada... Espero não ter de chegar a tanto! Mas há a expectativa de que eu tenha filhos. O fato de eu ser metade xenos torna importante a procriação. Joanna ficou surpresa. Para ela, a aversão akoreana aos xenos significava justamente o contrário. — Levante-se, senhora — Sida pediu, estendendo uma fita métrica. — Isto vai levar apenas alguns minutos. — O estilo akoreano de se vestir é relativamente simples — disse Kassandra. — Estou certa de que seu guarda-roupa estará pronto em poucos dias. — Não quero causar nenhum inconveniente. Qualquer traje será satisfatório. Kassandra e Sida ignoraram a fala de Joanna e começaram avaliar os tecidos. Apesar da falta de experiência pessoal, a princesa tinha um olho muito acurado. Ela selecionou as estampas que Joanna havia gostado e descartou o resto. — É muito! — Joanna exclamou ao ver a pilha considerável de tecidos que Kassandra tinha separado. Pensou em dizer que não ficaria tanto tempo em Akora, mas mudou de ideia, e falou apenas: — Não terei uso para tudo isso. A princesa fez menção de retrucar quando, de repente, ficou estática. A personalidade esfuziante de Kassandra havia desaparecido, dando lugar a um silêncio profundo. Seus olhos pareciam para além da realidade palpável. Então, como se estivesse muito longe dali, ela pronunciou: — Você ficará aqui por um longo tempo. Sida parou de dobrar um tecido e encarou a princesa. Por um momento, Kassandra parecia ter parado de respirar. A criada a tocou gentilmente. — Princesa... Aquele gesto foi o suficiente. Kassandra piscou várias vezes e respirou fundo. — O que disse? — ela perguntou a Joanna com um sorriso. O que havia dito não tinha a menor importância. Era o que a princesa anunciara que a interessava. — Por que disse que eu ficaria aqui por um longo tempo? — Eu disse isso? — Kassandra desviou o olhar. — Devo ter devaneado. Perdoe-me. 2


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De repente, ela parecia pálida e exausta. — Precisa de repouso, princesa — Sida proclamou e voltou-se para Joanna. — Se me der licença, senhora, vou acompanhar a princesa aos seus aposentos. Voltarei logo. Sem objetar, Kassandra se deixou conduzir pela criada. Agora sozinha, Joanna esperou que os passos para além da porta em arco sumissem. Então, puxou a cortina e espiou um corredor extenso, iluminado por várias janelas. Tratava-se de uma passagem privativa e separada das dependências públicas do palácio. Tais passagens existiam em muitas residências inglesas. Hawkforte, por exemplo, possuía dezenas. Porém, o que mais a intrigava era o fato de somente uma cortina ocultar o acesso à área privativa. Aquilo sugeria que os akoreanos não mantinham segredos, mas mostravam, de forma cortês, que as figuras públicas possuíam uma vida particular. Uma noção interessante que, sem dúvida, não se comparava ao comportamento bizarro da princesa. Kassandra. Não era o mesmo nome da princesa de Tróia que predizia o futuro sem que ninguém nela acreditasse? Tal nome teria outro significado em Akora? Joanna pensava nessas perguntas quando Sida retornou. — A princesa está bem? — Está descansando, senhora. Se me permitir, tenho de tirar mais algumas medidas para suas roupas. — Episódios como esse acontecem com frequência? — indagou. — Não — Sida respondeu, procurando alguma coisa pelo quarto. — A princesa é muito saudável. — Ela ergueu a pilha de tecidos. — Onde deixei... — O que está procurando? — Minha fita métrica. Sei que a deixei por aqui. A fita métrica. Não muito diferente das que as costureiras de Hawkforte usavam. Cerca de um metro e meio, com marcações em preto... cor parda... — Está embaixo da seda vermelha — Joanna avisou. — Ali no banco. Sida a localizou, aliviada. Enquanto tirava as medidas com eficiência, ficou claro que a mente da criada estava em outro lugar. Por isso, Joanna não fez mais perguntas sobre Kassandra, já que a criada obviamente não parecia inclinada a responder. Assim que Sida se retirou, Joanna quase a chamou para saber quando Alex voltaria. Mas o bom-senso a deteve. Se bancava a concubina, se haviam saído da Inglaterra de modo tão impetuoso e se ele desrespeitara os costumes akoreanos ao trazê-la consigo, ficaria evidente que Alex correria para sua suposta amante à primeira oportunidade. Portanto, Joanna não precisava consultar a criada. Resolveu, então, concentrar-se em Royce. As tentativas em alto-mar de localizá-lo tinham falhado, mas agora que estava em Akora, certamente obteria algum sinal ou pista de seu paradeiro. Joanna respirou fundo, fechou os olhos e se voltou ao seu interior. Mas

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nada encontrou, além de pensamentos confusos e preocupação. Após várias tentativas vãs, sentiu de novo a angústia dominá-la. Conseguia localizar uma fita métrica, um jornal e outros objetos, mas não conseguia encontrar o próprio irmão. Apesar do amor que sentia por ele, Royce estava fora de seu alcance. A lembrança da biblioteca de Hawkforte, onde os dois adoravam ficar, amenizou os temores de Joanna. — Voltarei para o Natal, minha irmã. Não tema... O Natal chegara, passara, a neve havia forrado as pastagens e o mar se tornara cinzento e pesado. O povo de Hawkforte celebrara a data, mas Joanna não conseguira se alegrar. O inverno havia sido longo, quase infinito. Ela contara os dias. — Preciso ir, Joanna... As coisas não estão como deveriam estar... A primavera surgira e o despertar da terra não mais encantava Joanna. Passara pelas monções sem apego. — O governo está... agitado. Prinny não consegue se decidir a respeito de nada. Há elementos tolos... impulsivos... influenciando o regente... As notícias do continente eram incertas. Ao que tudo indicava, Wellington impunha resistência na península. Mas Napoleão, desde o nascimento de seu filho e herdeiro, se mostrava mais agressivo, como um semideus da guerra cujo apetite por conquista parecia insaciável. Os britânicos, tomados pela própria ambição, ainda não aceitavam a perda das colônias americanas e voltavam seus olhos ambiciosos para a Austrália, índia e... talvez Akora. — Espero que o povo de Akora seja mais consciente. E eles devem ser, já que sobrevivem há tantos anos. — Tenha cuidado, Royce. Você conhece os rumores... — Só sei que o pai de Darcourt conseguiu, e deve haver outros que também entraram em Akora. Royce exibira aquele sorriso radiante que sempre acalentara o coração de Joanna. Após um abraço apertado, ele montara em seu cavalo negro e, trotando pela estrada, acenara para a irmã. Joanna forçara um sorriso e retribuíra o aceno, mas uma pequena semente de apreensão já se formava dentro dela naquele momento. Royce... Ele era tão forte, vigoroso, o centro de sua vida. Se o irmão tivesse morrido, sem dúvida, Joanna o pressentiria. Mas não sentia nada disso. Quando se voltava para seu próprio interior, podia quase... quase tocá-lo. Seus dedos pressionavam a moldura da janela. Joanna se assustou ao atinar para o momento presente. Olhou para a mão sobre a pedra que, um minuto antes, estivera fria e úmida. Mas a pedra que observava agora estava seca e quente por causa do sol. A brisa suave daquele final de dia refrescava o quarto. Joanna se sentia limpa, seca, descansada e... Royce. Ele estava vivo, e ela conseguira, de alguma maneira, contatá-lo por um 2


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instante fugidio através de um dom que jamais entenderia e que mesmo assim aceitava. Seu irmão estava vivo, mas o medo ainda prevalecia. Apesar da vontade de sobreviver, Royce perdia as forças. E o tempo se esgotava, enquanto ela permanecia nos aposentos de um príncipe. Faça o seu papel, Alex lhe dissera. Joanna fechou os punhos e socou a parede de pedra até que a dor finalmente sobrepujou o terror.

As sacerdotisas que mantinham vigília no santuário da Lua haviam feito suas últimas oferendas da noite e já tinham se recolhido antes que Alex desejasse boa-noite ao irmão. Ele e Atreus ficaram conversando até tarde da noite sobre os eventos recentes que poderiam influenciar o futuro. Alex conhecia o conteúdo das cartas que mensageiros confiáveis haviam trazido durante sua recente estada na Inglaterra. Porém, não existia nada mais eficaz do que uma discussão cara a cara. A situação estava volátil e se aproximando do que poderia ser um momento crítico. Atreus, sendo um homem sensato, havia, enfim, se recolhido. Alex, por sua vez, não viu razão para fazer o mesmo. A simples ideia de que Joanna dormia em sua cama o fez ir diretamente para a praia abaixo do pal ácio. Ele caminhou pela areia fofa e, embora estivesse ciente das sentinelas que o observavam das torres, conseguiu obter a solidão de que necessitava para refletir. Contudo, sua mente voltava sempre aos lençóis de seda e à mulher entre eles. Insensatez. Tinha problemas mais sérios para se ocupar. Logo, não havia tempo para jogos amorosos, tampouco podia se dar ao luxo de pensar na mulher que tanto desejava. Joanna não gostaria de ouvir o que ele tinha a dizer. Ficaria arrasada ao saber que ninguém vira seu irmão. Suspirando, Alex se deitou na areia fria para apreciar as estrelas. Na Inglaterra, tivera noites silenciosas. Longas horas imerso na escuridão e rodeado pela inércia de um mundo adormecido. Quando o frio finalmente o afugentava, Alex buscava o calor de uma mulher para se aquecer. As noites em Akora eram diferentes. Morcegos esvoaçavam em busca de frutas. Para onde quer que ele olhasse, sabia que encontraria as raposas que caçavam à noite e as corujas à espreita. Havia, inclusive, ruídos ocasionais na água, provavelmente um peixe brincalhão ou um polvo, embora eles raramente se aventurassem à superfície. Por que pensava em tais coisas? Precisava dormir um pouco e se preparar para enfrentar os desafios que cercavam seu reino, seu povo e sua família. Por outro lado, poderia permanecer na praia a noite toda. Sem dúvida, cochilaria a certa altura. Mas não havia problema. Afinal, seu treinamento de 2


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guerreiro o preparara para a ação com pouco descanso. Covarde. Alex se levantou, caminhou alguns metros e então se virou para olhar a negritude do mar. Em breve, amanheceria. Ela devia estar dormindo. Não havia necessidade de acordá-la. Era dever de um homem tratar bem as mulheres, mas, no caso de Joanna, parecia-lhe uma tendência natural. A ideia de vê-la triste ou assustada o deixava agoniado. E, além disso, existia o desejo que ela lhe despertava. Essas duas forças internas podiam causar problemas para um homem. Era um conflito bem conhecido em Akora, e muitos jovens em fase de amadurecimento aprendiam a lidar com ele por intermédio dos conselhos dos mais velhos. A disciplina era a chave. Um guerreiro sabia se controlar. Um guerreiro se exercitava copiosamente. Um guerreiro tinha bom-senso e não seguia a trilha da tentação. Um guerreiro também enfrentava o que tinha de ser enfrentado. Ela devia estar dormindo. Assim que o dia nascesse, Alex se engajaria em tarefas que requeriam sua atenção. Ele e seus homens precisavam de exercício. Seria ótimo suar a valer e treinar suas habilidades. Seria também uma boa oportunidade para lembrar a quem quer que fosse que o príncipe de Akora, o braço direito do rei, havia voltado. O palácio estava mergulhado no silêncio. Todos já haviam se recolhido. Mesmo assim, Alex evitou as salas públicas e percorreu o corredor privativo que dava acesso aos aposentos da família. Entre seu dormitório e o de Atreus, ficava o quarto de Kassandra. Alex sorriu ao pensar na irmã. Ele a veria pela manhã, responderia a dúzias de perguntas e permaneceria incógnito quanto à vontade de Kassandra de ir à Inglaterra. Ela manifestaria, obviamente, o desejo de conhecer Joanna, o que poderia ser útil para manter ambas ocupadas e, ao mesmo tempo, arriscado. Ultimamente, Kassandra vinha mostrando certo descontentamento e pouquíssimo interesse em seus deveres formais, o que incluía casamento. Alex sabia que a irmã, às vezes, cavalgava durante horas, como se almejasse fugir de uma existência opressora. Ele a compreendia, embora duvidasse que houvesse uma solução real para o problema. Afinal, ela era mulher. Já Joanna era uma mulher acostumada a administrar o feudo da família, e não hesitara em procurar o irmão desaparecido. Assim que Kassandra soubesse que uma inglesa se achava no palácio, não haveria meios de mantêlas afastadas. Por fim, ele se aproximou da entrada de seus aposentos. Com cuidado, afastou a cortina e espiou para dentro. Ao ver a cama vazia, sentiu o sangue borbulhar. Maldição! Furioso, entrou no cômodo. Se ela decidira procurar o irmão sozinha... O medo o dominou. Por um momento torturante, Alex vasculhou o 2


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quarto. Estava tão ansioso para encontrá-la que quase não notou a forma esguia próxima à janela. Após um suspiro de alívio, aproximou-se da mulher que dormia sobre o banco. Joanna tinha todos os motivos para dormir tranquilamente, já que ele prometera cuidar do problema com Royce Hawkforte. Entretanto, o semblante delicado parecia severo, como se ela estivesse sendo assolada por pesadelos terríveis. Para piorar, ele notou um rastro de lágrimas na pele empalidecida pela noite. O aperto que Alex sentiu no peito foi assustador. Tomou-a nos braços e a levou para a cama. Joanna se moveu um pouco, mas não acordou. Enquanto a cobria com o lençol de seda, achou-a frágil, embora soubesse que aquela mulher possuía a alma de uma leoa. Porém, até uma leoa tinha seus maus momentos. Alex então se sentou na beirada da cama e segurou uma das mãos delicadas. De súbito, sentiu a aspereza da palma. Tal calosidade se devia ao uso constante de rédeas? Ou seria o manejo de uma pá? Alex suspeitava que ela adorasse jardinagem. As inglesas que ele conhecera se lambuzavam de cremes, evitavam o sol e faziam de tudo para manter a pele suave e imaculada. Qualquer sinal de trabalho manual era considerado fora de moda. Ele jamais se acostumaria a tal cultura. Com um suspiro, colocou a mão dela sob o lençol. Quando tentou soltá-la, Joanna o segurou e murmurou algo que muito se assemelhava ao nome dele. Pela primeira vez, desde que voltara à terra natal, sentiu uma onda de paz invadi-lo. Era pura ilusão, claro. Nada havia mudado. Mas, por um breve momento, pôde deixar os problemas de lado. A cama o chamava. Alex ignorou o desejo que fervia em seu sangue. Por aquela mulher, permaneceria sentado durante as últimas horas da noite, refreando as necessidades e segurando a mão dela. Para sua surpresa, aquilo era o suficiente. Por enquanto.

Joanna acordou de repente. Em sua mente ainda sonolenta, teve a nítida sensação de que algo estava errado. Tinha adormecido. E o dia amanhecera fazia tempo. Passaram-se horas e ela não conseguira falar com Alex, dizer-lhe o que sabia e persuadi-lo a agir imediatamente. Envergonhada da própria fraqueza, vagou pelo quarto na tentativa de decidir o que fazer. Então, percebeu que não se lembrava de ter deitado na cama. Mas tinha a vaga lembrança de... braços fortes, uma proximidade afetuosa que a confortara e acalmara. Alex estivera lá. Chegara no meio da noite e a acomodara na cama. Teria permanecido a seu lado? Não conseguia se lembrar e ainda se condenava por 2


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ter sucumbido ao sono enquanto o esperava. Por que nunca acordava quando ele aparecia, como ocorrera também no navio? Como conseguia dormir em tais circunstâncias? Por que ele a fazia se sentir segura e acarinhada? E profundamente perturbada ao mesmo tempo? Nenhuma daquelas perguntas importava. Resoluta, disse a si mesma que Royce era sua maior prioridade. Ele estava vivo. Ela sentira sua presença. Com algum esforço, conseguiria encontrá-lo. Mas não obteria nenhum êxito se continuasse naquele palácio, dormindo em lençóis de seda. — Alexandros está no campo de treinamento — Kassandra informou ao entrar nos aposentos do irmão. Parecia descansada, sem nenhum sinal do estranho episódio do dia anterior. — Ele passará o dia todo se exercitando. Então, pensei em convidá-la para cavalgar. Você monta, não é mesmo? Eu soube que todas as inglesas montam, mas sentadas de lado. Não consigo me imaginar em cima de um cavalo nessa posição sem cair. Você poderia me mostrar como, mas não temos nenhuma sela adequada para tal. Consegue cavalgar sem esse tipo de sela? — Sim, consigo. A sela lateral é desconfortável, mas... — Que bom! Vou lhe mostrar meus lugares prediletos, pelo menos, os mais próximos ao palácio. Alexandros ficaria aborrecido se nos aventurássemos pela ilha. Podemos levar nosso almoço e fazer um piquenique. — Um piquenique? — Joanna repetiu, zonza. — Está bem, mas preciso falar com Alex... com o príncipe Alexandros. É urgente. Sida torceu o nariz, mas bastou um olhar severo de Joanna para a criada se retrair. — Tenho de conversar com o príncipe Alexandros — Joanna repetiu com mais firmeza e encarou Kassandra. — Entendo — a princesa murmurou. Após um breve momento, ela indicou a porta em arco. No mesmo instante, as duas jovens criadas se retiraram rapidamente, seguidas por Sida. — Vai me dizer o que está acontecendo? — indagou Kassandra. — Talvez eu possa ajudar. A tentação era grande, mas Joanna ainda estava insegura. Gostava da bela princesa e confiava nela. No entanto, o pouco que Alex lhe contara de Akora a fazia concluir que a situação era precária. Não sabia o quanto podia revelar. Kassandra percebeu o conflito de Joanna. Olhou para a cama e disse: — Tirei conclusões precipitadas, não? Mas creio que seja compreensível. Alexandros é um homem sagaz. Ele sabia que todos concluiriam o óbvio. — Caminhou até a janela e suspirou. — Ele contou a verdade a Atreus, suponho. — Não sei. Eu estava dormindo quando ele voltou ontem à noite. Tentei ficar acordada, mas... De súbito, Kassandra encarou Joanna. A bondosa princesa foi substituída por uma mulher séria e determinada. — Há um detalhe que preciso lhe explicar. Quando eu nasci, meus pais me batizaram de Adara, que significa "bela". É o tipo de nome que pais amorosos dão à filha. 2


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— Por que agora se chama Kassandra? — Porque, ainda criança, ficou evidente que eu possuía... um dom. — Kassandra? — A princesa de Tróia, uma figura trágica perdida entre as brumas de uma época sangrenta. — Você pode... ver o futuro? Parecia inacreditável, mas Joanna sabia que o mundo mostrava muito mais do que a maioria das pessoas podia enxergar. Ela crescera com essa verdade em Hawkforte. — Posso. O nome me foi dado como uma lembrança do que acontece quando as pessoas se recusam a reconhecer tal dom e não se atem à sabedoria que ele evoca. — Por que ninguém acreditou na verdadeira Kassandra quando ela previu que Tróia seria derrotada? — Exatamente. Após um longo silêncio, a princesa revelou: — Eu vi a queda de Akora. — Não! Kassandra correu até Joanna e se sentou com ela no banco sob a janela. — Escute. Nada está escrito. Nada! Exceto a verdade de que nosso Criador nos ama. Meus irmãos sabem disso e usam todo o nosso poder para mudar o futuro. Estão trabalhando arduamente para evitar o que vi. — Tem certeza de que vão conseguir? — Joanna perguntou com a voz rouca. — Tenho certeza de que com o alerta que recebemos, superaremos o que poderia ser e criaremos algo ainda melhor. — Rogo para que esteja certa. — Joanna ficou arrasada. Pelo pouco que havia visto de Akora, já apreciava sua beleza e serenidade singulares. Em um mundo regido pela violência e o tumulto, aquele lugar precisava ser protegido a qualquer custo. — Como você viu a queda de Akora? — Em decorrência de um enfraquecimento interno, o reino se tornará presa fácil para os conquistadores estrangeiros. É uma velha história e, de certa forma, irônica, pois Akora foi conquistada dessa maneira no passado. — O vulcão... — Alexandros lhe contou? Sim, o vulcão. Porém, naquela época, a natureza foi a responsável. Hoje será o homem. — Kassandra respirou fundo. — Lamento dizer, mas o que vi envolve soldados em uniformes vermelhos marchando sob uma bandeira vermelha, branca e azul, na qual há três cruzes sobrepostas. — O exército britânico — Joanna murmurou. — Com as cruzes de St. George, St. Andrew e St. Patrick. — O medo a invadiu. — Você viu os ingleses invadindo Akora? — Creio que sim. Sabe por que eles fariam isso? — Não sei ao certo, mas hoje vivemos um período turbulento na Inglaterra. O rei enlouqueceu, e seu filho regente tem um caráter que deixa muito a desejar. Estamos em guerra com a França há quase vinte anos. Napoleão deixou os ingleses apavorados, embora nem todos admitam. Há 2


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boatos de que alguns elementos do governo, ou aqueles que almejam governar, buscam novas conquistas de territórios estrangeiros para restaurar o orgulho e garantir o poder. Talvez seja por isso que Royce veio para cá... — Quem é Royce? Joanna então se deu conta de que revelara mais do que deveria. Mas não lamentava. O que a princesa lhe contara era tão alarmante que dispensava qualquer precaução. — É meu irmão. Ele saiu da Inglaterra para vir a Akora nove meses atrás. Royce trabalhava para o Ministério das Relações Exteriores, mas não creio que sua missão possuísse uma sanção oficial. Desconfio que ele estivesse trabalhando em segredo. De qualquer forma, Royce não voltou para casa, e estou morta de preocupação. — Por isso você veio para Akora? — Sim. Escutei muitas histórias sobre Akora. Portanto, sei como os xenos são tratados. Mas o fato de seu pai não ter sido morto me deu alguma esperança. Kassandra pareceu mergulhar em seus pensamentos, como se tivesse uma escolha difícil a fazer. — Acho que podemos adiar nosso passeio a cavalo — sugeriu. — Esta manhã, vou lhe mostrar Ilius. Irritada com a mudança abrupta de assunto, Joanna protestou: — Não creio que... — Por que não põe um dos vestidos que Sida trouxe para que possamos sair? — Kassandra perguntou em tom firme. Não era um pedido, na verdade. A filha da casa real decidira que o momento era propício para uma excursão por Ilius. Joanna tentou ser paciente. A jovem possuía bom senso e inteligência, o que a tornava uma aliada importante. Mesmo assim, Joanna relutou em aceitar o convite. Tomou um banho rápido, enfiou o primeiro vestido sobre a pilha de trajes que Sida lhe trouxera e tentou, em vão, dar um jeito em seus cabelos rebeldes. Quando voltou ao quarto, a princesa vasculhava as roupas à procura de um par de sandálias. — Você está linda! Joanna olhou para o vestido de seda verde que deixava seus braços expostos. — E muito confortável — comentou, enquanto calçava as sandálias. — Vamos? Quanto mais cedo fossem, mais cedo voltariam, e ela poderia procurar Alex. Nesse ínterim, pensaria no que dizer a ele. Elas usaram o corredor privativo para chegar mais depressa aos portões do palácio. O vasto pátio interno se encontrava muito mais movimentado do que no dia anterior. Pessoas caminhavam sozinhas, e outras, em grupo, dirigindo-se à ampla escadaria que dava acesso à entrada principal. — Quem é toda essa gente? — perguntou Joanna. — Alguns são nobres que aqui passam para ver e ser vistos, saber das

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últimas notícias, promover suas causas e observar tudo que o rei faz. Outros são mercadores que estão aqui pelos mesmos motivos. Há aqueles que assistem às reuniões do Conselho que, por lei, são abertas ao público. Há os que vão ao tribunal na ala esquerda do palácio. A Casa da Moeda também é lá e permanece aberta para qualquer um com metais preciosos para refinar. E os que buscam capital também se dirigem a esse órgão. Muitos acordos comerciais são feitos nas salas da Casa da Moeda. — Rindo, Kassandra concluiu: — Dizem que não há forasteiros em Akora porque, cedo ou tarde, todos acabam conhecendo o palácio. — O rei não se importa? — perguntou Joanna, ao imaginar que Prinny repudiaria ver uma de suas residências frequentada por pessoas comuns. — Atreus? Claro que não. Segundo nossas tradições, o palácio pertence ao povo, não ao soberano. Portanto, as pessoas se sentem livres para usá-lo como ponto de encontro. As alas privativas onde moramos são respeitadas, mas todos têm o direito de circular por onde quiserem. Por outro lado, a princesa podia sair do palácio sem seguir formalidades. Ninguém se aproximou delas, embora alguns as cumprimentassem, enquanto caminhavam pela rua que levava à cidade. Mais uma vez, Joanna ficou espantada com a limpeza, a ordem e a beleza de Akora. Em todos os cantos, ela via pessoas saudáveis que possuíam um ar de contentamento. No entanto, aquele cenário pacífico não aplacava a angústia que sentia desde que Kassandra revelara o que havia visto. — Aqui é o distrito têxtil — Kassandra informou quando adentraram uma rua repleta de bancas expondo tecidos de todas as cores do arco-íris. — Modistas e costureiras talentosas moram aqui. Nossos trajes são mais simples que seus modelos europeus, mas temos muito orgulho do corte de nossas roupas. — Fascinante — Joanna sussurrou, perguntando-se por quanto tempo suportaria o capricho da princesa. Não queria ser rude, mas tampouco tinha disposição para passear. Precisava encontrar Alex, contar-lhe sobre Royce e... — Jean-Paul, Marie, ici s 'il vous plaít. Vite, vite! Joanna se virou em direção à voz, que pertencia a uma mulher. Ela vestia uma túnica simples e adorável. Era mais baixa que Joanna e tinha cabelos castanhos, olhos brilhantes e rosto bronzeado. Naquele momento, porém, parecia agitada. Os objetos de sua atenção eram duas crianças, um menino e uma menina, que brincavam nos arredores. Assim que a ouviram chamar, os pequenos correram até ela. A mulher sorriu e beijou as crianças antes de notar que era observada. — Perdão, princesa — disse em akoreano. — Pedi às crianças que permanecessem em casa para não se sujarem antes de ir à escola, mas veja o que aprontaram. — O sotaque da mulher era totalmente francês. Joanna não deixou que Kassandra respondesse. — Vous êtes française, madame? Une française ici sur Akora? A mulher pareceu surpresa, mas não se intimidou. — J'étais française, mais maintenant je suis akoraine. — O que ela disse? — quis saber Kassandra. 2


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— Que ela era francesa, mas que agora é akoreana. Joanna virou-se para Kassandra. — Ouvi dizer que a Força Expedicionária francesa desapareceu nas águas de Akora vários anos atrás. Não foi mencionado que havia mulheres e crianças na tripulação. Além disso, foram dados como mortos porque a política de Akora assassina qualquer estrangeiro que ouse se aproximar desta costa. O que esta mulher faz aqui? — Olhe ao redor, Joanna — Kassandra sugeriu, amável. — Tente ver o que a realidade lhe mostra. Desnorteada, Joanna olhou para todas as direções. A princípio, nada viu que justificasse a sugestão da princesa. De repente, avistou um homem caminhando pela rua. Sua pele era escura como ébano. Ele conversava alegremente com um jovem, que, dada a semelhança, devia ser seu filho. Já do outro lado da rua, ela notou uma mulher de cabelos ruivos. E no parapeito de uma janela havia um homem loiro. Eles eram poucos entre os akoreanos morenos, mas, sem dúvida, compunham a população de Akora. — Além de montar, você também doma cavalos? — Kassandra perguntou. — Sim — respondeu Joanna, perplexa. — Domamos cavalos em Hawkforte. — Você não cruza animais de uma mesma raça, certo? Afinal, esse cruzamento enfraquece a linhagem. Causa doenças, abortos, todo tipo de problemas. — Entre cavalos e entres pessoas. Kassandra sorriu. — Por que, então, você imagina que permanecemos fortes e saudáveis por centenas de anos, se estivemos selados para o mundo? — Vocês não matam xenos. — Não. Esse é nosso grande segredo. Na verdade, não queremos que o mundo nos invada porque cuidamos e protegemos o que temos. Mas nenhum xenos é assassinado em Akora. Pelo contrário. Fazemos questão de garantirlhes conforto e segurança para que criem seus filhos. Nós, inclusive — ela sorriu para a francesa —, buscamos suas famílias para que todos possam viver juntos aqui. Marguerite pode lhe explicar melhor. Empolgada para descrever o que certamente fora o evento mais dramático de sua vida, a francesa assentiu. — Três anos atrás, homens invadiram nossa aldeia, levaram meu marido, Felix, e outros aldeões, dizendo que seria uma honra servir ao imperador. Fiquei arrasada, temendo nunca mais vê-lo. Trabalhei dia e noite em nossa fazenda e cuidei de meus filhos, sozinha. Então, fiquei sabendo que Felix havia morrido. Deus, sofri tanto que nem tenho palavras para descrever o que senti! Quinze dias depois, quando estranhos apareceram e me disseram que Felix estava vivo, não acreditei. Tinham uma carta de meu marido, na qual ele contava coisas que somente eu sabia. Portanto, acabei acreditando que os homens diziam a verdade. Felix me contava que estava em um lugar muito 2


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melhor e se sentia em paz. Dizia para eu acompanhar os estranhos. Fiquei com medo, mas foi o desespero que me fez seguir aqueles desconhecidos. Juntei os poucos trapos que possuíamos e fomos embora. — Eles os trouxeram para cá — Joanna concluiu. — Sim. No início, pensei que tivéssemos morrido. Felix sentiu a mesma coisa. Mas não foi nada disso. Aqui pudemos começar uma nova vida. — Com um sorriso, Marguerite apontou para a pequena casa e o estábulo à frente dela. — Sempre sonhei em confeccionar roupas lindas, mas nunca tive a chance. Agora eu não apenas as faço, como também as uso. Os olhos de Joanna ficaram marejados. A visão de homens, mulheres e crianças abandonando a pobreza e o desespero para serem transportados a um mundo de paz e beleza a emocionava sobremaneira. Contudo, deu-se conta de que Alex sabia de tudo aquilo e nada lhe dissera. Ele deixara que ela acreditasse na mentira sobre Akora. — Onde fica o campo de treinamento? — perguntou a Kassandra. — Cerca de um quilômetro naquela direção — respondeu a princesa e, prudente, afastou-se para que Joanna passasse.

Capítulo III

Alex a viu atravessando o campo coberto de vegetação selvagem. Ela estava a pé e com aqueles cabelos gloriosos esvoaçando ao vento. Sida havia se esmerado, já que Joanna usava um vestido verde que lhe caía muito bem. Observá-la teria sido um grande prazer, não fosse por dois fatores infelizes: ela adentrava um território reservado apenas aos homens e estava obviamente colérica. O príncipe de Akora dispensou o homem com o qual lutava e guardou sua espada. Uma manhã de exercícios e treinamentos havia apagado todos os resquícios dos meses que passara na Inglaterra. Sentia-se um homem novo, capaz de lidar com lady Joanna Hawkforte. Até notar que, por trás da raiva, ela parecia magoada. — Você sabia! — Joanna exclamou ao se aproximar. Ela falava alto e em inglês. Não esperou que Alex se manifestasse primeiro, tampouco se dirigiu a ele como kreon. Aquele comportamento inadequado para uma concubina faria seus homens se perguntar por que o príncipe perdia tempo com ela, se havia mulheres adoráveis em Akora. Um certo vigor era esperado em uma mulher, mas falta de decoro, jamais. Em silêncio, Alex a segurou pelo braço e a levou até sua tenda, que fora armada na extremidade do campo. Ela tentou se desvencilhar, mas ele não permitiu. 2


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— Se quiser fazer uma cena aqui, sinta-se à vontade — Alex ralhou. — Mas saiba que isso só complicará a situação. Joanna se conteve e entrou na tenda. Então, sem desviar os olhos de Alex, ela o acusou: — Vocês não matam xenos! Ele despejou água em um cálice e o ofereceu a Joanna, que o ignorou. Alex deu de ombros e sorveu o líquido com prazer. — Suponho que tenha conhecido Kassandra — ele afirmou, controlado. Joanna assentiu. Diante da beleza física e da masculinidade opressora do príncipe de Akora, ela encontrava dificuldade para se concentrar. — Kassandra me levou para um pequeno passeio em Ilius. A costureira francesa foi uma descoberta interessante. — Essa é minha irmã. Ela não revelaria o que deve ser mantido em segredo, mas apontaria a direção certa para que você descobrisse a verdade por si mesma. — Por que não me contou? — Joanna respirou fundo para se controlar, mas não conseguiu. — Deixou que eu acreditasse que Royce podia ter sido morto ao chegar aqui. Fez isso sabendo que não poderia ser verdade! O fato de ela se sentir traída o chocou. Aquela reação despertou fúria em Alex. Estava furioso consigo mesmo, com Joanna e com algo mais primitivo que vinha negando fazia já um bom tempo. — Acha que é a única a possuir deveres e obrigações? — ele explodiu. — Não sou um daqueles príncipes ingleses gordos e mimados! Sirvo a Akora. É meu dever e privilégio proteger minha terra... até a morte, se necessário for. Buscando controle, Alex agarrou o cálice de água. Joanna o observava, fascinada, enquanto ele lentamente esmagava o metal com a mão. — Seu irmão é inglês. Tem ideia do que isso significa para mim? Sim, ela tinha, infelizmente, uma clara ideia do que aquilo significava. — Kassandra acredita que os britânicos invadirão Akora — Joanna murmurou, pesarosa. — Minha irmã também lhe contou isso? Ela deve gostar muito de você. Mas não importa. Sim, Kassandra previu não somente a invasão dos ingleses, como também a conquista de Akora. Sabendo disso, você acredita que eu encorajaria seu irmão a vir, mesmo que o rei permitisse? — Mas Royce jamais faria qualquer coisa para prejudicar Akora! Ele é fascinado por este lugar desde menino. — Os homens procuram possuir o que lhes fascina. Somos levados a isso. É nossa natureza. Sua natureza. Por trás do treinamento, da disciplina, do autocontrole formidável, da dedicação e do dever, Alex era apenas um homem. Uma verdade que negava havia anos. Dez dias no mar... a descoberta de uma mulher alheia às restrições sociais... uma criatura travessa que lia Homero e se pendurava em janelas para espiar o mundo proibido... uma mulher que desafiara e, de alguma maneira, derrubara as defesas do guerreiro sem que ele percebesse...

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Dez dias intermináveis. E noites. Alex tentara. Pelos deuses, ele fizera um esforço enorme. Mas quando suas mãos a tocaram, ele a puxou para si, apesar de toda a disciplina militar. Os lábios eram macios, doces e excitantes. O sabor de Joanna o invadia. Queria tomar para si o que nela tanto o fascinava, a coragem, a beleza, a inteligência, uma certa rebeldia que se derretia em pura paixão. Por um instante, ela enrijeceu, como se quisesse rejeitá-lo. Mas logo relaxou, emitindo um gemido feminino de entrega. Aliviado, ele aprofundou o beijo. Os seios túrgidos tocavam seu peito de forma tentadora. Alex acariciou um deles sobre o tecido fino do vestido. Joanna estremeceu e agarrou os ombros largos. Então inclinou a cabeça para trás quando ele começou a beijar a curva do pescoço, enquanto a colava contra o próprio corpo. Ela exalava o aroma de mel e eucalipto, brisa marinha e feminilidade. Os cabelos sedosos acariciavam os braços de Alex. Não se tratava de uma concubina langorosa ou uma mulher sexualmente experiente. Havia apenas honestidade e alma. Tomado pelo desejo, beijou-a novamente. O mundo pareceu parar. Joanna o agarrou quando sentiu que a paixão sobrepujava os últimos resquícios da razão. Não se importava com o fato de estarem em uma tenda, rodeados de soldados em plena luz do dia. Ambos possuíam o poder de fazer o que quisessem com o próprio destino. A vida era tão precária... Podia desaparecer em um mar calmo, repentinamente engolido por uma tempestade brutal. O passado era memória, e o futuro, esperança. Nada parecia real, exceto aquele momento. Queria o príncipe em seu corpo e em seu coração. Desejava o calor que emanava de ambos com um desespero que a espantava. Joanna estremecia de paixão quando, de repente, a lembrança do desconhecido despontou em sua mente de forma precisa e cruel. A pedra que, um minuto atrás, estava fria e úmida! Como pudera esquecer, mesmo que por um minuto, o perigo que seu irmão corria e flertar com um homem que poderia muito bem ser considerado um inimigo? Que mulher baixa e covarde se tornara, a ponto de ser uma escrava da perfídia da paixão? — Não posso... — As palavras soaram fracas diante do esforço de se afastar do homem que, apesar de tudo, ainda a tentava. — Não podemos... — Alex murmurou ao mesmo tempo, e a fitou, assustado. Ele respirou fundo, ciente de que fora difícil se conter por causa da necessidade de tomá-la nos braços novamente. Que tipo de insanidade era aquela? Jamais se sentira tão suscetível a uma mulher. Nunca ousara se distrair no campo de treinamento, onde o dever exigia diligência restrita. Tampouco poderia fazê-lo em um momento tão periclitante, para que o homem mais leal ficasse tentado a duvidar de seu líder. Mesmo assim, ele chegara muito perto da ruína. Praguejando, Alex saiu da tenda. Com um único comando, mobilizou vários de seus homens. Minutos depois, subiu na biga que lhe fora trazida e 2


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estendeu a mão a Joanna. — Venha. Envergonhada diante da atenção que atraía, ela subiu na carruagem, ignorando a ajuda de Alex. Em seguida, os cavalos se puseram em movimento. Joanna ficou pasma ao notar quão levemente o veículo, desenhado para campos de batalha, deslocava-se, como se estivesse flutuando sobre o solo. Então, atinou para a realidade extraordinária na qual se encontrava. Estava em uma biga... Uma biga! Sendo transportada do campo de treinamento akoreano para o palácio real. Ela, Joanna Hawkforte, que sempre vivera uma vida comum, repleta de atividades rotineiras e satisfatórias, tal qual a legião de mulheres que a antecederam. Até agora. Insegura, tocou os lábios ainda inchados por causa do breve interlúdio amoroso. Estava atrás de Alex. Alexandros. Talvez fosse mais sensato enxergá-lo dessa forma. Alexandros, o príncipe de Akora. Os músculos dos braços e das costas se moviam, conforme ele manuseava as rédeas, e a pele morena cintilava sob o sol. A sensação se tocar aquela pele quente ainda permanecia nas mãos de Joanna. O gosto de Alex ainda jazia em sua boca. A necessidade... Oh, Deus, ela não podia pensar nisso! Assim que adentraram o pátio do palácio, um rapazola correu para pegar as rédeas que Alex lhe entregava. Joanna pressentia os olhares dos transeuntes. Rapidamente, precipitou-se à escadaria que dava acesso à ala privativa. Alex estava logo atrás dela. No topo da escada, Joanna, enfim, tomou coragem e se virou. Ele parecia... formidável. Alex era mais alto e possuía um físico soberbo. Mas havia mais: sua natureza, o hábito de comandar e a responsabilidade inerente à posição. Os olhos azuis a observavam intensamente. — Precisamos conversar — ela informou. Em silêncio, os dois se dirigiram aos aposentos do príncipe. Tão logo entraram no cômodo, Joanna se lembrou de que o tempo urgia. — Royce está vivo. A expressão severa de Alex suavizou. — Sei que é o que você mais deseja. — Não. Escute-me. Kassandra tem um dom... ou uma maldição. Houve outras mulheres em sua família com uma habilidade tão incomum? — Algumas, mas... — Em minha família também — Joanna o interrompeu. — Foram muitas mulheres com esse dom que deram início à nossa história em Hawkforte. Estamos, portanto, acostumados com isso. Ela respirou fundo para criar coragem. Tinha de fazê-lo pelo bem de Royce. — Posso apostar que em sua história familiar não houve registro de tal habilidade até setecentos anos atrás. Alex ficou calado por um longo tempo. 2


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— Por quê? O fato de ele não a ter corrigido significava que Joanna estava certa. — Porque foi nessa época, cerca de setecentos anos atrás, que os membros de minha linhagem familiar vieram para cá, e alguns deles ficaram. Depois de conhecer Kassandra, agora compreendo o que trouxeram consigo. — Esse dom... — Não aparece em todas as gerações, mas pertence sempre às mulheres, nunca aos homens. O dom surge quando há necessidade. Sou uma dessas mulheres, embora meu dom seja menor e mais simples que o de Kassandra. Joanna, então, calou-se e rezou para que Alex acreditasse nela. — Consigo encontrar objetos. Tudo começou quando eu era criança. Um brinquedo perdido, um gatinho dormindo na despensa, um chapéu esquecido em algum lugar. Então, certo dia, o filho do moleiro desapareceu. Eu tinha seis anos. Todos ficaram desesperados. A busca durou dois dias e duas noites. Eu o conhecia, pois costumávamos brincar juntos. Desejei tanto encontrá-lo que algo em mim... o alcançou. Não sei como explicar. Eu o senti. Ele estava com frio e apavorado sob a terra. O menino caíra dentro de um sumidouro que fora aberto a cerca de dois quilômetros de Hawkforte. Graças a Deus, ninguém achou que eu estivesse louca. O povo de Hawkforte conhecia esse dom e o aceitou em mim. Meus pais... — Joanna fez uma pausa, tomada pela emoção após tantos anos. — Meus pais foram maravilhosos. Meu pai me contou histórias que minha avó tinha lhe contado. Ele me ajudou a entender meu dom. Joanna juntou as mãos e encarou Alex. — Por favor, acredite em mim. Royce continua vivo, mas está aprisionado e... enfraquecendo. Ele precisa ser encontrado! Alex se manteve em silêncio. Sentia-se dividido entre o desejo de beijála com ardor e aceitar o que ela lhe dizia. Poderia acreditar em Joanna? Royce Hawkforte estaria mesmo vivo? — Joanna... ninguém o viu desembarcar em Akora. Agora você conhece nossa política em relação aos xenos. Se Royce tivesse posto os pés aqui, as autoridades teriam sido informadas na mesma hora. Além disso, um nobre inglês receberia hospedagem no palácio. Estivemos atentos a ele, desde que me confessou seu interesse de vir a Akora, mas Royce não chegou à nossa costa. Ele falou o mais gentilmente possível para não magoá-la. Porém, foi inevitável. Mesmo que Joanna possuísse aquele dom, algo que Alex estava preparado para acreditar, a probabilidade de ela estar certa era ínfima. — Tenho certeza de que ele está aqui, Alex. — Nós saberíamos... — Vocês deveriam saber. Não é a mesma coisa. — Ela franziu o cenho, pensativa. — Por que não sabem? Alex a fitou, fascinado. Joanna era inteligente e ele agora entendia o quão profundamente tal qualidade a moldava. — Royce está em Akora — ela repetiu —, e o rei não foi informado. 2


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Alguém ocultou tal informação, provavelmente a mesma pessoa que aprisionou meu irmão. Por quê? Para quê? Quem ousaria fazer isso? — O que a faz pensar... Joanna ergueu as mãos para calá-lo. — Não há tempo para isso. Por favor, seja franco comigo. Não foi somente a súplica que o convenceu. O desejo feroz de saber a verdade o tocou profundamente. — É uma época difícil para Akora... — Porque acredita que os britânicos invadirão as ilhas? — Em parte, sim... Alex precisava de um banho e de roupas limpas. Acima de tudo, necessitava de tempo para organizar os pensamentos e resolver como lidar com aquela mulher que se revelava muito mais do que ele havia esperado. — Fique aqui — ordenou. — Não vá a lugar nenhum, não faça nada. Entendeu? Mesmo a contragosto, ela concedeu. Satisfeito, Alex pegou algumas roupas no baú e desapareceu na sala de banho. Assim que a porta se fechou, Joanna se sentou na beirada da cama. Suas pernas estavam bambas, a cabeça latejava e havia um zumbido em seus ouvidos. Para completar, os seios estavam pesados, os mamilos, sensíveis, e a região entre as pernas se achava inegavelmente úmida. Ela podia ouvir o ruído da água, lavando aquele corpo de contornos perfeitos. Alex a ouvira, e sentia-se grata por isso. Ele não havia desconsiderado sua capacidade de encontrar o que estava perdido. Ao contrário, parecera aceitar a ideia. No entanto, quando ela mencionara que algo não estava como deveria estar... o príncipe, de repente, resolvera tomar banho. Gotas de água escorrendo pela pele morena... Oh, pelo amor de Deus! Não era mais uma menina inocente deslumbrada. Não havia motivos para se assustar com uma reação tão natural e humana! Joanna se levantou e foi até a janela. A visão de Akora transmitia paz e prosperidade. Parecia o paraíso. Onde estaria, então, a serpente? A água parou. Ela olhou para a porta. Alguns minutos se passaram. Joanna fechou os olhos e imaginou Hawkforte. Quantas vezes se sentara sob o sol de verão e apreciara as pequenas maravilhas da natureza? — Joanna? Alex a fitava com preocupação. Ela respirou fundo e tentou sorrir. — Só estava pensando. Os cabelos molhados caindo sobre os ombros largos enfatizavam a beleza masculina. Alex usava uma túnica de linho cuja barra terminava acima dos joelhos. Na mão direita, segurava sua espada dourada. — Uma parte de mim gostaria que você não fizesse isso — ele comentou. — Isso o quê? 2


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— Pensar. — Alex sorriu. — Eu disse somente "uma parte de mim". Sei que meu desejo é tolo. — Você não é tolo. — Pois foi como me senti, mas não importa. Está com fome? — Estou. Mas devo informá-lo de que você pretendia me contar por que Akora enfrenta dificuldades. Ele a fitou de forma tão penetrante que Joanna teve a sensação de ser tocada. — Pretendia? — Se mudou de ideia, resta-me apenas tirar minhas próprias conclusões. Alex a desafiava com o silêncio, Joanna ponderou. Devia ser um hábito akoreano. Kassandra não se dispusera a revelar como os xenos eram recebidos em Akora; preferira mostrar-lhe a realidade. Talvez Alex sentisse a mesma relutância. — Quando sua irmã me contou o que viu, ela mencionou que Akora enfraqueceria internamente por causa da ação do homem, não da natureza. Ansiosa, notou que Alex continuava calado e com a expressão indecifrável. — Tudo aqui inspira paz. — Ela indicou a janela. — Nesse ínterim, o mundo para além de Akora está em turbulência. Na Inglaterra, as fábricas parecem nascer em todos os lugares. Todo dia surge uma inovação. Nada parece conter a mudança que nos assola. — Nada conterá essa mudança — Alex alegou, enfim. — Os nomes Samuel Slater e William Cockerill significam algo para você? — Cockerill, sim. Ele causou um escândalo anos atrás quando contrabandeou para a França projetos de maquinários que pertenciam à Inglaterra. Lembro-me de Royce comentar o fato. — Slater fez o mesmo, mas seu destino foi a América. Esses homens provaram que é impossível construir limites ao redor do conhecimento. Essa é uma lição que Akora precisa assimilar, e rápido. No passado, bastava que mantivéssemos nossas defesas fortalecidas, adquiríssemos armamentos modernos e nos preparássemos para usá-los, mas hoje nada disso é suficiente. O poder virá tanto de uma engrenagem quanto de uma pistola. Se continuarmos como estamos agora, será apenas uma questão de tempo antes que a maré da mudança nos dissemine. — Cheguei a ver partes desse novo industrialismo na Inglaterra. As minas destroem os campos, e as fábricas brutalizam os trabalhadores. É um destino que não desejo para ninguém. — Nem eu. Temos de encontrar um jeito de usar esse novo tipo de poder à nossa maneira e em nosso benefício. Meu irmão e eu acreditamos que seja possível, mas... — Ele hesitou. — Mas há aqueles em Akora que se opõem à mudança. Eles a veem como uma ameaça à posição que ocupam e estão determinados a impedi-la. — Apesar dos desejos do rei? Alex assentiu. Havia tomado uma decisão, enquanto desejava que o calor da paixão pudesse ser dissipado com o suor do treinamento. Joanna 2


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Hawkforte era diferente de todas as mulheres que ele conhecera. Seria tolice não reconhecer tal realidade... e usá-la. — Quando o rei toma uma decisão, qualquer oposição deve ceder — ele explicou. — Mas há membros do Conselho cuja sede pelo poder sobrepuja a honra. Alex lhe dizia coisas que nenhum xenos jamais ouvira, Joanna concluiu. — Quantos membros? São suficientes para fazer a diferença? — Possivelmente, três membros entre seis. Seus nomes são Deilos, Troizus e Mellinos. Além da Casa de Atreides em si, eles representam as famílias mais ricas e poderosas de Akora. — Ainda assim, são apenas três. Podem realmente significar um perigo real para Akora? — Provavelmente, não. Mas há outro fator. No último ano, um grupo se formou sob uma exigência muito maior que a mudança que o rei contempla. O líder desse grupo chegou a ponto de sugerir uma revolução em Akora, como as que ocorreram na América e na França. Ainda assim, não temos como avaliar o grau de influência desse grupo sobre o povo, mas o número de integrantes parece aumentar. — Então, seu irmão está entre os reacionários que não admitem mudanças e os rebeldes que querem disseminar as mudanças? Por isso Kassandra visualizara o enfraquecimento interno de Akora. A situação era tão grave que nenhum país gostaria de enfrentá-la. — Exatamente, mas Atreus é um homem valente e um líder sábio. Não duvido que ele possa garantir que Akora supere esse período de dificuldade com segurança. Pretendo fazer tudo que estiver a meu alcance para ajudá-lo. — Também pretendo fazer tudo que estiver a meu alcance para encontrar Royce. Durante um longo momento, eles apenas se entreolharam. Alex via uma mulher de coragem e honra, que, além de atraí-lo, conquistava sua admiração. Em outras circunstâncias, não hesitaria em clamar o direito de possuí-la e protegê-la. Joanna, por sua vez, via um homem que parecia ter saído de uma lenda para entrar em seus sonhos. Se o mundo fosse diferente, seria fácil esquecer tudo e dar vazão ao desejo que Alex lhe despertava. Mas o mundo era duramente real, e o dever, um senhor implacável. — Sugiro que cooperemos — disse Alex. Apesar dos anseios de seu coração, colocaria o raro dom de Joanna e o desespero para encontrar o irmão a serviço de Akora. Que preço teria de pagar por isso, cabia somente a ele saber. — Excelente ideia — Joanna replicou, ignorando o protesto de seu coração. Por mais que compreendesse a necessidade de proteger Akora, Royce vinha em primeiro lugar. Faria qualquer coisa, qualquer acordo, para encontrar o irmão. Alex sorriu e, gentilmente, acariciou o rosto dela. Joanna tentou disfarçar o estremecimento que a percorreu. Para conseguir o que queria, tinha, acima 2


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de tudo, de negar o desejo que a atraía àquele príncipe. Uma vez tomada a decisão, Alex deveria nela se afirmar. No entanto, não se livrara do risco de sucumbir à tentação que Joanna representava. Como recurso, recuou um passo e focou a atenção em outro ponto do quarto a fim de evitar fitá-la. — Consegue obter uma imagem mais nítida de onde Royce pode estar? — Posso tentar. — Joanna ainda sentia a carícia de Alex em seu rosto. O prazer a percorria, leve e tentador. — Preciso me concentrar em um lugar sossegado e silencioso. — Esperava que ele entendesse a mensagem e a deixasse em paz para poder se recompor. — Há uma câmara no palácio — disse Alex. — Às vezes, Kassandra a utiliza quando busca visões do futuro. Ela a acha útil. Talvez você também ache. A curiosidade e a vontade de fazer qualquer coisa para evocar seu dom venceram. A localização do filho do moleiro surgira de forma simples quando ela era ainda uma criança e, desde então, nenhuma visão tão significativa fora evocada. Agora precisava se preparar para empreender um esforço de uma vida inteira. Podia encontrar jornais e fitas métricas, mas, em se tratando de seu irmão, a insegurança ameaçava cegá-la. — Eu gostaria de conhecer essa câmara. Alex pegou o manto azul que Sida trouxera com a pilha de roupas e o colocou sobre os ombros de Joanna. — Por aqui. — Depois de puxar a cortina da porta em arco, esperou que ela passasse. Joanna segurou a gola do manto com o intuito de se proteger. Claro, era uma noção tola, pois se sentia mais exposta do que nunca. As janelas nas paredes de pedra do corredor propiciavam iluminação suficiente. A passagem dava acesso a uma outra ala do palácio. Ao final, parecia haver uma entrada para outro apartamento. Entre esse ponto e os aposentos de Alex, o corredor se estreitava e terminava em uma escadaria curva. Eles desceram até chegar a um pequeno patamar entre os degraus, onde Alex parou e indicou uma porta de madeira. — Estamos no nível do solo. Atrás desta porta há um pequeno caminho que leva à cidade. Ele pegou uma lamparina pendurada à parede, acendeu-a e continuou a descer. Joanna o seguiu, animada. — Onde estamos? — indagou após alguns momentos. — Perto das cavernas sob o palácio. Ela sentiu um arrepio. Havia cavernas nas proximidades de Hawkforte. Joanna e Royce não tinham permissão para conhecê-las, o que, obviamente, os incitara à aventura. Mas foram espertos o bastante para não penetrarem nas profundezas da caverna, permitindo-se apenas o deleite satisfatório do terror misterioso que as crianças tanto adoravam. Aquela caverna akoreana era diferente. Eles desciam cada vez mais para debaixo da terra. O palácio agora parecia muito longe. Não se ouvia som algum, exceto seus próprios passos sobre o piso de pedra. Quando nem isso 2


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ela pôde escutar mais, sentiu a garganta se contrair. Pisavam sobre a terra fria e úmida dos confins do solo. Sentia a umidade através do couro fino das sandálias à medida que submergiam na escuridão. — Não creio que... — Aqui. — Alex se abaixou para passar por uma abertura estreita na parede da caverna. Joanna o seguiu só porque não queria ficar sozinha na escuridão total. Adentraram uma câmara, cujas dimensões se perdiam em meio às sombras. Os odores no ar se assemelhavam às fontes minerais que ela conhecera em Bath cinco anos antes. Alex acendeu cada uma das lamparinas penduradas às paredes. Quando a câmara se iluminou, Joanna quase engasgou. O espaço era do tamanho de uma catedral, com um teto lapidado por obra da natureza. No alto, havia cones finos de cristal com tonalidades brancas, rosas e verdes, como se fossem candelabros fantásticos. Outros cones semelhantes emergiam do chão, parecendo formar uma trilha até a saliência mais profunda da câmara. Ciente de que suas pernas tremiam, Joanna se aproximou da saliência. Um cristal enorme se elevava da rocha. Sob a luz das lamparinas, a tonalidade vermelha pulsava como se fosse o coração da Terra. — O que é isso? — ela indagou em voz baixa. Parecia-lhe um sacrilégio elevar a voz naquele lugar. — É um rubi. — Um rubi? — Joanna o encarou, pasma. — É grande demais. Se fosse mesmo um rubi, seria... — O maior do mundo? Sim, é provável. Outros, menores que esse, foram encontrados nesta caverna. Em geral, extraímos diamantes. — Ele a fitou e quase riu. — Está chocada? Como acha que pagamos nossas aventuras no mundo exterior e nosso sustento? — Eu não... nunca parei para pensar nisso... De repente, Joanna atinou para as implicações do que acabava de saber. Akora não representava apenas um local estratégico para adentrar o Mediterrâneo; era também uma terra de riquezas que qualquer homem chegaria ao extremo para possuir. E agora estava ameaçada por um conflito interno. Se tais informações chegassem à Inglaterra, a invasão que Alex pretendia impedir, sem dúvida, aconteceria. Por que ele lhe contara tantos segredos? Realmente confiava nela? Por mais que desejasse acreditar nisso, uma outra possibilidade, menos aprazível, a assombrou. Talvez Alex não tivesse intenção de deixá-la sair de Akora. Você ficará aqui por um longo tempo. Não iria pensar nisso. Afinal, as previsões de Kassandra eram uma versão de um futuro possível. Nada estava escrito. Exceto o fato de que ela tinha de encontrar Royce. — Kassandra se concentra no rubi — Alex contou. O rosto de Joanna sob o capuz do manto estava sério e pálido. Alguns cachos castanhos emolduravam seu rosto. Os lábios pareciam macios. Ele se lembrou do sabor daquela boca e conteve o desejo. Por que lhe contara sobre 2


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os diamantes? O rubi, em geral, ajudava Kassandra, mas os diamantes... Sentiu-se um garoto gabola e exibido. — Que lugar é este? — Foi usado como templo há muitos e muitos anos. As pessoas que sobreviveram ao vulcão se esconderam aqui. — Ainda é usado para rituais? — Normalmente, não. Mas quando um novo rei é escolhido, sua consagração ocorre aqui. Uma dúzia de perguntas invadiu a mente de Joanna, mas ela não as verbalizou, pois temia que Alex as respondesse e ela questionasse o porquê de tanta solicitude. Melhor seria pensar em sua necessidade imediata. Incerta, olhou para o rubi. Era tão grande, tão lindo, que parecia fantástico. Alex dissera que a pedra preciosa ajudava Kassandra, mas como? Joanna considerava seu dom ínfimo, se comparado ao da princesa. Mas havia encontrado o filho do moleiro, salvando-o da morte. Não importava a época em que ela sentira a fúria de uma tempestade, enquanto, desesperada, procurara os pais que haviam partido. Não importava. Mas, se fosse sincera consigo mesma, admitiria que sentira o roçar de... algo. Gentil, terno, repleto de dor e alegria. Em raras ocasiões, Joanna se permitia pensar nisso. Por favor, Deus, não permita que eu encontre um sofrimento semelhante quando em busca de Royce. O rubi devia estar frio. Se o tocasse, não sentiria o calor do fogo que o formara. Aproximando-se mais, contemplou o coração da gema. Alex a observava de longe. Felizmente, Joanna não pedira para ficar só, pois ele não concederia tal privilégio. Tampouco pretendia interferir. Precisava de espaço para pensar em seu autocontrole patético. Naquele instante, a expressão de Joanna quase o fez gemer. Queria tomá-la nos braços e afugentar qualquer coisa que pudesse assustá-la ou entristecê-la. Sim, era tudo o que queria. A súbita lembrança da mulher fogosa, de lábios tentadores, nada significava. A vontade de possuí-la naquele local sagrado nada representava. Com os punhos fechados, virou-se e esquadrinhou a caverna. Sua mãe lhe apresentara àquele lugar quando menino. Ela lhe contara gentilmente a história de seu povo que encontrara a caverna. Suas narrativas davam vida às imagens de homens e mulheres reunidos para celebrar as bênçãos da Mãe Natureza, proteger-se de sua fúria e lutar pela vida. Alex vira tudo isso através dos olhos da mãe e sentira naquele momento o que a presença dos guerreiros realmente significava para Akora. Entendera, sobretudo, por que as sacerdotisas, tomadas pelo que parecia ser um golpe do destino, foram subjugadas pelo conquistador. Em seguida, uma lei primordial fora decretada: os guerreiros lideravam, as mulheres serviam. Porém, os séculos e a força interior das mulheres forjaram uma transformação. E mais mudanças estavam por vir. O sucesso dependeria da confiança entre homens e 2


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mulheres, do respeito mútuo e da disposição de trabalharem juntos pela terra que tanto amavam. Tal qual ele e Joanna fariam. Ela era uma xenos. Alex se permitia usar a habilidade de Joanna porque sabia ser o certo a fazer. Ela parecia frágil enquanto observava o rubi. Surpreso por descobrir que a fitava novamente, tentou desviar o olhar, mas desistiu, já que era impossível. O capuz havia caído, revelando os cabelos gloriosos. Joanna se mostrava resoluta, livre e feminina. As sacerdotisas do passado teriam sido assim? Ainda eram, quando se reuniam para rituais femininos? Kassandra devia saber, poderia perguntar-lhe. Também poderia ter pedido à irmã que acompanhasse Joanna à caverna. Não o fizera, porque Joanna era sua... responsabilidade. Ele a tinha trazido a Akora. Cuidaria dela sozinho. E, nesse ínterim, esperaria pela visão. Joanna fechou os olhos em busca de calma, mas só encontrou medo. Não havia nada além do imenso rubi, da parede rochosa que o sustentava e da frustração. Obrigou-se a respirar lenta e profundamente. A paz que tanto almejava permanecia fora de seu alcance. Quanto mais lutava para encontrála, mais elusiva se tornava. Olhou fixamente para o rubi, até sentir a cabeça latejar. Quando tornou a fechar os olhos, enxergou a forma da pedra em tom esverdeado. Lágrimas começaram a surgir. Enxugou-as, impaciente, e redobrou os esforços. A certa altura, perdeu a noção do tempo. Existia somente a busca desesperada em meio às forças opostas que pareciam drenar sua energia. Os músculos do pescoço e dos ombros enrijeceram. A dor dominava seu corpo, e ainda assim não conseguia nenhum contato. Royce estava em algum lugar naquelas ilhas, e o rubi parecia ser a única esperança de encontrá-lo. Não podia desistir. A umidade da caverna tornava sua pele pegajosa. Começou a sentir náuseas. Amparou-se na pedra para se sustentar quando as lágrimas voltaram a verter. — Não consigo... Alex a segurou por trás e praguejou em voz baixa. Havia esperado tempo demais, enquanto a observava se digladiar com o próprio dom. Tinha de usá-la de qualquer maneira. Joanna representava o melhor instrumento à mão para descobrir o paradeiro dos traidores de Atreides e Akora. Mas, no final, não pôde suportar o que via. Fraqueza, covardia... não importava. Ele só tinha olhos para Joanna, que tremia em seus braços. — Tudo bem — murmurou, sincero. — Você fez o que podia. — Não! Solte-me! Preciso... — O quê? — Ele a encarou. — Exaurir-se? Ficar doente? Você está quase lá. Que bem faria a Royce? — Alex respirou fundo. — Foi um erro trazê-la aqui. — Kassandra usa o rubi! — Você não é Kassandra, e seu dom é diferente do dela. Talvez haja uma outra maneira de evocá-lo. Joanna o fitou. 2


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— Não sou menos que ela. — Por trás daquelas palavras havia medo e uma súplica: não deixe de acreditar em mim! Confuso, Alex sacudiu a cabeça. — O que quer dizer com "menos que ela"? Você não é ela, ela não é você. Vamos encontrar outro jeito. — Não há tempo. — Tomada pela emoção, Joanna o abraçou e caiu em prantos. Agoniado, Alex a apertou contra si, enquanto tentava desesperadamente confortá-la. Não suportava vê-la sofrer daquele jeito. Aos poucos, o choro cedeu. Ela o fitou. Os olhos estavam vermelhos e inchados, a voz soava rouca e fraca. — Royce é minha única família. No passado, houve vários Hawkforte, mas o número de membros da família parece ter diminuído. Tenho primos distantes na América. Eles foram para lá há décadas. Com carinho, Alex acariciou os cabelos sedosos, grato por ela estar mais calma. — A tempo de se juntarem aos rebeldes? — Oh, sim. Suponho que ainda sejam rebeldes, porque desconfiam da Grã-Bretanha e nos acusam de tramar para que retornem. Mas isso não importa. Ainda somos uma família, apesar da distância. — A distância conta pouco. — Alex hesitou, ciente do temor de revelar algo pessoal. — Meus pais também moram na América. A estratégia funcionou; Joanna ficou intrigada. — Na América? Por quê? — Pelo mesmo motivo que me levou à Grã-Bretanha. Quando ela o fitou novamente, Alex sentiu um alivio profundo, pois a mulher determinada que ele conhecia voltava a brilhar em todo o seu esplendor. — Para obter informações? — Joanna perguntou. — E adquirir o que lhes parecer interessante. Minha mãe adora isso. Como Kassandra, ela sempre quis viajar. — E seu pai? Ele não prefere voltar à Inglaterra? — Não creio. Ele foi dado como morto pelos ingleses. — Ainda conversando, Alex a conduziu para a entrada da caverna. — Meu pai adora a América. Disse que o único lugar, além de Akora, onde se deixaria levar pelas ondas é Boston. Para sua surpresa, Joanna riu. Era impressionante como as coisas podiam ser engraçadas em determinadas circunstâncias. Sabia o que Alex estava fazendo, mas não tinha forças para mais nada além de um ressentimento mudo. Havia falhado, e a nuvem do desespero ainda pairava sobre ela. — Você vai descansar — ele avisou, quando saíram da caverna. Assim que pisou no primeiro degrau da escadaria que levava aos aposentos de Alex, Joanna sentiu o mundo girar. — Ponha-me no chão. — O pedido soou como um murmúrio. 2


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Envergonhada diante de mais uma humilhação, ela cerrou os lábios, determinada a não emitir mais nenhum som. Alex subiu os degraus com extrema facilidade e leveza. Ele não deveria ser capaz de carregá-la sem nenhum esforço. O fato de que o príncipe era forte a esse ponto provocou uma onda de estremecimento em Joanna. — Está com frio? — ele indagou. Ela meneou a cabeça e continuou a contar os degraus. Havia cinquenta e seis. Joanna se concentrou na informação, como se fosse algo muito importante a assimilar. Chegaram aos aposentos do príncipe. Através da janela, ela pôde ver que o sol começava a se pôr atrás das montanhas. Mais um dia terminava, outra noite se anunciava. — Preciso tentar novamente. — Sim, mas não agora. Precisa descansar e se alimentar. Alex a acomodou na cama e, em seguida, afastou-se para tocar o gongo. — Sida providenciará o que for necessário para o seu conforto. Ele não a olhava. Não podia constatar mais uma vez a palidez do rosto e a fragilidade da alma. Joanna estava muito próxima; bastaria atravessar o quarto e deitá-la na cama. Estava perdida e assustada. Se a persuadisse, ela se entregaria. A disciplina militar foi como um balde de água fria no desejo ardente. Sem mais palavras, Alex se retirou. Sida a chamou duas vezes antes que ela ouvisse. — Senhorita? — A criada estava em pé ao lado da cama e seu semblante transmitia preocupação. Lentamente, Joanna atravessou a névoa de confusão e medo para fitar a mulher. Não se lembrava de ter visto Sida entrar. — O que foi? — Sente-se bem, senhorita? Não, claro que não. Mas admitir tal estado somente pioraria as coisas. — Estou bem. Sinto-me um pouco cansada. Mulridge teria torcido o nariz diante de uma mentira tão transparente. Sida apenas deu de ombros. — Deseja um banho quente? — Sem esperar a resposta, a criada a ajudou a se levantar. — Vou pedir que lhe tragam comida. A senhorita teve uma longa jornada. É bom repousar. — Pelo jeito, é só o que eu faço — resmungou Joanna. A água quente ajudou a aliviar a dor na cabeça e nos músculos, mas saiu do chuveiro ainda mais cansada. Depois de vestir uma túnica branca, ela se sentou, conforme Sida a orientou. A refeição estava deliciosa, como sempre. Joanna provou uma nova iguaria, mas não chegou a se alimentar muito por causa da fraqueza. Quando se levantou da mesa, o céu atrás das montanhas já estava avermelhado. Em breve, anoiteceria.

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O palácio silenciava. O sofrimento a consumia. Sentiu algumas lágrimas ao piscar, furiosa consigo mesma por ser tão fraca. Permanecia sentada sem fazer nada desde que deixara a Inglaterra. Fracassara em sua única tentativa. E agora? Deveria se deitar naquela cama convidativa para repousar o corpo dolorido? Conseguiria dormir? Seu espírito se rebelava. Antes que pudesse reconsiderar, pegou o manto azul e se retirou do quarto. Ainda havia claridade suficiente para iluminar o trajeto pelo corredor privativo até a porta que Alex apontara. Joanna a abriu devagar e, sentindo o calor da noite, saiu. A lua estava alta, permitindo que ela enxergasse o caminho que levava à cidade. Em vez de segui-lo, foi em direção ao pátio do palácio. Aquela hora não havia quase ninguém. Vários jovens varriam os traços do dia agitado. Pararam quando ela passou, mas nada disseram. Joanna caminhou sem saber para onde ia. Queria apenas fazer alguma coisa, qualquer coisa. Havia visto muito pouco das alas públicas do palácio. Como não parecesse existir nenhuma proibição, ela subiu a escadaria principal. No topo, colunas imensas pintadas de vermelho emolduravam duas grandes portas que, abertas, revelavam uma espaçosa câmara. Com certa incerteza, ela seguiu em frente, sem saber o que encontraria ou se podia entrar naquele lugar. Mas, como ninguém a impedisse, cedeu à curiosidade e olhou ao redor. As ruínas que vira na Grécia não se comparavam àquela realidade de Akora. Sem dúvida, tratava-se de um auditório capaz de abrigar milhares de pessoas. Por mais impressionante que fosse, no entanto, não havia nada que simbolizasse poder, riqueza ou militarismo. O espaço, na verdade, convidava as pessoas a relaxar. O luar iluminava a fonte de água cristalina pintada no teto, mas foram as figuras nas paredes que chamaram a atenção de Joanna. Caminhando devagar, ela examinou os afrescos. Embora não compreendesse as imagens, elas a faziam lembrar-se dos costumes interioranos ainda preservados em locais como Hawkforte. As primeiras sementes do ano eram plantadas ao som de orações, e as últimas espigas de milho viravam bonecos que eram pendurados nas árvores mais altas. Contudo, havia mais. Joanna viu homens, que pareciam padres, levando as pessoas a rezar e, mais impressionante ainda, mulheres desempenhado as mesmas tarefas. Jamais vira uma mulher conduzindo um serviço religioso. Que estranho encontrar um retrato como aquele em uma terra onde "os guerreiros governavam, as mulheres serviam". Intrigada, ela se postou atrás de uma das várias colunas que sustentavam o teto para melhor apreciar o mural. Ainda estudava os desenhos quando vozes a interromperam. Dois homens conversavam; um parecia irritar o outro com uma insistência inconveniente. — Não podemos esperar mais. Os Atreides se fortalecem a cada dia. Em breve, esmagarão quem ousar se opor a eles. 2


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O outro homem falou baixo demais, mas Joanna percebeu que ele rejeitava a colocação do primeiro. — Como pode ser tão cego? Sabe muito bem que tipo de carga Alexandros trouxe de sua última viagem. Acha mesmo que aqueles canhões servem apenas para nos proteger dos xenos? Acredita em um homem que é metade xenos? Ao ouvir o nome de Alex, Joanna se escondeu atrás da coluna e ousou espiar os dois homens. O mais alto também parecia ser mais velho. Os cabelos grisalhos e as marcas na pele indicavam uma idade avançada. — Eu não... é impossível dizer, mas... O mais jovem sacudiu a cabeça, enfático. Possuía um corpo franzino e tenso, como se estivesse pronto para a ação. — Não me venha com preâmbulos. Estamos em uma encruzilhada. Se não agirmos agora, perderemos o que mais amamos. — Também estou preocupado, Deilos — disse o mais velho, parecendo cansado. — Mas ações precipitadas não nos levarão a nada. Aconselho precaução e... — Precaução! — O desdém do mais novo era evidente. Com um esforço visível para se controlar, ele disse: — Perdoe-me, Troizus. Estou tão envolvido nesse problema que para mim é difícil entender a hesitação dos outros. No entanto, respeito seu ponto de vista. Não, Joanna suspeitava, ele não respeitava. A simples sabedoria rural lhe dizia que aquele gesto demonstrava uma pretensa sinceridade. A arrogância, juntamente com uma explícita impaciência, governava aquele homem. Conversaram um pouco mais, mas falaram muito baixo, o que a impediu de escutá-los. Joanna os observou até que se dirigiram à saída e tomaram caminhos diferentes. Nesse momento, parou para considerar o que havia escutado: Troizus e Deilos, dois dos conselheiros, que, segundo Alex, opunham-se ao rei, tramavam contra as decisões do líder de Akora. Um preferia cautela, e o outro exigia ação imediata. Muito provavelmente, o mais novo, Deilos, seria favorecido, já que não titubeava ao expor suas ideias. Ademais, em sua arrogância e impaciência, ele certamente agiria por conta própria. Ansiosa, Joanna retornou aos aposentos de Alex. Procurou-o por cada cômodo, mas não o encontrou. Frustrada, parou diante da janela e contemplou a cidade sob o luar. Onde ele poderia estar? Na noite anterior, Alex voltara tão tarde que Joanna nem sequer acordara. Dessa vez, não conseguiria esperar horas e correr o risco de cair no sono antes de lhe contar o que havia descoberto. Deilos planejava alguma coisa, e ela duvidava que a cautela de Troizus pudesse detê-lo. Olhou para a porta em arco e considerou procurar Kassandra. Talvez a princesa conhecesse o paradeiro de Alex, mas também havia a possibilidade de ela desconhecer a oposição de Deilos e dos outros conselheiros. Joanna não queria para si a responsabilidade de revelar a realidade política de Akora a Kassandra. 2


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Havia outra opção? Sim. Tentara desesperadamente encontrar Royce e fracassara. Por que então acreditava ser capaz de localizar Alex? Embora o sentisse dentro de si, como se ele a houvesse marcado com seus beijos ardentes, nada disso lhe garantiria êxito. Ele estava próximo... em algum lugar perto do palácio, mas a necessidade de encontrá-lo não se comparava à urgência que sentia pelo irmão. Mesmo assim... Em uma região distante da mente, uma imagem surgiu. Algo brilhava intensamente na escuridão e fluía... molhado... Era um tipo de água que ela nunca vira. Uma luz parecia irradiar de dentro das correntes de sua mente. Como sua imaginação conseguia conjurar tal visão? Jamais testemunhara algo tão inusitado, mas podia senti-lo. Sentia o frescor da água brilhante respingar nas mãos, transformando sua pele em luz. Sua pele? Ou a de Alex? Joanna teve a sensação de se fundir ao corpo de Alex. De repente, ele olhou para trás, buscando na escuridão algo que pensara ter visto ou ouvido. Joanna caiu de joelhos, sôfrega. Agarrou-se aos lençóis da cama, enquanto ondas de choque a sufocavam. Contra todas as expectativas, ela encontrara Alex. Somente seu desconhecimento de Ilius a impedia de saber exatamente onde ele estava. Como conseguira encontrar um homem que era praticamente um estranho, e não conseguia localizar o próprio irmão? As perguntas continuaram a assombrá-la. Mas agora não tinha tempo para maiores reflexões. Levantou-se e tocou o gongo. Sida apareceu segundos depois. Assim que viu Joanna, correu até ela, consternada. — O que houve, senhorita? Parece doente... — Estou bem, Sida. Só quero que me diga se, perto daqui, existe um lugar onde a água brilha como se uma luz nascesse dentro dela. A mulher a encarou, atordoada. — Não entendi, senhorita. — Sei que parece loucura, mas conhece algum lugar como esse? A água se assemelha a prata líquida — Joanna relatou, já que a imagem permanecia viva em sua mente. — Mas é bem mais líquida, e tem um tom esverdeado, como se houvesse algo vivo em suas profundezas. — Refere-se ao Poço dos Suspiros? Se quiser conhecê-lo, o príncipe Alexandros... — O Poço dos Suspiros? — O que ela vira existia, era real! — Como chego a esse lugar? — Bem, é difícil, ainda mais à noite. Há uma saída nesta ala do palácio... — Uma saída que leva à cidade? — Sim, mas precisa desviar para a esquerda antes de chegar à cidade e descer em direção à praia. O caminho é rochoso e pode ser arriscado à noite. Por favor, espere que o príncipe Alexandros a leve. — Ele está lá agora — Joanna informou. — Preciso vê-lo. 2


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— Mas o príncipe não me disse nada — argumentou Sida. — Mesmo assim, eu preciso ir. A lua já está bem alta. Encontrarei o caminho. Antes que Sida tentasse dissuadi-la, Joanna se precipitou para a porta. Desceu correndo a escadaria de pedra e saiu do palácio. Dessa vez, seguiu a trilha que levava à cidade. A luz do luar estava tão intensa que poderia ler um livro sob aquela iluminação. Ou arar a terra, como fizera tantas vezes em Hawkforte quando a lua a presenteara com seu esplendor. Antes de o caminho enveredar para a cidade, Joanna notou uma bifurcação à esquerda. Atenta, seguiu aquela direção. Sida tinha razão; o trajeto era difícil. Parou várias vezes para escutar as ondas quebrando na praia. A cada passo, os pedregulhos no chão rolavam em direção ao mar. O oceano era vasto e tranquilo. O ar recendia a jasmim. Joanna tinha a impressão de escutar o som distante de flautas. Mas o som parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum. Ela prosseguiu até, finalmente, divisar a trilha que terminava na praia. Deteve-se por um momento para ouvir o som das ondas. Continuou mais um pouco e, ao subir uma pequena elevação, avistou o que poderia ser o Poço dos Suspiros. Era exatamente como o vira; a água emanava uma luz interior. Como se a lua tivesse se afogado, pensou e tentou ignorar o arrepio que o pensamento evocara. Ao lado do poço, estava Alex. Mesmo oculto nas sombras, Joanna seria capaz de reconhecê-lo em qualquer lugar. E, acima de tudo, sabia que ele também percebera sua presença. — Joanna? — Ele pareceu hesitante, como se não acreditasse nos próprios olhos. Momentos atrás, Alex a pressentira. Agora ela estava lá, provando mais uma vez que o desejo se revelava incontrolável; o mesmo desejo que o obrigara a se afastar dela; o desejo que o levara àquele lugar com o objetivo vão de encontrar um pouco de paz. Joanna se aproximou, envolta pelo manto azul. O luar iluminava seu rosto. Para Alex, ela parecia envolta em luz prateada. — Sida me falou deste lugar. — Como soube que eu estava aqui? — Eu vi você. — Então ela acrescentou rapidamente: — Sei que parece inacreditável. Eu procurava Royce e encontrei você. Nada disso faz sentido. Mas não importa. Sida me disse que este lugar é chamado de Poço dos Suspiros. As pessoas suspiram quando veem esta beleza natural? Ela o encontrara? Alex sentiu prazer ao constatar a forte ligação entre ambos, embora o poder de Joanna fosse desconcertante. Porém, qualquer homem de bom-senso conhecia a força interior das mulheres. A dela apenas se mostrava mais óbvia. — Não. Trata-se, é claro, de uma lenda. — Alex se aproximou devagar para não assustá-la. — Uma lenda? — Séculos atrás, lady Lua teve um amante. 2


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— Lady Lua? — Joanna repetiu as palavras, como se quisesse assimilálas. — Que estranho... Ele chegou mais perto, a ponto de quase tocá-la. — Você sabe, as mulheres sangram com a lua. Joanna corou. — Não é costume comentar esse assunto. — Aqui em Akora, é. Somos muito conscientes acerca dessas coisas. Lady Lua controla as marés, incluindo as que fluem dentro das mulheres. Séculos atrás, ela teve um amante. De tão curioso em relação à Terra, ele se debruçou demais em seu galho celestial, caiu neste poço e se afogou. Quando a lua está alta e o vento soprando, é possível ouvir lady Lua suspirar por seu amor perdido. — Que romântico. O comentário áspero o fez rir. Lady Joanna Hawkforte, pelo jeito, não era muito adepta ao romantismo. — Você prefere a realidade ao romance. Eu também, mas só porque a realidade tem se mostrado mais empolgante. — Alex molhou a mão na água e a ergueu. — Há pequenas criaturas nesta água que absorvem a luz solar durante o dia e a irradiam durante a noite. Eu já as enxerguei através de um microscópio. Pode fazer o mesmo, se quiser. Um universo de criaturas tão diminutas que nos seriam desconhecidas, se a natureza não as tornasse belas para nós. Ele segurou a mão de Joanna e pingou algumas gotas de água na palma de sua mão. Fascinada, ela admirou o brilho cintilante e devolveu as partículas ao poço. — Essas criaturas não sobrevivem fora da água, certo? — Creio que não. A preocupação de Joanna com uma vida tão pequena o tocou. Eles se ajoelharam à beira do poço e ali permaneceram em silêncio. Enquanto admirava a profundidade prateada, Joanna tentou acalmar a respiração. Sua ligação com Alex era tão intensa que chegava a doer. A cada batimento de seu coração, tinha de lutar contra a urgência de se entregar àquele homem, que desafiara as normas de sua cultura para ajudá-la, que despertara nela necessidades íntimas até então desconhecidas, que a tratava com gentileza e dedicação quando poderia muito bem agir de forma contrária. Ele chegara ao ponto de lhe oferecer uma visão através de um microscópio, pois presumia que ela possuísse inteligência e curiosidade para apreciar a descoberta. Que cavalheiro inglês agiria desse modo? Ela suspirou. — Escutei uma conversa entre Deilos e Troizus. São os dois conselheiros que se opõem à mudança, certo? Alex se retesou. Havia pressuposto que ela estava segura em seus aposentos, e não vagando pela noite para esbarrar com inimigos em potencial. Mas não cometeria o mesmo erro novamente. Pressupor o comportamento de Joanna Hawkforte era idiotice. — Certo, mas como os encontrou? Ela deu de ombros, alheia ao perigo que correra. 2


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— Estava agitada demais e resolvi explorar o palácio. Estava admirando os afrescos além dos pilares vermelhos quando eles apareceram. — Eles viram você? — Alex indagou, temendo que tivesse de agir contra Deilos, caso ele ousasse ameaçar Joanna. — Não. Do contrário, não teriam falado com tamanha liberdade. Eu me escondi atrás de uma coluna. Os dois pareciam estar em desacordo. Deilos quer agir imediatamente e Troizus prefere cautela. Alex relaxou. A situação não era tão ruim quanto imaginara. — Conheço Deilos desde que éramos crianças. Ele nunca teve paciência de esperar. — Então ele não mudou. — Joanna fitou o rosto de Alex e, temerosa, percebeu como estavam próximos. — Deilos disse a Troizus que respeitava sua necessidade de cautela, mas ficou claro que mentia. Ele me pareceu um homem impelido pela impaciência. — Ele disse algo mais? — Deilos sabe que você trouxe os canhões da Inglaterra. — Isso era inevitável. Portanto, Atreus informou o Conselho ainda esta manhã. Deilos sabe que os canhões servem para defender Akora de uma possível invasão. De uma invasão britânica, Joanna pensou. — Deilos falou como se o armamento fosse uma ameaça a ele próprio. Joanna fez uma pausa, na esperança de que Alex confirmasse o que ela já havia concluído. A urgência de Deilos seria justificável, se o homem tivesse razões para temer o fortalecimento das defesas de Atreides. Alex se levantou e, com uma causalidade deliberada, comentou: — Não deixe que Deilos a preocupe. Cuidaremos dele quando chegar a hora. Joanna também se levantou, mas com extremo cuidado. Sentia-se vulnerável a todas as sensações que aquele lugar evocava em seu íntimo e, acima de tudo, ainda vivia a experiência profunda de procurar e encontrar Alex por meio de seu dom. — Ainda assim, Deilos me preocupa. Sei que ele representa um sério perigo a Akora. Não precisa me tratar como uma criança frágil que necessita de proteção contra a verdade. — Acredite-me — ele murmurou —, estou certo de que você não é uma criança. Alex virou-se para sair, porém Joanna o segurou pela mão. — Espere. Ele respirou fundo para se conter e olhou para as mãos cujos dedos estavam entrelaçados. O desejo o invadiu, implacável, mas foi a honra que se manifestou. — Existem limites, Joanna. Ela não permitiu que o aviso explícito a intimidasse. — A vida é muito frágil, não acha? — Já lhe disse. Não há motivo para temer Deilos. 2


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— Não me refiro a ele. Perdi meus pais, e talvez tenha perdido meu irmão. — Ela se emocionou. — Vim para um lugar repleto de paz e beleza só para descobrir que o mal também o ameaça. Pelo jeito, não temos nada além deste momento. — O que fazemos em todos os momentos molda o futuro — declarou Alex, compreensivo. — Sim, as escolhas e suas consequências. — Joanna passou o braço de Alex ao redor de sua própria cintura. Ainda se lembrava de como fora difícil afastar-se dele na tenda. Desde então, sentia-se cada vez mais atraída. — Tenho a impressão de que não estou fazendo nada ultimamente. — Você? Eu diria justamente o contrário. Não hesita em agir, Joanna. — Sempre vivi cercada da segurança familiar. Nas poucas vezes em que me aventurei pelo mundo, logo concluía que não deveria ousar tanto. Nunca me arrisquei. Até agora. — Essa não parece ser você. — Acho que não é mesmo. Prefiro uma versão mais ousada de mim mesma. — Antes que pudesse reconsiderar, ela o beijou. Os lábios de Alex, embora entreabertos, ficaram tensos. Ele tentou afastá-la, mas Joanna colou-se ao corpo másculo. — Encontrei você. — É verdade. — Ele sorriu, ainda hesitante. — Foi tão fácil... tão surpreendente. — Joanna o abraçou, temendo ser repudiada. — Não quero mais me apegar a uma vida segura. — Joanna... Alex a segurou com a intenção de afastá-la. No entanto, a força do desejo foi mais forte. Rendeu-se à carícia feminina, indefeso. Sim, ele, um homem experiente e disciplinado, sentia prazer ao notar que os eventos fugiam a seu controle. Mas, pelos deuses, Joanna era tão tentadora, tão maravilhosa! De alguma maneira, teria de superar a paixão, apesar do remorso que já o consumia. — Joanna, é o desespero que a move. Você teme por seu irmão e anseia por encontrá-lo. A vida parece sem sentido agora, mas vai se arrepender... Alex se calou. Nem a vontade mais potente do mundo poderia resistir aos lábios quentes que lhe beijavam o rosto e o pescoço. Sem pensar, acariciou a curva dos quadris, sentindo o calor de Joanna penetrá-lo. — Não vou me arrepender de nada, Alex. — Ela estreitou o abraço. — Eu o encontrei... e acho que também encontrei a mim mesma. O dever, aquele frio companheiro, fez mais uma tentativa de se impor, mas ele o ignorou. Apossou-se dos lábios suplicantes e aprofundou o beijo ao escutá-la gemer. Perdido no sabor de Joanna, ele a deitou no chão convidativo. O leito de musgo estava frio e emanava a essência de terra molhada. Ela o fitou por um instante e sorriu, iluminada pelo luar. A alegria que Alex sentiu o transportou para o passado, quando, ainda garoto, descobrira o poder de uma mulher. — Iremos bem devagar — ele a avisou e beijou a curva sinuosa do pescoço alvo. 2


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— É mesmo? — Joanna acariciou os músculos poderosos das costas. A sensação foi tão exultante que nem a razão pôde explicar. — Sinto como se eu o tivesse esperado a minha vida inteira. — Não é sábio dizer tais coisas nestas circunstâncias — Alex comentou, sôfrego de desejo. — Oh, perdoe-me. Eu me curvo à sua sabedoria superior. — Ela riu, sentindo a felicidade invadi-la. Alex usava uma túnica leve. Com pouquíssimo esforço, Joanna conseguiu erguer o tecido. Excitada, tocou a pele quente, um gesto sensual que o fez estremecer. Surpresa, ela se deteve para apreciar a deliciosa descoberta de um corpo que podia tocar sem pudores. — Mulher, você vai me arruinar... — Eu já estou arruinada — Joanna revelou, intensa. — Portanto, é justo que você se junte a mim. — Já está arruinada? — Alex sorriu, fascinado. — Vejo que, no fundo, você é inocente. — Chegou a duvidar disso? — Pensei que seria útil imaginá-la de outra forma, uma vez que fingia ser minha amante. — Ainda me resta chamá-lo de kreon. — Isso não importa mais. — Alex ouvia a própria voz a distância. Ela o excitava de tal forma que se viu impelido a erguer a barra da túnica para libertar as pernas esguias. — Preciso vê-la — murmurou. — Tocá-la... — Eu também. Joanna se sentou e, junto com Alex, despiu-se. Quando o manto de cachos castanhos caiu sobre seus seios, ele afastou as mechas e se deliciou com o que lhe foi revelado. — Você é linda. Alex conhecia as várias formas da beleza feminina, mas nunca fora regido pelo afeto. Seu desejo por Joanna, porém, era mais que físico. Ele a queria naquele momento, sob a lua, na cama de musgo, e por mais mil anos. — Devo informá-lo — Joanna sussurrou, adoravelmente envergonhada — que não sou uma mulher paciente. — Dito isso, ela tirou a túnica que cobria Alex. Por um instante, os olhos expressivos o fitaram com fascínio. — Oh... você é... soberbo. Grato pela noite ocultar quão soberbo ela o fazia se sentir, Alex anunciou: — Não precisa ter medo de mim, Joanna. — Eu não estaria aqui, se tivesse medo de você, Alex. A beleza e, acima de tudo, a honestidade de Joanna o acalentaram. — Ainda bem, porque você tem um longo caminho a percorrer antes que possamos afirmar que está arruinada. Joanna o encarou, surpresa. — Ser arruinada — murmurou, enquanto a deitava no chão novamente — envolve mais do que você imagina. 2


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— Mais? Alex... — Ela gemeu de prazer quando sentiu os lábios de Alex em seus seios. — Muito mais. Com um roçar de dedos e da língua, e o calor constante de seu corpo sobre o dela, Alex a levou a um grau de expectativa que bania a razão. Uma vida inteira de precaução e cuidado ruiu com extrema velocidade. Joanna sentia que cada centímetro de sua pele estava sensível a qualquer toque. Céus, ela era tão excitante! Observá-la descobrir o que era capaz de aprender a respeito do próprio corpo o encantava. O fascínio era tanto que Alex quase se esqueceu da necessidade que dentro dele pulsava. Quase. Momento após momento, sentia que seu controle se esvaía. Queria esperar a fim de levá-la ao ápice do prazer, mas a paixão que ela exprimia era mais do que ele podia suportar. Sentia o corpo feminino arder de desejo, enquanto o seu clamava por satisfação. Gemendo, Alex a penetrou. Joanna estava quente e úmida. Tão logo o sentiu dentro de si, ela ergueu os quadris para recebê-lo. Os olhos de Joanna se abriram para a lua. O calor profundo que a dominou era inacreditável. Quando Alex ultrapassou a barreira de sua inocência, não houve dor, somente a estranha constatação da certeza. E, ao mesmo tempo, viu-se envolvida por um delírio que sobrepujou o pensamento, a razão, a lembrança e até a consciência de si mesma. Existiam apenas os dois, movendo-se como um só, e banhados pela irradiação prateada que, gloriosamente, cintilou no âmago de seu ser. Zonza, Joanna percebeu que Alex explodia dentro dela, enquanto os gemidos roucos se misturavam com os gritos suaves. Agarrou-se a ele assim que as ondas de alívio os banharam. A lua estava ainda mais alta quando Joanna olhou mais uma vez para o céu. Mergulhou em si mesma, como se houvesse percorrido uma longa distância para chegar a um reino onde o sonho se mascarava como lembrança. Teria descido até a praia, encontrara Alex e, apesar dos escrúpulos do guerreiro, ela o seduzira? Havia ignorado a precaução, o pudor e o bom-senso para adotar a conduta mais chocante que uma mulher poderia ter? Poderia Joanna ter se comportado de maneira tão escandalosa? Sim, ela fizera tudo isso e, incrivelmente, sentia-se realizada. Sonolenta, Joanna sorriu. Alex estava deitado a seu lado e a aquecia com aquele corpo magnífico. Ela o fitou e sentiu uma onda de afeto rivalizar com a recém-descoberta paixão. Afeto e respeito, paixão abrasadora e deleite, tudo isso e talvez muito mais, que ainda viria a descobrir... ...Sua mãe, usando um vestido branco, achava-se em pé no salão nobre de Hawkforte. Naquele dia de verão, nenhuma nuvem advertia o improvável. Seu pai, alto e garboso, segurou a mão da esposa amada e ambos partiram em direção à luz intensa do sol. — Não me deixem! — Joanna, criança e mulher, implorou, presa no sonho de uma lembrança. Alex segurou a mão de Joanna e beijou os dedos delicados. Havia acordado de repente, sem nenhum motivo aparente, mas a tempo de escutá-la choramingar. 2


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— Está tudo bem — disse, carinhoso. — O que a perturba? No fundo, esperava que a experiência inusitada que haviam partilhado não fosse a causa daquela perturbação. — Acho que sonhei... enquanto me imaginava acordada. Sonhos de perda e morte, Alex imaginou. Ele a abraçou com afeto, como se assim pudesse absorver os tormentos de Joanna e destruí-los. — Estou vivo, Joanna, e não vou morrer. Esteja certa disso. Em pouco tempo, estaremos rindo dos medos superados. Ela sorriu. — Você possui o dom de Kassandra? — Não. Mas tenho braços fortes e uma vontade poderosa. Uma multiplicidade de futuros nos aguarda. Quando a sorte favorecer, escolheremos aquele que mais nos agrada. Ela acreditava em Alex. Ou talvez fosse a ânsia desesperada de transformar o sonho dourado em realidade. Não importava. Apaixonada, beijou-o com urgência. — Ainda é muito cedo — Alex sussurrou. — Acho que não. — Joanna insinuou-se, roçando seu corpo ao dele. Alex soltou uma risada sonora e abraçou-a com entusiasmo. Que mulher! Linda, inteligente, provocante, ousada... Precisaria se lembrar de quanto apreciava aquela última qualidade quando Joanna cometesse outro ato impensado. Por enquanto, era suficiente vê-la sorrir. Ou talvez não. Afinal, não era tão cedo assim.

Havia uma luz pálida e um odor familiar... úmido, frio e pesado. Pedra. Havia dor e uma presença humana tão grande que quase a sufocou. Através de uma pequena janela com barras era possível enxergar parte da paisagem. Um fosso, uma parede de pedra e, mais além, um campo que terminava em um veio de água cintilante. Do outro lado do córrego, o céu claro e uma torre, alta e esguia revelavam um novo dia. Mais um dia interminável e sem esperança. Raiva... amargura... desespero... Mas, sobretudo, vida. — Royce! O grito saiu dos lábios de Joanna. Ela se sentou na cama, com o coração disparado. Lágrimas quentes umedeciam seu rosto. Lutava para entender onde estava e onde estivera. Escutou sons no palácio. Os criados circulavam, visitantes chegavam e, ao longe, a cidade despertava. Estava coberta com lençóis de seda. Aturdida, lembrou que Alex os cobrira quando, enfim, entregaram-se ao sono. Certamente, ela vivera o paraíso, mas, em sonho, havia provado o conhecimento brutal do aprisionamento. O chuveiro da sala de banho estava aberto. Joanna saiu da cama e correu até a porta. 2


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Alex estava diante da pia, olhando-se no espelho. Com exceção da toalha amarrada à cintura, ele estava nu. Gotas de água brilhavam no peito musculoso. Os cabelos molhados grudavam na pele do pescoço. Parte do rosto estava barbeada. Joanna recordou a aspereza daquela pele roçando seus seios durante a noite e sentiu um súbito tremor no corpo. — Vi onde Royce está! — anunciou de supetão. Alex, por um instante, ficou imóvel e então assentiu. Joanna estava pálida, e o lençol enrolado em seu corpo escondia muito pouco. Inevitavelmente, sentiu o desejo renascer. Depois de se barbear, ele enxugou o rosto, tomado por pensamentos confusos. Desde que acordara, vinha pensando no que diria a ela. Jamais se vira em situação semelhante. Mas, também, nunca conhecera uma mulher como Joanna Hawkforte. A realidade do que acontecera entre ambos o deixava perplexo e... prudente. Tomou o cuidado de mascarar seus pensamentos antes de encará-la. — Sente-se e diga-me o que viu. Alex a seguiu de volta ao quarto e indicou uma cadeira. — Royce está em uma cela com barras nas janelas. Por uma das janelas, pude enxergar um fosso e uma parede de pedra. Mais ao longe, vi um campo verdejante que termina em um veio de água. Do outro lado, há uma torre alta de pedras brancas. — Do outro lado do campo? — Não, depois do veio de água. Só consegui ver a torre branca. — Desesperada, ela o fitou. — Royce está doente e sofrendo. Está desesperado, mas continua vivo. Hoje. Não sei quanto tempo mais ele vai aguentar. — Joanna virou o rosto, tentando em vão esconder a angústia. Alex se conteve para não tomá-la nos braços a fim de consolá-la. Não havia tempo. Correu até um baú e pegou uma túnica. Enquanto se vestia, disse: — Não a quero sozinha. Pedirei que Kassandra lhe faça companhia. — Por quê? Aonde vai? — Falar com Atreus. Ele tirou a toalha e vestiu a túnica. — Reconheceu o lugar que descrevi? — Eu... talvez. — Mais uma vez, Alex hesitou. Pegou o cinturão e o prendeu à cintura. — Isso já é um progresso, Joanna. Tenha esperança. Esperança. Passividade. Fraqueza, nada disso substituía a ação. — Quero ir com você. — Eia se levantou, alheia ao lençol que ameaçava desnudá-la. — Posso ajudar. Quanto mais perto eu chegar de Royce, mais capaz serei de localizá-lo. Alex pegou a espada que costumava deixar sobre a cômoda perto da cama. Tirou a arma da bainha a fim de verificar seu peso. Em seguida, devolveu-a à bainha e a amarrou ao cinturão de couro. O ritual durou um breve momento, mas foi o suficiente para atrair a atenção de Joanna. Não se lembrava de ter visto Alex usar a espada. Uma 2


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adaga, sim, mas nunca a espada, exceto no campo de treinamento. — Você vai lutar? — Como lhe disse, vou ver Atreus — repetiu ele. — Com uma espada? — Certamente, você notou que somos guerreiros em Akora. — O sorriso gentil atenuou o tom sarcástico. Um guerreiro jamais ousaria ferir uma mulher, nem mesmo com palavras. — Quero ir com você — Joanna insistiu. — Sabe que não será possível, Joanna. — Não sei de nada. Cheguei até aqui. Por que não posso ir com você? Alex suspirou e olhou para cima, como se a resposta pudesse surgir de algum ponto do teto. — Porque é muito perigoso — ele alegou. — Não vamos fingir que não sabemos disso. — Percebe como é enervante essa situação? Ficar sem fazer nada, enquanto você se arrisca sozinho é intolerável para mim. — Porque você é uma mulher honrada e valente. Mas se esquece de que fui treinado para isso. Alguns homens são fazendeiros, outros, escreventes, e esta é a minha profissão. — Você é um guerreiro — Joanna murmurou, com a voz embargada. Alex falava com tamanha simplicidade, como se o treinamento para matar e liderar homens em uma batalha fosse a coisa mais natural do mundo. Era tão natural que ele desempenharia seu dever a qualquer custo, mesmo que isso significasse sua morte. — O nome de Kassandra foi alterado quando sua natureza se tornou evidente — ela comentou. — Surpreende-me que o seu continue o mesmo. — O que quer dizer? — Deveria se chamar Heitor. Ele era como você, inabalável em sua dedicação ao dever e à honra. Vivia pelo código do guerreiro e morreu por ele. A intenção era enfurecê-lo, mas a reação de Alex a pegou de surpresa. Ele deu um sorriso terno. — Não sou nenhum príncipe de Tróia, condenado a morrer nas mãos de Aquiles. O nome glorificado de Heitor está envolto no brilho da lenda. Sob tudo isso, devia haver um homem de verdade, mas duvido que ele se reconhecesse como tal. — Você morreria pelo dever, Alex. Não negue. — Nem Joanna conseguia negar o pavor que a morte de Alex provocaria nela. — Claro que sim. Mas, acredite-me, prefiro ajudar o inimigo a morrer cumprindo o dever dele. — Sem resistir à tentação, ele acariciou o rosto delicado. — Creio, Joanna Hawkforte, que está preocupada comigo. — Não amenize a situação! Incapaz de se conter, Alex inclinou o rosto e a beijou. O fogo da paixão explodiu no mesmo instante, pegando os dois de surpresa. Joanna se colou ao corpo másculo e largou o lençol, que deslizou para o chão. 2


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— Meu Deus — Alex murmurou, quando suas mãos acariciaram as nádegas. — Você me faz esquecer tudo. — Não sou eu. É você que... não consegue pensar. Ele ardia como ferro em brasa. Joanna se lembrou da visão de Alex no campo de treinamento, um homem de habilidades letais que beirava a perfeição. E, por trás dele, uma mente tão afiada quanto uma lâmina. Por favor, Deus, não repita a lenda de Heitor. A espada à cintura se interpôs entre ambos, tal qual o dever. Alex recuou rapidamente. Joanna notou, com pesar, que ele havia recuperado o autocontrole. — Fique no palácio ou nos arredores — ele ordenou. — Quando puder, mandarei uma mensagem para você. — Beijou-a mais uma vez e se foi. Por alguns instantes, Joanna permaneceu focada na porta em arco. Então, devagar, obrigou-se a respirar. Seus lábios estavam sensíveis, e os joelhos, bambos. As últimas vinte e quatro horas tinham sido... movimentadas. Zonza, entrou na sala de banho e abriu o chuveiro. O jato de água ajudou a reavivá-la. Depois de se banhar, não mais se sentia arrastada pelo rodamoinho de emoções que ameaçara lhe roubar o controle. Mesmo assim, quando voltou ao quarto, assustou-se ao encontrar Kassandra. A princesa parecia preocupada, mas fez questão de ocultar o sentimento. — Alexandros me disse que estava acordada. Ele sugeriu outro passeio pela cidade. — Antes ou depois de lhe pedir para bancar a inspetora? — Como? Joanna suspirou. Não devia descontar sua frustração em Kassandra. — Desculpe-me. Detesto ter de depender de uma pessoa para fazer o que eu preferia fazer sozinha. Kassandra sorriu, compreensiva. — Sinto-me do mesmo jeito, mas às vezes é inevitável. Agora me conte. Aonde foi Alexandros? — Descobrir onde Royce está, espero. — Você o viu? — Sim, finalmente. Mas receio que tenha sido inútil. O que eu esperava, afinal? Uma placa incandescente me dizendo onde ele está? — Joanna desviou o rosto, emocionada. — Diga-me o que viu — Kassandra pediu, amorosa. Joanna relatou em detalhes sua visão. — Significa alguma coisa para você? A paisagem verdejante, o veio de água e a torre? — Receio que não. Mas precisa ter fé. Alexandros conhece essas ilhas melhor do que eu e fará o possível para encontrar seu irmão. — Tenho certeza disso. — Porém, era difícil esperar. — Venha — Kassandra a chamou. — Vamos escolher um traje para você 2


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vestir. Muitos deles você nem sequer chegou a ver. Joanna concordou, mas sem entusiasmo. Foi Kassandra quem selecionou uma túnica na pilha dentro do baú e a vestiu em Joanna. Em seguida, enfeitou-lhe os cabelos com fitas que fizeram pouco para conter a rebeldia dos cachos. Quando se olhou no espelho, quase não se reconheceu. A mulher à sua frente parecia muito distante daquela que labutava em terreno lamacento, trabalhava na colheita e se contentava em viver no campo, cercada pelas muralhas de Hawkforte. Na infância, sonhara em viajar a reinos distantes, principalmente Akora. Somente após a morte súbita de seus pais ela se recolhera à segurança do afeto familiar. Hawkforte fora seu santuário e, possivelmente, sua prisão. Kassandra a observava, curiosa. Joanna respirou fundo e reprimiu o choque que as experiências dos últimos dias lhe haviam causado. — Vamos? — chamou, dirigindo-se à porta. Depois de passarem pelas leoas dos portões, caminharam em direção à cidade. Porém, desviaram para a esquerda, tomando uma pequena estrada que as levou a outra colina, tão alta quanto a que abrigava o palácio. — Chegamos. — Kassandra apontou um gracioso auditório ao ar livre. — Os atores da companhia de teatro real estão ensaiando esta manhã. Achei que gostaria de vê-los. Conforme a distração prosseguiu, Joanna se sentiu mais animada. Sempre fora fascinada pelos artistas que passavam por Hawkforte e acreditava que a melhor atração que Londres tinha a oferecer eram os teatros. Apesar das circunstâncias, assistir a uma peça em Akora seria empolgante. O teatro se assemelhava aos que ela vira na Grécia. Enquanto os vários atores se posicionavam no palco, Joanna e Kassandra se sentaram junto a outros curiosos que lá estavam para assistir ao ensaio. — A peça é As Mulheres de Tróia, de Eurípides — Kassandra sussurrou. — Conhece o enredo? — Assisti a essa peça em Atenas, anos atrás. Fiquei impressionada ao notar o quão contemporânea é a história, especialmente quando o autor descreve as atrocidades da guerra. — Creio que o rei teve uma razão muito singular ao optar por essa tragédia. Enquanto observava o enredo desvelar a perda de Tróia, os guerreiros assassinados e as mulheres escravizadas, Joanna foi contagiada pela angústia atemporal das esposas e mães que sofriam a perda de seus entes queridos e vislumbravam um futuro que prometia mais sofrimento. Durante dez anos, segundo a lenda, elas pacientemente enfrentaram uma guerra que não lhes pertencia, aceitaram sem questionar as decisões de seus homens e nutriram lealdade em seus corações. Como recompensa, tudo que obtiveram foi a morte do que lhes era mais caro. Lares, maridos, filhos, tudo se perdeu. — O rei escolheu essa tragédia grega pelo motivo que imagino? — Joanna perguntou quando o ensaio terminou. Kassandra olhou para o palco agora vazio.

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— Para advertir nosso povo? Lembrar a todos de que a paz e a segurança que temos não são inabaláveis? Como Atreus não faz nada por acaso, penso que você tenha razão. — Ele realmente acredita que Akora pode ser invadida? — Tal possibilidade, para Joanna, seria catastrófica. — Sim, mas todos que lutaram em Tróia, apesar do lado em que estavam, são nossos ancestrais. Eles falavam a mesma língua, idolatravam os mesmos deuses, partilhavam as mesmas raízes. No fundo, Tróia representa o que acontece quando as pessoas se voltam contra si e traem o que as tornou grandes. Assim que se afastaram do teatro, Kassandra acrescentou: — Atreus se encontra em uma posição difícil. Se acusar Deilos e os outros de tramar uma rebelião, eles negarão e, em troca, vão acusá-lo de difamação. A premissa mais importante do rei é proporcionar justiça a todos. No entanto, ao ordenar a apresentação dessa peça, Atreus passa uma mensagem que poucos ignorarão. E Deilos não faz parte desse grupo. — É inteligente informá-lo de que o rei sabe o que ele está tramando? — Acredito que sim. Pode haver uma chance de Deilos reconsiderar, mas duvido muito. Dada sua natureza impulsiva, é mais provável que a estratégia o estimule a agir. — Antes que esteja pronto? — Exatamente. Atreus o pressiona a agir para, assim, Deilos se tornar mais vulnerável. — Parece-me uma aposta arriscada — comentou Joanna, apreensiva. — Qualquer coisa que façamos a esta altura requer riscos. Sei que Atreus e Alexandros refletiram muito antes de optar por esse curso de ação. — Confesso que me sinto culpada por trazer mais um problema a Akora. Royce é meu irmão e eu o amo. Portanto, é natural que seu bem-estar seja minha prioridade. Mas percebo que, no momento atual, isso é uma distração para Alex. Kassandra parou e a fitou. — Não entendo. Você e Alexandros se tornaram amantes? As faces de Joanna ruborizaram. — Eu me meti onde não devia? — indagou Kassandra, enrubescendo também. — Alexandros me disse que os ingleses esperam que as jovens solteiras sejam ignorantes. Peço-lhe desculpas se a aborreci, mas nunca aconselhei Alexandros a não se envolver em seu problema. Ele ficaria muito aborrecido. — Mas o desaparecimento de Royce não é responsabilidade dele. — Claro que é. Alexandros compreende a situação. — Kassandra a olhou, intrigada. — Os ingleses são tão diferentes assim? Podem dividir uma cama com uma mulher e não se abalar com o que a perturba? — Não sei — Joanna admitiu. — Mas desconfio que alguns sejam assim. Os homens de caráter, suponho, são diferentes. — Um homem que obtém prazer com uma mulher e não atende às

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necessidades dela, na cama e fora dela, não é um homem de verdade. Ele está no mesmo nível que um bode. Joanna tossiu para disfarçar o choque. Embora fosse virgem, Kassandra tinha ideias muito claras sobre o relacionamento entre um homem e uma mulher. — As jovens de Akora são tão... bem informadas? — Digamos que em Akora a ignorância não é uma virtude. — Sou muito grata a Alex por ele me ajudar — Joanna confessou. — Se não se importa, eu gostaria de voltar ao palácio. Talvez ele tenha descoberto o paradeiro de Royce. — Como quiser. Vamos. Mas quando chegaram ao palácio e Kassandra pediu a Sida para ver se havia novidades, esta voltou dizendo que os irmãos reais ainda conferenciavam a portas fechadas. — Poderíamos cavalgar — sugeriu a princesa, sentada à beira da cama, enquanto Joanna vagava a esmo pelo quarto. — Não precisa me entreter, embora eu goste de sua companhia. No entanto, se permanecesse sozinha, Joanna temia não conter o medo que ameaçava sufocá-la. Não conseguia esquecer a sensação vivida de dor e desespero quando encontrara Royce. — Não consigo ficar sem fazer nada — desabafou. — Se fosse ao contrário, Royce estaria movendo céu e terra. Eu me sinto inútil. — Discordo de você. Sem seu dom, ninguém teria uma pista de onde seu irmão está ou de que ele continua vivo. — Mas o que vi não ajuda. Uma torre branca. Quantas torres brancas há em Akora? Dezenas? Centenas? — Não sei — admitiu Kassandra. — Mas existe mais que uma torre. — De repente, ela tocou o gongo para chamar Sida. — Tive uma ideia. Sabe desenhar? Ouvi dizer que as inglesas bem-criadas aprendem a desenhar. — Sim, algumas com mais sucesso que outras — murmurou Joanna, mas não refutou a ideia. Talvez conseguisse desenhar o que vira. Qualquer coisa era melhor do que ficar parada, esperando. Sida apareceu logo, foi-se e voltou com um feixe de papel e uma caixa de carvões. — Agora sente-se à mesa e desenhe todos os detalhes que puder lembrar — pediu Kassandra. Desconcertada, Joanna tentou desenhar. Os primeiros esforços foram precários, mas aos poucos a imagem que vira começou a surgir no papel. Quando se satisfez com o resultado, ela segurou o papel e o mostrou a Kassandra. — Esta imagem significa algo para você? A princesa estudou o desenho com atenção. — Lamento... — Ela se calou, de repente, e apontou a estreita expansão de água entre o campo e a torre distante. — Isto é um rio? — Não sei... Acho que não. A menos que exista um rio em Akora. 2


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— Não, mas poderia ser... — O quê? — Não quero iludi-la. — Não se preocupe! Por Deus, se tiver uma ideia de que lugar é este, diga-me. — Joanna, posso estar errada. Mas... — Kassandra examinou o desenho novamente. — Nossas três pequenas ilhas, Phobos, Deimatos e Tarbos, estão muito próximas. Não estou certa... — Precisamos de um mapa. — Sim. Venha comigo. — Kassandra correu para o cômodo que Alex usava como estúdio e encontrou o mapa que ele mostrara a Joanna a bordo do Nestor. — Veja. — Kassandra abriu o mapa sobre a mesa. — Da costa leste de Deimatos é possível enxergar a costa oeste de Tarbos. Já naveguei pelo estreito entre as duas ilhas. É tão largo quanto seu desenho, mas não tão amplo a ponto de não avistar a torre do outro lado. — Lembra-se dessa torre? Kassandra meneou a cabeça. — Foi há muitos anos, e eu era uma criança. Como você disse, existem muitas torres em Akora. Mas não há nenhum outro lugar de onde seja possível olhar de uma larga expansão de água e ver a praia oposta. — Então Royce está em Deimatos, próximo da costa leste! — É possível, mas não entendo... — O quê? — Contou a Alexandros o que me disse? — Claro, mas não fiz nenhum desenho. — Não importa. Alexandros conhece cada centímetro das costas de Akora. — Você acha que ele reconheceu o lugar pela minha descrição — Joanna afirmou, espantada. — Talvez não. Realmente não sei. — Mas desconfia. Acredita que ele descobriu sozinho. Mas Alex teria dito algo. Não me deixaria acreditar que não sabia onde Royce está. As duas se entreolharam. Gentil, Kassandra tocou a mão de Joanna. — Querida amiga, pois a considero como tal e espero que seja recíproco, se Alexandros lhe tivesse dito onde Royce poderia estar, o que você teria feito? — Ido até lá, claro. — Apesar do perigo? — Royce é meu irmão! — E Alexandros é meu irmão. Ele preferiria vê-la em segurança. Aliás, faria questão disso. — Alex não tem o direito de... — Não? Dormiu com ele por livre e espontânea vontade? — Isso não tem nada a ver... — Tem tudo a ver! Conheço Alexandros. Ele jamais encostaria um dedo 2


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em uma mulher, se não tivesse absoluta certeza de que era isso o que ela queria. — Kassandra recuou um passo e encarou Joanna. — Você o escolheu. Você o quis e o obteve para si. Pensou mesmo que depois disso poderia agir como se nada tivesse acontecido? — Para ser franca, não pensei em nada. Nem sequer sei o que pensar. Creio que deixei essa faculdade na Inglaterra junto com meu bom-senso, se é que algum dia o tive. Quando seus olhos marejaram, Joanna correu para fora do estúdio. No quarto, parou diante da janela e fitou a cidade. Tudo continuava lindo e normal, porém, para ela, o dia ensolarado parecia frágil, como se pudesse se despedaçar a qualquer momento. Kassandra se aproximou. — Está quase na hora da prece das mulheres. Gostaria de vir comigo? Se, algumas semanas atrás, alguém lhe oferecesse a oportunidade de observar uma cerimônia religiosa em Akora, Joanna não teria desperdiçado tal chance. Mas estava tão desesperadamente preocupada que conseguiu apenas esboçar um sorriso sem graça e menear a cabeça. — Desta vez, não. Obrigada. Kassandra assentiu. — Há tantos caminhos na vida, tantos momentos em que devemos escolher entre futuros opostos... Em cada bifurcação da estrada, é difícil saber que caminho tomar. No final, acho que o melhor que temos a fazer é seguir o nosso coração. — Alex quer que eu o deixe resolver esse problema, não quer? — Ele é homem. É necessário dizer algo mais? — Creio que não. — Quando a princesa se virou para sair, Joanna perguntou: — Foi apenas para nos divertir que assistimos à peça? Por um instante, os olhos de Kassandra pareceram grandes e insondáveis, como se fossem janelas para a eternidade. Ela então piscou algumas vezes e sorriu, compreensiva. — Lembra-se de que eu disse que nada estava escrito? Não podemos mudar o futuro, mas podemos escolher que futuro será o nosso. Muito tempo depois de a princesa ter saído, Joanna ainda permanecia à janela. Seu olhar percorria a estrada que levava ao teatro e à cidade em sua presença gloriosa. Ambas possuíam possibilidades inexploradas a ser descobertas. O que a esperava onde a estrada se dividia? Ir? Ficar? Agradar a Alex? Enfurecê-lo? Ser o que ele desejava? Ser ela mesma? Alex não era Heitor, mas esperava que ela fosse Andrômeda, domesticada e restrita ao lar. O vento mudou, soprando do oceano. Joanna lembrou que o mesmo fenômeno ocorria em Hawkforte, elevando as ondas da praia arenosa logo 2


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abaixo das muralhas de pedra. Estranho como pensava pouco em seu lar desde que chegara a Akora, mas em certo sentido, ela jamais saíra de lá. Hawkforte sempre estaria em seu coração. De súbito, a força de várias gerações despertou dentro dela. Joanna saiu do quarto sem olhar para trás.

Capítulo IV

— Apressem-se! — Alex ordenou a seus homens. Enquanto se preparavam para zarpar, ele mantinha os olhos atentos à estrada do palácio. Apesar de Joanna possuir a habilidade sensual de confundir seus pensamentos, ele fora muito claro ao proibi-la de acompanhá-lo. Não havia, portanto, motivos para acreditar que lhe desobedeceria. Nenhum motivo, exceto a própria Joanna. Alex acenou para o homem mais próximo. — Vasculhe o navio, da proa à popa. Certifique-se de que não haja nenhum intruso a bordo. O homem, sendo um guerreiro disciplinado, nem sequer argumentou. — Imediatamente, archos. Ela não tentaria bancar a clandestina novamente, Alex pensou. Porém, pouco tempo depois, quando o homem retornou garantindo que não havia nenhum intruso a bordo do Nestor, Alex, mesmo assim, não relaxou. Continuou atento à estrada do palácio até que tudo ficou pronto. Foi o último a embarcar, pouco antes de a âncora ser erguida. Assim que ocupou seu lugar entre os remos, não se viu completamente tranquilo até que o cais de Ilius desapareceu de vista. A brisa fresca do mar entre as ilhas inflava as velas. Com os homens aos remos, navegaram depressa. O sol já se escondia atrás das colinas quando jogaram a âncora no pequeno porto da ilha de Tarbos. Em silêncio, os homens desembarcaram o equipamento que iriam utilizar, o distribuíram entre si e se precipitaram à floresta de pinheiros que adornava a ilha. Alex assumiu a liderança. Embora aquele local ainda fosse seguro, eles conversaram pouco. Nenhuma palavra era necessária, pois cada um sabia o que tinha de ser feito. Uma hora depois de saírem do porto, emergiram na extremidade de uma praia de areia fofa que terminava a oeste da ilha. Alex comandava em silêncio. Seus homens se abaixaram atrás de um aglomerado de arbustos. Ele então pegou a luneta que trazia consigo. Sob a luz do luar, estudou a praia do lado oposto. Apesar de o nome evocar lembranças atemorizantes, Deimatos era uma 2


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ilha linda. Possuía belas praias, vários portos pequenos, florestas e um complexo de cavernas que, de acordo com a lenda, ainda abrigava santuários religiosos que haviam sobrevivido à explosão vulcânica. Um traidor poderia esconder um exército naquelas cavernas. Melhor seria não pensar nisso agora. O importante era cumprir a tarefa em mãos. Alex guardou a luneta, ergueu o braço e acenou. Em conjunto, os homens se deslocaram até a água. Instantes depois, nadaram em direção a Deimatos. Chegaram à praia sob as sombras da noite. Atravessaram a areia correndo e se reuniram em um bosque. Alex ditou ordens em voz baixa. Os homens se dividiram em dois grupos. Um seguiu a trilha da praia e o outro permaneceu com Alex.

O senhor de Hawkforte sempre dissera que a filha nascera sabendo navegar. Joanna se lembrou das palavras do pai ao manobrar o leme do barco que havia confiscado e olhou para o brilho prateado da lua. Talvez ele estivesse certo, porque ela sempre tivera uma ligação íntima com o vento e a água. Mesmo após a morte de seus pais, quando o prazer de navegar se fora, Joanna ainda sentia o chamado do mar dentro de si. Tal intimidade era uma dádiva, já que navegar à noite em águas desconhecidas representava perigo. Ela não conhecia as correntes, tampouco sabia onde se localizavam possíveis bancos de pedra. Sendo assim, Joanna navegou a uma distância segura da costa, antes de rumar para oeste em um curso que rodearia, se estivesse correta, a costa de Tarbos. O Nestor ainda estava no cais quando partira. Imaginava que Alex faria uma abordagem mais direta, o que manteria Joanna fora de vista. Aquele período de solidão no mar a ajudou a pensar no que deveria fazer. Não era tão ingênua a ponto de acreditar que conseguiria libertar Royce sozinha. Teria de encontrar Alex, uma perspectiva um tanto assombrosa. Pelo menos, fazia uma ideia de onde ele estaria, em algum lugar oposto à torre branca, na costa oeste de Tarbos. Assim que localizasse a torre, alcançaria seu objetivo. No entanto, o plano era bem mais simples na teoria do que na prática. Apesar do luar, sombras profundas obscureciam boa parte da costa de Tarbos. Quando chegasse a Deimatos, as sombras seriam suas aliadas, mas, nesse ínterim, eram uma fonte de preocupação. E se não conseguisse achar a torre branca? O medo crescia dentro dela quando, de repente, avistou uma luminosidade branca. Prudente, Joanna se aproximou da praia até que seu coração disparou de alegria. Lá estava ela! Uma torre branca e alta, elevandose na direção oposta a Deimatos. Aliviada, rumou para a ilha, onde sabia que encontraria o cativeiro de Royce. A sorte estava do seu lado. Conseguiu conduzir o pequeno bote quase até a praia. Então, pulou do barco e o puxou até a areia. Não sabia quanto tempo permaneceria na ilha, ou se o barco seria necessário outra vez, mas 2


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preferiu não correr riscos. Rapidamente encontrou folhas secas que haviam caído das palmeiras e fez o que pôde para camuflar o bote. Esperava que qualquer um que por aquela costa navegasse não enxergasse a pequena embarcação sob as folhas. A enormidade do que fazia de repente a invadiu. Correu para um aglomerado de árvores e se amparou em um tronco até que o coração voltasse a bater normalmente. Sob a luz do luar, Joanna avistou, para além da praia, uma longa muralha de pedra. Respirando fundo, expôs-se ao brilho prateado.

Idiota. Imbecil. Estúpido. Em se tratando de Joanna Hawkforte, o cérebro de Alex tendia a perder a capacidade de discernimento. Claro que ela não invadira o navio. Não era mais criativo e ousado navegar sozinha em águas desconhecidas na calada da noite? O pior de tudo era que Alex devia ter previsto tal imprudência. Os sinais estavam evidentes: o orgulho, a inteligência, a coragem. A irritante indiferença a qualquer coisa que se assemelhasse à adequada submissão feminina frente à autoridade masculina. A culpa cabia somente a ele. No entanto, nada o impedia de agir em favor da segurança dela. Um brilho vingativo surgiu em seus olhos. Em questão de segundos, ele saiu das sombras, saltou e a derrubou sobre a relva, evitando que o peso de seu corpo a esmagasse. Mesmo assim, Joanna soltou um som agudo que foi silenciado pela destreza de Alex em lhe tapar a boca e, ao mesmo tempo, girá-la para se posicionar sobre ela. Joanna o encarou com os olhos arregalados. Por um breve momento, ela se mostrou apavorada, mas logo o pavor foi substituído por alívio. Era bom saber que Joanna não tinha medo dele. Precisava apenas se lembrar disso com mais frequência. — Vou tirar minha mão — ele avisou —, se me prometer ficar quieta. Ela acatou. Lentamente, Alex removeu a mão, sem tirar os olhos dela. — Eu poderia lhe dizer quão inconsequente você é, mas não vejo razão para tal — sussurrou, apenas para ela escutar. — Há somente uma lei para si, lady Joanna? Alex se levantou e a puxou. Em seguida, levou-a para a proteção das árvores. Seus homens, sempre leais, desviaram o olhar. — Desculpe-me — murmurou ela, quando enfim conseguiu falar. Podia sentir a raiva borbulhar em Alex. — Eu tinha de vir. Precisa entender que há uma chance maior de encontrar Royce com minha ajuda. — Entendo muitas coisas — Alex retrucou por entre os dentes —, e nenhuma delas deve ser discutida agora. — Archos... Ele virou-se a fim de receber os homens que enviara para o 2


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reconhecimento da área. — Encontramos a cela, archos, mas está vazia. — Vazia?! — Joanna quase gritou. — Não pode ser! Royce está lá... Eu sei! — Mas não está mais — Alex concluiu e puxou-a para si, ignorando a proximidade tentadora. — Sua presença coloca nossa missão em risco. Pelo menos, tenha o bom-senso de ficar calada e obedecer. Alex notou a fúria nos olhos de Joanna, que, com esforço, ela conseguia conter. Em outras circunstâncias, ele teria orgulho de tamanha determinação. Mas, naquele momento, só podia pensar em tirá-la de Deimatos a salvo. Ele deu uma ordem. Seus homens rodearam Joanna no mesmo instante. Ela o encarou, pesarosa, mas se manteve em silêncio. Então, moveram-se ao longo da muralha de pedra. Após meia hora de caminhada, Joanna não se conteve e abordou Alex. — Aonde vamos? — Há cavernas na ilha — ele respondeu, vago, sem tirar os olhos da escuridão à frente. — Acha que levaram Royce para as cavernas? — Se eu quisesse esconder alguém, eu o faria em uma das cavernas. Ele não disse mais nada, tampouco a encorajou a fazê-lo. Mesmo assim, Joanna não resistiu: — Suspeita de que alguém sabia que viríamos? Alex deu de ombros. Poderiam muito bem estar passeando no Hyde Park em um domingo à tarde, uma vez que ele não demonstrava nenhuma inquietação. O fato de se aproximarem de uma possível armadilha, na qual Royce era a isca, não o perturbava. Joanna precisou correr para poder acompanhá-lo. Quando ela fez menção de abrir a boca, Alex a interpelou: — Se eles não sabem, sua tagarelice nos entregará rapidamente. Aquilo a calou. Joanna não disse nada durante uma hora. Eles adentravam o interior da ilha, onde jazia a floresta de pinheiros. Ela se concentrou na caminhada. Alex apertou o passo sobre o terreno irregular. De quando em quando, ele a fitava. Joanna apenas sorria. De fato, um passeio dominical. Podia empreender aquele jogo tão bem quanto ele. Aliás, o orgulho a levava a tanto. De súbito, pararam no declive de uma colina, de onde se podia ver a entrada de uma caverna parcialmente oculta por arbustos. Uma caverna muito escura. Dessa vez, não havia nenhuma tocha para iluminar o caminho, somente um pequeno lampião a óleo que Alex tirou de sua bolsa de lona. — Fique perto de mim — recomendou. — Ao primeiro sinal de perigo, abaixe-se e saia do caminho. Entendeu? Joanna assentiu. Em silêncio, ela seguiu o brilho fraco do lampião. A princípio, a escuridão era tanta que quase a deixou à beira do pânico. O pavor amenizou à medida que acompanhava a chama do lampião logo à frente. Atrás

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de si, podia escutar os passos mudos dos homens de Alex, que os seguiam. Haviam percorrido apenas alguns metros quando Joanna percebeu que a temperatura estava caindo. Ela estremeceu, sabendo que, em parte, a reação também se devia ao medo. Por um breve instante, distraiu-se com a ideia de que deveria ter trazido o manto azul consigo. Enquanto imaginava o agasalho ao redor de si, Alex parou sem avisar. Ela colidiu com as costas largas a tempo de reprimir uma exclamação de susto. Ele a abraçou pela cintura e entregou o lampião a um dos homens. — Fique aqui e não se mexa — sussurrou. — Meu irmão... — Não sairá ileso, se você interferir. Alex adentrou a negritude, seguido de seus homens. Somente o lampião se interpunha entre Joanna e a escuridão que ameaçava engoli-la. Por um longo tempo, escutou apenas sua respiração ofegante. Quando enfim conseguiu respirar normalmente, notou que estava sozinha nas profundezas da caverna. Não havia nenhum som de luta ou vozes. Mas tinha o lampião e, dado seu peso, certificou-se de que ainda estava cheio de óleo. O que aconteceria depois que a pequena chama se apagasse, ela nem sequer ousava pensar. O melhor seria se concentrar em Royce. Ele devia estar por perto. Desesperada, fechou os olhos e procurou o irmão, tal qual fizera tantas vezes. Mas a sensação, que horas atrás fora poderosa, agora estava ausente. Devia estar forçando seu dom. Toda vez que o fazia, acabava fracassando. Precisava relaxar para que a visão surgisse espontaneamente. Em uma caverna escura e fria, com apenas um lampião como companhia, seria quase impossível relaxar, mas mesmo assim, ela tentou. Fitando a chama pálida, fez um grande esforço para limpar a mente dos medos e preocupações. Quanto mais tentava, menos sucesso obtinha. Estava outra vez ofegante e trêmula, sentindo medo e frio, quando um som repentino a despertou. Vozes. Em meio ao silêncio sepulcral da caverna, as vozes pareciam trovões, embora estivessem à distância. A esperança a acalentou. Talvez Alex e seus homens tivessem rendido os raptores e agora retornavam com Royce. Quando Joanna ergueu o lampião para enxergar melhor, outra possibilidade lhe ocorreu. Talvez não fossem Alex e seus homens, e ela estivesse prestes a ser descoberta. Rapidamente, Joanna escondeu o lampião e colou-se à parede de pedra. As vozes se tornaram mais próximas. Ela piscou ao enxergar a luminosidade intensa de tochas e se inclinou um pouco para espiar. Um grupo de homens marchava em sua direção. Devia haver uma dúzia ao todo, se não contasse a figura encurvada entre dois deles. Sua mão tremeu, sacudindo o lampião. Temerosa de que a chama atraísse a atenção dos desconhecidos, ela a apagou entre os dedos. A escuridão que a envolveu não importava mais. Ali, entre as tochas, estava Royce. Mas não era o Royce do qual se lembrava. Mesmo de longe, Joanna notou que estava impiedosamente magro. Ele pendia entre os homens que o 2


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seguravam, incapaz de caminhar, enquanto era arrastado. Cabelos longos e emaranhados ocultavam seu rosto, mas Joanna tinha certeza de que era o irmão, o amigo, o único parente que lhe restava. Se não fosse a força da razão, teria avançado naqueles torturadores. A dor de vê-lo tão maltratado era maior do que podia suportar. Era tão grande que chegou a banir todos os medos. Sem hesitar, Joanna seguiu as tochas até o fundo da caverna. Eles emergiram em uma câmara, quase tão ampla quanto a que havia no subterrâneo do palácio. Joanna se esgueirou entre as sombras a fim de enxergar o que ocorria no interior da câmara. Havia mais tochas e mais homens. Apesar da luminosidade precária, ela pôde ver várias passagens que levavam a outras direções. Sem dúvida, Deimatos possuía um labirinto de cavernas. Seria fácil se perder ali. Joanna não pensaria nisso. Precisava se concentrar em Royce, que parecia oscilar entre a consciência e a inconsciência. E como poderia ser diferente, depois de passar meses aprisionado e sofrendo privações para agora ser arrastado por aquela caverna gélida? Ninguém sobreviveria em tais condições. Royce devia estar quase morto, concluiu, agoniada. Por que então os raptores o trouxeram para a caverna? As tochas haviam sido dispostas ao redor de uma pedra grande e plana que, no centro da câmara, assemelhava-se a um altar. Um grito mudo subiu à garganta de Joanna. Aqueles homens possuíam chifres e rostos de touro. Estavam mascarados. Era a única explicação plausível. Não eram meio homens, meio touros, como a criatura lendária que residia sob o palácio de Minos, o rei de Creta. Os mascarados levaram Royce ao altar. Em seguida, ergueram suas facas, cujas lâminas cintilaram sob a luz das tochas. — Não! Joanna não pensou nem hesitou, porque não havia tempo. Saiu do abrigo sob as sombras da caverna e novamente gritou: — Não! Parou diante de Royce, que a reconheceu quando os homens mascarados avançaram sobre ela.

O topo de sua cabeça se desprendia. Alex se lembrava de ter ouvido falar desse fenômeno. Os mais velhos que treinavam os jovens guerreiros o haviam mencionado. Diante de uma provocação, um guerreiro podia se transformar em um selvagem nas batalhas, sem razão ou propósito a não ser matar. Alex jamais imaginara que um dia pudesse viver tamanha irracionalidade como a que sentiu no instante em que viu Joanna capturada. Matar. Trucidar sem piedade. Matar até que o solo ficasse vermelho de sangue. Matar até que ela estivesse segura. Nada mais importava. Nada mais existia. Exceto uma pequena porção de sanidade que ainda permanecia nos recônditos da mente do príncipe de Akora. 2


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Eles a levavam; quatro homens, que em breve estariam mortos. Os demais, cerca de uma dúzia, vigiavam Royce. — Ataquem! — Alex ordenou a seus homens, sem maiores instruções. Então, adentrou a escuridão das cavernas em busca de Joanna. A temperatura subia. Que pensamento bizarro, ela concluiu. Talvez fosse uma maneira de atenuar o terror que sentia. Royce ainda estaria vivo? Não havia motivos para ter esperança, exceto o fato de que o sentia dentro de si. Tinha protelado a morte do irm ão, o que representava uma chance de Alex resgatá-lo. Quanto a ela própria... Joanna reprimiu um grito de dor. Enquanto era arrastada pelo terreno tortuoso da caverna, caiu inúmeras vezes, causando feridas em seu corpo. Os homens só pararam ao chegar a uma outra câmara. Era menor que a primeira e menos escura. Ela escutou o som de água corrente. Seria um rio subterrâneo? Aquela câmara se assemelhava a um posto militar. Havia tochas afixadas em suportes de aço e escudos pendurados nas paredes. Joanna também viu espadas e outras armas. Uma mesa de madeira enorme, repleta de pratos, dominava o espaço central. Eles limparam a mesa e deitaram Joanna sobre o tampo de madeira. Ela sabia, mas não queria saber. Ouvira falar de tal violência. Apesar de ter crescido sem mãe, escutara as mulheres comentarem entre si. Mas não havia homens capazes de tamanha atrocidade em Hawkforte. Se houvesse, maridos, irmãos e filhos dariam cabo deles. O pavor a invadiu. Arranhou, desesperada, os olhos de seu agressor. Ele nem sequer se abalou. Queria cegá-lo, se pudesse, ou melhor, matá-lo, se tivesse uma arma. Mas e depois? Havia quatro deles. Não tinha chance nenhuma, mas lutaria até a última batida de seu coração, até a última lembrança de Alex. Alex... Como algo tão maravilhoso pudera se transformar em horror e humilhação? No instante seguinte, eles ergueram sua túnica e seguraram seus pulsos. Mesmo assim ela lutou, chutando-os, até que os tornozelos também foram imobilizados. Joanna escutou grunhidos e sentiu um bafo de vinho. E também ouviu o som de gritos. Eles a soltaram tão repentinamente que ela caiu da mesa. No chão, sentou-se de joelhos e assistiu, angustiada, à cena. Um dos mascarados jazia, imóvel, sobre a terra ao lado de uma poça de sangue. Joanna o observou por um momento, sem emoção. O bandido tivera o que merecia. Restavam agora três. E eles lutavam contra um. Antes que pudesse gritar o nome de seu amado, Joanna se conteve. Sabia que em um combate a menor das distrações poderia significar um desastre. Quando criança, ela se deliciara em assistir a Royce e seu professor de esgrima praticando. Por fim, o irmão cedera às súplicas obstinadas de Joanna e a ensinara a lidar com a espada. Ela acabara se tornando relativamente hábil na esgrima. Hábil o suficiente para reconhecer que agora assistia a uma genialidade 2


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mortal. Alex era grande, musculoso e muito forte. Disso tudo ela sabia. Conhecia cada detalhe daquele corpo. Portanto, não tinha o que temer. Mas, mesmo assim, permanecia paralisada, incapaz de tirar os olhos dele. Alex parecia um deus da guerra, impiedoso, implacável e lindo. Os outros homens lutavam; ele dançava. A terrível dança da morte se dava em um ritmo primitivo, o qual ela sentia nas profundezas de seu ser. Os mascarados eram guerreiros bem treinados, mas só sabiam lutar juntos. Alex, por sua vez, sabia como lutar sozinho. Além do condicionamento físico exemplar, ele combatia com a mente, o que representava uma arma letal. Ainda assim, havia três... não, dois contra um. Apenas dois. Eles urravam de ódio, atacavam, levando Alex para os fundos da caverna. Joanna se levantou, cambaleante. Estava dolorida e tropeçando na barra da túnica, mas não hesitou. Desesperada, agarrou uma espada. De tão enfraquecida pelo medo, não conseguiu sustentar o peso da arma. Determinada, endireitou o corpo e seguiu o som dos gritos e das lâminas colidindo até que todos se aproximaram de uma corredeira. Um rio, tal qual ela deduzira. Lá as tochas também iluminavam a luta dos guerreiros. A dupla ainda resistia. Os dois agora sabiam que não eram páreo para o único oponente e, se tivessem alma, estariam com medo. No entanto, atacavam com mais ferocidade, impelindo Alex a se aproximar da corredeira. Deus, por que estava parada? Tinha uma arma e, acima de tudo, determinação. Segurou a espada com as duas mãos, ergueu-a e correu até os homens. Alex vacilou antes de redobrar seu ataque. Pelos deuses, ela o levaria à loucura. Ou à bebida. Ou a ambos. Tinha aqueles dois idiotas exatamente onde os queria, desesperados, mas confiantes. E agora ela vinha... O que Joanna exclamava? Uma espécie de grito de guerra. Parecia arcaico e impressionante. O jeito como ela segurava a espada indicava que sabia como usá-la. E por que não? Lady Joanna Hawkforte não era uma dama fútil. Era uma mulher capaz de acender uma chama no coração de um homem e orgulhá-lo de tal forma que chegava a doer. Ela parecia furiosa e... ágil. Não estava assustada por causa do canalha, agora morto, que tentara violentá-la enquanto os outros aguardavam sua vez. Não pense nisso agora. A névoa vermelha se dissipou. Alex se sentiu frio e controlado. Até que um dos mascarados avistou Joanna e avançou em sua direção. Devido à imprudência, o homem conseguiu perder o braço que segurava a espada. A dama não tinha nenhum bom-senso, somente ousadia. — Joanna, afaste-se! Por um milagre, ela obedeceu. Alex quase lamentou não poder parar para apreciar o momento. Talvez mais tarde. Agora tinha outro assunto a resolver. Olhou para o rosto que tanto amava. Ela o esperava, resoluta. O alívio 2


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foi tamanho que o instigou a prosseguir. Restava somente um. Os olhos por trás da máscara de touro miraram Joanna. Se a pegasse, o bandido a usaria como escudo. O coração de Alex quase parou quando viu o homem avançar. Entretanto, ela estava preparada para aquele movimento; antecipara-o, como um guerreiro o faria, e se desviou antes que o bandido a agarrasse. — Deveria ser capaz de capturar uma mulher — Joanna zombou dele. — Mas vejo que sou mais rápida e habilidosa que você! Era uma boa artimanha, Alex pensou, apreensivo. Um guerreiro disciplinado ignoraria o escárnio de uma mulher e se concentraria na ameaça real, o outro guerreiro. Mas aquele imbecil fez justamente o contrário. Ficou tentado, mas a razão o impediu. Para atacar Joanna, ele teria de dar as costas a Alex, o que seria sua morte. — Imagino se você teria potência para se aproveitar de mim quando chegasse sua vez lá na caverna — Joanna o provocou. Um grunhido de raiva emergiu do mascarado. Ele se lançou em cima de Joanna quando Alex praguejou e correu. Ela se esquivou do bandido pela segunda vez, dando a Alex a oportunidade perfeita para matá-lo. Assim que terminou, ele encarou Joanna. — Sua maluca! Em que diabos você pensou? Achou que eu não poderia com eles? Que eu não tinha a situação sob controle? Precisava se colocar em perigo, provocar aquele cretino, encorajá-lo a agredi-la? Alex marchou até ela e a tomou nos braços. Joanna o beijou, fervorosa. — O que queria que eu fizesse? — ela murmurou e aprofundou o beijo. Quando as bocas se separaram, estavam ofegantes. — Eu devia me esconder embaixo daquela mesa e deixar que lutasse sozinho? Você me salvou, Alex. — Joanna deslizou as mãos ao longo das costas musculosas. — É um guerreiro magnífico, mas não ouse me recriminar por ajudá-lo. Se algo lhe acontecesse... Ela estava tremendo. A mulher que tanto desejava tremia só de pensar no que poderia ter acontecido a ele. O coração de Alex pareceu se expandir no peito. Em outras circunstâncias, esqueceria tudo e a possuiria ali mesmo. — Meu Deus, Royce! — Joanna exclamou. — Gritei porque aqueles homens estavam a ponto de matá-lo. Não sabia o que fazer, a não ser distraílos... — Calma. — Alex acariciou os cabelos revoltos. — Meus homens cuidaram deles. Não tema. Royce deve estar bem. — Graças a Deus! Preciso vê-lo, Alex. Depois de tanto tempo, não posso esperar... — Eu sei. Vamos sair daqui. Fique perto de mim e, se alguém aparecer, não se atreva a interferir porque eu... Alex se calou. Sob seus pés, o solo vibrou. Um terremoto? Ouvira falar do fenômeno, mas esse tipo de coisa nunca acontecera em Akora. O instinto o levou à ação. Atirou-se com Joanna ao chão e a cobriu com o próprio corpo. A caverna estremeceu com a força de uma explosão. Paredes e teto estremeceram violentamente. Pedras, algumas do 2


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tamanho de uma carroça, caíram. Cego por causa das nuvens de poeira, Alex mantinha Joanna sob seu corpo. Meros segundos se passaram antes que o abalo cessasse, mas o breve período pareceu a eles uma eternidade. Então veio o silêncio, rompido pelo rolar de uma pedra ou outra e por um som que Joanna levou alguns momentos para identificar. Ondas. Escutou o ruído da água invadindo o chão da caverna. O rio transbordava. Cuidadoso, Alex se levantou e ajudou Joanna. Todas as tochas haviam se apagado, restando apenas uma. Ele a pegou e a ergueu no ar a fim de avaliar a situação. Onde existia a entrada da câmara agora só havia uma parede sólida de pedras. — O que aconteceu? — perguntou Joanna. — Uma explosão de barris de pólvora, muito provavelmente, intencional. Ela o encarou sob a fraca luminosidade da tocha. O rosto de Alex estava coberto de poeira, como o dela também devia estar. Havia um ferimento na testa, uma evidência de quão perto ele poderia ter chegado da morte para protegê-la. Joanna engoliu o nó que se formava em sua garganta e lembrou a si mesma de que era uma Hawkforte. — O autor dessa explosão é a mesma pessoa que capturou Royce. Alex assentiu, mais uma vez grato pela perspicácia de Joanna. — No mínimo, a explosão serviu para apagar qualquer vestígio de suas atividades. Prender-nos aqui foi certamente, uma consequência benéfica. — Devo dizer que ele foi bem-sucedido. De fato, estavam mesmo presos entre paredes de pedras. Ainda assim, Alex parecia tranquilo. Outro aspecto do treinamento de guerreiro, sem dúvida. Reconhecer o medo era o primeiro passo para se render a ele. Segurando a mão de Joanna, Alex se aproximou do rio, que retomava seu curso natural. — Atreus e eu exploramos estas cavernas quando garotos. — Já eram usadas para rituais nessa época? — Não, isso tudo é muito recente, e sem permissão. De qualquer forma, acho que me lembro deste rio. — Acha? — Rios subterrâneos não são tão raros, mas este me parece familiar. — Então você sabe aonde vai dar? — Ele desemboca perto da entrada das cavernas. —-Alex a encarou. — Sabe nadar? — Sei. — Refiro-me a nadar de verdade. A corrente é muito forte, e há pontos em que não conseguiremos chegar à superfície para respirar. Pontos esses que seriam profundamente escuros. Não pense nisso. Pense somente em estar novamente com Alex à luz do sol. — Sei nadar muito bem.

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Ele a fitou por um longo tempo, vendo sinceridade nos olhos brilhantes. Também enxergou a valentia na postura altiva. — Muito bem. — Alex colocou a tocha no suporte mais próximo. Então, segurou a barra da túnica de Joanna e a rasgou. Em seguida, testou a resistência do tecido. — É uma seda boa. Vai servir. — Para quê? — O maior perigo está em nos separarmos. Na escuridão submersa. — Prefiro que isso não aconteça. — Eu também. Vou amarrar uma extremidade do tecido em sua cintura e a outra na minha. Nadaremos juntos. Assim, conseguirá perceber o momento em que eu emergir e fará o mesmo. — Você disse que há pontos em que não teremos como respirar. — Sim, dois. Eu lhe direi quando estivermos prestes a atravessá-los. — Lembra-se deles tão bem assim? Quantas vezes você e Atreus nadaram neste rio? — Nós o percorremos até concluirmos que nenhum dos dois seria capaz de superar o outro. Isso levou um bom tempo. — Ah... E você ainda chama a mim de maluca? — provocou Joanna, bem-humorada. — Se lhe serve de consolo, fomos devidamente castigados quando nosso pai descobriu. — Verdade? O que ele fez? — Obrigou-nos a limpar os estábulos durante um mês inteiro. Joanna, que havia tirado muito estéreo dos estábulos de Hawkforte, riu até ouvi-lo acrescentar: — Os estábulos do palácio abrigam trezentos cavalos. — Meu Deus, vocês passavam o dia juntando estéreo! — Dezoito horas diárias. Nosso pai disse que, se tal trabalho servira a Hércules, sem dúvida serviria para nós. — Ainda bem que ele não obrigou vocês a executar os doze trabalhos de Hércules... — Eu não me importaria em capturar o cinturão da rainha das amazonas. — Alex beijou os lábios de Joanna. — Pronta? Ela assentiu, respirou fundo e entrou com ele no rio. A água estava fria, mas suportável. Joanna já havia nadado em temperaturas mais baixas. No entanto, jamais mergulhara no escuro. Muito menos na escuridão subterrânea. Não pense, nade, disse para si mesma. A corrente era forte, e eles foram levados para longe da câmara em ruínas. Joanna olhou para trás a tempo de ver a chama da tocha desaparecer. Uma escuridão total a envolveu. Seu coração começou a disparar, e a respiração ficou ofegante. Precisava se acalmar. Em breve, sua vida dependeria do controle respiratório. Deixou a corrente levá-la e nadou só com 2


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as pernas e um braço. Com o outro ela segurava firmemente a faixa de seda que a prendia a Alex. Foi a constatação de que estava ligada a ele que a impediu de ceder ao pânico. Estava escuro demais. Não conseguia enxergar absolutamente nada. O rio fez uma curva inesperada. Pega de surpresa, Joanna ralou o corpo nas rochas submersas ao longo do banco. Ignorou a dor e nadou com mais afinco em direção ao centro da corredeira. — Você está bem? A voz de Alex surgiu como uma luz brilhante na escuridão. Ele parecia seguro e, graças a Deus, perto. — Estou. Quanto falta ainda? — Muito. Pararemos em um instante. Depois de outra curva, ela piscou várias vezes, achando que seus olhos a iludiam. De repente, a escuridão ficara... esverdeada? Alex os guiou a uma estrutura rochosa que descia até a água. Essa estrutura e as paredes ao redor estavam cobertas de líquen, que cintilava sob a negritude. — Incrível — Joanna murmurou. Ela descansou os braços na pedra e olhou os arredores. Faixas prateadas se estendiam pelas paredes e desciam em direção ao rio. — A vida sempre encontra um caminho — Alex ponderou. — Suponho que essas criaturas sejam parentes daquelas que vivem no Poço dos Suspiros. — Por um momento, ele pareceu completamente absorvido pelo mistério daquela luminosidade peculiar. — Nunca pensou em se tornar um pesquisador em vez de guerreiro? — perguntou Joanna. — O que a fez considerar essa possibilidade? — Alex pareceu surpreso. — Seu interesse pelas coisas e sua... — ela sorriu, desconcertada — ...paciência. — Admito que pensei nisso, mas nunca foi uma possibilidade real. Além do mais, também fui atraído à vida que me foi planejada. — Talvez, um dia, você consiga conciliar ambos. — Pode ser, se Akora estiver em segurança. Permaneceram em silêncio por um momento, antes de Alex avisar: — Temos de ir. O próximo trecho é difícil. O teto da caverna desce ao nível da água. Não há como subir para respirar. — Por quanto tempo ficaremos sem ar? — Joanna indagou, apreensiva. — Tempo suficiente para você achar que não vai conseguir, mas vai. — Ele a abraçou e disse: — Inspire fundo, solte o ar... Isso. Mais uma vez. Joanna inspirou três vezes. A cada respiração, ela inalava mais ar. Na terceira tentativa, Alex se deu por satisfeito. Com um sorriso, mergulhou, e Joanna o seguiu. A escuridão se fez novamente e, para complicar a situação, ela tinha a consciência de que agora estava realmente encurralada. Não podia subir para tomar ar. Os pulmões pareciam de pedra, de tão pesados. Em vez de temer 2


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um afogamento, concentrou-se em nadar a fim de acompanhar Alex. Ele mantinha um ritmo constante, o que indicava que havia ainda um longo percurso pela frente. A necessidade desesperada de respirar se tornava mais urgente a cada momento. Joanna se agarrava à esperança de que em algum momento ambos voltariam à luz e, a cada braçada, acreditava que aquela seria a última. Por fim, quando pensou que não mais suportaria a falta de ar, ela foi levada à superfície. Apoiando-se em Alex, inspirou várias vezes até que a sensação de asfixia amenizasse. Ele também recobrava o fôlego, enquanto mantinha ambos à superfície. — Estou bem — Joanna garantiu. — Pode me soltar. Embora não o enxergasse, ela sentiu sua hesitação. — Tem certeza? — Tenho. Foi... um desafio, mas estou bem. — Graças aos deuses, é uma mulher de coragem. — Ele riu. — Daqui, iremos até outra caverna que possui o mesmo tipo de iluminação. Depois disso, atravessaremos outra passagem coberta, mas essa é mais curta. Joanna assentiu, aliviada por o pior já ter passado. Tal constatação a ajudou a enfrentar o outro trecho sem maiores dificuldades. Quando Alex emergiu, trazendo-a consigo, ela sorriu, embora batesse os dentes. — Estamos quase chegando? — Estamos. Já é noite, mas acredito que a lua esteja alta. Você saberá quando nos aproximarmos da abertura da caverna, porque haverá luz. E como passamos muito tempo no escuro, a luz parecerá mais clara do que realmente é. Ansiosa para prosseguir, Joanna assentiu. Mas Alex ainda hesitava. — Quando vir a luz, precisa estar preparada. — Preparada para quê? — Como eu lhe disse, o rio desemboca nas proximidades da entrada da caverna. Nesse ponto, ele se torna uma cachoeira. Alex devia estar brincando. Após sobreviver a uma explosão e ser obrigada a nadar metros e metros embaixo d'água num rio subterrâneo, ele não podia dizer que iriam despencar em uma cachoeira! — Já saltou de cachoeiras alguma vez? — Poucas vezes. Em Hawkforte. — O rio termina em uma pequena lagoa, cujo fundo é de areia. Você ficará bem. Oh, claro! Aliás, ela agora percebia por que Alex e o irmão haviam feito aquele trajeto aquático só por "diversão". — Espero que não se importe de eu dizer — comentou ela —, mas creio que seu pai foi muito bondoso ao dar aquele castigo. Limpar os estábulos de trezentos cavalos durante trinta dias foi o mesmo que passar a mão na cabeça de vocês. — Minha mãe achou a mesma coisa. Pronta? Não, mas isso não importava. Ela respirou fundo, segurou o ar e o 2


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seguiu. Momentos depois, ouviu um forte murmúrio de água e percebeu que a negritude impenetrável estava diminuindo. Conseguiu divisar os contornos das paredes de pedra ao redor e notou um reflexo na água. O luar. Estavam quase saindo. A qualquer instante... — Primeiro a cabeça! — Alex gritou para se fazer ouvir. — Empurre o fundo da lagoa com os pés assim que o atingir. "Atingir". Que péssima escolha de palavra. Teria sido melhor ele dizer "tocar" ou "encostar"... De repente, Joanna se viu fora da caverna, engolfada pelo brilho prateado da noite, e caindo rapidamente. Olhou para o vulto que devia ser Alex, viu-o mergulhando na piscina e mal teve tempo para respirar antes de cair na água. O impacto a levou à ação. Se chegou a atingir o fundo, ela não percebeu. Lutou com todas as forças para voltar à superfície. Um instante depois, colocou a cabeça para fora e foi envolvida pelos braços de Alex. Ambos nadaram até a margem. — Conseguimos — ele anunciou, carregando-a. — Pelos deuses, nós conseguimos! — Não se mostre tão surpreso. Afinal, você já fez isso várias vezes. Alex riu, aliviado. — Eu era jovem e tolo. Nunca pensei que faria de novo, muito menos com uma mulher, a quem devo proteger do perigo. — Deve? — ela indagou, carinhosa. Em outra circunstância, Alex se deixaria envolver. Mas não era hora nem lugar para isso. — Joanna, podemos discutir esse assunto ao pé daquela montanha ou procurar um lugar para nos sentarmos e resolver o que fazer. Como guerreiro, recomendo a segunda opção. — A verdade é que não tenho forças para discutir. — Que bom. Os deuses são piedosos. Minutos depois, ela percebeu que Alex ainda a carregava. — Por que não paramos? — Já, já. Finalmente, Alex se deteve em meio a uma floresta que bordejava o rio. As árvores estavam tão próximas que o luar não conseguia penetrar entre as folhas. Mais uma vez, foram envolvidos pela escuridão. Ele a colocou no chão, mas não descansou. Tirou a espada da bainha e começou a secar a lâmina com as folhas secas. Após observar aquele cuidado meticuloso, Joanna perguntou: — Acha que os homens que capturaram Royce devem estar por perto? — Meus homens devem ter matado os que vigiavam seu irmão, mas alguém sobreviveu para provocar aquela explosão. O bom-senso me obriga a ser cauteloso. — Temos de encontrar Royce. — Quando se levantou, Joanna percebeu o grau de seu cansaço. 2


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Alex tocou-lhe o ombro. — A lua logo irá desaparecer. Não vamos explorar esta ilha no escuro, sem saber que inimigos estão à espreita. Mesmo a contragosto, Joanna teve de admitir que ele estava certo. Mas foi difícil ceder. A imagem de Royce na caverna a assombrava. Tinha uma necessidade desesperada de saber se o irmão estava a salvo. Até lá, descansar seria impossível. Depois de deixar a espada a seu lado, Alex se deitou com Joanna e a tomou nos braços. — Durante o treinamento de um guerreiro, aprendemos quando despender energia e quando poupá-la. — Com quantos anos você começou a treinar? — Seis. — Tão cedo? O que sua mãe achou disso? — Não sei — Alex admitiu. — Mas é nessa idade que os meninos saem de perto das mulheres e vivem entre os homens. — Não sentiu saudades de sua mãe? — Na verdade, não. Eu a via todos os dias pela manhã e à noite. Joanna se sentou e olhou para ele. — Então você não saiu de perto das mulheres. — Saí, mas foi de forma simbólica. Não houve muitas mudanças na época. Sabe que preservamos nossa tradição respeitando-a. — Sei, sim. Tentamos fazer algo semelhante na Inglaterra, mas não tivemos êxito. Inglaterra. Um assunto para um outro momento. — Tente dormir — Alex sugeriu. Joanna assentiu e se aninhou a ele. Não conseguiu dormir profundamente, mas tampouco ficou desperta. Sua mente revivia as cenas das últimas horas... Royce, os homens mascarados, a luta de Alex, a explosão, o rio e, por fim, o renascimento desesperado. Quão perto haviam chegado da morte... Ela murmurou algo que Alex não compreendeu. Ele a acalmou com palavras doces até senti-la relaxar contra si. Que mulher surpreendente, tão corajosa, tão determinada... tão inglesa... e tão leal ao irmão. Alex a admirou sob as estrelas. Os lábios estavam levemente entreabertos. O vestido, tal qual os cabelos, havia secado, mas o tecido pouco escondia a beleza feminina. A fragrância de Joanna o invadiu. Era cedo demais. Ela vivera uma experiência difícil e estava exausta. A voz da consciência exigia que a deixasse descansar. Mas havia um concorrente muito mais primitivo. Alex lutara por ela. Um homem sábio e controlado não cederia ao desejo. No entanto, a sensação avassaladora sempre emergia quando estava perto dela. Ou longe. Tanto fazia. Roçou os lábios na face macia. Joanna murmurou e se aproximou mais. O conflito entre as lealdades ameaçava separá-los. Joanna era leal ao 2


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irmão; Alex, a Akora. Seria uma desonra mantê-la consigo a qualquer custo? A curva do pescoço lhe pareceu tentadora. Podia sentir o sangue de Joanna pulsando sob a pele alva. O desejo aumentava. Alex acariciou um dos seios e notou que ela, semi adormecida, sorria. O vestido deslizou facilmente dos ombros. A pele, empalidecida pela noite, estava quente sob seus lábios. Mais um instante ou dois e ele se afastaria... As pernas esguias se insinuaram. Alex olhou para elas e viu as próprias mãos erguendo a barra do vestido. De súbito, a necessidade de assegurar a forte ligação que houvera entre ambos no Poço dos Suspiros foi mais forte que a razão. Lady Lua tivera um amante, que caíra de seu posto celestial e se afogara, deixando-a suspirar por ele por toda a eternidade. Alex não era Heitor, muito menos um fragmento da lenda. Era um príncipe e um guerreiro, mas, acima de tudo, um homem. Um homem incapaz de resistir ao sonho de beleza, força, coragem e ternura diante de si. Observou o rosto de Joanna quando se deitou sobre ela. Joanna sentiu a liberdade de ser carregada pelo vento. Deixou-se levar pelo sonho através da escuridão e da luz. Calor e luminosidade cintilante, que dissipavam o medo, permitindo somente a tranquilidade. Excitada, ela agarrou a pele quente dos ombros largos. O som de seu nome a fez estremecer. — Joanna, tão linda... Ela abriu os olhos. Alex. Companheiro de aventuras. Amigo. Amante. — Alex... Ele se movia devagar. Joanna viu em seu semblante o abandono total do controle e da disciplina. E sorriu. — Joanna... A sensação de prazer ascendeu a patamares inimagináveis e parecia não ter fim. Ela percebeu que gritava, sabia que ele abafava o som e sentia o próprio corpo clamar pela exaltação. E, por fim, quando atingiu o clímax, não pressentiu mais nada.

Joanna acordou e fitou o céu azulado e as nuvens brancas. Havia amanhecido. Estava deitada. Algo pesado a mantinha no chão. Era grande, quente e muito familiar. Alex. Admirou os cabelos negros e a barba por fazer que cobria o rosto de traços marcantes. Ele parecia tão... querido. Sim, essa era a palavra mais adequada e também o motivo do aperto que ela sentia no coração. E do desejo, tão egoísta, de manter o mundo à margem e esquecer por um instante o chamado incansável do dever. Cuidadosa, afastou o braço de Alex e se levantou. A intenção era se distanciar dele, mas a faixa de seda a impediu. Fitou o tecido preso à cintura, 2


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percebendo que havia apagado da mente o nado desesperado no rio, a escuridão horrorosa. Havia esquecido também o fogo incandescente que se seguira à aventura quase mortal. De repente, desesperada, pegou a espada de Alex a fim de cortar a seda. Mas antes que pudesse tirar a lâmina da bainha, uma mão ágil segurou a dela. — Joanna... — Eu queria cortar o tecido — ela explicou, indicando a faixa de seda. Alex assentiu e se sentou com a mesma prontidão que o levara aos sonhos; sonhos que ainda reverberavam em seu corpo e sua mente. Por um instante, ficou tentado a mantê-la presa a si. Uma vontade impossível. Assim que cortou a seda, ele se levantou. — A piscina está logo ali. Como não quisesse fitá-lo, Joanna tomou a dianteira. Caminharam em silêncio, sem se tocar. Ela ouviu o ruído da queda-d'água antes de vê-la. Por um momento, reviveu o mergulho, como se fosse realizá-lo de novo. — Preciso ver Royce — anunciou, de repente. Alex permaneceu em silêncio por alguns segundos. Estava a menos de um metro de distância, mas parecia muito mais distante, como se um precipício já os separasse. — Sim, é claro. — Você compreende... — ela começou, sem saber ao certo o que dizer. Mas nada disso importou. Antes que Alex respondesse, uma outra voz os interrompeu. — Archos! Ambos se viraram para ver um dos homens de Alex se aproximando. — O inglês da caverna? —Alex perguntou. — Ele está bem? — Sim, archos. Está a caminho de Ilius — o homem informou, aliviado. Ele nem sequer olhou para Joanna. — Trouxemos nosso barco, mas encontramos um bote na praia. Alguns homens o levaram de volta com o xenos. — Ótimo. E quanto aos mascarados? Algum sinal deles? — Nenhum, archos. Nossos esforços para entrar na caverna depois da explosão foram infrutíferos. Graças aos deuses, está vivo. — Diga aos homens que zarparemos agora mesmo. O guerreiro inclinou a cabeça e então desapareceu entre as árvores. — Temos de ir — Alex informou a Joanna. Ela assentiu, preferindo manter-se calada. Então, caminharam juntos até a praia. Ao longo da trilha, os corpos de ambos se esbarraram duas vezes. Nesses momentos, Joanna conteve a tentação de tocá-lo, sentir o calor de Alex e ser confortada por ele. Muito antes de se sentar no convés e observar as velas ao vento, o dia ensolarado foi obscurecido pelas sombras em seu coração. 2


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E, ainda assim, a alegria se fez presente, encobrindo temporariamente a preocupação. Com os homens ao remo, chegaram a Ilius em pouco tempo. Joanna já estava no cais mesmo antes de a âncora atingir o fundo do mar. Ignorando a compostura, ela segurou o que sobrara da barra da túnica e correu. O pátio do palácio estava repleto de pessoas, como sempre. Alheia aos olhares atônitos, ultrapassou os transeuntes e se precipitou à escada que dava acesso aos aposentos da família real. Lá, ela se deteve, percebendo que não sabia para onde ir. Onde estaria Royce? Ele, sem dúvida, fora levado ao palácio, mas e depois? Enquanto olhava os arredores, sentiu alguém tocar seu braço, o que a fez pular de susto. — Por aqui — indicou Alex. Ele chegou tão sorrateiro que Joanna nem sequer pressentira sua presença. Enfim, concluiu que seu comportamento no cais devia ter sido inadequado aos olhos do príncipe e de seus homens. No fundo, não queria constrangê-lo, mas tampouco conseguiria esperar mais que o necessário para ver Royce. — Ele está no quarto de hóspedes — Alex informou com uma calma admirável. Ainda segurando-a pelo braço, conduziu-a pelo corredor. Uma das portas estava aberta. Criados entravam e saíam. Uma mulher de cabelos grisalhos se achava à cabeceira da cama. As janelas amplas permaneciam escancaradas para permitir a entrada de luz e ar. Joanna sentiu o coração se apertar quando entrou no quarto. Tremia tanto que receava cair. Somente a mão de Alex a manteve em pé. Ela se aproximou da cama devagar. O homem ali deitado não se mexeu. Estava coberto por um lençol que não ocultava a forma extremamente depauperada. Os cabelos, que um dia haviam sido loiros, eram um emaranhado de cor indeterminada. O rosto se achava oculto sob uma barba crescida. Mas, apesar de tudo isso, ela o reconheceu, tal qual ocorrera na caverna. Não precisou ver a fina cicatriz na mão esquerda, lembrança do acidente com um anzol na infância, para ter certeza de que era seu irmão. — Royce! Joanna se ajoelhou ao lado da cama. O sofrimento e a angústia dos últimos meses afloraram de uma só vez. As lágrimas logo se tornaram um pranto convulsivo. Ela chorava de tristeza por vê-lo naquele estado e de alívio por ele ter sobrevivido. Em meio aos soluços, sentiu a mão de Alex em seu ombro, confortando-a. Quando Joanna se levantou e enxugou o rosto, ele acenou para a mulher de cabelos grisalhos. — Sou Elena, senhora, a mais experiente entre os curandeiros do palácio. Seu irmão sofreu muito, mas é jovem e forte por natureza. Vai se recuperar. — Ele está tão magro... — De passar fome, não porque esteja doente. A boa alimentação irá fortalecê-lo. 2


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— Por que o deixaram passar fome? — Joanna indagou a Alex, furiosa. — Não foi suficiente aprisioná-lo? Que tipo de monstro faria essa crueldade? — Não sei — ele admitiu. — Mas descobriremos os responsáveis e os faremos pagar. — Não sabe? Mas... — Ela se calou, lembrando que não estavam a sós. Alex a levou para um canto do quarto, enquanto Elena e suas assistentes ocupavam-se com Royce. — Entendo que você responsabilize Deilos e talvez os outros reacionários do Conselho pelo que aconteceu com seu irmão. Mas com a explosão nas cavernas, os corpos dos mascarados não poderão ser encontrados. Portanto, não temos provas do envolvimento de nenhum deles. — Quem mais poderia ser? — Possivelmente, os rebeldes. Esteja certa de que é isso que Deilos irá alegar. Talvez seu irmão, quando acordar, possa nos dizer mais. Nesse ínterim, temos de ser cautelosos. O rei deve garantir justiça para todos. Se Atreus fizer acusações sem provas, o crime poderá se voltar contra ele. Antes que Joanna pudesse protestar, Alex acrescentou: — Precisamos esperar que Royce nos forneça as evidências de que necessitamos. A mente sagaz de Joanna atinou para o perigo que o irmão ainda corria, caso os inimigos quisessem se assegurar de que ele nunca mais falasse. — Ele precisa de proteção. — Sim, ele e você. Também estava nas cavernas, Joanna. O responsável não tem como saber o que você viu ou ouviu. — Não vi nem ouvi nada de útil. — Ela suspirou, desanimada. — Nem eu. A verdade é que essas pessoas foram muito cuidadosas. Alex ainda refletia a respeito dos últimos eventos quando, após deixar Joanna, adentrou os aposentos particulares do rei. Lá os irmãos conversaram longamente, enquanto o dia chegava ao fim e o véu da noite cobria Akora.

Depois de tomar banho e trocar de roupa, Joanna permaneceu ao lado do irmão. À cabeceira da cama, ela segurava a mão de Royce e falava da infância que haviam tido juntos, de como ele era importante em sua vida, das preocupações que tivera e, acima de tudo, assegurava-o de que tudo ficaria bem. Falou até a garganta arder e, finalmente, ceder à exaustão. Por fim, adormeceu ao lado de Royce e nem sequer percebeu quando Elena a cobriu com uma manta. Dormia profundamente quando um grito a despertou. Royce estava sentado na cama, com os olhos arregalados e o rosto contorcido de angústia. — Joanna! Por puro instinto, ela o abraçou na tentativa de acalmá-lo. — Estou aqui, Royce. Você está livre. Acabou...

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Atônito, ele parecia não entender o que Joanna dizia. Mas logo surgiu o reconhecimento, seguido do desespero. — Não, Joanna! Diga-me que estou sonhando, você não está aqui... Fraco, Royce tombou nos travesseiros. Ainda a observava como se esperasse vê-la desaparecer de um minuto para o outro. — Estou aqui de verdade, Royce, não é sonho. Estamos no Palácio Real de Akora! E você está sendo muito bem tratado. — Ela apontou Elena, que se levantava da cadeira próxima à cama. — Vai se recuperar e ficar bom logo, logo. Royce pediu que a irmã se aproximasse e, em uma voz muito baixa, disse: — Precisamos conversar a sós. — Ninguém mais aqui entende nosso idioma, Royce. — Você não tem certeza... Não pode confiar neles. Vamos conversar sozinhos. Joanna se voltou para a curandeira. — Elena, poderia nos deixar a sós um instante? Meu irmão e eu não nos vemos há tanto tempo que gostaríamos de um pouco de privacidade. Elena assentiu e se retirou, fechando a porta. No instante em que a curandeira saiu, Joanna notou os dois guardas que vigiavam o corredor. — Estamos sozinhos. Agora, meu irmão, diga-me o que o perturba. — Sua presença em Akora me perturba. — Royce respirou fundo para adquirir forças. — Meu Deus, Joanna, o único consolo que tive durante esses meses foi saber que, pelo menos, você estava a salvo na Inglaterra! — Continuo a salvo, e você também. Saiba, Royce, que aquelas histórias sobre os akoreanos matarem os xenos não passa de uma mentira. O rei não fará nada contra nós. O irmão dele, o príncipe Alexandros, liderou os homens que resgataram você. — O famoso marquês de Boswick. — Royce torceu o nariz. — Não cometa o erro de confiar nele. Não é nosso amigo. — É, sim! Ele arriscou a vida para salvá-lo, Royce. — De um confinamento ordenado pelo próprio rei? Não faz sentido. Joanna o encarou, incrédula. — Como disse? Quem você pensa que é o responsável por sua captura? — O rei, Atreus... o irmão de Darcourt e o soberano a quem ele serve. — Não, Royce, você está enganado. Alex e o irmão não têm nada a ver com sua prisão. Eles não sabiam que você estava em Akora. — Então, como fui descoberto? — Eu o encontrei. Sabe que tenho um dom. Se me aproximasse do lugar onde você estava, eu tinha certeza de que conseguiria encontrá-lo. E consegui. Assim que descrevi sua localização a Alex, ele saiu com seus homens para libertá-lo. — Ele lhe disse isso? — Não... eu fui com ele. Vi tudo o que aconteceu. Havia homens usando 2


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máscaras de touro. Eles o tiraram da cela e o levaram para umas cavernas subterrâneas. Creio que pretendiam matá-lo... Royce segurou a mão da irmã. — Não sei o que Darcourt lhe contou, ou por quê, mas tenho certeza de que o rei é o mandante da minha prisão. — Como pode ter tanta certeza? — Escutei os guardas se gabando. Disseram que cumpriam as ordens do Vanax. — Tem certeza de que entendeu direito? Ele assentiu, determinado. — Eu a vi falar com a curandeira. Sem dúvida, você deduziu o mesmo que eu, que a origem da língua de Akora está no grego, um idioma que aprendemos quando crianças. Portanto, pude compreender o que eles diziam. — Mesmo assim... — Pelo amor de Deus, Joanna, sei muito bem o que ouvi! — Não pode ser. Alex saberia, caso o irmão estivesse envolvido, e... E o quê? Ele teria lhe contado? O príncipe era leal a Akora, não a ela. Seria uma tremenda tolice ignorar tal verdade. — Alex? Tornou-se amiga de Darcourt? — Não... Esqueça tudo isso, Royce. Está exausto e precisa descansar. Joanna temera certa resistência do irmão, mas a fraqueza era tanta que ele se entregou ao sono. Depois de murmurar uma prece de agradecimento, ela se aproximou da janela. A lua brilhava sobre a cidade adormecida, mas Joanna nem sequer notou a beleza da noite. Nos últimos meses, não havia pensando em nada, a não ser em encontrar o irmão. Royce fora a Akora com um propósito que muito provavelmente ele voltaria a perseguir, já que agora estava em liberdade. Ela, obviamente, ficaria ao lado do irmão. Não precisava participar a Alex, uma vez que muitas coisas ainda permaneciam... inexplicáveis. Alex lhe dissera que não havia nada a temer. Teria mentido? Ou falara somente no auge da paixão? Joanna não sabia, porque, no fundo, não o conhecia tão bem assim. Aliás, mal conhecia a si mesma quando estava com ele. Agora, sozinha com o irmão adormecido, lembrava-se muito bem de quem era: lady Joanna Hawkforte, uma camponesa sem pretensões, avessa às vaidades da sociedade, satisfeita com o ritmo pacato de sua vida. Uma mulher que havia embarcado em uma aventura extraordinária com o único objetivo de encontrar o irmão desaparecido. Voltou à cabeceira da cama e o observou dormir. Ela, porém, não pregou os olhos a noite toda. Se estivesse correto, se o rei fora o responsável pela captura, Royce continuaria correndo perigo, caso permanecesse em Akora. E agora, a segurança de seu irmão era o mais importante de tudo. Assim que o dia nasceu, ela saiu à procura de Alex. Ele não estava em seus aposentos. A cama não fora desfeita. Joanna 2


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respirou fundo e fechou os olhos.

À luz do dia, o Poço dos Suspiros parecia comum. Não dava sinais dos segredos que ocultava, Alex pensou. Ele fitava a água quando, de repente, ouviu passos. Olhou para trás e cruzou os braços a fim de não sucumbir à tentação de tocá-la. — Como está Royce? — Melhor, eu acho. Ele acordou no meio da noite. — E estava agitado. Elena me contou. E contara também que ela e o irmão quiseram conversar a sós. Elena não conhecia o idioma inglês, mas compreendera que havia segredos entre os dois. O que lorde Royce Hawkforte dissera à irmã? Por que pedira privacidade? — Ele está grato por continuar vivo, é claro. Joanna evitou fitá-lo, o que indicou a Alex que ela mentia. Certamente, Royce devia estar aliviado por sobreviver à prisão e à fome, mas não fora esse o assunto sobre o qual conversaram. Planos britânicos para invadir Akora, talvez? — Ele lhe contou por que veio para Akora? — Não. Se ela dizia a verdade, Alex não pôde determinar. — Ou revelou alguma prova de quem o aprisionou? Joanna hesitou. Alex teve a nítida sensação de que ela desejava desabafar. Mas apenas meneou a cabeça. — Nada. Ele está muito fraco. Dada sua condição precária, é impossível saber ao certo o que o trouxe a Akora. — Ela respirou fundo. — Portanto, o melhor é voltarmos para a Inglaterra. — As palavras soaram frias e duras. — Temos excelentes curandeiros. Elena e... — Eu sei, mas a Inglaterra é nosso lar, e acredito que Royce deva se recuperar lá. Foi imprudência da parte dele ter vindo para cá. Todos nós sabemos disso. — Entendo — murmurou Alex, embora preferisse recusar o pedido. Joanna se entregara a ele; portanto, ela lhe pertencia; e, portanto, não podia ser dela a decisão de partir. Seria a lealdade ao irmão que a impelia? Ou o desejo de retardar a descoberta do motivo que trouxera Royce a Akora? Ou simplesmente porque o encontro amoroso que ambos viveram para ela nada significava? Alex nem queria considerar a última possibilidade. Para se distrair, ele revelou: — Conversei com Atreus. — Ah, o rei... Seria imaginação ou ela se referira ao soberano com certo desdém? — O que ele disse? — Gostou de saber que Royce continua vivo, é claro. — De propósito, ele 2


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parodiou as palavras de Joanna e aguardou para ver que efeito surtiriam. Os olhos dela cintilaram. Joanna Hawkforte estava com raiva, mas Alex não sabia por quê. — É mesmo? Quanta gentileza! E ele não faz objeção a que Royce vá embora? Aquele era o cerne do problema. Atreus poderia muito bem proibi-los de partir. Tinha esse poder e, durante horas, ele e Alex haviam discutido a questão. O rei fora muito compreensivo. — Claro que não. — E você? — Sua lealdade é para com seu irmão. — Não havia meios de questionar tal fato. — A minha é para com Atreus. Sempre soubemos disso. — Por favor... — Joanna murmurou e lhe estendeu a mão em um gesto de súplica. Alex jamais se esqueceria da cena, tampouco da dor. Mas recuou um passo. Seu orgulho necessitava daquela pequena vitória. — Nós dois cumprimos nosso dever, não? — Oh, sim, sempre o dever. — Joanna estava pálida, e seus olhos... Alex não pôde decifrá-los. — Mandarei preparar um navio — ele informou, eficiente. — Obrigada — ela agradeceu, educada. Maldição. — Joanna... Para espanto de Alex, uma lágrima rolou pelo rosto dela. Estava chorando? A indomável mulher de Hawkforte cedia às emoções? — Estou ficando resfriada — ela declarou. — Deve ter sido o frio que passei no rio. Resignado, Alex fingiu acreditar, porque assim seria mais fácil para ambos.

Capítulo V

A casa exalava o aroma de limão. Não era a mesma fragrância de Akora, pois se tratava de uma essência que os criados utilizavam para polir os móveis. Casa. Joanna testou a palavra em sua mente quando parou no hall de entrada. A noção, porém, não se adequava, já que Hawkforte era seu lar, não a residência em Londres para onde ela e o irmão se dirigiram tão logo desembarcaram em Southwark. Royce insistira em voltar para Londres. Precisava se reunir com várias 2


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pessoas, mas não especificara quem. Não pretendia se recolher em Hawkforte para "convalescer", segundo ele. Não era um "inválido" e, portanto, não havia motivo para tanta preocupação. Se não o amasse profundamente, Joanna seria capaz de esmurrá-lo. Durante a viagem à Inglaterra, Royce engordara, mas abusara de sua debilidade física ao insistir em permanecer no convés. Sem dúvida, o sol e o ar fresco lhe fizeram bem, mas Joanna suspeitava de que ele não suportara ficar confinado entre as quatro paredes da cabine. Ela se virou para ver o irmão entrar na casa, amparado por Bolkum Harris. Ou melhor, este tentava por todos os meios ajudá-lo, mas Royce dispensou qualquer auxílio e caminhou por si só. Parou um momento no hall a fim de saborear cada detalhe. — Nada mudou — disse, sorrindo. — E por que mudaria? — Mulridge descia a escada, enfurecida. — Que bela baderna o senhor causou! Royce soltou uma gargalhada sonora. Era a primeira vez que ele ria desde que fora resgatado. Joanna sorriu, aliviada, quando o irmão abraçou Mulridge. — Ponha-me no chão, menino! — a boa governanta exclamou. — Em que estava pensando quando se aventurou por mares desconhecidos? — Ela encarou Joanna. — E a senhorita? Correu atrás de seu irmão sem calcular o perigo. — Nesse ponto, concordo com você, Mulridge. — Royce fitou a irmã. — Ainda não soube os detalhes do que aconteceu, mas vou saber. Joanna ignorou a rabugice dos dois. — A senhorita em questão teve sucesso em seu intento — ela anunciou. — Royce está são e salvo, e em casa. É tudo o que importa. Agora, se me dão licença, preciso de um banho. Na verdade, ela não necessitava de um banho, já que aproveitara o chuveiro da cabine da embarcação que os levara à Inglaterra. No entanto, aquela lhe pareceu uma desculpa satisfatória. — Sim, um banho... — Mulridge a examinou da cabeça aos pés — ...e roupas adequadas. O que é isso que está vestindo? — Um traje akoreano. É muito mais confortável que os vestidos ingleses. — Antes de subir a escadaria, Joanna se dirigiu ao irmão. — Espero que não cometa excessos, Royce, porque ainda não está totalmente recuperado. Joanna continuou a subir os degraus, rindo, enquanto Mulridge ditava ordens. — Está tão magro quanto um pangaré. Bolkum, diga à cozinheira para preparar os pratos favoritos de Sua Senhoria. Vá logo. Não temos tempo a perder. Ouvindo os esforços vãos de Royce para dispensar os cuidados da governanta, Joanna correu para seu quarto. Depois de passar mais de uma semana bancando a valente para o irmão e esquivando-se de suas perguntas, precisava desesperadamente de solidão. Mas não foi possível. Várias criadas logo apareceram em seu quarto, 2


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trazendo água quente, toalhas e lançando-lhe olhares curiosos. Elas tentaram ao máximo disfarçar, mas Joanna as escutou cochichar assim que terminaram as tarefas e saíram do aposento. Não podia recriminá-las pela curiosidade. Quando a viram pela última vez, ela era lady Joanna, uma mulher simples que não surpreendia ninguém, nem a si mesma. Quão equivocadas estavam! A mulher que agora a fitava no reflexo do espelho parecia ter saído de uma lenda. Os cabelos castanhos eram uma confusão de cachos por conta da umidade dos dias passados em alto-mar. Os olhos pareciam maiores em contraste com a pele bronzeada. Havia sensualidade em seus gestos e postura. Uma lembrança de Akora, ela concluiu com a vista enevoada. Ridículo. Não se daria ao luxo de chorar novamente. Havia derramado rios de lágrimas durante a viagem para casa. Seu coração clamava pelo bálsamo de Hawkforte. Costumava se perder nos campos arados, no ritmo das estações, nos sorrisos dos velhos amigos. Perder-se para depois se encontrar. Ela, que nascera com o dom de encontrar, acabara descobrindo a si mesma. Adequar-se a Hawkforte era incorporar o dever. A mulher no espelho entendia isso. Mulheres como ela compreendiam que o dever era mais importante do que elas próprias. Quando morressem, o legado do dever permaneceria. Era uma espécie de imortalidade. Helena de Tróia pensara nisso? Chegara a se perguntar se um dia seria lembrada? Sentindo que uma dor de cabeça se anunciava, Joanna abandonou o espelho e resolveu se banhar. Depois de se enxugar, teve dificuldade com o vestido. Atrapalhou-se com tantos botões e se sentiu tolhida sob as mangas justas e a saia pesada. Além disso, a cor do vestido era sem graça. Em que pensara quando escolhera aquele tecido escuro? Como não sabia a resposta, ela saiu do quarto. Estava preocupada com Royce, uma tendência que precisava superar. Ele recuperava as forças e, em breve, voltaria à vida normal. Portanto, ela precisaria inventar um jeito de continuar vivendo. Royce a esperava na sala de jantar. Ele também havia tomado banho e trocado de roupa. O traje que lhe servira impecavelmente agora estava frouxo sobre o corpo magro. Mas Royce não mais se assemelhava à figura esquálida que Joanna havia encontrado na caverna. Os cabelos loiros, que ela tinha aparado no navio, estavam penteados para trás como uma crina dourada. O mais importante foi o brilho de determinação nos olhos que se pareciam com os dela. Royce voltava a ser o irmão que Joanna conhecia. Ele a observava com extrema atenção. Após dez dias vendo-a em belos trajes akoreanos, Royce sem dúvida estranhava a deficiência do traje inglês. — Não me lembro desse vestido. Joanna se sentou à mesa. — E por que deveria se lembrar?

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— Não sei. Nunca dei atenção a detalhes como esse. — Ele parecia surpreso diante do lapso. — Tampouco eu — Joanna comentou. — Prefiro roupas simples e confortáveis para trabalhar em Hawkforte. — Você agora se sente diferente? Joanna sentiu o peito se apertar. Ela e o irmão sempre tinham sido íntimos. Esperava que pudessem resgatar o companheirismo. — As pessoas mudam, não? — Eu me perguntava se você mudaria. Nunca quis que fosse uma donzela fútil, mas achei que ficaria feliz se pudesse ampliar sua perspectiva do mundo. — Algo que Hawkforte não me proporciona? — Exatamente. Lamentei não estar em Londres durante sua primeira temporada. Se tivesse aproveitado mais, talvez desejasse voltar à cidade. — Duvido, já que a nobre sociedade para mim é um tédio. Além disso, havia problemas no continente que necessitavam de sua atenção. — Jamais lhe contei que problemas eram esses. — Nem precisava. Napoleão tentava bloquear os navios britânicos. O simples fato de uma embarcação passar por qualquer porto britânico fazia com que ele a controlasse. Só que essa atitude lhe causou vários problemas antes de ele retroceder. — Joanna encarou o irmão. — Problemas que, suponho, não estão completamente resolvidos? — Você sempre foi muito astuta, Joanna. Portanto, deve saber que, por esse motivo, não lhe contei o que andei fazendo nos últimos anos. — Tampouco me falou de seu trabalho no ministério. — Joanna, não trabalho para o ministério. Ela não ficou surpresa. Afinal, sempre se perguntara como Royce conseguia servir a uma instituição ultimamente caracterizada pela competição e mediocridade. Com tantas mudanças que o governo vinha sofrendo, que ministério conseguiria funcionar a contento? — Há um grupo de homens dedicados ao bem-estar da nação como um todo — Royce explicou. — Tenho orgulho de ser um dos membros. — Um grupo? Whig ou Tory? — Ambos e nenhum dos dois. O grupo transcende interesses pessoais e políticos. Você sabe que vivemos momentos de turbulência. — Quer dizer que alguns homens deixaram de lado suas ambições pessoais para servir a um bem maior? — Creio que essa seja a genialidade da nossa nação. Há alguns entre nós que enxergam para além da atual circunstância e veem o futuro de um governo verdadeiramente hábil para governar. — E na atual circunstância, vocês formam... o quê? Um governo paralelo? — Digamos que encontramos uma maneira de influenciar os eventos. — Prinny sabe? — Ele suspeita. É o suficiente. 2


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— Você correu um risco ainda maior do que eu imaginava, indo a Akora. — Porque não tive o apoio do Ministério das Relações Exteriores? Não teriam feito absolutamente nada. Mas falemos dos riscos e de Akora. Joanna suspirou, vendo agora que caíra em uma armadilha. — Prefiro mudar de assunto. — Você foi para lá como clandestina. — Os akoreanos não vendem passagens. — De alguma maneira, convenceu Darcourt a permitir que você completasse a viagem. — Ele é um cavalheiro. — Tudo indica que sim. Mas você conseguiu chegar às ilhas, é o que importa. Eu a congratulo, não só por me salvar, mas por conseguir realizar a jornada. Confesso que a experiência lhe fez muito bem. Com um gesto gentil, Joanna pediu ao criado que servisse a refeição. — Fora minha alegria de encontrá-lo vivo, conhecer Akora foi um sonho que se tornou realidade. Qualquer um em meu lugar se sentiria bem com a experiência. O primeiro prato foi servido. Joanna experimentou o peixe suculento, lembrando-se do sabor complexo de marinos. — Pelo jeito, você aprendeu mais sobre Akora do que eu — Royce comentou. — Alex foi muito... generoso. Royce largou o garfo e tomou um gole de vinho. Seus olhos, repletos de amor fraternal, não ocultavam a força essencial do homem. Ele também era um Hawkforte. — Acredita mesmo nele? A garganta de Joanna se contraiu. — Digamos que quero acreditar. — Mas entende por que não posso acreditar? Ou o príncipe Alexandros está associado ao irmão, ou é um tolo. Qualquer um dos casos o deixa em uma situação periclitante. Porque amava muito o irmão, Joanna declarou: — Há outra possibilidade. — De eu ter me enganado? Na verdade, eu gostaria de acreditar nisso, mas sei muito bem o que ouvi. — Em uma língua que você estava assimilando e sob circunstâncias tão penosas que poderiam confundi-lo. — Se eu tivesse escutado os guardas uma ou duas vezes, concordaria que podia ter me enganado. Mas os ouvi alegando que cumpriam as ordens do rei, várias vezes. Joanna não retrucou de imediato. Tentou imaginar como fora para o irmão permanecer em uma cela, escutando as conversas de homens que se alimentavam bem e caminhavam sob o sol. — Há algo que não entendo, Royce. Eles ficavam do lado de fora da cela 2


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e comentavam entre si como cumpriam as ordens do rei? — Eles se gabavam. — Por que se gabariam para eles próprios? — Suponho que antecipavam a recompensa que viriam a receber. — Por servir ao rei? — Joanna questionou. — É isso que não entendo. Ela hesitou, ciente do quanto não contara ao irmão e dividida entre o desejo de ser honesta e o que isso significaria. — Há regras em Akora, Royce. Regras fundamentais, que representam o legado de experiências ao longo de milhares de anos. A mais importante é que as mulheres não devem ser maltratadas porque são as detentoras da vida. — Pensei que às mulheres cabia serem submissas aos homens. — Sim, mas isso é um pouco mais complicado. Acho que tem a ver com a primeira população de Akora e com o povo que chegou depois da explosão vulcânica, mas essa história ficará para outro dia. Em suma, se um akoreano ferir uma mulher, ele estará condenado a uma vergonha intolerável. Acho difícil acreditar que homens capazes de um ato tão vil tenham sido os escolhidos pelo rei. Além disso, o potencial para um escândalo público seria enorme. Royce não media as palavras. Dispensou o criado que o servia e perguntou diretamente: — Está dizendo que eles a feriram? — Não, mas tentaram. Não mencionei esse fato antes porque não queria aborrecê-lo, mas Alex é mais merecedor de sua confiança e gratidão do que imagina. Ele salvou a você e a mim. — De quê? — indagou Royce, sério. — Quatro dos homens que o vigiavam me pegaram na caverna. Estavam prestes a... me violentar quando Alex apareceu. — Ao ver o rosto enfurecido do irmão, Joanna se apressou a dizer: — Ele lutou contra os quatro bandidos sozinho, o que foi um risco tremendo. Conseguimos sair ilesos, mas a caverna foi bloqueada por causa de uma explosão. Como os corpos deles não podem ser recuperados, não sabemos ao certo quem eram. Mesmo assim, não acredito que estivessem a serviço do rei. — Darcourt os matou? — Sim. — Ótimo — Royce concluiu. — Mas isso não muda nada. O rei não confia no meio-irmão. Não há nada de surpreendente nisso. — Alex e o irmão são muito próximos, e Alex é inteligente o bastante para não se deixar enganar. Tem de haver outra explicação. — Que explicação? — Ainda estou incerta quanto a que revelar. Permaneci tempo suficiente em Akora para aprender nuances e detalhes que ninguém mais conhece para além das ilhas. Porque esteve preso, você não teve a mesma oportunidade. — Por que isso a deixa incerta? — Porque não me sinto à vontade para contar tudo o que me foi dito. O povo de Akora e a família real de Atreides têm boas razões para guardar seus 2


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segredos. Só posso lhe dizer que existem homens em Akora operando contra a vontade e os interesses do rei. Deduzindo que você poderia fugir ou talvez ser libertado, é possível que tenham lhe passado informações falsas. Joanna esperava que o irmão rejeitasse a hipótese imediatamente, mas ele a surpreendeu. Depois de escutá-la com extrema atenção, deduziu o que ela vinha tentando ocultar. — Há facções em Akora trabalhando contra Atreides. — É uma pergunta? — Não. É a única explicação para o que você está... e não está... me contando. Sempre imaginamos que Akora fosse uma fortaleza unificada contra o mundo externo. Os akoreanos, inclusive, encorajaram essa imagem. Comecei a questionar essa história quando naveguei em seus mares, pouco antes de ser capturado. A descoberta de que Akora nem sequer é intacta geograficamente, que é de fato um grupo de ilhas, ajudou-me a reconsiderar minhas pressuposições. — Percebe que tal conhecimento, uma vez nas mãos dos xenos, pode ser uma ameaça a Akora? — Eles se sentem ameaçados? — Dado o que está acontecendo no mundo, como não se sentiriam ameaçados? — Por que então nos deixaram partir? — Não sei... Mas sendo também britânico e sabendo tanto sobre a GrãBretanha, Alex entendia as implicações de nos manter em Akora contra a nossa vontade. — Acha que ele convenceu o irmão a nos deixar partir? — É possível. — Então, ele é um homem leal ao dever, acima de qualquer consideração pessoal? — Royce a encarou. — Não entendo o que diz — Joanna mentiu. Ele não retrucou; simplesmente sorriu com sutileza. — Royce, eu não queria mencionar isso, mas, depois do que me contou, talvez seja melhor você e seus colegas saberem o que governa os akoreanos hoje em dia. — O que seria? Joanna respirou fundo e rezou para que sua atitude fosse a correta. — Eles acreditam que possam ser o alvo de uma invasão da GrãBretanha. Ela esperou que o irmão a chamasse de louca. Os britânicos estavam envolvidos em uma guerra no continente, combatendo Napoleão, que lhes tomava todos os recursos e lutavam pela própria sobrevivência. Por que buscariam mais conflitos em outros mares? Após um prolongado silêncio, Royce a encarou com tamanha determinação que a fez arrepiar-se. No mesmo instante, Joanna descobriu por que ele abandonara o lar e a família para se envolver em um conflito mortal. — Eles têm certeza disso? — indagou, sem emoção. 2


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— O reclinou —

Quer dizer que é verdade? — Joanna sentiu o medo dominá-la. lorde de Hawkforte colocou sua taça de vinho sobre a mesa e se na cadeira. Por que acha que fui a Akora?

Joanna dormiu mal naquela noite. Mesmo com as janelas abertas, o quarto continuava quente e abafado. A cama parecia dura, os lençóis, ásperos, e o rato mordiscando o outro lado da parede atrás da cabeceira da cama quase a deixava louca. Por fim, desistiu, vestiu um roupão leve e desceu. No caminho, espiou o cômodo de Royce. Estava vazio, como ela já previra. Uma das portas no amplo corredor que atravessava o centro da casa, da entrada da frente até os fundos, dava para um pequeno jardim, rodeado de muros altos. Nele, as rosas dividiam o espaço com as ervas plantadas à sombra dos galhos de uma velha macieira. Royce estava sentado ao pé da árvore. — Não consegue dormir? — perguntou, ao ver a irmã se aproximar. Joanna meneou a cabeça e se sentou ao lado dele. O gramado estava frio e úmido, embora o ar permanecesse parado. — E você? — Dormi um pouco. Estou melhorando. — Ele sorriu sob o luar. — Quem sabe, até o inverno, eu consiga dormir dentro de casa. — Espero que sim. — O esforço de Royce para banalizar o que ele considerava um constrangimento a comoveu. — É uma reação natural depois de tudo o que você passou. Considerando o que poderia ter acontecido, isso não é grande coisa. — Refere-se ao fato de eu suar a cântaros entre quatro paredes? Não, suponho que não seja grande coisa. Poderia ter sido muito pior, se você não tivesse aparecido. — Se Alex e eu não tivéssemos aparecido. — De fato. — Ele fez uma pausa antes de comunicar: — Partirei para Brighton pela manhã. — O príncipe regente está lá? — Pelo que Bolkum me disse, está, e parece muito bem informado, como sempre. Aparentemente, Prinny descobriu que ser regente é mais difícil do que ele pensava. Sua mão dói de tanto assinar documentos, sua cabeça lateja, e ele busca os poderes curativos da água salinizada. Boa parte da nobreza o acompanhou. — Brighton não é longe de Hawkforte. Por que não fica em casa alguns dias? — Infelizmente, o tempo urge. Mas sei que está ansiosa para rever Hawkforte. — Pensei em ficar com você. — Joanna... — Royce se mostrou gentil para não magoá-la. — Não preciso de uma babá. 2


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— Que bom, Royce, porque não tenho a menor intenção de ser sua babá. Só achei que você precisava de uma amiga. Ainda somos amigos, não somos? — Somos e sempre seremos amigos — ele declarou com a voz embargada. — Mas não me esqueci dos riscos que você correu por minha causa. Recuso-me a colocá-la em perigo novamente. — Em Brighton? Santo Deus, Royce, o que acha que pode acontecer? Acredita que eu possa ser atropelada por uma carruagem desenfreada no meio da rua? — Joanna, estamos vivendo uma reviravolta política mundial. — Sei disso. Embora eu seja uma camponesa, não sou idiota. Se alguém realmente planeja uma invasão a Akora em meio a tudo o que já enfrentamos, a reviravolta pode ser ainda mais drástica e perigosa. — Mesmo assim, está decidida a ir, não está? — Royce, eu estive em Akora. Portanto, você deve saber que Brighton não representa um terror para mim. Ele riu e parou de tentar dissuadi-la. Na verdade, Joanna teve a impressão de que Royce ficou aliviado após encerrar o assunto. Na quietude do jardim, onde os ruídos noturnos da cidade pareciam distantes, ela voltou a encarar o irmão. — Estive pensando... — Que Deus nos ajude — Royce brincou, embora a fitasse com atenção. — Como disse, sou uma camponesa legítima. Os mais sofisticados, no mínimo, torceriam o nariz para mim, mas minha natureza tem certas vantagens. Em um lugar como Hawkforte, as pessoas se conhecem muito bem. Não há espaço para fingimento ou subterfúgios. — Portanto... — Nunca conheci Spencer Perceval. — O primeiro-ministro? Suponho que não. — Mas li vários artigos a respeito dele. O homem odeia os católicos. — É verdade, e ele não faz segredo disso. — Quando foi a última vez que tivemos um primeiro-ministro que odiasse os católicos, ou qualquer grupo em particular? — Não sei — Royce admitiu. — Alguns deles, talvez, mas... — Mas jamais o confessaram publicamente. Esse se tornou o estilo inglês. Descobrimos que quando as pessoas podem seguir a própria consciência, elas em geral são explícitas ao expor suas ideias. Como Perceval. — Que proclama o ódio. — E a intolerância. Ouvi dizer que ele possui uma natureza fria e desagradável. — Essa foi a experiência que tive com ele. — Por quanto tempo Perceval ainda estará no poder? Tem alguma ideia? — Até o príncipe regente se sentir seguro com a própria autoridade. — Ano que vem, quando as restrições à Regência expirarem, o que você acha que o regente fará? 2


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— Criará um governo à sua moda. É o que dizem. — Liderado por Perceval? — É sabido que Prinny prefere seus amigos entre os whigs a Perceval e os tories. — Mas, se Perceval planejar um grande golpe, digamos, o controle britânico sobre Akora, sua influência e poder estarão fortalecidos, certo? Pensativo, Royce ficou em silêncio por um momento. — Meu Deus, Joanna, você deveria estar entre os Lordes, não comigo. Engendrou tudo isso em meio à vida pacata de Hawkforte? — Nós recebemos o The Times, como sabe. — Ah, o The Times, eu devia ter desconfiado. Você tem um dom para a intriga. Espanta-me que não tenha causado furor em Londres. — Em meus trajes de camponesa? — ela brincou. — Sabe que tenho a tendência a dizer o que penso e não sei dissimular. — A essa altura, poderia estar casada com um homem digno que lhe desse filhos. Joanna sentiu o coração disparar, não pela imagem que Royce conjurou, mas por tudo o que deixara na fortaleza proibida de Akora. — Creio que não nasci para isso. — Bobagem. Você seria uma excelente mãe e esposa. — Obrigada, mas se estivesse casada e com filhos, como poderia invadir o navio do príncipe de Akora para procurar meu irmão desaparecido? E não somente encontrara o irmão, como também a si mesma. — Mesmo assim... — Chega, Royce. O dia logo nascerá. Vamos tentar descansar um pouco. O jardim está mais fresco que o interior da casa. — Mulridge ficará escandalizada, se souber que você também dormiu no jardim. — Ela entenderá. Sempre entendeu. — Então, durma, querida irmã. Amanhã entraremos no covil dos leões. — Hoje — Joanna murmurou, acomodando-se sobre a grama fresca. Curiosamente, sentiu, mais uma vez, o aroma de limões antes de adormecer.

Brighton resplandecia sob o sol de verão. Era uma cidade bonita, Joanna concluiu, embora não fosse páreo para o vilarejo de Hawkforte. A vila de pescadores, com chalés de pedra e cachorros sonolentos, revelava as marcas de um desenvolvimento desenfreado. As ruas estavam repletas de residências para alugar, clubes, teatros e estalagens que incluíam os famosos Castle e Old Ship, onde os salões mais populares eram encontrados. Durante o inverno, pelo que ela sabia, a cidade se transformava em um lugar pacato. Mas agora, com a chegada do verão e do príncipe regente, Brighton fervilhava. Outra atração era a impressionante cúpula, uma estrutura imensa que 2


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alcançava vinte metros de altura no eixo central, e que dava a impressão de flutuar sobre a cidade. Embaixo dela ficavam os estábulos reais, onde os cavalos viviam em condições mais abastadas do que muitos seres humanos em outros cantos do mundo. Após um tempo, as pessoas provavelmente se acostumaram com a cúpula, mas Joanna não entendia por quê. Cada vez que olhava pela janela ou saía às ruas, assustava-se com aquela monstruosidade. Um amigo de Royce emprestara sua residência. A casa, localizada a certa distância da agitação central, propiciava uma boa visão da cidade. Tal distância foi uma bênção para Joanna, que se confrontava com o desafio que seu amado irmão lhe lançara. — Não me diga que está com medo? — ele perguntara na carruagem, a caminho de Brighton. — Só tenho medo do tédio. Tem ideia de quão enfadonha a prova de um vestido pode ser? — Não é pior que a prova de um fraque. Além do mais, seus trajes de camponesa não a satisfazem mais. Tenho certeza disso. — Tudo bem, eu admito. Mas por que madame Duprès? — Por favor, ela não. — É a modista do momento. — É uma tirana em todos os sentidos. Aliás, ela deve estar cheia de encomendas. — Eu lhe enviei uma mensagem. — Se o conde de Hawkforte informara à modista que lady Joanna necessitava de seus serviços, a mulher devia estar no auge da excitação. — Disse a ela que os custos não seriam problema. — Royce, ela o levará à falência. Hawkforte vai acabar sendo apropriada por algum comerciante têxtil. Royce riu, mas não lhe proporcionou nenhum alívio. Madame Duprès lá estava, salivando por trás do sorriso largo, quando a carruagem estacionou diante da residência que ocupariam e de onde a mulher não saíra nos últimos três dias. — Um triunfo! — exclamou a roliça modista. Ela se ajoelhou, gemendo, e examinou a barra do vestido de Joanna, que permanecia estática, determinada a não dar nenhuma satisfação à tirana. — Meu irmão é louco — disse Joanna. — A qualquer momento, será declarado insano. Três dias foram mais que suficientes para a modista se habituar com os comentários sarcásticos. — Milorde é um homem generoso. Deveria haver mais cavalheiros como ele. — E há homens como ele — Joanna rebateu. Com um gesto amplo que quase derrubou a assistente sobre a pilha de tecidos gloriosos, ela indicou o mundo para além das janelas. — Lá fora existe uma infinidade de cavalheiros incomparáveis necessitando de seus serviços. Como pode ignorá-los? — Minhas assistentes os estão atendendo — madame Duprès respondeu. 2


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— A senhorita é meu projeto especial. — Que Deus me ajude... — Acho que Ele já ajudou. — Ela estudou a jovem que irradiava feminilidade e confiança. Mastigando um sanduíche de pepino que uma criada lhe serviu, a modista comentou: — Pressinto que este verão será muito interessante. — Como diriam os chineses: "Que você viva momentos interessantes". — A chinoiserie está em voga. Espere até conhecer o Pavilhão Marinho do Príncipe. Vai se encantar. Não depois do que vira em Carlton House, Joanna pensou. Mas, na verdade, estava enganada. — O pavilhão era uma pequena fazenda em ruínas quando o príncipe regente a visitou, quase vinte anos atrás — explicou Royce, enquanto ajudava a irmã a descer da carruagem. — Dizem que ele gostou da paisagem. Joanna contemplou, atônita, o que estava à sua frente. A enormidade da cúpula deveria tê-la preparado para aquilo, mas isso não acontecera. Diante dela havia uma enorme mansão em estilo neoclássico, construída em um amplo terreno e à beira da água. Ao redor, espalhados por muitos acres, vários anexos serviam para muitas coisas ou para nada. O sol se punha, iluminando o cenário com um tom amarelado que se fundia às tochas posicionadas ao longo da alameda por onde os convidados chegavam. — É assim todas as noites? — Joanna perguntou. — Às vezes, o movimento é ainda maior. Pelo jeito, esta noite a festa será simples. — Royce então acrescentou com secura: — Prinny não gosta de ficar sozinho. E não havia risco de alguém morrer de solidão naquela noite. Ao entrar no pavilhão, acompanhada de Royce, Joanna fez o melhor que pôde para disfarçar o deslumbramento. Afinal, madame Duprès a alertara... mas era difícil ignorar a sensação de que ingressava no continente oriental. A cada canto, via motivos chineses. Era um mundo de dragões entre armários laqueados, móveis de bambu, lamparinas de papel, porcelanas e palmeiras. Não havia nenhuma superfície vazia. Paredes, teto, tudo entre os dois cintilava em uma explosão de carmesim e escarlate, esmeralda, safira e ouro. O cenário seria belíssimo, se não fosse exagerado demais, como se o príncipe regente houvesse construído a caverna de Ali Babá em vez de um palácio. — Impressionante — Joanna murmurou. De repente, notou que ela e Royce eram alvo de olhares. Homens e mulheres pararam de falar e olhavam, nem tanto para Joanna, mas para lorde Hawkforte. As pessoas o encaravam, embasbacadas, como se ele fosse uma aparição. — Parece que madame Duprès manteve sua palavra — sussurrou Royce. — E seu silêncio, mas você lhe pagou muito bem para que ela nada comentasse. Durante os três dias em que Joanna se submetera à tirania da modista. Royce permanecera no jardim da residência de Brighton, lendo despachos enviados por amigos que ele não nomeara, parando apenas para se alimentar 2


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e dormir. Embora ainda estivesse magro, havia recuperado a aparência altiva. Obviamente, ninguém teve dificuldade para reconhecê-lo. Após o choque inicial, várias pessoas os rodearam com exclamações de surpresa e deleite. Royce não se alarmou diante do tumulto, aceitando os cumprimentos e, ao mesmo tempo, esquivando-se de perguntas acerca de seu paradeiro. A festividade continuou até que a multidão se separou bruscamente a fim de dar passagem ao anfitrião real. Joanna observou o príncipe regente com interesse. Em Carlton House, ela o vira muito rapidamente. Agora via diante de si um homem que comemoraria seu quadragésimo oitavo aniversário em questão de dias. Tal idade não condizia com o rosto de querubim e a espantosa corpulência de seu corpo. Ele parecia um anjo gordo, estufado de tantos doces, molhos e bolos. O regente vestia um traje azul-marinho, um cinturão avermelhado e calça bufante. O nó da gravata era perfeito; os punhos da camisa branca, justos. E também parecia irritado. Ou, pelo menos, era o que transmitiam os pequenos olhos verdes, embora os lábios finos se abrissem em um sorriso. — Hawkforte, que diabos! Por onde andou? Antes que Royce pudesse responder, o regente prosseguiu: — É bom vê-lo, homem. Sabe há quanto tempo não tenho uma boa conversa em grego? Esses ignorantes — ele indicou os espectadores — não distinguem Homero de Heródoto. — É bom saber que mantém sua leitura em dia, Alteza. — Royce segurou o braço de Joanna. — Permita-me lhe apresentar minha irmã, sir, lady Joanna Hawkforte. Ela fez uma vênia, enquanto o príncipe regente a observava da cabeça aos pés. — Que belo uso do algodão. Isso é obra de madame Duprès? — Sim, Alteza. Madame foi muito prestimosa. — Ela também andou desaparecida nos últimos dias. Algumas damas ficaram histéricas por causa disso, se quer saber. Francamente, Royce, devia ter me informado que estava em Brighton. Então esse era o motivo da irritação do príncipe. O homem que lia Homero no original e sabia conversar a respeito de literatura com rara erudição era sensível a uma falha em se tratando de suas prerrogativas. — Se fosse por mim, Alteza, eu teria vindo lhe prestar meus respeitos. Mas... — ele se aproximou, como se quisesse confidenciar um segredo — ...estive indisposto e preferi não aborrecê-lo até que minha saúde estivesse restaurada. — Detesto doenças — confessou o regente. — Detesto qualquer coisa ligada a doenças. Foi consideração da sua parte pensar nisso. Venha comigo. Há muito a lhe mostrar. Fiz algumas mudanças desde a última vez em que você aqui esteve. Elaborei alguns planos. O interior não está muito diferente, mas na área externa acrescentei o estilo Mughal. Conhece a cultura indiana? É extraordinária. Eles se deslocaram alguns metros, mas foram detidos pela presença de um homem magro e pálido. Vestido de forma austera e quase calvo, cerrava 2


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os lábios finos com tanta força que pareciam se fundir. — Perceval — disse Prinny sem entusiasmo. — Veja. Hawkforte está de volta. O primeiro-ministro fez uma reverência. — Alteza, milorde e lady... Joanna foi apresentada e logo ignorada. Perceval concentrou-se em Royce. — Tem sido fonte de muita especulação, Hawkforte. Ouvi boatos de que estava morto. — Boatos não são uma fonte de informação confiável, primeiro-ministro. Perceval corou, o que atenuou sua aparência de cadáver. — Mesmo assim, precisamos conversar. Estou certo de que viveu aventuras fascinantes. — Na verdade, foram bem tediosas. Não há muito o que contar. Joanna deu uma tossidela, chamando a atenção do príncipe regente. Para sua surpresa e gratidão, ele os salvou. — A conversa ficará para depois, Spencer. Prometi a Hawkforte e a lady Joanna mostrar os projetos. O primeiro-ministro parecia ciente da natureza dos "projetos". Ele torceu o nariz e murmurou algo sobre os gastos, mas as palavras feneceram quando Prinny os levou à sala real. Por fim, eles viram os projetos, que estavam expostos sobre uma mesa na sala privativa do príncipe. Os desenhos elaborados para a nova área externa eram mesmo surpreendentes, Joanna concluiu. Era inegável que o príncipe regente tinha muito bom gosto. No entanto, aquela arquitetura não combinava com a paisagem campestre. Entre comentários sobre os projetos, Royce e o príncipe trocaram algumas frases sussurradas. Do outro lado da mesa ampla, Joanna não pôde escutar tudo o que diziam, mas parecia que seu irmão tranquilizava o soberano. Voltaram ao salão de baile quando os músicos iniciaram uma melodia animada. A música era uma das favoritas do príncipe, o que o levou a se aproximar da banda, enquanto acompanhava o ritmo batendo em sua perna roliça. Royce e Joanna não puderam segui-lo, pois foram novamente rodeados por dúzias de convidados que queriam lhes falar. Lembrando-se de como havia sido ignorada em Carlton House, Joanna se maravilhou com a súbita popularidade, a qual atribuía às conexões de Royce. Mesmo quando a aglomeração de convidados os separou, ela continuou rodeada de jovens cavalheiros que, inexplicavelmente, mostravam-se gentis e amáveis. Estava adorando ser o centro das atenções de homens charmosos e sedutores, quando uma onda de murmúrios atravessou o salão, interrompendo as conversas e atraindo olhares, inclusive o dela. Rindo, ela olhou para o homem que se achava sozinho à entrada do salão de baile. Estava todo de preto, exceto pelas mangas e colarinho brancos. O traje, muito bem talhado, não era acidental. O poder era sua vestimenta 2


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habitual e lhe caía extremamente bem. Os cabelos, que Joanna acariciara tantas vezes, estavam penteados para trás, realçando a beleza máscula do rosto, o qual ela tanto admirava. Por ser mais alto, ele podia se dar ao luxo de uma vista ampla do salão. Os fascinantes olhos azuis esquadrinharam a multidão até se deterem em Joanna. Aquele olhar penetrante lhe roubou o fôlego e desencadeou uma onda de excitação que ela não pôde negar. De repente, o salão chinês, com seus excessos, a cacofonia de música e de vozes, o calor e os odores da noite de verão desapareceram. Somente uma realidade permanecia: lorde Alex Haverston Darcourt, marquês de Boswick, conde de Letham e barão Dedham havia retornado à Inglaterra. *** A multidão abriu passagem, não por cortesia, Alex logo deduziu, mas pela necessidade explícita de obter uma melhor visão do que estava por vir. Ninguém queria perder a cena, nem mesmo os cavalheiros afetados que se agrupavam ao redor dela. A sociedade ainda se lembrava da dispensa que o marquês de Boswick dera a lady Joanna Hawkforte em Carlton House, em Londres. Portanto, os presentes estavam ávidos para ver como a nova versão sedutora da dama lidaria com ele, e ele com ela. Alex, a bem da verdade, também estava ávido para ver o que Joanna faria. Atravessou o salão com passos firmes e parou diante dela. Pelo canto dos olhos, viu Royce avançar a fim de interceptá-lo. Este se deteve quando Joanna ergueu o queixo e sorriu. — Alex — disse ela sem titubear —, como é bom vê-lo. Somente os olhos brilhantes revelavam como ela de fato estava feliz em vê-lo. Os mais próximos se espantaram com tamanha informalidade e aguardaram para testemunhar a reação do marquês. Alex inclinou a cabeça e segurou as mãos dela. — Joanna, está linda como sempre. Olhares significativos e sussurros circularam até chegar aos ouvidos dos que assistiam à cena de longe. Eles se conheciam e, ao que tudo indicava, muito bem. Como era divertido ser o alvo de especulações insípidas, Alex pensou. Onde estivera lady Joanna nas últimas semanas, ao longo das quais lorde Darcourt também se ausentara de Londres? Poderiam ter estado... juntos? Darcourt e lady Joanna. Darcourt, o inalcançável, o sonho de todas as mães de moças em idade de se casar, descendente de uma família poderosa e do mistério arcaico que Akora representava. E lady Joanna Hawkforte, fruto de uma família também ilustre, abastada em história e lendária por si só. Alex conhecia a sociedade; ele a estudara profundamente, pois os homens e mulheres que a compunham exerciam um grande poder na Inglaterra. Sabia como podiam ser rasos, crus, cruéis e vazios. E tendenciosos à paixão tola. Atinham-se a um mero evento, uma migalha de empolgação, e o tomavam para si. 2


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Sem desviar os olhos de Joanna, Alex tomou as mãos dela e levou-as aos lábios. Foi o mesmo que gritar suas intenções ao mundo para que todos as soubessem. Todos, menos Joanna, e possivelmente Royce, que o encarava como um felino feroz. Aquele momento delicado requeria sutileza, mas o príncipe regente, desprovido de sutilezas, precipitou-se até eles, animado. — Darcourt! Maravilhoso, absolutamente maravilhoso! Que noite para reuniões! Conhece lady Joanna e seu irmão, Royce? — Ele acenou para atrair os três protagonistas. — Esplêndido! — O sorriso do príncipe se alargou a fim de incluir o homem pálido no pequeno grupo. — É esplêndido, não é, Perceval? Duas famílias antigas, dois amigos antigos e uma nova amiga... — Ele indicou Joanna, concedendo-lhe o manto da aprovação real. Tal gesto não escapou ao circunspeto primeiro-ministro, mas sua atenção estava focada em Alex e Royce, que, lado a lado, encaravam Perceval, ambos com uma expressão sardônica. Enquanto observava a situação, Joanna tentava conter a avalanche de emoções, a alegria, a saudade e a apreensão que dentro dela irrompeu no instante em que Alex surgira. Alex! Ali, na Inglaterra, e com a intenção de... de quê? Teria vindo somente a serviço de Akora, ou seus sentimentos por ela Joanna o haviam impelido? Ela adoraria descobrir mais a respeito daquela chegada inesperada, mas o príncipe regente tinha outros planos. Todos os convidados foram conduzidos a uma sala ampla, cuja luminosidade fora extinta, exceto por alguns candelabros que os criados seguravam. Pesadas cortinas cobriam as janelas a fim de excluir qualquer réstia de luz, fosse das tochas ou do luar. No instante seguinte, as velas foram apagadas, deixando o espaço na escuridão total. Desnorteada, Joanna não achou graça nenhuma na excitação que os convidados demonstravam, os quais, em sua maioria, pareciam saber o que estava prestes a acontecer. Acima de tudo, ficou preocupada com Royce. Como ele suportaria estar em uma sala tão escura quanto a cela na qual permanecera encarcerado por tanto tempo? Por instinto, ela segurou a mão do irmão. — Não fique aqui — sussurrou. — Se sair, ninguém notará sua ausência. Atrás de si, ela sentia a presença reconfortante de Alex e sabia que ele podia ouvi-la. Royce apertou a mão de Joanna. — Não seja tola. Não há motivos para eu sair. Sem dúvida, ele mentia, mas não havia meios de persuadi-lo. Resolveu, portanto, aguardar junto com os demais o que quer que o príncipe estivesse planejando. A surpresa surgiu, de repente, na forma de uma iluminação colorida nos fundos da sala. Joanna estava perto o bastante para notar que uma espécie de tela, talvez uma rede, havia sido estendida do teto ao chão. Uma melodia tétrica reverberou no recinto, fazendo-a arrepiar-se, e as luzes começaram a se transformar em formas fantasmagóricas. Ela se assustou quando a imagem de um cavaleiro sem cabeça surgiu do nada e pareceu galopar em direção aos convidados. À medida que a figura se tornava maior, Joanna deu um passo para trás e trombou com o peito musculoso de Alex. 2


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— Calma — ele murmurou. — Não é nada além uma imagem luminosa, ampliada pelo vidro que está atrás da tela. É um show de ilusionismo. Embora aliviada, Joanna se sentiu um tanto envergonhada. Já havia ouvido falar daquele tipo de mágica, mas nunca vira um espetáculo semelhante, tampouco tinha ideia de como era realizado. — O príncipe adora essas apresentações esdrúxulas — comentou Royce. — Seu gosto é muito peculiar. No momento seguinte, Joanna compreendeu o que o irmão dissera. O cavaleiro sem cabeça desapareceu, dando lugar a espectros da morte, esqueletos e outras figuras aterrorizantes, que cresceram, avançaram, recuaram, dissolveram-se e, por fim, desapareceram nas sombras. A audiência aplaudiu com empolgação, porém Joanna mal ouviu os aplausos. Pensava apenas em Royce. Durante a apresentação, ele apertara sua mão com tanta força que quase lhe esmagara os dedos. Sabia que não atinava para o que fazia e deduziu que o pobre devia estar agoniado. — Temos de ir embora — Joanna comunicou a Alex, esperando que ele percebesse sua preocupação sob a luminosidade dos candelabros novamente acesos. O marquês entendeu a mensagem e imediatamente olhou para Royce, que permanecia imóvel e suando. Sem hesitar, Alex abriu caminho para eles até a porta mais próxima. Seu tamanho e força, assim como a hábito de comandar, permitiam que ele agisse com naturalidade. Em questão de minutos, os três saíram do salão e marcharam em direção ao jardim externo. Uma vez do lado de fora, Royce se recuperou rapidamente. Após algumas respirações profundas, ele pareceu voltar ao normal. — Que espetáculo — disse Royce, com secura. — Prinny se superou. — Ele parece ter uma certa obsessão com a morte, não? — comentou Alex. — Suponho que a realeza esteja apreensiva ultimamente — Joanna completou. — E assim estão desde que a Revolução institucionalizou a guilhotina. Temem que o mesmo possa ocorrer na Inglaterra. — O que tende a criar uma certa ansiedade — Royce concordou, sem tirar os olhos de Alex. — Mas talvez vocês em Akora sejam imunes a tal preocupação. Oh, Deus, já?, Joanna pensou. Tinha de admirar o irmão. Depois de sofrer uma evidente crise de desespero, ele já se via disposto para o ataque. — Está me perguntando se tememos uma revolução em Akora? — Alex indagou com fingida moderação. — Se, como fiquei sabendo — Royce olhou rapidamente para Joanna —, seu irmão não foi o responsável por minha captura, alguém em Akora está tentando destituir você e sua família. — Meu irmão, responsável por... Royce o fizera de forma deliberada, Alex concluiu. O astuto lorde lançara sua flecha de acusação sem aviso para que pudesse avaliar a reação do príncipe de Akora. Como tática, a estratégia foi brilhante, embora bastante desagradável. 2


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— Isso é um absurdo — Alex protestou, ainda contendo a revolta. Olhou para Joanna, indignado. — Você sabia disso? — Ela apenas assentiu. — Por isso, estava com tanta pressa para sair de Akora? — Por favor, tente entender, Alex. Precisei garantir a segurança de meu irmão. — Ainda assim, poderia ter me contado. Magoava-o descobrir que Joanna omitira tal suposição, mas, ao mesmo tempo, sentia um certo alívio. Por mais absurda que fosse a acusação, ela justificava o comportamento de Joanna. — Você teria negado — ela argumentou. — Além disso, ambos sabemos que tem suas suspeitas. — Que suspeitas? — quis saber Royce. Ele permanecera calado, observando a conversa entre os dois, mas agora fora claramente impelido a se manifestar. — Suspeitas em relação a você e aos motivos que o levaram a Akora — respondeu Alex. — Quando conversamos no ano passado, deixei claro que tal tentativa seria infeliz. — É verdade — Royce confirmou. — O que não deixou claro foram as razões. — Tais razões deveriam ser evidentes. Akora não aceita xenos. — Diante do olhar zombeteiro de Royce, Alex se corrigiu: — Oficialmente, mas os xenos que lá chegam ficam. Essa não era sua proposta. Pretendia voltar à Inglaterra. — Claro, mas só depois de conversar com o rei. Eu queria fazê-lo entender que há ingleses que almejam apenas paz e relações amigáveis com Akora. Eu esperava abrir um canal para um diálogo. — Por que não me disse isso diretamente? — indagou Alex. — Porque você se mostrou avesso à minha intenção. Perguntei-me, na época, se estava mesmo considerando o benefício de Akora ou o seu. Aflita, Joanna se postou entre o irmão e o homem que ela insultara. Foi um gesto compreensível de sua parte, mas imprudente. Os dois a encararam e a seguraram para tirá-la do caminho. — Oh, pelo amor de Deus! Não sou uma peça de cristal. Soltem-me. Eles obedeceram, olhando-se assustados por terem agido da mesma forma. — Talvez você possa me explicar por que acreditou que eu fosse capaz de trair Akora? — Alex perguntou. — Não foi bem assim — replicou Royce. — Ocorreu-me simplesmente que você consideraria a submissão às normas do rei menos atraentes que ser o governante por direito de uma Akora controlada pelos britânicos. Pela primeira vez, Alex pareceu chocado. Durante o silêncio que seguiu a declaração de Royce, Joanna comentou: — Infelizmente, há homens que optariam por tal curso. Alex não é um deles. — Você é metade inglês — alegou Royce. — Se Perceval conseguisse levar adiante os planos de invadir Akora, você seria a escolha mais lógica para

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um governante real. — Eu provavelmente estaria morto. Jamais viveria para ver Akora conquistada. Royce o fitou por um longo momento. O que viu foi o suficiente para convencê-lo. — Talvez minha irmã não tenha errado ao confiar em você — ele admitiu. Parte da tensão entre os dois diminuiu, mas Joanna preferiu continuar cautelosa. — Não é hora nem lugar para conversarmos — ponderou. Após o espetáculo de luzes, os convidados saíram ao jardim para tomar ar antes de retornarem às mesas de jogo e às outras diversões que o príncipe havia programado. As festividades se prolongariam até o raiar do dia. — Prinny ficará ofendido se sairmos cedo — Royce disse e entregou um cartão a Alex. — Estamos hospedados neste endereço. Sugiro nos encontrarmos mais tarde para conversarmos. O vigia da noite faz sua ronda às três e às quatro da manhã. — Irei nesse meio tempo. Alex virou-se para sair, mas Royce o deteve por um instante. — Ainda não lhe agradeci por me resgatar e proteger Joanna. Devagar, Alex apertou a mão que Royce lhe oferecia. Os dois se fitaram por alguns segundos antes de se separarem.

Joanna ficou com o irmão. Ainda estava preocupada com o bem-estar dele. De quando em quando, pegava-o lançando olhares de censura aos jovens cavalheiros que a rodeavam, e ria da situação. Ela, que fora desprezada pela sociedade, agora era adorada pela mesma. Antes que a novidade se tornasse enfadonha, Joanna voltou sua atenção ao príncipe. O que provou ser uma tarefa fácil. De todas as histórias acerca do regente, naquela noite Prinny parecia disposto a esbanjar charme. A descoberta de que ela, como Royce, era fluente em grego o exultou. Ignorando os convidados que o bajulavam, iniciou uma discussão erudita sobre os gregos que fascinou Joanna e fez o tempo passar depressa. Alex se juntou a eles e, ao dissertar seu conhecimento de cultura grega, encantou o príncipe. Já passava da meia-noite quando alguns convidados começaram a cambalear. Com as perucas soltas e a maquiagem borrada, vagavam pelo salão a esmo. Não havia sinais do primeiro-ministro; Joanna ouvira comentários de que ele se recolhera, alegando indisposição. Após às duas da manhã, ela e Royce se foram. O ar noturno estava refrescante. O ritmo da carruagem foi relaxante. Joanna acordou quando Bolkum parou diante da casa. — Não está acostumada a ficar acordada até tarde — observou Royce. — Um pouco de chá irá nos revigorar. 2


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— Não tem dúvidas de que Darcourt virá? A pergunta a surpreendeu. — Claro que não. Você tem? — Um pouco — ele admitiu —, embora o marquês não seja o que imaginei. — Um príncipe disposto a trair o próprio país? — Você mesma disse que existem homens propensos a tanto. Joanna não teve a chance de replicar, pois Mulridge abriu a porta da frente e os encarou, severa. — Isso são horas de chegar? — O momento é propício, Mulridge — disse Royce. — As estrelas estão brilhando, a noite está fresca e a companhia — ele beijou o rosto da governanta — é encantadora. Mulridge corou. — Já para a cama, vocês dois! — Na verdade, esperamos uma visita — informou Joanna. — Mas não se preocupe. Farei um chá. — Uma visita? A esta hora? Quem? — Um príncipe — Royce respondeu, sério. — Está na moda, sabia? A realeza adora fazer visitas durante a madrugada. — Um príncipe — Mulridge repetiu, desconfiada. — Devo acreditar nisso? — Ela olhou para os rostos sorridentes. — Aposto que sei quem é. Antes que pudessem replicar, a governanta ergueu a saia do vestido preto e marchou em direção à cozinha. — Eu vou preparar o chá. Joanna subiu para seu quarto a fim de se recompor. Quando voltou à sala, descobriu que Mulridge, além do chá, havia preparado uma bandeja de sanduíches e bolos, mas estava nervosa demais para comer. Em meio à distração da festa, não tivera tempo de pensar que Alex iria visitá-los e que ele e Royce pretendiam conversar. Sobre assuntos de Estado, claro. Não tinha motivos para acreditar que outro tema estaria em pauta, principalmente porque pretendia estar presente para evitar que isso acontecesse. Não era hora de discutir assuntos de natureza pessoal que poderiam ser mal interpretados. Ajeitando os cabelos pela vigésima vez, ela olhou para o relógio sobre o mantel de mármore da sala. Bolkum acendera a lareira mais para alegrar o ambiente do que para aquecer. Lamparinas a gás acresciam seu próprio brilho. Eram três e meia. Joanna escutara o vigia noturno meia hora antes e sabia que o soldado retornaria em breve. Royce estava no jardim. Ela esperou um pouco mais e saiu para se juntar ao irmão. — Alex chegará a qualquer momento. — Bolkum está no hall da frente. Ele o deixará entrar. — Acha mesmo que todas essas precauções são necessárias? — Acho que estamos à beira de um precipício. Se Perceval tiver sucesso em seu esquema... — Royce meneou a cabeça ao imaginar nada menos que o 2


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caos. — Combater Napoleão não é suficiente? O primeiro-ministro também quer declarar guerra a Akora? — Talvez ele se sinta lisonjeado diante de uma conquista fácil. — Perceval não sabe nada a respeito de Akora. — Esse é o problema — Royce refletiu. — Ninguém sabe. Em sua ignorância, homens como Perceval podem imaginar o que quiserem. Joanna se lembrou dos canhões no porão do Nestor e estremeceu. Apesar das disputas internas que a ameaçavam, Akora ainda assim estava preparada para se defender dos invasores. Através das janelas da sala dos fundos, ela escutou o relógio badalar outra vez. Na rua, o vigia anunciava sua ronda. — Quatro horas e tudo vai bem! Talvez para ele, mas não para Joanna. Alex estava atrasado. — Ele virá. Eu sei. — Ele deve ter tido um imprevisto — Royce comentou para confortá-la. Esperaram até as quatro e meia. Ansiosa com a falta de notícias de Alex, Joanna se dirigiu ao hall de entrada. Bolkum poderia ter cochilado, mas o fiel companheiro continuava sentado na cadeira, de olhos abertos e ouvidos atentos. — Vai amanhecer em breve — ele observou. Joanna espiou pela estreita janela de vidro ao lado da porta. — Aconteceu alguma coisa. Felizmente, Bolkum não duvidou dela e se levantou de pronto. — Quer que eu faça uma busca? Joanna queria que Bolkum saísse à procura de Alex? Melhor seria tentar sozinha, com uma confiança que antes não possuía. Em silêncio, mergulhou em si mesma a fim de buscar o estranho, às vezes elusivo, poder que sabia existir. Pensou em Alex, deixando que as lembranças a invadissem, como o som, o toque, o sabor e a essência do príncipe. Onde ele estava? Seus dedos se moveram. Quase pôde sentir o calor da pele morena, o movimento do peito musculoso quando ele, deitado ao lado de Joanna, rira a valer. Sentira as batidas de seu coração. Assim haviam permanecido ao lado do Poço dos Suspiros e, mais uma vez, em Deimatos depois da fuga das cavernas. O ar marítimo, misturado ao aroma da relva úmida, impregnara em seus corpos, tal qual a fragrância de jasmim, o perfume constante de limão e... sangue. Joanna sentiu o odor característico de sangue. Provou-o em sua garganta, sentiu-o na própria pele. — Alex! Royce veio correndo do jardim. Bolkum a amparava quando Mulridge apareceu, atenta e preocupada. — Eu sabia que isso iria acontecer — a boa mulher declarou. — Sempre esteve nela, mas nunca tão intensamente. Precisava mesmo liberá-lo. 2


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— O que houve? — perguntou Royce, ao afastá-la gentilmente de Bolkum e fitá-la nos olhos. — É Alex — Joanna murmurou, ainda chocada. — Ele se feriu, por isso ainda não chegou. Mas tenho certeza de que está por perto. Durante toda a sua vida, ela pôde contar com Royce. Após a morte dos pais, a presença do irmão fora constante. Agora ele não a decepcionara. Os remanescentes de seu sofrimento pareceram sumir por completo. Era, novamente, o lorde de Hawkforte, herdeiro de gerações de homens e mulheres que haviam arriscado demais, ousado e triunfado de modo magnífico. — Vamos encontrá-lo — Royce afirmou e acenou para Bolkum, que o seguiu noite adentro. Mulridge foi para a cozinha. Por hábito, Joanna a acompanhou. Tinha algum tempo, embora não soubesse quanto, mas Royce o encontraria. — Água quente é sempre útil — comentou Mulridge, posicionando uma panela sobre o fogo. Para Joanna, ela disse: — Vá buscar a caixa. Joanna a achou no quarto de hóspedes, onde a tinham deixado desde que chegaram a Brighton. Era uma caixa muito antiga, de madeira e ferro. A madeira estava escurecida e riscada pela ação da intempérie. Os ferrolhos estavam soltos, mas ainda serviam para manter a estrutura. Dizia a tradição que a caixa fora um presente à noiva Hawkforte de uma mulher que era uma grande curandeira. A mãe de Joanna guardara os remédios e as bandagens em seu interior. A mãe de seu pai fizera o mesmo, e a mãe desta, acompanhando a linhagem anterior que desaparecera nas brumas. O peso da caixa em seus braços era reconfortante. Ela a levou à cozinha, onde a água já fervia na panela. Mulridge havia estendido toalhas limpas sobre a mesa. — Vão chegar em breve — disse e começou a rasgar longas tiras de linho. Antes que a pilha aumentasse, a porta dos fundos se abriu. Royce e Bolkum estavam em pé à soleira. Entre eles estava o corpo curvado de Alex. Joanna não gritou, limitando-se a correr até os três homens. — Ele ficará bem — disse Royce, enquanto ele e Bolkum acomodavam Alex em uma cadeira. Ele estava consciente a ponto de olhar para Joanna e gemer. Havia sangue em seus lábios, e um dos olhos não abria de tão inchado. Mas nada disso se comparava à mancha de sangue na camisa, logo abaixo do coração. — Eles erraram — ele falou e sorriu. — Mas que droga, Alex! — Joanna ralhou, enquanto rasgava a camisa para avaliar o ferimento. — Você veio a pé? Sem uma carruagem, um condutor, sem ninguém? O que estava pensando? — Que sou um inglês civilizado? — Seu tolo teimoso... Alex havia sido esfaqueado; a lâmina penetrara entre duas costelas. Mais alguns centímetros e teria atingido o coração. Sim, eles erraram, mas por pouco. O tempo parou. Nada mais existia além da urgente necessidade de 2


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cuidar dele. Joanna não parou para pensar. Agiu tal qual aprendera desde a tenra infância ao lado da mãe, sem nem sequer perceber o que assimilava. — Sua avó me ensinou do jeito que ensinaram a ela — a mãe lhe dissera, num lindo dia de primavera. Joanna não estava sozinha. A cozinha da residência de Brighton poderia ser a de Hawkforte. Outras mulheres estavam com ela, irmãs de sua alma. Elas lhe proporcionavam a força da sabedoria anciã. — Você é boa nisso — comentou Alex. Qualquer outro homem teria se assustado com o ataque. Ele estava meramente surpreso. — Quantos eram eles? — Royce inquiriu. — Seis, eu acho. Três fugiram. — O vigia encontrará os outros. — Provavelmente. — Três corpos no meio da rua dariam origem a especulações de variedade histérica. Mas a mensagem seria compreendida pelos mandantes. — Joanna tem razão. Você deveria ter sido mais cuidadoso. — E serei... a partir de agora. — Alex olhou para Royce. — É mais sério do que imaginei. — Posso dizer o mesmo. Um ataque direto a você indica um certo nível de desespero. — Ou determinação. Afinal de contas, fomos vistos conversando. — Esperem — Joanna interveio. — Estão dizendo que o ataque a Alex está relacionado a Akora? Mas não há provas disso. Poderia ter sido uma tentativa de assalto. — Infelizmente, não — Alex discordou. — Eu os reconheci. Os dois Hawkforte o fitaram, surpresos. — Reconheceu mesmo? — perguntou Royce. — Sim. Estavam vestidos como ingleses, mas lutavam como akoreanos. —Alex indicou o ferimento em seu peito. — Isto foi feito por uma lâmina akoreana. — Mas quem... — Joanna murmurou. — Provavelmente as mesmas pessoas que me aprisionaram. — Royce olhou para Alex. — Confia em seu irmão? — Com a minha vida. — Então, é outra pessoa. Joanna respirou aliviada ao ver que o irmão não mais acusaria o rei de capturá-lo. Era um progresso. — Eles têm recursos suficientes para vir até aqui — Alex deduziu. — Isso significa que estão determinados a realizar sua missão. — Nesse caso, vão acabar se mostrando novamente — concluiu Royce. O semblante de Alex endureceu. — E quando o fizerem... — Os dois trocaram olhares de entendimento. — Chega — Joanna os interrompeu. — Você precisa se deitar — ordenou a Alex. Nem a arrogância masculina do príncipe de Akora ou o senso de recato 2


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do irmão a persuadiria. Alex não iria a lugar nenhum, a não ser para a cama. — Estou bem — ele começou, mas, para seu espanto, Royce apoiou a irmã. — Ela está certa. Estamos cansados, e você, ferido. Já amanheceu — informou Royce, olhando pela janela da cozinha. — Se for visto nessas condições, atrairá mais especulações e talvez relacionem a você os três corpos que o vigia vai encontrar. Nada disso se faz necessário. Relutante, Alex assentiu. Permitiu que Royce e Bolkum o ajudassem a subir a escada e a se acomodar no quarto de hóspedes. Mulridge entrou atrás deles, arrumou a cama e afofou os travesseiros para que o convidado obtivesse conforto. Joanna ficou do lado de fora, pois já havia abusado da tolerância do irmão. Abrigar o amante na própria casa era uma coisa, deitar-se com ele era outra. O sorriso que lançou a Royce quando ele saiu do quarto revelava somente gratidão. Também sorrindo, ele abriu os braços. Joanna aceitou o gesto e se sentiu consolada. O odor de sangue se fora, dando lugar ao frescor de um novo dia.

Joanna passou a maior parte do dia dormindo e acordou no meio da tarde, sobressaltada. Seu único pensamento era Alex. Pulou da cama, vestiu o roupão e saiu. Depois de bater à porta de Alex, espiou para dentro do quarto. As cortinas estavam fechadas, deixando o espaço na penumbra. Mesmo assim, pôde enxergar a forma do homem que dormia na cama. Ela se aproximou, descalça. Quando seus olhos se ajustaram, notou que o lençol o cobria até a cintura. A bandagem ao redor do peito parecia intacta. Joanna chegou mais perto para confirmar que o tecido continuava limpo. O sangramento havia parado. Cuidadosa, tocou-lhe a testa. Não tinha febre. O alívio foi uma bênção. Ela se sentou na beirada da cama e beijou os lábios semiabertos. — Alex... graças a Deus! Ele se esticou e, ainda beijando-a, deitou-se de costas. O beijo foi mais terno que sensual, uma afirmação gentil de vida e amor. — Que doce maneira de acordar... — Alex sorriu e olhou para as cortinas das janelas. — Que horas são? — Não sei ao certo. Está quase na hora do chá, suponho. — Não me lembro de ter dormido tanto. Impressionante. — Ele fez menção de se levantar, mas Joanna o impediu. — Quando foi a última vez que dormiu o suficiente? — Muitos anos atrás — Alex admitiu. — Todos nós precisávamos descansar. Ela tocou a face morena. O inchaço do olho havia melhorado consideravelmente. Alex recuperava sua beleza natural. Deitar-se com ele era perigoso, mas Joanna não conseguia se afastar. Ainda não. 2


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— Alex, por que permitiu que saíssemos de Akora? — Por que acha que a decisão foi minha? — Porque, nesse assunto, seu irmão se deixaria guiar por você. — Seria mais fácil dizer que recebeu a permissão de ir embora porque respeito seus sentimentos e não lhe causaria mais dor, forçando-a a fazer algo que não desejava, como ficar comigo. Tudo isso é verdade, mas não totalmente. Embora absorvesse a deliciosa declaração de que Alex gostava dela, algo naquela honestidade a intrigou. — Há mais? — Embora ignorasse os motivos de seu irmão estar em Akora, eu conhecia os seus. Sabia que era uma pessoa corajosa, honrada e confiável. Minha esperança era de que estivesse certa sobre Royce, e, pelo jeito, estava. Não poderiam fazer nada para ajudar Akora, se lá tivessem de ficar. Na Inglaterra, vocês seriam aliados valiosos. Joanna o encarou. — Em suma, você pensou que poderia nos usar? — Joanna... O tom de preocupação a fez sorrir. — Calma, milorde. Conheço bem o dilema do dever. — Agora eu sei disso. Royce acreditou mesmo que Atreus fosse responsável por sua prisão? — Acreditou. Os guardas que vigiavam a cela se gabaram da recompensa que receberiam do rei pelo serviço que a ele prestavam. — Não faz sentido. Os homens da guarda pessoal de Atreus jamais agiriam assim. — Foi o que pensei. Quando Alex se mostrou disposto a aceitar o fato de que Royce não prejudicaria Akora, Joanna também aceitou a garantia de que Atreus não estava envolvido. — Também deduzi que homens de caráter tão vil jamais estariam a serviço do rei. Mas Royce tinha certeza do que ouvira. Em seu estado debilitado, ele acreditou nisso. — É compreensível. — Alex refletiu por um instante e disse: — Quem o capturou queria que ele acreditasse que Atreus era o responsável. — Mas por quê? Foi uma artimanha para envergonhar o rei, com o intuito de fazer parecer que ele havia violado o costume akoreano ao aprisionar um xenos! — Não consigo ver em que isso acarretaria. Mesmo que o povo acreditasse, o que dificilmente aconteceria, nada mudaria. O poder de Atreus continuaria intacto, a não ser... Alex se deteve e olhou para Joanna. — A não ser que não fossem os akoreanos a acreditar que Atreus mandara capturar Royce. A não ser que fossem... — Os britânicos! Os únicos que consideravam a invasão de Akora. 2


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— Exatamente. Um aristocrata britânico preso e sujeitado a maus-tratos pelo líder de Akora. Invasões já foram realizadas sob pretextos menores que esse. Enquanto falava, Alex se levantou, alheio à própria nudez. — Royce precisa saber disso e, por falar nele — Alex sorriu —, duvido que seu irmão aprove meu abuso de sua hospitalidade. — Ele dorme no jardim — Joanna contou. — Não suporta o confinamento por longos períodos de tempo. — Foi o que percebi ontem à noite durante o espetáculo de luzes. — Alex segurou as mãos de Joanna. — Sabe que qualquer outro homem estaria em frangalhos depois de passar pelo que seu irmão enfrentou. Aliviada por Alex não ter pena de Royce, um sentimento que seu irmão desprezaria, ela sorriu. Então se levantou e, devagar, começou a recuar. — Preciso me vestir. E você também. — Para encarar o mundo? — Uma pequena parte dele, sim. Sabe que é importante você ser visto. — É importante que Hawkforte e Akora sejam vistos juntos. A sociedade vai se deleitar, mas nossos inimigos ficarão alarmados. Homens assustados cometem desatinos. A proximidade de Alex a deixava atordoada. Mesmo agora, depois de tudo que com ele vivera, Joanna ainda se surpreendia. O que acontecera com a mulher simples e caseira? Ela fitou os lábios do príncipe, lembrando-se das sensações avassaladoras. — Os corpos já foram encontrados — Alex concluiu. — O responsável por esse ataque deve estar em pânico agora. — Ele acariciou os cachos rebeldes de Joanna. — Volte para Hawkforte. — O quê? — Volte para Hawkforte — ele repetiu. — Ficará segura lá. Irei encontrála quando tudo estiver resolvido. — Você precisa da minha ajuda. — Prefiro vê-la sã e salva. — Pensei que Akora fosse prioridade. — Eu também. — Alex a beijou com ardor e urgência. Joanna correspondeu ao beijo em igual intensidade. Alheios a todo o resto, eles se acariciaram, aproveitando os preciosos momentos. Até que o som de passos do outro lado da porta dispersou a nuvem da paixão e os separou. Era uma criada, Joanna notou com alívio quando espiou pela fresta da porta, antes de voltar a seu quarto. Depois de se vestir, desceu apressada. Royce estava na sala, conversando com Alex, que fora mais rápido que ela. — O líder dos reacionários se chama Deilos — Alex dizia quando Joanna entrou. — Da facção rebelde, não sabemos nada. — Uma situação complicada... — começou Royce, mas calou-se ao ver Joanna. 2


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Os dois se levantaram em respeito a ela. Antes que Joanna pudesse encorajá-los a continuar a conversa, Royce indicou uma pilha de correspondências sobre a mesa. — Convites — informou, impaciente. — Uma vasta quantidade de convites. Ao que parece, todos em Brighton decidiram dar uma festa. Joanna se sentou na cadeira que Alex puxou para ela, serviu-se de chá e refletiu sobre a proteção exagerada de ambos. Pelo menos, estavam conversando, o que representava um passo na direção certa. — E por que não? — indagou. — Há dois príncipes na cidade, o nosso e o de Akora. Isso sem mencionar a volta do garboso conde de Hawkforte que, segundo o primeiro-ministro, foi dado como morto. Quem resiste a tal combinação? — Você se omitiu da lista — apontou Royce. — Tenho certeza de que muitos comentam a graça de lady Joanna Hawkforte. — Ele encarou Alex. — E, sem dúvida, há rumores ao redor dos corpos encontrados perto da Steine. — Da Steine? — Joanna perguntou, preferindo concentrar-se na rua e não nos cadáveres. — A rua à beira-mar mais movimentada nas proximidades do pavilhão. Os habitantes de Brighton costumavam secar suas redes de pesca lá. Agora é onde a sociedade se exibe. — Neste exato momento, imagino — Alex comentou. Então dirigiu-se a Royce com formalidade. — Milorde, sinto disposição para um passeio. Sua irmã poderia me acompanhar? Ansiosa, Joanna olhou para o irmão. — Não vejo por que declinar — Royce declarou. Ela respirou, aliviada. — É muita bondade sua, Royce. — Por que não vem conosco? — sugeriu Alex. — Acho que vou mesmo. — Ele se levantou. — Podemos nos apresentar como uma família. Com a indicação do que esperava para o futuro, Royce caminhou até o hall de entrada. Joanna e Alex o seguiram.

O dia estava glorioso. O calor era o suficiente para estimular uma caminhada à beira da orla, onde o pesado nevoeiro marítimo podia deixar alguns transeuntes melados de sal. Mas não naquela tarde. A luminosidade dourada no céu convidava a um passeio agradável. Entre Alex e Royce, Joanna observava damas e cavalheiros da sociedade ricamente vestidos e com o único intuito de se exibir. Cíprios em seus trajes transparentes faziam seu comércio, jóqueis ainda usando seus trajes de montaria circulavam, lordes à procura de uma oportunidade desfilavam entre os membros da Guarda, que, com seus uniformes vermelhos, vigiavam os jovens e os velhos que poderiam se dar ao luxo de assaltar os nobres. Aquele cenário, Joanna concluiu, representava a inconfundível decadência de Brighton.

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— Não se afaste — avisou Royce. Joanna não pretendia ir a lugar nenhum. Aproximaram-se de um trecho da rua onde a multidão se aglomerava. Com um olhar rápido para Alex, suas suspeitas se confirmaram. — Não entendo por que se incomodam tanto — ele comentou. — Não há nada para ver. A postura de Alex permanecia impassível. O ataque contra sua vida e a necessidade de aniquilar os três homens pareciam não abalá-lo. Joanna não se deixou enganar. Notou a expressão sombria do rosto e sentiu que ele apertava sua mão. A multidão estava tão ocupada em fitar o nada que o trio passou despercebido. Continuaram seu caminho quando um cavalheiro parou para cumprimentá-los. Charles, o segundo conde de Grey, era o mesmo homem refinado que Joanna avistara em Carlton House. O semblante sóbrio advinha, de acordo com os rumores, do resultado de várias decepções políticas, ou ainda da morte de sua amante, Georginna, a duquesa de Devonshire, com quem ele criara um grande escândalo e uma filha ilegítima. Como a duquesa houvesse falecido cinco anos atrás, Joanna tendia a pensar que eram as decepções políticas que o perturbavam. Porém, admirava o compromisso do conde para com a reforma parlamentar, e ficou grata de ser apresentada a ele. — Lady Joanna, encantado — disse Gray. — Agora posso manter minha cabeça erguida porque conheci a mulher que Brighton exalta. Apesar de tudo, ela corou. A história de ser um sucesso social era tão nova que ainda a constrangia. Mesmo assim, não pretendia sucumbir à futilidade. — O prazer é meu, lorde Grey. Tenho acompanhado seus esforços com interesse. — Verdade? É uma ativista política, milady? — Apenas em teoria, milorde. Parece-me tolo esperar que as pessoas invistam energia e lealdade em uma nação, da qual têm nada a dizer. O candor de Joanna encantou o conde, que a presenteou com um sorriso. — As veneráveis torres de Hawkforte abrigam uma radical? — Não seria a primeira vez — interveio Royce. — É bom vê-lo, milorde. — Indicando Alex, ele perguntou: — Conhece lorde Boswick, suponho. — Claro. Como vai, milorde? E você, Royce? Houve muita preocupação com seu bem-estar. — Foi o que ouvi dizer. É impressionante como os boatos voam. Mas o que o traz a Brighton? Pensei que abominasse esta cidade. Grey deu de ombros. — Um homem nem sempre pode escolher suas circunstâncias. — Ele se dirigiu a Alex. — Voltou rapidamente à Inglaterra, lorde Boswick. Pensei que gostasse de passar o verão em Akora. — Como bem disse, milorde — Alex replicou —, um homem nem sempre escolhe onde quer estar. 2


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O conde o encarou por um instante. — Pobre Brighton! Parece que nenhum de nós aprecia a cidade. Exceto lady Joanna, presumo. O que achou do paraíso à beira-mar de nosso príncipe? — Muito além do que eu esperava, milorde. Parece uma fantasia que se tornou realidade. — O príncipe prefere a fantasia à realidade — Grey comentou. — Não vou detê-los mais. Se forem ao pavilhão esta noite, talvez nos encontremos. — Iremos ao pavilhão esta noite? — Joanna perguntou quando Grey se foi. A crítica sincera do conde em relação ao príncipe regente a surpreendeu. — Não poderemos evitar — Alex respondeu. — Prinny nos espera. — Não para outro show de mágica, espero. Um foi mais que suficiente. Royce olhou em direção ao mar, onde o sol se punha. — O príncipe não gosta de se repetir. Ele terá mais uma novidade a apresentar. Minutos depois, eles se foram; Alex para sua residência em Brighton, Joanna e Royce para a deles. Mas, antes de ir, Alex beijou as mãos de Joanna ao se despedir. — Até mais tarde. O coração de Joanna ainda batia acelerado quando ele desapareceu na multidão.

Capítulo VI

— Que homem fino! — elogiou Mulridge, em tom de admiração. — Você pensou que ele fosse um vilão — Joanna a acusou. — Quando o príncipe me negou ajuda, disse que não se surpreendia. — Isso foi antes. Ele se mostrou muito valente ontem à noite. — É um guerreiro treinado para lutar e vencer. Mulridge sacudiu uma toalha aquecida pelo fogo e a entregou a Joanna. — Excelente qualidade em um homem. Joanna se enrolou na toalha e fitou o vestido que Mulridge escolhera para ela. Era um modelo lindo, cujo tom de verde realçava seus olhos. Em outras circunstâncias, ficaria feliz em vesti-lo. Mas, naquela noite, estava inspirada a fazer uma travessura. Queria algo... diferente. — A musselina branca — decidiu, por fim. Trinta minutos depois, quando desceu a escada para encontrar Royce, ficou satisfeita com seus esforços. O irmão a fitava, boquiaberto. Estavam na carruagem, a caminho do pavilhão, quando, enfim, ele disse: 2


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— Pobre Darcourt. — O quê? — Darcourt fugiu como uma raposa em temporada de caça. — Alex fugiu? — Ele entenderia o que quero dizer. — Pois eu não entendo. Alex está longe de fugir como uma raposa assustada. — Certamente, ele pensou o mesmo. Agora sabe que é diferente. Royce sorria, satisfeito consigo mesmo. — Sabe, meu irmão, um homem sábio deve considerar as implicações do que sugere. Se Alex Darcourt pode ser derrotado, nenhum homem, portanto, deve se considerar seguro. O olhar de espanto foi a recompensa que ela esperava, justamente no momento em que a carruagem parou diante do pavilhão. A entrada e de braços dados com o irmão, Joanna sentiu os efeitos da escolha de seu vestido. Viu que todos os olhares se voltaram para ela, mas estava à procura de outra pessoa. Procurou-a e encontrou em menos de um segundo. — Quase metade da população em algumas áreas suplica por um alívio monetário — o príncipe regente dizia. — É extraordinário. De onde esperam que os fundos saiam? Resistindo à tentação de apontar que os excessos do regente poderiam ser transformados em benefícios para o povo inglês, Alex olhou em direção à entrada. — Estamos em guerra — continuou Prinny. — A população, no mínimo, deve manter isso em mente, e... Ele prosseguiu, mas Alex não mais o ouvia. Toda a sua atenção estava focada na mulher que entrava no salão. Joanna. A mulher que conhecia intimamente porque ela havia tocado uma parte vital de sua alma. Momento após momento, Alex recordava a fragrância feminina, o toque sensual, a respiração ofegante durante o ato amoroso, a riqueza profunda do riso. Tudo lhe era tão familiar e, ainda assim, não era Joanna. Uma visão em seus sonhos. Por um instante, imaginou que aquele vestido era akoreano, mas logo percebeu que se enganara. O estilo fora inspirado em Akora, mas havia marcas nítidas do corte inglês. Joanna, que não dava importância à moda, devia ter orientado madame Duprès. Que declaração artística ao afeto que sentia por Akora e, Alex suspeitava, por ele. Toda bordada com contas de vidro que refletiam a luz, a túnica simples cintilava à medida que ela caminhava. Os cabelos caíam às costas como uma cascata de cachos e estavam presos por uma fita branca, também decorada com vidrilhos. Joanna parecia uma princesa. Sua princesa. Apenas dele. Foi o orgulho que o ajudou a agir com educação e pedir licença ao príncipe regente. Espantado, Prinny seguiu o olhar de Alex e sorriu, enquanto assentia sua permissão. Nada disso importava. Nenhuma força seria capaz de deter Alex. 2


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Ele atravessou o salão. Joanna o viu e se afastou um pouco de Royce, o único que não se mostrava fascinado. Ele sorriu para Alex e murmurou algo parecido com "boa sorte". Mas nada disso tinha relevância. O mundo pareceu parar quando Alex segurou a mão de Joanna e a levou até os lábios. Naquela noite, lady Joanna Hawkforte jantou acompanhada do marquês de Boswick que, como os convidados faziam questão de comentar, era Sua Alteza Real, o príncipe de Akora. A conversa à mesa do príncipe regente foi tão alegre quanto erudita. Joanna perdeu a noção do tempo e se assustou quando os criados começaram a recolher os pratos. Depois de ter dormido até tarde, ela se sentia disposta e ficou curiosa quando o regente se levantou e os incitou a acompanhá-lo a outra das dezenas de salas que compunham o pavilhão. — Esperem até ver isso — disse Prinny, sorridente. — É algo realmente especial e divertido. Pelo menos, a sala não estava às escuras. Royce observava tudo, parecendo bem alimentado e risonho. Alex estava a seu lado. O príncipe lhes concedeu o privilégio de mantê-los à frente da multidão que se amontoava para assistir ao que estivesse por vir. Após o espetáculo bizarro da noite anterior, Joanna não ficou surpresa ao ver alvos posicionados na parede oposta a eles. Haveria um torneio de arco e flecha? Se assim fosse, esperava que somente os mais sóbrios entrassem na competição. Sua esperança foi frustrada quando o regente, das mãos de um criado impassível, pegou um objeto que causou certa comoção entre os mais próximos. — Aquilo não é... — Joanna murmurou. — Uma pistola de ar — completou Alex. Ele a puxou para trás. — Presumo que seja o mais recente brinquedo do príncipe. Infelizmente, é letal. Joanna jamais vira uma arma como aquela, mas ouvira falar da tal pistola. A câmara continha ar comprimido que, quando liberado, impulsionava a bala de chumbo. — Alex, ele está bêbado. — Como a maioria dos presentes, querida. Acho que é hora de irmos. Royce se juntou a eles. Notando que Joanna estava atrás de Alex, ele assentiu. — Vamos embora. Joanna conteve um suspiro. Era estranho como aqueles dois se pareciam tanto. — Sem dúvida — Alex reforçou a decisão. Ele e Royce começaram a se mover em direção à porta com Joanna entre ambos. Mas antes que se afastassem demais, o príncipe, de repente, gritou: — Darcourt, ouvi dizer que você tem uma mira excelente. Experimente esta pistola. Alex praguejou em akoreano. — Aqui, Alteza? — ele inquiriu. — Quão trágico seria danificar um espaço

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tão esplendoroso. — Oh, mas não vai errar — Prinny insistiu. — Tenho certeza disso. — Mais uma vez, ele estendeu a arma a Alex. — Ele planejou tudo isso — Royce deduziu. — Embora esteja embriagado, ele pretende provar alguma coisa. Imediatamente, Joanna compreendeu o que o irmão insinuava. — Quem vai atirar? O marquês de Boswick, um nobre leal a serviço do rei e do príncipe regente, ou o príncipe de Akora, defensor ardoroso de sua terra natal? Alex hesitou. — É disso que se trata? — Desconfio que sim. Veja, Perceval está ali. O primeiro-ministro parecia circunspeto demais naquela noite. Com ar preocupado, encarava Alex e o príncipe alternadamente. — Já que insiste, Alteza. — Alex entregou a mão de Joanna a Royce e com ele trocou olhares masculinos. — Será um prazer. A multidão vibrou. Apostas começaram a rolar. Muitas favoreciam Alex, embora considerassem a luminosidade e a distância do alvo. Alex se postou atrás da linha que no piso fora traçada com carvão. O alvo estava a cerca de seis metros, do outro lado da sala. Ele tirou o casaco e o entregou a um criado. Joanna lançou olhares diabólicos às várias damas que ousaram suspirar por ele. Todas lhe pareceram oportunistas. Agora começava a entender o comentário de Royce sobre Alex ser uma raposa em temporada de caça. Concentrado, Alex mirou o cano da arma e atirou. Um dos alvos caiu. Um criado correu para pegá-lo. — Um tiro certeiro — o príncipe comentou quando o alvo foi levado até ele. — Vejam. Darcourt acertou o centro. Enquanto o regente falava, Alex aceitou uma espingarda que o criado lhe oferecia, posicionou-a à altura do ombro e apertou o gatilho. O segundo alvo tombou, atingido no centro. Em uma rápida sucessão de tiros, todos os alvos foram derrubados. Alex atirava sem ao menos respirar entre uma mira e outra e atingia o centro dos alvos. Os espectadores entraram em êxtase. Homens e mulheres aplaudiam. Joanna olhou ao redor e se perguntou se aquelas pessoas entendiam o que viam. Um príncipe akoreano atirando em um alvo britânico. Um príncipe akoreano provava que sua pontaria era precisa. Ainda assim, eles o ovacionavam. Não, nem todos. Perceval permanecia sério e atento. Ao lado dele, Grey se mostrava da mesma maneira. — Magnífico! — Prinny exclamou. Então, talvez porque estivesse bêbado, ele elevou a voz e bradou para quem quisesse ouvir: — E quanto aos canhões, Darcourt? São armas fascinantes, não são? Joanna achou que ele disfarçou muito bem a surpresa diante da 2


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informação que o príncipe regente revelava ter. Alex empreendeu o último tiro e olhou para a plateia. — Canhões não são um brinquedo como esta pistola de ar. Servem a apenas um propósito: estraçalhar o inimigo, destruí-lo e derrubá-lo ao solo para que os vermes o consumam. Os cavalheiros ficaram sérios e as damas deliraram. — Que terrível usar tal armamento contra aqueles que deveriam ser amigos e irmãos — prosseguiu Alex. — Concordo! — o príncipe vociferou. — Muito bem dito. Chega de inimigos neste mundo. Temos de saber quem são nossos amigos. — Com um gesto desajeitado, ele abraçou Alex. — O velho Boswick sabia o que estava fazendo quando produziu um herdeiro. — O regente recuou um passo e acenou para Joanna. — Esta é uma família de antigos conquistadores, Boswick. Você sabia — ele indagou a Alex — que o primeiro lorde de Hawkforte lutou ao lado de Alfredo, o Grande? Isso, sem dúvida, é antigo! — Lutou e venceu — Royce disse. O príncipe assentiu novamente. Ele estava corado, cambaleante e embriagado, mas ainda mantinha controle sobre si mesmo. — A Coroa sempre pôde contar com os Hawkforte. Nunca nos decepcionaram, nenhuma vez. — Houve aquele conflito com Ricardo III — Royce comentou, sorrindo. — Não há necessidade de enfatizar isso, meu rapaz — declarou Prinny. — Não mesmo. Agora está tudo bem. Duas famílias milenares, três bons amigos. Que noite gloriosa! Antes que os outros convidados experimentassem as armas de ar, Joanna, Alex e Royce fugiram da festa.

Uma semana se passou. Joanna residia sob um encantamento paradisíaco, permeado por ondas de apreensão. Acordava tarde todos os dias, tomava longos banhos perfumados, usava vestidos deslumbrantes e se aventurava na companhia dos dois homens mais fascinantes da Inglaterra, sendo que um deles se recuperava de um ferimento grave causado por agressores ainda desconhecidos e comandados por alguém ainda prestes a deferir outro golpe mortal. Ela também escrevia para Kassandra. As cartas não eram enviadas, e Joanna tampouco sabia se um dia a irmã de Alex as receberia. Mas a verdade era que, certa madrugada, após voltar de um baile, ela se sentara à mesa próxima à janela e começara a escrever a primeira carta: Royce está dormindo. Alex já se foi. O ar noturno exala o cheiro do mar. Sinto saudades da essência de limão. Nunca tivemos a oportunidade de nos despedir, e acredito que tenha sido melhor assim, pois espero revê-la em breve. Penso em você cada vez mais. O que você vê? Disse-me que nada estava escrito, a não ser o amor que nosso Criador sente por nós. Cabe a todos nós mudar o futuro. Quero tanto acreditar em suas palavras... 2


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Numa outra noite, ela confessou: Ultimamente, tenho pensado muito em você e Royce. Consegue enxergar o destino de meu irmão? Ou deveria dizer o destino possível? O que vê para si mesma? O Deus que ama a todos nós permite que veja os caminhos que talvez você venha a percorrer? Venha à Inglaterra. Sei que é o que deseja e estou certa de que vai se deliciar aqui. Certa tarde, durante um jogo de cartas, Joanna anunciou a Alex e a Royce: — Kassandra deveria vir para a Inglaterra. — Kassandra? — perguntou Royce, enquanto embaralhava as cartas. — A irmã de Alex, a princesa de Akora. — Não sabia que havia uma princesa em Akora. — Há, sim. — Que nome incomum. — Combina com ela — declarou Alex, voltando a atenção às cartas.

Na manhã seguinte, eles acordaram cedo para provar as águas medicinais. — Que repugnante — Joanna resmungou, observando o líquido escurecido que saía das torneiras de metal das salas de banho, onde homens e mulheres bem-intencionados tomavam pequenas porções da tal água. Ela era uma dama, portanto, não se daria ao luxo de vomitar em público. Mas como as pessoas podiam acreditar que aquele líquido asqueroso fazia bem à saúde, ela não entendia. — Experimente misturar a água com leite — sugeriu Royce, já que não tinha a menor intenção de ingerir o líquido. — Prefiro morrer — Joanna murmurou e, discretamente, despejou sua porção de água turva em um balde. Eles foram ao teatro, um entretenimento divertido, mas incomparável ao espetáculo que vira na acrópole de Akora. Também assistiram às corridas, o que para ela foi muito mais excitante. Viram o príncipe regente ser saudado pelo regimento real, que desfilou toda a sua exuberância militar na rua principal da cidade. Eram convidados para todos os eventos, mas reservavam algumas noites para o convívio familiar. Nessas ocasiões, Royce e Alex conversavam durante horas no jardim. Suas vozes eram um acompanhamento suave aos sonhos de Joanna, que dormia na espaçosa rede ao lado do canteiro de flores. As noites de agosto se prolongavam. Não havia sinais dos agressores de Alex, embora ele e Royce permanecessem em guarda. Tinham combinado entre si não deixá-la sair sem a companhia de um ou outro, ou de ambos. — Vale lembrar que Alex foi o agredido, não eu — ela comentou certa noite, quando voltavam do pavilhão. — Mesmo assim, ele vem e vai quando quer, enquanto eu começo a parecer uma daquelas mulheres árabes que se 2


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escondem atrás de um, como se chama, purdah? — Purdah — Royce refletiu — uma cortina, ou muro, atrás da qual as mulheres da família estão protegidas do olhar dos outros homens. — Não é um sistema tão ruim — murmurou Alex. Ele riu ao ver o olhar indignado de Joanna, mas, um segundo depois, seu semblante se tornou sério. — Royce e eu temos homens espalhados por Brighton e pelos arredores da cidade para que nenhum akoreano passe despercebido. Até agora, ninguém foi identificado. — Talvez tenham desistido — Joanna sugeriu. Os dois trocaram olhares. — Pode ser — disse Alex, sem convicção.

Vários dias se passaram. As festas começavam mais cedo e acabavam mais tarde. As pessoas, de tão exaustas, começavam a decair, tornando Brighton um ambiente irritadiço sob o ar quente do verão. Porém, no meio do mês, a cidade pareceu renascer das cinzas ao se preparar para o grande evento da estação: o aniversário do príncipe regente. — Não entendo por que tanta empolgação — Prinny comentou com os olhos brilhantes de expectativa. — Mesmo assim, é muita gentileza para com seu soberano. Ninguém teria coragem de contradizer o regente. Além disso, pensou Joanna, seria uma tremenda grosseria. O povo de Brighton parecia gostar mesmo do príncipe. Houve momentos em que ela partilhara o mesmo sentimento, mas não quando se viu obrigada a levantar logo depois do amanhecer do grande dia. — Finalmente, acordou em um horário decente — Mulridge comentou ao abrir as persianas para que a brisa do mar entrasse. Tapando os olhos para se proteger dos raios de sol, Joanna resmungou: — Eu deveria ter ficado acordada a noite toda, como Royce sugeriu. Por que a batalha marítima teve de ser marcada tão cedo? A governanta meneou a cabeça. — Para que o resto das festividades possa acontecer? — Nunca vi nada mais imbecil. Um homem crescido se comportando como uma criança mimada. Alex e Royce estavam na sala, fortificando-se com chá. Joanna sabia que ambos haviam permanecido até tarde da noite conversando, mas não revelavam nenhum traço de cansaço, exceto preocupação. Mesmo assim, ela se deliciou com a visão dos dois. Alex estava... magnífico. Não conseguia estar com ele ou pensar nele sem sentir a melodiosa necessidade de tocá-lo. Os beijos roubados que haviam partilhado nos últimos dias somente intensificavam a saudade. Royce havia recuperado sua aparência original. Embora ainda dormisse no jardim, ele não mais possuía as marcas visíveis de seu aprisionamento e 2


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parecia ter voltado à velha forma. Nos bailes e em outros eventos, Joanna vira como as damas se aglomeraram ao redor dele. Um dia Royce se casaria, nem que fosse para produzir um herdeiro, mas Joanna esperava que um sentimento mais profundo o guiasse ao matrimônio. Sem dúvida, ele merecia ser amado. Tal pensamento retornou a sua mente quando, uma hora depois, eles se reuniram com o príncipe regente no embarcadouro do pavilhão para assistir ao espetáculo naval. Um bando de damas adoráveis se aproximou de Royce. Ele as tratou com humor e educação, e ainda mostrou certo interesse, Joanna notou, pela mais ousada do grupo. Algumas tentaram agradar Alex, mas sua dedicação explícita a Joanna as desencorajou. Felizmente. A bem da verdade, as damas também tentaram se aproximar de Joanna. Ela percebeu que poderia criar laços de amizades, mas hesitou. Tinha pouca experiência com a sociedade e, para piorar, não sabia como se comportar. Alex pareceu perceber o constrangimento de Joanna ao sussurrar: — Algumas dessas donzelas me lembram de Kassandra. Possuem um bom coração e uma sabedoria considerável. — Nunca soube como agir entre elas — Joanna admitiu. — Toda a minha experiência se resume às camponesas de Hawkforte e elas são muito diferentes. — São diferentes ou apenas parecem diferentes? Essas mulheres enfrentam os mesmos problemas: como viver, como corresponder às expectativas dos outros enquanto buscam uma certa medida de felicidade para si mesmas, como lidar com maridos, filhos, pais, irmãos e todo o resto. É tão diferente assim? — Meu Deus! — Joanna o encarou. — Você nos compreende muito bem. O sorriso de Alex sempre alegrava seu coração. — Tive o privilégio de crescer com uma mãe e uma irmã amorosas. Talvez tenham revelado segredos proibidos. — Não — Joanna declarou, encantada. — Eu diria que elas o fizeram por você. Para o deleite de Joanna, Alex corou. Então, ele a abraçou pela cintura e a apertou discretamente para lembrá-la de sua força e vontade. Joanna correspondeu ao gesto, acomodando-se ao tórax musculoso. Alex riu e a manteve colada a si. Permaneceram nessa posição de inocente intimidade sob os olhares curiosos dos presentes. — Vejam! — exclamou o príncipe. — Lá vêm eles. Uma dúzia de fragatas imponentes se aproximou de Brighton especialmente para a ocasião. Metade delas evidenciava as cores da Regência, azul e amarelo, e as outras pareciam mostrar as três cores da França, mas eram, de fato, a imagem reversa. A primeira reação de Joanna foi de surpresa, já que tantos navios militares eram usados de forma frívola, enquanto a GrãBretanha permanecia em estado de guerra contra Napoleão. Ela comentou seu espanto com Alex. — Olhe ao redor — ele sussurrou. — Veja quantos agentes franceses estão aqui neste momento. Eles vão reportar que o príncipe regente é adorado, que os militares o homenageiam e que dúzias de navios podem ser utilizados para tamanha frivolidade. É claro, que os mestres deles irão atenuar 2


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tais informações antes que elas cheguem a Bonaparte, que ficará furioso. — Então, tudo isso é em nome da aparência? — E da vaidade do príncipe, que pode ser irritante e, às vezes, útil. — Agradeço muito sua disposição de me explicar as coisas, Alex. Há homens tolos que acreditam que as mulheres não possuam inteligência para assimilar tais assuntos. — Que os infelizes pereçam! Ela riu e pulou para trás quando, de repente, vários canhões atiraram de uma só vez. A batalha caricata se deu por meio de simulações e terminou com a vitória britânica. Quando as embarcações caracterizadas francesas se afastaram e a multidão ao longo do cais aplaudiu, o príncipe convidou todos para ir ao pavilhão, onde o almoço seria servido. Em seguida, todos seguiram de carruagem a Race Hill, acima da cidade, para observar uma manobra militar. Joanna se viu em meio à poeira levantada por centenas de cavalos e homens e, de modo geral, divertiu-se com a apresentação. Mas ficou grata por poder voltar para casa ao final da tarde.

— Fanfarrice — declarou Mulridge, ignorando o bom humor de Bolkum, que estivera no Castle Inn, onde a cerveja fora oferecida gratuitamente. Ela sacudiu a saia, incitando Joanna a subir. — Um banho refrescante a espera! — Graças a Deus! — Joanna murmurou, sorrindo para Bolkum que piscou para ela. — E é bom vê-la saindo de casa — comentou, de repente. Joanna parou no meio da escadaria. — Eu era tão caseira assim? Bolkum deu de ombros. — Quem poderia recriminá-la? Hawkforte é um lugar raro. — Sim. Sinto saudades de casa. Joanna percebeu então que havia se separado de Hawkforte de uma forma essencial. A constatação a entristeceu um pouco. Royce voltou para escoltá-la ao pavilhão. Alex já estava lá quando chegaram. Ele os encontrou à entrada. — Ouvi dizer que o cozinheiro está trabalhando a valer desde o raiar do dia — comentou. Joanna gemeu, pensando na festa em Carlton House e na quantidade absurda de comida lá servida. — Espero que o príncipe não nos mantenha à mesa até o dia nascer. — Ele acordou cedo demais hoje. Portanto, duvido que aguente até a madrugada. Venha, Prinny quer que alguns amigos o vejam abrir os presentes antes do jantar. O príncipe era uma criança, e seu aniversário representava a noite de Natal. Pelo menos, foi assim que Joanna se sentiu quando adentrou a sala privativa, onde os presentes, dados pelos amigos mais íntimos de Sua Alteza Real, estavam dispostos. Royce havia escolhido muito bem, pois a cópia de um 2


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manuscrito raro que ele encontrara na biblioteca de Hawkforte encantou o príncipe. Ele apreciou o belo trabalho artístico, admirou a caligrafia e se deliciou com as pedras preciosas que enfeitavam a capa de couro. — Magnífico, absolutamente magnífico! Este original foi publicado...? — No reinado de Alfredo, o Grande, Alteza — Royce respondeu. — Acreditamos que seja a obra de um dos monges do convento real de Winchester. O livro foi autorizado pelo primeiro lorde de Hawkforte, pois sua esposa possuía um coração generoso. Como sabe, sir, Alfredo era dedicado à língua e à literatura como Vossa Alteza. Tamanha lisonja foi aceita com um sorriso de apreciação. O príncipe, apesar de seus defeitos, possuía inteligência e sabia reconhecer quando seus súditos valorizavam tal qualidade. Então chegou a hora de abrir o presente de Alex. Um criado trouxe o pesado pacote, envolto por um tecido de seda. Os olhos do príncipe brilharam ao ver o objeto retangular. — O que pode ser? — ele brincou. Para criar suspense, Prinny desdobrou a seda lentamente até revelar uma caixa magnífica de mogno, decorada com motivos que Joanna reconheceu ser a arte típica de Akora. — Deus! Não é... Com as mãos trêmulas, ele tirou da caixa uma espada forjada em ouro. Os presentes exclamaram, surpresos, ao reconhecer aquela peça cintilante. Tratava-se de uma espada que já se tornara lendária quando a Inglaterra ainda era considerada um país novo. Uma espada que havia sido empunhada diante das muralhas de Tróia, manchada pelo sangue de guerreiros antigos cujos nomes ressoavam através das eras, o nobre Heitor, o destemido Aquiles e o irresponsável Paris, todos representados imortais em canção e história. — Poderia ser grega — comentou o príncipe, enquanto examinava a arma de ouro. — Mas não é. — Ele olhou para Alex, à espera da confirmação. — É akoreana — Alex confirmou. Tais palavras possuíam um significado de peso, pois os homens e as mulheres na sala sabiam que nada vinha de Akora, desde um simples prato ou moeda, sem que o objeto em questão estivesse envolto em mistério e lendas. Além das peças akoreanas seculares que estavam guardadas em Hawkforte, ninguém jamais possuiu nem uma pequena parte da fortaleza. Até agora. — Nosso presente, Alteza — Alex pronunciou e inclinou a cabeça, uma reverência de príncipe para príncipe. — Acreditamos que a deixaremos em boas mãos. — Declaro que este é o melhor aniversário que já tive! — afirmou o príncipe, depois de se recompor Por um momento, Joanna deduziu que ele se mostrava apenas educado. Mas lembrou-se da vida familiar estéril do príncipe, do relacionamento frio com o pai que, mesmo durante o período de sanidade, jamais demonstrara afeto, da esposa desprezível com a qual fora obrigado a se casar por razões políticas, e sua própria dissolução que o separara de Maria Fitzherbert, a única mulher 2


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que amara e a ela se unira ilegalmente. Aquele aniversário, meses antes de as restrições à Regência terminarem, podia muito bem ser o melhor de todos porque representava uma chance legítima de guiar a nação britânica em uma época tumultuada de guerra. Joanna teve a nítida impressão de que o Prinny de quem ninguém nada esperava poderia surpreender a todos. Mas, por enquanto, o exagerado regente pecava por seus excessos e a ceia atendeu às expectativas dos convidados. O salão de banquete foi todo enfeitado de seda vermelha e tapetes felpudos. Candelabros de ouro iluminavam o teto ricamente arquitetônico e a ampla mesa sob ele, coberta com a mais fina toalha branca, exibia talheres de prata com o selo real e a porcelana favorita do príncipe. Tão logo se sentaram, um verdadeiro exército de criados apareceu, trazendo prato após prato. As iguarias foram dispostas no centro da mesa para serem servidas à la française, os convidados passavam os pratos entre si enquanto os criados transitavam ao redor com mais comida. Atordoada, Joanna assistiu ao desfile de iguarias. Cada entrada fora preparada com esmero, todas acompanhadas de molho e guarnições e seguidas por uma variedade de doces que a convenceram de que, se não saísse logo da mesa, sua silhueta estaria provavelmente arruinada. Finalmente, a ceia terminou. Ela havia provado apenas uma pequena quantidade de alguns pratos e, mesmo assim, sentia-se afrontada. Para aumentar o desconforto, o salão estava abafado demais. Em pouco tempo, uma onda de náusea a invadiu. — Se me der licença — Joanna murmurou a Alex —, vou me refrescar. A sala das damas se achava nos fundos do pavilhão, após uma série de outras salas abarrotadas de motivos chineses que a faziam sentir uma certa repulsa, tal qual Royce, por espaços confinados. Ao mesmo tempo, a frescura relativa do ar longe da multidão e o simples ato de se movimentar a deixaram melhor. Ficou, portanto, grata ao encontrar o retiro das damas vazio, exceto por uma criada que cochilava em uma cadeira no canto. Joanna passou pela criada sem fazer barulho e se acomodou em um sofá de brocado, posicionado diante dos espelhos. Sobre a mesa a sua frente, havia um arsenal de frascos de perfumes, como também pentes de prata e escovas, alfinetes de ouro, potes de cosméticos e tudo o mais que uma dama poderia precisar para retocar sua toalete. Sabia que não podia se demorar. Outras convidadas aproveitariam a mesma oportunidade em breve. Mas, por enquanto, era uma bênção estar sozinha. Quando sentiu o couro cabeludo repuxar, lembrou-se de que fazia muito tempo que a fita que prendia seus cabelos estava no alto de sua cabeça. Com impaciência, soltou o laço e permitiu que o manto de cachos caísse sobre os ombros. Aliviada, pegou um dos pentes e se deteve, de repente, ao ouvir um ruído. O piso de madeira rangeu, seguido do farfalhar de uma saia. — Milady... Joanna virou-se, surpresa, e avistou outra criada, uma jovem parecendo exausta em razão do longo dia de trabalho. Tímida, ela fez uma breve mesura. — É lady Joanna Hawkforte? 2


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— Sim. — Perdoe-me por perturbá-la, milady, mas há um cavalheiro no jardim. — A moça abaixou o tom de voz. — Ele me pediu para lhe dizer que lá a espera. Joanna conteve o sorriso. — Você disse no jardim? — Sim, milady. Há uma porta que leva para o jardim no final do corredor. Levantando-se, Joanna agradeceu à criada. O desconforto desapareceu no mesmo instante, e a ansiedade para ver Alex a dominou. Quando tudo terminasse, poderiam resolver os assuntos pendentes entre ambos. Enquanto isso, restavam-lhes encontros às escondidas sempre que uma oportunidade surgisse. Foi pensando nisso que ela se apressou pelo corredor e saiu para o jardim. O ar fresco foi como um bálsamo para aliviar o abafamento no interior do pavilhão. O odor do mar se misturava ao perfume de jasmim. Joanna olhou ao redor e, como não avistasse ninguém, enveredou entre as cercas vivas e as estátuas greco-romanas em seus pedestais. — Alex? Um homem clareou a voz. Ela se voltou em direção ao som e se deparou com um desconhecido. Não, não era um desconhecido. Havia algo familiar naquele rosto. Não conseguia identificá-lo, mas sabia que o conhecia. — Sir... Joanna pretendia lhe perguntar se fora ele quem mandara chamá-la, mas quando o homem deu um passo à frente, seu rosto foi iluminado pelo luar. Intrigada, ela fitou o rapaz. Devia ter a sua idade, e era mais alto. Os olhos grandes se moviam depressa. Possuía um nariz longo e fino e um corpo esguio sob o traje elegante. Foi a roupa que a confundiu, em princípio. Quando o vira pela última vez, o homem usava outro estilo de vestimenta. — Deilos! — A falta de formalidade das inglesas é realmente repulsiva. — Deilos sorriu com maldade. — Eu poderia lhe ensinar modos mais adequados de se dirigir a um superior, mas seria inútil. Tamanha arrogância não a perturbou. Joanna estava ocupada demais com o choque que aquela presença lhe causava. — O que faz aqui? — Achou que seu querido príncipe fosse o único a se aventurar para além das ilhas de Akora? Também fui treinado para essas missões. A Inglaterra não me é desconhecida, embora eu não possa pertencer aos mesmos círculos que Alexandros. Porém, há certas vantagens em permanecer às sombras. Joanna sentiu um arrepio percorrer sua espinha. — Foi você quem ordenou o ataque a Alex.

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— Nosso príncipe transformou a sobrevivência em um hábito. É irritante, sem dúvida, mas nem o mais afortunado dos homens dura tanto tempo. — Não pode fazer o que bem entende aqui. Quando o príncipe regente descobrir... — Aquele gordo imbecil? Ele só vê o que está embaixo do próprio nariz. Por isso, fará exatamente o que queremos. Agora basta. Deilos avançou para agarrá-la, mas Joanna conseguiu se esquivar. Obviamente ele a atraíra ao jardim com más intenções. Se pudesse ganhar tempo, maior seria a chance de alguém aparecer e ela gritar por socorro. Sua resistência pareceu surpreendê-lo. — Não seja tola. Meus homens estão à espreita. Não conseguirá fugir de mim. Venha comigo. — Como uma ovelha a caminho do abatedouro? Acho que não. — Ela fingiu tropeçar e, quando se abaixou, apanhou um punhado de terra. Como arma, aquilo era, de fato, ineficaz, mas foi tudo que pôde conseguir. — O que aconteceu à regra akoreana de não ferir uma mulher? — Joanna perguntou, zombeteira. — Uma xenos não deve saber nada a respeito de nossos costumes — Deilos esbravejou. — Mais uma falha do ilustre Alexandros. — Que é cem vezes mais homem que você... não, mil vezes. É por isso que deseja prejudicá-lo? Porque não pode suportar a verdade de que ele e o irmão pretendem mudar o futuro de Akora? O rosto de Deilos se contorceu de tal forma que ela se arrependeu do que dissera. Mas a determinação foi mais potente que a raiva quando ele, incauto, precipitou-se em direção a Joanna. — Você vai morrer como Alexandros! — declarou Deilos, enfurecido. — Mas ainda não. Não, enquanto me for útil. A ameaça à vida de Alex a apavorou. Ignorando o medo, Joanna o enfrentou. — Tal qual usou meu irmão para provocar uma invasão britânica em Akora. Ele parou e a encarou. — Não há como saber disso. — Por que não? Imaginou que seus motivos passariam despercebidos? Você quer usar os britânicos para destruir Atreides, mas acabará destruindo Akora no processo. — Somente um xenos poderia acreditar nisso. Irritado, Deilos agarrou o braço de Joanna. No mesmo instante, ela jogou o punhado de terra nos olhos dele. A surpresa bastou para que ele recuasse e gritasse, alertando seus homens. Joanna não parou para pensar. Ergueu a saia e correu. Seu objetivo era o pavilhão e a segurança da multidão, que não estavam muito longe, mas pareciam tão distantes quanto a lua. Ela não fugia de rufiões comuns, e sim de guerreiros treinados, incluindo Deilos, que havia se recuperado do ataque surpresa e liderava a perseguição. 2


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Mesmo assim, Joanna era ágil e forte, graças à vida saudável em Hawkforte. As luzes da festa ficavam cada vez mais próximas. Ela teria conseguido, se não fosse a grossa raiz de uma árvore que a fez tropeçar. Joanna caiu, mas logo conseguiu se levantar. O pavilhão estava tão perto que podia ver as pessoas através das janelas do salão de baile. Precisaria apenas gritar... Uma mão áspera tapou-lhe a boca. Ela se debateu a valer, mas não conseguiu combater a força do homem que a rendia. Não era Deilos, pois ele retornava às sombras do jardim. Joanna foi arrastada na mesma direção. — Se ela tentar fugir — Deilos ordenou em akoreano —, mate-a. Dito isso, ele desapareceu na escuridão, seguido de seus homens e da prisioneira.

Alex sentiu um aperto no peito no instante em que ela se retirou. A noite, quando sozinho retornava a sua residência em Brighton, precisava resistir à urgente necessidade de dar meia-volta e se postar sob a janela de Joanna, como um poeta apaixonado. A cada manhã, ao acordar, o primeiro pensamento se resumia a vê-la novamente. Encantava-se com aquele sentimento simples e juvenil. Apesar das pressões que envolviam sua missão e do misterioso ataque que sofrerá, os últimos quinze dias foram um interlúdio de felicidade em uma vida marcada pelo cumprimento do dever. Mas agora a ausência de Joanna o perturbava. Estava consciente de cada minuto que passava e da tendência a olhar repetidamente na direção que ela tomara. Um hábito improdutivo já que não havia sinais de Joanna. Verificou um dos relógios sobre o mantel mais próximo. Havia passado mais de meia hora. Era tempo demais. Talvez ela estivesse submetida a algum mal-estar. A ideia lhe proveu a desculpa necessária para se afastar do príncipe regente e marchar até a sala das damas. Não podia, claro, entrar no recinto. Tampouco pretendia aguardar do lado de fora. Enquanto se debatia, um rosto familiar apareceu. — Alex — lady Lampert o cumprimentou, efusiva. — Que prazer em vêlo. Como vai? — Muito bem — ele respondeu. O olhar sagaz e o bom humor o lembraram de que era uma dama sensata. Nem por um momento, lady Lampert interpretara o romance tépido como algo mais que uma diversão para ambos. Ela agora o cumprimentava como uma velha amiga. — Eleanor, posso lhe pedir um favor? — Devo dizer, Alex, que me agrada vê-lo enamorado. A luxúria é um prazer, mas, para ser franca, o amor é melhor. — Amor, Eleanor? Você? — Sei que jurei nunca mais me apaixonar. Mas o Cupido possui um senso de humor peculiar. Vou me casar no Natal. Ele é pobre, simples, mas um homem brilhante. E eu o adoro. Agora, quanto àquela bela dama que o 2


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acompanha, é claro que vou verificar se ela precisa de assistência. Volto em um minuto. Como prometera, Eleanor voltou um minuto depois. — Lamento, Alex, mas não há sinal dela. Talvez já tenha voltado ao salão e vocês se desencontraram. Alex concordou com a possibilidade, mas após outra meia hora sem avistar Joanna sua opinião mudou. Retornou à sala das damas com o mordomo do príncipe em seu encalço. O criado pediu às senhoras que saíssem para que o recinto fosse examinado. Elas assim o fizeram e se reuniram para observar, enquanto especulavam. Sentindo-se tolo, Alex adentrou a sala. Talvez houvesse uma explicação simples para a ausência de Joanna. Ela podia ter ido ao jardim para tomar ar sem que ele percebesse. Ou podia estar em qualquer outro lugar daquela pavilhão imenso. No entanto, onde quer que ela estivesse, a fita que prendia seus cabelos não estava. Alex se abaixou e recolheu a faixa de seda caída no tapete. Onde, ele se perguntou enquanto enrolava a seda entre os dedos, Joanna teria ido sem a fita? E quanto tempo demoraria para encontrá-la? Ele seria capaz de destruir Brighton com as próprias mãos. E, antes que terminasse, a cidade, o pavilhão e todo o resto estariam em ruínas. Ou, pelo menos, era isso que Alexandros, o príncipe de Akora, desejava fazer. O marquês de Boswick, por outro lado, tentava manter a fachada de calma. — Nós a encontraremos — declarou o príncipe. Apesar de ter se excedido na bebida muito antes de a ausência de Joanna ser descoberta, Prinny parecia frio e recomposto. Ele, que sempre almejara comandar, mostrava-se à vontade. Por mais espantoso que fosse, tal postura deu esperança a Alex. — Dois mil homens do regimento estão à procura de lady Joanna — continuou ele. — Toda a área está sendo vasculhada sistematicamente. E estou recebendo relatórios a cada trinta minutos. O nevoeiro é um problema, mas meus homens sabem como transitar sob a névoa. Se alguém a vir ou se houver qualquer sinal suspeito, nós saberemos. — Agradeço os esforços, Alteza... — Nenhum agradecimento é necessário. Mesmo que minha estima por você, lady Joanna e lorde Royce não estivesse em jogo, eu tomaria como ofensa grave o rapto de um de meus convidados. Asseguro-lhe que, se for esse o caso, tal criminoso será severamente punido. — Estou ansioso por isso — Alex murmurou. Entretanto, estava ainda mais ansioso para ver Joanna voltar ao lugar a que pertencia, a seus braços. Nesse ínterim, a espera era intolerável. Saíra com os homens, mas retornara na esperança de que houvesse alguma notícia. Como ninguém nada soubesse, ele hesitou. Royce estava com o regimento. Alex acreditava que ele faria o possível para encontrar a irmã. Mas e se ela não estivesse na área que 2


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os soldados vasculhavam? E seja estivesse longe de Brighton? Como? As estradas da cidade haviam sido bloqueadas tão logo o desaparecimento de Joanna foi constatado. Seria extremamente difícil qualquer um passar despercebido pelos bloqueios. Isso significava que o responsável poderia estar escondido em uma das tantas fazendas e chalés que ali existiam. Com cada cabana e rebanho sendo vistoriados, era uma questão de tempo para ela ser encontrada. A menos que o raptor a tivesse tirado de Brighton... pelo mar. Havia guardas no cais. Nenhuma embarcação zarpara, e seria uma temeridade fazê-lo, dada a densa neblina que pairava sobre o porto. Por causa do nevoeiro o mais lógico era concentrar a busca em terra firme. No entanto, após tantos esforços infrutíferos, Alex teve de reconsiderar. A bruma permaneceria até o amanhecer. Um navio ancorado a pouca distância da costa ficaria escondido mesmo ao olhar mais vigilante, esperando para zarpar assim que a visibilidade o permitisse. Alex fora atacado por akoreanos, cujos rastros ninguém encontrara. Talvez porque permanecessem no mar; não em um navio de Akora, que atrairia muita atenção, mas em uma embarcação comum. Era um tiro no escuro, contudo Alex não conseguia pensar em mais nada e tinha de fazer alguma coisa. Com dificuldade, por causa da visão restrita, desceu até Steine Street, onde encontrou vários barcos de pesca e um esquife cujo dono se achava sentado no ancoradouro, observando o mar. — Não vai navegar hoje? — Alex perguntou, embora a resposta fosse óbvia. O jovem olhou para ele, reparou no traje elegante e cuspiu em direção ao mar, demonstrando o que pensava das idiotices dos nobres. — Acho que não. Durante a rápida caminhada, Alex havia considerado e rejeitado outra possibilidade que incluía os navios da frota real, ainda atracados no porto de Brighton. Não tinha dúvidas de que seu pedido seria aceito sem demora, mas era um dos ágeis barcos de pesca que ele queria. O menor deles fora construído para os caprichos do vento e das correntes do canal, mas foram inspirados em embarcações que viajavam pelo mar do Norte. Mesmo aos olhos akoreanos, eram grandes obras de engenharia. — Manter seu barco na doca não é lucrativo. — Sim, e navegar sob esse nevoeiro também não é seguro. — Que tal ganhar um bom dinheiro para comprar outro barco, se necessário, e ainda lucrar sem ter de navegar? O homem riu. — Se os peixes pulassem no convés seria ainda melhor. — Quero alugar seu barco. — Alex nomeou uma soma que deixou o pescador boquiaberto. Depois disso, tudo se resolveu rapidamente.

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Droga! Joanna recostou na parede e fechou os olhos quando as lágrimas ameaçaram cair. Havia se debatido durante horas para soltar a corda que prendia seus pulsos, mas só conseguira rasgar a pele. Mesmo assim, nem sequer notou a dor. Nenhum grau de desconforto importava quando a única necessidade era fugir. A neblina foi uma bênção. Ela aumentara quando Joanna fora levada ao barco em um pequeno bote, logo depois de ser capturada, porém, duvidava que o tempo ruim fosse retardar os planos de Deilos. Ao longo daquela noite sem fim, sua única esperança foi imaginar que ao amanhecer, quando a neblina dispersasse, a embarcação de Deilos seria vista do porto de Brighton. Mas as horas custavam a passar. Ela tentou, sem sucesso, explorar a cabine na escuridão. Além do catre onde sentava, havia somente uma mesa e uma cadeira. Tudo indicava que estava em um pesqueiro inglês, dado o odor fétido de peixe. Não foi uma surpresa. Deilos podia ser muitas coisas, mas não era tolo. Assim que o nevoeiro abaixasse, ele se misturaria às outras embarcações que navegavam pelas águas de Brighton sem ser detectado. Por isso, a dor nos pulsos não importava. Joanna tinha de fugir e rápido. Determinada, levantou-se e, ao se aproximar da mesa, fez o melhor que pôde para abrir as três gavetas. Duas estavam vazias, mas na terceira havia... uma pedra. Que utilidade uma pedra teria contra uma corda? Nenhuma. Precisava de um metal, de preferência, cortante. Os únicos objetos de metal que havia na cabine eram o trinco da janela e os ferrolhos que sustentavam a mesa e a cadeira. Após avaliar as possibilidades, concluiu que o trinco da janela devia estar enferrujado por causa do ar marítimo e, portanto, podia ser facilmente removido. Joanna pulou até a janela, alcançou o trinco com as mãos e tentou puxálo. Talvez, se não estivesse amarrada, conseguisse soltá-lo. Restou-lhe apenas a pedra como instrumento. Bateu várias vezes no trinco com a pedra até que, enfim, ele quebrou. Após várias tentativas, conseguiu arrancar um pedaço do metal. Em seguida, voltou ao catre e começou a cortar a corda com a lateral mais afiada do metal. A corda era grossa, o que requereu um esforço longo e árduo para cortála. A cabine se iluminou enquanto Joanna trabalhava. A neblina se dissipava. Em breve, Deilos poderia erguer a âncora e então... Em vez de pensar, ela preferiu investir na tarefa em mãos. Vários minutos depois, um feixe da corda se rompeu. Alimentada de esperança, Joanna continuou até sentir os dedos latejar e as mãos tremer de cansaço. Quando finalmente a corda se soltou, o dia já nascia, iluminando por completo a cabine. Ela soltou a corda que prendia seus tornozelos e se levantou com as pernas bambas. Não podia fraquejar. Não agora. Sabia que a qualquer momento ouviria o som da âncora sendo levantada. E foi o que aconteceu. O desespero a invadiu. Ela correu de encontro à porta da cabine, rezando para que estivesse aberta. 2


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Alex parou de remar. A umidade do nevoeiro havia encharcado sua camisa de linho. O elegante casaco, também arruinado pela água do mar, achava-se no chão do barco. Ele remara lentamente a fim de evitar uma colisão com as embarcações que estavam próximas ao porto antes de atingir o mar aberto. Agora, com os remos imóveis, ele escutava intensamente. Procurava, em sua total concentração, qualquer ruído que indicasse a presença de outro barco. Aos poucos, notou que o nevoeiro se dissipava. Com a luneta, que mandara buscar pouco antes de partir, esquadrinhou todas as direções. Alguns pesqueiros se preparavam para zarpar. Mas um em especial já levantava sua âncora. No entanto, não havia redes no convés. Alex pôde divisar vários homens, todos de costas para ele, içando as velas. Havia outro homem parado diante de uma porta que parecia ditar as ordens. — Vire-se — Alex murmurou, ainda atento à visão que a luneta proporcionava. O homem se virou. Foi a disciplina de guerreiro que levou Alex a guardar a luneta sem despedaçá-la. Ele posicionou os remos e, usando os músculos potentes dos braços e peito, avançou pelo mar aberto com um único propósito: alcançar Deilos antes que ele ferisse Joanna. A porta estava bloqueada pelo lado de fora. Foi a única explicação que Joanna pôde conceber para o fato de não conseguir abri-la. A tranca daquela cabine havia sido adaptada para que a pessoa em seu interior não pudesse destrancá-la. Deilos se preparara muito bem. Desistindo da porta, Joanna examinou a janela redonda. O pesqueiro não fora construído para garantir amenidades, como a luz e o ar fresco. Embora fosse magra, ela duvidava que conseguisse passar pela abertura estreita. Assim sendo, restavam-lhe o teto, as paredes e o piso. Uma onda de fadiga a desanimou, fruto de uma noite insone e do desgaste físico. Ignorando o cansaço, Joanna puxou o colchão fino do catre, examinou as tábuas sob ele e fitou as paredes. Então respirou fundo, arrancou uma das tábuas e a inseriu entre as outras duas que compunham a parede da cabine. O encaixe foi satisfatório, mas, além de algumas farpas de madeira, a medida não teve efeito nenhum. O que não daria por um machado, um martelo ou qualquer coisa com a qual pudesse abrir um buraco na cabine sem ser descoberta. Golpear a parede com uma tábua não só seria ineficaz como também chamaria a atenção dos homens de Deilos, e isso ela não queria. Ou queria? Deilos pretendia usá-la como isca para atrair Alex à própria morte. Disso Joanna não tinha dúvidas. Portanto, nenhum risco poderia ser maior que esse. Decidida, ela pegou a tábua e, dessa vez, começou a socar a porta. Bateu e bateu, golpe após golpe, o som reverberando em seus ouvidos, até 2


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que, finalmente, ela escutou passos firmes se aproximando. Aflita, afastou-se da porta, posicionou a tábua e se preparou para a única chance que teria... para o momento em que... Um homem abriu a porta e entrou na cabine. Não era Deilos, mas praguejava em akoreano. Joanna ergueu os braços, respirou fundo e arrebentou a tábua de madeira na cabeça do infeliz.

Eles o avistariam em breve. Embora estivessem preocupados em içar as velas, alguém no pesqueiro notaria que um esquife se aproximava com velocidade. Sem interromper o ritmo das remadas, Alex calculou a distância restante e a comparou à destreza das armas que eles provavelmente possuíam. Quando adentrou o que avaliava ser uma zona letal, ele se abaixou um pouco, mas não fez mais concessões à morte. As velas do pesqueiro estavam quase todas içadas. A qualquer momento, seriam apanhadas pelo vento. E, quando isso acontecesse, Alex poderia remar o quanto quisesse, pois seria incapaz de alcançar a embarcação. Tinha de detê-los agora. Um tiro ecoou no convés. Alex divisou homens apontando para ele e abaixou a cabeça no instante em que outro tiro foi disparado. Pelo menos, não tinham canhões. O pensamento macabro o distraiu tempo suficiente para notar que havia alguém mais no convés. Uma figura esguia, de cabelos cacheados, uma imagem incongruente entre os guerreiros akoreanos que, ao verem a mulher, esqueceram-se temporariamente de Alex. Joanna. Seu nome foi tal qual uma prece que lhe deu forças para continuar remando, cada vez mais depressa. Violando a regra naval que ele aprendera na juventude, ignorando a própria integridade, Alex conduziu o barco em direção ao casco do pesqueiro. A colisão destruiu os cascos das duas embarcações e originou gritos de alerta dos homens no convés. O esquife começou a afundar. Por um instante, Alex pensou que seu esforço fora em vão. Mas logo viu que a água também invadia o porão do pesqueiro. Alex pulou na água e agarrou a âncora do pesqueiro, usando-a para subir a bordo. Quando os guardas o avistaram, ele puxou a espada e atacou. Avançou primeiro nos homens que empunhavam armas de fogo, cortando-lhes os braços antes que pudessem atirar. A selvageria de seu ataque o levou a atravessar o convés e eliminar qualquer idiota que ousasse desafiá-lo. Alex viu Joanna, sabia que ela o avistara e chegou perto o bastante para tocá-la quando Deilos apareceu, repentinamente, atrás dela. Deilos a agarrou pelo pescoço. — Largue a espada! — Ele apertou a garganta de Joanna, impedindo-a de respirar. — Renda-se ou a matarei! Alex não hesitou. Embora os olhos de Joanna implorassem para que não 2


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obedecesse ao traidor de Akora, ele jogou a espada no convés e lá permaneceu sem nenhuma proteção. Deilos sorriu com crueldade. — Peguem-no! — ele ordenou a seus homens e, lentamente, apertou ainda mais o pescoço de Joanna. — A xenos vadia não serve para nada. Eu ofereço sua morte aos deuses anciãos de nossos pais, ao touro todo-poderoso que em breve irá esmagar todos os xenos que poluem o solo sagrado de Akora! Joanna escutava as palavras como se fossem pronunciadas a uma longa distância. Seus pulmões queimavam e a dor em sua garganta teria gerado um grito, se fosse capaz de emitir qualquer som. A escuridão ameaçava encobrir seus olhos. Queria lutar contra a perda de consciência mesmo que tivesse de usar o que lhe restava de energia para afastar Deilos, mas os esforços foram inúteis. De súbito, o convés balançou. Deilos perdeu o equilíbrio e a soltou. Joanna foi jogada para trás e conseguiu inspirar uma golfada de ar antes de cair na água e afundar. Ela desceu às profundezas, para além das luzes, da esperança... Estava morrendo. Oh, por favor, Deus, agora não! Desculpe-me, Alex, desculpe-me... *** Alex deu cabo dos homens que primeiro se aproximaram, saltou sobre Deilos e caiu com ele no convés em declive. Brutal e impiedosamente, ele estraçalhou a cabeça de Deilos nas tábuas até sentir as mãos encharcadas de sangue. Quando os homens o cercaram, Alex se levantou e ergueu a forma inerte de Deilos. Nesse momento, percebeu que Joanna havia sumido. Após respirar profundamente, Alex mergulhou na água. — Joanna! Joanna... A voz era tão suave que parecia um sonho. Joanna... Uma voz diferente, mais profunda, mais amorosa. Minha filha... As vozes vinham de cima. Ela tinha de alcançá-las. Quando conseguisse, estaria salva, amada e protegida... Joanna se lançou com uma força que não era inteiramente sua, nadou com desespero em direção às vozes, em direção à luz. Ele a encontraria ou morreria tentando. Continuaria mergulhando até que seus pulmões explodissem, se necessário fosse, mas nunca a deixaria sozinha naquele túmulo aquático. Atrás de si, na superfície, Alex escutou gritos e se virou para ver o pesqueiro ser engolido pela água do mar. O barco afundava rapidamente. Os homens de Deilos não perderam tempo ao abandonar o líder, na tentativa de se salvarem. Alex se preparava para mergulhar quando uma ondulação logo à frente o

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deteve. Ele observou, esperançoso. — Joanna! Ela o escutou, mas não tinha forças nem para erguer a cabeça. O vento soprava forte, formando ondas cada vez maiores. Joanna percebeu que uma tempestade de verão se formava no canal, tal qual a tormenta que tirara a vida de seus pais quinze anos atrás. E invadia seus pesadelos desde então. Mas agora estava diante da realidade. Não era um pesadelo. A vida que havia conquistado se perderia para sempre. A resistência emergiu e com ela a determinação. Joanna não se entregaria facilmente. — Alex! Ele surgiu em meio a uma onda, nadando em um ritmo preciso. Os braços fortes que a envolveram foram uma bênção, o tórax musculoso foi seu conforto. — Aguente firme, Joanna! Aguente! Ela assim o fez mesmo quando as ondas aumentaram e o vento se tornou mais feroz. A determinação que a alimentara agora fenecia. Embora seu coração gritasse o contrário, sabia que não sobreviveriam. Pelo menos, morreriam juntos. Ou talvez não. Sobre o ombro de Alex, Joanna avistou uma forma escura na superfície. Uma parte do pesqueiro flutuava entre as ondas. Ela gritou, apontando o pedaço de madeira e chorou de alívio quando o mar caprichoso os levou até lá. Eles se agarraram à tábua e a si mesmos enquanto a fúria da tempestade se dava. O vento formava ondas gigantescas, mas aquele pedaço de esperança resistia. Exausta, Joanna oscilava entre a consciência e a inconsciência. Alex, por sua vez, permanecia alerta, sua força de guerreiro preservava as duas vidas. Sabia que estavam sendo levados à costa e conseguia vê-la de quando em quando. Porém, não avistou ninguém mais no coração da tormenta. Deilos e seus homens haviam sido engolidos pela violência da natureza. Alex perdeu a noção do tempo. Alternava entre a simples tentativa de permanecer vivo e a agonia de imaginar que Joanna poderia não sobreviver. Mais tarde, talvez muitas horas depois, ele percebeu que o vento enfraquecia. As ondas diminuíam. A tábua se tornava cada vez mais estável. Aos poucos, o mar se acalmou. O vento ainda soprava, mas não com a mesma violência. Os raios e trovões se distanciavam do canal, rumando em direção à França ou às Terras Baixas. Alex olhou para cima e divisou o céu azul entre as nuvens. — Joanna... Ela ergueu a cabeça devagar e o fitou nos olhos. Vivos. Estavam vivos. Enfraquecidos, machucados, perdidos no mar, mas vivos. Joanna riu, riu para o céu; riu de alegria e triunfo. Ela riu porque essa foi

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a melhor maneira que encontrou para agradecer. — Estamos vivos — murmurou, por fim. — Graças aos deuses, estamos — disse Alex, emocionado. Pouco tempo depois, segura nos braços de Alex, ela olhou para a costa e viu o que, de início, pareceu-lhe um sonho dourado. Erguendo-se acima dos campos verdejantes e da costa rochosa, as imponentes torres de Hawkforte cintilavam sob o sol.

— Ratos molhados — disse Mulridge. — É isso que vocês dois se parecem. Protegida pelas muralhas seculares, agora forradas de hera, Joanna fitou a boa governanta. — Você estava em Brighton. Mulridge bufou. — Já era hora de voltar para cá. Venham comigo, mas cuidado onde pisam, senão passaremos dias enxugando o chão. Ambos foram submetidos a banhos quentes, toalhas mornas e roupas secas, com direito a chá e sanduíches diante da lareira acesa da biblioteca, horas de sono das quais foram despertados para uma ceia farta, embora fosse mais simples que o banquete do príncipe. Porém, antes de tudo isso, um mensageiro havia sido enviado às pressas a Brighton. Os últimos vestígios do entardecer desapareciam no céu quando o mensageiro retornou. Royce se alegrara ao saber que estavam vivos. A noite encobriu as torres imponentes. Joanna acendeu duas velas no fogo da lareira e entregou uma a Alex. Ele então a seguiu sem nada dizer. Quietos, eles subiram a velha escadaria de pedra, cujos degraus foram pisados por várias gerações, e atingiram o patamar mais alto da torre. — Esta é a parte mais antiga de Hawkforte — Joanna explicou ao abrir uma pesada porta. — Diz a lenda que o primeiro lorde de Hawkforte e sua esposa partilharam este cômodo. Desde então, ele vem sendo ocupado somente pelo senhor do feudo em sua noite de núpcias. — Os espíritos não se importam de nos ver aqui? — perguntou Alex, sorrindo. — Eles certamente nos darão as boas-vindas. — Joanna entrou no quarto e acendeu os candelabros. Havia uma cama imensa no centro do cômodo, envolta por cortinas finamente decoradas e coberta de peles. Joanna se aproximou do leito e olhou para Alex. — Eu te amo — declarou. — Senti no fundo do meu coração que eu deveria lhe dizer essas palavras aqui, neste lugar. — Também amo você — ele replicou, porque agora tal sentimento fazia parte de sua vida. Então, aproximou-se dela e parou quando a viu sorrir. — Espere. Alex obedeceu, apesar de não saber por quanto tempo ainda conseguiria 2


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se conter. Ainda sorrindo, Joanna desatou o laço do penhoar que vestia. Sem tirar os olhos dele, despiu-se e deixou que o tecido leve caísse a seus pés. Graciosa, ela deu um passo à frente. Alex engoliu em seco, reparando que sua boca estava seca. Fechou os punhos para conter a necessidade de tocá-la. Se encostasse um dedo naquela pele macia, estaria perdido. — É sua vez — Joanna informou, puxando a barra da camisa. Em questão e segundos, Alex se despiu da cintura para cima. Quando fez menção de tirar a calça, ela o impediu. — Permita-me. Sob a fraca luminosidade das velas, eles exploraram a terra encantada que ambos representavam. No entanto, Alex se deteve para examinar os arranhões na curva das coxas e as marcas que a agressão de Deilos havia deixado. Joanna, com sua sensualidade irresistível, não permitiu que ele se distraísse. Cuidadosamente, Alex a deitou sobre si mesmo. Ela sorriu, um tanto surpresa, mas logo se deliciou com a descoberta. Joanna se movia de forma langorosa. Contudo, após alguns instantes, o ritmo se tornou frenético. Seu coração disparava e o sangue fervia. Desesperada para satisfazer sua necessidade, não conseguiu esperar por ele. — Alex... Excitado, Alex a virou e a penetrou com mais profundidade até que ambos atingiram o clímax juntos. Exaustos, adormeceram e acordaram ao som da chuva que anunciava a aurora. Alex se levantou e, depois de fechar as janelas, juntou-se a Joanna sob as cobertas de pele. Assim permaneceram durante um longo tempo. Então, de repente, o desejo retornou. Ele a amou com as mãos e os lábios, deixando que sua mulher sentisse através do toque o quanto era preciosa. — Eu te amo — Joanna repetiu, enquanto acariciava o corpo vigoroso. — Deus, como eu te amo! Ela então permitiu que a penetrasse novamente. Em silêncio, orou em agradecimento e pediu que uma nova vida pudesse ser gerada naquele lugar que tanto amava. No momento seguinte, ambos se viram envolvidos pelo ato de amor. E, quando Alex gritou seu nome, Joanna pressentiu que sua prece havia sido atendida. Já amanhecia quando despertaram outra vez. A chuva havia cessado e o ar exalava o aroma da terra fértil e da grama molhada. O peso familiar do braço de Alex sobre si a fez sorrir. Joanna se virou, adorando a textura da pele do guerreiro roçando a dela. Como era glorioso acordar pela manhã aquecida pelo ser amado. Manhã. Royce. Joanna já estava diante da porta quando Alex se sentou na cama e, por instinto, procurou a espada que não estava a seu lado. — O que houve? — Nada. Meu irmão disse que chegaria de manhã. E já amanheceu. Se bem o conheço, Royce deve aparecer a qualquer instante. 2


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Alex pulou da cama, vestiu-se e correu até a porta. — Tudo isso é hipocrisia — ele comentou. — Royce sabe o que sentimos um pelo outro. Joanna assentiu. Royce era o melhor irmão do mundo, mas havia limites para sua tolerância. — Até mais tarde. — Ela o beijou e desceu a escadaria. Após um banho rápido, Joanna correu até o hall de entrada no instante em que Royce adentrava o pátio externo. Alex já estava a postos para recebêlo. Os dois apertaram as mãos e trocaram algumas palavras antes de entrarem. — Joanna, minha irmã. — Royce a tomou nos braços. Instantes depois, ele se afastou e a fitou com intensidade. — Está ferida? — Somente alguns arranhões. Você teve alguma notícia... — Vários corpos foram encontrados em uma praia próxima a Hawkforte — informou Royce. — Não há sinal de Deilos, mas as correntes... Joanna assentiu. Sabia que alguns corpos se perderiam no canal por causa das fortes correntes. — Espero que um dia eu tenha a oportunidade de me desculpar com o rei por ter acreditado que ele foi responsável por minha captura — Royce pronunciou. — Estou certo de que meu irmão dispensará qualquer pedido de desculpas — Alex o assegurou. — Mas acredito que eu lhe devo desculpas. — Ele fitou Joanna com carinho. — Preciso discutir um assunto com você, Royce. O lorde de Hawkforte assentiu, ciente do assunto a ser discutido. Mas para Joanna nada estava claro. — E que assunto é esse? — ela indagou. Os dois homens se entreolharam. — Os detalhes do casamento — Royce respondeu, gentil. — Oh! — Joanna corou. — Lamento o inconveniente, mas ninguém me pediu em casamento. Fora um tanto tolinho de sua parte, ela sabia, mas adorou a provocação. No mesmo momento, Royce assumiu uma postura austera. — Não a pediu em casamento? — indagou a Alex, que rapidamente corrigiu seu lapso. Ali, no antigo hall de Hawkforte, onde tantas gerações de lordes e damas haviam se amado, o príncipe de Akora se ajoelhou, segurou a mão de sua amada e a pediu em casamento. Ali, tendo o irmão como testemunha, Joanna se ajoelhou diante do homem que havia conquistado seu coração e a quem amaria por toda a eternidade. E, naquele momento, todos que um dia habitaram o lar protegido pelas muralhas seculares se reuniram em espírito para abençoar o casal.

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Fim

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