Marco Zero
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Editorial Fala-se, nos tempos atuais, nas várias formas de religiões que se cruzam em diferentes paises, comunidades e grupos sociais. No ocidente há muito deixou de ser uma situação bipolar, uma unidade tradicional, onde se era ou não cristão, onde, conforme a filosofia do momento, era-se ateu, materialista ou…cristão. Em nosso país, o catolicismo é a religião predominante, embora saibamos que uma coisa é o declarado nos censos, e outra é o que se professa na intimidade. Apesar das discussões pontuais ocorrendo no momento, há uma permanência e ampliação das expressões espirituais de homens e mulheres, que se coadunam com a abertura que nosso povo tem por estar sempre convivendo com as diferenças, e que somado a isso, traz o conceito, tão discutido hoje, não importa se mítico ou real, do brasileiro tolerante e cordial. Em nossa fronteira, temos cristãos e católicos, protestantes e anglicanos, mórmons e várias igrejas evangélicas, todos tendo a mesma origem, mas diferentes níveis de interpretação do cristianismo, muçulmanos e, também, várias filosofias, ordens e doutrinas sendo exercidas, des-
de a Maçonaria e Rosacruzes, os seguidores do Santo Daime, as religiões africanas em todos os seus segmentos, os espíritas kardecistas e os ateus. E para não nos deixar tão fora do processo de uma nova consciência da natureza, temos os que silenciosamente, mas não sem a mesma busca, exercem uma filosofia que trata de nos tirar do dualismo, do bem e do mal, para nos colocar no campo da inclusão com o todo, com a natureza da terra, dos animais, os que se inspiram nos ensinamentos do budismo, do taoísmo e da filosofia oriental. Todos estão em busca do sentido e dos questionamentos que regem a vida do homem, a pergunta de quem somos, de onde viemos e para onde vamos, respostas que só encontramos na fé, na ciência ou na descrença. Questões como a fé que professamos, em quê acreditamos, ou não, e para onde queremos ir e para onde nos destinamos. A morte e a finitude humanas norteiam as perguntas que os homens fazem desde os tempos primordiais. Nesta época de grandes transformações culturais, em que cada vez mais sabemos a história de nossa evolução, em que a com-
preensão do universo se encaminha para a constatação de um multiverso, em que a globalização permite aos individuos expressarem suas idéias e crenças desde e para qualquer lugar do planeta, é curioso que neste ponto extremo deste país/continente, nestas terras distantes, haja uma sociedade em que manifestações tão diferentes convivam em harmonia. Nesta edição e nas edições futuras, pinçaremos algumas opiniões e depoimentos para registrar o que pensam sobre essas questões alguns dos que aqui vivem, ou que aqui viveram. Padre Mario Nigro-Izquierdo e o escritor Janer Cristaldo escrevem, respectivamente, sobre a fé e a ausência dela. Vida e morte ocupam os escritos do nosso colaborador Sérgio Napp e o tempo, sua passagem e permanência, é o fio condutor dos poemas de Thomaz Albornoz Neves. Marco Zero oferece também o início da saga em quadrinhos do Seu Catilino, com desenhos do Beto e argumento de Jotaele e a seção permanente Cá entre nós, com as colaborações dos acadêmicos santanenses
COLABORADORES Mario Nigro-Izquierdo, sacerdote católico da paróquia Santo Domingo, em Rivera. Janer Cristaldo é santanense, jornalista, escritor e tradutor. Reside em São Paulo. Sérgio Napp escritor e compositor gaúcho, mora em Porto Alegre. EDITORES: Celina Hamilton Albornoz, Thomaz Guilherme Albornoz Neves e José Artur Lesina Montanari PROJETO GRÁFICO: Marco Zero CAPA E CONTRACAPA: Jotaele Colabore, opine, participe: marcozerocultural@gmail.com
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Referências e memória:
Cá entre nós
A cidade de Santana do Livramento tem tradição em jornalismo. Desde sua formação política, a imprensa escrita é uma das mais presentes, cumprindo o papel que parece ser o seu: o de representar o pensamento vigente com nuances e ênfase, de acordo com o momento histórico no qual está inserida. Espelho e consciência de intelectuais, voz dos cidadãos, não é por acaso que Santana é tida como terra de jornalistas, muitos deles com significativo destaque em vários pontos do país e no exterior. Esta prática vem do século XIX, atravessando vários momentos até chegar aos nossos dias, onde Marco Zero é o caçula e, quiçá, um dos poucos em seu gênero nestas paragens: o jornalismo cultural. Antes dele, - sem querer privilegiar, mas porque estamos com toda a coleção em mãos - destacamos o Álbum, mais uma revista mundana do que propriamente um caderno de cultura, criado por Lycurgo de A. Cruxen em 1910. (in biblioteca Cecília Meireles daAcademia Santanense de Letras) Trata-se de um belo registro da mentalidade e costumes de cem anos atrás, oferecendo para os autores das novas escolas historiográficas, material para ser escrita a crônica da vida privada local. Há também um rico acervo no Museu Folha Popular do começo de nossa imprensa escrita como O Maragato, que deveria receber maior apoioda comunidadee ocuidado quetodo o patrimônio importantedeumalocalidade que se quer viva deve obter. Nos anos oitenta, destacamos no jornalAPlatéia, dirigido então pelo jornalista Jorge Escosteguy, o Caderno II, editado pela jornalista paulista Lucila Camargo e depois por CelinaHamiltonAlbornoz. E sem querer deixar de nomear, em uma homenagem de reconhecimento, O Portal, boletim cultural conforme o denomina sua co-fundadora Theodolina da Silva Ucha. Durante cinco anos a carismática Lolinha e Wilma Menezes o produziram, com características de caderno feito por mulheres beletristas, que ainda estão no eco da poesia singela e delicada, da qual transcrevemos os versos iniciais de Brasil Sul: Verdes montanhas todas rendilhadas por flores, plantas as quais pra lá não há, araucárias, só em ti sobeja dinâmico e ordeiro Paraná!
Theodolina da Silva Ucha (Lolinha)
Nos anos noventa foi a vez da recém criada Academia Santanense de Letras ter o seu jornal, Arcádia, surgido para cumprir com a vocação literária de seus membros. Findo esse período, prossegue com o Cá entre nós, espaço conquistado e idealizado com os editores deste Caderno, para dar continuidade e inovar na área do fazer cultural.
A esperança "Car l'espoir, au contraire de se qu'on croit, équivaut à la résignation. Et vivre c'est ne pás se resigner." (Noces, A. Camus.)
Leonor pensava no sentido da esperança sentada à beira da lareira, no declínio da existência imposto pelos anos. - O que esperar dos dias que ainda teria pela frente? Sentia a lentidão das horas, as limitações físicas advindas da idade.Afinal, do alto de seus 84 anos não podia se queixar da vida, do tempo já ido, dos contratempos, descompassos e surpresas. Leonor realizara alguns sonhos de menina. Casou, teve filhos, netos. Ao tornar-se viúva soube preencher a ausência do marido com tarefas comunitárias, cursinhos de artesanato e convivência com amigos. Aposentada do magistério desde os 65 anos, vivia o dia a dia entre atribuições da casa e viagens de lazer. -Mas e agora? Lúcida e só, aprendera a não esperar. Não olhava para trás, recusava-se a viver de lembranças, apenas. Queria preencher seus momentos, até o último suspiro. Detestava pensar que era mortal. De emoções, necessitava sempre. Um dia após o outro não lhe bastava. Não podia se furtar do desejo de usufruir de mais manhãs ensolaradas, mais noites tépidas de outono. Com as coisas terrenas tinha o compromisso que lhe movia para o sentido de viver.Ao longo dos anos descobrira o cheiro da terra, aprendera que o cotidiano podia ser simples, como apreciar as flores do jardim e a natureza toda. O sonho e a esperança se mesclavam para Leonor, no ímpeto permanente de fugir da dor, de olhar pra frente sem pensar que a cada passo, que a cada segundo, suas chances terráqueas encolhiam. Aquecida pelas brasas da lareira, no aconchego de sua sala de estar, sabiase consciente da própria finitude. - Qual seria o significado da esperança, senão a extensão dos atos repetitivos do cotidiano? - Que importância teria a mesma agora? Leonor não alimentava mais sonhos eróticos ou libidinosos, quando à época em que ficou viúva. Soube administrar os próprios desejos e renúncias. Vivia com interesses que a idade podia lhe proporcionar. Mas ensinaram-lhe a rezar, a ser paciente e tolerante. Não podia se rebelar. Pensava, apenas, que a esperança, para ela, não significava mais nada. Tocou a campainha, do lado da poltrona, pediu os medicamentos para o problema circulatório que sofria e afastava qualquer possibilidade de crença em alimentar ilusões em relação à própria vida. Levantando a cabeça, olhou firme para Ana, sua acompanhante e perguntou: - Afinal, o que significa a esperança? Maria Regina do Prado Alves Cadeira nº14
A flor e o espinho Cravo era sobrenome. Roberto da Silva Cravo. Quando a turma ficou sabendo, o Betão virou Cravo. O apelido trocado pelo sobrenome. Sempre tinha um engraçadinho, aí, Betão, é uma no cravo e outra na ferradura, heim? E a alcunha foi pegando: Cravo. O Cravo, atrás de uma muralha de garrafas de cerveja, cantava Nelson Cavaquinho. Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho E espinho não machuca a flor. com voz de tenor. Os convivas aplaudiam, fazia coro e mandavam o garçom baixar mais uma. O Cravo inflava o peito e mandava Eu só errei quando juntei minha alma à tua O sol não pode viver perto da lua. E a lua ia embora se escondendo. E, como o sol não pode viver perto dela, mostrava a cara quando o Cravo voltava pro barraco, tropeçando nas próprias pernas. A Rosinha já tinha dado o ultimato. Os amigos de bebedeira ou ela. Os amigos ganhavam sempre. E ela, vencida, ia ficando. Tratava da bebedeira de seu homem com carinho e coca-cola. Perdoava. Ele jurava amor eterno. Pegava a viola e soltava o vozeirão num pedido de Lupicínio Rodrigues Volta, vem viver outra vez a meu lado
Não consigo dormir sem teu braço pois meu corpo está acostumado e ela tinha vontade de responder também como Lupi Nunca, nem que o mundo caia sobre mim mas sempre voltava atrás. Até a manhã seguinte, quando ele chegava em casa caindo pelas tabelas. Aí ela prometia ir embora. Chorava. E ele pegava na viola. O Cravo chegou no barraco e não encontrou Rosinha.o sol já se espreguiçava lá em cima,sacudindo o sono dos olhos. A casa da mãe. Só podia estar lá. Em todas as discussões, rosinha ameaçava ir pra casa da mãe. Saiu batendo a porta e cantarolando com a voz embriagada as razões de Paulo Vanzolini Um homem de moral Não fica no chão. Entrou chutando a porta e cachorro na casa da sogra. Rosinha tentou argumentar. Fugiu pro quintal. Nada adiantou. O Cravo, enlouquecido, puxou-a pelos braços. Dois safanões, uns quatro tabefes e o serviço estava feito. A volta por cima. Rosinha caiu de bruços,sangrando a face e a alma. Despetalada. Ela nunca havia imaginado que espinho pudesse machucar a flor. Marcelo D. D'Ávila Cadeira nº 23
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I Penso com imagens A paisagem é mais real que o pensamento Já não verei no escuro Vivo em paz com o que não compreendo II Se falo, outra voz me dubla Se calo, sou só eu quem cala
O ar que respiro traz o céu através da ventania Basta a melodia por entendimento
Dar-se a ver é desconhecer-se no olhar do outro O presente, com enfocá-lo, se faz remoto em um cenário Mas tudo já sabias desde o início O esquecer que sabias Justamente O início III Depois da tormenta, um homem só Seu pensamento mais solitário O que vê o afasta do que pensa Sente apenas, vê sem pensamento O campo constela a solidão do dia com a via-láctea
IV Já não há países de fronteira Nem estrangeiros de cada lado Aérea, a linha divisória é levada à deriva pelo idioma Mesmo o pensamento é igual em qualquer língua
V Madrugada, cavalgo ao trote O sol nascendo na gota azul aquece minhas costas Sinto a vida do cavalo pomo que me envolve calor de tato antes do toque Assim também estamos na órbita do pássaro que passa sobre nós imóveis VI Um poema sem tempo que manifeste o seu tempo Não quem o escreve mas homens iguais a ele De raro lugar comum Um poema homem na multidão
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Ecôo um cardume distante VIII Uvas verdes sobre a rede A palmeira real apara a quieta queda do céu Adormeço no silêncio O céu do sonho estampado pela sombra da parreira
IX Salgo o peixe, faço a brasa Respiro o ar da tua sombra Entardece e cada carícia é um transe na paisagem A memória da pele não dura mais que o calor do sol na areia Céu
floco que dissolve
X Um estado de amor espiritual por assim dizer, fora do tempo que nos faz tão solitários quanto juntos pelo mundo desconhecido Juntos de certa forma vaga e sensorial Vem de quando nos encontramos Ser contigo o mesmo ar respirado e de nós nasceu uma criança
XI A lenha é seca O fogo aquece a casa Meu cão desperta Põe a pata no meu joelho Meu cão canhoto
XII Não pensa mais em si meu pensamento Um signo, arabesco de um gesto o risco no muro será toda a história
Thomaz Albornoz Neves
Sim, ainda hoje, com tudo o que esqueci o poema deve ser vivido Eu busco a poesia nos fatos
La Rosada, fronteira com o Uruguai 5 de maio de 2010
I N F O R M E DA F R O N T E I R A S U L
VII Tudo o que digo está sendo dito O que penso, pensado
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El lugar dónde se nace y se construye la vida determina, sin lugar a dudas, algunas opciones fundamentales de la vida. La manera de vivir, los principio éticos, políticos, los paradigmas culturales a los que nos suscribimos, los gustos y disgustos, los valores y los compromisos. Nada de esto es novedad. Cada uno lo puede comprobar en un solo día vivido con menos prisa de lo que es frecuente. Llamado a la vida en una familia creyente, en el occidente del mundo, bautizado y educado en un centro religioso, fueron determinantes para las opciones de la vida adulta. Así es que, convertirme en un hombre creyente, de fe, no fueen principio- ni libre, ni a sabiendas, ni voluntario: fue. Incuestionable, por cierto. Cuando "los otros" pidieron razones de mi fe, mi palabra y mis manos estaban vacías, no las había. La pregunta fue inevitable: ¿por qué? La búsqueda de mi respuesta para una cuestión elemental dio comienzo y los libros fueron de gran ayuda, buenos amigos y compañeros. Así como las personas letradas en temas de fe, filosofía y teología. No tanto los contemporáneos a quienes veía también en búsqueda de esa respuesta elemental. Algunos incluso hasta perdiendo todo sentido por encontrar esa respuesta que les diera sentido. La ayuda vino desde lo profundo de la historia, de vidas bien vividas, coherentes, sin tibieza, de compromiso y martirio; vidas y escritos de maestros de fe. Que por supuesto lo siguen siendo. En particular la vida de un galileo: Jesús, llamado "el Cristo". ¿Qué tenía de extraordinario este hombre, que todos hablaban de él y se mataban, literalmente, por él? Cuando supe sus palabras y sus obras, sus silencios, la manera de mirar, de hablar… me fui dando cuenta de que buscar una respuesta al ¿por qué?, estaba siendo una angustiosa pérdida de tiempo y esfuerzo. Al conocerlo, conocí que la vida cobra sentido cuando se busca su sentido mismo. Así es que, cuando comencé a preguntarme ¿para qué?, ya todo fue teniendo respuestas. Y no del tipo etéreo o del tipo académico, aunque también necesarias. Los
para qué comenzaron a tener rostros, nombres, historias, tiempo y espacio, sueños y esperanzas. Se hicieron concretos, tangibles, sufribles, queribles. Entonces, las palabras de Jesús cobraron pleno sentido: su comunidad (la iglesia) que perdura y goza de muy buena salud, y no por meros deseos humanos, sino porque es suya y él la cuida; la bondad que existe en cada ser humano (salido de las manos de Dios); la capacidad de perdón, de ser solidario, de ver al "otro" como alguien que se me parece… que el "mensaje oculto" que había en este Galileo, era simple y al alcance de cualquiera: hacer el bien. Y ese era el camino de perfección. La opción fundamental se volvió simple y sencilla: vivir en Cristo. Que no es otra cosa que sacar de las tinieblas a la luz, la cosecha del reinado de Dios, indicar los buenos frutos de cada vida creada y mantener una buena amistad con quien sabemos lo creó todo. En este trato de amistad he descubierto algunas respuestas: que desde la primera "navidad" no hay nada humano ajeno a Dios, que no hay persona humana que no sea portador de la bondad de Dios, que la injusta distribución de las cosas creadas es por un mal uso de nuestra libertad, que tenemos poca confianza en nosotros mismos porque desconocemos nuestro origen, que nos cuesta ser hijos de semejante Padre, que no nos tratamos con dignidad, que de poco vale mirar el cielo si no miro el cielo que hay en los ojos de mi hermano… entre otras cosas. Así que, amigo mío, pasado los años, aquello que fue incuestionable al comienzo de la vida, se ha vuelto una opción libre, voluntaria y sabida, que quiero vivir en la misma comunidad de creyentes que quiso Jesús. Ya sé que es aburrida, rutinaria, disciplinada, y vieja (seguro que de tanto dar a luz) pero es la que quiso el Señor. Y espero que cuando esté maduro para la cosecha, este Señor me permita morir como he vivido siempre: hijo de la Iglesia.
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Mario Nigro-Izquierdo
“...de poco vale mirar el cielo si no miro el cielo que hay en los ojos de mi hermano…”
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Leitor me pergunta como me tornei ateu. Não saberia dizer como as pessoas tornam-se atéias. O máximo que posso falar é de mim mesmo. Para começar, é preciso entender que todos nascemos ateus. Ninguém nasce crendo em deus ou deuses. O deus é introduzido no cérebro da criança através da família, da escola, da igreja e mesmo do Estado. Então, o problema começa mal formulado. Não é que alguém se torne ateu. Ele apenas volta à condição normal de ateu, na qual todos nascemos. Nasci num universo mais ou menos pagão onde, se havia uma vaga idéia de um deus que criara aquilo tudo, não havia culto algum a esse deus. Muito menos se acreditava em conversa de padre. Nasci no campo e nunca celebrei o Natal ou Páscoa em minha infância. Havia, isto sim, um culto ao fogo, as fogueiras juninas de São Pedro, São João e Santo Antonio. Suponho que os camponeses daqueles pagos não tinham muita idéia de quem eram estes senhores. Mas contemplar uma fogueira fazia bem à alma daquelas gentes. Fui seqüestrado para as hostes católicas lá pelos seis ou sete anos, por uma catequista, mulher de um fazendeiro do Uruguai, Doña Chichi. Ela percorria a Linha Divisória numa camionete com caçamba e ia arrebanhando a piazada dos dois lados da fronteira. Para nós, a suprema aventura não era ouvir o catecismo, mas "andar de auto". Ao final das aulas, Doña Chichi nos induzia a rezar al Todo Poderoso, em um portunhol precário, para que traiga lluvia a nuestras tierras, para que se possa escoar la safra de la lana. Eu, mais pelo prazer de andar de camionete do que por outra coisa, fazia coro às preces da catequista. Aos dez anos, conheci cidade. Fui para Dom Pedrito, onde fiz o ginásio, dirigido pelos Padres Oblatos, ordem oriunda da Alemanha. Foram excelentes mestres de línguas e matemática e souberam reunir uma boa equipe de professores laicos, para ensino de história, geografia, biologia.Aos Oblatos do Colégio Patrocínio, minha eterna gratidão pela educação que me propiciaram, educação que hoje não encontramos nem nas universidades. O problema era a religião. A disciplina era obrigatória e a doutrinação intensa. Fui introduzido em uma doutrina baseada no terror e na reverência a um deus mudo, com especial insistência aos sexto e nono mandamentos. Pecado, para os Oblatos, eram os pecados ditos da carne. Os demais eram irrelevantes. Para comungar, precisávamos estar em estado de graça. Isto é, absolvido de todos os pecados. As confissões eram em geral aos sábados, para que no domingo a pobre alminha estivesse limpa de toda mácula. Então vinha o interrogatório constrangedor: - Pecou contra a carne, filho? Quantas vezes? Como e onde? Hoje, não tenho dúvidas de que os padres se masturbavam, do outro lado da tela do confessionário, ouvindo aqueles relatos. Eles foram os precursores do sexo por telefone. Só que sem telefone. Ocorre que, entre a confissão de sábado e a comunhão de domingo, havia a longa noite de sábado. No domingo pela manhã, estávamos de novo impuros, cheios de culpa e apavorados com as chamas do inferno. Mas sempre havia um padre de plantão para absolver os reincidentes. O Patrocínio era exclusivamente masculino, quando comecei meus estudos. As aulas eram um festival desbragado de masturbação. Os padres não ignoravam aquilo, impossível não sentir o cheiro de esperma no ar. Eu, ainda impúbere, olhava para aquela azáfama toda, sem entender muito bem o que estava acontecendo. Tenho ainda viva na memória uma cena digna do Gênesis. Um de meus colegas, que por ironia se chamava Caim, se excedeu no bom folguedo e o padre Lourenço se sentiu obrigado a tomar uma atitude. - Caim, levante-se! Desajeitado, Caim se levantou, tentando fechar a braguilha. - Que foi, professor? Com um dedo acusador, suponho que aquele mesmo gesto com que o anjo do Senhor expulsou Adão e Eva
do paraíso, mostrou a porta da sala: - Pegue seus livros e vá para casa. A orgia só terminou quando Leonel Brizola encampou o colégio. Que se tornou então misto. Com a presença feminina, terminou o festival. Nessa altura, eu já chegara à puberdade. Não conseguia entender aquelas proibições. Estava cercado de meninas e queria algo mais delas do que um simples beijo. E lá vinham os argumentos de pecado contra a castidade. Na classificação da Igreja Católica, o sexto mandamento. Peguei uma Bíblia e fui pesquisar o Êxodo, onde estão os mandamentos. Li o livro de ponta a ponta, não encontrei nem sombra da palavrinha castidade. De Bíblia em punho, chamei uma coleguinha de origem basca, a Iara Irigaray, que eu paquerava, para lermos junto a palavra divina. Lemos tudo referente aos mandamentos.
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- Encontraste alguma menção à castidade? - perguntei. - Não. - Então, vamos lá? - Ai, que horror, Janer, pára com essas bobagens. Com o tempo, aprendi que não é com lógica que se leva uma mulher para a cama. Tentando uma primeira resposta ao leitor, eu diria que a primeira coisa a afastarme do tal de Deus foi uma sexualidade imperiosa, exigente e implacável. A carne não era fraca, como diziam os padres. Era forte. Tão forte que não conseguíamos dominá-la. Se sexo era bom e não fazia mal a ninguém, por que privar-me de sexo? Meu ateísmo começou por aí. Obviamente, a negação de um deus não passa apenas por uma questão de sexualidade exacerbada. Um pou-
Marco Zero co mais adiante, li a Bíblia de ponta a ponta. Aquele deus era inviável. Cruel, exterminador, genocida, Jeová estava mais para facínora do que para divindade. Além do mais, ia tomando diferentes formas, conforme a data dos livros. Só podia ser obra do intelecto humano, criação de sacerdotes sedentos de poder. Não há crença que sobreviva a uma leitura atenta da Bíblia. Não por acaso, houve época em que a Igreja proibiu sua leitura para menores de 30 anos. Não por acaso, mandou Fray Luís de Leon para as masmorras, por ter ousado traduzir o mais belo dos livros do Livro, o Cântico dos Cânticos, ao espanhol. Para desgraça de meus catequistas, muito cedo comecei a ler a Bíblia. Como não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia, minhas dúvidas começaram a inquietar os oblatos. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho. Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, o padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?" Era um argumento pesado para um piá de uns quinze anos. Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Até podia ser que eu não tivesse autoridade para contestar os padres de Roma. Mas estava apoiado na razão, na boa lógica. Bem sabia a Igreja o que fazia, ao proibir a leitura do Livro a menores de trinta anos. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi minha alma e procurei, nos anos seguintes, livrar-me da craca ética que vinha grudada ao cadáver do deus cristão. Esta é, a meu ver, a grande função da leitura, libertar o homem de mitos e superstições. Em suma, retornei a meu ateísmo primevo lendo a Bíblia. Não sei qual foi o caminho de outros ateus. Só posso dizer que passa pela leitura. Sem leitura - apesar do que pensa o Lula - não há salvação. Não acredito que religião traga paz. Aliás, o Cristo dizia: "não vim trazer paz, mas espada". Quanto a prosperidade, só para os sacerdotes. Os sacerdotes conseguem fortunas com blá-blá-blá. O crente, só a consegue se trabalhar duro. Se depois a atribui a Deus, é um ingênuo sem cura. É como aqueles doentes graves, que se submetem à medicina de ponta e rezam ao mesmo tempo. Se são curados, atribuem a cura ao tal de deus. Ano passado, fui acometido de um carcinoma de palato. Matei-o. Nunca falta em meu entorno quem agradeça a Deus por minha cura. Considero isto um insulto à medicina e aos excelentes médicos que me trataram. Não foi deus nenhum que me salvou e sim a competência da ciência e tecnologia do Sírio-Libanês. Posso não acreditar em deus, cristo, maria, santos, exus, guias do candomblé, forças da natureza, silfos, gnomos, salamandras, ondinas. Mas acredito em muitas outras coisas. Apesar dos pesares, acredito no ser humano. Para cada Hitler ou Stalin, sempre surge um Mozart ou Da Vinci. Para cada Paulo Coelho ou Bruna Surfistinha, sempre há um Swift ou Cervantes. Acredito na amizade, no trabalho, no engenho humano, na construção das sociedades. Acredito nas pessoas que me cercam e inclusive em mim mesmo. Acredito no bom vinho e no uísque, no camembert e no foie gras. Acredito que Paris e Madri, entre outras cidades, existem. Acredito nos amigos e amigas que tive. Estas são minhas crenças básicas. De mais não preciso. Ateu, não prego o ateísmo. Fé faz bem aos pobres de espírito. Por que privá-los então de uma crença que lhes é benéfica? Ateísmo é para quem não tem medo da morte nem acredita em potocas do Além. Estes são raros. Janer Cristaldo
FESTA Pedes que fale da vida como se a vida fosse algo de simples. Não é. Nem sempre a vida nos dá resposta. É caminho que vai e volta ou caminho sem volta. Caminho de chão batido. Caminho longo ou curto. Caminho de asperezas ou de alegrias. Na vida, nem sempre o nome de quem lembramos é o nome de quem se quer. É quando deixamos os sonhos para encontrar a realidade. É noite em que, nem sempre, a estrela brilha quando a espera é tanta e tão ardente. Há um cheiro que brota das profundezas do mar. Um cheiro de açucenas. Um cheiro que não se dá. A vida vem de longe. De um mundo que é encantado. A vida traz na mala um bando de ilusões. E, em sua alma, um quê de pecado. Quando, no meio das trevas, há uma alegria feroz, é a vida que, com seus mistérios, se debruça sobre nós. Pode ser o amor chegando com suas teias de espanto. Podem ser sereias trazendo a morte em seus cantos. A vida é mistério é o que te posso contar. Mesmo que a vida não se decifre, nem se desvende diante de nós. Mesmo que a noite se faça quando aguardamos o dia. Mesmo que a palavra não dita continue impenetrável. Mesmo que os lábios não se abram e a flor do beijo não se faça, continuamos bebendo da festa do riso, da febre da paixão. O adeus, quando é preciso, é punhal que nos atravessa a alma. Mesmo que este punhal afaste de nós o cálice da esperança, a vida, quando de nós se acerca é festa. Com a blusa cor-de-rosa e sapatos de veludo, trazendo nos dedos algas marinhas e risos de flor no vestido, é festa. Com turbante de miçangas, água de cheiro nos olhos, cantares de lua cheia e boca de quiromante, é festa. Vindo de porta-estandarte ou madrinha, cabelos em serenata, braços de amorperfeito, ginga de luz e poente, é festa. Doce de coco e melado, pele de seda e amoras, luminosamente bela, primaverando alegrias, é festa. Quando ela chega, a vida, berimbaus cantam na praça, apitos comandam palmas, repeniques dançam versos e os tamborins exclamam notas. O coração dá pinotes, o dia dá cambalhotas e o mundo parece uma festa que não acaba jamais. Que posso mais te dizer? Que a vida é inconstante? Que ela é surpreendente? Que ela nos desaponta? Que ela nos enfeitiça? Que ela nos desacalma? Que ela nos emociona? Que ela nos desconsola? Que ela nos alimenta? E, no entanto, ninguém nos maravilha mais que a vida. Ninguém nos oferece mais. Ninguém nos acalenta mais. A vida é única. Pois cada um de nós e todos somos a vida.
A MORTE Morrer de repente é o prazer do homem. Uma que outra palavra, talvez um gesto brusco, e mais nada. Nenhum ai ou esgar. Não é bem isto o que a morte espera. O que a morte deseja é algo que a agrade, algo que lhe dê satisfação. Algo que a encha de prazer. Para que o prazer se instale, é necessário o ritual. A morte precisa acompanhar passo a passo os preparativos que levam o homem ao seu derradeiro suspiro. Precisa do sofrimento. Da aflição. Sem eles a boca da morte não saliva. A dor inicial, a primeira dúvida, a noite não dormida, as olheiras, a garganta seca. A angústia ao receber o médico. O abrir dos botões. A ausência das palavras. A ausculta. As perguntas. O olhar enigmático do médico ao examinar, uma a uma, as radiografias ou o eletro ou os resultados que o papel apresenta. Neste momento, no exato deste momento, a morte ingressa no quarto, se põe à cabeceira do homem e o olha com um misto de carinho e volúpia. Um frio lhe percorre a espinha. O coração acelera. A respiração descompassa. O prazer da morte se instala. Tudo o que se segue só o aumenta, mais ou menos. A morte não dorme. Acompanha, segundo a segundo, as aflições do homem e cada um de seus gestos. No instante em que os enfermeiros entram no quarto e o colocam na maca. Na iminente despedida dos entes amados. Nos corredores assépticos. Ao ver as carnes, os músculos sendo expostos. As veias sendo rasgadas pelo bisturi. A infecção. A improbabilidade. A tudo a morte assiste com o júbilo de quem antevê péssimos resultados. E com eles se alegra. Se acaso o homem retorna ao quarto e o conectam a dezenas de aparelhos e aos tubos; se a sua comunicação, com os que o cercam, não se realiza; se ele geme, se debate e se desespera; aí, sim, na alma da morte, se dá um paroxismo de tal grandeza que ela, quase, atinge o êxtase: o homem está prestes a se entregar aos seus abraços. Ao homem, com certeza, cabe lutar, feito a caça ao caçador, sabendo que o inimigo o espreita sorrateiro e confiante. A morte possui toda a paciência do mundo e a saboreia com lascívia. O homem luta, a morte o aguarda. O homem se entope de remédios, realiza exames cotidianos, a morte sorri. O homem procura as últimas informações científicas, os avanços da medicina, a morte se diverte. Com a paciência, que só ela possui, o espreita enquanto apara as unhas e corrige as cutículas. Aos pés da cama, a morte o observa em seu estertor: o rosto magro, a pele enrugada, as mãos trêmulas, os pulmões mantidos pelo oxigênio. Aproximase da cabeceira e, ao sentir o gélido toque das mãos da morte sobre a testa, o homem adivinha. Um vagido escapa de seus lábios. A tentativa inútil de um gesto se delineia. Um soluço move-lhe o corpo. Lágrimas escorrem. O prazer da morte não é a morte em si mesma, mas ver o homem, antes poderoso e senhor de si, extinguir-se lentamente feito um verme. Trecho do livro, em preparação, O caçador e a morte. Sérgio Napp