Ciência, fé e sociedade

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CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE Michael Polanyi

Tradução de

Eduardo Beira

IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy

Inovatec (Portugal) 2014


EQUIPA DO PROJETO Eduardo Beira (www.dsi.uminho.pt/ebeira)

Senior Research Fellow, IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy (IST, Lisboa). Professor associado (convidado) da Escola de Engenharia da Universidade do Minho (2000-2012) e Professor EDAM (Engineering Design and Advanced Manufacturing) do programa MIT Portugal (2008- 2012). Engenheiro químico (1974, FEUP), foi gestor e administrador de empresas industriais e de serviços durante mais de vinte anos, depois de uma primeira carreira académica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Interesses académicos pelas questões de inovação, desenvolvimento, engenharia e tecnologia, indústrias “tradicionais”.

Ana Prudente

Designer de comunicação (Escola Superior de Arte e Design, 1999) Responsável pela imagem e design gráfico na Inovatec, Lda. (Portugal).

Mafalda Martins

Designer de comunicação (Escola Superior de Arte e Design, 2010).

Outubro 2014 ISBN: XXX-XXX-XXXXX-X-X

© University of Chicago Press, 1964

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OBRAS DE MICHAEL POLANYI Tradução de Eduardo Beira

Obras publicadas: A dimensão tácita (2010) O estudo do homem (2010) Conhecimento Pessoal. Por uma filosofia pós critica (2013) Ciencia, fé e sociedade (2014) Ciência e tecnologia. Uma seleção de textos (2013) (organizada por E. Beira)

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ÍNDICE PREFÁCIO - vii José Álvaro Carvalho INTRODUÇÃO - xi Eduardo Beira CONTEXTO E PERSPETIVA - 3 Michael Polanyi, 1964 página 5 —I— CIÊNCIA E REALIDADE - 33 I. página 35 II. página 42 III. página 47 IV. página 54 V. página 65 — II — AUTORIDADE E CONSCIÊNCIA - 71 I. página 73 II. página 82 III. página 98 IV. página 97 — III — DEDICAÇÃO OU SERVIDÃO - 109 I. página 111 II. página 115 III. página 131 IV. página 141 APÊNDICE - 149 1. Premissas da ciência, 151 2. Significância de novas observações, 160 3. Correspondência com a observação, 166 NOTAS - 173 Notas originais, 175 Notas do tradutor, 176



PREFÁCIO Os desenvolvimentos sociais e tecnológicos das últimas décadas estão associados a um reconhecer do papel do conhecimento na criação de riqueza e na melhoria das condições de vida das sociedades. O discurso de políticos e governantes enaltece este papel e as políticas nacionais e transnacionais procuram fomentar a criação de conhecimento científico e dirigir os esforços de investigação para problemas humanos e sociais sentidos como mais prementes ou ainda para áreas percecionadas como de potencial vantagem competitiva entre estados e associações de estados. Este desenvolvimento social assente no conhecimento reflete-se também num aumento significativo do número de pessoas dedicadas à investigação científica, ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, o que tem vindo a provocar alterações profundas na malha dos sectores da sociedade relacionados com a I&D&I e traz consigo novos desafios às comunidades de investigação. De entre esses desafios destacaria: a tendência para um tratamento indiferenciado dos processos de criação de conhecimento tecnológico (invenção) relativamente aos processos de criação de conhecimento científico (descoberta), como forma de legitimação da natureza científica dos primeiros; a obsolescência de formas tradicionais de comunicação e interação entre os membros de comunidades científicas resultantes das novas tecnologias da informação e da comunicação, permitindo o emergir de comunidades auto-organizadas em detrimento de plataformas organizacionais mais estruturadas; a necessidade de eficientes mecanismos de avaliação dos resultados de investigação, a nível individual, que permitam lidar com o “ruído” que resulta do considerável aumento de revistas científicas, de conferências e outros eventos científicos, e dos artigos nelas publicadas, aumento esse que tem vindo a afectar negativamente o papel cenvii


tral das publicações no debate em busca da validade científica; o reforço da importância de programas nacionais e transnacionais de financiamento das atividades de I&D&I, alinhados com as agendas políticas dos seus promotores, e os efeitos destas políticas. Todos estes desafios correspondem a questões de fundo sobre a natureza do conhecimento, dos processos de criação de conhecimento e do papel dos estados no influenciar das agendas de investigação. Questões que já se colocaram noutros tempos e noutros contextos. E que, nesses tempos e contextos, foram já objecto de reflexão profunda, e cujos resultados podem, e devem, servir de base à reflexão atual. Este livro de Michael Polanyi aborda precisamente estas questões. Michael Polanyi é um filósofo do conhecimento e da ciência especialmente interessante. Tem a particularidade de as suas reflexões filosóficas terem sido antecedidas pelo exercício da profissão médica e de uma carreira académica e de investigação na área das ciências ditas naturais. Acresce que esta carreira decorreu num período em que aquelas ciências, e particularmente a física e a química, viveram tempos de grande prolificidade e deram origem a criações - descobertas e invenções - que ainda hoje determinam as nossas vidas. Por outro lado, Michael Polanyi viveu tempos conturbados em que o mundo foi afetado por duas guerras de grande escala e impacto e em que a Europa foi marcada por regimes totalitários cuja autoridade se fazia também sentir na esfera da investigação científica. As reflexões de Michael Polanyi são assim fortemente informadas pelo conhecimento profundo, e prático, dos empreendimentos relacionados com a investigação nas ciências naturais; estimuladas pelas encruzilhadas trazidas pelas ameaças à liberdade e à segurança que marcaram a primeira metade do século 20; e robustecidas pela erudição de alguém que, na sua carreira académica, atravessou uma grande parte do espectro do conhecimento científico.

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Ao Eduardo Beira, tradutor para Português de mais este livro do Michael Polanyi, gostaria de deixar uma palavra de reconhecimento pelo importante contributo para as comunidades científicas resultante da chamada de atenção para a obra filosófica deste autor. E se as comunidades de língua Portuguesa são as principais beneficiadas com as suas traduções das obras de Michael Polanyi, não é despiciendo o contributo internacional das suas pesquisas sobre a vida e a obra do autor. João Álvaro Carvalho

(U. Minho)

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INTRODUÇÃO E CONTEXTO 1. A aventura incerta da ciência: descobrir Em 1937 Polanyi estaria provavelmente no seu gabinete na Universidade de Manchester quando pegou num típico bloco de apontamentos, com folhas amarelas, e escreveu, com a sua caneta habitual de tinta permanente, em cor preta, um conjunto de notas que ficaram preservadas para a posteridade nos arquivos1. Parecem ser o registo de um conjunto de pensamentos, um esforço por organizar e registar ideias para uso posterior, uma nota para lembrança futura. A primeira linha bem poderia ser um título: “a aventura de investigar” [“adventure of research”, no original], e é com esse mesmo nome que o documento aparece registado no guia da coleção2. Nessas notas, Polanyi parece querer invocar a incerteza e dificuldade da tarefa do cientista, ao escrever que investigar “é fazer apostas com dados viciados”, e recorre a uma analogia da caça - investigar não é um agradável passeio pela floresta, mas antes a aventura de caçar, que tem riscos, exige perspicácia, argúcia e intuição para descobrir o alvo, a partir de indícios dispersos: Investigar é um jogo que por si mesmo cria um desportista, incompatível com a prática antidesportiva de atirar a perdizes a correr à nossa frente ou lebres paradas. E nas linhas seguintes regista mais algumas ideias, onde abre a porta para a análise baseada na sociologia da ciência complementar os contributos da história da ciência, ao mesmo tempo que reconhece as diferenças entre a imagem pública da ciência e a realidade da vida de investigador: A iniciação à investigação é aprender a espreitar no mistério da criação. xi


O ar aprumado, domingueiro, da investigação, a realidade confusa, a qualificação da verdade. Cerca de dez anos depois, Science, Faith and Society estrutura as reflexões desta e de muitas outras notas de Polanyi sobre a organização da ciência e da sociedade, muitas delas já presentes nas notas escritas durante a década de 30 (porventura surpreendente, mas muitos manuscritos pouco depois da chegada de Polanyi a Manchester), e depois consolidadas nos escritos dos anos 40.

2. Um período complexo da vida de Polanyi (1933-1946) Science, Faith and Society foi a obra que marcou definitivamente uma viragem na carreira de Polanyi, como ele reconheceria mais tarde num texto autobiográfico3: Acredito que encontrei a minha própria vocação em 1946, quando decidi dedicar-me ao desenvolvimento de uma nova filosofia capaz de responder às necessidades dos nossos tempos. Polanyi terá então escrito a uma irmã dizendo que finalmente tinha resolvido a crise da sua vida, com que se debatera durante quarenta anos. Finalmente via claramente qual era a sua vocação e seria agora uma mera questão de viver e realizar essa vocação4. Em 1946, quando publica Science, Faith and Society, Polanyi conhecia certamente uma fase complicada da sua vida profissional, como aliás o admitiu implicitamente na citação anterior. Desde que emigrara para Manchester, em 1933, tinha dedicado mais de uma década a duas linhas de trabalho em “teoria social” - para além de uma produtiva cátedra de química física. Essas duas linhas de reflexão cruzaram-se muitas vezes e influenciaram-se mutuamente. xii


Numa dessas linhas de reflexão predominavam as questões da organização da ciência, das suas premissas e autoridade, e a questão do planeamento da ciência. Na outra linha de reflexão predominavam as questões de organização e funcionamento da sociedade e da economia nos regimes capitalistas e comunistas, com o objetivo de reabilitar uma visão liberal da sociedade democrática (para a qual Polanyi entende ser indispensável abandonar a ideia clássica do laissez faire5). Esta última linha deu origem a um filme sobre a circulação monetária e os ciclos macroeconómicos (exibido em 1940)6 e um livro (Full Employment and Free Trade) publicado em 19457. No referido texto autobiográfico, Polanyi dá sinais da importância que ele próprio atribuía a essa linha de trabalho, vinte anos depois, ao referir explicitamente que Passarei também adiante do meu trabalho sobre a economia soviética (1935) e de o meu Full Employment and Free Trade (1945), onde pela primeira vez se derivou, a partir da teoria keynesiana, a política de financiamento do deficite como o baluarte do capitalismo. Revendo os manuscritos deste período é fácil constatar o enorme esforço de escrita e reescrita, muito do qual nunca foi publicado, quer na forma de notas pessoais8 como de notas ou textos completos de conferências, palestras e outras intervenções (inclusivé em jornais), que Polanyi desenvolveu nesse período. Para Polanyi, este esforço de compreender o mundo e a sociedade através dos seus mecanismos económicos, e as implicações sobre o desenho de políticas públicas de uma sociedade democrática e liberal, era então a linha dominante do seu esforço de reflexão nesses anos, obrigando-o a envolver-se profundamente em domínios fora da sua área científica, embora na realidade isso o afastasse cada vez mais da investigação em química, que era afinal o domínio onde tinha uma cátedra na universidade. Em Março de 1948, a universidade facilita-lhe a saída da cátedra de física química para uma nova cátedra

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de estudos sociais9 - o sucesso de Science, Faith and Society não foi displicente para esse episódio. Science, Faith and Society é o resultado da primeira linha de reflexão referida, mais ligada à filosofia da ciência e à exploração do modelo de comunidade ajustada entre si por iniciativas independentes e livres dos seus membros10. Para se compreender a carreira de Polanyi, julgamos ser relevante o facto desta obra ter sido publicada depois de Full Employment and Free Trade, pois mostra a importância que tiveram a reflexão e o trabalho de Polanyi sobre a segunda frente de trabalho referida nesse período, que terá sido o período formativo das suas fases seguintes como filósofo. Apesar das suas obras futuras terem sido muito mais na continuidade da linha de Science, Faith and Society, o trabalho económico e social de Polanyi no período de 1933 a 1946 não foi um equívoco ou um esforço perdido - foi um contributo indispensável para alargar o seu perímetro de reflexão para além das fronteiras da filosofia da ciência e para o alargar para o mundo das ideias e da sociedade em geral.

3. Do cientista ao filósofo humanista As Riddell Memorial Lectures foram criadas em 1928 para comemorar Sir John Walter Buchanan-Riddell (1849-1924), aristocrata britânico de linhagem antiga e que se distinguiu como jurista. O evento pretende discutir as relações entre a religião e o pensamento contemporâneo, num formato de três lições em três dias consecutivos. A iniciativa continua ainda hoje em dia a ser um acontecimento importante e prestigiado, agora promovido pela Universidade de Newcastle, onde um comité presidido pelo vice chanceler da universidade e pelo bispo de Newcastle seleciona anualmente qual o orador a convidar.

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Polanyi foi convidado para o evento de 1946, que decorreu na Universidade de Durham, em Newcastle. Três anos antes (em 1943) o palestrante tinha sido o influente escritor e académico C. S. Lewis (1898-1963), e daí resultou um seus dos livros mais conhecidos e citados (The abolition of man). No ano anterior a Polanyi, 1945, tinha sido John Baillie (1886-1960), teólogo escocês e o livro resultante foi What is christian civilization?. No ano a seguir a Polanyi, 1947, foi a vez de A. D. Ritchie (1891-1967), filósofo inglês, de que resultou a obra Science and politics11. Em Science, Faith and Society vemos o filósofo a emergir. Pode-se argumentar que o autor ainda é um cientista intimado por uma futura construção filosófica, cujas potencialidades começa a antever e a explorar. A obra é fortemente influenciada pela reflexão anterior de Polanyi sobre a organização e gestão da ciência. Mas, a partir daí, abre os caminhos que depois seriam consolidados na sua grande obra, Personal Knowledge (1958)12. O papel dos julgamentos pessoais do cientista na construção das teorias e na avaliação da evidência (positiva ou negativa), a importância das convicções pessoais no conhecimento, a ciência como uma tradição dinâmica e auto regeneradora e como comunidade sem uma autoridade central, a liberdade democrática como fundamental para uma sociedade onde a ciência e o conhecimento possam ser desenvolvidos, a par da rejeição do planeamento e da ciência puramente utilitária, assim como de de todos os totalitarismos, são ideias fundamentais da visão polaniana que aparecem de forma sistemática na obra de 1946. Nesta obra começa a definir-se o desafio frontal à visão (então) dominante de um conhecimento científico puramente objetivo, de base empírica, absolutamente certo e seguro, e a introduzir antes um conhecimento em que o julgamento, a intuição e as convicções pessoais têm também um papel relevante. Cerca de dez anos depois, quando publica Personal Knowl-

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edge, é já o filósofo que fala e introduz uma filosofia integrada baseada no conhecimento pessoal, em que aparecem explicitamente os conceitos do conhecimento tácito e as suas implicações epistemológicas num quadro conceptual onde se integram os processos de conhecer e as convicções pessoais13. Quando publica The tacit dimension, em 1966, obra onde refina os mecanismos tácitos do conhecimento e as suas implicações, vemos já o filósofo a olhar para a ciência e para o mundo. Em vinte anos o cientista passara a filósofo reconhecido pela originalidade do seu pensamento e tinha desenvolvido o programa que estabelecera depois aquando da publicação de Science, Faith and Society. Talvez por isso esta sua obra seja muitas vezes considerada como o ponto de entrada mais acessível para uma introdução ao pensamento de Polanyi. Depois de publicar Personal Knowledge, Polanyi escreveu uma extensa introdução para uma nova edição (1964) de Science, Faith and Society, a que deu o título de “Contexto e perspetiva”, uma importante releitura crítica da sua obra anterior, depois dos desenvolvimentos conseguidos em Personal Knowledge. Esse texto está também incluído nesta tradução, antes da versão original da obra com as três lições de 1946. 4. Agradecimentos Agradecemos uma vez mais a ajuda de Mª Leonor Fernandes na revisão do texto. Claro que a responsabilidade por todos os erros pode apenas ser nossa. Agradeço também a autorização de John Polanyi, gestor dos direitos editoriais de Michael Polanyi. Eduardo Beira

Areias (Carrazeda de Ansiães) Setembro de 2014

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NOTAS: 1. Original no arquivo documental de Michael Polany, depositado na Joseph Regenstein Library da Universidade de Chicago (RPC 25:15) 2. ver Cash (1996) 3. ver entrada sobre Michael Polanyi em Wakeman (1975), p. 1151-1153. O manuscrito (RPC 38:8) foi escrito em 1966. 4. conforme os biógrafos de Polanyi, Scott e Moleski (2005), p. 200 5. Polanyi foi muito ativo nos círculos de pensamento liberal, logo que chegou a Manchester. A sua crítica ao pensamento clássico liberal (filosofia que denuncia como “gravemente deficiente”), assim como a sua proposta de renovação do pensamento liberal, aparece pela primeira vez num texto de fevereiro de 1937 para uma conferência na Manchester Political Society: “Popular education in economics”, que argumentamos tratar-se de um texto fundacional do pensamento social de Polanyi e que não tem sido. Ver Beira (2012). Três anos depois Polanyi escreveu uma nota, por publicar, sobre o “ideal liberal” (manuscrito em RPC 26:3): “parcelas independentes de recursos pilotadas por donos individuais e usados para negociar com vista à obtenção de manifestas vantagens pessoais”. 6. O filme pode ser visionado na página https://sites.google. com/site/ebeira/pol1b, mantida por E. Beira, onde também se incluem vários recursos associados ao filme. Ver também Beira (2013). 7. Na introdução ao livro, Polanyi associa claramente o livro e os seus esforços para encontrar um método de representação do modelo macroeconómico, através do filme referido. Este livro conheceu uma segunda edição em 1948, no Reino xvii


Unido, e ainda uma edição americana (com um prefácio do economista Gottfried von Haberler, da Universidade de Harvard), em 1948, pela MacMillan. 8. Na autobiografia referida, Polanyi parece sugerir a possibilidade desses textos virem posteriormente a ser publicados: “Passarei adiante dos meus principais trabalhos científicos entre 1918 e 1948. As minhas notas, quando publicadas, mostrarão como esse trabalho continuou a beneficiar, e também a sofrer, da minha formação defeituosa e de especulações excessivas”. 9. ver Scott e Moleski (2005), p. 212 10. Tema que Polanyi explora já em Science, Faith and Society, e reiterado noutros ensaios, especialmente em Polanyi (1962). Este ensaio sobre a república da ciência foi republicado em 2000 como um clássico da revista (Minerva). 11. Curiosamente as carreiras de Michael Polanyi e de Arthur Ritchie não se cruzaram apenas nas Riddell Lectures. Richtie tinha também um passado de químico (química fisiológica) e foi professor na Universidade de Manchester, onde regeu uma cátedra de filosofia entre 1937 e 1945, logo nos tempos de Polanyi em Manchester, antes de passar para a Universidade de Edinburgo. 12. Polanyi publicou em 1951 uma outra obra de transição, The Logic of Liberty, onde claramente se entrelaçam e misturam as duas linhas de reflexão referidas. Depois desta obra deixam de aparecer os temas económicos, por si. 13. As relações entre as várias convicções (e tipos de fé) e os mecanismos tácitos de conhecer foram recentemente exploradas por Richard Gelwick (2014)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Beira, E., “Michael Polanyi (1937): Popular Education in Economics”, Working paper WP 124 (2012), U. Minho Beira, E., “Rediscovering the economic film by Michael Polanyi (1940)”, Working paper WP 129 (2013), U. Minho Cash, J., “Guide to the Papers of Michael Polanyi”, Tradition & Discovery, XXIII, No.1 (1996-97) 5-47 Gelwick, R., “From Tacit Knowing to a Theory of Faith”, Tradition and Discovery, XLI (1) (2014) 10-20 Polanyi, M., Full Employment and Free Trade, Cambridge University Press, 1945 Polanyi, M., Science, Faith and Society, Oxford University Press, 1946; University of Chicago Press, 1964 Polanyi, M., The Logic of Liberty. Reflections and Rejoinders, University of Chicago Press, 1951 Polanyi, M., Personal Knowledge. Towards a post critical philosophy, The University of Chicago Press, 1958 Polanyi, M., The Tacit Dimension, Doubleday, 1966 Polanyi, M., “The Republic of Science: its political and economic theory”, Minerva, I (1) (1962) 54-73; republicado em Minerva, 38 (2000) 1-32 Scott, W. e M. Moleski, Michael Polanyi. Scientist and philosopher, Oxford University Press, 2005 Wakeman, J., World Authors 1950-1970, The H. W. Wilson Company, New York, 1975

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CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE MICHAEL POLANYI



CONTEXTO E PERSPETIVA MICHAEL POLANYI 1964



CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

CONTEXTO E PERSPETIVA Michael Polanyi, 1964

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m agosto de 1938 a British Association for the Advancement of Science fundou uma divisão para as relações internacionais da ciência, de que esperava uma orientação social para o progresso da ciência. Tinha então alastrado um movimento para o planeamento da ciência, que se tinha mesmo tornado proeminente entre os cientistas preocupados com as questões de políticas públicas. Um pequeno número de cientistas, a que eu pertencia, opôs-se tenazmente a esse movimento. Em dezembro de 1945 esta divisão convocou uma reunião para discutir o planeamento e pediu-me para fazer a intervenção de abertura. Na minha intervenção renovei a minha crítica sobre o planeamento e defendi a independência tradicional da inquirição científica. Esperava uma reação hostil, mas, para minha grande surpresa, os oradores e a audiência mostraram-se a favor de uma ciência livremente orientada por si própria. Desde então o movimento pela planeamento 5

RENOVEI A MINHA CRÍTICA SOBRE O PLANEAMENTO E DEFENDI A INDEPENDÊNCIA TRADICIONAL DA INQUIRIÇÃO CIENTÍFICA


MICHAEL POLANYI

OS PROBLEMAS TEÓRICOS QUE LEVANTOU CONTINUAM AINDA HOJE EM DIA CONNOSCO. FAZEM PARTE DO IMPACTO DA REVOLUÇÃO RUSSA SOBRE AS MENTES DOS HOMENS

da ciência foi-se reduzindo à insignificância, no Reino Unido, mas os problemas teóricos que levantou continuam ainda hoje em dia connosco. Fazem parte do impacto da revolução russa sobre as mentes dos homens, estejam eles onde quer que estejam. Depois da revolução, a investigação científica na Rússia soviética dividiu-se em duas secções. Uma foi conduzida à luz do materialismo dialético, sob a liderança da academia comunista fundada em 1926. Os membros dessa academia estavam confinados aos membros do partido. Os cientistas da outra secção continuaram a trabalhar livremente e em constante ligação com os cientistas ocidentais. Em 1932 deu-se uma mudança em ambos os lados. O governo soviético repudiou as especulações selvagens da academia comunista e cobriu-as de ridículo. Ao mesmo tempo, no entanto, a outra parte da ciência, até aí conduzida por linhas tradicionais, foi obrigada a reconhecer a supremacia do materialismo dialético. Pode-se encontrar uma declaração sobre isso num editorial da nova revista alemã de física pelos soviéticos, que foi fundada nesse ano, editorial que foi aí introduzida por indicação do próprio partido. O biólogo russo mais distinto, N. I. Vavilov, nesse mesmo ano foi induzido a denunciar a perseguição soviética da genética, tal como praticada no ocidente e a aceitar, por sua vez, uma visão da ciência planeada ao serviço das necessidades económicas, e tal como declarado pela conferência sobre o 6


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

planeamento da investigação sobre seleção genética, realizada em Leninegrado. Na Páscoa de 1935, visitei N. I. Bucarine em Moscovo. Embora estivesse a caminho da sua queda e execução, três anos depois, era ainda um dos líderes teóricos do partido comunista. Explicou-me que a distinção entre ciência pura e aplicada, tal como é feita nos países capitalistas, era devido a um conflito interno desse tipo de sociedade, que privava os cientistas desse tipo de consciência das suas funções sociais e que lhes dava a ilusão da ciência pura. Logo, para Bucarine, a distinção entre ciência pura e aplicada não era aplicável na União Soviética. Mas isso não implicava qualquer limitação sobre a liberdade da investigação. Os cientistas seguiriam livremente os seus próprios interesses na U.R.S.S., mas devido à harmonia interna da sociedade socialista, seriam inevitavelmente guiados pelas linhas de investigação que beneficiariam o plano quinquenal em vigor. O planeamento compreensivo de toda a investigação devia ser visto como uma mera confirmação consciente da harmonia pré-existente entre os cientistas e os objetivos sociais. Em 1935 eu poderia ainda sorrir acerca desse mistério, mas nunca suspeitei que veria muito em breve as terríveis consequências práticas disso. A perseguição de Valivov às mãos de T. D. Lysenko já tinha começado. Levou à sua demissão em 1939 e depois à sua prisão e morte num campo, por volta de 7

O PLANEAMENTO COMPREENSIVO DE TODA A INVESTIGAÇÃO DEVIA SER VISTO COMO UMA MERA CONFIRMAÇÃO CONSCIENTE DA HARMONIA PRÉEXISTENTE ENTRE OS CIENTISTAS E OS OBJETIVOS SOCIAIS


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1943. Esta campanha criou a confusão entre os biólogos e paralisou completamente várias áreas da biologia na Rússia soviética, desde 1930 até bem depois da morte de Estaline em 1953. As ciências físicas sofreram menos. Na altura em que estamos a escrever, as ciências naturais já se libertaram quase completamente da subserviência ideológica ao marxismo, que, no entanto, continua a ser imposta ao estudo da economia, da sociologia e das humanidades. Disse que em Inglaterra a campanha pelo planeamento da ciência, evocada pelo constrangimento à filosofia marxista na União Soviética, nunca se tornou numa ameaça séria. Mas a perturbação mental causada foi muito profunda. Um cientista distinto como Lancelot Hogben escreveu: Do ponto de vista do homem sobre a terra, esta continuou em repouso, até que se descobriu que os relógios de pêndulo perdiam tempo em locais próximos do equador. Depois da invenção de Huyghens, o movimento axial da terra tinha-se tornado um fundamento socialmente necessário para a exportação colonial de relógios de pêndulo. Muitas teorias absurdas foram propostas no famosos livro de Hogben, Science for the Citizen (1938), que teve uma grande circulação. No meu livro The logic of liberty (1951) 8


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tratei a considerável literatura à volta desse tema. É difícil fazer ouvir as posições contrárias. Os que conheciam acerca da perseguição dos biólogos na União Soviética não divulgariam essa informação. Os meus escritos, assim como os de J. R. Baker, desde 1943, denunciaram essa perseguição mas foram postos de lado como sendo propaganda anticomunista. A organização da ciência na União Soviética era considerada como um exemplo a seguir. As reuniões públicas, frequentadas pelos cientistas britânicos mais distintos, respondiam a esse apelo. Perante estes acontecimentos, dei conta da fraqueza da posição que eu defendia. Quando li a última defesa de Vavilov contra as teorias de Lysenko, em 1939, e vi que evocava a autoridade dos cientistas ocidentais, tenho que reconhecer que ele estava a apelar a uma autoridade contra uma outra autoridade: para a autoridade aceite no ocidente contra a autoridade aceite na Rússia soviética. A reunião tinha sido convocada pelos editores do jornal Under the Banner of Marxism. A sua aceitação da autoridade de Lysenko baseava-se na sua filosofia da ciência. Que filosofia da ciência é que nós tínhamos no ocidente para lhe opor? Como justificávamos a sua aceitação? Seria aceitável essa justificação? Com que fundamentos? O marxismo desafiou-me a responder a essas questões: os ensaios que aqui voltamos a publicar foram escritos como 9


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TAL COMO A TEORIA MARXISTA, A MINHA EXPLICAÇÃO DA NATUREZA E A JUSTIFICAÇÃO DA CIÊNCIA INCLUEM TODA A VIDA DO PENSAMENTO NA SOCIEDADE A JUSTIFICAÇÃO ÚLTIMA DAS MINHAS CONVICÇÕES RESIDE SEMPRE EM MIM PRÓPRIO.

CONSIDERAR QUE UMA LEI NATURAL É VERDADEIRA É ACREDITAR NA SUA PRESENÇA E QUE ESTA SE MANIFESTARÁ NUMA VARIEDADE INDETERMINADA E AINDA DESCONHECIDA, E PORVENTURA IMPENSÁVEL, DE CONSEQUÊNCIAS

uma resposta. Tal como a teoria marxista, a minha explicação da natureza e a justificação da ciência incluem toda a vida do pensamento na sociedade. Nos meus últimos escritos procurei uma imagem cósmica. Mas a justificação última das minhas convicções reside sempre em mim próprio. Num certo ponto terei sempre de responder “porque é que acredito que é assim”. É por isso que falei de ciência, fé e sociedade. Em primeiro lugar analisei isoladamente o processo de conhecer, tal como ele nos é habitual. Há um número infinito de fórmulas matemáticas que se ajustam a uma qualquer série de observações numéricas. Quaisquer observações futuras podem também ser explicadas por um número infinito de fórmulas. Para além disso nenhuma função matemática que resulte de um ajuste de leituras de instrumentos pode vir a constituir uma teoria científica. Leituras futuras dos instrumentos são imprevisíveis. Mas isto é apenas um sintoma de uma inadequação mais profunda, em particular o facto de o conteúdo explícito de uma teoria não explicar a orientação que dá para descobertas futuras. Considerar que uma lei natural é verdadeira é acreditar na sua presença e que esta se manifestará numa variedade indeterminada e ainda desconhecida, e porventura impensável, de consequências. Corresponde a olhar para a lei como uma característica real da natureza que, como tal, existe para além do nosso controlo. 10


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Encontramo-nos aqui com uma nova definição de realidade. Real é aquilo que esperamos que se venha a revelar, por si próprio, indeterminadamente, no futuro. Logo, uma afirmação explícita apenas se pode relacionar com a realidade em virtude de um coeficiente tácito que lhe está associado. Esta conceção da realidade e do conhecimento tácito da realidade estão subjacentes a todos os meus escritos. Se as regras explícitas apenas podem operar em virtude de coeficientes tácitos, então temos que abandonar a ideia de exatidão. Qual o poder de conhecer que pode ocupar o seu lugar? O poder que exercemos no ato da perceção. A capacidade dos cientistas para compreender a presença de formas últimas como pedaços da realidade na natureza só difere da nossa capacidade de perceção corrente porque consegue integrar formas aí presentes em termos que a perceção das pessoas ordinárias dificilmente consegue tratar. O conhecimento científico consiste em discernir Gestalten [formas] que são aspetos da realidade. Chamei-lhe “intuição”; em escritos posteriores descrevi isso como o coeficiente tácito de uma teoria científica, pelo qual esta se relaciona com a experiência, como uma parte da realidade. Assim, antecipa manifestações indeterminadas da experiência com que se relaciona. Qualquer interpretação da natureza, seja científica, não científica ou anti científica, baseia-se numa conceção intuitiva da natureza 11

REAL É AQUILO QUE ESPERAMOS QUE SE VENHA A REVELAR, POR SI PRÓPRIO, INDETERMINADAMENTE, NO FUTURO

SE AS REGRAS EXPLICITAS APENAS PODEM OPERAR EM VIRTUDE DE COEFICIENTES TÁCITOS, ENTÃO TEMOS QUE ABANDONAR A IDEIA DE EXATIDÃO


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AS CONVICÇÕES DOS CIENTISTAS SOBRE A NATUREZA GERAL DAS COISAS SÃO AS PREMISSAS DA CIÊNCIA

geral das coisas. Na interpretação mágica da experiência vemos que causas que para nós são sólidas e claras (como o esmagar de um crânio por uma pedra) são vistas como incidentais ou mesmo irrelevantes para o acontecimento, enquanto que certos incidentes remotos (como a passagem de uma ave rara), que para nós não tem qualquer ligação concebível, são tomados como sendo a sua causas efetiva. Um sistema assim geral pode resistir a muitos factos que, para quem não acredita no sistema, parecem ser facilmente refutáveis. Qualquer visão geral das coisas é altamente estável e só pode ser efetivamente oposta, ou racionalmente defendida, com fundamentos que se estendem por toda a experiência do homem. As convicções dos cientistas sobre a natureza geral das coisas são as premissas da ciência, em que se baseiam todo o ensino e toda a investigação. A influência destas premissas na procura da descoberta é grande e indispensável. Indicam ao cientista qual o tipo de questões que parecem razoáveis e interessantes para explorar, assim como o tipo de conceitos e relações que devem ser defendidos, tanto quanto possível, mesmo quando alguma evidência parece contradizê-las, ou que, antes pelo contrário, devem ser rejeitadas como improváveis, mesmo que exista evidência que pareça favorecê-las. As premissas da ciência estão sujeitas a modificações contínuas. No apêndice a 12


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

estas lições descrevi uma série de estádios através dos quais as premissas da física passaram desde Copérnico. Cada proposição estabelecida pela ciência entra nas suas premissas correntes e afeta a decisão do cientista aceitar uma observação como um facto ou ignorá-la como provavelmente suspeita. Para o mostrar, apresenta-se no apêndice uma longa série de casos, e muitos outros exemplos podem ser encontrados nos meus escritos posteriores. Este material refuta a visão muito habitual segundo a qual os cientistas abandonam necessariamente uma proposição se uma nova observação entrar em conflito com ela. O material coligido no apêndice também refuta a visão de que o progresso da ciência afeta apenas a interpretação dos factos e deixa os factos aceites sem alterações. Tudo isto se explica pela visão de que o avanço da ciência consiste em discernir gestalten [formas] que são aspetos da realidade. Sabemos que a perceção seleciona, configura e assimila indícios por um processo que não é explicitamente controlável por quem percebe. Como os poderes do discernimento científico são do mesmo tipo que os poderes da perceção, também eles operam pela seleção, configuração e assimilação de indícios, sem lhes atender focalmente. Logo, isso fica, em última instância, à responsabilidade de um julgamento pessoal do cientista, que decide qual a evidência em conflito que invalida uma proposição, o que chega 13

REFUTA A VISÃO MUITO HABITUAL SEGUNDO A QUAL OS CIENTISTAS ABANDONAM NECESSARIAMENTE UMA PROPOSIÇÃO SE UMA NOVA OBSERVAÇÃO ENTRAR EM CONFLITO COM ELA

OS PODERES DO DISCERNIMENTO CIENTÍFICO SÃO DO MESMO TIPO QUE OS PODERES DA PERCEÇÃO, TAMBÉM ELES OPERAM PELA SELEÇÃO, CONFIGURAÇÃO E ASSIMILAÇÃO DE INDÍCIOS, SEM LHES ATENDER FOCALMENTE


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ao seu conhecimento e deve ser aceite e ainda o que concluir a partir daí. A psicologia das formas (gestalt) e, mais recentemente, a psicologia transacional, têm estudado a conformação das nossas perceções. Este processo consiste numa seleção de entre os materiais que nos são apresentados e na sua suplementação. O resultado é uma interpretação do material que tanto pode ser convincente como, em certa medida, opcional. Os critérios para uma tal configuração são qualitativos, indefiníveis e muitas vezes conflituosos, o que também se aplica à configuração da experiência pela ciência. Todas as grandes descobertas são belas, mas a qualidade da beleza varia. A descoberta de Neptuno foi uma confirmação brilhante de visões até aí aceites, mas a descoberta da radioatividade foi uma revolução deslumbrante contra elas; cada uma delas foi bela à sua maneira. Em Personal Knowledge falei de descobertas na física matemática, guiadas pela pura beleza teórica. Num artigo recente intitulado “The evolution of Physicist’s Picture of Nature” (Scientific American, CCVIII, Maio 1963), P. A. M. Dirac confirma isto de forma enfática: “... é mais importante a beleza nas equações do que a beleza ajustada pelas experiências”. Direi ainda mais alguma coisa acerca do arbítrio final de propostas rivais. O livro La Phénomenologie de la Percpetion (Paris, 1945), de Maurice Merleau-Ponty, chegou a este país depois destas lições terem 14


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sido proferidas. O livro não trata da filosofia da ciência, mas ao analisar a compreensão do conhecimento segundo as linhas de Husserl, chega a conclusões próximas das que eu exprimi. A. D. Ritchie, que foi meu colega em Manchester durante vários anos, desenvolveu, de modo independente, ideias sobre a natureza da ciência que estão muito próximas das minhas, em Essays in Philosophy (Londres, 1948) e em History and Methods of the Sciences (Edinburgh, 1958). Entre os autores recentes cujas conclusões se sobrepõem com as minhas, citarei W. I. Beveridge, J. D. Bronowski, Stephen Toulmin, N. R. Hanson, Konrad Lorenz, Thomas Khun, Gerald Holton, Ch. Perelman e A. I. Wittenberg. The Art of Scientific Discovery (1950) por W. I. Beveridge recorreu a episódios valiosos da vida para ilustrar a descoberta científica como uma arte. J. Bronowski, em Science and Human Values (1956) desenvolveu também uma visão da descoberta científica como um ato criativo próxima da criação nas artes. Em The Philosophy of Science (1953), Stephen Toulmin mostrou de forma sistemática que o quadro de referência das teorias científicas inclui pressupostos gerais que não podem ser diretamente sujeitos a testes de verdade ou falsidade. Essas premissas gerais sobrepõem-se com as afirmações mais específicas que as incorporam. N. R. Hanson observou, em Patterns of Discovery (1958), que os factos científicos estão “cheios de teoria”. Um ensaio por Konrad 15


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(*) Tradução inglesa de “Gestalwahrnehmung als Quelle Wissenschaftlicher Erkenntnis”, Zeit. f. exp. u. angew. Psychol., 1959, No. 6, 118-65, em General Systems, Vol. VII (1962), ed. L. von Bertalanffy e A. Rappaport [Ann Arbor, Mich.]

Lorentz, “Gestalt Perception as Fundamental to Scientific Knowledge”(*) ilumina a analogia entre a percepção das formas (gestalt) e o conhecimento da ciência, embora não investigue sobre a justificação última da ciência, a qual tratei desde o seu princípio nas presentes lições (1946) e no meu Personal Knowledge (1958). Thomas Khun, em The Structure of Scientific Revolutions (1962), assinalou que algumas das maiores descobertas afetaram profundamente as visões globais dos cientistas e classificou essas descobertas como “paradigmáticas”. Gerald Holton, num ensaio publicado no Eranos Jahrbucher, XXXI (1962), sob o título “Uber die Hypothesen welche der Naturwissenschaftz zugrund liegen” demonstrou a dimensão “temática” das proposições científicas, o que eu descrevi como sendo a sua incorporação nas premissas gerais da ciência. Em Vom Denken in Begriffen (Basel e Stutgart, 1957), A. I. Wittenberg mostra que a razão descobre e deve reconhecer um conhecimento último na matemática, mas cujo conteúdo não pode ser completamente explicitado. Ch. Perelman, em La Nouvelle Rhetorique, Traité de l’ Argumentation (Paris, 1958), parte do carácter dúbio de todas as inferências para uma inquirição sobre o poder de convicção do argumento retórico, o qual respeita. Wittenberg e Perelman examinam, tal como eu fiz, o papel da decisão e do julgamento pessoal na ciência e reconhecem os seus poderes compreensivos. Parecem partilhar 16


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a minha ideia de que a nossa dependência destes poderes é o problema fundamental da epistemologia. Depois de tratar o coeficiente tácito do conhecimento científico explícito, passo agora ao processo tácito pelo qual se descobre o conhecimento científico. O que é que sabemos sobre o processo da intuição científica? Fazem-se muitas vezes descobertas surpreendentes com base em observações que eram conhecidas há muito tempo. Jeans cita como exemplos trabalhos de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Lavoisier e Dalton, a que eu adicionei o trabalho de Darwin, a teoria ondulatória de De Broglie, a mecânica quântica de Heisenberg e Schrondinger e a teoria do eletrão e do positrão. Estas inferências a partir de factos já conhecidos tiveram que esperar pela ação de poderes intuitivos excecionais, e demonstram claramente a existência desses poderes. Mas, apesar do muito bom trabalho feito pelos psicólogos das formas (gestalt) sobre a resolução de problemas, das descrições impressionantes do processo de descoberta por Poincaré e por Hadamard, e das pesquisas pioneiras de Polya sobre a heurística nas matemáticas, não temos ainda uma conceção clara de como se fazem as descobertas. A principal dificuldade foi assinalada por Platão no Meno. Diz que procurar pela solução de um problema é um absurdo. Porque ou se conhece aquilo que se procura, e portanto não há problema; ou não se sabe o 17

A NOSSA DEPENDÊNCIA DESTES PODERES É O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA EPISTEMOLOGIA

ESTAS INFERÊNCIAS A PARTIR DE FACTOS JÁ CONHECIDOS TIVERAM QUE ESPERAR PELA AÇÃO DE PODERES INTUITIVOS EXCEPCIONAIS


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COMO É QUE PODEMOS DIZER QUAIS AS COISAS AINDA NÃO COMPREENDIDAS QUE AINDA SÃO CAPAZES DE VIREM A SER COMPREENDIDAS?

UMA DESCOBERTA POTENCIAL ATRAI A MENTE QUE A HÁ-DE REVELAR

SINTO-ME HOJE COM DÚVIDAS ACERCA DO PAPEL DA PERCEPÇÃO EXTRA SENSORIAL PARA GUIAR ESSA ATUALIZAÇÃO

A APLICAÇÃO DE REGRAS PRECISA SEMPRE, EM ULTIMA INSTÂNCIA, DE SE APOIAR EM ATOS NÃO DETERMINADOS POR REGRAS

que se procura, e portanto não se está a procurar coisa alguma e não se pode esperar encontrar seja o que for. Se a ciência é a compreensão de formas interessantes na natureza, de onde vem essa compreensão? Como é que podemos dizer quais as coisas ainda não compreendidas que ainda são capazes de virem a ser compreendidas? A resposta que dei aqui a esta questão foi que precisamos de ter um conhecimento antecipado suficiente para guiar as nossas conjecturas, com uma probabilidade razoável, na escolha de um bom problema e na escolha de pressentimentos que possam resolver o problema. Pode-se pensar que uma descoberta potencial atrai a mente que a há-de revelar - inflamando o cientista com aspirações criativas e transmitindo-lhe intimações que o guiam de indício para indício e de conjetura para conjetura. A mão que testa, a vista esforçada, podem ser pensados como estando a laborar sob o fascínio comum de uma descoberta potencial, que se esforça por emergir na atualidade. Sinto-me hoje com dúvidas acerca do papel da percepção extra sensorial para guiar essa atualização. Mas as minhas especulações sobre essa possibilidade ilustram bem a profundidade que atribuo a este problema. Admito que existem regras que dão uma orientação valiosa para a descoberta científica, mas são meras regras da arte. A aplicação de regras precisa sempre, em ultima instância, de se apoiar em atos não determinados por regras. Esses atos podem ser bastante 18


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óbvios e, nessa caso, a regra é dita ser precisa. Mas produzir um objeto seguindo uma prescrição precisa é um processo de manufatura e não a criação de uma obra de arte. Do mesmo modo, adquirir um conhecimento novo por uma manipulação previamente prescrita é seguir um mapa e não fazer uma descoberta. As regras da inquirição científica deixam em aberto muita da sua própria aplicação, para ser decidida pelo julgamento do cientista. Esta é a sua função principal. Inclui encontrar um bom problema, os esforços para o perseguir, e o reconhecimento da descoberta que o resolve. Em cada uma dessas decisões o cientista deve apoiar-se numa regra, mas aí está a selecionar a regra que aplica ao caso, do mesmo modo que um jogador de golfe escolhe o taco certo para a sua próxima pancada. Visto de fora, tal como já o descrevi, o cientista pode parecer como uma mera máquina de apuramento da verdade, conduzida por uma sensibilidade intuitiva. Mas esta visão não considera o facto curioso de, desde o princípio, ele ser o juiz último na decisão de cada passo consecutivo da sua inquirição. Tem que estar sempre a arbitrar entre a sua própria intuição apaixonada e a prudência crítica. O alcance destas decisões últimas é muito amplo: as grandes controvérsias científicas mostram a gama de questões básicas que podem ficar em dúvida depois de todos os lados da questão terem sido examinados. O cientista precisa de decidir 19

PRODUZIR UM OBJETO SEGUINDO UMA PRESCRIÇÃO PRECISA É UM PROCESSO DE MANUFATURA E NÃO A CRIAÇÃO DE UMA OBRA DE ARTE

AS REGRAS DA INQUIRIÇÃO CIENTÍFICA DEIXAM EM ABERTO MUITA DA SUA PRÓPRIA APLICAÇÃO, PARA SER DECIDIDA PELO JULGAMENTO DO CIENTISTA

TEM QUE ESTAR SEMPRE A ARBITRAR ENTRE A SUA PRÓPRIA INTUIÇÃO APAIXONADA E A PRUDÊNCIA CRÍTICA


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UMA ARTE NÃO PODE SER DEFINIDA COM PRECISÃO, SÓ PODE SER TRANSMITIDA PELA PRÁTICA QUE A INCORPORA

APRENDER UMA ARTE PELO EXEMPLO DA SUA PRÁTICA É ACEITAR UMA TRADIÇÃO ARTÍSTICA E TORNAR-SE NUM SEU REPRESENTANTE

É INERENTE À NATUREZA DA AUTORIDADE CIENTÍFICA QUE, AO TRANSMITIR-SE PARA UMA NOVA GERAÇÃO, ESTÁ TAMBÉM A CONVIDAR UMA OPOSIÇÃO A SI PRÓPRIA

sobre essas questões, deixadas em aberto pelos argumentos opostos, à luz da sua própria consciência científica. O meu livro Personal Knowledge (1958) procura defender esse compromisso final contra a acusação de subjetividade. Como uma arte não pode ser definida com precisão, só pode ser transmitida pela prática que a incorpora. Quem aprende pela observação de um mestre precisa de confiar no seu exemplo. Deve reconhecer a arte que pretende aprender como competente, assim como a competência de quem a ensina. A menos que presuma que a substância e o método da ciência são fundamentalmente sãos, quem aprende nunca poderá desenvolver um sentido do valor científico e adquirir competência na inquirição científica. Esta é a maneira de adquirir conhecimento que os pais da igreja cristã descreveram como fides quaerens intellectum, “acreditar para conhecer”. Aprender uma arte pelo exemplo da sua prática é aceitar uma tradição artística e tornar-se num seu representante. Os noviços da profissão científica são treinados para partilhar o terreno dos seus mestres e para alargar esse mesmo terreno para estabelecerem a sua própria independência. A imitação dos seus mestres ensina-os a insistir na sua própria originalidade que, por sua vez, se pode opor a uma parte dos ensinamentos correntes da ciência. É inerente à natureza da autoridade científica que, ao transmitir20


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-se para uma nova geração, está também a convidar uma oposição a si própria e a assimilar essa oposição a uma reinterpretação da tradição científica. A aplicação da disciplina, combinada com o incentivo à dissidência, também é exercida pela ciência no controlo dos recursos da investigação científica e nos órgão da publicidade científica. Uma contribuição para a ciência só é aceite se, à luz das convicções científicas sobre a natureza das coisas, parecer suficientemente plausível. Só assim se pode evitar que as contribuições dos aldrabões, fraudes e maníacos sejam impedidas de inundar a literatura científica e de corromper as instituições científicas. Ao mesmo tempo, a autoridade científica atribui um elevado mérito à originalidade, que pode divergir em certa medida dos ensinamentos estabelecidos na ciência. Esta tensão interna e os seus perigos são inevitáveis. A autoridade da ciência reside na opinião científica. A ciência apenas existe como um corpo de conhecimento competente sobre grandes domínios na medida em que continue a existir um consenso entre os cientistas. Só vive e cresce desde que esse consenso possa resolver a tensão perpétua entre a disciplina e a originalidade. Cada nova geração é soberana na reinterpretação da tradição da ciência. Fica com ela a responsabilidade fatal da auto renovação das convicções e dos métodos científicos. Falar da ciência e do seu progresso contínuo é professar uma fé 21

A AUTORIDADE CIENTÍFICA ATRIBUI UM ELEVADO MÉRITO À ORIGINALIDADE, QUE PODE DIVERGIR EM CERTA MEDIDA DOS ENSINAMENTOS ESTABELECIDOS NA CIÊNCIA

CADA NOVA GERAÇÃO É SOBERANA NA REINTERPRETAÇÃO DA TRADIÇÃO DA CIÊNCIA


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PODEMOS GENERALIZAR ISTO A OUTROS MODOS DE DESCOBERTA NA LITERATURA, NAS ARTES, NA POLÍTICA

nos seus princípios fundamentais, e na integridade dos cientistas que aplicam e aperfeiçoam esse sistema. Cada cientista é confrontado com a crítica dos seus vizinhos, que por sua vez são criticados pelos seus próprios vizinhos. Mas a cadeia de apreciação mútua alarga-se a todo o corpo da ciência, da matemática à medicina, e mantém em todas as áreas as mesmas convicções fundamentais e os mesmos padrões de interesse científico. Com as mesmas raízes que os seus colegas, cada cientista joga independentemente as suas cartas ao manter esta tradição sobre um domínio imenso de inquirição científica, de que afinal pouco sabe. Há diferença de posição entre os cientistas, mas são de importância secundária: a posição de cada um é soberana. A república da ciência realiza o ideal de Rousseau, de uma comunidade em que cada um é um parceiro igual na formação de uma vontade geral. Mas esta identificação faz com que a vontade geral apareça com uma nova luz. É diferente de qualquer outra vontade pelo facto de não poder alterar o seu próprio propósito. É partilhada por toda a comunidade porque cada um dos seus membros partilha-a numa tarefa comum. Esta comunidade disssolver-se-ia se essa tarefa chegasse ao fim e se os membros da comunidade tivessem que decidir sobre o que fazer a seguir. Podemos generalizar isto a outros modos de descoberta na literatura, nas artes, 22


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na política. Cada uma dessas áreas só pode avançar fragmentariamente pelos esforços dos indivíduos dentro de uma comunidade organizada essencialmente ao longo das mesmas linhas da vida científica. A comunidade deve garantir a independência dos seus membros ativos ao serviço de valores mutuamente defendidos e aplicados. A vida criativa de tais comunidades assenta numa convicção sobre as suas contínuas possibilidades da revelação de verdades ainda ocultas. Em Science, Faith and Society interpretei isso como uma convicção na realidade espiritual que, sendo real, continuará surpreendentemente a dar indefinidamente frutos. Hoje preferiria chamar-lhe um acreditar na realidade de um significado e de uma verdade emergentes. Os esforços mentais de uma sociedade dependem, para os seus recursos e para a sua proteção, de uma ordem legal e económica. Por consequência, a procura do poder e do lucro irão interferir com o crescimento do pensamento na sociedade. A dimensão dessa interação variará entre os diferentes domínios do pensamento. Quanto ao seu efeito na ciência, o seu progresso dificilmente poderá desviar-se dos seus interesses intrínsecos; apenas poderá ser atrofiada ou interrompida por infrações à sua autonomia. Este reconhecimento da simbiose entre o pensamento e a sociedade aproxima-nos da posição marxista, mas ao mesmo tempo clarifica a nossa diferença. O marxismo leni23

A VIDA CRIATIVA DE TAIS COMUNIDADES ASSENTA NUMA CONVICÇÃO SOBRE AS SUAS CONTÍNUAS POSSIBILIDADES DA REVELAÇÃO DE VERDADES AINDA OCULTAS

A PROCURA DO PODER E DO LUCRO IRÃO INTERFERIR COM O CRESCIMENTO DO PENSAMENTO NA SOCIEDADE

ESTE RECONHECIMENTO DA SIMBIOSE ENTRE O PENSAMENTO E A SOCIEDADE APROXIMANOS DA POSIÇÃO MARXISTA, MAS AO MESMO TEMPO CLARIFICA A NOSSA DIFERENÇA


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OS QUE NOS NOSSOS DIAS LEVAM AO PODER GOVERNOS ISENTOS DOS PADRÕES DE HUMANIDADE FORAM POR SUA VEZ IMPELIDOS POR UMA PAIXÃO INTENSA PELOS MESMOS IDEAIS QUE TÃO DESDENHOSAMENTE PUSERAM DE LADO

nismo nega os poderes criativos intrínsecos do pensamento. Qualquer revindicação de independência pelos cientistas, académicos ou artistas tem então que aparecer como uma súplica pela auto indulgência. A dedicação ao desenvolvimento da ciência, seja para onde for que possa levar, tornar-se-à numa deslealdade para com o poder responsável pelo bem estar público. Como este poder se considera como a encarnação do destino histórico e como um distribuidor de promessas históricas pela humanidade, não pode reconhecer afirmações superiores de verdade, justiça ou de moralidade. Em alternativa, as filosofias materialistas (ou românticas), que negam quaisquer reclamações de padrões de verdade, justiça ou moralidade, podem despojar os cidadãos de quaisquer fundamentos com que possam apelar para esses padrões, e portanto dotam o governo com um poder absoluto. Os dois processos fundem-se de facto na sua justificação conjunta da força como superior ao espírito. Mas precisamos de acrescentar aqui um processo adicional que torna a violência na encarnação dos valores que destrói. Os que nos nossos dias levam ao poder governos isentos dos padrões de humanidade foram por sua vez impelidos por uma paixão intensa pelos mesmos ideais que tão desdenhosamente puseram de lado. Rejeitaram a profissão aberta de todos os ideais como sendo filosoficamente defeituosos, hipó24


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critas ou ilusórios, mas injetaram dissimuladamente esses mesmos ideais nos novos despotismos que erigiram. Esses ideais tornaram-se imanentes à violência que tão rudemente os rejeitara. Em virtude desta inversão moral (como eu lhe chamei), o próprio imoralismo deste poder tornou-se uma peça da sua pureza moral. Dada a sua estrutura interna, podem rejeitar honestamente as acusações de imoralidade ao mesmo tempo que proclamam a sua própria imoralidade. Um regime assim constituído reclama encarnar os ideais da justiça, das artes e das ciências, para além da moralidade - ou seja, todas as formas de verdade. Mas aqui ultrapassa-se a si próprio. O movimento rebelde que tem transformado o regime de muitos países comunistas, desde a morte de Estaline, foi despertado pelo fervilhar das exigências da verdade. Citarei aqui os escritos de Nicolas Gimes, um comunista húngaro que se revoltou contra o estalinismo durante a revolução húngara de outubro de 1956, apesar de ter sido anteriormente um leal seguidor de Estaline. A passagem seguinte foi publicada três semanas antes da revolução: Lentamente acabamos por acreditar, pelo menos com a uma parte dominante da nossa consciência,... que há dois tipos de verdade, a verdade do partido e a verdade do povo, que podem ser diferentes e que podem ser mais importantes do que a ver25


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dade objetiva e que essa verdade e o expediente político são na realidade idênticos. Este pensamento é terrível... se o critério de verdade é um expediente político, então até mesmo uma vida pode ser a “verdade”... até mesmo mesmo um julgamento político torpedeado pode ser a “verdade”... E assim chegamos a uma visão que infetou não só os que pensaram os julgamentos políticos falseados como também afetou as suas vítimas; essa visão infetou toda a nossa vida pública, penetrou nos domínios mais remotos do nosso pensamento, obscureceu a nossa visão, paralisou as nossas faculdades críticas e, finalmente, tornou muitos de nós incapazes de simplesmente sentir ou apreender a verdade. Foi assim que aconteceu, não vale a pena negá-lo. O autor destas linhas foi executado em 1958, em Budapeste, às ordens de Moscovo. Desde 1956 que cada relatório consecutivo mostra mais claramente que a exigência pela verdade é a grande força de renovação através do império soviético. Reaviva a grande tradição dos intelectuais que criaram o iluminismo. O revisionismo marxista é uma tentativa para restaurar o humanismo original do iluminismo e para o estabilizar contra o tipo de autodestruição que conduziu ao estalinismo. Os autores ocidentais 26


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têm atribuído a causa deste movimento de libertação a um alto grau de industrialização. Continuam prisioneiros da corrupção filosófica que atirou as esperanças do homem para as trevas. Nicolas Gimes e os seus companheiros lutaram por resgatar a fé do homem na verdade dessa corrupção. Argumentei que uma perspetiva geral para a verdade é tudo o que precisamos para que uma sociedade seja livre. A forma como a liberdade e a verdade se têm mostrado equivalentes na luta contra o estalinismo confirma as minhas ideias. Espero ainda ver uma teoria moderna da liberdade, concebida ao longo destas linhas, a emergir desta batalha. Oxford, dezembro de 1963

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CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE Michael Polanyi, 1946

Nesta obra volto a examinar os pressupostos subjacentes à nossa convicção na ciência e proponho-me mostrar que são muito mais extensivos do que habitualmente se supõe. Aparecerão como uma co-extensão de todos os fundamentos espirituais do homem e atingem as próprias raízes da sua existência social. Logo, argumentarei que a nossa crença na ciência pode ser vista como um caso de convicções muito mais profundas.

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–1– CIÊNCIA E REALIDADE



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I

Q

ual á a natureza da ciência? Dada uma certa evidência, será que daí se podem derivar proposições científicas através da aplicação de regras e procedimentos explícitos? Por simplicidade, limitar-nos-emos às ciências exatas e assumiremos, por conveniência, que toda a experiência relevante nos é dada na forma de medidas numéricas, que se nos apresentam como uma lista de números que representam posições, massas, tempos, velocidades, comprimentos de onda, etc., a partir dos quais temos que derivar uma lei matemática da natureza. Será que o podemos fazer pela aplicação de um conjunto definido de operações? Certamente que não. Assume-se, por uma questão de argumento, que é sempre possível descobrir como relacionar os números, de tal modo que um grupo determina o outro; existe um número infinito de funções matemáticas disponíveis para a representação dos primeiros em função dos últimos. Há muitas formas de séries matemáticas - como séries 35

DADA UMA CERTA EVIDÊNCIA, SERÁ QUE DAÍ SE PODEM DERIVAR PROPOSIÇÕES CIENTÍFICAS ATRAVÉS DA APLICAÇÃO DE REGRAS E PROCEDIMENTOS EXPLÍCITOS?


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NUNCA FOI ESTABELECIDA UMA REGRA BEM DEFINIDA PELA QUAL SE PODE RECONHECER UMA FUNÇÃO MATEMÁTICA EM PARTICULAR COMO SENDO A QUE EXPRIME UMA LEI NATURAL

de potências, séries harmónicas, etc. - e cada uma delas pode ser usada de um número infinito de maneiras para aproximar, com qualquer grau de aproximação, uma relação entre qualquer conjunto de dados numéricos. Mas nunca foi estabelecida uma regra bem definida pela qual se pode reconhecer uma função matemática em particular como sendo a que exprime uma lei natural, de entre o número infinito de opções. É verdade que cada uma das opções desse número infinito de funções conduzirá, em geral, a diferentes previsões quando aplicada a novas observações, mas isso não constitui o teste necessário para fazer uma seleção entre elas. Mesmo que se escolham apenas as que preveem corretamente, mesmo assim ainda continuaremos com um número infinito. De facto, a situação só se altera com a adição de mais alguns dados aos dados originais - em particular, dados “estimados” ou previstos. Afinal não nos aproximamos da seleção definitiva de qualquer função em particular, de entre o número infinito de funções disponíveis. Não estou a sugerir que é impossível descobrir leis naturais, mas apenas que isso não se faz, nem pode ser feito, pela aplicação, à evidência das medições, de uma operação conhecida explicitamente. Para levar o meu argumento um pouco mais perto da experiência atual da ciência, reformulá-lo-ei como se segue. Pergunta-se: pode alguma vez uma função matemática que relacio36


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ne leituras observáveis de um instrumento constituir aquilo a que habitualmente chamamos uma lei natural em ciência? Por exemplo, se exprimirmos o nosso conhecimento acerca da trajetória de um planeta nos seguintes termos: “ajustando certos telescópios a certos ângulos em certos momentos do tempo então observar-se-á um disco luminoso de uma certa dimensão” - então isso não exprime adequadamente uma lei natural do movimento planetário? Não: é óbvio que uma tal previsão não é equivalente a uma proposição relativa ao movimento planetário. Em primeiro lugar, porque estaríamos, em geral, a reivindicar demais e a nossa previsão mostrar-se-ia muitas vezes falsa, mesmo que a proposição subjacente acerca do movimento planetário estivesse correta: uma nuvem pode tornar o planeta invisível à observação, ou até mesmo o solo pode ceder por baixo do observatório, ou qualquer outro erro ou obstáculo, entre centenas ou mais possíveis, pode falsificar a observação ou torná-la impraticável. Em segundo lugar, estaríamos a reivindicar de menos, pois a presença de um planeta em certos pontos do espaço - tal como postulado pela sua lei de movimento - pode-se manifestar por uma variedade infinita de maneiras, a maioria das quais não pode ser prevista explicitamente, dada a sua enorme multitude; e muitas delas podem até ser impensáveis hoje em dia pois podem ser devidas a propriedades ainda desconhecidas 37

PODE ALGUMA VEZ UMA FUNÇÃO MATEMÁTICA QUE RELACIONE LEITURAS OBSERVÁVEIS DE UM INSTRUMENTO CONSTITUIR AQUILO A QUE HABITUALMENTE CHAMAMOS UMA LEI NATURAL EM CIÊNCIA?


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da matéria ou a uma série de outros fatores hoje ainda desconhecidos, embora inerentes ao nosso sistema. Falta, de facto, uma caraterística essencial em ambas as representações anteriores da ciência, que talvez seja mais fácil de assinalar se usarmos uma terceira imagem da ciência. Suponha-se que acordamos de noite com o som de um barulho, como o remexer num quarto ao lado e desocupado. É vento? Será um ladrão? Um rato?... Tentamos adivinhar. Era o barulho de uma passada? Então isso significa um ladrão! Convencidos, enchemo-nos de coragem, levantamo-nos e vamos verificar a nossa hipótese. Aqui aparecem algumas das caraterísticas de uma descoberta científica, que antes tínhamos deixado escapar. A teoria do ladrão - que representa a nossa descoberta - não envolve qualquer relação definida entre dados observados, a partir dos quais se possam prever novas observações de forma definitiva. É consistente com um número infinito de potenciais observações futuras. Porém a teoria do ladrão está substancial e suficientemente definida; num tribunal pode mesmo ser objeto de prova para além de qualquer dúvida razoável. À luz do senso comum não há nela nada de curioso; simplesmente clarifica que se assume que o ladrão é uma entidade real, um autêntico e verdadeiro ladrão. Podemos inverter isto dizendo que a ciência assume que algo é real sempre que as suas proposições se assemelham á teoria do 38


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ladrão. Neste sentido, uma afirmação acerca da trajetória de um planeta pode-se dizer que é uma proposição acerca de algo que é real, estando aberta à verificação não só por algumas observações definidas, mas também por muitas outras observações por enquanto ainda não definidas. Ouvimos muitas vezes dizar que teorias científicas foram confirmadas por observações posteriores, de uma maneira descrita como surpreendente e audaciosa. O facto de Max e Laue (1912) terem confirmado, em conjunto, tanto a difração dos raios X como a estrutura reticular dos cristais é muitas vezes enaltecido como um feito extraordinário de génios. Parece ser da essência das proposições científicas o facto de serem capazes de gerar tais frutos distantes e inesperados; podemos, portanto, concluir que a preocupação com a realidade também faz parte da sua essência. Uma segunda característica significativa da descoberta do ladrão, muito relacionada com o que acabamos de dizer, é a forma como é feita. Observam-se ruídos curiosos; seguem-se especulações sobre o vento, ratos, ladrões, e, finalmente, depois da observação de um indício, estabelece-se a teoria do ladrão. Vemos aqui um esforço consistente em adivinhar - e em adivinhar corretamente. O processo começa no preciso momento em que se sentem certas impressões, que se julgam invulgares e sugestivas, e a mente pressente um “problema”; continua com a coleção de indícios com vista à reso39

VEMOS AQUI UM ESFORÇO CONSISTENTE EM ADIVINHAR - E EM ADIVINHAR CORRETAMENTE


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COMO É QUE PODEMOS ADIVINHAR A PRESENÇA DE UMA RELAÇÃO REAL ENTRE DADOS OBSERVADOS, SE A SUA EXISTÊNCIA NUNCA TIVER SIDO ANTERIORMENTE CONHECIDA?

lução do problema; e culmina com a conjetura de uma solução definitiva. Mas há uma diferença entre a solução oferecida pela teoria do ladrão e a solução oferecida por uma nova proposição científica. A primeira seleciona para a sua própria solução um elemento conhecido da realidade - em particular, ladrões - enquanto que a segunda postula muitas vezes uma entidade completamente nova. O grande crescimento da ciência nos últimos trezentos anos prova claramente que novos aspetos da realidade foram sendo constantemente adicionados aos anteriormente conhecidos. Como é que podemos adivinhar a presença de uma relação real entre dados observados, se a sua existência nunca tiver sido anteriormente conhecida? Precisamos de regressar ao processo pelo qual habitualmente estabelecemos, em primeiro lugar, a realidade de certas coisas que nos rodeiam. A nossa pista principal para a realidade de um objeto é ele possuir elementos coerentes. A psicologia gestalt [psicologia das formas] teve o mérito de nos consciencializar do desempenho notável envolvido na percepção das formas. Seja, por exemplo, uma bola ou um ovo: vemos as suas formas num instante. Suponha-se porém que para além da impressão de um agregado de pontos brancos nos nossos olhos, que formam a superfície de um ovo, nos é também apresentada uma outra versão desses pontos, logicamente equivalente, 40


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mas definidos por uma lista das suas coordenadas espaciais. Seriam precisos anos de trabalho para se descobrir a forma inerente a esse agregado de números - assumindo que tal seria possível. A perceção de um ovo a partir da lista das suas coordenadas seria, na realidade, bastante semelhante, em termos de natureza e de dimensão, à façanha intelectual que foi a descoberta do sistema coperniciano. Podemos, por isso dizer que a capacidade dos cientistas para adivinharem a presença de formas como partes da realidade difere da nossa capacidade corrente de perceção apenas pelo facto de poder integrar formas que lhe são apresentadas em termos tais que as pessoas ordinárias não conseguem tratar. A intuição do cientista consegue integrar dados muito dispersos, camuflados por variadas ligações irrelevantes, e entretanto procurar esses dados através de experiências guiadas por um conhecimento obscuro das possibilidades que podem estar mais adiante. Essas perceções podem estar erradas; tal como a forma de um corpo camuflado pode ser erradamente percebida na vida quotidiana. Aqui só estou interessado em mostrar que algumas das características das proposições da ciência excluem a possibilidade de serem derivadas por operações bem definidas aplicadas às observações primárias; e em demonstrar que o processo da sua descoberta deve envolver uma perceção intuitiva da estrutura real dos fenómenos naturais. No resto desta conferên41

A INTUIÇÃO DO CIENTISTA CONSEGUE INTEGRAR DADOS MUITO DISPERSOS, CAMUFLADOS POR VARIADAS LIGAÇÕES IRRELEVANTES

O PROCESSO DA DESCOBERTA DEVE ENVOLVER UMA PERCEÇÃO INTUITIVA DA ESTRUTURA REAL DOS FENÓMENOS NATURAIS


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cia examinarei melhor esta posição e também assinalarei (na secção 5) a necessidade de ampliar alguns dos seus aspetos mais importantes.

II

TENDÊNCIA PARA CONSIDERAR AS NOSSAS OBSERVAÇÕES COMO INEVITÁVEIS

Porém, não será verdade que a experiência quotidiana nos força a aceitar certas leis naturais como verdadeiras, pela força da sua necessidade lógica? Generalizações como “todos os homens devem morrer” ou “o sol derrama a luz do dia” parecem consequências da nossa experiência, sem qualquer intervenção de uma faculdade intuitiva da nossa parte, como observadores. Mas isto apenas mostra que temos a tendência para considerar as nossas observações como inevitáveis. Essas observações são frequentemente negadas pelos povos primitivos, que acreditam que nenhum homem jamais morre, exceto como vítima de magias diabólicas, e alguns também acreditam que o sol regressa durante a noite, para oriente, sem emitir qualquer luz durante esse trajeto. A negação da morte natural é parte da sua crença generalizada de que os acontecimentos nocivos para o homem nunca são naturais, mas sempre o resultado de votos mágicos de pessoas malévolas. Nessa interpretação mágica da experiência vemos que algumas causas que para nós são sólidas e 42


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claras (como uma pedra esmagar o crânio de uma pessoa), são por eles vistas como incidentais ou mesmo como irrelevantes para o acontecimento, enquanto que certos incidentes remotos (como a passagem de uma ave rara), que para nós não parecem ter qualquer relação possível com o acontecimento, são por eles tomados como causas efetivas. Os povos primitivos com estas práticas mágicas têm uma inteligência normal. Apesar disso acham as suas compreensões completamente consistentes com a sua experiência quotidiana, e farão a sua defesa firme perante uma tentativa de europeus para as refutarem pela referência à mesma experiência. A interpretação que derivamos da nossa intuição da natureza fundamental da realidade externa não se pode facilmente provar como inadequada assinalando um elemento novo da experiência. Parece portanto que corremos perigo nos dois extremos opostos, nomeadamente ao perder de vista qualquer diferença entre as pretensões rivais das interpretações mágica e naturalista dos acontecimentos. Também é verdade que existe uma verdade poética expressa na primitiva teoria mágica que habitualmente se encontra nas nossas obras de ficção. Se um homem, numa novela, é morto por acidente, o acontecimento pode ter uma justificação humana; a questão da ponte do rei São Luís nunca pode ser ignorada numa obra de arte. A visão naturalista 43


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A VISÃO NATURALISTA ABRE UMA PERSPETIVA NOBRE DA ORDEM NATURAL DAS COISAS, INACESSÍVEL À VISÃO MÁGICA

GERALMENTE IGNORASE O FACTO DA FILOSOFIA CATÓLICA MEDIEVAL SE TER ESTABELECIDO, EM PRIMEIRO LUGAR, NUM MUNDO IMBUÍDO DE RACIONALISMO CIENTÍFICO

da morte de um homem, por exemplo num acidente ferroviário, rouba algum do significado ao destino humano, e tende a reduzi-lo a “uma história contada por um idiota, que nada significa”. Mas, ao mesmo tempo, a visão naturalista abre uma perspetiva nobre da ordem natural das coisas, inacessível à visão mágica, e estabelece relações muito mais decentes e responsáveis entre os seres humanos, de tal modo que não hesitamos em aceitá-la como a verdadeira, entre as duas. Encontramos um conflito competitivo semelhante a este ao contrastar as perspetivas medievais e a visão científica das coisas. Geralmente ignora-se o facto da filosofia católica medieval se ter estabelecido, em primeiro lugar, num mundo imbuído de racionalismo científico. Santo Agostinho, que foi quem acima de todos lançou os fundamentos da filosofia católica, deixou um amplo testemunho, nas suas Confissões, acerca do seu profundo interesse pela ciência, antes da sua conversão. Mas à medida que se aproximava da conversão, começou a olhar para o conhecimento científico como estéril e a considerar a sua procura como uma ilusão, sob o ponto de vista espiritual. A batalha que, por volta do ano 380, se travava na mente de Santo Agostinho foi ganha pelo seu desejo fervoroso de uma certeza sobre Deus, que ele sentia em perigo pelo orgulho intelectual dos homens ao perseguirem a cadeia das causas secundárias. “Não Te 44


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aproximas senão do arrependido do coração, mas não da arte do soberbo, nem das habilidades estranhas capazes de contar o número de estrelas e de areias, e de medir os céus repletos de estrelas, e de traçar o percurso dos planetas”, escreveu ele (Conf., livro v, p. 3). Onze séculos depois vemos o encantamento de Santo Agostinho quebrado por uma alteração gradual no equilíbrio dos desejos mentais. O espírito secular, crítico, extrovertido, racionalista, alastrou por muitos outros domínios antes de ter renovado o estudo científico da natureza. A ciência foi um filho tardio do renascimento; de facto, no tempo das descobertas de Copérnico e de Vesalios, o renascimento já tinha passado pelo seu apogeu e começava a decair à sombra da contra reforma. Tanto Copérnico como Vesalios descobriram factos novos porque abandonaram a autoridade estabelecida - e não ao contrário. Copérnico foi afetado pelo novo espírito enquanto estudava lei canónica em universidades italianas, por volta do ano de 1500. Regressou a casa, em Itália, onde as doutrinas ditas pitagóricas eram livremente discutidas, com uma fruição forte e irrevogável da visão heliocêntrica(1). Quando Vesalios examinou pela primeira vez o coração humano, e não encontrou o canal através do septo postulado por Galeno, assumiu que o canal era invisível ao olhar; mas, alguns anos depois, com a sua fé na autoridade já abalada, de45

A CIÊNCIA FOI UM FILHO TARDIO DO RENASCIMENTO

TANTO COPÉRNICO COMO VESALIOS DESCOBRIRAM FACTOS NOVOS PORQUE ABANDONARAM A AUTORIDADE ESTABELECIDA - E NÃO AO CONTRÁRIO

(1) Agnes M. Clarke, Enc. Brit., 14ª ed., col VI, p. 400. E. A. Burt em The Metaphysical Foundations of Modern Science torna bem claro que, sob o ponto de vista empírico, nada havia a dizer a favor da visão coperniciana, á data em que foi proposta. Os empiristas contemporâneos se tivessem vivido no século


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dezasseis, teriam sido os primeiros a zombar da nova filosofia do universo”, diz ele na p. 25

DESDE O ADVENTO DA RELATIVIDADE, OS CIENTISTAS TÊM-SE TORNADO CADA VEZ MAIS CONFIANTES EM QUE AS LEIS NATURAIS PODEM SER DESCOBERTAS POR UMA ELIMINAÇÃO SISTEMÁTICA DOS PRESSUPOSTOS NÃO COMPROVADOS

clarou dramaticamente que afinal esse canal não existia. Penso que hoje em dia podemos sentir o equilíbrio das necessidades mentais a tender novamente para o sentido inverso. A ciência atual já não é assim tão enfática ao ignorar o sentido das suas generalizações, quando estendidas ao mundo como um todo. Duvido se hoje em dia os cientistas aceitariam sem um murmúrio, tal como o fizeram em finais do século XIX, uma visão como a de Laplace e de Poincaré acerca da natureza do universo. Poincaré tinha mostrado, com base na teoria mecânica de Laplace, que toda a fase de configuração atómica deveria continuar a recorrer ciclicamente até ao infinito e que toda a configuração concebível (com a mesma energia total) continuaria também a recorrer da mesma forma - de modo que ao revisitar o nosso universo, um dia mais tarde, pode ser que tenhamos a sorte de nos encontrarmos a nós próprios numa nova vida, mas agora na direção inversa, que começa nos cadáveres e acaba como criança, eventualmente absorvida pelo ventre materno. Hoje em dia, acho que tais conclusões, manifestamente absurdas, seriam seriamente confrontadas num sistema científico que se aventurasse a promovê-las. Na realidade o estudo moderno da cosmogonia - tal como Sir Edmund Whittaker assinalou na sua Riddell Lectures de 1944 - tem estimulado um interesse renovado pelo universo como um todo compreensivo. Desde o advento da re46


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latividade, os cientistas têm-se tornado cada vez mais confiantes em que as leis naturais podem ser descobertas por uma eliminação sistemática dos pressupostos não comprovados que estão implícitos na nossa maneira de pensar, e isto tem fortalecido o nosso sentido de racionalidade do universo. Concluímos que a experiência objetiva não pode forçar uma decisão entre a interpretação mágica e a interpretação naturalista da vida quotidiana, ou entre a interpretação científica e a interpretação teológica da natureza. Pode favorecer uma ou outra, mas a decisão só pode ser encontrada por um processo de arbitragem em que formas alternativas de satisfação mental pesam no balanço. Os fundamentos de tais decisões serão averiguados ma minha terceira lição. Para já volto para a análise da ciência.

A EXPERIÊNCIA OBJETIVA NÃO PODE FORÇAR UMA DECISÃO ENTRE A INTERPRETAÇÃO MÁGICA E A INTERPRETAÇÃO NATURALISTA DA VIDA QUOTIDIANA, OU ENTRE A INTERPRETAÇÃO CIENTÍFICA E A INTERPRETAÇÃO TEOLÓGICA DA NATUREZA

III Habitualmente sobrestima-se o papel de novas observações e experiências no processo da descoberta em ciência. A conceção popular de um cientista a colecionar pacientemente observações, sem preconceitos ditados por qualquer teoria, até que finalmente consegue estabelecer uma nova generalização, é completamente falsa. Jeans nota que a ciência avança de duas maneiras: “pela descoberta de novos factos e pela descoberta de 47

HABITUALMENTE SOBREESTIMA-SE O PAPEL DE NOVAS OBSERVAÇÕES E EXPERIÊNCIAS NO PROCESSO DA DESCOBERTA EM CIÊNCIA


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TODO ESTE CONHECIMENTO NOVO DA NATUREZA FOI ADQUIRIDO PELA MERA RECONSIDERAÇÃO DE FENÓMENOS JÁ CONHECIDOS

(2) Uma discussão breve destas premissas é feita no apêndice 1.

mecanismos ou sistemas que explicam factos já conhecidos. As grandes descobertas excecionais no progresso da ciência foram sempre do segundo tipo”. Como exemplos, cita os trabalhos de Copérnico, Newton, Darwin e Einstein. Poderíamos adicionar a teoria atómica das combinações químicas por Dalton, a teoria ondulatória da matéria por de Broglie, as mecânicas quânticas de Heisenberg e de Schrondinger, a teoria dos eletrões e dos positrões por Dirac. Várias destas descobertas envolveram previsões da mais alta importância, que muitas vezes só vieram à luz do dia muitos anos depois da descoberta. Todo este conhecimento novo da natureza foi adquirido pela mera reconsideração de fenómenos já conhecidos, mas num contexto novo que se sentia ser mais racional e mais real. Os pressupostos que guiaram estas descobertas foram as premissas da ciência, ou seja, as conjeturas fundamentais da ciência acerca da natureza das coisas. Não tratarei aqui estas premissas em detalhe mas anotarei apenas que as grandes descobertas conseguidas pela reconsideração de fenómenos conhecidos são uma ilustração surpreendente da presença destas premissas e uma marca da sua adequação(2). Objetar-se-á - seguindo um outro equívoco muito popular - que embora os cientistas possam ocasionalmente adiantar conjeturas à frente de evidências que lhes parecem ser a priori plausíveis, apenas as usam como 48


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“hipóteses de trabalho” e estão de imediato prontos a abandoná-las perante um conflito de evidência observacional. Isto, no entanto, ou não faz sentido ou é falso. Se significa que uma proposição conceptual é abandonada sempre que uma nova observação é aceite como evidência contrária, então a afirmação é obviamente tautológica. Se sugere que qualquer nova observação formalmente contraditória com uma proposição conduz ao seu abandono, então também é igual e obviamente falsa. O sistema periódico dos elementos é formalmente contradito pelo facto do árgon e do potássio, assim como o telúrio e o iodo, apenas se ajustarem numa sequência decrescente de pesos atómicos, e não numa sequência crescente. Esta contradição, no entanto, nunca levou ao abandono do sistema. A teoria quântica da luz foi proposta em primeiro lugar por Einstein - e subsequentemente encorajada durante vinte anos - apesar de estar em claro conflito com a evidência da difração ótica(3). Essa posição seria de esperar com base nos fundamentos da nossa análise introdutória. Estabelecemos aí que as proposições científicas não se referem definitivamente a qualquer facto observável mas são como as afirmações acerca de um ladrão na porta ao lado - descrevem algo real que se pode vir a manifestar de muitas maneiras indefinidas. Vimos portanto que não existem regras explícitas pelas quais se possa obter uma proposição científica a partir de dados 49

SE SUGERE QUE QUALQUER NOVA OBSERVAÇÃO FORMALMENTE CONTRADITÓRIA COM UMA PROPOSIÇÃO CONDUZ AO SEU ABANDONO, ENTÃO TAMBÉM É IGUAL E OBVIAMENTE FALSA

(3) Para mais discussão deste assunto, ver o apêndice 2.

ALGO REAL QUE SE PODE VIR A MANIFESTAR DE MUITAS MANEIRAS INDEFINIDAS.


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O PAPEL DA OBSERVAÇÃO É DAR INDÍCIOS PARA A APREENSÃO DA REALIDADE: ESSE É O PROCESSO SU

observados, e devemos por isso decidir se apoiamos ou se abandonamos uma proposição científica em face de uma nova observação em particular. O papel da observação é dar indícios para a apreensão da realidade: esse é o processo subjacente à descoberta científica. A apreensão da realidade constitui, por sua vez, um indício para observações futuras; este é o processo subjacente de verificação. Em ambos os processos aparece envolvida uma intuição da relação entre a observação e a realidade: uma faculdade que se estende ao longo de todos os graus de sagacidade, desde os níveis elevados presentes nas conjeturas inspiradas do génio científico até ao mínimo necessário para a perceção corrente. A verificação assenta, em última instância, em poderes mentais que vão para além da aplicação de quaisquer regras definidas, embora esteja geralmente mais sujeita a regras do que a descoberta. Uma tal conclusão pode parecer menos estranha se considerarmos as fases através das quais as proposições da ciência conhecem a existência, em geral. No decurso de uma única inquirição experimental, os estímulos mútuos entre a intuição e a observação continuam ao longo de todo o tempo e tomam as formas mais variadas. Muito do tempo passa-se em esforços infrutíferos, mantidos por um fascínio que aguentará insucesso após insucesso durante meses a fio, e que produzirá novas erupções de 50


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esperança, cada uma tão fresca quanto a última, cruelmente esmagada na semana ou mês anterior. Formas vagas da suposta verdade tomam subitamente a forma de certezas, para depois se dissolverem novamente à luz de segundos pensamentos ou de mais observações experimentais. Mas, de tempos a tempos, aparecem certas visões da verdade que, uma vez aparecidas, continuam a ganhar força, tanto por reflexão como por evidência adicional. São alegações que o investigador pode aceitar como finais e com as quais pode assumir uma responsabilidade pública pela sua comunicação impressa. É assim que as proposições científicas normalmente conhecem a existência. Logo, a certeza de tais proposições apenas pode diferir, por uma questão de grau, dos resultados preliminares anteriores, muitos dos quais tinham, na primeira vez, parecido como finais e que apenas mais tarde se verificou que afinal eram apenas preliminares. Isto não é a mesma coisa que dizer que devemos permanecer sempre na dúvida, mas apenas que a nossa decisão sobre o que aceitar como final não se pode globalmente derivar a partir de regras explícitas, mas deve antes ser tomada à luz do nosso próprio julgamento pessoal sobre a evidência. Também não estou a dizer que não existem regras para guiar a verificação, mas apenas que não existe uma de que se possa depender em último recurso. Sejam as re51

FORMAS VAGAS DA SUPOSTA VERDADE TOMAM SUBITAMENTE A FORMA DE CERTEZAS, PARA DEPOIS SE DISSOLVEREM NOVAMENTE À LUZ DE SEGUNDOS PENSAMENTOS OU DE MAIS OBSERVAÇÕES EXPERIMENTAIS

A NOSSA DECISÃO SOBRE O QUE ACEITAR COMO FINAL NÃO SE PODE GLOBALMENTE DERIVAR A PARTIR DE REGRAS EXPLÍCITAS, MAS DEVE ANTES SER TOMADA À LUZ DO NOSSO PRÓPRIO JULGAMENTO PESSOAL


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O ACORDO COM A EXPERIÊNCIA DEIXARÁ ... SEMPRE ALGUMA DÚVIDA CONCEBÍVEL ACERCA DA VERDADE DA PROPOSIÇÃO

(4) Ver apêndice 3

gras mais importantes da verificação experimental: reprodutibilidade de resultados; acordo entre diferentes determinações feitas por métodos diferentes e independentes; cumprimento das previsões. São critérios potentes, mas posso dar exemplos em que todos eles foram satisfeitos e mesmo assim a afirmação que pareciam confirmar veio mais tarde a mostrar-se falsa. O mais espetacular acordo com a experiência pode ocasionalmente vir a revelar-se, mais tarde, como baseado numa mera coincidência. O acordo com a experiência deixará, por isso, sempre alguma dúvida concebível acerca da verdade da proposição e compete ao cientista julgar se quer ou não considerar essa dúvida como razoável ou não(4). É claro que considerações semelhantes aplicam-se às regras aceites para a refutação. É verdade que o cientista deve estar preparado para se submeter, a qualquer momento, ao veredito adverso da evidência observacional. Mas não cegamente. Foi isso que ilustrei com os exemplos da tabela periódica dos elementos e da teoria quântica da luz, casos que não caíram apesar da evidência contraditória. Há sempre a possibilidade de que, tal como nestes casos, um desvio possa não afetar a correção essencial duma proposição. Tanto o exemplo do sistema periódico como o da teoria quântica da luz mostram que as objeções levantadas por uma contradição a uma teoria podem eventualmente vir a ser ultrapassadas, não pelo 52


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seu abandono mas sim avançando ainda mais um degrau. Qualquer exceção a uma regra pode portanto envolver, concebivelmente, não a sua refutação, mas sim a sua elucidação e, por consequência, a confirmação do seu significado mais profundo. O processo de explicação de desvios é de facto indispensável para a rotina diária da investigação. No meu laboratório descubro, a todas as horas, contradições formais com as leis da natureza, mas ignoro-as assumindo erros experimentais. Sei que isso me pode levar um dia a ignorar um novo fenómeno fundamental e a falhar uma grande descoberta. Coisas dessas aconteceram já muitas vezes na história da ciência. Contudo continuarei a ignorar os meus resultados estranhos, pois se tomasse a sério cada anomalia observada, então a investigação degeneraria imediatamente numa perseguição infrutífera de novidades fundamentalmente imaginárias. Podemos concluir que, tal como não existe qualquer prova de uma proposição na ciência natural que não possa, concebivelmente, vir a mostrar-se incompleta, também não há refutação que, concebivelmente, não possa vir a mostrar-se infundada. Há um resíduo de julgamento pessoal que é necessário para decidir, tal como o cientista eventualmente precisa de o fazer, sobre qual o peso a dar a um conjunto particular de evidências em relação à validade de uma proposição em particular. 53

QUALQUER EXCEÇÃO A UMA REGRA PODE PORTANTO ENVOLVER, CONCEBIVELMENTE, NÃO A SUA REFUTAÇÃO, MAS SIM A SUA ELUCIDAÇÃO

HÁ UM RESÍDUO DE JULGAMENTO PESSOAL QUE É NECESSÁRIO PARA DECIDIR


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IV

COMO ESTOU CONVENCIDO QUE HÁ MUITO DE VERDADE NA CIÊNCIA, NÃO CONSIDERO AS SUAS HIPÓTESES COMO INFUNDADAS

Parece portanto que as proposições da ciência têm a natureza de conjeturas. Baseiam-se nas hipóteses da ciência acerca da estrutura do universo e na evidência das observações coligidas pelos métodos da ciência. Estão sujeitas a um processo de verificação, de acordo com as regras da ciência, mas a sua natureza conjetural permanece-lhes inerente. Como estou convencido que há muito de verdade na ciência, não considero as suas hipóteses como infundadas. Permitam-me por isso que sumarie o meu exame dessas conjeturas para tentar encontrar o método, se é que existe, que se pode descobrir nas suas operações. Em ciência o processo de criação de conjeturas começa quando o noviço se sente, em primeiro lugar, especialmente atraído por uma certa área de problemas. Esta conjetura envolve uma avaliação dos próprios dons intelectuais do jovem, ainda largamente por revelar, e do material científico, por sua vez ainda por coligir, ou mesmo ainda por observar, ao qual possa, no futuro, aplicar com sucesso os seus dons. Envolve pressentir os seus próprios dons ainda ocultos e factos também ainda ocultos na natureza, com que os dois, em conjunto, farão um dia saltar as ideias que o guiarão para a descoberta. É caraterístico do processo de hipóteses científicas que ele possa conjeturar, como neste caso, os vários elementos consecutivos de 54


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uma sequência coerente - mesmo que cada etapa apenas se possa justificar pelo sucesso dos passos seguintes, ainda por descobrir, com os quais se combinará na solução final. Isto é particularmente claro no caso das descobertas matemáticas, que consistem numa nova cadeia completa de argumentos. No seu livro How to solve it, G. Polya comparou essa descoberta com um arco em que a estabilidade de cada pedra depende da presença de outras pedras, e assinalou o paradoxo dessas pedras serem na realidade colocadas uma a uma. A sequência de operações conducentes à síntese química de um composto desconhecido está na mesma categoria: a menos que se chegue a um sucesso final, todo o trabalho foi larga ou totalmente inútil. Para adivinhar uma série de tais etapas é preciso receber uma intimação de que nos aproximamos cada vez mais da solução, em cada uma das etapas. Deve existir antecipadamente um certo conhecimento suficiente da solução global para guiar as conjeturas com uma probabilidade razoável de se fazer a escolha correta em cada uma das etapas consecutivas do processo. É um processo semelhante ao da criação de uma obra de arte, processo que é firmemente guiado por uma visão fundamental do todo final, embora o todo apenas possa ser concebido em definitivo em função dos seus particulares ainda por descobrir - no entanto, com uma diferença notável, pois na ciência natural o todo final não fica dentro dos poderes de 55

DEVE EXISTIR ANTECIPADAMENTE UM CERTO CONHECIMENTO SUFICIENTE DA SOLUÇÃO GLOBAL PARA GUIAR AS CONJETURAS COM UMA PROBABILIDADE RAZOÁVEL DE SE FAZER A ESCOLHA


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PODE-SE PENSAR QUE UMA DESCOBERTA POTENCIAL ATRAI O VENTO QUE A VIRÁ A REVELAR

A MÃO QUE TESTA, OS OLHOS CANSADOS, O CÉREBRO ESQUADRINHADO, PODEMOS CONSIDERAR QUE TODOS ELES LABUTAM COM BASE NO ENCANTAMENTO COMUM POR UMA DESCOBERTA POTENCIAL QUE SE ESFORÇA POR EMERGIR

conformação, mas deve dar origem a uma imagem verdadeira de uma padrão oculto do mundo exterior. Sugeri previamente que o processo de descoberta é próximo do reconhecimento de formas, tal como analisado pela psicologia gestalt [psicologia das formas]. Kohler assume que a perceção das formas faz-se pela reorganização espontânea dos traços físicos criados pelas impressões dos sentidos dentro dos nossos órgãos. Assume que esses sinais de algum modo interagem e coalescem numa ordem dinâmica, cuja formação resulta na perceção de uma forma pelo observador. Podemos dar continuidade ao nosso paralelo entre a descoberta e a perceção gestalt se olharmos para o processo de descoberta como uma coalescência espontânea de elementos que se combinam para a sua realização com sucesso. Pode-se pensar que uma descoberta potencial atrai o vento que a virá a revelar - inflamando o cientista com um desejo criativo e dotando-o da sua presciência, guiando-o de indício para indício e de premissa para premissa. A mão que testa, os olhos cansados, o cérebro esquadrinhado, podemos considerar que todos eles labutam com base no encantamento comum por uma descoberta potencial que se esforça por emergir na atualidade. As condições em que uma descoberta habitualmente ocorre e, de um modo geral, a certeza de que virá a acontecer, mostram que é, de facto, um processo de emergência, 56


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mais do que um feito de ação operacional. As competências operacionais, como a facilidade para fazer, rápida e corretamente, um grande número de medidas e cálculos, contam pouco num cientista. Existem muitos manuais excelentes sobre métodos de computação e sobre todas as formas da técnica experimental. Existem especificações para testar materiais e regras para elaborar estatísticas. Há também manuais sobre triangulação e desenho de mapas exatos. Mas não há manuais que descrevam como conduzir uma investigação, porque é claro que o seu método não se pode definir completamente. Só o progresso de rotina - como a produção de bons mapas e quadros de todos os tipos - pode ser feito seguindo apenas as regras. As regras de investigação não podem, em geral, ser codificadas. Tal como as regras de todas as outras artes superiores, estão incorporadas na sua própria prática. Há uma crença popular segundo a qual o procedimento para a descoberta empírica foi revelado e estabelecido por Francis Bacon. Mas, na realidade, a sua prescrição para fazer descobertas através da coleção de todos os factos e passando-os por um moinho automático era um travesti da investigação. O estudo da heurística, ou seja, da inquirição sobre um método geral de resolver problemas em matemática, foi recentemente revisto por G. Polya no seu How to solve it. Mas este livro excelente apenas prova que a descoberta, longe de ser representada por uma 57

AS COMPETÊNCIAS OPERACIONAIS ... CONTAM POUCO NUM CIENTISTA

O SEU MÉTODO NÃO SE PODE DEFINIR COMPLETAMENTE

AS REGRAS DE TODAS AS OUTRAS ARTES SUPERIORES, ESTÃO INCORPORADAS NA SUA PRÓPRIA PRÁTICA

A DESCOBERTA, LONGE DE SER REPRESENTADA POR UMA OPERAÇÃO MENTAL BEM DEFINIDA, É UMA ARTE EXTREMAMENTE PESSOAL E DELICADA


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A FASE MAIS ESSENCIAL DA DESCOBERTA REPRESENTA UM PROCESSO DE EMERGÊNCIA ESPONTÂNEA

OS ESFORÇOS DO DESCOBRIDOR NÃO SÃO MAIS DO QUE PREPARAÇÕES PARA O GRANDE ACONTECIMENTO DA DESCOBERTA

operação mental bem definida, é uma arte extremamente pessoal e delicada que pouco pode ser assistida por preceitos formulados. Não pode haver qualquer dúvida de que, pelo menos na matemática, a fase mais essencial da descoberta representa um processo de emergência espontânea. Isto foi descrito em primeiro lugar por Poincaré, que analisou a forma como as suas próprias grandes descobertas matemáticas foram feitas, no seu livro Science et Methode. Assinalou que a descoberta usualmente não se dá ao culminar um esforço mental - como ao conseguir alcançar o pico de uma montanha fazendo apelo a um ultimo esforço - mas sim que muitas vezes acontece num lampejo depois de um período de descanso ou de distração. Parece que os nossos esforços são despendidos numa contenda sem sucesso, por entre pedras e ravinas nos flancos da colina, e quando por um momento paramos para um chá vemos que fomos subitamente transportados para o cimo do monte. Os esforços do descobridor não são mais do que preparações para o grande acontecimento da descoberta, que eventualmente acontece - quando acontece - por um processo de reorganização mental espontânea sem controlo por esforços conscientes. Este esquema da descoberta matemática tem sido confirmado por todos os autores subsequentes e um padrão semelhante tem sido observado noutros grandes domínios das atividades criativas da mente humana. 58


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

As quatro fases observadas na descoberta matemática (preparação, incubação, iluminação e verificação, como Wallas lhes chamou) foram também encontradas nos processos de descoberta em ciência natural e, de forma semelhante, podem ser registados nos processos de criação de uma obra de arte. São também muito bem reproduzidos num esforço mental para relembrar uma memória perdida. A solução de enigmas, a invenção de dispositivos práticos, o reconhecimento de formas pouco distintas, o diagnóstico de uma doença, a identificação de uma espécie rara, e muitas outras formas de adivinhação correta parecem conformar-se de acordo com o mesmo padrão. Entre estes eu incluiria a procura piedosa de Deus. A descrição de Santo Agostinho sobre os seus longos esforços para chegar à fé cristã, que culminou abruptamente na sua conversão, que ele reconheceu imediatamente como final, e a que se seguiu uma vindicação da fé subitamente adquirida ao longo de toda a sua vida, certamente revela todas as etapas características do padrão criativo. Todos estes processos de conjeturas criativas têm em comum o facto de serem guiados pela urgência de estabelecer contacto com uma realidade que se sente estar aí desde o princípio, à espera de ser apreendida. É por isso que o ovo de Colombo é o símbolo proverbial de uma grande descoberta. Sugere que uma grande descoberta é a realização de algo óbvio, uma presença ali 59

TODOS ESTES PROCESSOS DE CONJETURAS CRIATIVAS TÊM EM COMUM O FACTO DE SEREM GUIADOS PELA URGÊNCIA DE ESTABELECER CONTACTO COM UMA REALIDADE QUE SE SENTE ESTAR AÍ DESDE O PRINCÍPIO


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O PROCESSO DE INTUIÇÃO CIENTÍFICA É PORTANTO ANÁLOGO À PERCEÇÃO EXTRA SENSORIAL

A FASE INTUITIVA DA DESCOBERTA NATURAL E DA PERCEÇÃO EXTRA SENSORIAL TÊM EM COMUM UM ESFORÇO DE CONCENTRAÇÃO MENTAL PARA EVOCAR O CONHECIMENTO DE UMA COISA REAL NUNCA DANTES VISTA

logo à nossa frente, à espera que abramos os olhos. Tendo isto em consideração, poderá parecer mais apropriado considerar a descoberta nas ciências naturais como guiada não tanto pela potencialidade de uma proposição científica mas por um aspeto da natureza que procura realizar-se nas nossas mentes. O processo de intuição científica é portanto análogo à perceção extra sensorial, tal como estabelecida por Rhine (1934). Parece particularmente semelhante aos atos de precognição ou de aparente clarividência, como adivinhar objetos desconhecidos. A fase intuitiva da descoberta natural e da perceção extra sensorial têm em comum um esforço de concentração mental para evocar o conhecimento de uma coisa real nunca dantes vista. Há uma evidência ampla segundo a qual, tal como a percepção extra sensorial, a intuição heurística funciona de uma forma bastante precisa. Dois cientistas confrontados com um conjunto semelhante de factos debater-se-ão frequentemente com o mesmo problema e descobrirão a mesma solução. Descobertas coincidentes, ou quase coincidentes, por investigadores independentes são comuns, e seriam ainda mais frequentes se não fosse o facto da publicação pouco rápida de trabalhos bem sucedidos dificultar que outros se completem com rapidez. Logo, quando negamos que a descoberta se possa atingir por um conjunto definido de operações, também não precisamos 60


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de colocar o processo fora das leis da natureza, mas podemos continuar a olhar para o seu rumo como fortemente limitado pelas circunstâncias que o investigador tem que enfrentar (os fatores fora do controlo dessas circunstâncias serão tratados na secção V). Mas o estudo da perceção extra sensorial pode dar-nos lições para compreender a intuição. Uma das coincidências mais curiosas da história da ciência foi a descoberta quase simultânea da mecânica quântica por Heisenberg e Born, na forma de matrizes, e por Schrondinger, na forma de mecânica ondulatória, pelo que as duas reivindicações foram, numa primeira fase, consideradas como contraditórias. Os pontos de partida das duas teorias e as suas apresentações do problema, assim como todo o seu aparato matemático, eram diferentes. Acima de tudo - tal como Schrondinger assinalou no trabalho em que eventualmente estabeleceu a identidade matemática das duas soluções - o seu desvio relativamente à mecânica clássica fez-se por direções diametralmente opostas. Parece mais razoável descrever este acontecimento dizendo que ambos os investigadores tinham uma perceção intuitiva de uma mesma realidade oculta na natureza, de que fizeram descrições diferentes. Tão diferentes que, ao compará-las, pensaram estar a descrever objetos díspares. Na realidade, Dirac provaria pouco depois que ambas as representações tinham um problema, 61

AMBOS OS INVESTIGADORES TINHAM UMA PERCEÇÃO INTUITIVA DE UMA MESMA REALIDADE OCULTA NA NATUREZA, DE QUE FIZERAM DESCRIÇÕES DIFERENTES


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(5) Telepathy, p. 36

QUANDO FINALMENTE SE RESOLVE UM PROBLEMA CONSIDERADO IRRESOLÚVEL HÁ MUITO TEMPO, HABITUALMENTE DESCOBRE-SE UMA SÉRIE DE SOLUÇÕES QUE PARECIAM SER COMPLETAMENTE INDEPENDENTES UMAS DAS OUTRAS

pois estavam em conflito com a relatividade. Quando corrigidas desse defeito, descobriu-se que a formulação da mecânica quântica se tinha transformado de forma quase irreconhecível - o que parece estar conforme com a experiência da percepção extra sensorial. Quando o desenho de um objeto é pressentido por telepatia ou precognição não há uma tendência para reproduzir o seu contorno físico, mas antes pelo contrário “... tudo parece como se os que acertam tivessem sido avisados para “desenhar uma mão”, por exemplo, mais do que “copiar este desenho de uma mão”. Podemos dizer que é a “ideia”, ou o “conteúdo”, ou o “significado” do original que passa, não a sua forma”, escreveu Whateley Carington(5). Podemos pensar que tanto Heisengerg como Schrondinger penetraram no mesmo significado, mas fizeram desenhos diferentes dele, tão diferentes que eles próprios não reconheceram o seu significado idêntico. É tentador incluir nesta imagem o facto, que ouvi mencionado com surpresa entre matemáticos, que quando finalmente se resolve um problema considerado irresolúvel há muito tempo, habitualmente descobre-se uma série de soluções que pareciam ser completamente independentes umas das outras - o que pode ser explicado assumindo que a intuição pressentiu uma realidade de que várias soluções diferentes representam descrições ou aspetos diferentes. Uma vez mais, ouvi entre matemáticos a seguin62


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

te descrição de uma série de descobertas: a primeira descoberta é como uma ilha solitária numa extensão interminável de mar. Depois descobrem-se uma segunda e uma terceira ilhas, sem qualquer ligação aparente. Mas gradualmente torna-se claro que as águas vão desaparecendo e deixando atrás de si aquilo que eram as três ilhas isoladas como picos de uma grande cadeia de montanhas. É precisamente o que esperaríamos ver acontecer quando a intuição pressente, em primeiro lugar, qual é a cadeia fundamental do pensamento, ou seja, a montanha alinha-se e a consciência pouco a pouco avança com a sua descrição. Na realidade, estes processos menos habituais não são diferentes, na sua essência, de um acontecimento ordinário de uma cadeia oculta de raciocínios matemáticos, ao ser descoberto por uma série de avanços sucessivos. Finalmente, menciono, com alguma hesitação, embora com a convicção de que devem ser pelo menos tentativamente considerados neste contexto, as curiosas coincidências entre as descobertas teóricas e experimentais, de que ocorreram alguns casos notáveis nos últimos vinte anos, mais ou menos. Em 1923, de Broglie sugeriu que os eletrões poderiam ter uma natureza ondulatória e em 1925 Davisson e Germer, nada conhecendo dessa história, fizeram a primeira observação do fenómeno, logo após ter sido reconhecido como a difração dessas ondas. A previsão do eletrão positivo, implícita na 63


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A INTUIÇÃO É SEMPRE IMPERFEITA

MAS SE A CIÊNCIA NÃO É MAIS DO QUE CONJETURAS, PORQUÊ CONSIDERAR UMA CONJETURA MELHOR DO QUE OUTRA?

mecânica quântica relativista de Dirac em 1928, foi confirmada pela descoberta da partícula em 1932 por Anderson, que nada conhecia do trabalho de Dirac. Poderíamos ainda juntar a predição do mesão pela teoria dos campos nucleares de Yukawa (1935) e a descoberta contemporânea dos raios cósmicos, finalmente estabelecida por Anderson (1928). Será que o mesmo contato intuitivo guiou estas abordagens alternativas para uma mesma realidade oculta? A intuição é sempre imperfeita. Diferentes imagens da mesma realidade terão um valor diferente, e muitas delas não serão mais do que uma forma vaga e muito distorcida de verdade sobre a realidade. Podemos também considerar a possibilidade de tiros no escuro, completamente errados. São bastante comuns em todas as formas de conjeturas, assim como nos testes de perceção extra sensorial. Se a mente desconhece um contato intuitivo com a realidade então tenderá a fazer interpretações irreais e infrutíferas da evidência que se lhe apresenta. Um passante escolhido à sorte na rua para conduzir investigações científicas demonstraria isso de forma clara. Mas se a ciência não é mais do que conjeturas, porquê considerar uma conjetura melhor do que outra? Por outras palavras, qual é a base, se é que existe alguma, para considerar uma proposição da ciência como válida? Consideraremos esta questão por etapas, durante as lições subsequentes. Para 64


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

já apenas alegamos que aceitar a ciência natural, ou uma parte dela, como verdadeira implica também reconhecer a nossa capacidade para imaginar a natureza das coisas no mundo exterior. As duas formulações algo díspares da descoberta a que chegamos até este ponto em particular, (1) a organização espontânea da mente e dos indícios para a realização de uma descoberta potencial e (2) as perceções extra sensoriais da realidade chamadas à consciência por indícios relevantes - ficarão idênticas se assumirmos que a perceção ordinária das formas (gestalt) inclui um processo de perceção extra sensorial. Ou seja, como se as impressões sensoriais fossem normalmente acompanhadas por uma transmissão extra sensorial que transmite o significado que lhes está associado. A incerteza deste último processo, tal como observada nos processos usuais de perceção extra sensorial, pode ser tomada por ilusões e outros erros interpretativos. Tais especulações podem, no entanto, parecer prematuras considerando o nosso conhecimento ainda muito escasso da perceção extra sensorial. Por isso regressaremos uma vez mais à análise mais detalhada da descoberta científica.

V Temos ainda que reconhecer um elemento 65

ACEITAR A CIÊNCIA NATURAL, OU UMA PARTE DELA, COMO VERDADEIRA IMPLICA TAMBÉM RECONHECER A NOSSA CAPACIDADE PARA IMAGINAR A NATUREZA DAS COISAS NO MUNDO EXTERIOR


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O CIENTISTA PODE PARECER UM MERO DECIFRADOR DA VERDADE, CONDUZIDO POR UMA SENSIBILIDADE INTUITIVA

O CIENTISTA PARECE ESTAR AQUI A ATUAR COMO UM DETETIVE, UM POLÍCIA, UM JUIZ E UM JÚRI, TUDO NO MESMO PAPEL

importante em todos os julgamentos pessoais que afetam as afirmações científicas. Visto de fora, tal como o descrevemos, o cientista pode parecer um mero decifrador da verdade, conduzido por uma sensibilidade intuitiva. Mas esta visão não tem em consideração o facto curioso de ele próprio ser, em última instância, o juiz daquilo que aceita como sendo a verdade. O seu cérebro trabalha para satisfazer as suas próprias exigências de acordo com os critérios aplicados pelo seu próprio julgamento. É como um jogo de paciência em que o jogador pode aplicar as regras que acha que melhor se adequam a cada caso. Ou, para variar a semelhança, o cientista parece estar aqui a atuar como um detetive, um polícia, um juiz e um júri, tudo no mesmo papel. Apreende certos índicos como suspeitos; formula a acusação e examina a evidência, tanto a favor como contra, admitindo ou rejeitando o que acha adequado, e finalmente pronunciando o julgamento. Ao mesmo tempo, longe de ser neutro de coração, está apaixonadamente interessado no desfecho do processo. Precisa de o ser, senão nunca descobrirá um problema e certamente nunca avançará para a sua solução. Polya escreveu que “... para resolver um problema científico sério é preciso uma força de vontade que pode ter que aguentar anos e anos de labuta e de desapontamentos amargos...”. “Ficamos exultantes quando as nossas previsões se concretizam. Ficamos deprimidos 66


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

quando o caminho que estávamos a seguir com confiança fica subitamente bloqueado e a nossa determinação vacila”. Há aqui uma tentação forte de evitar o desconforto prestando uma atenção insuficiente à evidência que está a obstruir o nosso caminho. Começando por uma preconceção intuitiva da verdade, e retesando cada nervo para a provar como correta - pode ser muito difícil para um cientista não passar das marcas ao tentar verificar as suas conjeturas. Diz a Bíblia: “corrige um homem sensato e ele amar-te-á”. O cientista não poderá ficar deliciado quando a sua teoria, suportada por uma série de observações anteriores, parece colapsar à luz das experiências mais recentes. Se estava errado, então escapou a estabelecer uma falsidade e recebeu um aviso a tempo, para mudar para uma nova direção. Mas não é assim que agora ele se vai sentir. Fica abatido e confuso, e só consegue pensar nas possíveis explicações para a observação obstrutiva. Claro que há sempre a possibilidade disto poder ser, de facto, a opção certa a tomar. Pode ser precisamente um daqueles casos em que é preciso começar por ignorar as exceções e deixá-las para consideração posterior. A sua emoção, nascida de uma intuição que penetra mais fundo do que a evidência do dia a dia, pode ser que esteja correta, e o procedimento certo pode ser que seja perseverar nessa orientação, mesmo contra a evidência aparente. 67

A SUA EMOÇÃO, NASCIDA DE UMA INTUIÇÃO QUE PENETRA MAIS FUNDO DO QUE A EVIDÊNCIA DO DIA A DIA, PODE SER QUE ESTEJA CORRETA


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ESTE JULGAMENTO TAMBÉM TEM UM ASPETO MORAL

TORNA O JULGAMENTO DO CIENTISTA NUMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA.

TODAS AS DECISÕES DIFÍCEIS A TOMAR NUMA INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E SUA SUBSEQUENTE PUBLICAÇÃO E DEFESA PÚBLICA ENVOLVEM QUESTÕES DE CONSCIÊNCIA

Disse anteriormente que problemas deste tipo não se podem resolver por regras estabelecidas e que a decisão a tomar é assunto para o julgamento pessoal do cientista. Vemos agora que este julgamento também tem um aspeto moral. Vemos interesses superiores em conflito com interesses inferiores. Isso envolve questões de convicções e de lealdade para com um ideal. Torna o julgamento do cientista numa questão de consciência. É claro que a fidelidade aos ideais científicos da prudência e da auto crítica honesta é indispensável, até mesmo para as tarefas mais simples na oficina da ciência. É a primeira coisa a ensinar a um estudante quando aprende a ser cientista. Mas muitos estudantes apenas aprendem a ser “conscienciosos” num sentido pedante e cético, que pode paralisar todo o avança da investigação. Verificar referências, por exemplo, é uma questão de mera rotina, consciente e penosa, mas não o tipo de consciência a que me quero referir. Mas a verdadeira consciência científica está envolvida quando se avalia quanto se pode confiar nos dados de outras pessoas e evitar, ao mesmo tempo, os perigos da precaução a mais ou a menos. Do mesmo modo todas as decisões difíceis a tomar numa investigação científica e sua subsequente publicação e defesa pública envolvem questões de consciência, cada uma das quais é um teste à sinceridade do cientista e à sua devoção aos ideais científicos. 68


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

O cientista assume uma responsabilidade completa por cada uma destas ações e, em particular, para com as pretensões que adianta. Se as suas firmações forem confirmadas por outros, seja de que forma for e de que maneira for, mesmo que fossem impensáveis quando propostas pela primeira vez, reivindicará que estava certo. Pelo contrário, se o seu trabalho se provar estar errado, sentirá que falhou. Não poderá desculpar-se com o facto de ter seguido as regras, ou de ter sido enganado pela evidência de outros investigadores, ou dos seus próprios colaboradores, ou de que não teve tempo para fazer os testes que eventualmente poderiam ter refutado as suas teses. Tais razões poderão servir para explicar o seu erro, mas nunca o poderão justificar - pois não está obrigado a qualquer regra explícita e pode aceitar ou rejeitar qualquer evidência à sua própria discrição. A tarefa do cientista não é observar qualquer procedimento alegadamente correto, mas antes conseguir resultados corretos. Tem que estabelecer contato, seja por que meio for, com uma realidade oculta com que está implicado. A sua consciência deve portanto dar sempre o seu consentimento a partir da sensação de ter estabelecido esse contato. E aceitará por isso o dever de se comprometer a ele próprio, com base na força da sua evidência, que eventualmente poderá nunca estar completa. E confiará que uma tal aposta, quando baseada nos ditames da sua consciência científica, 69

NÃO PODERÁ DESCULPAR-SE COM O FACTO DE TER SEGUIDO AS REGRAS, OU DE TER SIDO ENGANADO PELA EVIDÊNCIA DE OUTROS INVESTIGADORES,

TEM QUE ESTABELECER CONTATO, SEJA POR QUE MEIO FOR, COM UMA REALIDADE OCULTA COM QUE ESTÁ IMPLICADO


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UMA ESPECULAÇÃO INTUITIVA SEM RESTRIÇÕES LEVARIA A ANSIOSAS CONCLUSÕES EXTRAVAGANTES, ENQUANTO QUE O CUMPRIMENTO RIGOROSO DE UM CONJUNTO DE REGRAS CRÍTICAS PARALISARIA COMPLETAMENTE A DESCOBERTA

é de facto a sua função competente e a sua própria oportunidade para contribuir para a ciência. Podemos distinguir claramente, em todas estas fases da descoberta, os dois elementos pessoais diferentes que entram em todo o julgamento científico e que tornam possível que um cientista seja juiz no seu próprio caso. Impulsos intuitivos continuam a chegar até si, estimulados por alguma da evidência, mas em conflito com outras partes dessa evidência. Uma metade da sua mente continua a adiantar novas pretensões, enquanto que a outra metade continua a opôr-se. Ambas as partes são cegas, e deixadas entregues a si próprias levariam a um desnorte indefinido. Uma especulação intuitiva sem restrições levaria a ansiosas conclusões extravagantes, enquanto que o cumprimento rigoroso de um conjunto de regras críticas paralisaria completamente a descoberta. O conflito só pode ser resolvido por uma decisão judicial de uma terceira parte acima dos contestantes. A terceira parte, na mente do cientista, é a sua consciência científica, que tanto transcende os seus impulsos criativos como a sua prudência crítica. Reconhecemos a nota tocada pela consciência pelo tom de responsabilidade pessoal com que o cientista declara as suas pretensões últimas, o que indica a presença de um elemento moral nos fundamentos da ciência. Na minha próxima lição elaborarei em detalhe sobre este ponto. 70


–2– AUTORIDADE E CONSCIÊNCIA



CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

V

imos que as proposições incorporadas na ciência natural não são derivadas dos dados da experiência por uma qualquer regra definida. Primeiro começam por ganhar forma como conjeturas baseadas em premissas, que são tudo menos inevitáveis, e que também não podem ser claramente definidas. Após o que são verificadas por um processo de endurecimento observacional que deixa sempre espaço para julgamentos pessoais pelo cientista. Em todo o julgamento de validade científica fica portanto implícito que aceitamos as premissas da ciência e que se pode confiar na consciência do cientista. Nesta lição tentarei expor os fundamentos em que assentam hoje em dia as premissas da ciência e mostrar como a consciência dos cientistas tem as suas raízes nesses mesmos fundamentos.

I. As premissas subjacentes à ciência são de dois tipos. Há as suposições acerca da natureza da experiência de cada dia, que constituem a visão naturalista - por oposição com 73

EM TODO O JULGAMENTO DE VALIDADE CIENTÍFICA FICA PORTANTO IMPLÍCITO QUE ACEITAMOS AS PREMISSAS DA CIÊNCIA E QUE SE PODE CONFIAR NA CONSCIÊNCIA DO CIENTISTA


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EUROPEUS EDUCADOS A ACREDITAR NUM SISTEMA ELABORADO DE MÁGICA SERIAM TÃO INSENSÍVEIS À CIÊNCIA QUANTO O SÃO OS ATUAIS PRIMITIVOS

AS PREMISSAS SUBJACENTES A UM GRANDE PROCESSO INTELECTUAL NUNCA SE FORMULAM E TRANSMITEM NA FORMA DE PRESCRIÇÕES DEFINITIVAS

a visão mágica, mitológica, etc. E depois há as suposições mais particulares que estão diretamente associadas com os processos de descoberta e sua verificação. Nenhuma delas é inata. As crianças dos nativos primitivos, cujos pais estão inveteradamente convencidos das suas interpretações mágicas das coisas, podem ser facilmente educados numa visão naturalista da natureza, nas escolas orientadas pelos missionários locais. Sem dúvida que o inverso não seria tão fácil de conseguir. Europeus educados a acreditar num sistema elaborado de mágica seriam tão insensíveis à ciência quanto o são os atuais primitivos. A visão naturalista apoiada pelos cientistas e outros homens modernos, hoje em dia, tem origem na sua educação primária. As premissas subjacentes a um grande processo intelectual nunca se formulam e transmitem na forma de prescrições definitivas. Quando as crianças aprendem a pensar de modo naturalista não adquirem qualquer conhecimento explícito dos seus princípios causadores. Aprendem a olhar para os acontecimentos segundo os termos daquilo a que chamamos causas naturais e pela prática de tais interpretações, dia após dia, ficam eventualmente convencidas das premissas que lhes estão subjacentes. Muito disso acontece quando a criança aprende a falar numa linguagem que descreve os acontecimentos em termos naturalistas, e o processo de aquisição do discurso falado é 74


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um bom exemplo dos princípios pelos quais as premissas do pensamento se transmitem de uma geração para a seguinte, em geral. O discurso aprende-se pela imitação inteligente dos adultos. Cada palavra precisa de ser observada em contextos diferentes até que o seu significado é compreendido de forma aproximada ou grosseira. Precisa depois de ser lido em livros e usada durante algum tempo sob a orientação de adultos para que as cambiantes mais importantes do seu significado possam ser dominadas. Este treino pode ser complementado por normas, mas a prática imitativa é sempre o princípio mais importante. O que também é verdade no processo pelo qual os elementos das artes superiores são assimilados. A pintura, a música, etc., só podem ser aprendidas pela prática, guiada pela imitação inteligente. As premissas da ciência ensinam-se, hoje em dia, mais ou menos em três etapas. A ciência escolar facilita o uso de termos científicos para assinalar a doutrina estabelecida, a letra morta da ciência. A universidade tenta levar esse conhecimento à vida dando a conhecer ao estudante as suas incertezas e a sua eterna natureza provisional, e porventura um vislumbre das implicações dormentes que podem ainda vir a emergir da doutrina estabelecida. Também transmite os princípios do julgamento científico, ao ensinar a prática da prova experimental e facultando uma primeira experiência em investigação científica. Mas uma iniciação 75

O DISCURSO APRENDESE PELA IMITAÇÃO INTELIGENTE DOS ADULTOS

A PINTURA, A MÚSICA, ETC., SÓ PODEM SER APRENDIDAS PELA PRÁTICA, GUIADA PELA IMITAÇÃO INTELIGENTE

A UNIVERSIDADE TENTA LEVAR ESSE CONHECIMENTO À VIDA DANDO A CONHECER AO ESTUDANTE AS SUAS INCERTEZAS E A SUA ETERNA NATUREZA PROVISIONAL


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É POR ISSO QUE MUITOS GRANDES CIENTISTAS FORAM CONTINUADORES DE GRANDES MESTRES DE QUEM FORAM APRENDIZES

nas premissas da ciência só é acessível aos poucos que possuem os dons necessários para se transformarem em cientistas independentes, o que normalmente apenas conseguem por uma associação pessoal muito próxima com as visões íntimas e a prática de um mestre distinto. As grandes escolas de investigação fomentam as premissas vitais da investigação científica. Os trabalhos diários do mestre revelam-nas aos estudantes inteligentes e transmitem-lhe também algumas das suas intuições pessoais, que guiam os seus trabalhos. A forma como ele escolhe os seus problemas, seleciona uma técnica, reage a novos indícios e a dificuldades inesperadas, discute o trabalho dos outros cientistas e, ao mesmo tempo, especula acerca de centenas de possibilidades que nunca se hão-de materializar, mas que transmitem, pelo menos, uns reflexos das suas visões essenciais. É por isso que muitos grandes cientistas foram continuadores de grandes mestres de quem foram aprendizes. O trabalho de Rutherford teve o cunho claro da sua aprendizagem com J. J. Thompson. Entre os alunos pessoais de Rutherford encontram-se pelo menos quatro laureados com o prémio Nobel. Algumas formas de ciência, como a psicanálise, dificilmente se podem transmitir por normas e preceitos. Hoje em dia cada psicanalista ou foi analisado por Freud ou por outro psicanalista que, por sua vez, tinha sido analisado por outro, etc. (talvez uma versão moderna de 76


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sucessão apostólica). No Reino Unido, a investigação na química dos carbohidratos foi quase exclusivamente o trabalho de quatro cientistas, Puddy, Irvine, Haworth, e Hirst, que se seguiram uns aos outros como mestres e alunos. Qualquer esforço feito para compreender algo precisa do apoio de se acreditar em que aí existe algo que se possa compreender. O esforço para aprender a falar é induzido na criança pela convicção de que falar significa algo. Conduzido pelo amor e pela confiança dos seus guardiões, apercebe-se da luz da razão nos seus olhos, voz e atitude e sente-se instintivamente atraído pela fonte dessa luz. É impelido a imitar - e a compreender melhor à medida que cada vez vai imitando melhor - essas ações expressivas dos seus guias adultos. A aprendizagem das artes superiores, e da ciência em particular, é aceite e seguida com base em fundamentos semelhantes. O futuro cientista é atraído pela literatura popular científica, ou pelo trabalho escolar sobre ciência, ainda antes de poder formar uma ideia verdadeira sobre a natureza da investigação científica. Os pedaços de ciência que ele seleciona - apesar de muitas vezes áridos ou capciosamente disfarçados - instilam nele a intimação de tesouros intelectuais e de alegrias criativas muito para além do que está ao alcance da sua vista. A perceção intuitiva de um grande sistema de pensamento válido e de um interminável 77

QUALQUER ESFORÇO FEITO PARA COMPREENDER ALGO PRECISA DO APOIO DE SE ACREDITAR EM QUE AÍ EXISTE ALGO QUE SE POSSA COMPREENDER

É IMPELIDO A IMITAR - E A COMPREENDER MELHOR À MEDIDA QUE CADA VEZ VAI IMITANDO MELHOR


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NINGUÉM SE PODE TORNAR NUM CIENTISTA A MENOS QUE PRESUMA QUE A DOUTRINA E O MÉTODO CIENTÍFICO SÃO FUNDAMENTALMENTE SÓLIDOS

percurso de descobertas incita-o a acumular laboriosamente conhecimento e encoraja-o a penetrar em teorias intrincadas. Por vezes encontrará também um mestre cujo trabalho admira e cujo método e perspetiva aceita para sua orientação. A sua mente assimila então as premissas da ciência, aprende os métodos da investigação científica e aceita os padrões do valor científico. Em cada uma das etapas desse progresso é incentivado por acreditar que certas coisas ainda para além do seu conhecimento e da sua compreensão são, no seu todo, verdadeiras e valiosas, e por isso valerá a pena aplicar os seus melhores e mais intensos esforços para as dominar - o que representa o reconhecimento da autoridade daquilo que vai aprender e daqueles que o vão ensinar. É a mesma atitude de uma criança que ouve a voz da sua mãe e que absorve o significado do seu discurso. Ambos se baseiam em acreditar implicitamente na significância e verdade do contexto que o discípulo está a tentar dominar. Uma criança nunca pode aprender a falar se assumir que as palavras usadas não têm sentido, ou mesmo se assumir que cinco em cada dez das palavras usadas não têm sentido. De forma semelhante, ninguém se pode tornar num cientista a menos que presuma que a doutrina e o método científico são fundamentalmente sólidos e que as suas premissas últimas podem ser inquestionavelmente aceites. Encontramos aqui um caso do processo descrito de forma 78


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epigramática pelos primeiros pais da igreja cristã: fides quaerens intellectum, a fé à procura da compreensão. Há uma forma de conjetura inteligente semelhante aquela que está subjacente ao processo de descoberta e que desempenha um papel fundamental no processo de aprendizagem. Assimilar as premissas ocultas de um importante processo artístico ou intelectual é, de facto, um feito secundário de descoberta. Compreender a ciência é penetrar na realidade descrita pela ciência e representa uma intuição da realidade, para a qual a prática estabelecida e a doutrina da ciência funcionam como indícios. A aprendizagem em ciência pode ser considerada como uma repetição de toda uma série completa de descobertas pelas quais o corpo existente de ciência foi inicialmente estabelecido. Logo, a autoridade perante a qual o estudante da ciência se submete cuida de eliminar as suas próprias funções ao estabelecer um contacto direto entre o estudante e a realidade da natureza. À medida que se vai aproximando da maturidade, o estudante irá depender cada vez mais do seu próprio julgamento. A sua intuição e consciência assumem a responsabilidade à medida que a autoridade se vai eclipsando. Isto não significa que não vá continuar a basear-se nos relatórios de outros cientistas - longe disso mas significa que uma tal confiança será doravante inteiramente submetida ao seu próprio julgamento. A submissão à autoridade 79

A FÉ À PROCURA DA COMPREENSÃO

A SUA INTUIÇÃO E CONSCIÊNCIA ASSUMEM A RESPONSABILIDADE À MEDIDA QUE A AUTORIDADE SE VAI ECLIPSANDO

A SUBMISSÃO À AUTORIDADE SERÁ DORAVANTE UMA MERA PARTE DO PROCESSO DE DESCOBERTA


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O ALUNO PRATICA POR ISSO A CRÍTICA MESMO DURANTE O SEU PERÍODO DE ESTUDO

será doravante uma mera parte do processo de descoberta, com a qual - tal como para o processo como um todo - assumirá a responsabilidade total perante a sua própria consciência. Segue-se que as perspetivas pessoais dos seus professores nunca serão - nem devem ser - aceites pelo discípulo salvo incorporadas nas premissas gerais da ciência. Os alunos devem ser treinados a partilhar os fundamentos sobre os quais se baseiam os seus professores, para sobre esses fundamentos tomarem as suas próprias posições independentes. O aluno pratica por isso a crítica mesmo durante o seu período de estudo, e o professor deverá incentivar alegremente quaisquer sinais de originalidade por parte do aluno. Mas isto deverá manter-se dentro de limites adequados: o processo de aprendizagem precisa de se basear principalmente sobre a aceitação da autoridade. Quando necessária, essa aceitação deve ser imposta pela disciplina. Naturalmente há aqui campo para possíveis conflitos entre mestres e discípulos. O aluno que, no decurso de uma sessão prática elementar, obtém um resultado errado para uma análise química e reclama uma descoberta fundamental, não está a fazer qualquer progresso. Deve ser repreendido e, se necessário, afastado. Mas os mestres que tentam impor os seus caprichos sobre os seus alunos de investigação e que (tal como eu conheci um caso) os pressionam 80


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para confirmarem as suas teorias, devem merecer uma oposição ainda mais forte. Este tipo de conflito é um entre os muitos tipos afins de problemas que podem ocorrer na vida científica. Referiremos outros mais à frente. Se os conflitos extremos entre mestres e alunos fossem generalizados, a transmissão das premissas da ciência de uma geração para a seguinte seria impossível e a ciência extingir-se-ía. A existência continuada da ciência é uma expressão da raridade de tais factos. E são assim raros porque tanto os mestres como os alunos têm, em geral, um afeto sincero pela ciência e uma visão da ciência suficientemente autêntica para que aí consigam encontrar um terreno comum para acordo. As suas consciências, segundo as quais precisam de se guiar em última instância, harmonizam-se o suficiente para se manterem em concórdia. É claro que alguns mestres são insípidos, pedantes e opressores, e outros porventura mal orientados pelas suas ideias pessoais preconcebidas. Alguns alunos podem mesmo recusar a orientação ainda antes de dominarem os elementos do seu tema. Mas estes casos são tão pouco frequentes que as quebras ocasionais daí resultantes podem ser redimidas sem dificuldade pelo recurso à opinião científica em geral. O escândalo elimina-se por conciliação ou por medidas disciplinares, ou pelo menos isola-se e deixa-se arrefecer sem prejuízos graves. Aqui, tal como em muitos outros casos, 81

SE OS CONFLITOS EXTREMOS ENTRE MESTRES E ALUNOS FOSSEM GENERALIZADOS, A TRANSMISSÃO DAS PREMISSAS DA CIÊNCIA DE UMA GERAÇÃO PARA A SEGUINTE SERIA IMPOSSÍVEL E A CIÊNCIA EXTINGIR-SE-ÍA


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PORQUE É QUE OS CIENTISTAS EM GERAL ESTÃO TÃO FACILMENTE DE ACORDO ENTRE SI?

os ajustes últimos no processo de transmissão das premissas da ciência dependem do bom funcionamento da opinião científica - cuja discussão nos permitirá aprofundar ainda mais outra questão: porque é que os cientistas em geral estão tão facilmente de acordo entre si?.

II

EM TERMOS MATERIAIS, OS DOMÍNIOS DA CIÊNCIA CONSISTEM EM CERTOS PERIÓDICOS E LIVROS, BOLSAS PARA INVESTIGAÇÃO E SALÁRIOS, E OS EDIFÍCIOS USADOS PARA ENSINAR E PARA INVESTIGAR

A relação entre o aluno e o professor não é mais do que uma instância e uma faceta de um conjunto mais alargado de instituições, que asseguram a confiança e a disciplina mútua entre os cientistas, pelas quais se organiza a prática das descobertas e se promovem e desenvolvem as premissas da ciência. Esboçarei de forma simplificada o quadro de referência destas instituições. Em termos materiais, os domínios da ciência consistem em certos periódicos e livros, bolsas para investigação e salários, e os edifícios usados para ensinar e para investigar. Este domínio é adquirido pelos cientistas com os fundos necessários que são postos à sua disposição por diversas fontes exteriores ao mundo da ciência. Como veremos, a sua administração consiste principalmente em manter os padrões da ciência e em proporcionar oportunidades para o seu progresso espontâneo. Comecemos pela administração. 82


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Em primeiro lugar consideraremos os periódicos. Nenhuma contribuição para a ciência tem a possibilidade de ser bem conhecida a menos que seja publicada na forma impressa, e as possibilidades do seu reconhecimento são muito baixas a menos que publicada numa das principais revistas científicas. Os revisores e editores destas revistas são responsáveis pela exclusão de todos os assuntos que considerem pouco sólidos ou relevantes. Têm por missão garantir um padrão mínimo para toda a literatura científica publicada. A publicação de um artigo abre-o ao escrutínio de todos os cientistas, que formarão, e eventualmente também exprimirão, uma opinião sobre o seu valor. Podem duvidar, ou mesmo rejeitar, das suas alegações e o seu autor provavelmente fará a sua defesa. Após algum tempo teremos uma opinião mais ou menos consolidada acerca do trabalho. A terceira etapa do escrutínio público para estabelecer e difundir uma contribuição da ciência é a sua incorporação em livros de texto, ou pelo menos em livros de referência. Isto confere-lhe o selo final da autoridade científica e acredita-a para o ensino nas universidades e nas escolas, assim como para a difusão popular para o grande público. Os livros de texto são geralmente compostos, ou pelo menos editados, por cientistas com autoridade e a sua aceitação geral é sempre controlada por revisores e professores de autoridade reconhecida entre os cientistas. 83

NENHUMA CONTRIBUIÇÃO PARA A CIÊNCIA TEM A POSSIBILIDADE DE SER BEM CONHECIDA A MENOS QUE SEJA PUBLICADA NA FORMA IMPRESSA

A PUBLICAÇÃO DE UM ARTIGO ABRE-O AO ESCRUTÍNIO DE TODOS OS CIENTISTAS


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ESTA INDEPENDÊNCIA DOS CIENTISTAS MAIS MADUROS REPRESENTA O NÚCLEO ESSENCIAL DA VIDA CIENTÍFICA

A AUTORIDADE NÃO ESTÁ IGUALMENTE DISTRIBUÍDA ENTRE CIENTISTAS

Seguem-se os postos científicos. A ciência é hoje em dia ativamente desenvolvida em instituições com subsídios e apoios, onde os cientistas, ao atingirem uma posição sénior, podem usar livremente o seu tempo e os seus apoios para desenvolverem as suas próprias investigações. Esta independência dos cientistas mais maduros representa o núcleo essencial da vida científica. Deixa ao julgamento soberano de cientistas individuais a iniciativa para lançar novas linhas de investigação. Mas a designação para os postos com este privilégio precisa de ser rigorosamente controlada. A seleção de pessoal científico depende em larga medida do valor atribuído pela opinião científica ao trabalho publicado pelos diferentes candidatos. Para além disso solicitam-se opiniões e recomendações para cada nomeação científica importante. A alocação de bolsas especiais de investigação e a confirmação de graus e distinções científicas faz-se ao longo das mesmas linhas. As oportunidades para investigação, na forma de edifícios, laboratórios, fundos de investigação e salários, são também conformadas (dentro dos limites dos recursos disponíveis) de acordo com a opinião dos cientistas, que tentarão assegurar um ritmo máximo de progresso da ciência como um todo através da alocação de recursos aos temas mais ativos para o crescimento da ciência. A autoridade não está igualmente distribuída entre cientistas. Há uma hierarquia 84


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de influência, embora a autoridade excecional esteja ligada mais a pessoas do que a instituições. A um cientista atribui-se uma influência excecional pelo facto da sua opinião ser valiosa e solicitada. Pode ter sido eleito para comités administrativos, mas isso não é essencial. O auto governo da ciência é largamente não oficial, e as decisões permanecem na opinião científica em geral, em cada ocasião focadas e expressas pelos especialistas mais competentes, que merecem mais confiança. A manutenção dos mesmos padrões mínimos sobre todos os domínios da ciência exige a possibilidade de comparar o mérito científico em campos diferentes. Para tal é essencial que os cientistas possam apreciar não só o trabalho feito na sua área como também o das áreas vizinhas, pelo menos para a consultarem e para serem capazes de formar uma opinião crítica. Esta coerência das avaliações através de toda uma gama de ciências está subjacente à unidade da ciência. Significa que todas as afirmações reconhecidas como válidas numa área da ciência podem, em geral, ser consideradas como sendo subscritas por todos os cientistas. Isso também resulta numa homogeneidade geral e num respeito mútuo entre todas os tipos de cientistas, em virtude da qual a ciência forma uma unidade orgânica. O governo da ciência, que descrevi brevemente, não exerce qualquer direção específica das atividades sob o seu controlo. 85

O AUTO GOVERNO DA CIÊNCIA É LARGAMENTE NÃO OFICIAL

TODAS AS AFIRMAÇÕES RECONHECIDAS COMO VÁLIDAS NUMA ÁREA DA CIÊNCIA PODEM, EM GERAL, SER CONSIDERADAS COMO SENDO SUBSCRITAS POR TODOS OS CIENTISTAS


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VALIDADE NÃO É DE FORMA ALGUMA O ÚNICO PADRÃO PARA ACEITAR OU REJEITAR UMA PROPOSIÇÃO CIENTÍFICA

A sua função não é iniciar, mas sim apoiar, ou não, as oportunidades para investigar, publicar e ensinar, e para endossar ou negar crédito às contribuições propostas por cientistas individuais. Mesmo assim este governo é indispensável para a existência contínua da ciência. Irei a seguir passar essas operações em revista. Na lição anterior examinei a validade científica e considerei-a como a caraterística mais importante da ciência. Mas validade não é de forma alguma o único padrão para aceitar ou rejeitar uma proposição científica. Por exemplo, uma determinação precisa da velocidade a que o ar flui num calha, num determinado momento, não é uma contribuição para a ciência. Todas as partes da ciência devem ter alguma relação com o sistema da ciência e também devem ter algum interesse por si próprios, seja um interesse contemplativo ou um interesse prático. O conjunto destes três elementos - validade, profundidade e interesse humano intrínseco - constitui a base para a avaliação dos resultados científicos. Suponha-se por um momento que não se impunham quaisquer limitações de valor à publicação de contribuições científicas nas revistas. A seleção indispensável face ao espaço limitado para publicar - teria que ser feita por um outro método alternativo, por exemplo por sorteio. Os jornais seriam então inundados com lixo e os trabalhos com valor seriam marginalizados e condenados à obscuridade. Há 86


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sempre maníacos que enviam montes de coisas sem sentido. Abundariam os materiais imaturos, confusos, fantásticos, e também pesados, sem inspiração, irrelevantes. Vigaristas e trapalhões combinariam todo o tipo de deceção e de auto deceção, sempre à procura de publicidade. Perdidos no meio de tudo isso, as poucas publicações com valor dificilmente teriam a possibilidade de serem reconhecidas. Os contatos rápidos e fiáveis, pelos quais hoje em dia os cientistas se mantêm informados, seriam quebrados. Os cientistas ficariam isolados e a sua cooperação e confiança ficariam paralisadas. Dificilmente precisamos de ir mais além sobre este assunto. A menos que se assegure que os professores e investigadores profissionais têm as qualificações científicas mínimas, todo o sistema das instituições científicas subsidiadas dissolver-se-ia no caos e na corrupção. A experiência dos países menos desenvolvidos, em que a opinião científica está organizada de forma imperfeita, ensina-nos que mesmo uma redução comparativamente pequena do controlo científico pode ter efeitos muito perniciosos sobre a integridade e eficiência das atividades científicas. Parece suficientemente claro que as instituições da ciência com auto governo são eficientes na salvaguarda da prática organizada da ciência, que incorpora e transmite as suas premissas. Mas as suas funções são principalmente de proteção e de regulação e elas próprias baseiam-se, como veremos a 87

OS CIENTISTAS FICARIAM ISOLADOS E A SUA COOPERAÇÃO E CONFIANÇA FICARIAM PARALISADAS


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seguir, na pré-existência de uma harmonia de visões entre os cientistas. Aproximar-nos-emos mais das bases reais da vida científica se focarmos agora a nossa atenção diretamente sobre os factos acerca dos quais os cientistas tendem a estar de acordo.

III

A DESCOBERTA ESTÁ PERMANENTEMENTE A TRABALHAR, REFORMULANDO PROFUNDAMENTE A CIÊNCIA EM CADA GERAÇÃO

O consenso prevalecente na ciência moderna é certamente notável. Considere-se o facto de cada cientista seguir os seus próprios juízos pessoais para acreditar numa certa alegação da ciência, em particular, e de cada um ser responsável por encontrar um problema e por o seguir ao longo da sua própria via, e ainda que cada um verifica e propõe os seus resultados de acordo com o seu julgamento pessoal. Considere-se ainda que a descoberta está permanentemente a trabalhar, reformulando profundamente a ciência em cada geração. E ainda que, apesar de um tal individualismo atuar em áreas muito dispares da ciência, e apesar dos fluxos generalizados em que estão envolvidos, vemos cientistas que continuam a estar de acordo em muitos dos pontos da ciência. Embora a controvérsia nunca termine entre eles, dificilmente se encontra um assunto sobre o qual não possam estar de acordo ao fim de alguns anos de discussão. A harmonia entre as visões independen88


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tes de cientistas individuais também mostra, por si mesma, como são tratados os assuntos da ciência. Vimos que não existe uma autoridade central que exerça o seu poder sobre a vida científica. Tudo é feito numa multitude de pontos dispersos, por recomendação de alguns cientistas oficialmente envolvidos ou revisores para a ocasião. Apesar disso essas decisões em geral não colidem e, antes pelo contrário, alinham-se pelo mesmo lado da aprovação. Dois cientistas, desconhecidos um do outro como revisores para a publicação de um artigo, estão geralmente de acordo sobre o seu valor aproximado. Dois revisores independentes sobre uma candidatura para um nível superior raramente divergem. Centenas de artigos científicos publicados passam pela revisão de milhares de revisores científicos antes de qualquer um deles encontrar razões para protestar contra o padrão insuficiente de um trabalho. Entre cerca de quatrocentos membros [felllows] da Royal Society, poucos considerarão um qualquer dos seus colegas científicos como claramente indigno dessa honra. Ainda não ouvi que reclamações fortes sobre candidaturas eleitorais tenham sido ignoradas de forma escandalosa. O mesmo poderia ser dito acerca de professores e outras posições de nível equivalente nas universidades. A unanimidade fundamental prevalecente entre os cientistas manifesta-se mais claramente - talvez paradoxalmente - no caso de um conflito. Qualquer cientista sente a 89

TUDO É FEITO NUMA MULTITUDE DE PONTOS DISPERSOS


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QUALQUER CIENTISTA SENTE A NECESSIDADE DE CONVENCER OS SEUS COLEGAS ACERCA DA RETIDÃO DOS SEUS ARGUMENTOS

necessidade de convencer os seus colegas acerca da retidão dos seus argumentos. Mesmo quando não o consegue nesse momento, sente-se confiante sobre a possibilidade de o vir a conseguir mais tarde. Só cientistas é que sentem dessa maneira. Não lhes interessa aquilo que os músicos pensam das suas recomendações nem esperam convencê-los de que estão certos. A preocupação com a opinião dos cientistas e a sua crença sobre a sua eventual ligação no reconhecimento da verdade exprime a sua convicção de que a sua mente e a dos outros operam a partir das mesmas premissas. Ficam perturbados pelo facto da evidência que o convence não ser suficiente para convencer os outros, e sente que no final o pode conseguir. Por mais revolucionárias que sejam as alegações de um cientista - como as que foram iniciadas no nosso tempo pelos descobridores da relatividade, da psicanálise, da mecânica quântica, ou da perceção extra sensorial - encontrará sempre uma oposição da opinião científica tal como ela é ao apelar contra a opinião científica tal como pensa que ela deve ser. Mesmo que uma nova descoberta possa envolver uma reconsideração dos fundamentos tradicionais da ciência, como aliás envolveu nos casos referidos, o pioneiro continuará a apelar para a tradição como um fundamento comum entre ele próprio e os seus oponentes; por sua vez, os seus oponentes aceitarão sempre essa premissa. Aceitariam também, em particular, 90


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as referências ao exemplo dos pioneiros anteriores, às lutas de Pasteur, Semmeleweiss, Lister, Arhenius, van´t Hoff e outros, que tiveram que afrontar a opinião científica dos seus tempos. Faz parte da tradição científica estar sempre atento à supressão, por engano, de uma grande descoberta, cujas pretensões podem parecer sem sentido, num primeiro momento, devido à sua novidade. Mesmo nas divisões mais profundas ocorridas na ciência, os rebeldes e os conservadores permaneceram firmemente baseados nos mesmos fundamentos. Assim todos estes conflitos têm sido sempre resolvidos pouco tempo depois e de uma forma que se mostrou aceitável para todos os cientistas. A origem da coerência espontânea prevalecente entre os cientistas começa agora a ficar mais clara. Falam a uma voz porque estão informados pela mesma tradição. Podemos ver aqui uma relação mais ampla, assegurando e transmitindo as premissas da ciência, de que a relação entre o aluno e o mestre forma apenas uma das facetas. Trata-se de todo o sistema da vida científica, baseado numa tradição comum. Este é o fundamento sobre o qual se estabeleceram as premissas da ciência. Este é também o terreno comum sobre o qual se baseiam as premissas da ciência, incorporadas numa tradição, a tradição da ciência. A existência continuada da ciência é uma expressão do facto dos cientistas estarem de acordo em aceitar uma tradição e toda a con91

MESMO NAS DIVISÕES MAIS PROFUNDAS OCORRIDAS NA CIÊNCIA, OS REBELDES E OS CONSERVADORES PERMANECERAM FIRMEMENTE BASEADOS NOS MESMOS FUNDAMENTOS


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A COERÊNCIA DA OPINIÃO CIENTÍFICA TAMBÉM NÃO PODERIA SER RESTABELECIDA POR UMA ESPÉCIE DE AUTORIDADE CENTRAL

fiança mútua ser informada por essa tradição. Pretensos cientistas teriam o hábito de olharem para os seus colegas como maníacos ou charlatães. Uma discussão frutífera entre eles tornar-se-ia impossível e deixariam de confiar nos resultados uns dos outros e de atuar com base nas suas opiniões. Logo, a colaboração mútua, de que depende o progresso da ciência, seria interrompida. O processo de publicação, de compilação de livros de texto, de ensinar os juniores, de fazer nomeações, e de estabelecer novas instituições científicas, ficaria doravante dependente do mero acaso de quem toma a decisão. Seria então impossível reconhecer qualquer afirmação como uma proposição científica ou descrever alguém como um cientista. A ciência ficaria praticamente extinta. A coerência da opinião científica também não poderia ser restabelecida por uma espécie de autoridade central. Suponha-se que se atribuíam ao presidente da Royal Society poderes para decidir, em última instância, sobre toda e qualquer questão científica. A grande maioria das suas decisões não teriam qualquer valor científico. Todo o progresso pararia. Nenhum novo recruta com amor à ciência aderiria a uma instituição governada por tais decisões. Vemos sinais de uma influência desse tipo até mesmo em departamentos governamentais bem dirigidos, ou outras grandes organizações, em que os superiores administrativos alocam as tarefas de investigação a cientistas maduros que 92


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

servem sob a sua direção. Para quem ama a descoberta, aderir a uma tal organização significa um grande sacrifício. E se os superiores impuserem as suas visões específicas aos subordinados, como por vezes tendem a fazê-lo, a posição do subordinado torna-se quase insustentável. A ciência também não pode ser guiada com sucesso pela opinião científica a menos que seja estritamente compreendido que esta opinião representa apenas uma encarnação temporária e imperfeita dos padrões tradicionais da ciência. O cientista que procura orientação na opinião científica não deve ser tentado a procurar em primeiro lugar a aprovação dos seus colegas cientistas. Embora o seu rendimento, a sua independência, a sua influência, de facto toda a sua posição no mundo, vá depender, ao longo da sua carreira, do crédito que conseguir ganhar aos olhos da opinião científica, não deve em primeiro lugar visar esse crédito, mas sim satisfazer os padrões da ciência. O caminho mais curto para o crédito junto da opinião científica pode levar para bem longe da boa ciência. Pode-se fazer uma impressão rápida no mundo científico publicando histórias plausíveis e interessantes, compostas de partes de verdade misturadas com algumas invenções, em vez de publicar apenas a verdade, e só a verdade. Uma composição daquele tipo, em especial se judiciosamente protegida por ambiguidades intercaladas, pode ser muito difícil de rebater, e num do93

O CAMINHO MAIS CURTO PARA O CRÉDITO JUNTO DA OPINIÃO CIENTÍFICA PODE LEVAR PARA BEM LONGE DA BOA CIÊNCIA


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UMA COMUNIDADE DE CIENTISTAS EM QUE CADA UM ATUASSE APENAS PARA AGRADAR À OPINIÃO CIENTÍFICA ACABARIA POR NÃO ENCONTRAR QUALQUER OPINIÃO CIENTÍFICA A QUEM AGRADAR

mínio em que as experiências sejam laboriosas, ou intrinsecamente difíceis de reproduzir, pode ficar sem contestação durante anos. Uma reputação considerável pode ser construída, e um lugar muito confortável numa universidade pode ser ganho, antes que este tipo de fraude transpire - se alguma vez isso vier a acontecer. Se cada cientista começasse cada dia de trabalho com o objetivo de construir uma charlatanice segura que lhe assegurasse um bom lugar, rapidamente deixariam de existir padrões pelos quais a fraude pudesse ser detetada. Uma comunidade de cientistas em que cada um atuasse apenas para agradar à opinião científica acabaria por não encontrar qualquer opinião científica a quem agradar. Só se os cientistas continuarem leais aos ideais científicos, mais do que tentar chegar ao sucesso junto dos seus colegas, é que podem formar uma comunidade que defenda esses ideais. A disciplina necessária para regular as atividades do cientista não se pode manter por mera conformidade com as modas da opinião científica, mas exige o apoio da convicção moral, decorrente da devoção à ciência e preparada para operar de forma independente em relação à opinião científica existente. Há, naturalmente, sempre alguma compulsão na defesa da ordem na ciência. O domínio material da ciência, as suas revistas e livros de texto, as suas bolsas para investigação, laboratórios, salas de aulas, e posições 94


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assalariadas, são subsidiadas para uso e para apoio em ocasiões definidas, e legalmente protegidas do uso ou interferência por pessoas não autorizadas. A condução do ensino em universidades e a administração de laboratórios de investigação envolve o uso de vastos poderes compulsórios. Mas a ordem criativa da comunidade científica não resulta de um confronto entre uma força completamente organizada e indivíduos atrás dos seus meros interesses pessoais. Os cientistas devem sentir a obrigação de defender os ideais da ciência e devem-se guiar por essa obrigação, tanto para exercer a autoridade como para submeter-se à dos seus colegas. Caso contrário, a ciência pode morrer. Poder-se-ia pensar que, sendo as premissas da ciência partilhadas pela comunidade científica, cada um deveria subscrevê-las por um ato de devoção. Essas premissas não são um mero guia para a intuição, mas também um guia para a consciência; não são meramente indicativas, mas sim normativas. A tradição da ciência parece precisar de ser uma exigência incondicional para que se possa aplicar. Apenas pode ser usada pelos cientistas se estes se colocarem ao seu serviço. É uma realidade espiritual acima deles e que os compele à fidelidade. Falei antes da consciência científica, como o principio normativo que arbitra entre os impulsos intuitivos e os procedimentos críticos, como último árbitro na relação entre o mestre e o aluno. Vemos agora como 95

ESSAS PREMISSAS ... NÃO SÃO MERAMENTE INDICATIVAS, MAS SIM NORMATIVAS


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À MEDIDA QUE AVANÇA NA VIDA, A SUA CONSCIÊNCIA PROFISSIONAL ADQUIRE UMA VARIEDADE DE NOVAS FUNÇÕES

a comunidade científica organiza a consciência dos seus membros através do culto conjunto dos ideais científicos. Podemos recordar as várias fases pelas quais um cientista normalmente se rende à ciência, emocional e moralmente. A primeira aproximação de uma mente jovem à ciência é promovida por um amor à ciência e uma fé na sua grande significância, que precede a sua compreensão real. Esta rendição à autoridade intelectual da ciência é indispensável para qualquer esforço sério de assimilação da ciência. No passo seguinte, o jovem aspirante a cientista terá que aceitar o exemplo dos grandes cientistas, alguns vivos e muitos mortos, e procurar derivar daí uma inspiração para o seu próprio futuro. Em muitos casos associar-se-á a um mestre e dar-lhe-á livremente a sua admiração e lealdade. E depois, quando ativamente empenhado na busca da descoberta, terá de lutar contra a auto deceção e por uma verdadeiro sentido da realidade, mesmo quando fortemente tentado a contentar-se com uma satisfação menos autêntica. Antes de reclamar uma descoberta terá de ouvir a sua consciência científica. À medida que avança na vida, a sua consciência profissional adquire uma variedade de novas funções, na publicação de artigos, na crítica dos artigos de outros autores, no ensino de estudantes, na seleção de candidatos para nomeações, em centenas de ocasiões em que tem de formar julgamentos que, em última instância, são 96


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guiados pelo ideal da ciência tal como interpretado pela sua consciência. Finalmente, já como associado na administração da ciência, promoverá o seu crescimento espontâneo estendendo o seu amor e solicitude a todo e qualquer novo esforço original, rendendo-se novamente à realidade e ao propósito inerente à ciência. A partilha destas várias rendições por todos os membros da comunidade de cientistas reforça sem dúvida a sua solidez. O conhecimento de que as mesmas obrigações perante os ideais científicos são geralmente aceites por todos os cientistas confirma efetivamente a sua fé na realidade desses ideais. Quando a perspetiva e a informação de cada cientista dependem largamente do trabalho de terceiros, e está preparado para aceitar a sua fiabilidade perante a sua própria consciência, então a consciência de cada um é corroborada pela de muitos outros. Existe então uma comunidade de consciências baseada, em conjunto, nos mesmos ideais, que são reconhecidos por todos. E essa comunidade torna-se a encarnação desses ideais e uma demonstração viva da sua realidade.

IV A arte do trabalho científico é tão extensa e plural que apenas pode passar de uma gera97


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A CIÊNCIA EXISTE, E CONTINUA A EXISTIR, APENAS PORQUE AS SUAS PREMISSAS PODEM SER INCORPORADAS NUMA TRADIÇÃO QUE PODE SER MANTIDA EM COMUM

ção para a seguinte através do trabalho dos especialistas, cada um dos quais anima um ramo particular da ciência. Logo, a ciência existe, e continua a existir, apenas porque as suas premissas podem ser incorporadas numa tradição que pode ser mantida em comum por uma comunidade. Isto também é verdade para as atividades criativas complexas que são prosseguidas mesmo para além da vida dos indivíduos. Podemos pensar na lei e na religião católica protestante. A sua vida continuada baseia-se nas tradições de uma estrutura similar à da ciência, o que nos permite compreender a tradição na ciência - e também nos prepara para os problemas mais gerais da sociedade, com que lidaremos mais adiante. Incluiremos agora os domínios da lei e da religião na nossa discussão. Vimos como a ciência é constantemente revolucionada e aperfeiçoada pelos seus pioneiros, ao mesmo tempo que se mantém firme na sua tradição. Cada geração de cientista aplica, renova e confirma a tradição científica à luz da sua inspiração particular. De modo semelhante, vemos juízes que derivam os princípios da lei a partir da prática judicial anterior e que a aplicaram criativamente, à luz da sua consciência, a qualquer situação nova; e vemos como ao fazê-lo reveem muitos dos particulares da própria prática de onde derivaram os seus princípios. De modo semelhante, para os protestantes a Bíblia serve como uma tra98


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dição criativa que precisa de ser defendida e reinterpretada nas situações novas, à luz da sua consciência. Enquanto que a Bíblia é por eles defendida para mediar com o individuo a revelação que regista, acreditar nessa revelação é defender que o valor da fé apenas se pode afirmar através da consciência individual. A consciência pode então ser usada até mesmo para oposição à autoridade da Bíblia, onde a Bíblia for reconhecida com espiritualmente fraca. Tais processos de renovação criativa implicam sempre um apelo da tradição tal como existe para uma tradição tal como deve ser, ou seja, para uma realidade espiritual incorporada na tradição e que a transcende. Exprime acreditar na sua realidade superior e oferece uma devoção ao seu serviço. Vimos como na ciência essa devoção se estabelece, em primeiro lugar, no estádio de aprendizagem, e podemos estabelecer um paralelo com esse ato de iniciação e dedicação nos domínios da lei e da religião. Mas a semelhança entre estas várias atividades coletivas da mente, dedicadas ao culto das respetivas tradições parece estar clara e suficientemente estabelecida. Os domínios da ciência, da lei e da religião protestante, que tomei como exemplos de comunidades culturais modernas, estão sujeitas ao controlo do seu próprio corpo de opinião. A opinião científica, a opinião legal, a teologia protestante formam-se todas pelo consenso de indivíduos indepen99

UMA REALIDADE ESPIRITUAL INCORPORADA NA TRADIÇÃO E QUE A TRANSCENDE

A OPINIÃO CIENTÍFICA, A OPINIÃO LEGAL, A TEOLOGIA PROTESTANTE FORMAM-SE TODAS PELO CONSENSO DE INDIVÍDUOS INDEPENDENTES, BASEADOS NUMA TRADIÇÃO COMUM


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DOIS TIPOS DE AUTORIDADE, UMA BASEADA EM PRESSUPOSTOS GERAIS, A OUTRA IMPONDO CONCLUSÕES

dentes, baseados numa tradição comum. É verdade que na lei e na religião prevalece uma certa compulsão da doutrina oficial, a partir do centro, algo quase totalmente ausente na ciência. A diferença é importante, mas apesar dessa compulsão a que as vidas legal e religiosa estão sujeitas, a consciência do juiz e do ministro (religioso) tem uma responsabilidade importante para agir como intérprete pessoal da lei e da fé cristã. Logo, a vida da ciência, da lei, e da igreja protestante estão em contraste claro com a constituição, por exemplo, da igreja católica, que nega à consciência do crente o direito a interpretar o dogma cristão e reserva a decisão final nesses assuntos para o seu confessor. Há aqui uma diferença profunda entre os dois tipos de autoridade; uma, baseada em pressupostos gerais; a outra, impondo conclusões. Podemos considerar a primeira como uma autoridade geral, e a última como uma autoridade específica. A diferença entre os dois tipos de autoridade é decisiva. É ilustrado pela minha anterior suposição fictícia do presidente da Royal Society impor conclusões específicas a todos os cientistas. Uma autoridade de um tipo específico sobre a ciência seria tão destrutiva para a ciência quanto uma autoridade geral normalmente exercida pela opinião científica lhe é indispensável para que continue a existir. Uma análise mais cuidada das diferença entre os dois tipos de autoridade lançará mais luz sobre a relação entre a au100


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toridade e a consciência - tanto na ciência como nos outros domínios. Na minha primeira lição distingui entre dois tipos de regras - não por muitas palavras, mas mesmo assim de forma muito clara. Disse, por exemplo, que não existem regras estritas pelas quais uma proposição científica possa ser descoberta e demonstrada como verdadeira, mas que isso precisa antes de ser feito à luz de certas regras vagas incorporadas na arte da investigação científica. Mostrei que embora algumas dessas regras - que podem ser consideradas como regras da arte - sejam muito rígidas, mesmo assim deixam uma margem significativa, e muitas vez um espaço considerável, para o julgamento pessoal. Por outro lado, regras estritas, tais como as da tabuada da multiplicação, não deixam praticamente qualquer espaço para interpretação. Os dois tipos sobrepõem-se mutuamente de forma impercetível, mas isso não invalida a distinção entre eles. Sendo incapazes de uma formulação precisa, as regras de arte só se podem transmitir pelo ensino da prática que as incorpora. Para domínios superiores do pensamento criativo isso envolve a passagem de uma tradição, de cada geração para a seguinte. Cada vez que isso acontece há a possibilidade de a regra da arte ser sujeita a uma reinterpretação significativa, e é importante compreender o que é que isso implica. Como é que podemos interpretar uma 101

EMBORA ALGUMAS DESSAS REGRAS ... SEJAM MUITO RÍGIDAS, MESMO ASSIM DEIXAM UMA MARGEM SIGNIFICATIVA, E MUITAS VEZ UM ESPAÇO CONSIDERÁVEL, PARA O JULGAMENTO PESSOAL

SENDO INCAPAZES DE UMA FORMULAÇÃO PRECISA, AS REGRAS DE ARTE SÓ SE PODEM TRANSMITIR PELO ENSINO DA PRÁTICA QUE AS INCORPORA

CADA VEZ QUE ISSO ACONTECE HÁ A POSSIBILIDADE DE A REGRA DA ARTE SER SUJEITA A UMA REINTERPRETAÇÃO SIGNIFICATIVA


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SERÁ IMPOSSÍVEL UM PROCESSO TRADICIONAL DE PENSAMENTO CRIATIVO SEM NOVAS ADIÇÕES À TRADIÇÃO EXISTENTE, EM CADA ESTÁDIO DA TRANSMISSÃO

APARTE DESTA REVOLUÇÃO SILENCIOSA QUE REMODELA A NOSSA HERANÇA, HÁ INOVAÇÕES MASSIVAS INTRODUZIDAS PELOS GRANDES PIONEIROS

regra? Por outra regra? Apenas pode existir um número finito de níveis de regras de modo que uma tal regressão se esgota rapidamente. Assumamos que todas as regras existentes se reuniam num único código. É óbvio que tal código não poderia incluir prescrições para a sua própria reinterpretação. Logo, todo e qualquer processo de reinterpretação introduz elementos totalmente novos; e, por conseguinte, também será impossível um processo tradicional de pensamento criativo sem novas adições à tradição existente, em cada estádio da transmissão. Por outras palavras, é logicamente impossível que a tradição possa operar sem a adição de julgamentos interpretativos completamente novos em cada etapa. Para o ilustrar, consideremos os domínios da lei, religião, política, costumes, etc. É claro que existe um número imenso de decisões de rotina que precisam de ser tomadas a cada hora e que não exigem qualquer inovação significativa. Mas há sempre casos de fronteira, que exigem medidas discricionárias, e mesmo em casos de rotina existe muitas vezes um elemento de discrição mais fina, em que é indispensável um certo julgamento pessoal. Os princípios mais importantes da ciência, lei, religião, etc., são continuamente remoldados por decisões nos casos de fronteira e pelo toque de julgamento pessoal que entra em quase toda a decisão. Aparte desta revolução silenciosa 102


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que remodela a nossa herança, há inovações massivas introduzidas pelos grandes pioneiros. Contudo cada uma destas ações constitui uma parte essencial do processo de continuar uma tradição. A principal diferença entre um regime de autoridade geral, tal como o que prevalece na ciência, na lei, etc., e a regra da autoridade especifica, tal como constituída pela igreja católica, reside no facto do primeiro deixar as decisões de interpretação das regras tradicionais nas mãos de muitos indivíduos independentes enquanto que o último regime centraliza essas decisões na sede. A transformação gradual da tradição sob uma autoridade geral depende dos impulsos intuitivos dos indivíduos aderentes à comunidade e das suas consciências para controlar as suas intuições. A própria autoridade geral não é mais do que uma expressão mais ou menos organizada da opinião geral - científica, legal, ou religiosa - formada pela fusão e interação de todas essas contribuições individuais. Um tal regime assume que os membros individuais são capazes de fazer um contacto genuíno com a realidade subjacente à tradição existente e de lhe adicionar interpretações novas e autênticas. Neste caso a inovação é feita por numerosos pontos de crescimento dispersos na comunidade, cada um dos quais pode tomar a iniciativa, em qualquer momento. Por outro lado, uma autoridade específica faz todas as reinterpretações e inovações importantes através de 103

A TRANSFORMAÇÃO GRADUAL DA TRADIÇÃO SOB UMA AUTORIDADE GERAL DEPENDE DOS IMPULSOS INTUITIVOS DOS INDIVÍDUOS ADERENTES À COMUNIDADE E DAS SUAS CONSCIÊNCIAS


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VEMOS EMERGIR AQUI DUAS CONCEÇÕES COMPLETAMENTE DIFERENTES DE AUTORIDADE

proclamações emitidas pelo centro. Só este centro é dito ter um contato autêntico com as fontes fundamentais, a partir das quais a tradição existente brota e pode ser renovada. A autoridade específica precisa portanto não só de devoção para com os princípios de uma tradição como também de subordinar o julgamento último de todos à decisão discricionária por um centro oficial. Vemos emergir aqui duas conceções completamente diferentes de autoridade: uma que exige liberdade e outra que pede obediência. É um contraste importante para os problemas mais vastos da sociedade, a que a terceira lição nos vai levar. Entretanto vamos aprofundar a posição da tradição sob uma autoridade geral. A liberdade que postulamos, para cada geração interpretar a herança comum à sua discrição, pode parecer altamente disruptiva. Como é que podemos falar da tradição como um terreno seguro em que, por exemplo, assentam as premissas da ciência, como o solo em que as consciências dos cientistas criam raízes, se a tradição pode ser fatiada e alterada por um grupo de pessoas que por acaso se chamam a si próprias cientistas, num determinado momento - e por elas transformado em algo conforme com o que lhes agrada decretar? Apesar de admitirmos que os cientistas (ou os juristas ou os ministros de uma religião), que originalmente se iniciaram e dedicaram a um corpo existente de tradição, não se transformarão facilmen104


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te em travestis de si próprios, permanece o facto de estarem constantemente a aparecer novos problemas - como, por exemplo, na ciência de hoje em dia, as pretensões da perceção extra sensorial ou o conflito entre a investigação livre e a segurança nacional - que uma geração de cientistas vai precisar de decidir, com efeitos permanentes sobre a tradição da ciência, atuando inteiramente sob a sua própria responsabilidade. Mas não existem proteções contra tais arbitrariedades? Em qualquer dos casos, qual a validade que podemos atribuir aos juízos assim feitos? Respondo que é impossível uma proteção contra os erros de tais decisões, porque qualquer autoridade estabelecida com esse propósito destruiria a ciência. Está na natureza da ciência que ela apenas pode viver se os cientistas individuais se considerarem competentes para afirmarem as suas visões e se o consenso das suas opiniões for considerado como competente para decidir todas as questões da ciência como um todo. Neste sentido, as decisões da opinião científica sobre assuntos científicos apenas são de direito se forem sinceras; e os cientistas de um certo período, em particular, são verdadeiramente mestres absolutos sob a sua própria consciência da herança da ciência. Não decidirão sem ouvir a opinião dos outros e, ocasionalmente, até mesmo a opinião do público em geral; recordarão as lições do passado e os cientistas de uma certa região procurarão 105

AS DECISÕES DA OPINIÃO CIENTÍFICA SOBRE ASSUNTOS CIENTÍFICOS APENAS SÃO DE DIREITO SE FOREM SINCERAS


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FAZ PARTE DA NATUREZA DA CIÊNCIA QUE É INCONCEBÍVEL UMA AUTORIDADE QUE POSSA DENEGAR COMPLETAMENTE O SEU VEREDICTO

HÁ DECISÕES LEGÍTIMAS QUE SE PODEM VIR A MOSTRAR ERRADAS, EMBORA CONTINUEM A SER LEGÍTIMAS

aprender com os de outras regiões; pesarão as consequências futuras das suas decisões - mas compete-lhes decidir tanto sobre este procedimento como sobre as conclusões a extrair. Um tal discernimento, tal como lhes é concedido quando atuam com o pleno sentido das suas responsabilidades para com a ciência, representa a sua fração final da graça e representa todo o seu dever. As suas decisões são soberanas, por inerência, porque faz parte da natureza da ciência que é inconcebível uma autoridade que possa renegar completamente o seu veredicto. Isso não significa que a opinião científica seja infalível por inerência. Não: os cientistas farão sempre muitos erros, como será claro mais tarde, retrospectivamente. É hoje em dia fácil ver, por exemplo, como grandes pioneiros como Julius Robert Mayer, Semmelweiss, ou Pasteur foram ignorados e como o sucesso das suas descobertas foi retardado. É agora fácil distinguir, nos períodos anteriores da ciência, alguns mais ricos de inspiração (como o século dezassete) e outros comparativamente menos ativos (como o século dezoito). Podem-se comparar os estilos da ciência em diferentes regiões e observar aqui uma inclinação para a pedantice e ali um laxismo excessivo. Há um espaço infinito tanto para o criticismo contemporâneo como para posteriores exames da consciência; mas isso não diminui o carácter competente das ações submetidas a tal criticismo. Há decisões legítimas que se 106


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

podem vir a mostrar erradas, embora continuem a ser legítimas. É claro que outorgar competência às decisões da opinião científica não faz sentido a menos que nós próprios aceitemos a ciência como um todo verdadeiro e significante. Podemos conceder a mesma competência à opinião legal, mesmo quando a validação final de qualquer proposição envolve sempre uma certa fração de responsabilidade pessoal da nossa parte. Estes são os fundamentos finais sobre os quais o cientista assenta as suas premissas e baseia as decisões da sua consciência, e sobre os quais aceita, assim como os outros que acreditam na ciência, as decisões dos cientistas como competentes e as suas visões válidas, como um todo. Consistem na aceitação da própria ciência como válida. Ainda não dei qualquer razão pela qual um cientista, ou qualquer outra pessoa, deve acreditar na ciência como um todo e não na astrologia ou no fundamentalismo. A convicção do cientista de que a ciência funciona não é melhor, até aqui, do que o acreditar do astrólogo nos horóscopos ou a crença dos fundamentalistas na letra da Bíblia. Uma crença funciona sempre aos olhos de um crente. Na próxima lição procurarei encontrar os fundamentos para uma decisão entre interpretações rivais da natureza. É claro que tais escolhas precisam de ser tomadas com base em premissas mais vastas que as da ciência, embora as devam incluir como um dos 107

UMA CRENÇA FUNCIONA SEMPRE AOS OLHOS DE UM CRENTE


MICHAEL POLANYI

SE A VERDADE QUE SE ENCONTRA NA CIÊNCIA PODE SERVIR DE GUIA PARA A FORMA COMO A VERDADE ACERCA DA CIÊNCIA SE PODE ENCONTRAR, A SOCIEDADE ONDE ESTE PROCESSO PODE SER CONDUZIDO DE FORMA CONVENIENTE PRECISA DE SE BASEAR NA LIBERDADE

vários conjuntos de possíveis suposições. Podemos esperar que estas premissas mais vastas suportem uma vida intelectual mais ampla, que inclua o mundo científico como uma das suas secções. Na realidade dificilmente podemos esperar que inclua menos do que a totalidade da nossa vida intelectual em sociedade. Não poderemos examinar com grande detalhe um domínio assim tão amplo. Mas há uma característica que podemos esperar que lhe seja essencial, a julgar pela vida interna da ciência. Trata-se da liberdade. Se a verdade que se encontra na ciência pode servir de guia para a forma como a verdade acerca da ciência se pode encontrar, a sociedade onde este processo pode ser conduzido de forma conveniente precisa de se basear na liberdade. A discussão acerca da ciência precisa de ser livre. Para descobrir quais as condições para manter essa liberdade, começaremos a próxima lição inquirindo com mais profundidade sobre a forma como a liberdade se mantém dentro da própria ciência.

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–3– DEDICAÇÃO OU SERVIDÃO



CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

I

A

liberdade traz na face a marca de uma questão antiga. Para evitar conflitos sem lei é necessário um poder soberano: como é que se pode impedir este poder de suprimir a liberdade? Na verdade, como é que não se pode deixar de a suprimir para eliminar as lutas sem lei? A governação aparece como essencialmente suprema e absoluta, sem deixar espaço para a liberdade. Mas dissemos que no mundo da ciência, que é um corpo social organizado, existe liberdade e que essa liberdade é mesmo essencial para a manutenção da sua organização. Como é que isso pode ser verdade? A soberania sobre o mundo da ciência não investe qualquer soberano ou corpo de governação, mas divide-se em numerosos fragmentos, cada um dos quais é governado individualmente por um só cientista. Cada vez que um cientista toma uma decisão em que está a confiar, em última instância, na sua própria consciência ou nas suas crenças pessoais, está a configurar a substância da 111

A SOBERANIA SOBRE O MUNDO DA CIÊNCIA NÃO INVESTE QUALQUER SOBERANO OU CORPO DE GOVERNAÇÃO, MAS DIVIDE-SE EM NUMEROSOS FRAGMENTOS


MICHAEL POLANYI

OS CIENTISTAS RECONHECEM QUE, DESDE QUE CADA CIENTISTA SIGA OS IDEAIS DA CIÊNCIA CONFORME A SUA PRÓPRIA CONSCIÊNCIA, AS DECISÕES RESULTANTES DA OPINIÃO CIENTÍFICA SÃO LEGÍTIMAS

ciência ou a ordem da vida científica, como um dos seus soberanos. Os poderes assim exercitados podem afetar vivamente os interesses dos seus colegas cientistas. Mas mesmo assim não é necessário um poder supremo e soberano para arbitrar, em último recurso, entre todas essas decisões individuais. Há divisões entre cientistas, por vezes vivas e apaixonadas, mas ambas as partes aceitam que a opinião científica decidirá bem, em última instância; e ficam satisfeitos por apelar para ela como árbitro final. Os cientistas reconhecem que, desde que cada cientista siga os ideais da ciência conforme a sua própria consciência, as decisões resultantes da opinião científica são legítimas. Esta submissão absoluta deixa cada um livre pois cada um continua a atuar de acordo com a sua própria convicção. Uma crença comum na realidade dos ideais científicos e uma confiança suficiente na sinceridade dos seus colegas cientistas resolve, entre os cientistas, a aparente contradição interna no conceito de liberdade. Estabelece uma governação pela opinião científica, como uma autoridade geral, restrita por inerência à tutela das premissas da ciência. Recordamos o conceito de liberdade, de Rousseau, como a submissão absoluta à vontade geral. A devoção de todos os cientistas aos ideais do trabalho científico pode ser considerada como a vontade geral, que governa a sociedade dos cientistas. Mas esta identificação faz com que a vontade geral 112


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

apareça a uma nova luz. Difere de qualquer outra vontade pelo facto de não poder alterar o seu próprio propósito. Os cientistas que subitamente perdessem a sua paixão pela ciência, e adquirissem antes um interesse pelos galgos, deixariam instantaneamente de fazer parte da sociedade científica. A estrutura cooperativa da vida científica não pode servir para a criação conjunta de galgos, para a qual os anteriores cientistas teriam de se organizar de uma forma diferente. A sociedade científica não é, e não pode ser, formada por grupos de pessoas que começaram por se ligar à vontade geral e depois escolheram dirigir a sua vontade para o avanço da ciência em geral. A vida científica ilustra, pelo contrário, como a aceitação geral de um conjunto definitivo de princípios gera uma comunidade governada por esses princípios - uma comunidade que se dissolveria automaticamente no momento em que os seus princípios constitutivos fossem repudiados. A vontade geral aparece assim como uma ficção muito enganadora; a verdade é que a submissão voluntária a certos princípios gera necessariamente uma vida comunal governada por esses mesmos princípios, se o caso da ciência pode ser um guia; e essa soberania última pertence seguramente a cada geração de indivíduos que, por devoção a esses princípios, os interpretam conscientemente e os aplicam às questões do seu tempo. Isto também lança uma luz nova sobre 113

A VONTADE GERAL APARECE ASSIM COMO UMA FICÇÃO MUITO ENGANADORA


MICHAEL POLANYI

O AMOR PELA CIÊNCIA, O ESTÍMULO CRIATIVO, A DEVOÇÃO PELOS PADRÕES CIENTÍFICOS - ESTAS SÃO AS CLÁUSULAS QUE COMPROMETEM O NOVIÇO COM A DISCIPLINA DA CIÊNCIA

UMA VEZ QUE SER CIENTISTA EXIGE DONS ESPECIAIS, A SUA FALTA ESVAZIA O CONTRATO

a natureza do contrato social. No caso da comunidade científica, o contrato consiste na dádiva da própria pessoa - não a um soberano, como pensava Hobbes, e não a uma vontade geral, como postulado por Rousseau - mas ao serviço de um ideal em particular. O amor pela ciência, o estímulo criativo, a devoção pelos padrões científicos - estas são as cláusulas que comprometem o noviço com a disciplina da ciência. Aprendendo um processo intelectual baseado num certo conjunto de princípios últimos, o recém-chegado alista-se como membro da comunidade que defende esses princípios, e o seu compromisso para com eles envolve a aceitação de regras de conduta indispensáveis para o seu culto. Cada novo membro aceita seguir ao longo da sua vida uma obrigação para com uma tradição particular, a qual aceita na totalidade. Uma vez que ser cientista exige dons especiais, a sua falta esvazia o contrato. Assim como a falta de ânimo, no caso de um noviço pouco sólido ou fraudulento. Descrevi os métodos disciplinares pelos quais a comunidade científica procura excluir aldrabões, fraudes e maníacos, e assinalei o problema grave envolvido na distinção entre estes e os grandes pioneiros de potencial revolucionário, que desejam entrar no contrato social da ciência sob condições diferentes, desde o início. No entanto, as dificuldades levantadas por esta questão não podem afetar a clareza essencial do contrato pelo qual os cientistas 114


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

se tornam membros da sua comunidade. Vimos como esta dedicação, que o compromete a atuar de acordo com a sua própria consciência, representa uma obrigação de ser livre. Parece que este tipo de liberdade deve ser descrita, em particular, como a liberdade para agir de acordo com certas obrigações particulares. Uma pessoa não pode ser livre em geral, mas apenas a respeito de certas áreas definidas da sua consciência.

II Saindo da ciência para o contexto mais vasto da sociedade, examinaremos o tipo de liberdade que é necessária para poder aceitar ou rejeitar a ciência como um todo, com idoneidade. Através da história moderna, a ciência tem tido um impacto imenso sobre o público em geral, que foi especialmente forte nos primeiros séculos da ciência moderna, quando o valor prático da ciência ainda era pouco considerado. Foi a qualidade intelectual da ciência - particularmente da mecânica newtoniana - que despertou e convenceu os círculos mais vastos. Olhando para os últimos quatro séculos vemos que todos os domínios do pensamento foram gradualmente revolucionados sob a influência das descobertas da ciência. A abordagem me115

ESTE TIPO DE LIBERDADE DEVE SER DESCRITA, EM PARTICULAR, COMO A LIBERDADE PARA AGIR DE ACORDO COM CERTAS OBRIGAÇÕES PARTICULARES

FOI A QUALIDADE INTELECTUAL DA CIÊNCIA - PARTICULARMENTE DA MECÂNICA NEWTONIANA - QUE DESPERTOU E CONVENCEU OS CÍRCULOS MAIS VASTOS


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A VISÃO CORRENTE DO HOMEM E DA SOCIEDADE TINHAM-SE TRANSFORMADO

(a) [NT: Movimento religioso cujas convicções e práticas assumem que a doença é uma ilusão, um erro mental, que apenas pode ser combatida pela prática da

dieval de Aristóteles e de Aquino para descobrir um propósito divino nos fenómenos da natureza foi abandonada e a teologia foi forçada a retirar tudo o que tinha ensinado acerca do universo material. Ao mesmo tempo que reafirmava a ocorrência de certos milagres, particularmente os milagres da Encarnação e da Ressurreição, a teologia protestante estava preparada para reinterpretar os milagres num sentido simbólico, mais do que opôr-se especificamente às visões naturalistas da ciência. Abandonou acreditar na feitiçaria - algo ainda forte nos princípios do século dezoito - e a astrologia perdeu todo o apoio oficial. A visão corrente do homem e da sociedade tinham-se transformado. Estas conquistas da ciência foram alcançadas à custa de outras satisfações mentais que se mostraram mais frágeis. Enquanto que o mundo tinha sido enriquecido com mais uma forma de significado, inevitavelmente perdeu algum do seu sentido, noutras formas. O próprio Galileu, num primeiro ataque contra a autoridade de Aristóteles, mostrou uma simpatia real pela dor que sabia estar a causar aos que acreditavam nas grandes harmonias escolásticas. Não admira que os desejos mentais que a ciência deixa insatisfeitos tenham estado sempre preparados para voltar à carga. Por exemplo, a chamada “ciência cristã”(a) conseguiu efetivamente contestar, mesmo ainda hoje, a interpretação da doença e da cura pela 116


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

ciência. Um certo número de outras escolas heterodoxas da cura têm prosperado. Outras teorias condenadas pela ciência, como as da astrologia e do ocultismo, são também defendidas por uma público considerável. A autoridade popular da ciência continua de facto aberta aos desafios de várias interpretações rivais da natureza, e a questão continua a ser como é que essas rivalidades podem ser decididas com idoneidade. Uma controvérsia entre duas visões fundamentalmente diferentes da mesma experiência nunca pode ser conduzida de uma forma tão metódica como uma discussão que tenha lugar num ramo organizado do conhecimento. Embora os confrontos entre duas teorias científicas rivais, ou duas interpretações bíblicas divergentes, possam geralmente ser objeto de um teste definitivo aos olhos das respetivas opiniões profissionais, pode ser extremamente difícil encontrar implicações de uma visão naturalista do homem, por um lado, e de uma visão religiosa, por outro lado, que possam ser contrastadas por termos idênticos. Quanto menos duas proposições tiverem em comum, mais o argumento entre elas perderá o caráter discursivo e passará para uma tentativa de conversão mútua, em que os competidores se baseiam largamente na impressão geral de racionalidade e de valor espiritual com que conseguem impressionar o outro. Tentarão expor a pobreza geral da posição do seu opositor e estimular o seu interesse 117

oração. Não confundir com a cientologia moderna. O movimento foi muito popular no norte dos Estados Unidos em finais do século XIX e princípios do século XX].

A AUTORIDADE POPULAR DA CIÊNCIA CONTINUA DE FACTO ABERTA AOS DESAFIOS DE VÁRIAS INTERPRETAÇÕES RIVAIS DA NATUREZA

QUANTO MENOS DUAS PROPOSIÇÕES TIVEREM EM COMUM, MAIS O ARGUMENTO ENTRE ELAS PERDERÁ O CARÁTER DISCURSIVO E PASSARÁ PARA UMA TENTATIVA DE CONVERSÃO MÚTUA


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O PROCESSO DE ESCOLHA ENTRE POSIÇÕES BASEADAS EM CONJUNTOS DIFERENTES DE PREMISSAS É PORTANTO UM JOGO DA INTUIÇÃO

É UM JULGAMENTO DO TIPO QUE ESTÁ ENVOLVIDO NA DESCOBERTA CIENTÍFICA

AS CONVERSÕES PODEM ACONTECER CONTRA A NOSSA VONTADE

pelas suas próprias perspetivas, mais ricas; e confiam que o opositor já terá tido um vislumbre dessas perspetivas, e que não pode deixar de sentir uma nova satisfação mental, que o atrairá ainda mais e finalmente o cativará para os seus próprios terrenos. O processo de escolha entre posições baseadas em conjuntos diferentes de premissas é portanto muito mais um jogo da intuição, e finalmente da consciência, do que uma decisão entre interpretações diferentes baseadas no mesmo conjunto de premissas, ou em conjuntos muito semelhantes de premissas. É um julgamento do tipo que está envolvido na descoberta científica. A vontade pode ter um lugar importante nestes julgamentos. Recordamos que uma vontade inflexível é essencial para a investigação científica, para que as intimações da descoberta possam chegar ao estádio da maturidade; e que muitas vezes é correto persistir em certos expectativas intuitivas, até mesmo quando uma série de factos parecem não estar de acordo com elas. Em todas essas lutas a nossa vontade nunca pode determinar o julgamento final, o qual deve continuar sempre a ser guiado pela voz calma da consciência. Também as crises mentais, que podem levar à conversão de um conjunto de premissas para outro, são muitas vezes dominadas por fortes impulsos da força da vontade. As conversões podem acontecer contra a nossa vontade (tal como aconteceu quando comunistas fervorosos foram vencidos pela dú118


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

vida e quebraram subitamente perante os julgamentos na Rússia) ou - veja-se o caso de Santo Agostinho - pode-se ter que procurar em vão ao longo de anos através de todo o poder da nossa vontade. Embora a nossa vontade possa ser evocada pela nossa consciência, para apoiar os seus argumentos ou para, pelo contrário, nos levar numa direção oposta, tanto do argumento como da consciência, não há convicção honesta que se possa construir ou destruir só pela força da vontade - mas apenas induzir um auto engano. A decisão última permanece com a nossa consciência. O que finalmente nos leva uma vez mais à questão: quais as premissas que guiam a consciência em decisões deste tipo, numa sociedade livre? Podemos encontrar, como no caso das premissas da ciência, uma arte prática que as incorpore? uma tradição pela qual esta arte se transmite? instituições em que encontram abrigo e expressão? Sim, vamos encontrá-las subjacentes à arte da discussão livre, transmitida por uma tradição de direitos cívicos e incorporada nas instituições da democracia. Esta arte, esta tradição, estas instituições podem ser descobertas nas suas formas mais puras em países como o Reino Unido, América, Holanda, Suíça, onde foram estabelecias em primeiro lugar e da forma mais efetiva. Podemos identificar dois princípios fundamentais que estão subjacentes ao processo de discussão livre. Chamarei equidade a 119

NÃO HÁ CONVICÇÃO HONESTA QUE SE POSSA CONSTRUIR OU DESTRUIR SÓ PELA FORÇA DA VONTADE

ARTE DA DISCUSSÃO LIVRE, TRANSMITIDA POR UMA TRADIÇÃO DE DIREITOS CÍVICOS E INCORPORADA NAS INSTITUIÇÕES DA DEMOCRACIA


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EQUIDADE NA DISCUSSÃO É UM ESFORÇO PARA EXPOR O CASO COM OBJETIVIDADE

POR TOLERÂNCIA QUERO AQUI SIGNIFICAR A CAPACIDADE PARA OUVIR UMA AFIRMAÇÃO INJUSTA E HOSTIL POR PARTE DE UM OPOSITOR E MESMO ASSIM DESCOBRIR OS SEUS PONTOS SÓLIDOS

um e tolerância ao outro, usando as palavras num sentido algo peculiar. Equidade na discussão é um esforço para expor o caso com objetividade. Quando uma expressão da nossa convicção chega às nossas mentes pela primeira vez, exprime-se em termos de princípios. A emoção irrompe como dominante e permeia toda a nossa ideia. Para ser objetivo, precisamos de ordenar os factos, as opiniões e as emoções e apresentá-los em separado, por esta ordem, o que facilita o exame e a crítica de cada uma delas por seu turno. Abre toda a nossa posição ao opositor. É uma disciplina dolorosa que quebra o nosso entusiasmo e reduz ao mínimo as nossas pretensões. Mas a equidade exige isso; e também que se reconheça ao opositor os seus pontos de verdade, enquanto que reconhecemos com franqueza os nossos preconceitos e as limitações naturais do nosso conhecimento. Por tolerância quero aqui significar a capacidade para ouvir uma afirmação injusta e hostil por parte de um opositor e mesmo assim descobrir os seus pontos sólidos, assim como as razões dos seus erros. É irritante abrir a nossa mente a uma enxurrada de argumentos enganadores na expectativa de aí apanhar um grão de verdade; o qual, uma vez reconhecido, irá reforçar a posição do nosso opositor, e que poderá mesmo ser injustamente explorada por ele contra nós. É preciso uma grande força de tolerância para passar por uma situação deste tipo. 120


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

O público em geral tem um papel importante na manutenção da equidade e da tolerância. As controvérsias entre os líderes do pensamento são geralmente conduzidas de modo a cativar apoiantes, mais do que para os converter. A equidade e a tolerância dificilmente se podem manter num debate público, a menos que as audiências apreciem a candura e a moderação e consigam resistir à falsa oratória. Um público judicioso e atento para a falsidade de um argumento é por isso um parceiro essencial na prática da controvérsia livre. Insistirá em pretensões moderadas e admitirá francamente o seu elemento de convicção pessoal. Exigirá isto tanto para defesa do equilíbrio da sua própria mente como também um símbolo de um pensamento claro e consciencioso por parte daqueles que procuram o seu apoio. As principais esferas da cultura apelam habitualmente ao público como um todo, o qual por regra aceita ou rejeita a opinião “da ciência” ou os ensinamentos “da religião”, no seu todo, sem tentar discriminar entre as visões dos diferentes cientistas ou dos diferentes teólogos. Mesmo assim intervirão ocasionalmente nas questões internas de um ou outro grande domínio da mente, em particular quando um novo ponto de vista possa estar em rebelião total contra a ortodoxia reinante. Os rebeldes culturais ficam geralmente com um pé fora da esfera reconhecida, mas tentam manter o outro pé dentro dessa esfera. Uma parte do público 121

AS CONTROVÉRSIAS ENTRE OS LÍDERES DO PENSAMENTO SÃO GERALMENTE CONDUZIDAS DE MODO A CATIVAR APOIANTES, MAIS DO QUE PARA OS CONVERTER

UM PÚBLICO JUDICIOSO E ATENTO PARA A FALSIDADE DE UM ARGUMENTO É POR ISSO UM PARCEIRO ESSENCIAL NA PRÁTICA DA CONTROVÉRSIA LIVRE


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O RECONHECIMENTO CIENTÍFICO DA PSICANÁLISE NOS NOSSOS DIAS, A CIRURGIA MANIPULATIVA, E MAIS RECENTEMENTE A TELEPATIA, DEVEM MUITO DO SEU RECONHECIMENTO AO APOIO POPULAR

(b) [NT: Referência aos achados arqueológicos de Glozel, numa câmara subterrânea próxima de Vichy, em França, onde foram encontrados milhares de artefactos nos anos vinte do século passado, cuja datação tem sido polémica (neolítico, idade do bronze, idade medieval) e que foi objeto de acesos debates e de polémicas jurídicas, especialmente nos anos trinta e quarenta. Alguns defenderam nessa altura tratar-se de um embuste.]

(c) [NT: A propaganda nazi tentou desvalorizar Einstein, em 1939, argumentando tratar-se de um judeu de capacidades limitadas e que não havia nada de interessante na teoria da relatividade (e mesmo que houvesse, era um plágio)).

virá em seu auxílio, outros desacreditarão desses esforços. O reconhecimento científico da psicanálise nos nossos dias, a cirurgia manipulativa, e mais recentemente a telepatia, devem muito do seu reconhecimento ao apoio popular. Por outro lado, a intervenção popular, por exemplo, dos círculos nacionalistas franceses a pedirem o reconhecimento dos achados de Glozel(b), ou a oposição dos estudantes anti semitas alemães à teoria da relatividade de Einstein(c), estavam erradas. Falando em termos gerais, a intervenção do publico é feita na procura sincera pela verdade e será considerada como correta pela sociedade em geral, desde que se mantenha dentro de limites que não interfiram com a governação autónoma acordada aos especialistas, sob a proteção da comunidade como um todo. O que nos leva para as instituições que albergam a discussão livre numa sociedade livre. No Reino Unido, por exemplo, há o parlamento, os tribunais, as igrejas protestantes, a imprensa, o teatro, a rádio, os governos locais e os inúmeros grupos privados que governam todos os tipo de organizações políticas, culturais e humanitárias. Sendo de carácter democrático, estas instituições são por sua vez orientadas pela opinião pública. A discussão, com estes propósitos, é particularmente protegida através dos seus próprios órgãos, sendo as regras de equidade e de tolerância compelidas pelos costumes e pela lei. Uma variedade ampla de opiniões 122


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

divergentes é assim protegida através da sociedade em geral. É verdade que o estatuto que lhes é concedido varia muito. Alguns, por exemplo a ciência, recebem um apoio positivo tanto para desenvolver como para ensinar a sua doutrina. Outras opiniões, como a magia e a astrologia, são por sua vez desencorajadas. Mesmo que nem todas as opiniões sejam toleradas por igual, a proteção garantida a todos pode causar dor e incómodo àqueles que discordam delas. O equilíbrio entre as opiniões que são incentivadas positivamente e as outras que são apenas toleradas, e ainda outras que são desencorajadas ou mesmo consideradas como criminosas, está em fluxo constante. As necessidades da guerra, por exemplo, podem fazer com que o âmbito da tolerância seja subitamente restringido. A opinião pública está constantemente a fazer ajustes nesses assuntos, através dos costumes e da legislação. No entanto, não se pode, dada a forma de prescrições inequívocas a estas regras institucionais, e ainda menos aos princípios gerais da equidade e da tolerância. Mesmo o campo de discussão mais estritamente controlado, como os procedimentos dos tribunais, deixam ainda alguma margem para a discrição. Os casos limites ou as situações novas exigem habitualmente novos julgamentos interpretativos. Nos domínios mais vastos da argumentação pública cada participante tem que interpretar o costume 123

MESMO O CAMPO DE DISCUSSÃO MAIS ESTRITAMENTE CONTROLADO, COMO OS PROCEDIMENTOS DOS TRIBUNAIS, DEIXAM AINDA ALGUMA MARGEM PARA A DISCRIÇÃO


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AS INÚMERAS DECISÕES INDEPENDENTES RESULTARIAM NUM CAOS SE NÃO FOSSE A HARMONIA ESSENCIAL PREVALECENTE ENTRE AS CONSCIÊNCIAS INDIVIDUAIS DE UMA COMUNIDADE

existente, dia a dia, à luz da sua própria consciência. As inúmeras decisões independentes resultariam num caos se não fosse a harmonia essencial prevalecente entre as consciências individuais de uma comunidade. Este consenso de consciências é geralmente apresentado como mostrando a presença de um espírito democrático entre as pessoas. À luz da nossa análise anterior, podemos estabelecer umas condições mais bem definidas para tal. À luz do “espírito democrático”, que guia a vida das nações livres, aparece - tal como o espírito científico subjacente às atividades da comunidade científica - como uma expressão de certas convicções metafísicas partilhadas pelos membros da comunidade. Já foram anteriormente esboçadas; voltaremos agora para a sua análise. A equidade na discussão foi definida como uma tentativa de objetividade, ou seja, uma preferência pela verdade mesmo à custa de perder força para o nosso argumento. Ninguém pode praticar tal coisa se não acreditar que a verdade existe. Pode-se, por exemplo, acreditar na verdade e mesmo assim ser demasiado tendencioso para que se possa ser objetivo. Há, na realidade, centenas de maneiras de ficar aquém da objetividade e ao mesmo tempo acreditar na verdade. Mas não há maneira alguma de chegar a verdade, a menos que se acredite nela. E, ainda mais, não faz qualquer sentido argumentar com os outros se não se acre124


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

ditar que eles também acreditam na verdade e se esforçam por ela. Só supondo que a maior parte das pessoas encaram a verdade essencialmente da mesma maneira é que faz algum sentido a nossa abertura com equidade e tolerância. Uma comunidade que efetivamente pratica a discussão livre está assim dedicada a quatro proposições: (1) a verdade existe; (2) todos os seus membros amam a verdade; (3) sentem-se obrigados para com ela, e (4) são de facto capazes de a perseguirem. É claro que estes pressupostos são vagos, até porque são de um tipo que pode ser invalidado pela mera dúvida. Se as pessoas perdessem a confiança no amor à verdade dos seus próprios concidadãos, poderia muito bem acontecer que deixassem de se sentir obrigadas à sua procura a todo o custo. Considerando quão fracos somos a resistir à tentação da falsidade e quanto imperfeito é o nosso amor pela verdade, é mesmo assim surpreendente que existam comunidades em que a confiança mútua na sinceridade de todos possa ser mantida e, em certa medida, apoiada pela sua prática da objetividade e da tolerância mútua. O amor pela verdade e a confiança na veracidade não são efetivamente adotadas na forma de uma teoria. Será até difícil que formem artigos de uma fé, mas estão incorporados na prática de uma arte - a arte da discussão livre - de que formam as premissas. Esta arte comunal - tal como a desco125

SÓ SUPONDO QUE A MAIOR PARTE DAS PESSOAS ENCARAM A VERDADE ESSENCIALMENTE DA MESMA MANEIRA É QUE FAZ ALGUM SENTIDO A NOSSA ABERTURA COM EQUIDADE E TOLERÂNCIA

O AMOR PELA VERDADE E A CONFIANÇA NA VERACIDADE NÃO SÃO EFETIVAMENTE ADOTADAS NA FORMA DE UMA TEORIA


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A DEDICAÇÃO ÀS PREMISSAS DO PENSAMENTO LIVRE SIGNIFICAM A ADESÃO A UMA TRADIÇÃO NACIONAL

AS PREMISSAS DA LIBERDADE ESTARÃO ASSEGURADAS PELA COMPULSÃO EXERCIDA PELA OPINIÃO PÚBLICA

berta científica que estudamos anteriormente - quando praticada de acordo com uma tradição que passa de geração para geração, recebe o selo de aprovação de cada geração ao ser passada para a seguinte. Há um grande fluxo de tradição que passa através da humanidade e existem algumas formas mais específicas e mais elaboradas que são defendidas por nações individuais. As instituições cívicas inglesas têm sido os veículos principais desta tradição desde o século dezassete. A dedicação às premissas do pensamento livre significam a adesão a uma tradição nacional em que essas instituições ganharam raízes muito profundas. Quando uma criança nasce numa comunidade nacional, o contrato social é-lhe imposto à força. A comunidade impele a sua adesão, em primeiro lugar, pela imposição de uma educação primária informada pelas suas próprias premissas. Uma criança que cresce numa comunidade moderna é forçada a abandonar as visões mágicas para as quais está naturalmente inclinada e a adotar uma visão naturalista da vida quotidiana. A herança completa das instituições livres descerá sobre o jovem e confirmá-lo-à nessas obrigações tradicionais. As premissas da liberdade estarão asseguradas pela compulsão exercida pela opinião pública, quer diretamente como através do processo legislativo. Não será surpreendente que o contrato social seja muito menos livre para uma nação do que para a sociedade científica. Há 126


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

muito espaço fora da ciência para aqueles que não a amam, ou que têm que ser removidos da comunidade científica por falta de capacidade ou por quebra da integridade. Mas uma nação tem que absorver todos os que nascem no seu seio, e não pode expulsar alguém, salvo por execução ou exílio. Além do mais, os membros admitidos por nascimento numa comunidade não podem escolher livremente as suas premissas; são educados segundo certos termos, sem consulta pela sua própria preferência. Nestas circunstâncias o seu sentido de obrigação, pelo qual o contrato social fica selado, não pode ser guiado - ou mesmo completamente induzido - a não ser pela influência educacional. Reconhecemos aqui as funções próprias de uma autoridade geral encarregada da defesa das premissas do pensamento livre. No entanto, cada novo membro subscritor de uma tradição nacional (ou, mais geral, humana) adiciona-lhe a sua própria cambiante da interpretação - e alguns só assinarão o contrato com grandes reservas. Cada geração tem o problema de conseguir separar os poucos inovadores de alto gabarito de entre uma multidão de aldrabões e fraudes e tem que decidir essa seleção de acordo com a sua própria luz. Precisam de se apoiar, em última análise, nas suas próprias consciências. A forma como uma nação perdura, e a forma sob a qual sobrevive, depende em última análise do resultado de 127

CADA NOVO MEMBRO SUBSCRITOR DE UMA TRADIÇÃO NACIONAL (OU, MAIS GERAL, HUMANA) ADICIONALHE A SUA PRÓPRIA CAMBIANTE DA INTERPRETAÇÃO


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PRECISAMOS DE UMA SOBERANIA ATOMIZADA ENTRE INDIVÍDUOS QUE ESTÃO ENRAIZADOS NUM TERRENO COMUM DE OBRIGAÇÕES TRANSCENDENTES

UMA COMUNIDADE DEVOTADA Á PROCURA DA VERDADE NÃO PODE DEIXAR DE ATRIBUIR LIBERDADE À CIÊNCIA COMO UMA DAS FORMAS DA VERDADE

decisões individuais feitas com fé e conhecimento, que são o contributo de cada um. Qualquer poder com autoridade para prevalecer sobre essas decisões destruiria necessariamente a liberdade. Precisamos de uma soberania atomizada entre indivíduos que estão enraizados num terreno comum de obrigações transcendentes. De outra maneira, a soberania não seria incorporada num poder secular com autoridade absoluta sobre todos os indivíduos. A soberania atomizada, a soberania da opinião pública livre, é também onde assentam os fundamentos últimos da ciência. Uma comunidade devotada à procura da verdade não pode deixar de atribuir liberdade à ciência como uma das formas da verdade. Uma tal adesão, ganha pela discussão pública razoável e tolerante, é a parte a que tem direito. Um cientista pode perguntar por mais: esse é o seu papel na disputa em competição livre. Esse contributo pode ser determinado, em certa medida, pela ação educativa, ou por outra ação institucional, e mesmo assim continuar a ser legítimo, desde que essa ação se baseie em decisões democráticas arbitradas por uma discussão aberta. Este é o ponto final até onde conseguimos seguir as raízes da convicção expressa ao afirmar uma proposição científica como verdadeira. Uma tal convicção implica, em última análise, a nossa adesão a uma sociedade dedicada a certos desígnios permanentes, entre os quais 128


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

figura a realidade da verdade e a nossa obrigação e necessidade de descobrir a verdade. Diz que, numa sociedade assim dedicada, é possível uma escolha idónea entre aceitar ou rejeitar as premissas da ciência, e nós fizemos essa escolha e aceitamos essas premissas. E continua com a afirmação da convicção na idoneidade do processo de descoberta, que tratei nas minhas duas lições anteriores, e na validade, como um todo, dos resultados obtidos. Finalmente sanciona uma proposição em particular pela sua acreditação pessoal à luz dessas premissas. Finalmente, este último ato exprime ainda a convicção de que o que é indicada por tal proposição é real, convicção pela qual também assumimos uma responsabilidade pessoal. A esta convicção junta-se a exigência pelo reconhecimento universal da verdade dessa proposição. Logo, enquanto estabelecemos que as proposições verdadeiras não se podem estabelecer por qualquer critério explícito, afirmamos a validade universal das proposições a que damos uma aprovação pessoal. Fica aí expressa a nossa convicção de que a verdade é real e que não pode deixar de ser reconhecida por todos aqueles que a procuram com sinceridade, e ainda a nossa crença numa sociedade livre como uma organização das consciências dos seus membros com vista à realização das suas obrigações inerentes para com a verdade. Portanto, estar de acordo com a validade da ciência - ou qualquer outro dos grandes 129

NÓS FIZEMOS ESSA ESCOLHA E ACEITAMOS ESSAS PREMISSAS

AFIRMAMOS A VALIDADE UNIVERSAL DAS PROPOSIÇÕES A QUE DAMOS UMA APROVAÇÃO PESSOAL

ESTAR DE ACORDO COM A VALIDADE DA CIÊNCIA - OU QUALQUER OUTRO DOS GRANDES DOMÍNIOS DA MENTE - É EXPRIMIR UMA FÉ QUE APENAS SE PODE DEFENDER DENTRO DE UMA COMUNIDADE


MICHAEL POLANYI

ESTA CRISE TEM VINDO A MANIFESTAR-SE CADA VEZ MAIS NITIDAMENTE COMO UMA AMEAÇA À LIBERDADE INTELECTUAL

domínios da mente - é exprimir uma fé que apenas se pode defender dentro de uma comunidade. Compreendemos aqui a ligação entre ciência, fé e sociedade, delineada nestes ensaios. Podemos tentar avançar ainda mais inquirindo sobre quais os fundamentos em que assenta a nossa convicção de que a verdade é real, de que existe um amor generalizado pela verdade entre os homens e a nossa capacidade para a encontrar. Estas convicções (e outras muito relacionadas com elas, como acreditar na justiça e na caridade) têm estado recentemente envolvidas num crise fatídica. O nosso exame dos fundamentos últimos sobre os quais assenta a nossa obrigação para com a verdade tornar-se-á naturalmente numa análise da crise geral em que a nossa civilização está hoje envolvida. Esta crise tem vindo a manifestar-se cada vez mais nitidamente como uma ameaça à liberdade intelectual baseada na aceitação de uma obrigação universal para com a verdade. Pode parecer que isso aconteceu porque a natureza estritamente limitada da liberdade intelectual nunca foi completamente aceite por aqueles que a ajudaram a estabelecer. Não reconheceram que a liberdade não se pode conceber exceto nos termos das obrigações particulares da consciência, cuja procura o permite e determina. Pensaram que a liberdade não pode significar aceitar quaisquer obrigações particulares e que é de facto incompatível com a prescrição dos 130


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seus próprios limites. A liberdade de pensamento, em particular, significa nessa visão a rejeição de qualquer tipo de crenças ou convicções tradicionais, incluindo, ao que parece, aquelas em que se baseia a própria liberdade. Asseguraram que se não fossem postos em dúvida alguns limites, não haveria maneira de restringir a intolerância e de evitar o obscurantismo. Permitam-me que esboce brevemente o processo histórico pelo qual chegamos à nossa crise moderna.

A LIBERDADE DE PENSAMENTO, EM PARTICULAR, SIGNIFICA NESSA VISÃO A REJEIÇÃO DE QUALQUER TIPO DE CRENÇAS OU CONVICÇÕES TRADICIONAIS

III A emergência gradual de uma sociedade dedicada à busca da verdade pelos métodos da objetividade e da tolerância ocorreu na Europa durante o reflorescimento do pensamento grego depois da idade das trevas. Muito deste pensamento sobreviveu na teologia cristã e naquilo que resta da lei romana. Desde o tempo do renascimento carolíngio, o pensamento antigo foi aumentando gradualmente até que se tornou dominante durante o renascimento italiano. O período dos humanistas do renascimento conheceu a primeira tentativa para destronar a autoridade teológica até aí dominante e para estabelecer em seu lugar uma cultura baseada numa inteligência secular e livre. A reforma e a contrareforma fizeram voltar para trás este processo, 131

O PERÍODO DOS HUMANISTAS DO RENASCIMENTO CONHECEU A PRIMEIRA TENTATIVA PARA DESTRONAR A AUTORIDADE TEOLÓGICA ATÉ AÍ DOMINANTE


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A AUTORIDADE TEOLÓGICA DA IGREJA MEDIEVAL FOI ESPECÌFICA E SEVERA

que finalmente voltou a emergir durante o século dezassete na Holanda, na Inglaterra e nas colónias britânicas da América, onde conduziu a um regime de larga objetividade e tolerância, em termos comparativos, estabelecido institucionalmente. Noutras partes da Europa, a tolerância difundiu-se através da agência do absolutismo iluminado e mais tarde, e de uma forma mais eficiente, através das repercussões das revoluções francesas de 1789 e 1848. A autoridade teológica da igreja medieval foi específica e severa, até num grau que hoje em dia nos parece intolerável. Ainda em 1700 um bom católico educado em França seria ensinado a acreditar que o nosso primeiro antecessor, Adão, morrera no dia 20 de agosto do ano 930 do mundo. Todos os casos de interpretações duvidosas da fé estavam reservados para a autoridade eclesiástica. A confissão anual obrigatória, associada ao juramento dos príncipes para erradicarem toda a heresia, tal como indicado pela igreja, manteve este regime firmemente estabelecido até à fase final da idade média. Os conflitos que finalmente levaram à sua destruição geral duraram até aos nossos tempos. Produziram as nossas formas liberais de vida púbica, com base no pressuposto da realidade da verdade e da eficácia do argumento bem fundamentado. O sistema medieval, fundado num texto específico, tal como interpretado por uma autoridade central, foi substituído por uma sociedade 132


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fundada nos princípios interpretados pela opinião pública. O novo espírito de independência já vinha a ser praticado há muitos anos e numa variedade de formas - artística, política, religiosa e científica - antes de uma tentativa resoluta para incorporar as suas premissas num sistema de filosofia. A dúvida cartesiana e o empirismo de Locke tornaram-se então em duas alavancas poderosas de libertação adicional em relação à autoridade estabelecida. Estas filosofias e as dos seus discípulos propunham-se demonstrar que se podia estabelecer a verdade, e que se podia construir uma doutrina rica e satisfatória do homem e do universo exclusivamente sobre os fundamentos da razão crítica. As proposições evidentes por si próprias ou o testemunho dos sentidos, ou uma combinação de ambos, seriam suficientes para tal. Tanto Descartes como Locke mantiveram a sua fé na doutrina cristã revelada. Embora os racionalistas que lhes sucederam tendessem para o deísmo ou para o ateísmo, mesmo assim permaneceram firmes na convicção de que as faculdades críticas do homem, sem a ajuda dos poderes da fé, conseguem estabelecer a verdade da ciência e os cânones da justiça, decência e liberdade. Pensadores como Wells e John Dewey, e toda a geração cujas mentes eles refletem, continuam a professá-lo hoje em dia, assim como o fazem os empiristas mais extremos que professam a filosofia do positivismo ló133

QUE SE PODIA CONSTRUIR UMA DOUTRINA RICA E SATISFATÓRIA DO HOMEM E DO UNIVERSO EXCLUSIVAMENTE SOBRE OS FUNDAMENTOS DA RAZÃO CRÍTICA

CONVICÇÃO DE QUE AS FACULDADES CRÍTICAS DO HOMEM, SEM A AJUDA DOS PODERES DA FÉ, CONSEGUEM ESTABELECER A VERDADE DA CIÊNCIA E OS CÂNONES DA JUSTIÇA, DECÊNCIA E LIBERDADE


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ESTÃO CONVENCIDOS QUE AS NOSSAS PRINCIPAIS DIFICULDADES CONTINUAM A ADVIR DE AINDA NÃO NOS TERMOS LIBERTADO COMPLETAMENTE DE TODOS AS CRENÇAS TRADICIONAIS

O MÉTODO DE DESCRER DE CADA PROPOSIÇÃO QUE NÃO SE PODE VERIFICAR POR OPERAÇÕES PERFEITAMENTE DETERMINADAS DESTRUIRIA TODA A CRENÇA NA CIÊNCIA NATURAL ESSE MÉTODO LEVARIA A UM COMPLETO NIILISMO METAFÍSICO

gico. Todos estão convencidos que as nossas principais dificuldades continuam a advir de ainda não nos termos libertado completamente de todos as crenças tradicionais e continuam a depositar grandes esperanças em novas aplicações do método do ceticismo e do empirismo radicais. Mas parece claro que estes métodos não representam verdadeiramente o processo pelo qual a vida intelectual liberal se estabeleceu de facto. É verdade que existiu um tempo em que a destruição da autoridade libertou progressivamente novas descobertas em todos os domínios de inquirição. Mas nenhuma dessas descobertas - nem mesmo as da ciência - se basearam na experiência dos nossos sentidos, apenas ajudados por proposições evidentes por si mesmas. Subjacente à aprovação da ciência e à procura da descoberta na ciência está o acreditar nas premissas científicas que os aderentes e os praticantes da ciência têm obrigatoriamente de aceitar. O método de descrer de cada proposição que não se pode verificar por operações perfeitamente determinadas destruiria toda a crença na ciência natural. E destruiria, de facto, o acreditar na verdade e o amor pela própria verdade, condições essenciais de todo o pensamento livre. Esse método levaria a um completo niilismo metafísico e portanto negaria as bases de qualquer manifestação significante da mente humana. Pode-se objetar que os céticos continuaram de facto a amar e a defender a ciência 134


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e outros domínios próximos, assim como a objetividade e a tolerância em geral. Isso é verdade - ou pelo menos é muito frequentemente verdade. Mas isso apenas mostra que as pessoas podem continuar uma grande tradição mesmo professando uma filosofia que nega as suas premissas. Os aderentes de uma grande tradição desconhecem, em geral, grande parte das suas premissas, que estão incorporadas nos fundamentos inconscientes da sua prática. Estas premissas podem por sua vez continuar imunes, por um longo período de tempo, contra a sua negação teórica por aqueles que praticam e que transmitem a tradição. Assim a ciência continuou com sucesso durante os últimos trezentos anos, através de cientistas que assumiam estarem a praticar o método segundo Bacon, o qual, de facto, não pode criar resultados científicos, sejam eles quais forem. Longe de tomarem consciência da contradição interna em que estavam envolvidos, os que praticaram uma tradição à luz de uma teoria falsa sentiram-se convencidos - tal como tinham sido gerações de empiristas desde Locke - que teorias falsas se podem justificar pelo sucesso da sua prática. Um tal estado de lógica suspensa seria contudo menos provável de se desenvolver em países onde uma tradição, não indígena no seu solo, se transmite através de uma teoria falsa, mais do que pela sua prática. Em certa medida isso já foi mostrado em França, onde o conceito não qualificado de 135

OS ADERENTES DE UMA GRANDE TRADIÇÃO DESCONHECEM, EM GERAL, GRANDE PARTE DAS SUAS PREMISSAS


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TODAS ELAS NEGAM RADICALMENTE A POSSIBILIDADE DA OBJETIVIDADE E DA EQUIDADE NA DISCUSSÃO PÚBLICA

ESTES MOVIMENTOS JUSTIFICAM-SE A ELES PRÓPRIOS POR SUPOSTAS TEORIAS CIENTÍFICAS

liberdade, derivado das teorias de Locke sobre a governação, conduziram, com lógica, à doutrina da soberania popular absoluta de Rousseau: uma doutrina que inaugurou o jacobinismo e que tem dificultado até aos dias de hoje a prática da discussão tolerante entre os partidos políticos franceses. Mas ainda mais sérias foram as consequências de uma falsa doutrina da liberdade que percolou mais para oriente, em países com menos tradições cívicas populares. Tornaram-se aí correntes nas teorias românticas da liberdade individual sem restrições, e da nação sem restrições, e ainda na teoria socialista da classe revolucionária. Todas elas negam radicalmente a possibilidade da objetividade e da equidade na discussão pública e apoiam, explicitamente ou por implicação, uma teoria totalitária do estado. E essas teorias não ficam no papel. Enquanto que as máximas da violência tem sido avançadas por autores na política de todos os tempos, e desde Maquiavel nunca deixaram de afetar a ação dos homens de estado, foi no século vinte que pela primeira vez na história se produziram movimentos de massas que negam a realidade da razão e da equidade e que professam um puro amor ao poder. Estes movimentos justificam-se a eles próprios por supostas teorias científicas, o que pode parecer ilógico dado que negam à ciência a sua posição de independência. Mas apesar disso foi verdade. A teoria da luta de classes reivindicava que a ascen136


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dência da classe operária ao poder absoluto era cientificamente inevitável. A teoria romântica afirmava-o como uma necessidade biológica do super-homem e da super-raça para atingirem a sua superioridade absoluta. Tanto o bolchevismo como a ação fascista baseavam-se em teorias de violência ilimitada; mas os elementos tribais e vitalistas do fascismo levaram a um culto deliberado da brutalidade, que estava inteiramente ausente nas visões puramente mecanicistas do bolchevismo. No entanto, nenhum desses movimentos ganhou o poder a partir das suas fontes professadas de força. Não podemos aprovar a sua visão falsa do homem ao aceitar a avaliação que fazem deles próprios. Não foram nem os interesses aquisitivos do proletariado nem a vitalidade física dos povos italianos e alemães que levaram as revoluções bolchevique e fascista à vitória. Estes movimentos devem integralmente o sucesso aos seus recursos espirituais ocultos. Foram lançados para o poder numa onda de paixões humanitárias e patrióticas. A explicação parece ser suficientemente clara. A negação de toda a realidade espiritual não só é falsa como também é incapaz de se consumar. É logicamente falso negar a existência da verdade, pois a sua própria afirmação baseia-se no pressuposto de que não é possível estabelecer a verdade. Mas, a realidade espiritual não só continua a estar implícita, como também continua a ser uma força operativa. Quando dizemos 137

TANTO O BOLCHEVISMO COMO A AÇÃO FASCISTA BASEAVAM-SE EM TEORIAS DE VIOLÊNCIA ILIMITADA

ESTES MOVIMENTOS DEVEM INTEGRALMENTE O SUCESSO AOS SEUS RECURSOS ESPIRITUAIS OCULTOS


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DAÍ O FANATISMO IRRESISTÍVEL DO PARTIDO ESCOLHIDO E A SUA CAPACIDADE PARA MOTIVAR RESPOSTAS PROFUNDAMENTE MORAIS AO MESMO TEMPO QUE DERRAMA DESPREZO SOBRE AS REALIDADES MORAIS

que “a verdade é aquilo que beneficia o proletariado”, ou “a verdade é o que beneficia a Alemanha”, não estamos a cancelar a nossa convicção da verdade ou o nosso amor à verdade, mas estamos simplesmente a transferir as obrigações transcendentes que temos para com a verdade para os interesses temporais do proletariado ou dos alemães. O mesmo acontece com a justiça ou com a caridade, para as quais o nosso apego implícito é inextinguível, tal como o nosso apego para com a verdade. Aqueles que declaram que estes ideais não têm uma substância real e que apenas os interesses e o poder de grupos particulares são reais, associam inevitavelmente as suas aspirações pela justiça e pela fraternidade à luta pelo poder por um partido em particular. A sua confiança última, e todo o seu amor e devoção, estão portanto associados a este resíduo da realidade, o poder do partido escolhido. Daí o fanatismo irresistível do partido escolhido e a sua capacidade para motivar respostas profundamente morais ao mesmo tempo que derrama desprezo sobre as realidades morais. Desta análise dos fundamentos, chegamos à teoria seguinte do governo totalitário. Para que a sociedade possa ser devidamente constituída, devem existir forças competentes para decidir, em última instância, todas as questões controversas entre dois cidadãos. Mas se os cidadãos se consagram a certas obrigações transcendentes e, em particular, a ideais gerais como a verdade, a jus138


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tiça, a caridade, e se estes estão incorporados nas tradições da comunidade a que são fieis, muitas das questões entre cidadãos, mesmo todos numa certa medida, podem-se deixar - e necessariamente deixam-se - para serem decididos pelas consciências individuais. No entanto, no momento em que a comunidade deixa de se dedicar, através dos seus membros, aos ideais transcendentes, apenas pode continuar a existir sem problemas pela submissão a um único centro de poder secular ilimitado. Também os cidadãos que abandonaram radicalmente a sua crença nas realidades espirituais - nas obrigações a que a sua consciência tinha o direito e o dever de tomar uma posição - não podem levantar objeções válidas à direção total pelo estado. De facto o seu amor pela verdade e pela justiça leva-os automaticamente para o amor pelo poder do estado. A dedicação de uma comunidade aos ideais tradicionais envolve o seu apoio à ação social que serve esses ideais. Nessa medida a comunidade é desviada dos seus interesses tangíveis. Os governos que se fundamentam na negação de uma realidade espiritual não podem senão considerar esse desvio como um resvalar irresponsável que precisam de contrariar por uma intervenção apropriada em todos os seus detalhes relevantes. É por isso que o planeamento totalitário é logicamente necessário e tem que ser compreensivo. Tal como aplicado na ciência, por exem139

NO MOMENTO EM QUE A COMUNIDADE DEIXA DE SE DEDICAR, ATRAVÉS DOS SEUS MEMBROS, AOS IDEAIS TRANSCENDENTES, APENAS PODE CONTINUAR A EXISTIR SEM PROBLEMAS PELA SUBMISSÃO A UM ÚNICO CENTRO DE PODER SECULAR ILIMITADO

É POR ISSO QUE O PLANEAMENTO TOTALITÁRIO É LOGICAMENTE NECESSÁRIO E TEM QUE SER COMPREENSIVO


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NESSE CASO SERÁ LÓGICO E APROPRIADO QUE OS POLÍTICOS TENHAM UMA INTERVENÇÃO NOS ASSUNTOS CIENTÍFICOS

UMA SOCIEDADE QUE RECUSA A DEDICAÇÃO AOS IDEAIS TRANSCENDENTES, ESTÁ A ESCOLHER A SERVIDÃO

plo, esse planeamento significa uma tentativa para substituir os objetivos que a própria ciência define para si mesma por outros objetivos que o governo estabelece para a ciência, no interesse do bem estar público. Torna o governo responsável pela aceitação ou rejeição pública, em última instância, de qualquer afirmação da ciência, e pelo apoio ou retirada de proteção a desenvolvimentos particulares da ciência, de acordo com o bem estar social. Nesse caso será lógico e apropriado que os políticos tenham uma intervenção nos assuntos científicos, como guardiões dos interesses superiores erradamente ignorados pelos cientistas. Em campos em que os critérios científicos permitem uma grande latitude de julgamento (por exemplo, em medicina, ciências agrícolas, ou psicologia) um aldrabão que consiga um bom apoio político facilmente pode conseguir um espaço onde estabelecer uma posição científica. Logo, a corrupção ou a servidão completa irão enfraquecer e reduzir a verdadeira prática da ciência, distorcer a sua probidade e também negar a sua liberdade. De forma semelhante, irá distorcer e negar toda a probidade e liberdade em todos os campos da atividade cultural e política. Uma sociedade que recusa a dedicação aos ideais transcendentes, está a escolher a servidão. A intolerância fecha o ciclo completo. Desde o empirismo cético que quebrou os grilhões da autoridade eclesiástica 140


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medieval e continua ainda agora a destruir a autoridade da consciência.

IV Mas não devo fechar as portas da esperança ao futuro, pois o totalitarismo nunca se conseguiu estabelecer em definitivo seja onde quer que fosse; de facto, nenhuma sociedade pode continuar a existir se a negação racional da realidade espiritual for, na realidade, posta em prática. Mesmo que uma organização não tenha qualquer outro objetivo consciente senão pôr a violência pura em operação e exaltar a supremacia da força sobre o espírito, uma tal organização nunca poderá funcionar sem o apoio de uma devoção idealista. Para além disso, mesmo que uma comunidade tenha decidido viver segundo uma certa ideia do homem, pode progressivamente ignorar isso e acabar por se infiltrada, e finalmente absorvida, por uma renovação da sua vida cultural através de instituições cívicas decorrentes da sua civilização original. Por exemplo, na Rússia soviética, originalmente baseada num conceito de sociedade de classes, vemos uma vez mais reconhecida a ciência pura, literalmente liberta da interpretação marxista, vemos a religião reinstalada, as tradições nativas renovadas, e os princípios da lei privada gradualmente restabelecidos. Não 141

MESMO QUE UMA ORGANIZAÇÃO NÃO TENHA QUALQUER OUTRO OBJETIVO CONSCIENTE SENÃO PÔR A VIOLÊNCIA PURA EM OPERAÇÃO E EXALTAR A SUPREMACIA DA FORÇA SOBRE O ESPÍRITO, UMA TAL ORGANIZAÇÃO NUNCA PODERÁ FUNCIONAR SEM O APOIO DE UMA DEVOÇÃO IDEALISTA


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UMA DOUTRINA QUE NEGA A REALIDADE ÀS LEIS DA CIÊNCIA, ÀS ARTES, À RELIGIÃO, E À LIBERDADE EM GERAL, PODE MUITO BEM ACABAR POR ACEITAR, EM TEORIA, A DESTRUIÇÃO GERAL DESTAS ESFERAS ESPIRITUAIS

é impossível que uma tal deriva possa ocorrer na Alemanha nazi, um ou duas gerações depois da morte de Hitler. Mas também pode acontecer que se esteja a aproximar uma linha completamente diferente do desenvolvimento futuro. O declínio súbito da Europa, depois de ter atingido o seu pico de liberdade e de idealismo há trinta anos atrás, derivou para o estado presente de conflito e de violência, e pode ganhar um novo impulso alastrando para países ainda não tocados por essa decadência. O Reino Unido pode não ser capaz de suster indefinidamente o estado de lógica suspensa que para já o vai protegendo dos efeitos das falsas teorias, tão correntes aqui como noutros locais. Todas as eventualidades possíveis dependem em última instância da consciência dos homens, por cuja iluminação devemos rezar, mas são decisões que não podemos antecipar. Devo ainda assinalar que embora não pretenda refutar aqui a posição do niilismo metafísico, registo que a sua aceitação geral implica logicamente uma forma totalitária de sociedade. Uma doutrina que nega a realidade às leis da ciência, às artes, à religião, e à liberdade em geral, pode muito bem acabar por aceitar, em teoria, a destruição geral destas esferas espirituais. A ciência, a lei, a liberdade, etc., podem ser, por exemplo, todas consideradas como meras ideologias baseadas nos resultados de um sistema económico exausto, condenado a perecer com o 142


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sistema. Doutrinas ainda mais selvagens do que esta têm sido ensinadas nas universidades alemãs e postas em prática pelos seus estudantes. É claro que me oponho a uma teoria que nega aquilo em que acredito, como a realidade da verdade, da justiça e da caridade, e que condena uma sociedade que põe essa sua negação em prática. Mas não assumo que posso forçar a minha visão aos meus opositores através dos meus argumentos. Embora eu aceite que a verdade existe independentemente do meu conhecimento dessa verdade, que é acessível a todos os homens, devo admitir a minha incapacidade para obrigar alguém a vê-la. Embora acredite que os outros amam a verdade tanto quanto eu a amo, não vejo como forçar o seu acordo. Descrevi como o nosso amor da verdade se afirma habitualmente pela adesão a uma prática tradicional dentro de uma comunidade que lhe é dedicada. Mas não consigo dar uma razão para que uma tal comunidade, ou a sua prática, possam persistir - mais do que eu próprio consiga sobreviver. A minha adesão à comunidade, uma vez feita, é um ato de convicção última e assim continua, quer resulte de uma escolha madura ou seja determinado pela educação inicial. Posso antecipar um bom numero de razões para continuar associado, por exemplo, à tradição da ciência pura e da liberdade da consciência, mais do que aderir a uma baseada nos princípios da luta 143

MAS NÃO ASSUMO QUE POSSO FORÇAR A MINHA VISÃO AOS MEUS OPOSITORES ATRAVÉS DOS MEUS ARGUMENTOS

A MINHA ADESÃO À COMUNIDADE, UMA VEZ FEITA, É UM ATO DE CONVICÇÃO ÚLTIMA E ASSIM CONTINUA


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NEM A TEORIA MARXISTA NEM A TEORIA FASCISTA DO HOMEM E DA SOCIEDADE ADMITEM UM TERRENO COMUM PARA ARGUMENTAÇÃO, ENTRE OS SEUS ADERENTES E O CRENTE NA REALIDADE TRANSCENDENTE

de classes ou no fascismo. Mas, uma vez mais, eu sei que as minhas razões não podem obrigar à concordância. Nem a teoria marxista nem a teoria fascista do homem e da sociedade admitem um terreno comum para argumentação, entre os seus aderentes e o crente na realidade transcendente. Mas mesmo quando o crente metafísico não pode ter a esperança de convencer, pode mesmo assim esforçar-se por converter. Embora impotente para argumentar com os niilistas, talvez ainda possa ter sucesso para transmitir a intimação de uma satisfação mental que lhes falta, e esta intimação pode iniciar um processo de conversão. Para o marxista isto significaria apenas deixar de incorporar as suas convicções transcendentes numa teoria de violência política, e o restabelecimento dessas convicções ao seu pleno direito. Conversões destas ocorreram com frequência durante os últimos anos. Mais difícil é o caso do niilista romântico, cujo culto da brutalidade tende a corromper o seu próprio centro de humanidade. A combinação entre os falsos ensinamentos e uma educação selvagem pode fazer com que a sua conversão seja muito lenta e incerta, na melhor das hipóteses. Mesmo assim confio nos fundamentos para essa conversão e espero encontrar aí uma consciência que - uma vez acordada - seja sensível às suas obrigações, como qualquer homem. Tenho ainda que responder à objeção 144


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aqui advogada sobre as convicções que se admitem não serem suscetíveis de demonstração, o que pode ser usado como uma justificação para uma permissão completa das convicções e para o arbítrio, a intolerância e obscurantismo. Os homens podem dizer: “se não há uma verdade demonstrável, chamarei verdade àquilo de que gostar, por exemplo, àquilo que me for conveniente afirmar”. Ou: “se admite que a sua convicção de verdade está em última instância baseada no julgamento pessoal, então eu, o estado, tenho o direito de me substituir ao vosso julgamento, e determinar aquilo que deve ser a verdade”. Mas esta não é uma citação correta da minha posição. Embora negue que a verdade seja demonstrável, afirmo que é possível conhecê-la, e disse como. Só se pode acusar a minha posição de levar a uma tal permissão generalizada se mostrar que esta condição deriva de uma asserção geral da verdade por todos, tal como conhecida à luz das suas consciências. Mas não posso admitir a possibilidade de tal resultado pois a coerência das consciências de todos os homens, com base na mesma tradição universal, é uma parte integral da minha posição. Aqueles que estão preparados para aceitar a minha conceção de consciência e de tradição não vão recear qualquer anarquia devida a uma aceitação geral da consciência dos homens como guia para a verdade; enquanto que aqueles que não aceitam estes significados assumem a 145

AQUELES QUE ESTÃO PREPARADOS PARA ACEITAR A MINHA CONCEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DE TRADIÇÃO NÃO VÃO RECEAR QUALQUER ANARQUIA DEVIDA A UMA ACEITAÇÃO GERAL DA CONSCIÊNCIA DOS HOMENS COMO GUIA PARA A VERDADE


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OS PONTOS DE VISTA QUE ADIANTEI DURANTE ESTAS LIÇÕES DIFEREM DO UNIVERSALISMO DO SÉCULO DEZOITO EM TRÊS PONTOS IMPORTANTES

EU CONSIDERO A TRADIÇÃO, QUE A IDADE RACIONALISTA DETESTA, COMO A VERDADEIRA E INDISPENSÁVEL FUNDAÇÃO DOS IDEAIS DESSE PERÍODO

posição do niilista metafísico, que já anteriormente discuti. Este é o limite até onde posso ir na resposta à questão relativa aos fundamentos das minhas convicções sobre a realidade da verdade, e sobre as nossas obrigações para servir a verdade. Os pontos de vista que adiantei durante estas lições diferem do universalismo do século dezoito em três pontos importantes, os quais tentam em geral reverter. (1) Aceito completamente a impossibilidade - finalmente demonstrada pelo positivismo lógico - de verificar qualquer uma das afirmações universais habitualmente aceites pelos homens. Isto precipita a crise causada pelo empirismo cético e alarga imenso o seu âmbito. (2) Não afirmo que as verdades eternas sejam automaticamente defendidas pelos homens. Aprendemos que elas podem ser muito facilmente negadas pelo homem moderno. Acreditar nelas apenas pode ser agora aceite na forma de uma profissão explicita de fé. Na minha visão isto seria demasiado impraticável, a não ser pela existência de tradições que incorporem essas profissões e que possam ser adotadas pelos homens. Logo, eu considero a tradição, que a idade racionalista detesta, como a verdadeira e indispensável fundação dos ideais desse período. (3) Aceito também como inevitável que cada um de nós deva começar o seu desenvolvimento intelectual aceitando acriticamente um grande número de premissas tradicionais de um tipo particular, 146


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mas que por mais que avancemos nos nossos esforços, o nosso progresso ficará sempre condicionado a um conjunto restrito de conclusões acessíveis a partir das nossa premissas originais. Penso que, nessa medida, estamos comprometidos com as nossas origens, e acredito que isso nos deve fazer sentir responsáveis por cultivar o melhor que soubermos o ramo particular de tradição em que aconteceu termos nascido. Como conclusão, permitam-me que indique um contexto mais vasto a que as minhas ideias parecem conduzir. Acredito que mostrei que a procura contínua de um processo intelectual importante, pelos homens, exige um estado de dedicação social, e também que os homens só podem viver uma vida intelectual e moralmente aceitável numa sociedade que lhe é dedicada. O que não pode deixar de sugerir que toda a finalidade de uma sociedade está em permitir aos seus membros perseguir as suas obrigações transcendentes, em particular a verdade, a justiça e a caridade. É claro que a sociedade também é uma organização económica. Mas os sucessos sociais da antiga Atenas, quando comparados com os de, por exemplo, Stockport - que é aproximadamente do mesmo tamanho que Atenas era - não se podem medir pelas diferenças nos padrões de vida nos dois lugares. Logo, o avanço do bem estar parece não ser o verdadeiro propósito da sociedade, mas antes ser uma tarefa secundária que lhe é dada como uma oportu147

ESTAMOS COMPROMETIDOS COM AS NOSSAS ORIGENS,

TODA A FINALIDADE DE UMA SOCIEDADE ESTÁ EM PERMITIR AOS SEUS MEMBROS PERSEGUIR AS SUAS OBRIGAÇÕES TRANSCENDENTES

O AVANÇO DO BEM ESTAR PARECE NÃO SER O VERDADEIRO PROPÓSITO DA SOCIEDADE


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UMA EXTENSÃO NA DIREÇÃO DE DEUS

QUERO EXPRIMIR A MINHA CONVICÇÃO DE QUE O HOMEM MODERNO EVENTUALMENTE VOLTARÁ PARA DEUS ATRAVÉS DA CLARIFICAÇÃO DOS SEUS FINS CULTURAIS E SOCIAIS

nidade para satisfazer os seus verdadeiros objetivos no campo espiritual. Uma tal interpretação da sociedade parece apelar para uma extensão na direção de Deus. Se as tarefas intelectuais e morais da sociedade se baseiam, em última análise, na consciência livre de cada geração, e se estas fazem continuamente novas adições à nossa herança espiritual, bem podemos assumir que estão em comunicação direta com a mesma fonte que em primeiro lugar deu aos homens o conhecimento das coisas permanentes para a formação da sociedade. Quão perto essa fonte está de Deus, não tentarei conjeturar. Mas quero exprimir a minha convicção de que o homem moderno eventualmente voltará para Deus através da clarificação dos seus fins culturais e sociais. O conhecimento da realidade, e a aceitação das obrigações que guiam as nossas consciências, uma vez firmemente realizadas, revelar-nos-ão Deus no homem e na sociedade.

148


– Apêndices –



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I. AS PREMISSAS DA CIÊNCIA

N

a segunda lição, sobre “autoridade e consciência”, explicarei que as premissas da ciência não podem ser formuladas de forma explícita, e que só se podem manifestar de forma autêntica pela sua prática, tal como mantida pela tradição da ciência. Embora não se tente aqui um tratamento sistemático dessa análise, tentarei pelo menos ilustrar o tipo de suposições últimas sobre as quais os cientistas se têm baseado em tempos diferentes. Veremos que apresentam uma diversidade notável, embora fundamentalmente assentes em terrenos comuns. O conceito da natureza em que Copérnico se baseou para as suas especulações, foi inspirado por Pitágoras, que assumia que o universo era governado por regras numéricas e geométricas, cuja adivinhação era a tarefa da ciência. O primeiro sistema planetário de Kepler (1596) é uma boa ilustração desta abordagem. Baseava-se no facto, que era verdade dentro dos limites dos cálculos 151

O TIPO DE SUPOSIÇÕES ÚLTIMAS SOBRE AS QUAIS OS CIENTISTAS SE TÊM BASEADO EM TEMPOS DIFERENTES


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(6) C. Singer, A Short History of Science, p. 201

DEVEMOS A GALILEU A CONJETURA DE UM UNIVERSO QUE CONSISTE NUMA MASSA EM MOVIMENTO, GOVERNADA PELAS LEIS DA DINÂMICA MATEMÁTICA

de Kepler, que os cinco sólidos regulares (com arestas idênticas) podiam-se encaixar entre as esferas dos seis planetas então conhecidos, de modo que cada poliedro inscrevia-se na mesma esfera à volta da qual se circunscrevia o planeta seguinte(6). Este sistema foi mais tarde rejeitado por Kepler, que audaciosamente abandonou a doutrina pitagórica das órbitas circulares e do movimento uniforme e expandiu a visão matemática da natureza herdada de Pitágoras para passar a incluir todas as formas de funções matemáticas. Esta abordagem seria por sua vez novamente modificada por Galileu, quando transferiu o estudo da mecânica dos céus para a terra. Devemos a Galileu a conjetura de um universo que consiste numa massa em movimento, governada pelas leis da dinâmica matemática. O seu programa foi cumprido e muito alargado quando Newton incluiu tanto as leis celestiais de Kepler como as leis terrenas de Galileu num sistema universal e dinâmico. Com base nesse sucesso de Newton criou-se o pressuposto - que seria predominante até meados do século dezanove - de que a ciência podia reduzir, em última análise, todos os fenómenos à mecânica de algumas partículas constituintes e finais. Dalton começou então a sua teoria das combinações químicas a partir de um aspeto particular das proposições newtonianas. Newton escreveu que “parece-me que, no início, Deus formou a matéria com partículas sólidas, com massa, duras, impe152


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netráveis, em movimento, com tais figuras e tamanhos e também com certas propriedades e proporções, que melhor conduzem ao fim para que foram criadas...”. Dalton, que cita repetidamente esta passagem, certamente que considerou a estrutura atómica da matéria entre as suposições primárias da ciência. Da mesma maneira, as duas grandes leis da conservação - as leis da conservação da massa e da energia - apareceram primeiro como axiomas de uma visão racional da natureza, tendo ambas sido consideradas como variantes aparentes da visão newtoniana. A conservação da massa foi proposta por Lavoisier com a afirmação de que “... nada se cria nem nas operações do ar nem da natureza, e pode-se tomar como um axioma que em qualquer operação uma quantidade igual de matéria existe tanto antes como depois da operação”(7). A conservação da energia foi anunciada por Julius Robert Mayer “... como uma verdade axiomática durante os processos vitais de conversão não só da matéria como também de todas as forças que ocorrem, e cuja criação nunca tem lugar”(8). Os pressupostos modernos da ciência viriam a dar bons frutos nos grandes triunfos especulativos do século vinte, que ganharam gradualmente forma com o abandono progressivo de cada uma das características dessa imagem materialista e mecânica. Faraday e Maxwell primeiro esticaram a imagem adicionando-lhe a hipótese de um “campo” ubíquo. A teoria eletrónica alterou 153

AS DUAS GRANDES LEIS DA CONSERVAÇÃO - AS LEIS DA CONSERVAÇÃO DA MASSA E DA ENERGIA - APARECERAM PRIMEIRO COMO AXIOMAS DE UMA VISÃO RACIONAL DA NATUREZA

(7) Citado por Sherwood Taylor, Science Past and Present, p. 126

(8) Citado por Sherwood Taylor, l. c., pp. 244-5


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O PROGRAMA DE MACH ERA ELIMINAR DAS PROPOSIÇÕES CIENTÍFICAS TODAS AS IMPLICAÇÕES TAUTOLÓGICAS OU DE ALGUMA FORMA CONSIDERADAS COMO ESSENCIALMENTE NÃO VERIFICÁVEIS

ainda mais o seu domínio pretendendo que as propriedades elétricas devem ser vistas como propriedades últimas, irredutíveis às manifestações da massa em movimento - ao contrário do calor, do som, dos cheiros, etc. Seguiram-se outras alterações importantes às premissas da ciência, e outras ainda mais importantes haveriam ainda de se seguir. Parecem ter sido induzidas em primeiro lugar pela crítica filosófica da ciência originada por Ernest Mach. O programa de Mach era eliminar das proposições científicas todas as implicações tautológicas ou de alguma forma consideradas como essencialmente não verificáveis. Este propósito foi levado muito para além do seu âmbito original pelo princípio da relatividade de Einstein, que axiomaticamente abandonou a não verificabilidade essencial do movimento absoluto e propôs um quadro concetual de onde a questão do movimento absoluto estava logicamente excluída. Desta reorganização concetual emergiu um conjunto essencialmente novo de proposições que geraram uma colheita rica de novas previsões válidas. Um novo método “epistemológico” da descoberta especulativa foi assim estabelecido. O método foi aplicado por Einstein tanto na sua teoria da relatividade especial (1905) como na teoria da relatividade geral (1916). E teve um papel muito importante na formulação da mecânica quântica por Heisenberg (1925), que começou por uma tentativa para elimi154


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

nar todas as implicações não observáveis da teoria quântica dos processos atómicos então existente, devida a Bohr. O avanço dado pelo trabalho de Einstein sobre a relatividade também determinou - desde a tentativa pioneira de 1918 - a procura por uma “teoria geral do campo” a partir da qual os campos gravitacionais, elétricos e mesónicos podiam ser derivados como casos especiais (Schrodinger, 1943). Outra forma do mesmo esforço culminou nos esforços de Eddington e Milne para derivar um sistema de leis naturais exclusivamente a partir das premissas da razão. A modificação profunda das premissas da ciência envolvidas nesta linha de inquirição tornou-se clara pela controvérsia gerada. A primeira reação dos cientistas às visões de Eddington pode ser avaliada pelo facto da sua derivação da “constante estrutural fina” h.c/2.pi.e2 =137 ter sido caricaturada numa comunicação fictícia ao Naturwissenschaften (1931), entre cujos autores encontramos um jovem físico que desde aí atingiu grande distinção na ciência. A antipatia com as premissas de Eddington tem vindo a diminuir até aos dias de hoje. Recentemente, um eminente matemático inglês, ao falar-me de novas confirmações, cada vez mais precisas, da previsão de Eddington para a razão entre a massa do protão e do eletrão (como sendo a razão entre as duas raízes da equação quadrática 10x2-136x+1=0) confessou-se ele próprio preocupado com o facto, pois pensava 155


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O MOVIMENTO POSITIVISTA FOI SEM DÚVIDA JUSTIFICADO E BEM SUCEDIDO AO PRESSIONAR PELA PURIFICAÇÃO DA CIÊNCIA

A CIÊNCIA TAMBÉM NÃO FICOU REDUZIDA A UM CONJUNTO DE PROPOSIÇÕES DEFINITIVAMENTE VERIFICÁVEIS

que as ideias de Eddington estavam a minar uma verdadeira abordagem empírica à natureza. Permitam-me aqui uma digressão breve. O sucesso do método “epistemológico” reforçou muito a autoridade da conceção positivista da ciência entre os cientistas. Este resultado representa, na minha opinião, um erro de julgamento. O movimento positivista foi sem dúvida justificado e bem sucedido ao pressionar pela purificação da ciência em relação às tautologias e implicações injustificadas, mas as grandes descobertas que resultaram deste processo não podem ser creditadas a qualquer operação puramente analítica. O que aconteceu foi que a intuição científica fez uso da crítica positivista para reconfigurar os seus pressupostos criativos sobre a natureza das coisas. A ciência também não ficou reduzida a um conjunto de proposições definitivamente verificáveis, tal como postulado pela conceção positivista da ciência. Pelo contrário, revelou possuir uma faculdade de descoberta especulativa que refuta categoricamente essa conceção. Em paralelo ao movimento positivista ocorreu, durante o nosso tempo, ainda uma outra transformação das premissas da ciência. As primeiras conceções da realidade, capazes de representação visual no espaço, foram substituídas por conceitos puramente matemáticos (como as funções de onda multidimensionais), que significam certas probabilidades e que determinam certas 156


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

energias, mas para as quais não é possível conceber qualquer significado pictórico associado. “As leis fundamentais da natureza”, escreveu Dirac em 1935, “não governam o mundo, tal como aparece nas nossas imagens mentais, de uma forma muito direta, mas controlam antes um substrato do qual não conseguimos ter uma imagem mental sem aí introduzir irrelevâncias”. Esse substrato pode apenas ser descrito em termos matemáticos. Esta característica da ciência moderna apareceu pela primeira vez na teoria quântica de Planck (1900). Reapareceu depois em várias aplicações da teoria quântica, mas só por 1925 é que foi aceite como um elemento básico da ciência e incorporado organicamente na nova mecânica quântica. Estas ilustrações serão suficientes para mostrar como um número assinalável de variantes teve lugar, durante os últimos 400 anos, nas conjeturas fundamentais da ciência acerca da natureza do universo. A imagem que demos dessas alterações está longe de estar completa, pois embora a física possa ser considerada a parte mais fundamental da ciência da natureza, de facto não inclui as premissas operativas da química ou da biologia. Estas baseiam-se nas suas próprias suposições básicas, que também sofreram um gradual desenvolvimento histórico. Existem de facto aspetos da ciência, até mesmo nas matemáticas, em que os pressupostos fundamentais, os métodos 157

EXISTEM DE FACTO ASPETOS DA CIÊNCIA, ATÉ MESMO NAS MATEMÁTICAS, EM QUE OS PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS, OS MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO, E OS CRITÉRIOS USADOS PARA VERIFICAÇÃO PASSARAM POR UMA SÉRIE DE MUDANÇAS ASSINALÁVEIS


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É HABITUAL VERMOS AFIRMAÇÕES DE GRANDES CIENTISTAS DO PASSADO QUE AGORA SÃO INACEITÁVEIS PARA OS CIENTISTAS MODERNOS

DIZ-SE FREQUENTEMENTE QUE OS FACTOS DA CIÊNCIA CONTINUAM OS MESMOS E QUE APENAS MUDA A SUA INTERPRETAÇÃO

de investigação, e os critérios usados para verificação passaram por uma série de mudanças assinaláveis desde os princípios da ciência moderna, há cerca de trezentos anos atrás. É habitual vermos afirmações de grandes cientistas do passado que agora são inaceitáveis para os cientistas modernos. Muitos dos argumentos de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Lavoisier, Dalton, parecem agora irrelevantes e muitas vezes os pressupostos que os levaram a essas conclusões são hoje em dia considerados como falsos. Diz-se frequentemente que os factos da ciência continuam os mesmos e que apenas muda a sua interpretação. Isto não é verdade ou, pelo menos, é muito enganador. Se ainda reconhecemos muitos dos factos que colecionamos, digamos pelos astrónomos, trezentos anos atrás, é porque nesses casos continuamos a partilhar a interpretação básica da experiência sensorial que eles descreveram como factos. Mas enquanto que para Kepler, em 1596, parecia ser um facto indubitável que as órbitas planetárias estavam relacionadas com a geometria dos sólidos perfeitos, hoje em dias olhamos para isso como uma fantasia. Outro exemplo: Newton observou que depois de destilações repetidas a água deixava sempre um pequeno resíduo e descreveu-o como um facto que a água por evaporação se transmutava parcialmente em terra. Embora se aceite a experiência de Newton como verdadeira, 158


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e possa ser reproduzida em circunstâncias semelhantes, agora não consideramos que tenha estabelecido o facto que ele afirmava ter observado. A menos de impressões sem sentido, não há experiência que permaneça como um “facto” sem que lhe tenha sido transmitido um elemento de interpretação válida. Isto é verdade mesmo para os factos da vida quotidiana, cuja natureza depende das interpretações aceites dos acontecimentos - sejam elas mágicas, astrológicas, mitológicas, naturalistas, etc. Podemos portanto aceitar que, tendo em consideração as alterações nas premissas da ciência, muita da ciência inicial parece hoje em dia como falsa, tanto factual como teoricamente. Mas é ainda mais óbvio que muita da ciência inicial continua hoje aceite como verdade. De facto, os grandes pioneiros da ciência continuam a merecer-nos cada vez mais respeito, ao longo dos séculos, e a significância das suas descobertas torna-se ainda mais manifesta. Logo, deve haver uma extensão considerável de terreno comum entre o cientista moderno e os seus precursores iniciais. Por outras palavras, as modernas premissas da ciência incluem muito das premissas iniciais, em qualquer caso o suficiente para que muitas das conclusões importantes originalmente obtidas com base nessas premissas continuem hoje em dia a ser totalmente aceitáveis. Considerando a natureza da ciência, tal como descrita nas presentes lições, afirma159

MUITA DA CIÊNCIA INICIAL PARECE HOJE EM DIA COMO FALSA, TANTO FACTUAL COMO TEORICAMENTE

AS MODERNAS PREMISSAS DA CIÊNCIA INCLUEM MUITO DAS PREMISSAS INICIAIS, EM QUALQUER CASO O SUFICIENTE PARA QUE MUITAS DAS CONCLUSÕES IMPORTANTES ORIGINALMENTE OBTIDAS COM BASE NESSAS PREMISSAS CONTINUEM HOJE EM DIA A SER TOTALMENTE ACEITÁVEIS


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mos que não é possível um afirmação exaustiva das premissas da ciência. O terreno comum da ciência é, no entanto, acessível a todos os cientistas e por eles aceite à medida que vão aprendendo a prática tradicional da ciência. Esta tese será mais elaborada nas minhas segunda e terceira lições.

2. SIGNIFICÂNCIA DAS NOVAS OBSERVAÇÕES

EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, ENTRARÁ AÍ SEMPRE UM ELEMENTO DE JULGAMENTO PESSOAL

O cientista tem incessantemente que tomar decisões no decorrer da investigação, tal como fazer uma nova medida com um instrumento, ou uma outra impressão sensorial qualquer que significa um facto novo, ou simplesmente considerar uma indicação nova de um facto antigo - ou ainda mesmo rejeitá-la como não tendo qualquer significância. Estas decisões são guiadas pelas premissas da ciência e, em partícular, pelas premissas correntes no seu tempo, mas, em última instância, entrará aí sempre um elemento de julgamento pessoal. Alguns exemplos podem ajudar a ilustrar essas relações. Há muito que foi aceite como uma lei da natureza que - à parte dos planetas conhecidos - que todas as estrelas retêm as posições entre si, de um dia para o outro. Na realidade, numm certo dia as estrelas nunca são observadas exatamente na mesma posição 160


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do dia anterior, mas geralmente isso aceita-se supondo tratar-se de um erro observacional. Por consequência, quando se observa um novo planeta, o seu movimento tende a ser explicado por erros de observação. Quando Neptuno foi descoberto em 1846 as posições anteriores deste planeta tinham sido estabelecidas em relação a uma estrela registada por Lalande, em Paris, durante Maio de 1795. Tendo comunicado isso ao observatório de Paris, um exame do manuscrito de Lalande mostrou que ele tinha feito duas observações do planeta, a 8 e 10 de Maio, e tendo-as considerado discordantes, rejeitou uma delas como erros provaveis, e marcou a outra como duvidosa(9). O planeta Urano, antes da sua descoberta por Sir William Herschel em 1781, tinha sido registado como uma estrela fixa, pelo menos dezassete vezes. Logo, a rotina de reafirmar as leis conhecidas da natureza torna-se a vala comum de muitas descobertas potenciais. As observações que se podem interpretar como uma transmutação dos elementos químicos ocorrem com frequência no laboratório. Mas as reivindicações realmente feitas por investigadores, como tendo conseguido uma transmutação, aparecem apenas quando a possibilidade de um processo desse tipo é considerado, por alguma razão, como plausível. Em tempos anteriores, quando os pressupostos da alquimia eram geralmente aceites pelos cientistas, tais afirmações eram naturalmente muito comuns. Newton consi161

(9) C. G. Darwin, Nature, vol. cxlv, p. 3240

A ROTINA DE REAFIRMAR AS LEIS CONHECIDAS DA NATUREZA TORNASE A VALA COMUM DE MUITAS DESCOBERTAS POTENCIAIS


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derava o facto da água, mesmo depois de repetidas destilações, deixar um pequeno resíduo sólido depois da evaporação como uma prova da transmutação espontânea de parte da água em terra. Sem dúvida que observações de um tipo semelhante continuaram ao longo de séculos, mas desde a aceitação, em finais do século dezoito, das ideias de Lavoisier sobre a natureza dos elementos, essas observações eram explicadas como meros efeitos de sujidade. Essa era a situação do caso no princípio do século vinte. Mas, subitamente, sob o estimulo da descoberta da transmutação radioativa por Rutherford e Soddy (1902-3), apareceram várias reivindicações erradas, mas feitas por observadores cuidadosos, que pretendiam ter conseguido a transmutação de elementos. A. T. Cameron (1907) e Sir William Ramsay (1908) anunciaram a transmutação do cobre em lítio como resultado da ação de partículas alfa. Em 1913 Collie e Paterson anunciavam a formação de hélio e de néon por descargas elétricas através do hidrogénio. Depois destas propostas terem sido refutadas, não apareceram mais até 1922, quando a descoberta de certas formas de transmutação artificial, feita três anos antes por Rutherford, encorajou uma nova vaga de revindicações semelhantes, com base em evidência errada. A transmutação do mercúrio em ouro sob o efeito de descargas elétricas foi reportada de forma independente por Miethe e Stammreich na Alemanha e por Nagaoka no Japão. 162


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Por sua vez Paneth e Peters anunciaram a transformação de hidrogénio em hélio sob a influência de um catalisador de platina. No entanto, todas estas revindicações tiveram por fim que ser abandonadas. A última foi em 1928. Um ano mais tarde apareceu a teoria da desintegração radioativa que mostrava com clareza que as tentativas atrás referidas para transformar elementos tinham sido fúteis. Desde aí, e até agora, não apareceriam novos anúncios deste tipo, embora a evidência de transformações do tipo adiantado por Newton, Ramsay, Paneth, etc. estar sempre disponível. Agora são ignoradas porque já não são consideradas como suficientemente plausíveis. Naturalmente, isto não quer dizer que os cientistas estejam sempre obrigados a explicar os desvios de observações relativamente aos pressupostos até aí aceites - o que tornaria o progresso científico impossível. Podem pôr de lado as discrepâncias como meras aberrações ou, pelo contrário, podem atribuir-lhe uma grande significância. O génio de Rutherford foi a este respeito bem caraterizado por quem o conhecia de perto(10). Podia pôr de lado uma série de relatórios, oriundos de todo o mundo, acerca de novos casos estranhos para os quais outros cientistas lhe chamavam a atenção, e responder a um caso em particular, levantando uma pista como a que levou Chadwick a descobrir o neutrão. A história bem conhecida de Bequerel descobrir a radioatividade e de Rontgen 163

AGORA SÃO IGNORADAS PORQUE JÁ NÃO SÃO CONSIDERADAS COMO SUFICIENTEMENTE PLAUSÍVEIS

(10) Comp. G. F. Stradling, Journ. of the Franklin Inst., vol. clxiv, pp. 57, 113, 177


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(d) [NT: Referência a Prosper-René Blondlot (1849-1930), presitigiado físico francês que em 1903 anunciou um novo tipo de radiação, os “raios N” (N vinha de Nancy, cidade onde vivia e ensinava). Muitos cientistas reportaram então a confirmação do fenómeno em muitos artigos publicados em jornais respeitaveis. Mas em 1904 o físico americano R. Wood mostrou que se tratava de uma ilusão, um resultado experimental subjetivo em que o cientistas foram enganados pelas suas próprias expectativas, em parte associadas a razões de patriotismo. Blondot morreu demente, situação muitas vezes atribuída ao escândalo dos raios N.]

PODE-SE RECONHECER QUE CERTAS OBSERVAÇÕES ESTABELECEM UMA CONTRADIÇÃO FORMAL COM A TEORIA , MAS MESMO ASSIM SÃO NO ENTRETANTO SIMPLESMENTE POSTAS DE LADO

descobrir os raios X seguindo os indícios de placas fotográficas acidentalmente veladas - e que outros observadores anteriores tinham ignorado - também ilustra este tipo de competência. Precisamos de apreciar a coragem e a visão demonstradas por esses descobridores, ainda por cima conhecendo os numerosos casos menos divulgados em que isso conduziu ao insucesso - por exemplo, as vidas perdidas na investigação dos espúrios “raios N” (1902-6) e outros fenómenos fictícios estimulados pelos próprios exemplos de Bequerel e de Rontgen(d). O problema de atribuir a significância certa a observações no contexto de um quadro teórico vai, por exemplo, muito para além da decisão de as considerar, ou não, como erro experimental. Pode-se reconhecer que certas observações estabelecem uma contradição formal com a teoria , mas mesmo assim são no entretanto simplesmente postas de lado. Os dois exemplos citados no texto - a contradição no sistema periódico e o conflito entre a teoria ondulatória e a teoria quântica da luz - são ambos casos em que o conflito foi posteriormente eliminado pela descoberta de uma abordagem mais fundamental capaz de explicar ambos os lados da evidência. Mas, obviamente, não se pode assumir isso em geral. Há teorias que foram muitas vezes abandonadas com base em evidência contraditória e que desapareceram sem deixar rasto. Não é preciso dar exemplos disso. Mas pode ter interesse recordar que há casos 164


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

de teorias que foram abandonadas com base em observações contraditórias e que foram mais tarde reabilitadas por novas descobertas. Os pesos atómicos aproximadamente inteiros dos elementos mais leves, como o hélio, carbono, nitrogénio, oxigénio, etc., baseados no hidrogénio, convenceram Prout que todos os elementos eram constituídos por hidrogénio. Mas a exploração consequente dos pesos atómicos, particularmente dos elementos mais pesados, convenceu depois a opinião científica que os desvios da integralidade eram demasiado fortes e numerosos para que fosse possível sustentar a hipótese de Prout. Esta decisão pode hoje em dia ser considerada como errada, pois a hipótese de Prout foi depois salva pela adição da teoria dos isótopos e dos efeitos de empacotamento. A eliminação das contradições formais com uma teoria pode não precisar de novas descobertas. Algumas teorias são construídas de tal maneira que as adições necessárias podem ser introduzidas automaticamente, como no caso do movimento dos planetas ser descrito por ciclos e epiciclos e qualquer desvio poder ser explicado através da adição de mais elementos do mesmo tipo. Isto é equivalente à adição de um novo termo a uma série matemática, pelo qual podem ser representadas certas observações. As teorias que são auto extensíveis são por vezes chamadas epicíclicas (por exemplo, na genética). Mas isso de forma alguma as qualifica 165

A ELIMINAÇÃO DAS CONTRADIÇÕES FORMAIS COM UMA TEORIA PODE NÃO PRECISAR DE NOVAS DESCOBERTAS


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como expressões de leis naturais. É verdade que não podem ser formalmente contraditadas por qualquer observação e portanto na realidade não podem prever coisa alguma. Mas vimos que isto é verdade para todas as proposições científicas. Todas as teorias são “epicíclicas” no sentido em que se podem sempre imaginar razões que podem explicar uma observação desviante. Fica sempre à responsabilidade do cientista decidir, à luz das premissas gerais da ciência e dos pressupostos particulares considerados plausíveis nesse tempo, qual o peso a atribuir a um certo conjunto de observações como apoio ou refutação de uma teoria com que parecem estar relacionadas. Em última instância, é um assunto para o seu julgamento pessoal.

3. CORRESPONDÊNCIA COM A OBSERVAÇÃO OCASIONALMENTE O MAIS RIGOROSO DOS CRITÉRIOS DE VERIFICAÇÃO EXPERIMENTAL PODE SER CUMPRIDO E AINDA ASSIM VIR EVENTUALMENTE A PROVAR-SE SER UM RESULTADO FICTÍCIO DE UMA COINCIDÊNCIA ESTRANHA

O exemplo seguinte pode ilustrar como ocasionalmente o mais rigoroso dos critérios de verificação experimental pode ser cumprido e ainda assim vir eventualmente a provar-se ser um resultado fictício de uma coincidência estranha. Uma das mais belas confirmações aparentes de uma teoria científica foi a medição, por Aston, do peso atómico do hidrogénio e do oxigénio num espectrógrafo de massa, 166


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o que resultou em H=1.00778 (assumindo 16.00000 para o oxigénio), quando comparado com o resultado H=1.00777 obtido por análises químicas(11). A correspondência parecia segura para além de qualquer dúvida razoável quando Bainbridge confirmou o valor de Aston (na medida em que este se baseava na razão He/H) ao encontrar He/ H=3,97128, quando comparado com o valor de Aston He/H=3.97126. Bainbridge usou um método espectroscópico, com pressupostos completamente diferentes dos de Aston. Este conjunto tripartido de correspondências precisas poderia parecer inexpugnável mas, no entanto, a sua precisão verificou-se ser muito acidental. Primeiro descobriu-se que o oxigénio continha uma mistura em pequenas proporções de isótopos mais pesados (O17 e O18). Considerando este facto, a evidência química conduzia agora a uma razão esperada O/H=1.00750 no espectrógrafo, e a precisão das duas observações anteriores (1.00777 e 1.00778) ficava destruída. A nova discrepância levou a assumir que o hidrogénio também poderia conter alguns isótopos mais pesados - e com base neste indício Urey procurou hidrogénio pesado e descobriu a sua presença em traços mínimos (1932). A descoberta de Urey foi na altura descrita como um triunfo da fé; o que continua a ser verdade, mesmo que a fé a que tão bravamente se entregou e que tão brilhantemente vindicou se tenha mostrado ser falsa. Três anos depois Aston 167

(11) F. W. Aston, Proc. Roy. Soc., A. cxv. 487 (1927)


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(12) Mark and Polanyi, Z. Phys., xviii. 75 (1923) (13) Comp. C. Burger, Physica, i. 214(1921): ii. 56 (1922)

reviu as suas medições iniciais e deu O/ H=1.0081. Um tal valor haveria de corresponder, depois da descoberta dos isótopos pesados do oxigénio, a uma razão de pesos atómicos de 1.0078, cuja explicação, por sua vez, não precisa da presença de hidrogénio pesado e, antes pelo contrário, sugere fortemente que essa mistura não estava presente. Aparte das coincidências acidentais que possam levar à confirmação aparente de uma falsa proposição em ciência, precisamos de recordar que a nossa confiança na reprodutibilidade sofre de uma fragilidade fundamental. É sempre possível imaginar que a reprodutibilidade depende da presença de um fator desconhecido e incontrolável que possa ocorrer em períodos de meses ou de anos e que pode variar de local para local. Seja o exemplo seguinte. Em 1922 eu observei, em conjunto com H. Mark, que quando se esticavam cristais de estanho, na forma de fios, aparecia à sua superfície um conjunto caraterístico de linhas de deslizamento(12). Produziram-se centenas de exemplares, alguns foram fotografados e as fotografias foram publicadas. C. Burger(13) publicou fotografias idênticas, tendo feito a mesma descoberta de forma totalmente independente. A investigação tinha decorrido ao longo de vários anos no meu laboratório, mas depois de 1923 nunca mais se observaram essas bandas de deslizamento; os cristais mostravam o mesmo mecanismo de 168


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deslizamento, mas a sua superfície permanecia completamente lisa. Nunca se encontrou uma explicação para esta alteração de comportamento. Recorda a misteriosa perda do cheiro da planta do almíscar - para dar um exemplo no domínio da biologia - que parece ter ocorrido há alguns anos atrás, de forma súbita em todo o planeta. Há um grande número de fenómenos, como as explosões de gases, a deformação e fratura de sólidos, o colapso elétrico dos dielétricos, a catálise superficial, a cristalização, a eletrodeposição, que dependem da ação inicial de pequenos traços ou imperfeições. Sabemos também que mesmo a mais pura das substâncias disponíveis nos nossos laboratórios contém traços, por exemplo de uma parte em mil milhões, de praticamente todo o elemento químico. Logo, qualquer fenómeno que dependa da presença de traços de uma certa substância, pode ser reprodutível durante um certo período de tempo e depois modificar-se subitamente - uma vez mais mantendo-se reprodutível por outro período de tempo - dependendo de variações periódicas dos elementos presentes nos vestígios. Casos destes são bem conhecidos como “epidemias” que podem afetar os processos industriais. Podem aparecer e desaparecer sem que a causa seja descoberta. R. G. R. Bacon, dos laboratórios de investigação da I.C.I. Dyestuffs Division (divisão de pigmentos e corantes da empresa I.C.I.), em Blackley, recentemente deu-me conta de 169


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alguns pormenores da sua experiência, que ilustram bem este ponto: Há cerca de dois anos estava a fazer várias medidas da velocidade de polimerização de um monómero do tipo vinil sobre nitrogénio numa solução aquosa e usando o sistema de ativação redutora persulfato / bissulfito como catalisador. Sob um conjunto padrão de condições experimentais observei uma velocidade rápida de polimerização, que não tive dificuldade em reproduzir sempre que tentei fazer a reação. Deixei esse trabalho, mas cerca de um ano depois o projeto foi reaberto por outra pessoa, que repetiu as minhas experiências, mas que observou uma velocidade de polimerização muito mais lenta. Colaboramos durante algum tempo para tentar encontrar as origens das discrepâncias. Descobrimos que: (a) Eu conseguia reproduzir os meus resultados anteriores, mesmo quando usava os reagentes do segundo químico; (b) Os meus resultados continuavam a ser reprodutíveis mesmo quando eu fazia a polimerização num equipamento novo, de projeto e dimensões semelhantes aos do segundo químico; (c) Quando trabalhávamos simulta170


CIÊNCIA, FÉ E SOCIEDADE

neamente, usando cada um soluções reagentes com a mesma origem, o segundo químico continuava a observar uma velocidade de polimerização muito mais lenta do que eu; (d) as diferenças não parecem ter sido devidas a diferenças no conteúdo de oxigénio, pois a reação era relativamente insensível ao oxigénio, e dava-se a uma velocidade semelhante quando a atmosfera de nitrogénio era substituída por ar; (e) O segundo químico observou a mesma velocidade elevada de polimerização que eu quando, em vez de usar tubos de borracha para o abastecimento de nitrogénio, passou a usar tubos de vidro; no meu próprio equipamento o abastecimento de nitrogénio fazia-se por um tubo metálico (de uma liga leve e flexível). Chegados a este ponto, o segundo químico deixou o departamento e nunca mais fizemos experiências para verificar se a causa da discrepância estava realmente no uso do tubo de borracha. Devo referir que tanto antes como depois dessas experiências consegui reproduzir a mesma velocidade elevada de polimerização, até mesmo quando o meu próprio equipamento continha uma sonda de nitrogénio 171


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em borracha, logo o efeito aparente da borracha não parecia ser tão geral como isso.

EXISTE SEMPRE UMA DÚVIDA CONCEBÍVEL PARA O PODER CONVINCENTE DA REPRODUTIBILIDADE

Experiências deste tipo recordam-nos que existe sempre uma dúvida concebível para o poder convincente da reprodutibilidade. Cabe ao cientista decidir, à luz do seu próprio julgamento, se considera essa dúvida como razoável em cada instância em particular.

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– Notas –



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NOTAS ORIGINAIS (*) Tradução inglesa de “Gestalwahrnehmung als Quelle Wissenschaftlicher Erkenntnis”, Zeit. f. exp. u. angew. Psychol., 1959, No. 6, 118-65, em General Systems, Vol. VII (1962), ed. L. von Bertalanffy e A. Rappaport [Ann Arbor, Mich.] (1) Agnes M. Clarke, Enc. Brit., 14ª ed., col VI, p. 400. E. A. Burt em The Metaphysical Foundations of Modern Science torna bem claro que, sob o ponto de vista empírico, nada havia a dizer a favor da visão coperniciana, à data em que foi proposta. Os empiristas contemporâneos se tivessem vivido no século dezasseis, teriam sido os primeiros a zombar da nova filosofia do universo”, diz ele na p. 25 (2) Uma discussão breve destas premissas é feita no apêndice 1. (3) Para mais discussão deste assunto, ver o apêndice 2. (4) Ver apêndice 3 (5) Telepathy, p. 36 (6) C. Singer, A Short History of Science, p. 201 (7) Citado por Sherwood Taylor, Science Past and Present, p. 126 (8) Citado por Sherwood Taylor, l. c., pp. 244-5 (9) C. G. Darwin, Nature, vol. cxlv, p. 3240) (10) Comp. G. F. Stradling, Journ. of the Franklin Inst., vol. clxiv, pp. 57, 113, 177 (11) F. W. Aston, Proc. Roy. Soc., A. cxv. 487 (1927) (12) Mark and Polanyi, Z. Phys., xviii. 75 (1923) (13) Comp. C. Burger, Physica, i. 214(1921): ii. 56 (1922)

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[NOTAS DO TRADUTOR] (a) Movimento religioso cujas convicções e práticas assumem que a doença é uma ilusão, um erro mental, que apenas pode ser combatida pela prática da oração. Não confundir com a cientologia moderna. O movimento foi muito popular no norte dos Estados Unidos em finais do século XIX e princípios do século XX. (b) Referência aos achados arqueológicos de Glozel, numa câmara subterrânea próxima de Vichy, em França, onde foram encontrados milhares de artefactos nos anos vinte do século passado, cuja datação tem sido polémica (neolítico, idade do bronze, idade medieval) e que foi objeto de acesos debates e de polémicas jurídicas, especialmente nos anos trinta e quarenta. Nessa altura alguns defenderam tratar-se de um embuste. (c) A propaganda nazi tentou desvalorizar Einstein, em 1939, argumentando tratar-se de um judeu de capacidades limitadas e que não havia nada de interessante na teoria da relatividade (e mesmo que houvesse, era um plágio). (d) Referência a Prosper-René Blondlot (1849-1930), presitigiado físico francês que em 1903 anunciou um novo tipo de radiação, os “raios N” (N vinha de Nancy, cidade onde vivia e ensinava). Muitos cientistas reportaram então a confirmação do fenómeno em muitos artigos publicados em jornais respeitaveis. Mas em 1904 o físico americano R. Wood mostrou que se tratava de uma ilusão, um resultado experimental subjetivo em que o cientistas foram enganados pelas suas próprias expectativas, em parte associadas a razões de patriotismo. Blondot morreu demente, situação muitas vezes atribuída ao escândalo dos raios N.

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