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Bolo-Rei

BOLO-REI

O nosso Bolo-Rei merece mais. Merece ser feito para além das massas pré-feitas, daquelas sempre fofas, de um amarelo que disfarça a gordura, de sabor sempre igual. Não me incomoda nada as novas versões de Bolo-Rei, o de chocolate, o de ovos, o escangalhado e por aí adiante. Incomoda-me sim aqueles que vejo de um brilho balofo. De uma decoração berrante, abusiva apenas porque é preciso disfarçar o interior. Enfiado em caixas de plástico com o açúcar em pó a descair e a retirar-lhe a graça toda de fazer parecer neve. Sim, o Bolo-Rei anda pelas ruas da amargura, assim como toda a nossa pastelaria. E nós lá vamos andando fazendo cara estranha, mas não recusando. Falando do preço daqui e d’acolá comparando o mimetismo de uma receita que tantos ataques tem sofrido. Mas, a verdade é que pouco há para discutir, poucas diferenças existem para uma indústria que oferece todas as soluções necessárias para um baixo custo de produção. Ano após ano, os catálogos vão engrossando pelas fórmulas atualizadas, pelas novidades que fazem lembrar o “tradicional” como se o “tradicional” estivesse à venda e ao desbarato. A verdade é que também já não temos recordação certa do sabor do Bolo-Rei. Nem reclamamos com o que nos vem ter à mão, talvez porque já não nos lembramos do sabor que tinha antes de a sua produção ter sido colonizada por uma indústria ambiciosa e sem princípios. Pois, falta a literacia alimentar de que tanto se fala nos últimos tempos. Falta educar o gosto. Mas, como se vê, a começar pelas cantinas das nossas escolas, talvez dos sítios onde se come pior neste país, o gosto e a qualidade do que comemos não é preocupação. Os mais novos nunca conheceram um Bolo-Rei digno do nome e os mais velhos tendem a esquecer.

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E no meio da correria dos dias, dos anos, dos Natais feitos de vermelho e branco e muitas luzes, perdeu-se a graça de fazer um dos bolos mais icónicos do calendário alimentar. Esqueceu-se a receita séria, demorada, trabalhada e cheia de ingredientes. Perdeu-se o ritual. Da qualidade dos ingredientes à forma como eles são envolvidos, tudo é uma graça que se faz com as mãos e com o espírito. E, depois de levedado e ir ao forno, é tempo de novo momento de conversa séria com um Bolo que se transforma com a decoração que se vai fazendo. Houve tempo em que ser pasteleiro era ter a alma nas mãos e olhar com ternura os ingredientes fazendo destes sabor sempre querido. Hoje, é saber ler o manual de instruções de uma receita feita em laboratório. Houve tempo em que ser pasteleiro era ganhar a perfeição pela repetição convicta de uma receita. Hoje, é usar os pós mágicos que fazem que os bolos saiam sempre iguais numa falsa perfeição. Não faço este ato de crítica de forma gratuita, apenas porque sim. Faço-o com a consciência de que é possível resgatar a nossa pastelaria a este embaraço. Faço-o porque acredito que mais do que nos queixarmos de que “antigamente é que era bom” podemos começar por escolher. Faz parte da cultura gastronómica saber provar, identificar o gosto, perceber a receita. Isso, ou então continuarmos a arregalar os olhos para os Bolos Reis que aparecem brilhantes e carregados de

cor.

Sugiro um teste simples e eficaz. Cortem uma fatia e apertem-na entre os dedos. Se ela ficar esborrachada, tal dirá muito sobre a qualidade da massa do exemplar em causa. Depois fechem os olhos e mastiguem absorvendo os sabores que encontram. Engulam e esperem 5 minutos. No final, qual foi o sabor que ficou na boca? É aí que está o busílis da questão. Aí e na digestão, pois que a qualidade da pastelaria vê-se no imediato da prova e na digestão. Alerta que o Bolo-Rei precisa de nós!

Boas provas e, já agora, Feliz Natal!

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