FÓRUM DO CAMPO LACANIANO - SÃO PAULO
Jornada de Formações Clínicas 2012
Resposta de analista
Capa: “Pequenas Cenas 09”( pintura sobre papel) de Sergio Fingermann
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EDITORIAL Esse livro virtual que a partir desse ano você pode acessar contém textos apresentados na Jornada de Formações Clínicas de 2012. Presente como atividade que congrega todos participantes de Formações Clínicas do Forum do Campo Lacaniano – SP desde sua fundação, a Jornada de Formações Clínicas é o lugar onde somos naturalmente levados a dar testemunho do percurso feito, daquilo com o que nos encontramos ao longo das atividades e que de algum modo nos atingiu ou deslocou. Tal esforço de elaboração, como se verá nos textos aqui reunidos, tenta responder e passar adiante o que se pôde obter do que se produziu. Formações Clínicas do Campo Lacaniano (FCCL) é uma instância de ensino, pesquisa e transmissão que o Fórum do Campo Lacaniano- SP (FCL-SP) oferece à comunidade. Esse ano fomos motivados e orientados pelo tema: Resposta de psicanalista. Imensamente satisfeitos de dar o start nessa publicação, já há tanto tempo almejada, desejamos a todos uma excelente leitura!
Comissão de Gestão 2011/2012 Conrado Ramos – diretor Ronaldo Torres – secretário Ana Paula Pires - tesoureira Rita Vogelaar – Coordenadora de Formações Clínicas
Agradecemos especialmente à Comissão de Formações Clinicas 2011/2012, composta por Ana Paula Gianesi, Beatriz Oliveira, Glaucia Nagem, Sandra Berta e Silvana Pessoa e ao Conselho, ao Conselho do FCL 2011/2012 e a todas as CGs anteriores que vem trabalhando para que isso se concretizasse esse ano.
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SUMÁRIO 04
Andréia Tenório dos Santos: A dor e suas vicissitudes
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Cibele Barbara: Interpretação sem (todo) sentido
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Cláudia C. Carvalho: O Inconsciente
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Fernanda Zacharewicz: Corte, tempo e morte
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Gisela Armando: Reflexões em torno de um título
34
Grazieli Campello de Siqueira: A inclusão dos “dejetos” no trabalho na instituição
40
Ingrid de Figueiredo Ventura: Fenômeno psicossomático: uma escrita à flor da pele
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Karen Alves: Crítica e delírio
57
Lucília Maria Sousa Romão: Dizer algo a partir do oco
67
Luiza Jatobá: Ler não todamente
73
Maria Fernanda Mascheretti: A implicação dos pais no tratamento psicanalítico com crianças
77
Patrizia Corsetto: Culpa: o mal-estar que atravessa os séculos, e resiste!
83
Ricardo Monteiro Guedes de Almeida: A estabilização psicótica e o sinthoma joyciano: um nó, uma invenção
89
Sabrina Vicentin Plothow: As psicoses pelo viés da foraclusão do Nome-doPai
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Sandra Tolentino da Cunha: Resposta de analista e desejo de analista
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A DOR E SUAS VICISSITUDES Andréia Tenório dos Santos∗∗
Também a dor tem suas volúpias; Machado de Assis. In: Helena
*** De onde provém a dor psíquica? Tenho cá pra mim que esta é, sem dúvida, a pergunta mestre que conduz Freud em sua clínica, investigação e teorização sobre a psique. Há alguém que não esteja de acordo que a dor é, por excelência, um assunto freudiano? A meu ver, sua temática perpassa, mesmo que de forma implícita, toda sua obra. “De que sofrem essas pessoas que chegam até mim?”, se indagava Freud? Interrogação não sem efeito, já que lhe abre portas para sua grande invenção: a psicanálise. O objetivo desse texto é, num tom o mais ensaístico possível, fazer algumas articulações teóricas em torno da dor. O que é a dor? Que causa a dor? Para isso, busco sustentação, em especial, nos seguintes textos de Freud: “Manuscrito G” dos Fragmentos da correspondência com Fliess (1950[1892-99]), Projeto de Psicologia (1950[1985]), Luto e Melancolia (1917) e Inibição, sintoma e angústia (1926[1925]). Começo pelo Manuscrito G. Neste texto, Freud (1950[1892-99]) faz uma analogia entre a dor e o processo de inibição na melancolia. Ao falar dos efeitos da melancolia destaca-os como: “inibição psíquica com empobrecimento pulsional e, por isso, dor” (p. 244). A relação entre inibição e dor recai aqui sobre uma magnitude de excitação pulsional perdida, que provoca um desenlace no investimento pulsional.
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Participante das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano – SP e mestranda do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. E-mail: terrandreia@gmail.com
5 O afeto em xeque na melancolia é o luto devido a uma perda na vida pulsional; ou seja, na melancolia, perde-se um objeto que era investido libidinalmente. O que ocorre, portanto, é uma retração para dentro do psiquismo de toda a energia pulsional, investindo-a apenas na rememoração do objeto perdido, não sobrando energia para deslocar ao mundo. Essa retração faz o melancólico exaurir-se pulsionalmente e produz o que Freud chamou de hemorragia interna. É dessa hemorragia que nasce o empobrecimento pulsional. Se por um lado há um excesso de investimento na lembrança do objeto perdido; por outro, não resta energia para investir em outros objetos, o resultado disso é uma inibição por empobrecimento desse tipo de investimento. Em Luto e Melancolia (1917), Freud diz que “o complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta absorvendo de todos os lados a energia de investimento para si” (p. 111), o que causa, portanto, um empobrecimento subjetivo e, em consequência, uma inibição. Tal como uma “ferida dolorosa” leva tempo para cicatrizar, o melancólico precisa de tempo para fazer o luto do que perdeu. Assim, dor e inibição melancólica são análogas, primeiro porque causam o efeito de paralisação e, segundo, porque ambas demandam um luto. Para sair da dor e da melancolia, é preciso fazer o luto do que se perdeu. De tudo isso, é possível extrair que a melancolia é um estado doloroso ocasionado por uma perda. Assim, um primeiro sentido para a dor seria o de perda. Já no Projeto de Psicologia (1950[1895]), grosso modo, a dor é tida como a irrupção no aparelho psíquico de uma grande quantidade de estímulos vindos de fora, estímulos estes que o aparelho não barra, não consegue suportar. Essa não suportabilidade de altas de excitação está em conformidade com o princípio da inércia que, para Freud, é regulador do funcionamento do aparelho psíquico. Trata-se de uma
6 tendência neuronal de aliviar-se ao máximo de qualquer aumento de tensão, liberando o excesso pela via motora. É o modelo do arco-reflexo que vigora aqui, pois os estímulos captados pela via sensorial serão eliminados por descarga motora, salienta Freud. Efetuar a descarga motora, diz ele, é a função primária dos neurônios – estas “partículas materiais” condutoras de energia. A secundária é produzir a “fuga do estímulo”. A partir dessa fuga, as descargas motoras, cujos caminhos conseguem cessar o estímulo exógeno, tornam-se as preferidas e mantidas; ou seja, uma vez que o aparelho consegue eliminar uma excitação por um determinado caminho, da próxima vez que uma excitação de mesma índole apresentar-se, ele tenderá a descarregá-la por esse mesmo caminho, ou seja, constitui-se aí um início de trilhamento. Pra melhor entendê-lo, é preciso adentrar um pouco mais no Projeto. No Projeto, Freud utiliza os seguintes símbolos: Q (quantidade de energia exterior) e Qn (quant. energia intracelular) que representam, respectivamente, as fontes exógena (mundo externo) e endógena (o próprio corpo) que estimulam o aparelho psíquico. E ϕ (phi), ψ (psi) e ω (ômega), representando os sistemas de neurônios que o constituem (GARCIA-ROZA, 2001). ω é o sistema de neurônios perceptuais, ligados à percepção e à consciência. No sistema ϕ, estão os neurônios totalmente permeáveis, receptores dos estímulos externos (Q), são ligados à percepção e à motricidade. Apesar dos neurônios ϕ contarem com barreiras de contato, elas não funcionam. Assim, como assinala Ronaldo Torres (2010), estes neurônios são imutáveis, já que sua estrutura não se altera pela passagem da excitação. Esses neurônios, portanto, são receptores e condutores de excitação, mas não são retentores dela. Já no sistema ψ, estão os neurônios que são condutores e retentores de Qn. E uma vez que esses neurônios contam com barreiras de contato, mas que às vezes
7 falham, eles são parcialmente permeáveis, tendo sua estrutura modificada pela passagem da excitação (TORRES, 2010). Eles guardam as marcas dessa excitação e, como assinala Garcia-Roza (2001), são “portadores de memória”. Por esse motivo, os neurônios ψ são responsáveis por criar aquilo que Freud chamou de bahung. Esta consiste em uma facilitação no sentido de “abrir trilhas”, uma vez abertas, facilitará o caminho num momento posterior (TORRES, 2010). Portanto, especificamente no caso da dor, quando uma grande quantidade de energia invade o sistema ψ, isso deixa trilhas (marcas) permanentes. No entanto, embora Freud (1950[1895], p. 351) ressalte que “o sistema de neurônios tem a mais decidida inclinação a fugir da dor”; por outro, ele não deixa de enfatizar que “a dor coloca em movimento tanto o sistema ϕ quanto o ψ, para ela não existe nenhum obstáculo de condução, é o mais imperioso de todos os processos. Os neurônios ψ parecem permeáveis a ela; a dor consiste, pois, na ação de uma Q de ordem das mais elevadas” (p. 351, grifo meu). Acompanhando ainda os termos do Projeto, “a dor consiste na irrupção de grandes Q em ψ” (p. 351, grifo meu), está relacionada, sobretudo, ao rompimento das barreiras de contato de ψ, em decorrência de um quantum de excitação muito forte. Relaciona-se também à irrupção de Q diretamente em ϕ, já que essa Q exorbitante não é mediada pelos órgãos do sentido (“aparelho nervoso terminal”?), que têm a função de atuar como tela protetora para ϕ. Assim, parece que um desajuste na quantidade de excitação produz ecos na qualidade (intensidade) dessa excitação, acarretando desprazer e culminando em dor. “É indiscutível que a dor possui uma qualidade particular, que se faz reconhecer junto ao desprazer” (p. 365), afirma Freud. Estaria ele aqui equivalendo dor a desprazer? Ou seria o desprazer apenas uma qualidade da dor?
8 Em Inibição, sintoma e angústia (1926[1925]), na parte “Angústia, dor e luto”, Freud propõe uma diferenciação entre dor física e dor psíquica. Começa dizendo que “a dor é uma reação real à perda de objeto” (p.165, grifo meu). Em seguida, afirma que “quando há dor física ocorre um alto grau de catexia narcísica do ponto doloroso” (p. 166), essa catexia aumenta e tende a esvaziar o eu. Dirá então que A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja altamente catexizada [...] desempenha o mesmo papel que uma parte do corpo catexizada por um aumento de estímulo. (FREUD, 1926[1925], p. 166).
Em ambos os processos de dor, Freud (1926[1925]) enfatiza a existência de uma “natureza contínua do processo catexial” seguida de uma impossibilidade de impedir/barrar esse investimento, o qual produz “o mesmo estado de desamparo mental” (p. 166), ou seja, na dor física e na dor psíquica o resultado é o mesmo: um desprazer. Na diferenciação sustentada por Freud, no entanto, não fica claro por que em ambos os casos está em questão uma perda de objeto. Parece fácil entender que ao perder um ente querido ou qualquer outro objeto de amor, sentimos dor por isso, portanto, dor por uma perda de objeto. Entretanto, e nos casos em que a dor decorre de um sofrimento físico? Como entender que, nesses casos, a dor também se configura como uma perda? Haveria casos em que a dor não representa uma perda? Talvez Antonio Quinet ajude a iluminar esse ponto. Para ele, são duas as vertentes da dor. Por um lado, a dor corresponde à emergência de um gozo inadequado para o sujeito, ou seja, a dor é o excesso de gozo que rompe a barreira do simbólico ultrapassando o limite do funcionamento do aparelho (simbólico) do sujeito. Por outro, tal dor é vinculada à castração, à qual o sujeito é remetido a cada perda (QUINET, 2002, p. 172).
9 Se “gozo” aqui representa uma grande soma de excitação que invade o aparelho psíquico, essa primeira vertente da dor – a dor como excesso de gozo – condiz com a definição de dor do Projeto. Já a segunda vertente recai exatamente sobre o sentido da dor como perda. Perda aqui entendida não apenas como uma perda de objeto, mas como uma perda narcísica, portanto, vinculada à castração. Vale a pena arriscar a hipótese de que, em essência, toda perda é narcísica. Em consequência, toda dor seria narcísica? Logo... por que dói? Dói porque algo se perdeu, porque houve perda, porque há falta. A impossibilidade de completude humana lança o homem a faltar, a uma série de perdas. Perdas que implicam perdas no eu, uma perda narcísica. Uma parte do eu se perde, pois algo da realidade interferiu sobremaneira no mecanismo de funcionamento do psiquismo. O que resta daí é a vivência da dor, experiências de dor. A dor como desreguladora da maquinaria psíquica. Porém, como entender os casos em que há fixação à dor? Bem, por ora, permitome arriscar a hipótese de que se existe fixação, pode haver, para além de uma perda narcísica, um alto ganho narcísico. Nesse caso, talvez não seja possível reservar à dor apenas o lugar ao lado do desprazer, mas considerá-la também ao lado do prazer, ou melhor, ao lado do que Freud nomeou de pulsão de morte e Lacan de gozo, mas daí a história é outra... seriam outras voltas...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, M. Helena. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. FREUD, S. (1926[1925]). Inibição, sintoma e angústia. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standart Brasileira, vol. IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
10 FREUD, S. (1917). Luto e Melancolia. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud – Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, vol.2, trad. Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004. FREUD, S. (1950[1892-99]). Manuscrito G. In: Sigmund Freud Obras Completas. Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos em vida de Freud. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1994. FREUD, S. (1950[1985]). Proyecto de Psicologia. In: Sigmund Freud Obras Completas. Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos em vida de Freud. Buenos Aires: Amorrortu editores, 1994. GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. TORRES, R. Dimensões do ato em psicanálise. São Paulo: Anablume, 2010. (Coleção Ato Psicanalítico).
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INTERPRETAÇÃO SEM (TODO) SENTIDO Cibele Barbara ***
Escrevo este texto inspirada no quadrinho acima, que recebi aleatoriamente por e-mail, em comemoração ao dia do psicólogo. Ele representa a princípio, um sujeito que chega ao analista com certo estranhamento, vazio, ideias confusas e demanda uma solução para este impasse que sente. No caso da figura acima, o analista ou psicólogo qual seja, ereto em sua cadeira, responde ativamente a solução para o “quebra-cabeça”. O sujeito tem então um “insight”! Aquilo que este analista disse, faz sentido! Este sentido dado se encaixa na cadeia preexistente do analisando, no lugar daquilo que era estranho, vazio, dissipando o conflito que ameaçava o equilíbrio das ideias. Interpretações como esta estão do lado da compreensão, onde todos se entendem e tudo faz sentido! “Felicidade! Paz e amor no final.”
12 É sabido que o sujeito esforça-se para dar forma à sua fala, de modo que ela faça sentido ao analista. “Na tentativa de fazer sentido, o analisando foge ou se esconde atrás das palavras que diz”. (Fink, 1998, p. 90) Fomentar este sentido, seria então confirmar a alienação do sujeito ao Outro, e leva-lo ao final a identificar-se com o analista. Como se este fosse de fato o ser da solução. Para Lacan, um analista, ao contrário de fomentar o sentido adota o discurso da separação e interpreta de modo a provocar o significado cristalizado, destacando o texto da suposta referência: “Ao sugerir uma infinidade de sentidos sucessivos, o registro do sentido é problematizado.” (Fink, 1998, p. 91) Ora, podemos pensar então que as falas do quadrinho acima poderiam ser justamente ao contrário! No seminário 11, capitulo da interpretação à transferência, Lacan faz uma afirmação que chama a atenção: “A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não é de modo algum não importa qual.” (Lacan, 1998, p.237) Ela não é, diz ele. E entendo que não é, porque não está na ordem do ser. E o que parece essencial é que o sujeito veja para além do efeito de sentido, a qual significante irredutível está assujeitado. Para Lacan “a interpretação não visa tanto o sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito.” (Lacan, 1998, p.201) É este ponto que questiono. Como uma interpretação pode ir além do sentido? Como isso pode acontecer? Uma das respostas parece estar ligada ao conceito de transferência, pois é através do estabelecimento (ou seria melhor o encadeamento?) desta que um analista pode interpretar em direção ao esvaziamento de sentido, pois para Lacan (1998, p.119), o conceito de transferência está intimamente ligado a uma “função” e ao “modo de tratar os pacientes.” Mesmo sendo um conceito nomeado pela psicanálise, não quer
13 dizer que não haja transferência fora do setting analítico, pois ela é fruto de um jogo estrutural e este não é da ordem da invenção. As relações, os laços estabelecidos entre os humanos funcionam tal como a transferência, o que muda é que quando a transferência é dirigida a um analista, o que conta é sua presença, o modo e de que lugar ele responderá a isso que se encena neste jogo estrutural. Mas transferência é fechamento, dirá Lacan. E um analista não a interpreta, apenas a suporta e faz dela uma leitura estratégica que servirá de base, aí sim para suas táticas interpretativas: “Apelar para uma parte sã do sujeito, que estaria lá no real, apta a julgar com o analista o que se passa na transferência, é desconhecer justamente essa tal parte que está interessada na transferência, que é ela que fecha a porta, ou a janela, ou o postigo, como quiserem.” (Lacan, 1998, p.126) Se a transferência é um paradoxo, pois é necessária estabelecer-se e ao mesmo tempo é fechamento, o que ela pode responder sobre a questão do não sentido? É que a transferência traz a cena outro conceito fundamental, o da repetição, como aquilo que não pode ser rememorado e insiste, mas sempre falha, em alcançar a completude. É esse material que não pode ser rememorado e que está nas entrelinhas da transferência, isso que se repete em ato é o que “é entregue a reconstrução do analista.” (Lacan, 1998, p.124) Em outras palavras, é material de interpretação. A repetição, apesar do nome, não diz respeito à repetição do mesmo e sim a persistência, insistência temporal em alcançar algo que falta. É que a reboque deste movimento, pulsional, temporal e incompleto que desfilam os significantes da identidade do sujeito. Estes significantes que aparecem, reaparecem e se substituem numa cadeia metafórica e metonímica, retornam a cada volta de maneira diferente, inscrevendo uma diferença e esvaziando o sentido impregnado. Mesmo que uma cena da infância venha sempre acompanhada da mesma representação que se faça dela, a simples repetição reiterada de sua
14 lembrança passa a indagar e a quebrar a certeza de sua representação. Muitas vezes, Freud pediu a seus analisantes que relatassem novamente um sonho e trabalhava com as diferenças produzidas nos relatos. (Costa, 2001, p.26)
Portanto a interpretação do analista não vai apenas em direção do sentido, mas desde Freud, deve apontar o hiato, o intervalo, o equivoco, as diferenças dos relatos, em suma deve apontar para além do discurso, em direção ao real. É em direção a esse real que está fora, que não pode ser rememorado, é em direção ao não todo sentido, que interpreta o analista, conduzindo o sujeito ao encontro com o impossível de dizer. Mas o que seria o sentido? “O sentido pode ser definido como uma camada da linguagem onde se dá o que Lacan chama de dizer”, afirma Dunker (2012). O sentido seria o efeito de uma espécie de tradução, originada pelas conexões e substituições metonímicas e metafóricas dos significantes primordiais do sujeito, que são ditos durante sua análise. Cada vez que um sujeito entra na sua análise e associa livremente o sentido se apaga e transforma retroativamente toda a significação que se realizava antes desta nova conexão ou tradução. A cada volta, uma nova possibilidade de sentido. Os textos, os significantes permanecem e novos sentidos podem ser extraídos infinitamente. Tal como o jogo do Tangram, onde as peças estão dadas, mas conforme vão sendo conectadas, empilhadas, posicionadas criam um novo desenho ou um novo sentido. Temos então dois efeitos. De um lado quanto mais significantes menos significados, pois por mais que seja possível produzir sentidos ao longo da análise torna-se evidente que o “sentido não cola mais no texto.” E o vazio do real pode ser suportado cada vez mais nos significantes cifrados. Por outro lado justamente a possibilidade infinita de criar novos sentidos demonstra que não existe um sentido primeiro e por mais que um sujeito se esforce, não há como extrair do texto um sentido que finalmente demonstre ou fale sobre seu ser:
15 Em termos de teoria da interpretação esta possibilidade infinita de tradução implica que se considere a inexistência de uma espécie de “sentido original”, o texto permanece aberto à extração de significação justamente porque ele não possui um sentido, mas simplesmente sentido. (Dunker, 2012)
Experenciar esta impossibilidade de traduzir seu próprio ser é o que pode fazer um sujeito brincar e criar com a materialidade do significante. A experiência da análise leva um sujeito a constatar que por mais que se tente dizer sobre o verdadeiro, sobre sua existência não há sentido que possa ser dito integralmente. Há uma impossibilidade em dizer o verdadeiro do seu ser: “A análise demonstraria esta impossibilidade sendo considerada como uma espécie de queda de sentido, ou queda de discurso”. (Dunker, 2012) Mas com a queda do sentido, depois de tantas voltas dadas o que sobra? Sobra o saber no lugar da verdade que “deixou de ser um saber pronto e agora precisa ser inventado”. (Vogelaar, 2010) Sobra um Outro esvaziado de sentido, que não é mais solicitado pelo sujeito como aquele que contém a verdade sobre o seu ser. O que resta do sentido é uma verdade, um valor de verdade, que só pode ser mentirosa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, Ana. Corpo e Escrita. Relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DUNKER, Christian. A lógica da interpretação. Disponível em: <http://issuu.com/forumdocampolacanianosp/docs/2012_resposta_de_analista__textos_ de_membros_do_f_.> Acesso em: 06. set. 2012. FINK, Bruce. O sujeito Lacaniano – Entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
16 LACAN, Jacques. O Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. VOGELAAR, Rita. O saber e a verdade – Comentário do Capítulo 8 do Seminário 20. In: Livro Zero: revista de psicanálise. São Paulo, n.01, 2010, p.82-87.
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O INCONSCIENTE. Cláudia C. Carvalho ***
O termo inconsciente, unbewusste, vai ser utilizado para expressar o conjunto das idéias que não se encontram presentes no campo efetivo da consciência, indicando um dos sistemas nomeados por Freud, em sua teoria sobre o aparelho psíquico. Ele seria composto por conteúdos refreados, que foram renegados, pela ação do recalque, o ingresso ao sistema pré-consciente. O inconsciente é um conceito tópico e dinâmico: alguns conteúdos tem acesso a consciência somente se ultrapassarem algumas resistências. Eles se manifestam nos pensamentos eficientes inconscientes. O inconsciente é um lugar psíquico peculiar, que como um sistema, contem em si conteúdos e mecanismos. Em O inconsciente (Das Unbewusste)1915, Freud fala destes conteúdos como “representantes da pulsão”. Eles se encontram na fronteira entre o somático e o psíquico e estão presentes através de seus representantes. Estas representações estão colocadas em histórias imaginárias, fantasias, onde a pulsão se situa e onde podemos compreender estas como autênticas representações do desejo. Grande parte dos textos de Freud antes da segunda tópica, assemelham o inconsciente ao recalcado. Esta idéia integra a concepção de fantasias originárias, que funcionariam como esquemas pré-individuais. Onde estes, notificariam as experiências sexuais infantis do sujeito.
18 Outra compreensão é a do inconsciente como o que remete ao infantil em nós. Para Freud o sonho era o caminho para a descoberta do inconsciente. O simbolismo, a condensação e o deslocamento evidenciados na “A interpretação dos sonhos”(1900) se apresentariam como próprios ao processo primário, assim como também os lapsos, atos falhos etc. Semelhantes aos sintomas por sua natureza e pela sua atribuição de realização de desejo. Freud coloca o inconsciente como um sistema onde, no processo primário, encontramos mobilidade de investimentos, carência de negação, de incertezas, de dúvidas, desapego perante a realidade e concepção econômica de energia de investimento. O inconsciente porta um valor dinâmico, contendo em si a defesa, o conflito e a repetição. Freud ao descobrir o inconsciente abriu um caminho que possibilita a criação de novas articulações entre sujeito e linguagem. Ao escutar a fala de seus pacientes, Freud propõe como componente chave para elucidar o funcionamento do inconsciente, o desejo. Lacan amplia, a partir de Freud e de sua teoria, os conceitos de gozo e saber importantes para o discurso analítico. Para a psicanálise, a direção de cura vai ser sustentada por uma lógica, que acredita promover uma modificação da relação do sujeito com o saber e com o gozo. Causando com isto consequências na posição do sujeito frente ao seu desejo. Freud em “Projeto para uma Psicologia Científica” e “A interpretação dos sonhos”; elabora continuamente uma ideia para pensar um aparelho, que tem como base o encontro traumático do sujeito falante junto a linguagem. Freud compõe o aparelho psíquico como um sistema de inscrições. Sucedendo nesta trilha, Lacan vai definir o inconsciente estruturado como uma linguagem.
19 Para erigir o pressuposto do aparelho psíquico, Freud fundamenta-se na inscrição de traços, oriundos das percepções, como primeira causa da disposição da estrutura e de sua divisão em sistemas diferenciados. A atividade do aparelho psíquico esta sujeita a uma temporalidade sui generis. Rearranjos e retranscrições são os modos usados na Carta 52 para falar o efeito do movimento constante que compõem as novas relações entre os traços de memória e os diferentes sistemas. E a busca constante de reencontro com o objeto da satisfação primeira. Objeto desaparecido, longe de qualquer simbolização e impossível portanto, de ser reencontrado. Em “Além do princípio do prazer”(1920), Freud esclarece que a compulsão a repetição, é uma busca do aparelho para inscrever o que é da ordem do traumático. Destacando o valor do trabalho, Freud indica os efeitos de perdas e ganhos que se elaboram nesta operação. Trata-se de uma produção que tem efeitos na relação do sujeito com o saber. Na impossibilidade de ingresso às marcas e lembranças que padeceram a ação do recalque: “Uma falha na tradução – isso é o que se conhece clinicamente como recalcamento”, isto é, na alteração em outras formas de representação: “...o conteúdo do sonho é uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir.” A fim de formalizar as leis que governam o inconsciente, Freud examina e estuda os sonhos, lapsos e chistes. Ao propor de algum modo uma analogia enquanto acontecimento de linguagem, ao sonho, é atribuído uma prerrogativa privilegiada: a via régia para o inconsciente.
20 Na medida em que revela a estrutura de saber peculiar ao inconsciente; um saber que se ordena em torno do sexual, ele apreende igualmente um ponto de fracasso, de furo, onde o saber naufraga; o inconsciente não da conta da diferença entre os sexos. Ciframento e deciframento serão exercícios que vão requerer o sujeito e o saber. O inconsciente não se reduz a um conteúdo aonde “já esta lá”, à espera de ser descoberto. Ele efetua um ciframento, uma elaboração de construção, que visa demarcar o vazio do não sabido próprio à estrutura. É procurando dar conta dos processos de deslocamento e condensação e da figurabilidade, que Freud chega a idéia de que o teor onírico se expressa como um enigma das quais, as marcas podem ser galgadas, para a linguagem do pensamento. Na proporção que o sonho pode ser escutando tal qual um saber textual, as representações podem ser tomadas por seus valores significantes. Apresentando o sonho como rébus, podemos inserir o campo da leitura e com isto, ir além da elaboração de tradução, possibilitando recorrer a diversos sistemas como o hieróglifo e o ideograma chinês. Em “De um discurso que não seria do semblante”.(1971) Lacan coloca “(...)seja o que for que Freud demonstre
do inconsciente não é jamais senão matéria de
linguagem,”. A clinica sustentada no ato analítico, opera com o corte, com o limite onde o real toca o simbólico. O trabalho do inconsciente pode se apresentar como relativo a um paradigma quanto ao trabalho de articulação de significantes, na sua função de produzir equívocos, resultando na construção de um saber, colocando palavras no que para o sujeito se apresenta como algo da ordem do indizível.
21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHEMAMA. Roland – Dicionário de Psicanálise – Artes Médicas Sul; Porto Alegre. FREUD, S. “Carta 52” in Obras Completas,1969; Imago ed., Rio de Janeiro, 1995. FREUD, S. A interpretação dos sonhos , in Obras Completas; Imago Ed; Rio de Janeiro,1969. JORGE, MARCO ANTONIO COUTINHO. Lacan, o grande freudiano. Jorge Zahar Ed; Rio de Janeiro, 2005. LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. LACAN, J. O seminário, livro 11; Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro, 1979. LAPLANCHE; PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise; Martins Fontes; 4ed; São Paulo, 2001.
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CORTE, TEMPO E MORTE Fernanda Zacharewicz1
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Inicio esse trabalho com uma pergunta: qual é o tempo de uma análise? Abremse aí duas questões paralelas: qual a duração de um processo analítico e qual o tempo de cada uma de suas sessões? A resposta eu proponho logo de início: não sei. Não sei, pois é da ordem do impossível determinar algumas dessas durações. Seria o mesmo que perguntar: quanto tempo dura a sua vida? Não sei. E cada um dos seus dias? Poderia eu responder: 24 horas. Mas estaria mentindo, pois quando vivo muito ou fico aborrecida muito tempo o dia pode durar nada ou pode durar uma eternidade. Não há como determinar o tempo de uma vida. Ao refletir esse ano sobre o tema resposta de analista fiquei a pensar sobre o tempo. O tempo que longe de ser o tempo do relógio é o tempo que pulsa no Real, que invade, desconcerta e marca. Marca o corpo do falasser. O corpo é atravessado pelo tempo, é cortado pelo tempo. O tempo na sessão lacaniana é variável. Há o corte do tempo na carne do sujeito que fala. O analista se levanta, vai até a porta, abre-a. E o analisante? O analisante deixa um pedaço de carne nunca a ser recuperado jogado como resto no divã. Lacan (1998, p. 205) em seu texto sobre o tempo lógico fala de três momentos; o instante de olhar: vê-se. O tempo de compreender: é isso, c’est ça: “O tempo de
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Autora. Psicanalista. Participante das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Email: fzacharewicz@yahoo.com
23 compreender pode reduzir-se ao instante do olhar, mas esse olhar, em seu instante, pode incluir todo o tempo necessário para compreender.” O momento de concluir traz a certeza antecipada do que foi compreendido. Antecipa a resposta ao que quer, ao vouloir. Mas há aqui uma pegadinha neurótica: a dúvida. Nesse mesmo escrito Lacan adverte que a dúvida pode fazer com que seja necessário mais voltas para que se chegue a mesma conclusão. Perde-se o trem, retornase a busca de sentido, volta-se a dar voltas no toro. E paga-se com carne e tempo. Pierre Rey traz, em seu livro “Uma temporada com Lacan” o seguinte trecho:
Yo sabía que cada uno de nosotros, para alimentar-se e estar resguardado por um techo, debía pagar al contado con la única moneda autentica que la eternidad pone a nuestra disponsición: las horas. El dinero circula. Va, viene. Um día tenemos, outro no. ?Pero el tiempo? ?Quantos minutos nos quedan de vida? Si se los confronta con el tiempo, ?qué cosa vale quanto? (REY, 1989, p. 133)
A hesitação em responder ao próprio desejo é o que faz pagar com carne, que se faz vida no tempo. Mas em que resulta seguir pagando esse preço? Melman, entrevistado por Didier-Wiell (2007, p. 115) fala: “O tempo é bem mais que dinheiro, o tempo é a morte... [...] há um tempo em que é preciso avançar, para poder em seguida passar a outra coisa.” Será o corte a própria possibilidade de presentificar o Real? Dito de outro modo: com a duração variável da sessão expõe-se também a não garantia da vida futura? A ambas as perguntas eu respondo afirmativamente, o corte presentifica o Real, evidencia a não garantia da vida futura; não há o próximo instante. Mas eu ainda queria falar.... O silêncio do analista, a porta que se abre e... a carne que ficou no divã.
24 Dessa dinâmica, corte-carne no divã, que insiste em se repetir emerge a função da pressa. Não há garantia. O analisante não tem os cinqüenta minutos de sessão, não tem mais uma chance, a porta abriu-se: está só! O saber-se só localiza o momento de mudança da posição que o Outro ocupa para o sujeito. Entende-se momento como vetor indicador de mudança, de acordo com Quinet (2009, p. 145). O passe clínico é entendido como momento da passagem de analisante a analista. Passe aqui entendido como porta, umbral, passagem de um lugar a outro. Essa mudança de posição somente pode ser entendida dentro do contexto da teoria dos discursos. É justamente no giro do discurso que a mudança de posição se dá. O discurso do Mestre é o discurso fundador do Inconsciente, é dele que advém o $. O S1 S2 coloca o sujeito, sob a barra, subordinado ao significante mestre. $
a
O significante mestre relaciona-se com o saber do lado do Outro, em uma relação de mais-valia cujo o resto é o objeto a. Pode-se entender que o sujeito fundado nesse discurso está submetido ao S1, obrigatoriamente e busca a completude através da recuperação desse a, sempre e repetidamente resto. Sob a barra escreve-se a fantasia que aprisiona o sujeito. A ciência oferece justamente o giro no sentido inverso, apresentando a hegemonia do discurso universitário S2 S1
a_ relaciona o saber com o objeto a. O resto $
que havia sido produzido no discurso do mestre agora é tomado como outro, como exterior conhecível sobre qual o saber se debruça. Nota-se que nesse discurso o $ encontra-se no lugar da produção, ou seja, apropriando-se do a é possível construir um
25 saber que defina o que é o próprio desejo. Nessa posição o sujeito permanece em posição de submetimento: agora os psicofármacos responderão porque ele sofre, ou ainda a ciência dirá qual a melhor maneira de gozar a vida: resta ao $ fazer o que é prescrito. Ao retomar o discurso do mestre como ponto de partida, e girando-o ¼ de volta, encontra-se o discurso da histérica $ a
S1 o $ encontra-se sobre a barra, justamente na S2
posição de agente. É o sujeito que é capaz de perguntar sobre o seu desejo. Mas não nos deixemos enganar. A quem esse sujeito dirige a sua pergunta? Ao S1, significante mestre aqui localizado no lugar do Outro. Esse S1 lhe oferece uma resposta; no lugar da produção nesse discurso localiza-se o saber. Que não basta! O sujeito está apoiado sobre o a, que por definição é falta, é furo. Busca a resposta, o mestre a oferece, não é isso, retorno, pergunta, resposta do mestre, não é isso, repete-se mais uma volta no toro. Movimento infinito da cadeia metonímica. Infinito até que haja o corte. Se acima explicitei que o corte tem relação com a não garantia e agora afirmo que o corte, corta os discursos que submetem o sujeito ao Outro, qual seria a saída? Retomando alguns parágrafos acima repito que a saída está na passagem da posição de analisante a analista. Em que consiste essa passagem? Na possibilidade em fazer-se semblante de a, de deixar-se ocupar o lugar da falta, sabendo-se falta desde sua estrutura, na possibilidade de localizar-se no discurso do analista. O discurso do analista a_ $_ localiza o
a no lugar de agente. O que isso
S2 S1 implica? Implica localizar justamente aí o objeto que sempre escapa, que marca a falta fundante do sujeito. É na impossibilidade da completude que o analista localiza o
26 discurso pelo qual pode falasser. O a da incompletude, sustentado pelo horror de saber, marcada pela repetição infinita de submetimento do sujeito, é o que se refere ao $, provocando-o a produzir seu próprio S1. Sendo assim esse é o único giro que localiza a possibilidade de liberdade do sujeito, como afirma Lacan (1974, p. 313) em sua Nota Italiana: “A partir daí, ele sabe ser um rebotalho. Isso é que o analista ao menos deve têlo feito sentir. Se ele não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance. Isso é o que é meu passe...” O entusiasmo do analista é observado justamente na posição de liberdade na qual ele agora se encontra. O sujeito do final de análise agora sabe que cada pedaço de carne deixado no divã de seu analista quando do corte era nada mais do que carniça. O não submetimento é a decisão. “Pois se eles querem meu sangue / Verão o meu sangue só no fim. / E se eles querem meu corpo / Só se eu estiver morto, só assim.” (CIDADE NEGRA, 1994)
RESUMO A pergunta que norteia esse trabalho é: qual é o tempo de uma análise? Abrem-se aí duas questões paralelas: qual a duração de um processo analítico e qual o tempo de cada uma de suas sessões? A resposta afirma que é da ordem do impossível determinar algumas dessas durações. O tempo marca o corpo do falasser. O corpo é atravessado pelo tempo, é cortado pelo tempo. O tempo na sessão lacaniana é variável. Há o corte do tempo na carne do sujeito que fala. O tempo lógico compreende três momentos; o instante de olhar, o tempo de compreender e o momento de concluir que a certeza antecipada do que foi compreendido. A hesitação em responder ao próprio desejo é o que faz pagar com carne, que se faz vida no tempo. O momento clínico lava ao questionamento do sujeito sobre o passe clínico, entendido como momento da passagem
27 de analisante a analista. Passe aqui entendido como porta, umbral, passagem de um lugar a outro. Essa mudança de posição somente pode ser entendida dentro do contexto da teoria dos discursos. É justamente no giro do discurso que a mudança de posição se dá. É no discurso do analita que localiza no lugar de agente o objeto que sempre escapa, que marca a falta fundante do sujeito. É na impossibilidade da completude que o analista localiza o discurso pelo qual pode falasser. O a da incompletude, sustentado pelo horror de saber, marcada pela repetição infinita de submetimento do sujeito, é o que se refere ao $, provocando-o a produzir seu próprio S1. Sendo assim esse é o único giro que localiza a possibilidade de liberdade do sujeito. Palavras-chave: tempo, corte, passe clínico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CIDADE NEGRA; Querem meu sangue. In: Sobre todas as forças: SonyBMG, 1994. DIDIER-WIELL, A.; WEISS, E.; GRAVAS, F. Quartier Lacan: testemunhos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. LACAN, J. Nota italiana (1974). In: Outros escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003. LACAN, J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. QUINET, A. A estranheza da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. REY, P. Una temporada com Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2010.
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REFLEXÕES EM TORNO DE UM TÍTULO Gisela Armando ***
A proposta deste trabalho é refletir em torno do título “A Psicanálise. Razão de um Fracasso”, que está no texto lacaniano de 1967, publicado nos Outros Escritos. Da maneira como o título está posto me faz desconfiar que aqui não se trata de sinônimo de motivo. Há um ponto entre psicanálise e razão, não é uma única frase. Isso sugere que não se trata de “A razão do fracasso da psicanálise” ou “A psicanálise, razão de seu fracasso”. Além disso, é de um fracasso, e não do fracasso: é não todo. Vamos partir da palavra razão como razão áurea, e nos vemos justificados a isto na medida em que Lacan usou o número de ouro (razão áurea) nos seminários 14 e 16. E o encontramos falando do enodamento do Um e do a, através deste número. A história da Razão Áurea está ligada à da Escola de Pitágoras. Não há registros de biografias da época ou de algo que tenha sido escrito por ele, sendo que esta história está construída a partir dos textos de outros filósofos da antiguidade que o citaram. O que se pode dizer com certa segurança é que a razão áurea aparece na Grécia antiga, e que possivelmente foi descoberto pelos pitagóricos. Vou seguir a versão do físico e matemático Mário Lívio (2007), que escreveu sobre a história do Fi, também conhecido como número áureo ou razão áurea. Para os pitagóricos a razão áurea era algo que remetia ao incompreensível. Ela subverte o pensamento de uma época, na medida em que não era coerente com a compreensão da existência de então.
29 Segundo Mário Lívio a Escola de Pitágoras (+ - 570 a 497 a.C.) era uma mistura de matemática, filosofia de vida e religião. Eles acreditavam que o universo podia ser compreendido através dos números, que davam as características de tudo o que existia. Então, temos que os números ímpares tinham atributos masculinos, e também a luz e a bondade; já os pares tinham os atributos femininos, e eram associados a eles a escuridão e a maldade. O dois era o primeiro número feminino. O três era o primeiro masculino. O 5, como resultado da soma do primeiro feminino e do primeiro masculino, representava o casamento, e também o caos. Para cada um desses números havia uma figura geométrica: o 2 representava a reta, o três o triângulo, o 5 o pentágono, entre outros. Quanto ao 1, não era visto propriamente como um número. Ele era o gerador de todos os outros números e caracterizava o pensamento racional. Era também chamado de Deus, e geometricamente era o ponto.
Até então o número tinha uma dimensão
apreensível. Como gerador de todas as coisas, o 1 pitagórico inaugurava a sequência numérica dos números naturais, que pode ser expressa por n+1. A partir do 1, todas as coisas se faziam. Desta forma, o 1 pitagórico se assemelha com o S1 lacaniano, o significante unário que inaugura a cadeia significante. Mas ao estudar a proporção entre os segmentos de reta do pentágono, que era a figura geométrica símbolo da Escola pitagórica, Hipaso de Metaponto descobre uma proporção que não é possível ser encontrada através da relação entre dois números naturais, o que dava a ele a característica de incomensurável. E é possível criar uma série de pentágonos, encaixados uns nos outros em tamanhos cada vez menores indefinidamente. Isto era algo que rompia com a maneira com que esta Escola apreendia os números e a existência, portanto só podia ser chamado de irracional. Esta descoberta
30 amplia a noção de números até então conhecida. Surge então na Escola algo que a contradiz. Dentro da tese, sua antítese. Este achado foi feito através das figuras geométricas, em especial o triângulo e o pentágono. A álgebra que deduz o número de ouro só surge no século XIX. Talvez possamos dizer que antes que fosse um conceito numérico foi um fato geométrico. Antes que fosse um significante e significado foi um fato. Euclides, cerca de dois séculos depois (+- 370 a 275 a.C.), ao se perguntar como dividir um segmento de reta da maneira mais harmoniosa com medidas diferentes, faz a divisão de um segmento de reta na razão extrema e média, que Lacan vai usar no seminário 16, de maneira invertida. O que torna este número incomensurável são suas características. Uma delas é o fato de se tratar de um intervalo que não tem fim, e nunca se torna uma dízima periódica, o que tornaria possível transforma-lo em um número inteiro. Na capa do seminário 16 encontramos algo que alude à razão áurea. Há um rosto, e ali a mesma figura se repete indefinidamente em seus furos, criando a cada vez novos furos. O símbolo pitagórico é por excelência o pentágono, que através da razão áurea também pode ser preenchido indefinidamente, sem que jamais o furo desapareça, pois cada nova figura carrega em si um novo furo. Neste seminário, encontramos Lacan articulando o a e o Um, e colocando-os em uma razão áurea.2 Ele coloca o a e o 1 em um segmento de reta de Euclides, e escreve o a com o valor de 1/Φ, e inverte os tamanhos do segmento de reta. É uma propriedade de fi que seu inverso subtrai 1. Na fórmula com a qual Lacan inicia seu raciocínio matemático, Fi perde 1. O significante, ele o diz, é efeito de perda. E esse objeto que ele nomeia a, que é perdido para sempre, ele escreve como número de ouro menos 1.
2
A grafia do um varia neste texto de Lacan. As vezes usa em letra, Um, as vezes em número, 1. Na página 131 do seminário 16, define o um do gozo como Um, e o diferencia do 1.
31 Assim, na instalação de S1 temos que há uma falta recebida do campo do Outro, o desejo do Outro, que não é todo campo do Outro, mas seu efeito de perda. Extrai-se S1 do campo do Outro, mas não é apenas isso. Em suas formulações através de Fibonacci, ele extrai o 1, que é “(...) efetivamente, a medida do campo do Outro como 1, que é diferente de sua pura e simples inscrição como traço unário.” 2 ( é a soma de uma sucessão de perdas, de “as” em potências de 2, 3, 4, etc, que ao serem somadas, tem-se 1)
Então, ele inclui a ideia de infinito neste raciocínio, através da aposta de Pascal. Aqui talvez uma definição da geometria possa nos ajudar. Há uma diferença entre uma reta e um segmento de reta. Uma reta é infinita para ambos os lados. Em um segmento de reta definimos o limite de início e de final de uma maneira qualquer. No gráfico da página 132 isso fica demonstrado, assim como a diferença entre o 1 do Gozo e o 1 unário. Já neste seminário ele diz que a qualidade de infinito de algo não quer dizer que não tenha limite, e este é a falha. Ele formaliza esta ideia com mais precisão no seminário 19 com Cantor. Mas aqui ele afirma que o Um não é o 1, definindo em alguns momentos o 1 do Gozo como letra e em outros como número. O Um é anterior ao 1, e é gozo. Quanto a Pascal, ao partir do “Nada Infinito”, ele estabelece a aposta, ao partir de um ponto qualquer. Este ponto é o limite da reta, ou do infinito. Pascal também elabora a regra da partição. Nesta, tenta-se definir quem ganharia um jogo de regras dadas sem a presença dos jogadores. Logo, a partir de um ponto dado, presume-se quem ganharia o jogo. Lacan toma aqui a questão da ausência dos jogadores na solução do jogo, e pergunta: Será que Eu existo? Na regra da partição, pressupõe-se que a partida continua, na ausência dos sujeitos. Estes se implicam ou não com o jogo, e esta implicação talvez possamos dizer que é da ordem da aposta. O Eu como aposta?
2. Seminário 16 pág. 130
32 Segundo Milner (1983), no texto Os Uns, diz que o Um, na verdade, são três: o Um do registro do real; o Um do registro do simbólico; e o Um do registro do Imaginário. Seguindo este texto de Milner, podemos pensar que a discriminação que encontramos no seminário 16 é entre o Um do registro do real e o 1 do registro do simbólico, que enoda o 1 e o a pela razão áurea. Assim, esse 1 não é apenas S1, sendo este o que inaugura o registro do simbólico. Mas há algo que falha, e nesta falha temos o limite. É possível enodar o 1 e o a, mas não estabelecer o lugar do Eu. Quando se tenta, se encontra o Um, que é da ordem do infinito não enumerável, no qual colocar a delimitação é uma questão de aposta. Ao articular a aposta com o jogo, ele diz que “Tudo falta, na aposta, das condições aceitáveis de um jogo.”3 O jogo mostra nossas relações com o significante. A aposta as com o gozo. Na aposta de Pascal é a renúncia ao gozo que se aposta para fazer disso vida. E vida aqui vem relacionada com palavras como infinidade e infinitas. Nas palavras de Lacan: “Por um lado, há uma vida a cujo gozo se renuncia para fazer dela a aposta (...) É esse o princípio da aposta. Do outro lado, o do parceiro,a aposta é o que Pascal articula como uma infinidade de vidas infinitamente felizes.”4O que nos remete a pensar que é nesta não delimitação que aparece a aposta. Neste sentido a aposta veicula a incerteza, e a perda. E o que tudo isso tem a ver com o título em questão? Penso que o ponto, tomado como qualquer dá início a uma sequência significante, ao registro do simbólico, e ao ser tomado já está posta a aposta como perda. Perde-se em gozo ao definir um ponto no infinito. Na língua, sucesso e fracasso são opostos, antônimos, o que leva a uma relação inversamente proporcional. É pelo efeito de perda que surge S1, que possibilita o que vem depois. É pela definição de um ponto limite no infinito que a renúncia ao gozo
3 4
ibid pág 115
ibid pág 131
33 como todo possibilita que a e 1 façam enodamento. É no fracasso do todo que pode surgir um sujeito. Do fracasso que estabelece o não todo, a partir de um ponto de renúncia de gozo. Da assunção da aposta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LACAN, J. Introdução à Aposta de Pascal. In: Seminário 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2008. (p. 105-118). _________O Um e o Pequeno a, in Seminário 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2008. (p. 119-134). _________ Aula I, in Seminário 19. Salvador-Bahia, Espaço Moebius Psicanálise (Publicação não comercial), 2003. (p. 7-20). ___________Aula IX, in Seminário 19. Salvador-Bahia, Espaço Moebius Psicanálise (Publicação não comercial), 2003. (p. 109 – 121). MILNER,J-C, Os Uns, in Os Nomes Indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Ed, 2006. (p. 23-29). COSTA PINTO, T.M. Análise terminável e interminável I: o transfinito. In: Stylus, número 7. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, outubro 2003. (p. 9 – 35). VIDAL,E. Há Um. In: CESAROTO, O (org) Ideias de Lacan, São Paulo, Iluminuras Ed, 2010. PRATES PACHECO, A.L. O passe: a razão de um fracasso. In: Livro Zero: Revista de Psicanálise, n. 2. São Paulo: Fórum do Campo Lacaniano-SP. (p. 97 – 109). LIVIO, M. Razão Áurea: A História de Fi, um número surpreendente. Rio de Janeiro: Record Ed, 2007.
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A INCLUSÃO DOS “DEJETOS” NO TRABALHO NA INSTITUIÇÃO Grazieli Campello de Siqueira∗
*** Este texto relata a experiência de atuação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) numa comunidade de alta vulnerabilidade social, situada na cidade de São Paulo, e a relação que a equipe de referência Saúde da Família estabelece com o território que atende. Em função da minha participação, em 2012, no seminário Psicanálise na instituição do FCL-SP, trago algumas reflexões a respeito do que é possível recolher a partir de uma posição e de uma escuta de orientação analítica numa instituição pública de saúde. Levando em consideração os efeitos das exigências superegóicas que estão presentes nas relações de trabalho. A comunidade em questão, marcada pelo tráfico de drogas e pelo lixo alterando sua paisagem local, ocupa um lugar de resto. As pessoas que nela vivem, mesmo correndo para garantir seu lugar ao sol, são capturadas por uma imagem de incapacitadas e barraqueiras. Em contraposição, na mesma região, está o luxo presentificado no parque Vila Lobos e nos condomínios chiques nos quais não parece haver incômodos quanto à realidade bem diferente que está aos seus arredores. Nesta região, dois mundos que pouco ou nada se comunicam: o lixo e o luxo se contrapõem. É nesse cenário que, como parte da equipe de profissionais do NASF, inicio o ∗
Psicóloga. Participante das Formações Clínicas de 2012 do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo (FCL-SP).
35 meu trabalho nessa comunidade. Ele surge de uma demanda da equipe de Saúde da Família para educar as crianças, na verdade, uma tentativa de controlar e ensinar boas maneiras, pois elas ficavam soltas, sem nenhuma atividade, ora brincando ora brigando. Uma demanda que vem amparada num discurso atravessado pelo “bem comum a todos”, muitas vezes aceito pelos profissionais de saúde com vistas a salvar os que estariam perdidos como escórias, pois “a SAÚDE sabe o que é melhor para você”. No entanto, embora acolhendo a demanda posta pela equipe, respondo com a Ética do reconhecimento do sujeito. Lacan (1988) no Seminário 7, capítulo XVII, coloca que “Não se pode reduzir a Ética à coação social, ao progresso social. Isso não tem a mesma direção com a satisfação dos indivíduos”. Desta forma, coube-me interrogar, como iniciar um trabalho que pudesse apostar nas pessoas que procuram um serviço de saúde? Ele deveria ser muito diferente daquilo que é esperado por uma certa política da saúde? Assim, realizar um trabalho in loco, como estratégia de aproximação nesse ambiente tão resistente aos olhos da equipe, foi o recurso adotado por nós do NASF para estar nessa comunidade e poder abrir um campo de fala para essas pessoas, que não são escutadas, poderem falar mais de si, dos seus desejos. A possibilidade de reconhecer um a um e iniciar um trabalho para que elas, sejam crianças ou adultos, pudessem falar sobre onde moram, o que sentem e pensam daquele lugar e das relações ali construídas, foi a aposta. Dessa forma, foi criado um grupo de crianças denominado Quarta Divertida, com brincadeiras e roda de conversa, que ocorre semanalmente numa quadra de esportes da própria comunidade. A partir desses encontros, houve uma aproximação à realidade daquelas crianças, e muitos adultos circulando em torno da quadra se mostraram curiosos com as brincadeiras e o barulho que fazíamos naquele espaço.
36 Apesar do nome do grupo, percebi que, muitas vezes, não era nada divertido ouvir os relatos das crianças e de alguns adultos sobre como viver naquele lugar marcado pela violência e intolerância de uns para com os outros. Esse grupo de criança foi uma aposta de aproximação à comunidade de uma outra maneira, sem imposição do que seria o correto, mas propiciando alternativas para ouvir as pessoas, que elas pudessem apostar num outro percurso para suas vidas e nele se implicar. Outro dispositivo criado, também com o propósito de uma aposta no sujeito, foi um grupo de trabalho (GT) com os adultos dessa comunidade, para que pudessem falar sobre as suas necessidades, sobre o que era possível construir nesse espaço coletivo já que eles tinham uma dificuldade de conviver uns com os outros. As diferenças percebidas por eles e entre eles provocavam muito mal-estar, mas eles pouco ou quase nada podiam falar sobre isso. Assim, a agressividade, a imposição de uma lei individual reinava num território sem limitação e sem a validação do coletivo. Os encontros do GT passam a tratar de temas relacionados à demanda de formalização da Associação Comunitária, como por exemplo, do que se trata o centro comunitário e quais os caminhos de sua regulamentação? Entretanto, o GT é um momento para que esses adultos falem. Denunciem seu desejo, para que, a partir daí, um trabalho de implicação possa se iniciar. Essas reuniões são um comprometimento com o coletivo, mas sem deixar de reconhecer o que cada morador pensa a respeito de onde mora. Uma voz que pode ganhar força, sustentação, a partir da sua validação. Aos poucos essas pessoas também vão se autorizando a discutir com o Serviço de Saúde sobre como são realizados os atendimentos naquele território, sobre as responsabilidades e implicações dos usuários e dos profissionais envolvidos. O desejo de ampliar a presença da comunidade no GT fez com que suas reuniões fossem transferidas para o sábado, isso cobrou uma implicação também aos
37 profissionais que participam do GT, tendo eles que escolher se sustentariam sua participação fora do horário de trabalho. Em paralelo ao trabalho in loco na comunidade, abre-se também um espaço para ouvir a equipe de saúde em relação aos seus medos e à incerteza quanto ao seu trabalho. Medo e incerteza tantas vezes encobertos por metas de produção tomadas de forma tirânica, numa tentativa de protocolar a ação e normatizar a comunidade, impedindo assim um ato de implicação do profissional. Nesse espaço ocorrem algumas conversas a respeito da região atendida e dos desafios encontrados, principalmente no que se refere à frustração que esses profissionais sentem quando percebem que a comunidade não responde ao que eles esperam “que seja o melhor”, ao que entendem como sendo o correto. O que a equipe de saúde apresenta é uma visão com estatuto de certeza, pois ela “sabe o que é melhor”, por exemplo: “não ter muitos filhos, não ter muitos parceiros”, etc, e sabe, inclusive, que as pessoas dessa comunidade não têm interesse em nada. Aliás, posição rebatida com veemência por elas, às vezes até de forma agressiva, na tentativa de romper com o estado objetalizado no qual são colocadas. No entanto, a comunidade submete-se ao “nome” que lhe é dado pela equipe, respondendo ao jogo da demanda. A agressividade vem como alternativa para se defender de uma fala invasiva e castradora, apontando uma posição marcada na impotência. Duas posições que se contrapõem, mas se retroalimentam. A possibilidade de desconstruir e reconstruir essa exigência do bem comum torna possível incluir a falha no processo de trabalho, que não precisa, necessariamente, ser vista e sentida como um fracasso. A partir das expectativas, ideias e conceitos que se entrelaçam na tentativa de tamponar uma falta que está posta nos trabalhos realizados em comunidades
38 vulneráveis, corre-se o risco de sustentar uma imagem que seduz frente à resolução do suposto problema. E aí o que se abre é o engodo de como decidir o que é melhor para o outro, retirando dele a possibilidade de ele se responsabilizar por suas escolhas. As pessoas que vivem nesse ambiente vulnerável são vistas como incapazes de tomar qualquer decisão a respeito de suas vidas. O imaginário dos profissionais que trabalham nesse território é de um tirano cruel, nada piedoso frente ao outro, que mantém regras severas de conduta e comportamento. Entretanto, onde está o sujeito? Onde está o desejo das pessoas que moram nessa comunidade, que têm jeitos diferentes de levar a vida, de fazer suas escolhas? Escolhas que, muitas vezes, não são legitimadas, pois são muito diferentes das que são esperadas como sendo o correto. Assim, o que se abre é uma diferença que causa medo, angústia e impotência nos profissionais, assim como um desânimo no trabalho realizado. Se de um lado está presente a voz de uma equipe angustiada frente a casos em que a pulsão de morte está posta, há também violência presente nas relações – seja com o outro ou consigo mesmo (quando o sujeito não consegue sustentar um tratamento de saúde); de outro, há a mudez de uma comunidade com suas dificuldades e sem saber o que fazer. Mas será que essas pessoas não sabem mesmo o que fazer? Os significantes postos a essas pessoas acabam engessando quaisquer tentativas de articulação de outra ordem que não seja pela via da cobrança. Se for uma comunidade que não se interessa por nada, no primeiro momento, os profissionais de saúde pensam em estratégias para cobrar ainda mais essas pessoas. Entretanto, a partir dos trabalhos realizados in loco, o que se observou foi uma comunidade que sabe o que quer, consegue se organizar para fazer valer seus desejos, numa tentativa de articular uma realidade difícil, mas com o reconhecimento do coletivo. Como diz Lacan (1988) “A análise não é querer o bem do sujeito e sim curá-lo
39 das suas ilusões”. Finalizando, esse texto tem uma relação direta com a mobilização do centro comunitário frente a uma necessidade: fazer o ligamento de esgoto (inexistente). Embora exista um ligamento de água, ninguém consegue que a SABESP ou Prefeitura faça a ligação de esgoto. Nesse sentido, esse texto pretendeu, sem tantos julgamentos e sem se deixar paralisar diante da impotência, fazer uma ligação do trabalho da Saúde e os supostos podres, “dejetos” de uma comunidade, apostando que aí algo circule e se transforme.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LACAN, J. O seminário, livro 7: A Ética da Psicanálise (1959 – 1960): aula XVII. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar,1988,390p. LACAN, J. (1955) Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: LACAN,J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Zahar,1998.p 127-151. LACAN, J. (1967) A psicanálise. A Razão de um fracasso. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Zahar, 2003.p 341-349.
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FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: UMA ESCRITA À FLOR DA PELE Ingrid de Figueiredo Ventura3 “O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dá Que brota à flor da pele, será que me dá E que me sobe às faces e me faz corar” (Trecho da letra ‘O que será [à flor da pele]’ de Chico Buarque)
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INTRODUÇÃO Este trabalho surge a partir de interrogações provenientes de minha escuta nas Entrevistas Compartilhadas com pacientes portadores de afecções de pele, como psoríase e alopecia, no Instituto da Pele da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, instituição que compõe a Rede de Pesquisa em Sintoma e Corporeidade do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo e da Universidade de São Paulo - USP. Em O lugar da psicanálise na medicina (1966), uma conferência endereçada aos médicos, Lacan nos diz que nestas afecções, abordadas como fenômenos psicossomáticos, haveria uma falha de saber em um ponto específico da cadeia significante, à qual chamou falha epistemo-somática. Estando fora das construções do registro simbólico,
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Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – Belém. Membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, sujeito e instituição”, coordenado pela Profa. Dra. Roseane Nicolau. Endereço eletrônico: ifigueiredoventura@gmail.com.
41 esta falha manifesta-se no real do corpo, no ponto onde este não foi recoberto pela linguagem. Esse acontecimento coloca um impasse para a condução da análise com esses pacientes, pois permanecem fortemente vinculados ao diagnóstico médico, o que dificulta a regra fundamental da associação livre e o manejo da transferência. Lacan, na Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975), admite que essas afecções manifestam-se a partir da lógica do número, referentes à contagem e não à decifração. Destarte, podemos considerar que trata-se de uma escrita no corpo que não se dá a-ler. Diferentemente do sintoma, o fenômeno psicossomático apresenta uma holófrase local entre o primeiro par de significantes S1- S2, o que impede o deslizamento na cadeia. Sem isso, o paciente acometido por estes fenômenos fica preso ao seu malestar corporal, tomado por uma modalidade de gozo, o gozo específico, um gozo Outro, como nos diz Assadi e Ramirez (2010), fixando um significante isolado na sua carne. Esse gozo fixa uma corporificação da libido. Na mesma Conferência, Lacan refere-se ao fenômeno psicossomático como um hieróglifo que não cede à interpretação. Estaríamos, então, diante da letra? Se, como nos diz Lacan em Lituraterra (1971/2003), a letra constituiria litoral entre saber e gozo, e, se considerarmos que o litoral separa dois domínios que nada têm em comum, diversamente da fronteira, que delimita, simbolicamente, dois territórios da mesma natureza, podemos dizer que o fenômeno psicossomático separa dois domínios de naturezas distintas? A partir destas formulações, é possível nos indagarmos acerca das relações entre o fenômeno psicossomático e a escrita. A escrita no corpo dessas doenças escapa à dimensão do significante, oferecendo uma inscrição ilegível. Estaria ele desenhando a borda do furo do saber e constituindo litoral entre saber e gozo?
42 Em diversos momentos de sua obra, Lacan aborda o fenômeno como distinto do sintoma: enquanto este se distingue como uma formação do inconsciente manifestada no simbólico, podendo apontar para o seu desejo, o fenômeno psicossomático é emparelhado na mesma série do delírio e da debilidade mental (LACAN, 1964/2008). Esta afecção não obedece às mesmas leis do inconsciente, encarnando o significante isolado na carne, como uma tentativa de satisfação que não passa pelo deslizamento na cadeia. Na enfermidade psicossomática, não há distância entre o gozo e o corpo (LACAN, 1969-70), e, por isso, não cede à interpretação. Estes pacientes apresentam um congelamento, o que não oferece a chance do sujeito comparecer. Diante desta clínica, qual a possibilidade de manejo com uma escrita no real do corpo? O que e como se poderia ler algo que se mostra como ilegível? Lacan (1971/2003) ressalta que, apesar de a escrita ser um traço onde se lê um efeito de linguagem, é necessário que haja uma reinscrição em outra parte. O autor consolida a distinção entre letra e significante, desconstruindo a noção de representação, nos levando a questionar qual o estatuto das noções de significante e de letra no fenômeno psicossomático e como, na análise, se daria a passagem de um a outro. Sendo assim, pode-se formular que a letra não é sem o significante, o que nos leva a pensar que o fenômeno psicossomático não é sem o sintoma, fato também observado na clínica, dado que estes pacientes não se queixam apenas de sua doença no corpo. O analista deve estar atento ao que escuta, pois é aquilo que pode ler, a partir do seu desejo de analista, nas entrelinhas do dito do analisante. No entanto, trata-se de distinguir o que é do simbólico daquilo que é do real, este como aquilo diz respeito ao escrito (NICOLAU e GUERRA, 2011). Nesse caso, a transferência não se estabelece por uma suposição de saber ao analista, mas através do endereçamento de uma fala
43 desvinculada da dimensão subjetiva sobre uma marca cravada na carne. Nesse caso, estamos diante de uma escrita que deverá ser decifrada. Para fazer esta articulação, iremos abordar a afecção a partir da concepção lacaniana sobre o fenômeno psicossomático, em seguida, discutiremos o conceito de escrita em Lacan. Por fim, tentaremos articular a afecção psicossomática e a escrita, na tentativa de compreender a possibilidade de manejo na direção do tratamento com estes pacientes.
O FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO A PARTIR DE LACAN Em uma de suas primeiras formulações sobre a afecção psicossomática, no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan (19541955/1985) define-a como uma construção externa à cadeia de significantes, que não se encontra na ordem simbólica e que comporta um sofrimento do corpo. No Seminário As psicoses, ao citar a análise do caso Schreber, Lacan destaca os sintomas hipocondríacos e faz uma aproximação entre a psicose e o fenômeno psicossomático. A semelhança entre este e a psicose residiria no fato de ambos se estruturarem sem uma intermediação simbólica e sem uma dialética. Assim, o corpo pode apresentar o que permanecer como falha ou como descontinuidade no discurso. O fenômeno psicossomático aproxima-se de fenômenos elementares da psicose por conta de uma foraclusão local, articulada por Guir (1988, 1990). No entanto, no primeiro caso, trata-se de uma foraclusão de um significante qualquer da cadeia, onde o desejo não estaria ausente, apenas suspenso, enquanto que na psicose se trata, invariavelmente, da foraclusão do significante Nome-do-Pai, que inaugura a entrada do sujeito na ordenação simbólica. Posteriormente, Lacan (1964/2008), no Seminário Os quatro conceitos
44 fundamentais da psicanálise, assinala que a psicossomática não é um significante, pois só é concebível à medida que, não havendo a afânise do sujeito, algo se passou a partir da indução significante. Percebe-se que menciona uma necessidade interessada na função do desejo no caso da enfermidade psicossomática. Se houve uma foraclusão local de um significante, isso significa que pode haver uma remontagem à cadeia. Tal formulação nos remete a uma falha na operação de constituição da imagem corporal, pois não houve um bordejamento pulsional em torno desse corpo que desse conta de recobri-lo de linguagem: algo permanece fora, o que indica uma fixidez de gozo no órgão, fixidez de um gozo específico, que não se encontra apenas circunscrito às zonas erógenas do corpo, quando este é esvaziado de gozo. Miller, ao abordar o fenômeno psicossomático, (1999 apud FONSECA, 2006) fala de um retorno de gozo no corpo pela impossibilidade de o sujeito alcançar a esfera simbólica. O gozo, que deveria estar circunscrito às zonas erógenas das bordas, permanece fixado naquilo que deveria ser o vazio do corpo. Como na Conferência de Genebra, Lacan (1975) ressalta que no fenômeno psicossomático o corpo se deixa escrever algo da ordem do número, temos, então, uma cifração de gozo escrita numericamente, sem possibilidade de haver uma série e sem submissão à significantização da letra. Por se inscrever dessa forma, aparece como frequência ou como uma escrita proveniente do real. Para tentar responder as questões formuladas acerca do manejo da transferência nesses casos, devemos nos deter ainda a compreender as noções de letra e escrita a partir da concepção lacaniana.
LETRA E ESCRITA Seguindo as formulações de Lacan em Lituraterra (1971/2003) acerca da letra, esta seria o que bordeja o real e o simbólico, o gozo e o semblante, borda essa que não
45 se constitui de maneira muito precisa. Lacan nos diz: “a borda do furo no saber, não é isso que ela desenha?” (p. 18). Nesse trabalho, o autor afirma que é a insistência significante que determina o sujeito. Esta insistência é da letra no inconsciente, apesar desta não fazer parte do inconsciente, ressaltando a materialidade da letra em relação à linguagem. No Seminário sobre “A carta roubada” (1955/1998), apesar da confusão aparente na conceituação de letra e significante, podemos afirmar que o significante lettre4 remete à carta e aspira ao automatismo de repetição (ASSADI, 2011). Lacan faz referência à carta roubada como um significante puro, como algo que se desloca na cadeia. Segundo o autor, “veremos que seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada. E é isso que para nós o confirmará como automatismo de repetição” (p. 18). O significante lettre diz respeito aos significantes letter e litter, respectivamente, carta/letra e lixo. Esse seminário faz referência ao conto de Edgar Allan Poe sobre uma carta roubada referente à honra da rainha, pois continha conteúdo que a comprometia. A carta chega a se transformar em um material deteriorado, causa de intenso tumulto entre os policiais, que estavam em busca da carta roubada, pois acreditaram que aquela encontrada, aparentemente envelhecida, não era a referente à soberana. Esta carta, além de ter a função de levar uma mensagem ao seu destinatário, também tem o estatuto de resto, lixo, dejeto. Antes de ter chegado ao seu destino, a carta circula em diversas mãos como um lixo, como algo que pode ser rasgado e, por isso, passa despercebida. Desta forma, possui uma dupla função: a de transmitir uma mensagem, letter, carta, e a de ser manipulada e descartada, litter, lixo. Fazendo referência à relação entre a carta, a letra e o significante, Nicolau e Guerra (2011, p. 8) ressaltam: “enquanto símbolo de uma
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Diz respeito à carta/letra.
46 ausência, o significante também seria marcado por essa duplicidade, determinando as funções da letra”. Lacan (1971/2003) articula claramente: “a escritura, a letra, estão no real, o significante, no simbólico” (p. 28). Disso, depreendemos que da letra como litoral, fazse literal. A letra não tem primazia sobre o significante, pois só pode estar em seus efeitos. Promove uma redução do sujeito a sua escrita. Conforme Nicolau e Guerra (2011, p. 9), “a letra escreve, assim, a radicalidade da diferença de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que essa verdade tem de inacessível”. Então, retornando ao fenômeno psicossomático como escrita, podemos tomá-lo na clínica como letra, como marca que precisa ser contornada com o simbólico. Na análise, estes fenômenos não permitem interpretação. É a partir desse impasse que devemos pensar essa clínica.
FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: UMA ESCRITA QUE NÃO SE DÁ A-LER Nessa clínica, nos deparamos com uma escritura que remete a um gozo da letra que diz respeito ao registro da linguagem, mas que, paradoxalmente, não lhe pertence. O trabalho do analista, nesses casos, consistirá em possibilitar que o enigma no corpo do paciente acometido pela afecção psicossomática seja decifrado, sendo necessário que o sujeito construa um sintoma analítico, dado que só se vale de uma resposta, que é a sua doença. Nesse caso, o nó borromeano está sustentado em um ponto de cruzamento que tem uma falha, e o deciframento comparece como suplência. Essa falha no enlaçamento do nó acontece porque o discurso não encadeia a subjetivação do sujeito, sendo que aquilo que toca o corpo não é o significante encadeado e sim o significante absoluto, o
47 traço unário. Szapiro (2008) afirma que a nominação, ou como entendemos, o deciframento, produz um ponto de reparação onde falhou a metáfora paterna, pondo em questão o Nome-do-Pai. Permite uma amarração do nó borromeano de quatro toros. A autora ressalta: “Se trata da passagem de uma escrita a outra. De um escrito, resíduo de gozo no corpo, a poder dizer, ao possibilitar no marco de uma análise, a operação de nominação” (SZAPIRO, 2008, p. 46, tradução nossa). Diante dessas formulações, nos interrogamos: como ocorre o deciframento na afecção psicossomática? Nesse caso, o que se objetiva não é o sentido, mas sim o sem sentido. Logo, não é possível uma interpretação, mas sim aquilo que Allouch (2007) nomeia de transliteração. A transliteração pode ser entendida como uma forma de passagem de uma escrita para outra, uma interpretação regulada pela letra. Transliterar significa lidar com aquilo que é impossível de dizer. Assadi (2011) assegura que como na proposição lacaniana o fenômeno psicossomático é assemelhado a uma escrita hieroglífica ou como uma assinatura, é possível promover um manejo da transferência pela via da transliteração como uma via para a abertura do inconsciente à interpretação com o aparecimento do sujeito. Como nos diz Nicolau e Guerra (2011, p. 14), “a partir da função do escrito, destaca-se a sombra do que não se lê, e se abre ao gozo como uma extração da letra, diferente do significante, no campo da linguagem”. Ressaltam que escrever a clínica significa narrar, contar, implicando em um manejo possível considerando a lógica da quantificação, através da operação por uma escrita de gozo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLOUCH, J. A clínica do escrito. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
48 ASSADI, T. a-pelLe. In: RAMIREZ, H.; ASSADI, T. & DUNKER, C (Org.). A pele como litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise. São Paulo: Annablume, 2011, p. 221-239. ASSADI, T. C.; RAMIREZ, H. H. A. A pele, suas marcas e o corpo: fenômeno psicossomático e tatuagem. In: XI Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil, 2010, Fortaleza. Anais do XI Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil, Fortaleza, 2010, p. 117-127. FONSECA, M. C. B. Fenômeno psicossomático na vertente do gozo. Stylus – Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 13, p. 103-110, 2006. GUIR, J. A psicossomática na clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. GUIR, J. Fenômenos psicossomáticos e função paterna. In: WARTEL, R. (Coord.) Psicossomática e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. LACAN, J. (1954-1955). O Seminário. Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. LACAN, J. (1955-1956) O Seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. (1957) O seminário sobre “A carta roubada”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 13-66. LACAN, J. (1964) O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. (1966). O lugar da psicanálise na medicina. In: Opção Lacaniana. n. 32. São Paulo, 2001. LACAN, J. (1969-1970) O Seminário: Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
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CRÍTICA E DELÍRIO: DA RESPOSTA QUE SE ESPERA DO ANALISTA Karen Alves ***
INTRODUÇÃO A crítica é um dos manejos clínicos mais importantes para o tratamento de quadros associados ao delírio, correspondendo a uma espécie de afastamento ou recuo do delírio. Um destes afastamentos é o ato que o psiquiatra realiza ao nomear o delírio como doença mental, isto é, ao dizer para o paciente, que o delírio não é o que ele significa. A crítica do delírio comparece, dentro dessa visão da psiquiatria, como sinônimo de “consciência da doença mental”, implicada na concepção médica de delírio. O ponto de nossa análise é que essa nomeação traz um abalo à interpretação que o sujeito faz sobre seu delírio, que não o reconhecendo como tal, pode ser levado também a não entender a finalidade de tratar algo que não é o ele pensa que é. A prática do acompanhamento terapêutico adquiriu grande particularidade no meio psiquiátrico por prover auxílio aos pacientes que não possuem “crítica” – em outras palavras, aos pacientes que não apresentam adesão ao tratamento médico ou de cunho psicoterápico. Contrária à tendência de outros conceitos psicanalíticos que foram retirados progressivamente da terminologia médica, sendo substituídos por descrições comportamentais (como a histeria e a neurose no DSM); a crítica sobreviveu como um operador teórico de inegável afinidade com a psicanálise, por ser tratada também como um correspondente da visão psiquiátrica de insight (KEMP & DAVID, 1995;
51 SCWARTZ RC, 1998). O objetivo da presente pesquisa é estudar a conceituação desse termo dentro da psiquiatria e da psicanalise, donde se faz necessário, nesta última, explicitar a função do delírio para o sujeito, a fim de pensar um conceito psicanalítico de crítica. Espera-se, ao final, elucidar um campo de diálogo em comum, situados nesses diferentes campos de tratamentos clínicos da loucura e que atuam em parceria no cuidado a esses pacientes.
CRÍTICA NA PSIQUIATRIA Na sua ausência, a crítica comparece como o principal critério diagnóstico da esquizofrenia (APA, 2002), sinalizando uma tendência de progressiva deterioração psíquica nos quadros associados ao delírio. Ao contrário disso, quando presente, a crítica equivale a um dos únicos sinais que apontam para um prognóstico, pois, aqueles que "acreditam estar doentes tendem a apresentar maior adesão" (KAPLAN & SADOCK & GREBB, 2007). Esse sentido usual da crítica - tomado como um sinal em termos de presença e ou ausência – tem sido colocado em interrogação na literatura psiquiátrica, por denotar um uso técnico simplificado (MARKOVA & BERRIOS, 1992), que, na verdade, tende a subentender os processos de reconhecimento de adoecimento psíquico como a capacidade do paciente se identificar à visão do médico.
ETIMOLOGIA E DEFINIÇÃO PSIQUIÁTRICA DE DELÍRIO No latim, delírio advém de delirare. É formado pelo prefixo de (fora), mais lirare (arar), vizinho de lira (sulco). Delirare significa “arar por fora, não arar bem”, remetendo a aragem que é feito por fora dos sulcos deixados na terra como rastro para realizar a plantação. Esse uso metafórico serve para designar comportamentos associados às tolices, bobagens, senilidade e loucura. Em inglês, delusion remete a
52 deludo, cuja acepção é ligeiramente distinta, já que remete a ação ativa de “enganar, falsear, zombar”. Na Encyclopédie, desde o século XVIII, delírio significa “um erro do juízo pelo espírito, em estado de vigília, em relação a coisas conhecidas por todas” (BERRIOS & DIEGO, 1996). A partir da segunda metade do século XIX, Sérieux e Magnan estabeleceram a concepção do estado delirante crônico. Eles também foram os primeiros a destacar a importância o caráter de desenvolvimento do delírio paranoico e a importância do humor no estado delirante. Já Sérieux e Capgras isolaram o delírio de interpretação como típico da paranoia. Durante esse mesmo período, grosso modo, chegou-se a definição dos delírios pelo conteúdo: delírio de grandeza, erotomaníaco, niilista, persecutórios e hipocondríacos (BERRIOS, 2008). No começo do século XX, Psicopatologia Geral (1913/1973) é um dos livros mais importantes do século XX. Jaspers sedimentou os três critérios principais do delírio: a certeza do delírio (a absoluta convicção), a incorrigibilidade (não passível de prova ou contra argumentação) e a falsidade do conteúdo (conteúdo bizarro e inverídico). Jaspers definiu o delírio como uma crença anormal, tendo em vista um critério antropológico de normalidade: o delírio é "erro de julgamento ou um defeito do pensamento" (JASPERS, 1913/1973).
O DELÍRIO EM FREUD Na psicanálise, sabemos que Freud abordou a psicose como uma patologia específica e determinada, com lógica e rigor próprios, sujeita aos mesmos princípios do funcionamento psíquico considerado normal (QUINET, 2006). Em 1911, o delírio é resultado da dinâmica pulsional, entendida a partir dos dois princípios do funcionamento mental, o princípio do prazer e a realidade. Freud descreveu as alucinações e o delírio persecutório de Schreber como resultado do fracasso da libido
53 em alcançar o objeto, resultado da uma frustração do desejo que estaria implicada na fantasia homossexual passiva. A famosa frase de Schreber, dita entre o sono e a vigília, “seria bom ser um mulher e submeter-se ao ato da cópula” foi interpretada como o sinal da presença de uma forte frustração interna, que levaria ao desinvestimento libidinal do mundo externo, que culminaria, mais tarde, com a experiência vivida pessoalmente como “catástrofe interna”, “experiência de fim de mundo” (FREUD, 1911/1979). Nessa concepção da dinâmica pulsional, o delírio é o resultado do reinvestimento da libido no eu desde sua retirada do mundo externo. Como a libido não pode atingir o objeto no mundo externo, ela retorna para o eu para o engrandecimento deste. Se a catástrofe de fim de mundo significa a retirada do investimento libidinal nas representações externas, o novo mundo criado pelo delírio corresponde a uma regressão às representações narcísicas. A partir dessa frustração que leva ao desinvestimento libidinal, instaura-se uma busca pelo prazer, no qual, o eu cria autocraticamente “um novo mundo interno e externo”, o delírio. Nesse sentido, o delírio que presumiria ser uma formação patológica, é “um remendo na fenda que se abriu na relação do ego com o mundo externo” (FREUD, 1924/1979), isto é, “uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1911/1979).
PSICOSE PARANOICA Na tese de doutoramento de Lacan, em 1932, o conhecido caráter desconfiado do paranoico foi observado à luz da historicidade da vida do sujeito no plano formal de uma causalidade psíquica. Essa visão contrastava com a ideia da paranoia como um sintoma de uma “disfunção orgânica” ou “disfunção psicológica vital”. A ênfase na constituição da personalidade privilegiou as condições de formação de um determinado campo interpretativo do sujeito, que irá se tornar exacerbado e delirante. Para Lacan, o
54 organismo não expressa nenhuma relação com o conteúdo ou a temática do delírio; como também não é possível dizer que o delírio é simplesmente "uma má interpretação da realidade, uma inadaptação do eu à realidade". O delírio expressaria, sim, um distúrbio; mas com significado no simbolismo social. Esse simbolismo adquire lugar no plano imaginário das paixões, da alienação, da fascinação, da rivalidade e, também, é inseparável da aspiração à liberdade. A construção do caso sobre Aimée - em seu desatino e desejo em se tornar uma eminente mulher de letras – levou Lacan a partir do referencial da psiquiatria para criticá-la (ROUDINESCO, 1993/2008). Esse referencial do organicismo, fundado na relação de “uma parte” com “extras partes”, termina por castrar a loucura de significação (LACAN, 1946/1998). Além disso, cabe lembrar que Lacan analisou um caso de crítica do delírio. Após o ataque à atriz, durante a prisão de Aimée, "o delírio cedeu todo de uma vez". A crítica se apresentou, nesse relato, como a capacidade de examinar o delírio surgida após a remissão do mesmo. Nesse sentido, ao dirigir seus olhos a uma contradição do discurso médico, que não previa os casos de remissão do delírio (na teoria de Kraepelin), Lacan criava as condições para uma teoria sujeito que estarão presentes elementos constitutivos (de alienação e de separação). A possibilidade de crítica do delírio confrontava a concepção clássica do mesmo em suas características de convicção e incorrigibilidade.
CONCLUSÃO A descrição do delírio adquiriu um novo estatuto dentro da psicanálise ao ser pensada como um fato do narcisismo do sujeito. Lacan desmembrará essa concepção de narcisismo pela leitura estrutural do delírio: os ideais, as metáforas, as identificações e os traços. A crítica do delírio, dentro da psicanálise, deve levar em consideração que a
55 fala nele presente não é apenas fracasso de representação. Sabendo disso, o analista pode se servir da crítica do delírio, cuidando para que ela não chegue ao ponto de abalar a estrutura egóica do sujeito, mas apenas mediar uma construção de fronteira do laço social.
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DIZER ALGO A PARTIR DO OCO Um diário, a falta de/em si e a Coisa
Lucília Maria Sousa Romão
“Só existem eu e esse vazio opaco.” Samuel Beckett “Sobre o nada, eu tenho profundidades.” Manoel de Barros
*** “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” A página de um diário, escrito aos cincoenta anos quando suas principais referências afetivas (mãe, esposa, filho) já estavam mortas, instala algo de falta incessante. “Falto eu mesmo” encerra uma condição que percorre toda a trama de Dom Casmurro na revisitação imaginária do que o narrador foi (ou teria sido, já que o relato dele é desenhado pelas mãos vigorosas da rememoração, sempre cúmplice da imaginação) em diferentes momentos de sua vida. A falta de si mesmo esteve sempre presente e foi preciso uma vida toda para nomeá-la e chegar ao seu núcleo duro, a impossibilidade da completude, as garantias sempre furadas e a provisoriedade de toda certeza. Ou seja, o dizer de Bentinho dá a ver e a sentir Isso, a Coisa, a falta que é puro inominável. E diante Dela, é possível indagar: como tocar o inominável com palavras que tentam dar nome? De que modo dizer do que escapa a cada nova tentativa de contorno, deixando-se impreenchível? A partir de que dizer é possível uma aproximação (sempre capenga e, a despeito disso, tão necessária) com o vazio, com o que (a)parece como fronteira de e para o furo em tantas obras da literatura e das artes? Tocar o “falto eu
58 mesmo” é sempre tentativa em vão e, como sinaliza Clarice Lispector, é da ordem do imperativo de dizer e “conformar-se com a pobreza do dito”. Isto é, tocar em vão as esburacadas esta(s) palavra(s) que tentam tatear e driblar a Coisa, fazedora de atordoamentos em tantos artistas, escritores e teóricos da linguagem, e que foi estudada e formalizada por Freud e Lacan, ambos lançados à radicalidade do vazio, cada qual à sua moda e a seu tempo. Ao longo deste texto, entrego-me à tarefa de dizer sobre Ela (e também do quanto me falto a mim mesma), tecendo apontamentos sobre a tessitura dos conceitos de Das Ding na obra dos dois psicanalistas citados. Essa aventura não é sem conseqüências, sei disso. Ainda assim, tento dar borda ao que persiste e que o narrador de Machado coloca na voz de seu narrador: “essa lacuna é tudo”. Quando Freud ([1895], 1977) introduziu o conceito de Das Ding, ainda no início de seus trabalhos no Projeto para uma Psicologia Científica, pensava-a como “a lógica da origem” e também como “pólo excluído do aparelho psíquico”, algo que ficava fora dele. O então neurofisiologista (op. cit., p. 434) faz a aposta de que no aparelho psíquico haveria a existência de duas partes, “a primeira, que geralmente se mantém constante, é o neurônio a, e a segunda, habitualmente variável, é o neurônio b.” E explica que à primeira corresponde “o núcleo do ego e a parte constante do complexo perceptivo”, também definido como “neurônio a como a coisa”. Assim, esse neurônio apresenta-se constante, sempre em atividade, constitutivo do eu, ou seja, como algo interno e estrutural no aparelho. Essa zona se mantém sempre constante, presentificando o dizer do personagem machadiano. Segundo Kaufmann (1996, p. 84), nesse momento Freud “constatou que a mediação do outro era indispensável para a percepção ou para renovar a experiência de satisfação”. Isso situa, no centro do funcionamento psíquico, uma presença permanente a dar resposta sempre sem garantias, já que há uma incompletude inicial, qual seja, o
59 descompasso entre o grito do bebê e o que lhe é dado como resposta pelo Outro. Sobre isso, é possível explicar que o grito do sujeito recebe muitas respostas e elas terão (rearranjos de) retorno pela atividade da memória; ao lado disso, há algo coerente e que persiste “como a coisa”. O que ficou apenas insinuado por Freud será mote e investimento para Lacan. Ao longo do Seminário, Livro 7, ele se debruça sobre o conceito freudiano de Das Ding, explorando-o em muitas formulações e definindo-o como instância que fica no centro, “no centro, no sentido de estar excluído” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 89). Trata-se do Oco “ao que existe de aberto, de faltoso, de hiante, no centro do nosso desejo” (LACAN, op. cit., p. 104), e que não se completa, tampouco se fecha, mas configura-se em retornos e desencontros: “(...) o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. (...) é esse objeto, Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade.” (LACAN, op. cit., p. 68). Isso dá a dimensão de uma perda primeva, ou seja, algo que o sujeito perdeu sem nunca ter tido, pois “o objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado. Que ele tenha sido perdido é a conseqüência disso – mas só-depois. E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados.” (LACAN, op. cit., p.145). Tal Oco não pode ser suturado nunca, por isso Ele produz lançamentos em direção a tentar “encontrar o que se repete, o que retorna e nos garante retornar sempre ao mesmo lugar” (LACAN, op. cit., p. 94), lançamentos a que o sujeito se entrega, e cujo resultado é sempre furado e submerso em espirais incompletas. Lacan atribui a Freud o início das formulações sobre Isso, colocando-o como o fundador de uma investigação que tateia o abismo.
60 Irrealizado, intransponível, perdido, trata-se justamente de fenda, hiância, fissura e rasgo inscritos pela perda do corpo da mãe e pela interdição do incesto. Perda que nunca mais pode ser suturada, visto que é anterior a todo recalque (LACAN, op.cit., p. 70). Daí a Coisa engendrar uma falta (falta a si e em si-mesmo em Machado, falta-a-ser em Lacan no Seminário, Livro 11), um Oco que não cessa de se fazer presente e que se rende frente à pobreza de toda a palavra, pois “a Coisa, esse vazio, tal como se apresenta na representação, apresenta-se efetivamente, como um nihil, como nada.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 148). Talvez por isso, Bentinho tenha marcado, em vários momentos do seu diário, a impossibilidade de a língua definir uma saída para o vazio e de condensar ou alcançar seu sentimento, seu pensar e seu interior. Como exemplo: “Quis insistir que nada, mas não achei língua.” (ASSIS, s.d., p. 33); “Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua.” (ASSIS, op. cit., p. 75); “Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que me deixou ficar quieta e muda.” (ASSIS, op. cit., p. 80); “Outra vez me fugiram as palavras que trazia.” (op. cit., p. 81). Todos estes recortes materializam algo impossível de ser dito em sua essência de furo, seja pelos momentos de solidão, desespero, desamparo, seja até mesmo pelos encontros com alegria e/ou morte. A língua não dá conta de abrigar e conter essa Coisa, apenas contorná-la; as palavras faltam diante do que é absoluto vazio e o simbólico aparece vergado em seu des-poder, enfêrmo de potência e rendido a uma condição de não-todo. Temos, então, o inominável que “essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito quanto o real com o qual ele lida como lhe sendo exterior – o que, do real primordial, padece de significante.” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. p. 144).
61 Um turbilhão de palavras tenta contornar esse ponto que padece de significante, um giro a mais, um pesponto furando o tecido de dizer do sujeito, permanecendo com o centro sempre ausente, e por isso presente em todas as estratégias de continuar a dizer. Uma imagem que talvez aponte uma metáfora visual desse traço constitutivo é a fotografia abaixo, quando da exposição “Hace falta mucha fantasía para soportar la realidad”, realizada em 2007, três anos após uma série de atentados terroristas que explodiu quatro comboios da rede ferroviária Atocha, em Madri, capital da Espanha. O monumento é composto por “un cilindro de vidrio de once metros de altura en el que se leen mensajes anónimos relacionados con el atentado, pero está diseñado para verse desde dos metros de profundidad, desde una habitación azul cobalto a la que se accede através de una mampara y en cuyo centro hay un foco de luz blanca. Para entender el monumento, hay que ponerse en ese foco y mirar hacia arriba.” Do lado de fora, o monumento fura o espaço como a produzir o efeito de uma lança invasora do vazio do céu e do próprio prédio da estação Atocha. Ergue-se inteiro e fechado em uma construção que salta, aponta, estira um bloco ereto e se endereça ao alto. Esse cilindro de vidro, que fura o nada do espaço, faz o vazio aparecer também dentro dele, ao modo que já foi dito aqui sobre a linguagem. Duas pontas ficam amarradas e alinhavadas, já que fora e dentro constituem um bloco só, ou seja, um elo de continuação desse monumento.
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Quando visto do lado de dentro, uma (a)tocha de luz fura o teto da estação, produzindo efeitos de facho, passagem e fenda, convidando o visitante ao deslocamento de colocar os olhos para o alto, o corpo em posição de menoridade, assim, o buraco ganha estatuto maior, atravessa o dentro/fora, que persiste em ficar oco, sinalizando palavras e o oco céu.
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No miolo de todas as palavras, frases e mensagens anônimas escritas após o atentado e dis-postas em espiral no monumento, há um ponto de falta incondicional, superfície constante, estrutural e insistente ao modo de uma metáfora visual do que aponta Das Ding. É em torno desse buraco (e do pedacinho vazado de céu que ele materializa) - oco que não cede – que os dizeres dançam em diversas línguas, espanhol, francês, inglês, árabe, italiano dentre outras, preservando no centro algo que não pode ser dito nem alcançado. Algo que faz acontecer o vazio.
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Por que há esse centro, o turbilhão se monta e mantém-se em espiral nas tentativas de simbolizar o próprio vazio. O contorno de dizer(es) apenas faz borda, ampara e dá margem a esse oco que é o céu; e aqui relembro um jogo de infância que
65 constava de encontrar figuras humanas, mitológicas e bichos nas nuvens, ou seja, no formato de borda que elas davam a ver. O azul-vazio do céu era preenchido pelas nuvens que inscreviam espaços de beirada para o oco - uma orla para conter o imenso – pois o todo-azul mantinha-se chapado, constante e inteiro. A nuvem, borda ao/do vazio do céu, dava forma gráfica no tecido do ausente, apresentava o fur(ad)o e desfazia-se de inteireza tão logo pudéssemos ver algo. Isso tem relação com a função do inconsciente nos termos do que Lacan ([1964] 1973, p. 35) coloca a seguir: “(...) é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazida à luz – por um instante, pois o segundo tempo, que é o fechamento, dá a essa apreensão o caráter evanescente.”. O que fica fixado sempre, constante e coerente como afirmou Freud é o furo que, em não sendo tocado, faz tudo mover; nesse sentido, este monumento realiza tal representação de Das Ding, já que os dizeres formam uma rede, um redemoinho que ampara o sujeito no sentido de dar forma aos seus arranjos significantes sempre atravessados e estruturados a partir de uma falta. A morte de vítimas em um atentado terrorista – e o horror do rosto violento do trágico inominável – emblematizam o cerne do vazio, o lugar de buraco que, pelo vidro, permite ver o céu. A cada espiral de dizer, um volteio é dado e, exatamente por isso, o furo continua sustentado(r) no centro. O Oco está sempre presentificado lá, cá e acolá. Talvez esse seja um ponto importante na formação do analista: considerar que o sujeito é curativo do furo e borda de desejar em torno de um vazio que nunca poderá ser tocado. Resta, assim, a aposta de inventar algo com o Oco, criando um espaço íntimo de estar-em-si com Isso. Amassar o barro para fazer um pote, ajuntar as notas para compor uma sinfonia, reunir versos e alinhavar um poema, inventar um desenho de exposição para colocar o horror dançando em um céu de palavras: em tudo isso, o buraco continua
66 latejando e não cessa de produzir efeitos. Isso realiza Das Ding, e nossa voz também o faz, sempre o faz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, M. Dom Casmurro. Mestres da literatura portuguesa e brasileira. Rio de Janeiro, Editora Record, s.d. BALDINI, L. Correspondência pessoal. 2012. FREUD. Projeto para uma psicologia científica. [1895]. Rio, Imago, 1977. KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise – o legado de Freud a Lacan. Tradução Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges; Consultoria Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1996. LACAN, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008. LACAN, J. Seminário, Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. [1964]. Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1973. NAGEM, G. Correspondência pessoal. 2012.
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LER NÃO TODAMENTE Luiza Jatobá
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No seminário …Ou pior Lacan nos alerta para não pegarmos carona e fazermos Auteur-stop, auto-stop. Lacan adverte “Naturalmente, para que isso tenha peso, seria preciso vocês lerem Platão com um pedacinho de algo que viesse de vocês”(LACAN, 197172, p. 121) O filósofo Giorgio Agamben comenta como gosta de ler : descobrindo pontos em que o texto que pode ser desdobrado. Esses lugares vazios são os pontos filosóficos do texto: “são os elementos que possuem a capacidade de serem desenvolvidos” (AGAMBEN, 2002, p. 1). Nesses lugares abre-se um campo, não de tensões, não de oposições: um campo de indecidibilidade. Ali encontramos as indicações passiveis de desdobramento. É como se nesses pontos reinasse um tempo messiânico salpicado no tempo profano do texto. Para o autor, qualquer texto que tenha valor tem esses elementos. Esse comentário encontra-se no inicio de seu artigo sobre o que é um paradigma. Define paradigma como algo que, quebrando com o a lógica do universal e o particular, aponta para uma singularidade. E um paradigma é um exemplo. Voltarei a esse ponto. Lacan começa o livro 19, ... ou pire, a lição de 08/12/71, comentando o nome do seminário falando que os … são o lugar vazio e que sem o lugar vazio não se compreende nada da linguagem. Sabemos que Pire (advérbio) faz equivoco com Dire (um verbo). Com um advérbio depois das reticências, do vazio, o que estaria faltando seria um verbo. No entanto, um verbo é o que não pode faltar quando se pensa em lógica porque o x do vazio é a variável da função e é o que pode se substituído. Ao esvaziar o verbo, faço dele um
68 argumento, ou melhor, uma substancia. Não é o verbo dizer é “um dizer” que é substancial então pode ser substituída por “não há relação sexual”, “um dizer” de seu seminário anterior. Que na verdade é um meio-dizer, pois é uma verdade e a verdade não pode nunca ser dita toda. Poderíamos completar o titulo que ficaria “não há relação sexual ou pior”. Vocês devem ler Lacan não-todamente. Tomarei então um exemplo de uma psicanalista francesa Geneviève Morel que escreveu um capitulo de seu livro “Ambiguidades Sexuais” a partir da lição de 8 de dezembro de 1971, que se chama “A pequena diferença”. O capítulo tem o título de “Anatomia Analítica” (MOREL, 2000, pp. 141-74). Anatomia analítica ou os três tempos da sexuação, que devem ser tomados como tempo lógico e não cronológico: o primeiro tempo da sexuação é a anatomia, a biologia, o natural que só adquire valor no segundo tempo da sexuação. Este é o tempo do discurso sexual, que banha o sujeito, e que tem consequências psíquicas no sujeito. Lacan fala então do erro comum do discurso sexual que é o giro que se faz da significação do falo para o significante do falo. Assim o falo, que era apenas a significação do gozo passa a ser significante fálico. Quando o médico e a enfermeira dizem, após o parto, que é um menino ou é uma menina não estão refletindo a realidade, estão repetindo um discurso que interpreta os dados com critérios fálicos. Esse discurso está assentado sobre o tal erro comum que faz do falo um significante fálico. O sujeito deve tomar posição (inconscientemente) quanto à função fálica, inscrever-se ou rejeitar. Se ele rejeita a função fálica, ele é psicótico. Para um sujeito que se inscreveu na função fálica no segundo tempo, o terceiro tempo é o da sexuação: o momento da escolha de sexo, lado homem todo fálico ou lado mulher não-toda. Essa escolha implica seus modos de gozo e sua relação ao outro sexo.
69 Lacan comenta, na lição de 8/12/1971, que o transexual está brigando com o discurso sexual. O que ele não quer é aceitar o erro comum que transforma o falo em significante, não se inscrevendo, portanto, na função fálica. Recusa o discurso sexual, ou seja, a categorização fálica do órgão anatômico. O que Lacan afirma é que o que ele chama de erro da natureza, o pênis a mais ou a menos, não passa de sua recusa a aceitar o erro comum que o discurso sexual implica: tornar o falo o significante do sexo. Para falar na recusa que está em jogo na homossexualidade feminina, Lacan se refere à peça surrealista de Guillaume Apollinaire, “As mamas de Tirésias”. A protagonista cansou de ser casada e quer se livrar dos seios para virar homossexual, quer virar homem. Quem é Tirésias na mitologia grega? É uma personagem que sabe do gozo feminino por ter vivido como mulher durante sete anos e pode então atestar sobre a assimetria do gozo fálico e do desdobramento do gozo feminino para além do fálico. Como ficou cego e como ficou adivinho? Um dia Tirésias viu duas serpentes transando. Quando ele bateu com seu cajado na fêmea, foi transformado numa mulher no ato. Virou uma mulher e viveu como prostituta durante sete anos. Aí ele viu de novo as duas serpentes transando e bateu bem no macho e retornou ao corpo com órgão. Dizem que ele estava flanando por Creta e presenciou uma briga entre Hera e Zeus. Como sua mulher reclamava de suas traições, Zeus respondeu: “Também as mulheres têm um prazer ilimitado no amor, coisa que nós homens desconhecemos e além do mais, vocês são muito reticentes quanto a esse prazer heterodoxo.” Aí Hera ficou alterada mesmo e o casal resolveu perguntar a Tirésias que respondeu: “Se as partes do prazer contassem 10, três vezes três vai para a mulher e uma para o homem.” Hera ficou tão enfurecida com o sorriso triunfante do marido que cegou Tirésias mas Zeus compensou-o com a visão interna e uma vida por sete gerações. Voltando então à peça de Apollinaire (1880-1918) que foi apresentada como um drama surrealista pelo autor, inventando assim o neologismo “surrealista”. A peça foi montada em 1917. A
70 protagonista Teresa não quer mais ser uma mulher casada, mas quer virar homem solteiro e vira Tirésias, um homme-madame, um homme à dames. Então, seu marido começa a parir e tem 40.049 filhos. Depois volta para casa, volta a ser Teresa e o marido a recebe de volta. Há duas cenas da transformação de sexo. Na primeira, Teresa recusa a autoridade do marido: “Não senhor, meu marido. Não me obrigará a fazer o que deseja” (APOLLINAIRE, 1916/1985, p. 50). Ela quer ser soldado, deputado, senador, presidente da república, médica do físico ou do psíquico. Ele diz: “Quero toucinho, já disse toucinho” ao que ela responde “Estão ouvindo, ele só pensa em amor” (APOLLINAIRE, 1916/1985, P. 51). Aí a barba cresce e seus seios se soltam. Entreabre a blusa de onde saem dois balões coloridos : “Voem pássaros da minha fraqueza/ Como são lindas as iscas femininas/ Que lindos/ Tão cheios/ Tão apetitosos” (APOLLINAIRE, 1916/1985, p. 53). Os seios destacáveis representam o objeto a e o que ocupa o lugar da castração. São os objetos de sua fraqueza que fazem dela tão somente um objeto a, não-toda para o marido. A segunda cena destacada é quando Teresa volta para o marido e pergunta se ele não a reconhece. Depois de reconhecê-la ele diz que ela está “mais chata que uma tábua” ao que ela responde “é preciso amar para não sucumbir”. “Já não é necessário que você fique assim, minha Teresa, chata como uma mesa” (APOLLINAIRE, 1916/1985, p. 104). O marido oferece-lhe alguns balões, mas ela não aceita. “Nós dois os dispensamos. Continuemos. Voem pássaros de minha fraqueza. Vão alimentar todas as crianças” (APOLLINAIRE, 1916/1985, p. 105). Teresa volta para o amor ideal, mas não consente em ser objeto a para o marido. A homossexualidade feminina falha em ser não-toda por sua tentativa de eliminar o significante fálico. Ou ela fica: - com amor mas sem desejo, como a personagem Teresa/Tirésias de Apollinaire. - ou fica só com o discurso amoroso, se for teoricamente orientada, como as Précieuses, também citadas por Lacan na lição “A pequena diferença”.
71 Mas A Mulher não terá acesso ao gozo feminino, a menos que aceite sua fraqueza de ser não-toda para o homem, que só pode desejar uma mulher como um ser parcial, ou como objeto a. Ler não-todamente… Não- todamente evoca a questão da verdade e sua definição lacaniana. A verdade nunca é toda : é um meio dizer. Não toda mente: não só com a mente, mas com um pouco de corpo. Ricardo Piglia comentando sobre leitura fala da cena de Ulisses de Joyce quando Molly está lendo e pede a Bloom que procure o livro que ela estava lendo durante a noite. Ele chama essa leitura de doméstico-corporal: uma leitura que entende mais ou menos, que divaga, que se deixa levar (PIGLIA, 2005, P. 175). Assim temos as distorções, equívocos, ressonâncias musicais das palavras tão cruciais para a interpretação psicanalítica. Na lição acima referida “A pequena diferença” Lacan comenta a cadeia sonora aomenozum que em francês era hommoinzune que ressoa com homme. Aqui ele está se referindo à histérica que se recusa a ser não-toda e se posiciona do lado homem, do lado da exceção. Volto então ao começo do texto para trazer a questão do paradigma, que, segundo Agamben, se contrapõe à exceção. O paradigma é uma singularidade que se opõe à lógica do universal e do particular.
Outro nome para paradigma seria
exemplo e se pensamos em gramática, um exemplo é o que está “ao lado de”, é uma inclusão exclusiva. Já a exceção, seria uma exclusão inclusiva. Como sabemos a exceção está do lado homem da sexuação, o paradigma estaria do lado mulher da sexuação. O método de Freud sempre usou paradigmas tais como o caso Dora e o Homem dos ratos, só para ficar com dois grandes paradigmas da neurose.
72 Como estamos dando ênfase na musicalidade da cadeia sonora vou terminar dando um exemplo da música, ou melhor, uma definição de “invenção” que também está do lado mulher por oposição a “criação”, do lado homem da sexuação. Quando Richard Wagner, no exercício de sua atividade artística, a de compositor, achou o acorde de Tristão e Isolda, era dissonante, soava estranho. Nesse momento tinha duas opções, descartar ou embarcar. Claro que Wagner assumiu o risco e compôs um dos temas mais conhecidos da história da ópera. Acredito que ler Lacan não-todamente é embarcar na dissonância e assumir a invenção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, G. What is a paradigm? Site da European Graduate School, 2002. APOLLINAIRE, G. (1916). As mamas de Tirésias. São Paulo, Max Limonad, 1985. LACAN, J. (1971-1972). O seminário, Livro 19: …pior. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 2012, pp. 11-23. PIGLIA, R. El último lector. Barcelona, Anagrama, 2005.
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A IMPLICAÇÃO DOS PAIS NO TRATAMENTO PSICANALÍTICO COM CRIANÇAS Maria Fernanda Mascheretti
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Este trabalho parte de uma interrogação clínica e recebeu contribuições a partir de minha experiência junto a Rede de Pesquisa em Psicanálise e Infância do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Ao longo de meu trabalho, tenho interrogado sobre a dificuldade em se buscar e sustentar uma intervenção psicanalítica. O que nos detém aqui são casos nos quais há um sofrimento da criança, mas os pais se recusam a procurar um analista e buscam o chamado discurso da ciência. Por que a fonoaudiologia, a neurologia, a psiquiatria, a psicopedagogia, etc, são, muitas vezes, os primeiros endereços aos quais os pais recorrem quando algo parece falhar com a criança e perturba, de algum modo, a rotina familiar? O que parece evidente, nestes casos, é um certo “não querer saber nada sobre isso”, autenticado, muitas vezes, pela saída medicamentosa. Por não se querer saber sobre isso, pode-se optar pelo silenciamento provocado pelo remédio. Quando algo parece falhar com a criança, pode ser difícil que os pais procurem um analista e, não raro, constroem explicações provisórias, como nos exemplos: “o problema dele é hereditário”, “ele não sabe ler porque a escola é incompetente”, “ele não aprende porque é distraído como o pai”. Por que a insistência em apresentar o problema e, junto com ele, uma explicação?
74 O que ousamos interpretar, como dissemos, é que existe um não querer saber sobre isso, ao que os psicanalistas chamam de modo de gozo, ou seja, uma posição a qual o sujeito está fixado, e a qual recusa-se a abrir mão, mesmo que seja ao preço de um sintoma. Na “Nota sobre a criança”, Lacan (1969) nos apresenta uma fórmula bastante esclarecedora. Neste texto, encontramos que o sintoma da criança pode responder ao que existe sintomático no casal familiar. Em outros termos, pode haver uma relação entre o sintoma da criança e a verdade do casal. É justamente esta verdade que, com saídas técnicas, ou, até mesmo falaciosas, os pais procuram negar. Ao buscar um psicanalista, os pais, ou, aqueles que ocupam suas funções, poderão ser convocados e questionados quanto ao seu gozo e quanto ao lugar que a criança ocupa nisso. Pode-se dizer que, ao buscar um analista, os pais poderão ser remetidos a uma pergunta que não querem saber: “onde foi que eu errei?”, ou, “onde foi que erramos?”. Entretanto, não defendemos a culpa dos pais no sintoma da criança. Ao contrário, a psicanálise supõe uma parte de responsabilidade que é da criança, isto é, existiria uma certa escolha inconsciente pelo sintoma, graças a qual é possível intervir. Existiria, isto sim, um compromisso dos pais em relação ao sintoma da criança e sobre o qual uma análise poderá intervir. Segundo Eric Laurent (1991), analisar uma criança implica que “exista um operador que produza um corte no gozo imaginário ao qual a criança está submetida” (Laurent, 1991, pág.27), em outros termos, “trata-se de separar a criança do gozo da mãe. E como isso se faz? Nós, os psicanalistas não somos parteiras e isso não se separa por fórceps, separa-se com construções de ficção. É necessário que as ficções reguladoras permitam operar de algum modo” (Laurent, 1991, pág.32).
75 Estas ficções são o que Lacan muito bem nos apresenta em seu Seminário 4 (1956-1957), a propósito do caso clínico publicado por Freud, em 1909. No caso do pequeno Hans, o deslocamento em torno do significante cavalo permitiu a suplência da função paterna e, conseqüentemente, a redução de sua fobia. Para Lacan, a eficácia da análise de Hans deu-se por ele ter encontrado alguém com quem falar, alguém que desse suporte para o trabalho do significante. Sabemos, a criança está numa relação privilegiada com a mãe. Para Eric Laurent (1991), “No ensino de Lacan, o estatuto da criança se desloca do falo para o objeto a (...)” (Laurent, 1991, pág. 31). Em um caso, a criança seria uma versão do falo que tampona a falta, como vemos no Seminário 4 (1956-1957) e, no outro, a criança seria uma versão do objeto a: “Para esse gozo que ela [a mulher] é, nãotoda, quer dizer, que a faz em algum lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, ela encontrará, como rolha, esse a que será seu filho” (Lacan, 1972-1973, pág. 49). Segundo Laurent (1991), Lacan não anula a teoria fálica precedente. Neste deslocamento em direção ao conceito de objeto a, Lacan estaria mais prudente em relação à suposta eficácia do pai e mais desconfiado diante da correspondência de que, se o Nome-do-pai funciona, este que intervém sobre o desejo da mãe, “então tudo vai bem” (Laurent, 1991, pág. 32). De qualquer modo, “A questão é que a mulher vê surgir no real, com a criança, essa parte perdida dela mesma (...) e, quanto mais próximo isso está do real, mais difícil (...) será para a intervenção do psicanalista” (Lauren, 1991, pág. 31). Por esta razão, isto é, por esta relação privilegiada da mulher com a mãe, apontada desde Freud, “existe para Lacan uma questão preliminar a todo tratamento possível das crianças: a sexualidade feminina” (Laurent, 1991, pág 31). Sendo assim, o que a criança se pergunta seria “o que minha mãe deseja?”, e, a partir daí, “o que é uma mulher?”. Perguntas as quais não há significante que responda
76 e, portanto, há formação de sintoma. É nisto que toca a verdade do casal, aquela que pode fazer par com o sintoma da criança, aquela que se insiste em dissuadir. A verdade do casal é, se podemos dizê-la, que a relação sexual não existe, isto é, que não há um que complemente o outro, ou seja, que em “tudo que diz respeito à relação entre homens e mulheres a coisa não vai” (Lacan, 1972-1973, p.46). Vemos como o fundamento do discurso analítico é a contra corrente de respostas técnicas, terapêuticas e farmacêuticas, prontas a apontar a suposta causa do problema sem a implicação do sujeito, sem a parte do sujeito naquilo que lhe cabe, seu modo de gozo e sua escolha inconsciente, como se estas respostas dissessem: “Faça deste modo e seu problema será resolvido, mas não se pergunte sobre a parte que lhe cabe”. A psicanálise não é uma fábrica de silenciamento, ao contrário. O sintoma incomoda, perturba, provoca, dá trabalho, mas é esta sua função. E não cabe ao psicanalista fazê-lo calar, mas colocá-lo para trabalhar, possibilitando uma interpretação do sintoma, e não sua remissão. Se o sintoma está em algum lugar é porque tem uma função. É preciso ouvi-la e possibilitar sua ressignificação.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: LACAN, J. (1956-1957) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. LACAN, J. (1969) “Nota sobre a criança”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003 LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. LAURENT, E. (1991) Existe um final de análise para as crianças. Revista Opção Lacaniana, n. 10. Abril/Junho, 1994.
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Culpa: o mal-estar que atravessa os séculos, e resiste! Patrizia Corsetto
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A culpa é original, inseparável ao conceito do homem e mal chega à superfície de sua consciência. Ela foi implantada pela própria vida. Não depende da direção da vontade humana, ela acompanha todas as ações humanas, independente de voltar-nos para o bem ou para o mal (Hebel) Cito Cruz, Moraes e Mendes (2005) para dar início a esta pequena trilha: Desde a Antiguidade, tenta-se explicar a relação do Homem com a Natureza. Na antiguidade, trabalhava-se com a ideia do acaso, ou seja, o homem acreditava que os deuses decidiam seu destino. A Fortuna, ou Sorte, era a deusa romana que trazia sorte ou azar para as pessoas. Equivalente à deusa grega Tiquê, que era considerada deusa da mudança, dos acontecimentos e do destino, a divindade dos romanos costumava ser representada cega ou vendada, carregando uma cornucópia [símbolo representativo da fertilidade, riqueza e abundância] (WIKIPEDIA) e controlando uma roda e um leme. A cornucópia [representada por um arranjo em forma de chifre e com abundância de flores e frutas] (WIKIPEDIA) era utilizada por ela para distribuir bens e riquezas sem saber a quem, já que ela é cega; a roda era para decidir numa mesma proporção os que sofrem e os que são felizes, contudo, mantendo a instabilidade do acaso, pois pode girar a qualquer momento; e o leme era para guiar os destinos dos homens (ADKINS e ADKINS, 2001).
78 Em A República, mais precisamente no capítulo II, há um diálogo entre Sócrates (personagem central da obra platônica) e outros homens. O motivo da conversa é qual o melhor modo para um homem viver, de forma justa ou injusta? Os opositores de Sócrates resolveram usar como base dos argumentos o indivíduo, explicando que, em grande parte dos casos, quem vivia na injustiça era mais feliz que aqueles que viviam na justiça. Havia ainda outro ponto levantado pelos opositores: quem era injusto, mas, perante os outros aparentava justiça, vivia mais feliz ainda. Sócrates resolveu rebater tais argumentos, não se utilizando da vida de um único ser humano, mas da construção de uma cidade perfeita onde a justiça deveria ser observada e respeitada. A cidade ideal nasce da maneira mais primitiva e aos poucos, de acordo com Sócrates, vai se tornando mais complexa com a necessidade de trabalhadores especializados. Freud, em o Mal-estar na civilização (1930[1929]), a respeito da felicidade diz: (...) Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo. Já demos a resposta pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. A ideia de que existiu, há muito tempo atrás, um homem primitivo é a que Freud utiliza para falar sobre a natureza e a origem do homem. Segundo o mito da “horda primeva”, inicialmente, existiria um pai onipotente, possuidor de todas as mulheres e de uma vontade arbitrária e absoluta. Em Totem e Tabu (1913-1914), Freud aponta o parricídio como o crime principal e primevo da humanidade, assim como o do indivíduo, e diz que o que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este.
79 Em Dostoievski e o Parricídio (1928[1927]), Freud se vale de três clássicos da literatura, Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e os Irmãos Karamassovi, de Dostoievski; que abordam o mesmo assunto, o parricídio, ressaltando que o motivo para a ação nas três obras, é a rivalidade sexual por uma mulher Esse pai seria assassinado pelos filhos e a partir disso se estabeleceria um contrato social para garantir que nenhum deles tomaria o lugar do pai. Assim, a partir do “parricídio”, se constituiria uma organização social que marcaria a origem da civilização. O tabu do incesto surge aí como a primeira lei que fundamenta uma sociedade, uma vez que o incesto é de natureza anti-social. Citando Marcio Peter de Souza Leite, (...) “o texto de Freud, O mal-estar na civilização, traz uma revisão crítica do processo civilizatório à luz da descoberta da pulsão de vida e de morte. Tese esta que decorre do fato da psicanálise pensar que a socialização humana se daria unicamente em função da possibilidade de o homem postergar seus estímulos sexuais e agressivos, através da renúncia pulsional. A cultura vista assim se apresenta então como um sistema de interdições”. Segundo Caropeso, “para Freud, o passo cultural decisivo, nas relações entre os homens, foi a substituição do poder do indivíduo (o mais forte submente o mais fraco) pelo da comunidade (que institui regras de convívio). Decisão esta, que limitou as possibilidades de satisfação dos impulsos agressivos e sexuais, mas em troca da perda de liberdade de ação, trouxe mais segurança para a vida. De acordo com Freud, o máximo que os homens conseguem é gozar de uma felicidade momentânea, resultante, na verdade, da satisfação de necessidades retidas com alto grau de êxtase. E, uma vez que, os impulsos agressivos são parte integrante da natureza humana, eles não podem ser totalmente suprimidos como se não existissem. Tais impulsos precisam encontrar
80 algum tipo de descarga e disso se segue a impossibilidade de uma vida em sociedade sem hostilidade e sem violência”. Segundo Freud, o homem é movido pelas pulsões. E a tensão entre o severo superego e o ego origina a culpa, expressa como uma necessidade de punição. O superego atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo. As tentações são simplesmente aumentadas pela frustração constante. Freud diz que, enquanto tudo corre bem com o homem, a sua consciência é lenitiva e permite que o ego faça todo tipo de coisas; entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe-lhe abstinências e se castiga através de penitências. Freud aponta ainda duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade interna, e a outra, posterior, que surge do superego. A primeira insiste numa renúncia; a segunda, além da renúncia exige também punição. A primeira é uma renúncia ao instinto: medo de agressão da autoridade externa, que equivale à perda do amor; e a segunda, renúncia ao instinto por medo da consciência (sentimento de culpa e necessidade de punição). É a civilização, portanto, que consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o. Uma pessoa se sente culpada (ou pecadora, para os crentes) quando faz algo que julga ser ruim. (...) “A cultura é vista então, por Freud, como análoga ao supereu, e a psicanálise mostra que o mal-estar na civilização consiste em se obter uma satisfação da renúncia pulsional, quer dizer, a psicanálise mostra que a condição humana leva o sujeito a obter gozo pela renúncia do próprio gozo. Assim o sofrimento do sujeito, ao que Freud chamava de “infelicidade interna”, é uma forma de gozo, e, por esta razão, o homem quanto mais virtuoso for, quanto mais gozar de sua renúncia pulsional, mais severamente será tratado por seu supereu. Assim, se a psicanálise ensina
81 que o sofrimento é um dos nomes do gozo pulsional, também ensina que o sintoma neurótico é o que se insurge contra a exigência cultural de recalque”, diz Marcio Peter Souza Leite. Freud também equivale a “intenção” ao “ato”, no que se refere ao “sentimento de culpa”. E aponta o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização e que culmina na perda da felicidade. No processo civilizatório, o que mais importa é criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. Devido às características humanas, o homem procura a completude - que não existe - na religião, no consumo de bens, no amor, no saber, ou como diria Freud, na ilusão. Em seu texto De Culpas e Dívidas, Marcio Peter de Souza Leite diz: (...) “Lacan, por sua vez, formalizou o conceito “de culpa” como consequência da causação do sujeito, e a denominou “falta no Outro”. Essa falta, que é decorrente da estrutura do significante, faz com que o sujeito não a tenha contraído ativamente, embora, mesmo assim, tenha que pagá-la. É o universal do desejo do incesto, que pela sua proibição está na origem da angústia, que se expressa como consciência moral, a qual é herdeira do complexo de Édipo. Por isso esta angústia, na sua face de culpa, diferindo da angústia causada por uma ameaça Real, é simbólica por excelência. Fato este, que dentro do referencial teórico lacaniano, se expressa como consequência do processo de constituição do sujeito pelo Outro. E, como o Outro é o lugar dos significantes, será na fala que se procurará uma saída para a repetição infinita da dívida simbólica. E como a fala implica a relação do sujeito com o Outro, é nela que se mostra sua função, que é a de tentar permanentemente redimir a falta, efeito da dívida. O que a psicanálise nos ensina, portanto, é que a completude é uma ilusão, e aponta a uma posição onde o Bem
82 supremo já não é mais a ausência da falta, porém a verdade particular de cada um que, por mais dolorosa e faltosa que possa ser, ainda assim cifra o destino de cada sujeito”. É de um grande líder budista no Japão, Daisaku Ikeda, a seguinte frase: “A beleza do ser humano está na característica única e como cada qual vive – e supera – o drama da própria existência. O conjunto destes dramas, tão diferentes, é que forma a raça humana”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADKINS, L; ADKINS, R. Dictionary of Roman Religion. Oxford University, 2001. CRUZ,C.E.S; MORAES, C.M; MENDES, L.P. O Tempo parou . A crise da modernidade
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Godot,
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Samuel
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http://www.filologia.org.br/soletras/9/13 Freud, S. Totem e tabu. Disponível em Freud Online. www.freudonline.com.br _____________ O mal-estar na civilização. Disponível em Freud Online. www.freudonline.com.br _______________ Dostoievski e o Parricídio. Disponível em Freud Online. www.freudonline.com.br CAROPESO, F. Freud e o mal-estar inerente à condição humana. Disponível em Portal Ciência & Vida. LEITE, M. P.S. De culpas e dívidas. Disponível em www.marciopeter.com.br ______________
Uma
teoria
lacaniana
na
cultura?
Disponível
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www.marciopeter.com.br MARCHESINI,A; BORAGAN, C.; GOMES, D., RIBEIRO, I., CORSETTO, P. Correntes da Teoria Literária, 2011. Trabalho apresentado no módulo Correntes da Teoria Literária do curso de pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Anhanguera.
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A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA E O SINTHOMA JOYCIANO: UM NÓ, UMA INVENÇÃO5 Ricardo Monteiro Guedes de Almeida6
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Lacan, em 1966, ao apresentar a tradução das Memórias do Presidente Schreber, prestou homenagens a Freud, já que este havia introduzido outra perspectiva para pensar a loucura, ou seja, para além da questão do déficit e de dissociações das funções. Nós aqui também poderíamos prestar nossa homenagem a Freud pelo fato dele, em um período anterior à publicação do texto A Interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1996), isto é, antes mesmo da própria fundação da psicanálise, ter demonstrado uma tentativa de dar conta da psicose através dos textos: “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996) e “Observações adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa” (1896/1996). Incluindo, assim, desde cedo, a psicose entre os assuntos relevantes da psicanálise. Relevância esta que ainda persiste, sobretudo, em nossa prática clínica, principalmente quando levamos em consideração a recomendação lacaniana de que não devemos retroceder diante da psicose e nem diante dos problemas que ela apresenta à clínica. Freud nos deixou um legado de questionamentos frente aos obstáculos que a psicose oferecia à clínica, sobretudo, no âmbito da transferência. Apesar disso, é no
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Este trabalho constitui-se de um recorte de minha dissertação de mestrado, de mesmo título, defendida no ano de 2012 na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). 6 Psicanalista, participante da Rede de pesquisa As psicoses do Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo.
84 texto deste, que encontramos o aforismo em que, com base nos escritos autobiográficos, “Memórias de um doente de nervos”, de Schreber, o delírio é apontado como uma tentativa de cura. Tal proposição é de fundamental importância, pois, certamente, representa uma primeira e grande contribuição que nos permite trabalhar hoje o delírio como uma tentativa de elaboração do psicótico em direção a uma estabilização. Porém, como pretendemos enfatizar aqui, a elaboração delirante, tal como em Schreber, não consiste na única tentativa de solução apresentada pelos sujeitos psicóticos na clínica. Nesse sentido, em nossa experiência clínica na saúde mental, pudemos presenciar casos em que as soluções singulares dos sujeitos psicóticos não seguiam necessariamente o mesmo perfil que a solução de Schreber. Em outras palavras, quando muito, apresentava-se uma elaboração delirante, muitas vezes, ela era acompanhada de um trabalho de criação, seja como uma forma do sujeito psicótico de promover uma separação do objeto a e, assim, localizar o gozo aterrador do Outro em algo fora de seu próprio corpo, seja como forma de estabilização ou, então, até mesmo como forma de suplência. Inicialmente, quando Lacan aborda a questão da metáfora delirante, ele não o faz com base na perspectiva de um complemento, ou, de um suplemento. Sua ênfase se encontra originalmente em um processo metafórico substituto que dá conta de uma falta da metáfora paterna, a forclusão do Nome-do-Pai. Assim, apesar do Seminário 3 - As psicoses, apresentar uma indicação de que esta falta poderia ser compensada, até então, Lacan não havia apresentado ainda a noção de suplência. Ele vai falar de suplência pela primeira vez no Seminário 4 - A relação de objeto. O que é curioso observar é que ele o fará, não com relação a um caso de psicose, mas sim, no caso de fobia do pequeno Hans. Dessa forma, ele aborda a suplência pela primeira vez para falar de uma compensação de carência paterna em um caso de neurose. Décadas após a realização
85 desse seminário, Lacan, no Seminário 22 - R. S. I., volta a abordar a noção de suplência, mais especificamente no momento em que passa a questionar se o enodamento dos três registros – Imaginário, Simbólico e Real – necessitaria de uma ação suplementar (GUERRA, 2007). No caso de Hans, encontramos apenas um exemplo de complemento à metáfora paterna, pois, tratava-se de um caso de neurose, mas o que nos interessa abordar neste trabalho é a possibilidade de que na psicose o buraco da forclusão paterna venha a ser preenchido por algo que, apesar de exercer a mesma função do Nome-do-Pai, não vem a ser este o significante propriamente dito. O que pretendemos trazer a discussão é a possibilidade de que outros significantes ocupem a mesma função do Nome-do-Pai, ou, nos ditos de Colet Soler (2007, p. 205), “a função de basteamento do imaginário e do simbólico”. Isto posto, não se trata de um único significante capaz de exercer essa função suplementar do caráter nodal dos elementos simbólicos, reais e imaginários, mas de uma variedade de possibilidades que Lacan veio a representar como Nomes-do-Pai. Sobre esta perspectiva, a clínica não estará mais restrita ao delírio como uma tentativa de cura do psicótico, pois é o que podemos encontrar no caso paradigmático de Arthur Bispo do Rosário. No entanto, nosso enfoque será entorno de James Joyce que, com sua arte, conseguiu tapar o buraco da forclusão paterna em um período anterior ao próprio desencadeamento. De acordo com Soler (2007), se Lacan estiver correto, Joyce foi um psicótico não desencadeado. Segundo Quinet (2006), nos anos 1970, a ênfase de Lacan deixa de ser a supremacia do simbólico e recai sobre a interdependência entre os três registros: real, simbólico e imaginário, em uma vinculação de nó borromeano, no qual cada registro é representado por um anel, e cada anel se encontra atrelado aos demais, de uma forma
86 que, se houver o rompimento de um, todos os demais serão liberados. Em 1976, no seminário “O sinthoma” (LACAN, 1975-1976/2007), percebemos que o nó, até então era mencionado principalmente com três termos, passa a ser apresentado com um quarto termo chamado de sinthoma e cuja função é reparadora do nó (BENETI, 2009)7. Podemos observar que Lacan na terceira aula deste mesmo seminário intitulada “Do nó como suporte do sujeito”, questiona se o nó borromeano de três seria capaz de sustentar por si só algo que é da dimensão do sujeito: “Mas para que alguma coisa, que é preciso dizer que seja da ordem do sujeito [...], encontre-se, em suma, sustentada nó de três, será que basta que o nó de três se enode, ele mesmo, borromeanamente a três?” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 49, grifo nosso). Com isso assevera sobre a necessidade de um quarto elemento e uma situação mínima em que um, o sinthoma, enodaria três, os registros: “Com efeito, parece que, para atingirmos a cadeia borromeana, o mínimo é essa relação de 1 com 3 outros.” (ibid, p. 50). Lacan vai denominar inicialmente este quarto elo, que enoda borromeanamente a tríade, de o Nome-do-Pai. Quanto a isso é preciso, contudo, marcar que existe uma diferenciação que não pode ser esquecida entre a função do Nome-do-Pai e o termo que pode vir a exercer essa função. Trata-se da mudança no ensino de Lacan, onde o Nomedo-Pai passa a ser visto como mais um elemento suplementar, mais um entre outros. O que implica não só a generalização da forclusão do Nome-do-Pai, mas também, o fato de que a falta deste significante na psicose pode vir a ser compensada através de diferentes substitutos, que exercem a mesma função. Dito de outro modo, o Nome-doPai passa a ser relativizado e deixa de ser pensado como a única alternativa para a amarração da estrutura do sujeito. Tal como veremos, Joyce encontrou uma outra forma, fora do Nome-do-Pai, de suplenciar a sua forclusão de fato. 7
Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br/n3/pdf/artigos/ABDiscurso.pdf>. Acesso em: 22 out. 2009.
87 Dando prosseguimento, há de ressaltar o papel da epifania não apenas como uma noção fundamental na estética joyciana, mas também como um sintoma. Observem que este último não é escrito com th, tal como seria exigido na grafia antiga da palavra sintoma (symptôme). Poderíamos questionar: Se a experiência epifânica também representa um elemento enodante de Simbólico e Real na estrutura joyciana, o porquê desta distinção? A resposta para isso é que o enodamento promovido pela epifania equivale, em termos topológicos, a um falso nó borromeano de três, já que o terceiro círculo, aquele correspondente ao imaginário, permanece solto. Somente a produção escrita, que se encontra no lugar do ego de Joyce, é que representará uma amarração do Simbólico e do Real que inclui o anel do imaginário, constituindo assim o sinthoma joyciano. Não por acaso, o percurso teórico deste momento consistirá na passagem do sintoma epifania ao sinthoma escritura, que diz respeito ao lugar de seu ego particularíssimo. No que tange a este ego particular, Lacan também o denominou de sinthoma Joyce, representando uma prova incontestável de que a falha no enodamento dos três anéis pode ser suprimida por outra amarração possível, ou seja, outra amarração do nó, por meio do acréscimo de um quarto anel, que não consiste no Nome-do-Pai, mas naquilo que vai além dele. Sem dúvida, a forclusão de fato em Joyce, caracterizada por uma demissão paterna foi compensada tanto pelo desejo de ser um artista reconhecido por muitos quanto por um trabalho de nomeação infligido pelo próprio escritor. De fato, para Lacan, o desejo de Joyce de ser um artista reconhecido e homenageado pelos universitários, por um longo período de tempo, trezentos anos para ser exato, representava uma compensação de uma carência paterna, a considerar que ele era um filho de um pai bêbado e decadente, que havia se demitido de sua função paterna. A guisa de concluir, Joyce representou e ainda representa para a clínica da
88 psicose, uma solução da falha da carência paterna que faz a mesma função do Nome-doPai, porém, sem ser o significante deste. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENETI, A. Do discurso do analista ao nó borromeano: contra a metáfora delirante. Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br/n3/pdf/artigos/ABDiscurso.pdf>. Acesso em: 22 out. 2009. FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 4, p. 13-363. ______. (1894) As neuropsicoses de defesa. Tradução M. Salomão. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Organização J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 3, p. 53-66. ______. (1896) Observações adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa. Tradução M. Salomão.In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Organização J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.163-188. GUERRA, A. M. C. A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência. 2007. 272 p. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. LACAN, J. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. (1955-1956) O seminário – Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. (1974/1975) O seminário – Livro 22: R. S. I. Não publicado. ______. (1975-1976) O seminário – Livro 23: o sinthoma. R.J.: Zahar, 2007. QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos. São Paulo: Paz e Terra, 1995. SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
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AS PSICOSES PELO VIÉS DA FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI Sabrina Vicentin Plothow
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Resumo: O presente estudo vislumbra um recorte da teoria lacaniana levando em conta a questão da foraclusão do Nome-do-Pai como ponto intrínseco para a constituição de estruturas psicóticas. Serão explorados alguns elementos que auxiliem na compreensão deste estudo, como o lugar que o Nome-do-Pai assume diante do sujeito psicótico e quais são os motivos que o levam a foracluir de maneira irreversível tal significante. *** Lacan nos ensina que o aspecto nodal que caminha para as psicoses se trata da foraclusão do Nome-do-Pai que se instaura no momento em que o sujeito deveria perpassar pelo complexo de Édipo. O complexo de Édipo ocorre de maneira extremamente marcante para a constituição do sujeito, pois é o momento em que a função da metáfora paterna atuaria no complexo de castração, mas fracassa, fracasso esse que se dá pela falta de um significante e por não haver significante, não hã como haver seu reconhecimento. Dessa forma, há uma falta introdutória do Nome-do-Pai como significante primordial, pois não cumpre a função de barrar e é por não interditar o vínculo de dependência entre mãe e filho que se torna excluído dessa relação. Para que haja uma maior compreensão sobre o assunto, é importante expor o que Lacan articula acerca da foraclusão do Nome-do-Pai e como é possível entender algo
90 sobre as psicoses a partir deste ponto desenvolvido pelo teórico, partindo de um olhar sobre esta dependência que há na relação entre mãe e filho e que não existe algo que possa interferir ou barrar tal simbiose. Lacan (1998) afirma que o desencadeamento da psicose se dá através da foraclusão do Nome-do-Pai ao qual nunca virá do campo do Outro e que seja “invocado em oposição simbólica do sujeito” (p. 584), ou seja, o sujeito psicótico não reconhecerá na figura paterna alguma relação com o Outro que se trata do real. Dessa maneira o significante se desvincula do real o que acarreta a falência do Nome-do-Pai, “isto é, do significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da lei.” (p. 589-590). Para que o sujeito psicótico seja inserido na realidade, a única possibilidade seria pela via do delírio, pois o delírio estabelece uma realidade ao sujeito, trata-se do campo do imaginário, onde o delírio é uma realidade. Em se tratando do delírio na interface: esquema Real e esquema Imaginário, Darmon (2008) coloca que no Imaginário o sujeito percorre uma trajetória infinita, fazendo com que “o estatuto do Real seja muito precário e infinitamente variável.” (p. 152) A partir das articulações de Lacan (1998), é possível vislumbrar que o sujeito que está na estrutura psíquica psicótica se une ao outro semelhante, sua mãe, que representa o irreal e passa a não reconhecer o campo do Outro, o real. É dessa forma que Lacan nos apresenta a exclusão do Outro pelo sujeito, pois o real não deve interferir na irrealidade delirante desse sujeito. Segundo Lacan: “É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na foraclusão do Nome-doPai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose.” (1998, p. 582)
91 Para discorrer acerca do significante do Nome-do-Pai, é preciso introduzir o que Lacan (2010) diz, recorrendo à teoria de Freud, que traz à luz o significante do Pai, como sendo o autor da Lei e expõe o pensamento de que apenas o Pai morto pode significar a Lei, por isso no complexo de castração é necessário que haja o assassinato do Pai, para que assim o sujeito possa se conectar à Lei. Em casos que se estruturam como psicoses, não há o assassinato do Pai simbólico, pelo simples fato de este Pai não existir para o sujeito, em outras palavras, por não ter sido apresentado ao Pai o sujeito não terá acesso a ele para que haja o assassinato e para que a Lei seja instaurada. Mais ainda, a relação do pai com essa lei deve ser considerada em si mesma, pois nela encontraremos a razão do paradoxo pelo qual os efeitos devastadores da figura paterna são observados, com particular freqüência, nos casos em que o pai realmente tem a função de legislador ou dela se prevalece, quer ele seja, efetivamente, daqueles que fazem as leis, quer se coloque como pilar de fé, como modelo de integridade ou de devoção, como virtuoso ou virtuose, como servidor de uma obra de salvação, de algum objeto ou falta de objeto que haja, de nação ou natalidade, de salvaguarda ou salubridade, de legado ou legalidade, do puro, do pior ou do império, todos eles ideais que só lhe fazem oferecer demasiadas oportunidades de estar em posição de demérito, de insuficiência ou até de fraude e, em resumo, de excluir o Nome-do-Pai de sua posição no significante. (p. 586) Lacan deu extrema importância ao que Freud nos ensinou acerca do complexo de Édipo, constituindo assim um pensamento sobre a instituição do significante da Lei. Lacan infere que a Lei existe desde o início, desde antes do sujeito e que “a sexualidade humana deve se realizar por meio e através dela. Essa Lei fundamental é simplesmente uma Lei de simbolização. É o que Édipo quer dizer.” (2010, p. 102)
92 O complexo de Édipo quer dizer que a relação imaginária, conflituosa, incestuosa nela mesma, está destinada ao conflito e à ruína. Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural, aquela do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um terceiro, que seja a imagem de alguma coisa de bem-sucedido, o modelo de uma harmonia. Não é demais dizer – é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai. Não é o pai natural, mas o que se chama de pai. A ordem que impede a colisão e o rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse nome do pai. (2010, p. 117-118) A partir dessa afirmação, é possível compreender melhor o que Lacan pretende dizer em se tratando da importância de uma intervenção por parte da Lei, ou seja é necessário que haja a interferência do Pai como representante da Lei para que o sujeito possa ser introduzido no campo do real pela via do simbólico. Recorrendo ao que Lacan expõe referente à relação simbiótica entre mãe e filho na psicose, o autor comenta que a foraclusão do Nome-do-Pai se dá pela falta de importância que a mãe dá ao outro, trata-se da exclusão do terceiro no complexo de Édipo e essa exclusão se dá não apenas pela forma com que a mãe “se arranja com a pessoa do pai”, mas principalmente da importância que essa mãe “dá à palavra dele” o papel que esse pai ocupa como sendo autoridade, ou seja, “do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da Lei.” (2010 p. 585) Lacan (2010) recorre também à religião para esclarecer sobre o significante do Nome-do-Pai, dizendo que só é possível atribuir a procriação ao pai a partir de um significante puro e que seja reconhecido como tal que não se trata do pai real ou do pai natural, trata-se aí de um pai na esfera simbólica. É a falta de reconhecimento do Outro que o sujeito passa a excluí-lo.
93 Lacan dá extrema importância ao complexo de castração nas psicoses, haja visto que, se o sujeito não simbolizar tal complexo, não haverá nada que o barre e, pelo fato do complexo de castração se tratar de uma “fase normativa da assunção de seu próprio sexo pelo sujeito” (LACAN, 1998, p. 550), se não houver um corte, também estará prejudicada a constituição do sujeito incluindo a questão de sua sexualidade. Trata-se da função do falo “sempre a ser reencontrado como único.” (p.550) Conforme visto anteriormente, há um fracasso na relação do sujeito que se constituirá psicótico e a imagem que constituiu de seu pai, neste sentido, passa a ser interessante pensar a questão da metáfora paterna que não se instaura, já que o sujeito não reconhece o Outro, trata-se de uma evocação inconsciente de “uma significação que só é evocada pelo que chamamos de metáfora, precisamente a metáfora paterna.” (p. 561) “Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.” (p. 584) Sobre a foraclusão do significante do Nome-do-Pai, Lacan (1998) nos diz que através da carência “do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica” (p. 564) É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá inicio à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante. (p. 584) Sobre a exclusão do Outro, Lacan (2010) expõe que trata-se de uma exclusão que se nota na fala delirante a qual se articula pela ordem delirante, cito: “ele a restituiu, não como se crê, por dedução e construção, mas de uma forma pela qual veremos
94 ulteriormente que ela não deixa de ter relações com o próprio fenômeno primitivo.” (p. 67)
Conclusão Conforme visto anteriormente, um fator marcante na constituição das psicoses se trata da foraclusão do Nome-do-Pai no momento em que o sujeito deveria perpassar pelo complexo de Édipo pela via do complexo de castração. Cabe aqui deixar uma questão: como seria possível que o sujeito que esteja se constituindo como psicótico possa encontrar um significante em que possa localizar nele uma inserção no campo do Real de uma maneira que não seja exclusivamente pela via do delírio?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DARMON, M. Ensayos acerca de la topología lacaniana. 1 ed. Buenos Aires: Letra Viva, 2008. LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 537-590. LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
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RESPOSTA DE ANALISTA E DESEJO DE ANALISTA Sandra Tolentino da Cunha8
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Este trabalho é o produto do meu percurso de formação à partir da proposta deste espaço de transmissão da psicanálise com o tema Resposta de analista. O texto foi construído juntamente com a singularidade marcada por uma série de repetições que em mim (re) soaram. Assim, o que me proponho a apresentar é uma articulação entre resposta de analista e desejo de analista, tomando a resposta enquanto responsabilidade e desejo de analista enquanto função, na relação do amor transferencial presente em uma análise. Não se trata aqui do desejo do analista (sujeito), o uso da preposição -de- ao invés de+o- (do) destaca a função do genitivo gramatical utilizado como possessão na língua portuguesa (Assadi, T. 2012). Segundo Freud a tarefa do analisando é de associar livremente e do analista escutar de modo isento, sem deixar que suas questões inconscientes ainda não resolvidas interfiram nessa função (Freud, 1912). Já em Freud, no caso Dora, podemos reconhecer que há na analise algo que inclui o analista, que este tem um papel nesta experiência, esta que acontece sob transferência. “A simples presença do analista já introduz a dimensão do diálogo” (Lacan, 1951, pg. 215). 8
Psicanalista, pesquisadora da Rede Sintoma e Corporeidade e participante das Formações Clínicas do FCL-SP.
96 Se Freud coloca a transferência como algo da repetição de um modelo infantil que é reeditada na relação analisante e analista, Lacan na Conferência Intervenção sobre a transferência proferida no chamado Congresso dos Psicanalistas de Língua Românica em 1951 propõe “definir em termos de pura dialética a transferência chamada negativa no sujeito, como sendo uma operação do analista que a interpreta” (Lacan, 1951, pg. 217). Dando assim um estatuto de conceito já que tem uma função na práxis da psicanálise, não se trata de um obstáculo, mas de algo que diz da posição do sujeito na estrutura à ser interpretado. Ao desenvolver a teoria da transferência Lacan recorre ao texto filosófico O Banquete de Platão a partir do tema do amor. No Banquete, encontro festivo na casa de Agaton, poeta trágico ateniense, estava presente Sócrates - o mais importante dentre os convidados; Aristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, um jovem retórico; Pausânias, amante de Agaton; o médico Eriximaco; Aristófanes, comediante que sempre buscava ridicularizar a Sócrates; e, Alcebíades, general e político. Sócrates, ao tomar a fala, intervém na proposta de cada um dos convidados, sua proposta é a de tecer um discurso sobre o amor, e sugere que, antes de falar sobre o amor e os benefícios que esse traria primeiramente defina-se o que é o amor. Sócrates afirma que amor é amor de algo, esse algo é por ele (o que ama) desejado e acrescenta que esse algo só é desejado quando falta, pois ninguém deseja algo que possui. Alcebíades chega ao encontro já em andamento e muda as regras do jogo propondo que, á partir daquele momento, se faça uma referência à pessoa sentada à direita de cada um e não mais ao amor. Dessa forma, ele estabelece o amor em ato já que sua proposta coloca em jogo a relação entre um e outro. Esta alteração na cena introduz algo novo no Banquete: o Agalma.
97 Em O Banquete, a afirmação de Sócrates de que não pretendia nada saber, a não ser sobre Eros (desejo) é tomada por Lacan para dizer do lugar do analista como sujeito suposto saber.
É o saber de Sócrates sobre o desejo que desperta a paixão de
Alcebíades. Alcebíades supõe que Sócrates contém o agalma, o objeto precioso, o segredo do desejo é isso que o move. A introdução do algama traz para cena a dualidade interna ao par amoroso, ou seja, as distintas posições ocupadas por cada um: Erómenos, o amado, aquele que tem alguma coisa e Erastes, o amante, aquele que vai em busca daquilo que lhe falta, no entanto o que falta a um não é o que esta escondido no outro. Sócrates se coloca como faltante e assim seu desejo aponta para o desejo de Alcebíades. Neste texto Lacan toma o desejo como desejo do desejo do Outro e o analista é sujeito suposto saber por ser sujeito do desejo. Assim busca exemplificar não um psicanalista, mas, um modelo de uma posição relativa a este é pelo fato de haver transferência que o analista esta implicado na posição daquele que contém o agalma (Lacan, 1960/ 1961, pg. 194). Nesta experiência o analisante acredita encontrar na pessoa amada do analista o objeto perdido desde sempre, o agalma - objeto precioso, esse algo do outro que nos apreende, nos captura. É isto que esta implícito nesta relação transferencial de amor; o sujeito supõe que o outro, esse ser amado, tem o que lhe falta, sabe sobre seu sofrimento. Lacan articula ao conceito de transferência a noção de sujeito suposto saber. Se há um sujeito suposto saber há transferência e segundo Lacan, “aqui o desejo do analista é função essencial” (Lacan, 1964, pg. 222). No seminário Os quatro conceitos fundamentas da psicanálise de 1964, Lacan coloca que “O sujeito só é sujeito suposto saber por ser sujeito de desejo” (Lacan, 1964, pg. 239). Sócrates ao não atender a demanda de saber de Alcebíades coloca em jogo o desejo de analista. Isso aponta para a situação analítica em torno de dois desejos. No
98 mesmo seminário Lacan reafirma “Por traz do amor dito de transferência, podemos dizer que o que há é afirmação do laço do desejo do analista com o desejo do paciente”. (...) “É o desejo do paciente, sim, mas no seu encontro com o desejo do analista” (Lacan, 1964, 240). Desta forma a dialética do desejo do sujeito se constitui pelo desejo do Outro. Lacan, considerando que a experiência analista/ analisante é uma relação de amor que inclui uma relação de desejo, entendia a transferência a partir do lugar de “a”, de objeto parcial, o agalma na relação de desejo, ou seja, aquilo que tem valor de enigma. No seminário sobre a transferência, em 1960, Lacan descreve o desejo de analista e também sua responsabilidade na percepção da posição do sujeito na situação analítica: “... é no próprio princípio da situação que o sujeito é introduzido como digno de interesse e de amor, éroménos. É para ele que se está ali. Este é o efeito – se podemos dizer manifesto. Mas existe um efeito latente, que está ligado a sua nãociência, a sua insciência. Insciência de quê? – daquilo que é justamente o objeto de seu desejo de um modo latente, quero dizer, objetivo, ou estrutural. Este objeto já está no Outro, e é na medida em que é assim que ele é, quer o saiba, quer não, virtualmente constituído como érastes. Simplesmente por esse fato ele preenche essa condição de metáfora, a substituição pelo érastes do éroménos, que constitui em si mesma o fenômeno do amor. (...) É aí que se coloca a questão de desejo do analista, e, até certo ponto, de sua responsabilidade” (Lacan, 1960/ 1961, pg. 195). Para Lacan, este é o amor de transferência e o analista se apercebendo deste lugar deve exercer sua função de desejo de analista, se colocando como lugar de objeto causa de desejo, não permanecendo, assim, no lugar de objeto parcial para o sujeito. Reendereçando a suposição de saber ao analisante/ ao inconsciente deste.
99 Ao analista cabe suportar o seu não saber da particularidade do desejo do analisante, posição esta que remete a castração. É Permitir surgir o desejo do sujeito, no deslizamento na cadeia significante, no deslocamento de um objeto ao outro já que nenhum irá completar o sujeito. É sair deste lugar ideal para o lugar de resto, sem importância, sem função. Sobre a posição do analista para dar conta do poder da transferência cito Lacan no seminário da transferência “Essa posição, eu a distingo dizendo que no próprio lugar que é o seu, o analista deve se ausentar de todo ideal do analista. (...) O analista não deve ser totalmente ignorante de um certo número de coisas, isso é certo. Mas não é isso, de modo algum, que entra em jogo em sua posição essencial” ( Lacan, 1960/ 1961, pg. 371). Até mesmo porque “Não há objeto que tenha maior valor que um outro – aqui esta o luto em torno do qual esta centrado o desejo do analista”
( Lacan, 1960/
1961, pg. 381). Desejo de analista é desejo advertido, advertido da impossibilidade do encontro com o objeto e isso é resultado do que restou da destituição subjetiva promovida em sua análise pessoal; assim prevenido do analista permanecer enquanto sujeito no decorrer da análise. Lacan faz algumas referências sobre a contratransferência e a responsabilidade do analista no seminário sobre a angústia. Neste seminário citando um artigo de Margaret Little, “A Resposta Total do Analista”, Lacan comenta: “Ela quer apenas considerar a resposta total do analista, ou seja, tudo – tanto o fato de ele estar ali como analista, e de poderem escapar-lhe coisas de seu próprio inconsciente, quanto ao fato de que, como todo ser vivo, ela experimenta sentimentos durante a análise, e de que, por último – ela não o diz assim, mas é disso que se trata –, sendo o Outro, ela está numa posição de inteira responsabilidade. Portanto, é com esse imenso Total de sua posição
100 de analista que ela pretende expor-nos, honestamente, o que concebe ser a resposta do analista” (Lacan, 1962/ 1963, pg. 157). No mesmo seminário Lacan descreve que a angústia pode ser a mola propulsora da transferência. No texto dessa mesma autora, Lacan comenta uma passagem em que uma intervenção da analista “evidenciou para a paciente que havia na analista algo chamado angústia” (Lacan, 1962/ 1963, pg. 159). Lacan afirma que a angústia da analista designou na análise o lugar da falta. A angústia, este “enxerto”, diz Lacan, abre uma dimensão que permite ao sujeito apreender-se como falta. Assim, pode haver a transferência (Lacan, 1962/ 1963, pg. 159). Cito Lacan no seminário da angústia (1962/63) “É pelo fato de o desejo do analista suscitar em mim a dimensão da expectativa que sou apanhado na eficácia da análise. Eu gostaria muito que ele me visse como isso ou aquilo, que fizesse de mim um objeto” (Lacan, 1962/ 1963, pg. 170). Quando um analista é convocado a ocupar, na transferência, este lugar de objeto causa de desejo tem a responsabilidade de fazer operar a função desejo de analista, e desejo de analista é efeito da analise de cada um, é desejo esvaziado de conteúdo, é desejo de que a análise aconteça, desejo de colocar o paciente para associar livremente; sabendo que, tomando aqui a fala de Ângela Mucida
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na Jornada de abertura das
atividades deste Fórum neste ano de 2012, “O que se pede a um psicanalista é que nos livre do sintoma e do Real, logo é preciso fracassar. A análise se trata do fracasso, pois não há nada que obture a falta”. Assim sendo, a transferência é sustentada a partir de um saber impossível. Ao analista cabe dizer em ato - na e pela transferência - que o Outro não existe, reendereçar a suposição do saber ao sujeito - ao seu inconsciente, colocar em causa o desejo do 9
Psicanalista, Membro do Fórum do Campo Lacaniano – BH, Membro da Escola de psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. A.M.E. – EPFCL – FCL-BH
101 analisante, levar o sujeito a ter suportado a resposta fundamental (sinthoma), ter extraído o saber fazer com isso (com seu sinthoma).
Referências bibliográficas: ASSADI, T. (2012) – De uma Siberiética: resposta de Analista? VII Encontro da Internacional dos Fóruns e da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, Rio de Janeiro, julho 2012. FREUD, S. (1912) - Obras Completas, vol. XII - Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), Rio de Janeiro, Imago Editora, 1987. LACAN, J. (1951) - Conferência Intervenção sobre a transferência proferida no chamado Congresso dos Psicanalistas de Língua Românica em 1951 - in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. LACAN, J. (1960/1961) - Seminário livro VIII – A transferência, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1992. LACAN, J. (1962-1963) - Seminário livro X – A angústia (1962-1963), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. LACAN, J. (1964) - Seminário livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.