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O necessário e o contingente no cartel Welson Barbato
As propriedades das operações inerentes ao Cartel e seus efeitos lógicos giram em torno do saber e de sua vocação metonímica. O dispositivo é sustentado no campo transferencial epistêmico que, por qualidade estrutural, supõe um saber já instituído que se modaliza simultaneamente como esteio peculiar da transferência e também como seu agente invertido e dialético que, sob determinadas condições, permitirá sua interpretação. A materialização desse enunciado exige a imprescindível escansão da sinonímia - clássica em nossa práxis - entre o desejo de saber e a demanda de conhecer ou de trivialmente reproduzir. O relevante é que tais demandas conformam algo do retorno da própria constituição neurótica que, grosso modo, estabelece e legitima - a partir do ordinário da estrutura - posições discursivas universalistas, logo, não condicionadas (LACAN, 1969-70). Esses efeitos discursivos se alicerçam nos ditos supostos do saber/do desejo/do gozo do Outro, em detrimento dos dizeres e das consequências de sujeito. Sabemos que o Cartel não se restringe e nem se define como palco de ensino, onde uma doutrina ou um método são aprendidos para linearmente serem empregados. Isso formataria perigosamente a clínica analítica (e sua transmissão) como mera teoria aplicada, carente, portanto, de formalizações, de particularidades de estilo e de possíveis e benvindos ineditismos políticos. Em suma, a falha e as inconsistências falhariam. Se a demanda universalista é estrutural, pois se manifesta como semblante de evitação de descontinuidades, a metodologia do Cartel convidaria a uma queda nesse gênero de saber, representada ou autorizada, por exemplo, na indagação contida no voto de cada cartelizante. A priori, a pergunta de cada um produziria uma abertura no tema do Cartel, tema este que se dispõe como um discurso anterior, necessariamente (pré) estabelecido no domínio da psicanálise. No entanto, a experiência analítica revela que a indagação em si mesma não basta para contingenciar e transitivar um dito. O primeiro tempo da interpretação - além da interrogação - comporta um segundo momento essencial: a implicação ou retificação subjetiva no tocante a um "texto vigente" (LACAN, 1958). Na aproximação alegórica da clínica com o Cartel, a ausência desse cálculo facilitará que na pesquisa e no estudo imanentes ao dispositivo, o contingente seja tomado como necessário, ou o relativo tomado como absoluto (GAUFEY, 2007). O resultado dessa falsa coalizão restringe qualquer produção ao paradigma nominativo e compromete eventuais sinais de particularidade. A retificação a um saber tomado como certeza, se assim posso dizer, inclui a passagem das inflexões das vozes verbais (passiva > ativa > reflexiva), e é causa e efeito de uma torção
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fundamental que se torna instrumento de transcendência da vivência do cartelizante no bojo da psicanálise. Essa transcendência, em tese, possibilita a transmutação de vivências em experiências, autenticando algo de transmissível e do possível da autoria - sempre diminuta, já que inevitavelmente todo discurso emana de um antecedente. O termo transcendência aqui deve ser lido no sentido filosófico, onde a "coisa" existente e pensada nunca se submeterá à apreensão plena, o que não é pouco. Retomando. A torção tem duplo vetor: o primeiro se origina na “experiência analisante” e deriva para o lugar de analista; o segundo parte deste último e reenvia indagações e recortes ao campo analítico, reiniciando o ciclo. Daí o Cartel e a particularidade de seu produto. Esse produto escrito questiona a linguagem e não coincide com ela, pois introduz algo da lógica. Tal manobra, de cunho dialético, criará buracos semânticos que favorecem o caminho para a topologia. Cabe, então, discutir nisso a arte e o refinamento tático e estratégico do mais-um no convite sem garantias ao "desuniverso" (LACAN, 1971), em contradição aos preceitos nominalistas. Temos, assim, a escansão entre o necessário e o contingente que, quiçá, dará margens a uma topologia de Cartel.
Referências Bibliográficas:
1.1 GAUFEY, G.L. (2007) El Notodo de Lacan, Consistencia lógica, consecuencias clínicas. Traducción Silvio Mattoni. Buenos Aires: Teoría y ensayo, 2007. p. 41-43 1.2 LACAN, J. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 604. p. 1.3 LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. p. 18-21 1.4 LACAN, J. (1971) O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 12 p.