Largo do Arouche - A experiência das paisagens no espaço da cidade

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LARGO DO AROUCHE

a experiÊncia das paisagens no espaço da cidade projeto de multi-funções no Largo do Arouche

FERNANDA SERRA TAVARES ORIENTADOR: LUIZ B. C. TELLES FAU-MACKENZIE - 2012





“...Above all do not loose your desire to walk. Everyday I walk myself into a state of well-being and walk away from every illness. I have walked myself into my best thoughts, and I know of no thought so burdensome that one cannot walk away from it.” 1 - Søren Kierkegaard, Letter to Jette, 1847

1- Em tradução livre: “Acima de tudo, não perca o seu desejo de caminhar. Todos os dias eu caminho em um estado de bem-estar e me afasto de todas as enfermidades; eu tenho caminhado através dos meus melhores pensamentos, e não sei de pensamento tão pesado que alguém não consiga se afastar dele.” Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês, em Carta para Jette, 1847


Trabalho final de graduação

FAU-MACKENZIE 2012

Fernanda Serra Tavares Orientador: Luiz Benedito Castro Telles

Banca examinadora: Luiz Benedito Castro Telles Professor orientador ________________________________________________ Lizete Maria Rubano Professora convidada interna ________________________________________________ Denise Xavier de Mendonça Professora convidada externa _____________________________________________


agradecimentos Sempre agradeço pela família que tenho. Meus pais são meus fãs oficiais, e sem este apoio e incentivo eu não iria a lugar algum. Mesmo longe deles desde que entrei na Faculdade, posso dizer que esta distância somente nos aproximou. Fizeram falta em muitos momentos, mas não deixaram de cumprir sua tarefa o melhor possível. Por isso, sem eles eu não estaria aqui e por esse mesmo motivo meu agradecimento em primeiro lugar sempre será à eles. Gostaria de agradecer profundamente também ao meu orientador, Luiz, primeiro pela amizade e carinho que criamos nesse ano e que nunca irá se apagar. Segundo, por me dar coragem e incentivo, assim como meus pais, para reviver e desenvolver ainda mais essa paixão antiga: a de escrever. Pareceu até fácil passar por isso ao seu lado, os textos surgiam quase que naturalmente pela alegria e vontade de simplesmente escrever, de tentar fazer poesia e perceber que sempre eu teria um amigo para me apoiar nesta tarefa. Obrigada, Luiz. Tenho por você um carinho muito especial... E um agradecimento final, não menos importante, a todos aqueles que me apoiaram direta ou indiretamente neste trabalho de conclusão de curso: aos meus amigos e amigas, namorado, irmãs, colegas de sala e de bar e até desconhecidos, enfim, a todos aqueles que fizeram despertar em mim a vontade de escrever, pura e simplesmente. Com muita certeza, este estudo está carregado de um pouquinho de cada um de vocês, e devo a todos um muito obrigada: eu consegui escrever e expressar tudo aquilo que realmente quis desde o começo. Fernanda Serra Tavares


Capa: montagem com fotos do Largo do Arouche, Autora, arquivo pessoal, 2012. Página de rosto: foto do diretor Wim Wenders no set de filmagem de “Asas do Desejo”, Berlim, 1986. Fonte: www.criterion.com Contra-capa: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2012


SUMÁR I O Pág.:

título:

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resumo

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AS FACES DA CIDADE CONTEMPORÂNEA

1.

INTRODUÇÃO

1.1. O CONCEITO DE MODERNIDADE: MUDA-SE A

SOCIEDADE, MUDAM-SE AS CIDADES?

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1.2.

NOVOS PRINCÍPIOS URBANOS: PARA ONDE OLHAR?

ESPERANÇAS...

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2.

PAISAGENS: A ARQUITETURA COMO MEIO DE

REPRESENTAÇÃO E ExPERIÊNCIA DO ESPAÇO

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2.1.

ATMOSFERAS EM PAISAGENS

2.2. O CONCEITO DE IMAGEM, E OS MEDIADORES

DE PAISAGENS

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2.3.

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3. ÁREA DE PROJETO: LARGO DO AROUCHE

IMAGEM X ESPETÁCULO

2.4. TERRITÓRIOS VAGOS: AS “BRECHAS” DA CIDADE

3.1. O ESPAÇO PÚBLICO: DEFINIÇÃO DE “LARGO” E A

“PRAÇA BRASILEIRA”

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3.2. O LARGO EM DOIS SETORES DIFERENCIADOS:

DUAS FACES DE UMA MESMA CIDADE

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3.3.

APRESENTAÇÃO DO PROJETO

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4. REFERÊNCIA para o PROJETO

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5.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAs

3.3.1. O PROJETO – A QUESTÃO PROGRAMÁTICA

4.1. GALERIAS NO CENTRO: os PERCURSOS NA CIDADE CONSOLIDADA

CONSIDERAÇÕES FINAIS


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Resumo: Este texto discute o projeto de arquitetura como um meio para se experimentar e vivenciar paisagens urbanas em um contexto atual onde se perde cada vez mais a poesia que relaciona os sentimentos humanos com o objeto arquitetônico. Há a tentativa de recuperar o papel da arquitetura como uma obra transformadora, que tenha relação direta com o seu entorno, podendo assim proporcionar a mudança automática dentro da própria paisagem na qual esse projeto se insere. Palavras-chave: Paisagem urbana, arquitetura, cidade, imagem, Largo do Arouche


INTRODUÇÃO Este estudo um pouco mais aprofundado sobre o tema escolhido no exercício de projeto final, tenta compilar algumas das minhas indagações e questões que me instigaram, e ainda me interessam, no decorrer do curso de arquitetura e na minha formação de arquiteta durante esses 6 anos de curso entre a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie e o intercâmbio de um ano na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona. Viajar por um tempo considerável só fez aumentar a minha curiosidade e a gama de perguntas relacionadas a este tema e à arquitetura em geral, especialmente por me fazer ter um “olhar estrangeiro” sobre uma nova cidade e novos tipos de espacialidades e relações completamente diferentes das que tinha vivenciado até então neste meu lugar-comum, que é a cidade de São Paulo. Faço desse texto uma tentativa de passar essas minhas impressões. Sinto também, que conforme tento me aprofundar e entender melhor sobre uma das questões primordiais da arquitetura – que para mim gira em torno da

relação e a experiência das pessoas com os espaços que estas percorrem e vivenciam, dentro do território da cidade

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– outras questões ainda mais complexas se infiltram nesse processo. Por fim, percebo que tentar separar a arquitetura por temas é simplesmente impossível, ela está em tudo, e tudo pode servir de referencial e fazer sentido novamente. Todas as coisas estão intimamente ligadas quando se trata da relação entre os espaços e as pessoas. Dentro dessas perguntas sem resposta, algo faz um enorme sentido: a poesia que podemos fazer com essas ferramentas e a possibilidade de tocar as pessoas por meio do nosso trabalho, projetando arquiteturas para serem meios de experimentação de espaços e paisagens principalmente dentro do contexto da cidade, que é o amplo território onde foco o meu estudo adiante. Percebe-se atualmente uma perda da “poesia” em meio à reclusão dos indivíduos em seus íntimos espaços, cada vez mais segregados do mundo afora e alienados. Essa é uma questão complexa de se tratar pois é um resultado de um modelo de sociedade capitalista avançada que


viemos seguindo freneticamente há mais de um século, e que começou a “engatinhar” desde a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, com as trocas comerciais e a globalização proporcionada pelas grandes navegações dos séculos XV e XVI. Vemos hoje, na era virtual, uma sociedade distinta da do século passado. O tempo se comprime e o espaço também, a presença física e o local ou território no exercício social mais comum entre indivíduos – baseado na troca de informações, de produtos ou de experiências – desaparece, literalmente. O espaço físico não é mais necessário para se fazer trocas e ter relações entre os indivíduos, já que se pode fazê-lo no espaço virtual. Claro que essa realidade virtual não substitui o contato direto, mas facilita alguns assuntos. O problema é quando isso é em demasia e passa a afetar todos os campos da vida social: desde a maneira como lidamos uns com os outros – passando a nos individualizar cada vez mais e nos segregar em grupos e espaços – e a maneira como lidamos com o próprio espaço público, que passa a ser privatizado ou é esquecido, renegado, tornando-se desimportante para nós. Recentemente, presenciou-se uma contra-corrente nessa lógica capitalista: os movimentos populares – desde a “primavera árabe” até os movimentos “occupy”, presentes em milhares de cidades – reúnem os insatisfeitos com o rumo do capitalismo, da atual crise, de desigualdades e corrupções políticas. Este movimento é muito mais do que isso: ele se expressa publicamente, nas praças principais de cada cidade, reconquistando de forma coletiva esses espaços marginalizados. Apesar dos manifestantes não reivindicarem diretamente a reocupação dos espaços públicos, cada vez mais escassos, e a reconquista do direito à cidade, fica claro que têm com estes aspectos uma grande relação. Percebemos que esses movimentos vão se expressando ao poucos, e ganhando força em meio a um ambiente ainda hostil e relutante. Nesse contexto, ainda de tentar recuperar o “direito à cidade”, discute-se sobre as imagens e o modo de conformar paisagens urbanas transformadoras a partir dos projetos de arquitetura. Imagens tendem a ser cada vez mais manipuladas a vender e a seduzir o espectador. O mesmo


observamos nas cidades, e em seus próprios edifícios, ambos baseados principalmente nos interesses privados e atuando como objetos de inversão de capitais e especulação. Houve uma distorsão de valores, e a moradia deixou de ser primordialmente um bem e um direito do cidadão, passando a ser mais um objeto especulativo. A cidade tornou-se lugar do negócio financeiro, onde se buscam rendimentos imediatos e com o mínimo de compromisso com o local onde acontecem essas operações urbanas. Por isso, podemos constatar que as imagens provindas da indústria midiática, seguiram uma evolução em paralelo com o desenvolvimento das cidades: ambas tentam se superar a cada momento, a cada nova imagem ou nova cidade. Nesse mesmo contexto, o homem contemporâneo adquiriu uma rapidez e facilidade para fazer associações visuais e adaptou-se ao bombardeio diário de informações vindas da indústria midiática. Em contrapartida, outros sentidos lhes foram atrofiados. Não se percebe mais, por exemplo, as paisagens urbanas e a composição do ambiente. Os homens têm olhos para ver, mas não enxergam devido ao torpor diário de informações desnecessárias, que mais enchem os nossos olhos que nos passam informações. Com esse trabalho, há uma tentativa de realçar o papel do objeto arquitetônico como um meio de representação e experiência de um espaço, como se esse objeto fosse um mediador – a exemplo da fotografia ou da pintura – para se acessar campos visuais ou paisagens antes inacessíveis aos nossos olhares. Solà-Morales comenta que a realidade como experiência não existe previamente para ser contemplada, mas se produz através dos meios que construímos para ter acesso a ela, e a arquitetura pode ser um desses “meios”. Com ela a paisagem poderá ser contemplada e experimentada de forma real. As imagens, como essas paisagens, contém em si um sentido de intencionalidade. Elas não contêm um fim em si mesmas, há sempre uma finalidade para se provocar uma experiência do real. Nesse contexto, Nelson Brissac afirma que a paisagem urbana é constituída pela junção de diferentes suportes e tipos de imagem. Uma obra arquitetônica, quando tem relação direta com o entorno, insere automaticamente a mudança da própria paisagem em seu projeto e tem relação definitiva 12 | 13


com o local, formando uma paisagem transformadora. E é isso o que se pretende no exercício de projeto no Largo do Arouche, transformar não só aquela paisagem, mas a maneira das pessoas se identificarem e de experimentarem tais paisagens, mediadas pelos projetos que ali se inserem.


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1. as faces da cidade contemporânea 1.1. o conceito de modernidade: muda-se a sociedade, mudam-se as cidades?

1. ASCHER, 2010

Ao caminhar por alguma metrópole hoje, podemos notar o que François Ascher se referia ao afirmar que a modernidade não é um “estado de espírito”, mas um processo constante de transformação da sociedade1 – fato que pode diferenciá-la de demais sociedades onde a mudança não é o princípio essencial. Essas transformações sociais se refletem na própria organização desses centros urbanos, mudando-os no sentido social, econômico e espacial. As cidades são algo que podemos até planejar para que tudo aconteça da melhor forma: tentaremos prever usos e suprir necessidades por meio de análises variadas, estatísticas etc. Mas, ao mesmo tempo, elas são organismos que têm vida própria e sofrem mutações constantes, e nem tudo pode ser previsível por terem seus próprios desejos e necessidades. Muito da cidade mudou conforme o modo de vida da sociedade, e seguramente esses dois pontos têm desenvolvimento em paralelo, pois a forma de construir e participar dos espaços das cidades vem da própria maneira da sociedade se organizar. Com a vinda da modernização das cidades no pósindustrial, vieram também os problemas a longo prazo causados por esta modernidade de culto ao consumo exagerado. O nosso desafio hoje é enfrentar esses novos problemas que vieram junto com o desenvolvimento dessas cidades contemporâneas, sem abandonar as suas demandas sociais não resolvidas, comuns à todas as grandes cidades. São notáveis essas mudanças vistas a partir dos últimos avanços tecnológicos no campo das telecomunicações, um dos fatos que mais moldou a sociedade atual. Hoje as distâncias são relativas e a presença física já não é mais necessária para se fazer certos tipos de trocas ou para algumas atividades sociais se realizarem; as possibilidades de ação e interação aumentam e pode-se facilmente escolher – a possibilidade de escolha que antes não tínhamos assim tão latente – onde e quando se faz tal prática social, em espaços virtuais ou físicos.


2. ASCHER, 2010

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Ao contrário do que se parece e o que se percebe hoje, a “socialização” não chegou a desaparecer por completo da sociedade moderna, mas o oposto disso: surgiram novas maneiras de se relacionar socialmente. Os vínculos mudaram de natureza e de suporte se formos comparar com os laços criados nas sociedades anteriores; o que para nós, que estamos em época de transição de “modernidades”, nos parece um pouco estranho e ainda fora de contexto por estarmos entre ambas relações sociais e acompanharmos cada vez mais o desaparecimento das antigas formas de socializar, como por exemplo com os vínculos fortes e inquebráveis que já são mais difíceis de se encontrar. Mas, apesar dos vínculos ficarem mais débeis, eles estão mais fáceis de serem adquiridos do que antigamente. Hoje fazemos contato dia-a-dia com milhares de pessoas de diferentes campos e, mesmo que sejam contatos breves, esporádicos e com pouca proximidade, eles permitem que nossas bases de diferenciação se expanda para múltiplos lados. Os indivíduos são seres socialmente “plurais”, porque a partir dessas circunstâncias e destes contatos sociais diversos, cada um vai criando a base de um sistema de valores e escolhas próprio. Vamos caracterizando a nossa individualização. É certo que a vida nas cidades, ao contrário da vida no campo, se desenvolve em outra escala: ela se baseia primordialmente nessas possibilidades de escolha. Os vínculos estão mais débeis e frágeis mas por outro lado há mais facilidade de se produzir novos laços. É a “força dos vínculos fracos” 2, segundo Ascher, que pode ser representada por fios muito finos que não lhe dão solidez, mas conferem um aspecto esbelto e elasticidade a um “tecido” social culturalmente diversificado. Observa-se cada vez mais grupos sociais diversos, indivíduos de múltiplas origens, territórios socialmente e espacialmente heterogêneos: uma vida de associações bastante efêmera. A possibilidade de escolha se tornou mais complexa e acabou por produzir indivíduos cada vez mais singulares. Para o mesmo caminho foi a diferenciação social – que acontece dentro de uma mesma sociedade produzindo diversidade e desigualdade entre grupos e indivíduos e gerando uma sociedade ainda mais complexa. Essas lógicas individuais vão ocupando cada vez mais o lugar das lógicas


coletivas e assim sociedades modernas separam e reúnem basicamente indivíduos e não mais grupos3. Todas essas antigas relações que mudaram a forma de se expressar recentemente refletem diretamente a dinâmica das cidades atuais e as relações pessoais com o espaço urbano, provocando mudanças visíveis. Com a individualização cada vez mais latente – é natural que talvez queiramos parecer singulares em meio a um mundo tão globalizado – percebe-se também a reclusão desses indivíduos em seu próprio espaço. Chega a um ponto tão extremista que, se observarmos pela cidade, muitos dos novos edifícios residenciais (fig. 01) têm dentro de seus programas tudo o que é necessário para ter uma vida confortável e prática, sem nem mesmo ter que sair de casa. Além da residência há a academia, o clube, o mercado e até o próprio local de trabalho. Essa proximidade dos programas que levamos diariamente é importante, considerando que nas grandes cidades o trânsito ocupa quilômetros de extensão todos os dias e o quanto melhor utilizarmos o nosso “tempo” sem nos preocuparmos com o fator “trânsito”, mais fácil e prático para todos. Mas nem todos têm a “bênção” de viver, trabalhar e ter áreas de lazer tão próximas umas das outras, e o problema disso tudo de forma muito exagerada como no exemplo acima, é que passamos a priorizar demais o nosso tempo e não observar o espaço em que vivemos. E já que não participamos mais desse espaço, ele acaba por se tornar um fator desimportante para nós.

3. ASCHER, 2010


FIG. 01

Anúncio imobiliário “para morar ou investir” São Paulo, 2012

Fonte: Jornal Folha de S. Paulo, 18/11/2012


1.2. NOVOS PRINCÍPIOS URBANOS. PARA ONDE OLHAR? ESPERANÇAS...

4. WHYTE, 2001

A cidade não é só uma infraestrutura que serve para suportar nossas atividades diárias, ela é um organismo vivo, que pulsa, que tem suas próprias necessidades e desejos baseados, claramente, nas necessidades e desejos humanos. Quanto mais negarmos essas necessidades, mais a cidade vai exigi-las. E esses desejos certamente não são desejos de individualidade. Na época em que vivemos é natural que talvez queiramos parecer singulares em meio a um mundo tão globalizado e consumista, cheio de imagens sedutoras que nos fazem buscar por certos estilos de vida. Mas o sentido natural do ser humano é o sentido coletivo, buscamos o valor da troca. Temos necessidade de trocar tudo, desde experiências, objetos, até olhares. Temos extrema curiosidade em observar o outro, umas das práticas sociais mais antigas da humanidade, e William Whyte já dizia que o fator que mais atrai as pessoas são outras pessoas4. Tudo, por fim, está baseado no outro. Não viveríamos nunca a sós. Assim como o ser humano, as cidades também têm necessidade de se expressar nos espaços coletivos, nos espaços ligados ao público, que juntam e celebram esse valor humano de troca. Atualmente, estamos caminhando atrás de valores individuais, e criando espaços também individuais baseados nestes mesmos valores. As cidades, por sua vez, estão fechando as portas para o exterior, contra o desejo, mas o nosso sentido natural do coletivo vai se expressando e ganhando força de pouco em pouco como podemos ver em alguns projetos e movimentos de reocupação e ressignificação do espaço da cidade. Movimentos populares como o “occupy wall street”, em Nova Iorque, e “Los Indignados” (fig. 02 e 03), na Espanha, reúnem os insatisfeitos com os rumos do capitalismo, da crise, desigualdades e corrupções. O movimento é certamente muito mais mais do que isso: ele se expressa publicamente nas praças centrais, reconquistando de forma coletiva esses espaços marginalizados pela lógica capitalista que privilegiou espaços de consumo e de relações intimistas e individuais. Apesar dos manifestantes não reivindicarem diretamente a reocupação dos espaços públicos da cidade, fica claro que


FIG. 02 e 03

Fotos do acampamento dos indignados na Plaza Catalunya (Barcelona, maio 2011)

Fontes: www.occupywallst.com www.barcelonadailyphoto.com www.pensionulises.blogspot. com.br


o movimento tem com este aspecto uma grande relação, já que a sociedade capitalista fez das cidades o seu próprio espelho, segregadas e individualistas. Observam-se movimentos cada vez maiores por parte da população para trazer de volta os espaços da cidade, como em São Paulo com o “BaixoCentro”, que recentemente promoveu atividades nos espaços públicos para fazer a população reocupar e recuperar essa região central, observá-la mais atentamente e voltar frequentá-la, resgatando os seus pontos de interesse, trazendo de volta uma vitalidade que já foi tão presente naquele espaço. São movimentos de atração que manifestam dentre as indignações, uma consciência social crítica, e que reúnem muitas discussões em torno do que a sociedade se tornou e o que devemos esperar de um futuro tão incerto em meio à milhares de mudanças sociais. O movimento “BaixoCentro”, tomado como exemplo recente e em curso na cidade de São Paulo, visa ocupar as ruas de forma “criativa” de modo a revitalizar a região por onde o Elevado Costa e Silva passa (cortando os bairros de Santa Cecília, Barra Funda, Vila Buarque, Luz e Campos Elíseos), um local que sempre foi uma síntese de conflitos imobiliários e políticos – desde sua inauguração em 1970 durante a gestão de Paulo Maluf como prefeito da cidade de São Paulo – e hoje representa um território degradado, com problemas de segurança pública e concentrando vários usuários de “crack”. O movimento começou em Março de 2012, inicialmente objetivando ser mais um evento para demonstrar e recuperar o “direito à cidade” do que um evento cultural. No final, percebeu-se que vários centros culturais na região não tinham contato uns com os outros e, juntos, resolveram provover 10 dias de programação cultural (fig. 04 a 07), onde qualquer pessoa, artista ou produtor poderia mostrar seu trabalho pelas ruas além, claro, de ajudar na organização e produção do evento. Com o intuito de ser uma anti-virada cultural – por não ser financiado por instituição privada nem pela Prefeitura, como a “Virada Cultural” – o movimento é “autogestionado” e todos os recursos foram levantados por doações pela internet, ou o que chamamos hoje de “crowdfunding”. É certo que movimentos como esses são muito


FIG. 04,05,06 e 07

Fotos do evento baixocentro (S達o Paulo, junho 2012)

Fonte: Autora, fotos de arquivo pessoal, 2012


válidos para atrair a atenção a esses espaços esquecidos ou renegados, mas uma ação permanente nesses locais é necessária para reativar tais regiões degradas já que algo muito efêmero ou ações muito “pulverizadas” pela cidade, sem contato ou ação coletiva nenhuma, talvez possam causar a falsa impressão ou utopia de se estar fazendo algo por estes locais, os quais, na verdade, voltaram às suas características originais de abandono após estes eventos atrativos. Mas esses exemplos já demonstram reações ou resistências à lógica de dominação privada do espaço público.


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2. PAISAGENS: A ARQUITETURA COMO MEIO DE REPRESENTAÇÃO E EXPERIêNCIA DO ESPAÇO Cada um tem uma visão diferente sobre a mesma cidade, que pode juntar emoções, experiências, visuais, caminhos etc. São de elementos palpáveis e de outros etéreos que se forma uma paisagem dentro do contexto geral de uma cidade. Uma cidade são várias paisagens, que por sua vez são várias imagens vistas sob diferentes ângulos que dependem também de outras variáveis como o tempo, movimento, atmosfera, para poder citar algumas. A forma de olhar tal paisagem muda, mas talvez o sentimento de bemestar e harmonia com certo local seja universal. Uma paisagem urbana pode ser entendida como o local onde acontece a vida urbana, onde atividades cotidianas são realizadas e onde há movimento e uma experiência desse “existir”; são experiências em um certo momento que talvez possam moldar a idéia daquele lugar. Segundo Nelson Brissac, uma paisagem urbana é constituída pela junção – em um único local – de diferentes espaços e tempos, diferentes suportes e tipos de imagem. Uma obra de arquitetura quando tem relação com o entorno, insere automaticamente a mudança da paisagem no seu projeto e tem relação definida com o local. Assim, o sítio se torna algo específico dentro da cidade, por adquirir um caráter e uma identidade. Brissac, chama a atenção para o “redescobrimento” da cidade a partir dessas novas conformações de paisagens, devido à presença de um projeto arquitetônico. Segundo suas palavras, é preciso “reinventar a localização e

a permanência, quando a fragmentação e o caos parecem avassaladores” 5

5. PEIXOTO, 2004:15 6. YÁGIZI, 2002

Eduardo Yázigi, em “A alma do lugar”6, reconhece que há diversas formas e tempos presentes em uma mesma paisagem, e este é um conteúdo submetido à constantes mudanças. A arquitetura nesse âmbito, serve como um símbolo na paisagem e faz parte de sua identidade. A paisagem, no entanto, só existe em relação ao homem e depende da forma que este a percebe. Para um cidadão comum ou um turista, a paisagem é um objeto de contemplação contendo os mais variados significados.


Voltando às idéias de Nelson Brissac, no texto que desenvolve sobre o olhar estrangeiro, chega a discutir sobre o que é este novo olhar sobre uma paisagem urbana. O estrangeiro é alguém que vem de fora daquele ambiente e tem o olhar de quem acabou de chegar, por isso percebe coisas diferentes do indvíduo que passa diariamente por aquele local, e já tem seu olhar “acostumado” sobre aquela paisagem. O estrangeiro vê como se fosse a primeira vez e por isso vive histórias originais, é um ser livre das representações que se têm sobre aquela paisagem, pois não tinha nenhum conhecimento sobre ela antes, é um completo “ignorante” ali, porque ignora as idéias que se fazem daquele local pelos outros, e com isso pode tirar suas próprias conclusões. É estrangeiro também aquele que sabe se desprender dessas “amarras” ou representações de uma paisagem, e tem um novo olhar sobre esse mesmo local que já conhecia anteriormente. É alguém que dá novos significados e percebe outras dinâmicas. O papel da arquitetura dentro de uma paisagem é fazer despertar essa redescoberta, permitir ver de outro jeito um mesmo lugar. Solà-Morales, em um de seus ensaios publicados no livro Territórios, comenta que a realidade como experiência não existe previamente para ser contemplada, mas se produz através do meios que construímos para ter acesso à ela, e assim poderemos contemplá-la. A realidade experimentada é uma só, mas os meios para se chegar à ela são inúmeros. A arquitetura é um desses meios, assim como diversos modos de representação como a fotografia e a pintura, ações com as quais se criam paisagens para serem experimentadas. A arquitetura faz dos não lugares, lugares; mas é uma arquitetura sendo pensada como “criação de espaços”, e não tão e somente edifícios e construções. Do mesmo modo, as imagens não existem por si só, não são um fim em si mesmas, e sim são propostas para produzir certa experiência. Peter Zumthor fala sobre essa experiência do lugar, dessa “criação de atmosferas”, ou espaços que despertem nossos sentimentos. Certamente são espaços em harmonia. Mas há como criar estes espaços? Há uma receita a ser seguida? O autor se faz a mesma pergunta: 26 | 27


“Poderei como arquiteto projetar também o que realmente constitui uma atmosfera arquitetônica, essa densidade, esse estado de ânimo único, esse sentimento do presente, de bem-estar, de coerência, de beleza?” 7

7. ZUMTHOR, 2009:85

Talvez a atmosfera não possa ser projetada pois ela é por si só uma consequência de vários fatores que acontecem quase de forma espontânea. Nada lógico ou racional é capaz de explicar uma experiência viva e direta dos ambientes que a arquitetura proporciona, alguns só são acessíveis por sua totalidade quando há a definitiva experiência direta do lugar e perceber nisto tudo a nossa relação com o mundo. Há alguns estudiosos que entram por este tópico mais a fundo, são os que estudam a fenomenologia ligada ao existencialismo como Edmund Husserl, Maurice Merleau Ponty e Heidegger. Tentando exemplificar de uma maneira simples, essa fenomenologia existencialista é um modo de explicar o que é essencial através da noção de “intencionalidade” em qualquer situação. Em tudo há uma intenção: as imagens existem não contendo um fim em si mesmas, e sim existem porque nelas há uma finalidade de provocar uma experiência, um sentimento por meio delas. Nessa mesma linha de pensamento, Gilles Deleuze afirma que não há qualquer experiência (estética, filosófica, científica) se não há mediadores. Esses mediadores são, por exemplo, maneiras de se chegar à experiência que se quer como finalidade, e a arquitetura pode ser considerada um desses “meios”, sendo um mediador na experiência das paisagens. Em outro modo de ver esta mesma afirmação, os mediadores podem ser simples óculos, binóculos, microscópios, ou mesmo a camera fotográfica, enfim, objetos que nos permitem enxergar campos visuais que nossos olhos não podem experimentar de forma natural. Com a fotografia não é diferente, sendo a máquina o mediador, e o produto (a fotografia) um fragmento de uma totalidade e uma percepção que depende do olhar de quem a manuseia. As experiências que se pode ter por meio de uma fotografia depende das intenções do fotógrafo. Neste caso, a ilusão – ou a experiência causada pela imagem – não se contrapõe à realidade, pelo contrário, a fotografia


pode revelar uma realidade que até então ficou omitida, por não ser acessível ao nosso campo visual, e somente será perceptível para nós na imagem revelada. 2.1. ATMOSFERAS EM PAISAGENS Neste sub-tópico, apresentam-se fotografias coletadas durante um ano (entre 2010-11) que são parte de um trabalho exposto em um curso de fotografia, no qual a finalidade era representar a tal “atmosfera” presente em algumas paisagens por meio de jogo de luzes e sombras, texturas dos materiais, temperatura de cores, movimento e interações das pessoas – realidades que se revelaram por meio da fotografia a partir da experiência direta. Essa coletânea foi baseada em um parágrafo do livro de Peter Zumthor, Atmosferas, em que este descreve em seu caderno uma certa atmosfera, experimentando-a diretamente:

8. ZUMTHOR, 2009:15-16

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“É quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado, uma praça ao sol. Uma arcada grande, longa, alta e bonita ao sol. A praça – frente de casas, igreja e monumentos – como panorama à minha frente. a parede do café nas minhas costas. A densidade correta de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. a parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos: conversas próximas, passos na praça, pedra pássaros, um leve murmúrio de multidão, sem carros, sem barulho de motores, de vez em quando um ruído de obra ao longe. Os feriados a começar já tornaram os passos das pessoas mais lentos, imagino. Duas freiras – isto é realidade e não imaginação – , duas freiras cruzam a praça, gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente ao vento, cada uma traz um saco de plástico. A temperatura: agradavelmente fresco, com calor. Estou sentado na arcada, em um sofá estofado em verde mate, a figura de bronze à minha frente no alto pedestal está de costas para mim e olha, como eu, para a igreja de duas torres.” 8


Não é necessário saber o local onde se passa essa descrição de Zumthor. Com esse relato, podemos criar em nossa própria imaginação a cena que ele propõe, que poderia se passar em qualquer café, em qualquer cidade onde se tem uma praça com uma estátua de bronze ao meio e uma igreja em uma de suas bordas. Nas fotos da próxima página, o intuito é reverso: por meio dessas imagens carregadas de sentimento e propósitos, podemos criar continuações, relatar narrativas descrevendo a atmosfera daquela paisagem, como fez Zumthor, debandar além dos limites físicos que a imagem impõe com suas bordas, e esquecer-se um pouco o local onde foram tiradas ou as atividades que esse local propõe. Porque não brincar, imaginar uma fotografia consumindo a outra e permitindo novas abordagens? Estes locais poderiam representar quaisquer cidades, partindo pelos elementos físicos que ela demonstra – um rio, uma topografia acentuada, uma praça, um lago, se faz tempo frio, se há neve ou sol, as cores e texturas – que podem dizer um pouco sobre a antiguidade que a cidade carrega. Enfim, fazer uma releitura, como foi feito no livro de Ítalo Calvino, “As cidades invisíveis”, onde o personagem Marco Polo recria milhares de cidades, como fragmentos, a partir de uma mesma referência: a cidade de Veneza.


Apenas uma pequena parcela daquelas imensas montanhas eram vistas a partir da arcada cor de ocre se o observador se colocasse exatamente atrás delas, enquadrando aquela paisagem infinita. Mas, essa mesma arcada era toda aberta acima aos céus, e podia-se mirar as nuvens por completo, tão estranhas quanto à própria forma das montanhas que ali se encontravam. Mas exatamente aquele limite material nos fazia ter o desejo de nos aproximar e ter a experiência completa daquela paisagem. O medo da caída é diferente da vertigem, pois a vertigem nos atrai pela profundidade daquilo que se abre ante nós, despertando o desejo da queda. E era assim que aquela arcada se comportava, como um aparato para se despertar o desejo de ir e ver, tudo.

Fonte: Autora, fotografia de

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arquivo pessoal, 2010


MUNTANYES DE MONTSERRAT MONTSERRAT, ESPANHA


CATHÉDRALE DE NOTRE DAME PARIS, FRANÇA


Pensando bem, parece que aquela Igreja foi pensada de trás para frente, e pode ser que tenha sido. Era muito mais bonita observá-la assim, muito mais misteriosa e se portava como um marco, uma referência ao se caminhar por aquela distinta parte da cidade... Mas onde está a entrada? Há um rio na frente, é impossível chegar. O mistério aumenta... Podíamos virar o mundo de ponta cabeça, trocar a frente pelo verso, o direito pelo esquerdo. Talvez as coisas fizessem mais sentido, ou o simples fato de não dar nem ter sentido já compensaria as ilusões.

Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2010


Um caminho longo, recortes, tons de cinza. A luz que entra demonstra que há saídas, ou entradas, e isso alivia para não nos sentirmos tão presos ali. Linhas de fuga, vontade de sair e ir ver o verde que se abre naquele pequeno rasgo no concreto, estranho, será uma árvore, será o céu? O que permeia fora desse edificio? É uma cidade ou completa natureza? Cachoeiras descendendo a serra ou avenidas entrecortando a paisagem urbana, selva de concreto?

Fonte: Autora, fotografia de

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arquivo pessoal, 2011


MUSEU SERRALVES DE ÁLVARO SIZA VIEIRA PORTO, PORTUGAL


TORRE DOS CLÉRIGOS PORTO, PORTUGAL


Taxis, turistas arrastando suas bagagens, uma torre ao alto: tudo indica que é o Centro ou uma parte que já foi importante na formação dessa cidade. Aquela torre foi erguida no seu ponto mais alto, seguramente, nada à frente e muito abaixo. A cidade, vista de cima, é controlada pelo olho que tudo vê. Hoje, quase tudo ali é ditado pelo consumo: lojas surgem ao redor e não respeitam as vistas ao patrimônio que perdurou por séculos, confundindo os olhares, distraindo as atenções do que realmente importa. Mas de certo é isso que mantém aquela região movimentada. E à noite, quando todo o superficial se vai, o que fica? As estrelas refletem a cidade quase dormida, mas que brilha e pulsa como no seu reflexo, e somente nessa hora obscura da noite ela acontece e vive espontâneamente, achando que ninguém está à espreita.

Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2011


A quantidade de luz ideal, aquela porcentagem que provoca o exato tom de ocre misturado com o dourado brilhante das paredes, contrastando com as janelas semiabertas em tons mais escuros de verde, ou petróleo. Pessoas daqui, pessoas dali, indo e vindo, confusão harmônica. Gente de cima observando os outros passarem abaixo, outros sentados à espera de algo, à espera de alguém ou somente assistindo ao espetáculo diário da vida. Uma praça que se abre depois de um passeio estreito, de janelas que se olham diretamente. E a quantidade de luz aumenta, assim como o número de pessoas. Contrastes que convivem em harmonia. Uns se desviam dos outros, não há brigas por invasão de espaço e todos dividem o mesmo passeio, tranquilamente.

Fonte: Autora, fotografia de

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arquivo pessoal, 2011


VIA DEI PASTINI, AVISTANDO O PANTHEÓN ROMA, ITÁLIA


FIG. 08

“Grande Vague” Gustave Le Gray (1956/58)

Fonte: photos-site.com/22. html

FIG. 09

“La Vague” Gustave Courbet (1971)

Fonte: gustavecourbet.org/ La-Vague.html


2.2. o conceito de imagem, e os mediadores da paisagem

9. WENDERS, 2002

Para o cineasta Wim Wenders, a história das imagens seguiu uma evolução em paralelo com a história das cidades,9 as duas tentam se superar a cada momento. O cinema, sendo uma sequência de imagens em movimento, se baseia nas cidades e as reflete constantemente, é um “espelho” que capta os fatos de cada época e exprime desejos, esperanças e angústias de cada tempo numa linguagem entendida por todos. A imagem, para Wenders, pode ser um conceito tanto abstrato quanto concreto: antes ela era única, sendo representada uma única vez em pinturas e desenhos e a realidade que ela representava também era única nessas pinturas, não sujeita à reproduções e sendo uma visão própria do olhar de quem a expressava. Assim também como nas fotografias – que vieram surgir depois, no séc. XIX – mas estas são imagens com uma possibilidade menor de imaginação representativa e uma maior proximidade com a realidade, mas ainda assim carregada do sentimento próprio do olhar. Esta é a “realidade de segunda mão” à qual Wenders se refere constantemente nesse mesmo texto. Não por coincidência, o movimento realista da pintura surge junto com o desenvolvimento da fotografia. Gustave Courbet, um dos precursores da pintura realista e envolvido em obras sociais que representam fragmentos de uma realidade urbana, confessa que ao contrário do surgimento da fotografia ser uma ameaça, ela é uma aliada à pintura realista: documenta fatos e paisagens, exacerba a precisão de detalhes, exalta as perspectivas e fixa o tempo pelo que pode retratar. Estes todos são fatos que puderam fazer com que a obra de arte estivesse mais próxima de ser um “espelho” da realidade, um instrumento na visualização, nos “modos de ver” essas paisagens. A fotografia tanto influenciou o trabalho de Courbet (fig. 09) que pode-se notar uma grande aproximação e incorporação da visão desta em seu trabalho, principalmente nos detalhes minuciosos do seus nus, no enquadramento e profundidade de campo em suas paisagens litorâneas, na linha do horizonte demarcando céus nebulosos e mares tempestuosos, tão semelhantes àqueles mostrados nas fotografias de mares de Gustave Le Gray, seu contemporâneo na fotografia (fig. 08).


10. WENDERS, 2002

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A fotografia se comporta como uma extensão do próprio olhar, por isso capta paisagens, perpectivas e momentos tão realistas, atividades corriqueiras, expressões do que é real e existente no mundo ao nosso redor. Foi inventada para ser uma reprodução dos olhos, um “olho mecânico” que produz um documento datado ou uma imagem “congelada” no tempo. Mas, este olhar também manifesta suas preferências e vontades, e tem uma visão individual daquilo que é retratado, por isso sempre a realidade que tentamos demonstrar, tanto na pintura quanto na fotografia, é carregada de sentimentos e intenções que são resultantes da pessoa que comanda o pincel, ou a câmera. A realidade, nestes instrumentos, sempre depende do olhar de quem a produz. A televisão, por sua vez, trouxe os acontecimentos de outros cantos do mundo para o nosso lado, instaurou ao mesmo tempo a proximidade e as distâncias e uma aproximação maior ainda com a “realidade” nua e crua e isolou seu espectador. Indivíduos se recolhem às suas casas, assistem aos programas que escolheram e, ainda hoje, podem produzir suas próprias imagens com a parafernalhas digitais: mais “imagens de segunda mão” criando um universo individualizado. Com os primórdios da televisão, as imagens se tornam frias, menos emotivas – ao contrário do cinema – e cruas. Ao longo dos anos, as imagens mudaram de natureza: tendem a ser cada vez mais vendáveis e sedutoras, manipuláveis para qualquer finalidade, envolvidas em infinitas reproduções onde não é mais possível separar o original da cópia. Como exemplo de reprodutibilidade na arte pode-se citar Andy Warhol, com suas obras inteiramente relacionadas e voltadas à publicidade (fig. 10), ou como crítica à esta, no sentido de se tornarem mais acessíveis à cultura de massas para o seu consumo e também como crítica à sociedade e ao “american way of life”. O espírito publicitário dominou a indústria midiática, e há um bombardeio de imagens no mundo atual que os humanos acabaram por se adaptar. Segundo Wenders, é verdadeiro o fato de que hoje o homem vê mais rápido e faz associações visuais mais facilmente10 do que antigamente, em contrapartida outros sentidos são certamente atrofiados.


Neste momento há um grande paralelo com o desenvolvimento das cidades, o qual se tornou cada vez mais individualista e isolado por parte de seus habitantes, que não se movimentam mais pelas cidades, não vêem mais as paisagens que compõem este ambiente. Têm olhos, mas não vêem, ofuscados por esse torpor diário de informações desnecessárias. Estamos perdendo aquilo que é “pequeno e modesto” 11, segundo Wenders, e perdemos com isso também a nossa orientação, pois não há mais o modesto como base de comparação ao grande, ao potente. Para ele, nenhuma cidade junta melhor esses dois opostos do que Tóquio, estando em conflito toda uma cultura tradicional baseada na modéstia, simplicidade e no valor essencial das coisas em oposição à uma economia recente e superpotente, fazendo emergir construções inimagináveis. O grupo SANAA (Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa), arquitetos japoneses, parecem tentar resgatar o simplório e essencial da cultura tradicional japonesa (fig. 11 a 13), ao contrário do que vem acontecendo com a arquitetura comercial em toda Tóquio.

11. idem, 2002 FIG. 10

“Marilyn Monroe” Andy Warhol (1967)

Fonte: bigother.com


FIG. 11, 12 e 13 Casa Shibaura Tóquio, Japão SANAA (2010-11)

Foto: Iwan Baan Ilustração: Jody Wong Fonte: metalocus.es


2.3. IMAGEM X ESPETÁCULO O espetáculo, para Guy Debord12, é a multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massas, mas também através de rituais políticos e religiosos, hábitos de consumo de personalidades e mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. Esta é a aparência que confere integridade e sentido à uma sociedade que desenvolveu ao extremo o “fetichismo” da mercadoria, sob os aspectos da sedução e da publicidade.

12. DEBORD, 1997 FIG. 14

Metropolis Paul Citroen Colagem (1923)

Fonte: archidaily.com


FIG. 15

Poster original do filme “Metropolis” (1927)

Fonte: sound-vision.blogspot.com.br

FIG. 16

Cena do filme “Metropolis, de Fritz Lang (1927)

Fonte: sound-vision.blogspot.com.br

FIG. 17 e 18

A visão da cidade futurista “Amazing Stories” Frank R. Paul (1928)

Fonte: www.culturelabel.com


Assim, as relações pessoais se transformam em imagens, e estas em espetáculo. O consumo de mercadorias e imagens ocupam o lugar que antes era do diálogo pessoal, produzindo o isolamento e separação social entre os seres humanos. Toda essa relação de pessoa a pessoa também se traduz no espaço da cidade contemporânea e em seus edifícios: criamos espaços cada vez mais fragmentados e desconexos, que não conversam entre si, moldando objetos separados e individualistas, assim como seus próprios usuários. Nas fotomontagens, ou “collages” de Paul Citroen (fig. 14), que se baseiam sobretudo nas cidades modernas e seus arranha-céus, percebe-se o acúmulo de partes desconexas de diferentes imagens, resíduos que se sobrepõem, fragmentos de vários edifícios que, colocados em um mesmo plano, conformam paisagens abstratas e quase surrealistas. Essas colagens, mais do que uma imagem, transmitem a fragmentação do próprio sentimento, causando um pânico, alvoroço pelo bombardeio de imagens sobrepostas. Elementos de composição construtivos como edifícios, pontes, torres e suas mudanças repentinas de escalas e direção causam um estranhamento na perspectiva desta representação utópica, embora verdadeira, se formos levar em consideração o sentimento que é causado quando se está rodeado por uma grande cidade caótica, como a da colagem. Sua obra mais famosa (“Metropolis”, 1923) inspirou o diretor Fritz Lang no filme estreado em 1927, de mesmo título (fig. 15 e 16). Essa percepção visionária das cidades do futuro, a obssessão e o alvoroço perseguiram toda a trama do filme, e adiantou o que viria pela frente: cidades baseadas principalmente nos interesses privados, nos capitais que buscam sempre a maior rentabilidade, e tendo como sempre aliadas as imagens, sedutoras, publicitárias e vendáveis, superando-se a cada momento, como as próprias metrópoles, e essa visão futurista percorreu toda a década de 1920. Como exemplo, temos também as histórias em quadrinhos de Frank R. Paul (fig. 17 e 18) de 1928 onde percebemos o que o futuro naquela época nos aguardava: destruições, caos, conflitos com seres interplanetários, carros voadores etc. A evolução seguia no sentido de ser algo material e externo, e não algo interior do ser humano.


Rem Koolhaas, em “Nova York delirante”, também estuda as cidades neste âmbito do espetáculo, buscando a compreensão deste fenômeno urbano a partir do estudo desta cidade ícone. Nova Iorque é para ele o ‘marco zero’ das grandes metrópoles mundiais e com ela poderemos entender as várias outras metrópoles pelo mundo, pois todas se baseiam sobre os mesmos pilares: a busca incessante do prazer, ou a valorização de uma realidade construída segundo os interesses de incorporadores, empresários do entretenimento, políticos e arquitetos. Em Nova York, assim como nas outras metrópoles mundiais, percebe-se os maiores paradoxos da atualidade, e isso é muito discutível hoje, considerando que em 2050 provavelmente quase 70% da populacão mundial viverá em centros urbanos. Nos resta a necessidade de entender essas cidades e tornar esse “viver” futuro mais agradável, saudável e proveitoso. Outro paradoxo dentro dessas cidades contemporâneas é entre a densidade construtiva cada vez mais alta e novos anúncios a cada dia de outras construções, edifícios e shoppings, por exemplo, e a quantidade incalculável de espaços livres e vagos – tanto dentro de edifícios abandonados no centro da cidade, quanto de terrenos subutilizados, que abrigam estacionamentos ou outras funções que não cumprem papel nenhum no sentido de “devolver algo” para a cidade, ocupados superficialmente. Esses territórios que se configuram vagos dentro da cidade consolidada são os conhecidos “terrain vagues”, intitulados assim pelo professor catalão Ignasi de Solà-Morales, e a cidade hoje, em 2012, ainda se configura visualmente como demonstrava Paul Citroen em 1920, com “Metropolis”.

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2.4. TERRITÓRIOS VAGOS: AS “BRECHAS” DA CIDADE Espaços vagos, tão comuns no espaço da cidade construída, precisam ser reapropriados, conter novos usos diferentes dos estabelecidos inicialmente, ser vistos com “outros olhos”, conter novas possibilidades. Ignasi de Solà-Morales, em seu texto “Terrain Vague” trata desses mesmos locais de ausência: edifícios e terrenos abandonados e improdutivos dentro da cidade que não são compatíveis com a lógica da cidade contemporânea – a lógica de buscar a construção e ocupação máxima em cada espaço deixado livre. Cidades hoje são vistas como produtos ou objetos de inversão de capitais e especulação, este fato molda vários lugares da cidade contemporânea que distorceu o valor da propriedade do solo, especialmente das habitações pois estas deixaram de ter em sua essência um valor de uso e de ser primordialmente um bem, um direito do cidadão, tornando-se meros objetos especulativos. A cidade tornou-se lugar do negócio financeiro, onde se buscam rendimentos imediatos, com o mínimo de compromisso com o local onde acontecem as operações urbanas. O autor, ao contrário dessa visão especulativa, trata destes espaços vazios como ausências e também como promessas, são locais de encontro e espaços do “possível”, ou seja, não os trata como vazios e sim vagos de uso, uma conotação mais leve, algo que possa “vir a ser”, uma esperança. E completa, dizendo que não há somente conotações negativas em um espaço vago, pode-se entender o “vague” como espaço indefinido e impreciso, que passam a mensagem de “vagabundagem”, liberdade, tempo livre e mobilidade. A figura 19 exemplifica este termo “vago”. É uma cena do filme “Asas do desejo” de Wim Wenders, que mostra um espaço em Berlim abandonado quando o circo que acontecia ali se desmonta. É um local que pode vir a ser muitas coisas como, por exemplo, abrigar esse circo itinerante, e neste momento estar cheio de significados, pessoas, ações e interações provocadas por este objeto que se apropria desse lugar abandonado. Depois que o circo se vai, não há mais nada, volta ao seu aspecto original “vazio”, mas é um vazio pode vir a se transformar novamente em algo.


Notamos atrás empenas cegas de edifícios, que foram construídos dessa maneira por esperarem que outro edifício se juntasse ali. Mas isso não aconteceu até então. As empenas provocam no olhar um “trompe l’oeil”, ou um efeito de ilusão de ótica, uma armadilha para os olhos, elas foram pintadas com cenas da cidade e assim enganam o olhar por persarmos que aquele local é menos “vazio” do que se percebe. E percebemos que pelo mesmo caminho de SolàMorales vai o pensamento de Wim Wenders, cineasta que viveu e filmou em muitos tipos de cidades, vilas e locais abandonados, muitos deles desertos. O seu texto “A Paisagem Urbana” 13 já anteriormente comentado, é especialmente dirigido aos arquitetos do mundo todo e sua principal mensagem é a necessidade humana pelos vazios, como este da imagem ao lado, que ao seu ver são espaços para “recarregar as energias” no meio do caos urbano. Na verdade, esses são os mesmos vazios aos quais Solà-Morales se refere: são vazios cheios de significados, assim como os cheios e vazios das próprias imagens, tão habituais ao cineasta.

“Quando há muito o que ver, quando uma imagem é muito cheia, ou quando há muitas imagens, nada se vê. “Muito” torna-se bem rápido “absolutamente nada”. (…) Vocês conhecem também o efeito inverso: quando uma imagem é quase vazia, muito despojada, é capaz de fazer surgir tantas coisas que chega a preencher totalmente o observador, transformando o vazio em “tudo” 14

13. WENDERS, 2002 14. idem, 2002:188

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Para ele, especialmente quando se monta uma tomada em um filme, a cena explica-se pelo que se “deixa de fora”, e não pelo que se mostra ou acontece ali, ou pelo que é óbvio e visível. O mesmo acontece pelas cidades, que encheram-se tanto de tudo que nos parece superficial, enquanto que no deserto não há nada, e esse nada nos passa a sensação do que é essencial que não temos dentro da cidade. Existe uma “lei da compensação” em que necessitamos do oposto para entendermos e suportarmos ambos. A cidade de Berlim, berço do cineasta, está cheia desses espaços vagos. Brechas pelas quais se pode


construir uma história baseada na sua destruição por ser palco de duas grandes guerras e a sua posterior separação em duas diferentes cidades. Feridas que até hoje são visíveis e perceptíveis, tanto nas superficies das construções quanto nos horizontes que se abrem pela cidade e permitem que as pessoas entrevejam a imagem da cidade. Em “Asas do desejo” que é filmado nessa mesma cidade, há um personagem que incorpora tanto o papel do diretor, como o de um escritor, poeta ou contador de histórias. É o Der Erzähler, ou “o narrador” em português. Há várias cenas em que ele aparece, narrando alguns acontecimentos de extrema importância para o filme. É um personagem idoso que viveu em uma Berlim unificada, e testemunha a transformação dessa cidade no final de 1980, época em se passa o filme, com as guerras e a separação entre os lados Leste e Oeste. Em uma dessas cenas, ele percorre fisicamente a Potzdamer Platz (fig. 20), no momento destruída e cortada pelo muro bem no seu eixo, e seus pensamentos a percorrem imaginariamente em uma época

fig. 19

cena do filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders (Berlim, 1987)

Fonte: imagem retirada do filme “Asas do Desejo”

em que esta praça era uma das partes mais prósperas de Berlim. Ele não a encontra ali, e diz que não desistirá até encontrá-la novamente. Neste caso, não é a praça em si, dita de forma física, mas adquire o valor de uma metáfora para que Berlim volte a ser como era antes.


fig. 20

cenas do filme “Asas do desejo�, de Wim Wenders (Berlim, 1987)

Fonte: vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/06.071/365


fig. 21 e 22

Cenas do filme “asas do desejo” de Wim Wenders (Berlim, 1987)

Fonte: imagens retiradas do filme “Asas do Desejo”


Wenders faz um grande paralelo das cidades contemporâneas com os filmes que são exibidos atualmente nas salas de cinema, os “blockbusters”, e assim passa a definir o seu próprio estilo – o de produzir filmes que verdadeiramente contam uma história, por entre as entelinhas, deixando que o espectador agregue algo de si nessa história –, a sua esperança e sua crítica ao cinema atual podem ser percebidas nos seguintes trechos:

“(…) só me resta esperar que de cada plano emane, ou ao menos de cada cena, uma calma e uma leveza que possam distinguir este filme de um produto puramente comercial” 15 E também:

15. WENDERS, 2002:188 16. idem, 2002:187

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“Olhares e pensamentos não têm mais o direito de vagabundear. Não se pode acrescentar nada de seu, nenhum sentimento, nenhuma experiência. Sai-se grogue do cinema, com a impressão de que nos mentiram. Só os filmes que deixam um lugar às brechas entre as imagens contam uma história; esta é a minha convicção. Uma história não brota senão da cabeça do espectador ou ouvinte. Os outros filmes, esses sistemas fechados, apenas pretendem contar uma história. Eles seguem a receita da narração, mas os seus ingredientes não têm gosto algum” 16

Solà-Morales ressalta que devemos dar atenção à continuidade, mas não à continuidade como cidade planejada e abstrata, e sim obtê-la através da escuta atenta aos fluxos, energias e ritmos que o passar do tempo e a perda dos limites estabeleceram no local. Nos espaços da cidade, materializa-se uma fugaz relação do sujeito com o mundo ao seu redor. A velocidade com que as coisas acontecem e com que se produzem as mudanças na cidade causa um desamparo do indivíduo e perda de valores consistentes. Os vazios urbanos se identificam com o vazio e a angústia em conflito no interior do próprio homem.

“Estrangeiros em nossa própria pátria, estranhos em nossa cidade, o habitante da metrópole sente os espaços não dominados pela arquitetura como reflexo da sua própria insegurança, do seu vago deambu-


lar por espaços sem limites que, em sua posição externa ao sistema urbano, de poder, de atividade, constituem por sua vez uma expressão física do seu temor e insegurança, mas também uma expectativa do outro, do alternativo, do utópico, do porvir” 17 O “terrain-vague” é o local ideal para fazer emergir uma certa resistência e liberdade aos usos comuns da cidade, e costumam oferecer espaço para apropriações espontâneas, criativas e informais, que sejam meios alternativos de se experimentar a cidade, como nos movimentos de ocupação citados no capítulo 1.2. Nesta próxima citação, fica a grande missão que Wenders delega aos arquitetos de hoje:

“(…) não projetem apenas construções, criem também espaços livres que preservem o vazio, para que o cheio não nos obstrua a vista, espaços para o nosso descanso” 18

17. SOLÀ-MORALES, 2002:188 18. WENDERS, 2002:189


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3. área de projeto: o largo do arouche 3.1. o espaço público: definição de “largo” e a “praça brasileira” Um largo é toda e qualquer área urbana mais espaçosa do que as ruas que este intercepta. O largo seria a “praça brasileira”, por erro de nomenclatura, pois no Brasil não há distinção de nomencaltura entre canteiro, largo e praça. Tudo o que possui uma mínima área verde já é nomeado e considerado errôneamente de praça. Segundo Sun Alex, “a configuração do projeto da praça e a transformação

de tal lugar afetam diretamente o convívio social e, portanto, o exercício da cidadania” 19. Para ele, temos que resgatar o

significado urbanístico original das praças, configurando-as como tal. Um espaço público, que não é necessariamente uma praça, são espaços abertos da cidade, acessíveis à todas as pessoas. Devem ser espaços democráticos que manifestem a idéia de ser um lugar para todos. Para Paulo Cesar da Costa Gomes, “os atributos de um espaço público são aqueles que

têm relação com a vida pública (…) e, para que esse lugar opere uma atividade pública, é necessário que se estabelecer, em primeiro lugar, uma co-presença de indivíduos” 20, é um “espaço em que se processa a mistura social de diferentes segmentos, com diferentes expectativas e interesses, nutrem-se da copresença, ultrapassando suas diversidades concretas e transcendendo o particularismo, em uma prática recorrente da civilidade e do diálogo” 21. Enfim, essas áreas

19. ALEX, 2002:17 20. GOMES, 2002:163 21. idem, 2002:163

de caráter público são lugares da sociabilidade, da convivência mútua de vários interesses e de constantes trocas. O local físico onde isso acontece orienta tais atividades e pode guiar alguns comportamentos sociais, reafirmando o valor daquele espaço para a cidade. São paisagens participativas, onde as pessoas têm total poder de intervenção para reapropriar e têm relação direta com esses espaços. O Largo do Arouche, por sua vez, tem a condição de ser um espaço público, mas faltam-lhe muitas características para sê-lo por completo. É composto por várias “ilhas” viárias, espaços interticiais, sobras, que surgiram do traçado


fig. 23

Edifício-fortaleza em Higienópolis, São Paulo

Fonte: Google street view

mapa 01

Configuração do Largo do Arouche antes do plano de avenidas de Prestes Maia

Base: Sara Brasil, 1930


de vias trafegáveis e foram ainda mais fragmentadas depois do Plano de Avenidas de Prestes Maia. São várias “pracinhas” – à moda brasileira – subutilizadas, ou fragmentos que em sua maioria não são ocupados devido a vários fatores, por exemplo, por serem locais de difícil acesso aos pedestres, pelo fluxo intenso de carros ao redor, por não conterem espaços de sombra e descanso suficientes aos transeuntes e porque algumas partes são majoritariamente ocupadas por “respiros” do transporte subterrâneo. Esse espaço se compõe de vários “terrain vague” – recuperando um termo já discutido anteriormente – ou espaços vagos. São terrenos de caráter vago, podendo conter tanto áreas desocupadas como estacionamentos, edifícios subutilizados, galpões e depósitos, como edifícios altos servindo somente para a especulação imobiliária, ou simplesmente áreas sem uso nenhum, vazias mesmo, construtivamente dizendo. São primordialmente locais que não resgatam nada, nenhum sentimento, não conformam espaços interessantes e, acima de tudo, não devolvem algum sentido à cidade que pulsa ao redor deste terreno. Retoma-se a palavra “vazio” não no sentido de significar só um terreno abandonado, sem construção. Pelo contrário: as cidades estão cheias de terrenos muito bem ocupados e muitas vezes exageradamente ocupados. Mas esses são ocupados somente de forma física, pois se formos analisar o sentido que estes devolvem à cidade, não o encontramos. São fortalezas, contendo em si mesmo uma finalidade (fig. 23) que é a de negar a cidade ao seu redor, desconsiderá-la, mas essa atitude pode trazer consequências graves para nossas cidades e a nós mesmos como cidadãos e participantes da vida pública. No projeto em questão, pretende-se resgatar essas relações do edifício com a cidade que o rodeia de forma sutil. Mediante programas e formas de implantação pretendese sempre trabalhar com as conexões visuais e a mobilidade na escala e no olhar do pedestre que diariamente caminha por ali, além de tentar também resgatar a vitalidade de uma área que já está extremamente consolidada como o Centro de São Paulo, mas que mesmo assim, carece de um cuidado muito grande em qualquer intervenção. Este cuidado exige informação e estudo da área que é regada de muita história,


para não se fazer repetir os erros do passado; e também há de se ter cuidado em considerar que – mais do que qualquer outra região metropolitana – o Centro é um único corpo, enorme e complexo, e qualquer intervenção mal feita efeta todo esse conjunto. Mas, apesar do Centro ter a característica de ser o espaço mais importante da cidade, acredita-se que este possa ser bem maleável. É uma área que se caracteriza pela adaptabilidade de programas e sempre está se regenerando. Escolheu-se o Largo do Arouche por ser uma “ponta” do centro, ou uma das bordas onde vários discursos entram em conflito. É uma única região, separada em duas outras diferentes, e onde cada uma tende a um lado oposto. O Largo tem um aspecto bem residencial dentro de um Centro todo tomado por comércio e serviços e atividades temporárias, e o que acaba acontecendo ao se escolher uma região para intervir antes do esquema programático é a própria região ditar suas necessidades. Esta hora é quando o projeto já começa a ter vida própria, e assim segue por todo o processo. 3.2. o largo em dois setores diferenciados: duas faces de uma mesma cidade

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O Largo pode ser dividido em dois setores muito diferentes (ver mapa 02 e tabela 01): um primeiro que é conformado por uma praça maior – que fica à margem da Rua Vieira de Carvalho – e contém uma parcela considerável de área verde, árvores de grande porte e caminhos, espaços de sombra e locais de descanso (ainda que insuficientes) aos pedestres e abriga o tradicional Mercado da Flores. O seu entorno é caracterizado por edifícios residenciais, hotéis, a sede da Academia Paulista de Letras, restaurantes tradicionais como o “La Casserole” e o “Gato que Ri”, além de um comércio variado. Todas essas atividades conformam uma diversidade de usos nessa praça e, por este motivo, podemos dizer que ela “funciona” bem; o outro setor, se compõe basicamente pelas ilhas viárias que ficam à margem do Elevado Costa e Silva e são entrecortadas pela Av. Duque de Caxias, extremamente fragmentadas e sem usos definidos. O seu entorno é rodeado por comércio variado e essa


Mapa 02

Identificação de dois setores diferentes dentro de uma mesma área

Base: Alex, Sun.“O Projeto da Praça”, Ed. Senac, 2002

Mapa 03

Zoneamentos vigentes na área de projeto

Base: prefeitura.sp.gov.br


tabela 01

Zoneamentos vigentes na รกrea de projeto

Base: prefeitura.sp.gov.br


02 01

MAPA 04

Limite da Operação Urbana Centro (laranja), separando os quarteirões onde se localizam os terrenos de projeto (cinza)

Base: prefeitura.sp.gov.br

parte está desconexa visualmente do primeiro setor. Na proximidade com o Elevado, a deterioração do local se acentua, os resíduos que a área contêm são primordialmente locais de estacionamento, depósitos e galpões, e contêm um Terminal de ônibus logo abaixo do Elevado, configurando um espaço bastante movimentado durante o dia, mas pouco convidativo visualmente por ser bem degradado à noite. A não-relação entre essas duas partes do Largo do Arouche é tão nítida que se pode notar diferenças até mesmo na configuração do Zoneamento do Município de São Paulo (ver tabela 01). Enquanto o setor 01 é destinado a uma ZCP (Zona de Centralidade Polar), o outro lado é majoritariamente tomado por uma ZM (Zona Mista) de alta densidade e parte destinado a uma ZEIS-3 (Zona Especial de Interesse Social). Ou seja, isso afeta também o coeficiente de aproveitamento máximo, que no setor 02 é bem menor (2,50) que o setor 01 (4,00) e, ainda, este último pode chegar a 6,00 (somente se o programa do edifício for de caráter residencial ou hoteleiro) devido à Operação Urbana Centro (ver mapa 04) que também engloba a área, mas exclui o


setor 01 no limite com o Elevado Costa e Silva. Isso pode ser cla-ramente percebido se observarmos os gabaritos de ambos setores: no setor 01 há edifícios mais altos, comportando programas residenciais e hotéis em sua maioria. O gabarito dos mais altos varia entre 15 e 24 andares e, quanto mais perto da praça principal, maior a altura; no setor 02 predominam edifícios térreos ou de baixo gabarito, são estes galpões, armazéns, depósitos ou espaços vazios em sua maioria. A altura varia decrescendo de acordo com a proximidade com o Elevado. Por isso os edifícios do setor 01 carecem de altura, e aquela região chega a ser a mais degradada dentre as duas. Um dos objetivos principais do exercício de projeto é a conexão desses dois terrenos visualmente distintos, pretendendo costurar essas discrepâncias de forma harmoniosa, desconsiderando toda a segregação que observamos no zoneamento e nas visuais e tomando os dois terrenos como parte comum de uma mesma área, podemos visualizar melhor essas diferenças e ter um reconhecimento de área melhor nas fotos que são mostradas a seguir.

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fig. 24

Calçada alargada em frente ao terreno escolhido de projeto e ao “mercado das flores”, no setor 01

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

fig. 25

O “mercado das flores”, que abriga a floricultura “República Flores”, presente na Pça. do Largo do Arouche há quase 60 anos, no setor 01

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


fig. 26

Frontalidade do terreno escolhido: estacionamento e fachada do “La Casserole”, no setor 01

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

fig. 27

Proprietário atual da “República Flores”, Seu Toninho

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


fig. 28

As flores são o negócio da família Salgado há quase 70 anos, quando a floricultura ainda era na Praça da República, em 1943, mudando para o Largo do Arouche em 1953 Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


fig. 29

Estacionamentos, postos de gasolina, galpões ou territórios “vagos”, ocupam em sua maioria o setor 01, mais degradado pela proximidade com o minhocão Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

fig. 30

Avenida Duque de Caxias, na frontalidade com o terreno escolhido no setor 02, de esquina.

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


fig. 31 e 32

Vista da Avenida Duque de Caxias, desde o Elevado Costa e Silva. Destaque na dificuldade de circulação de pedestres pela movimentação constante de veículos, e a degradação por parte do setor 02 Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


3.3. APRESENTAÇÃO DO PROJETO



3.3.1 A QUESTÃO PROGRAMÁTICA O projeto começou com o estudo da área e o programa foi posterior, pois surgiu como uma resultante desse estudo e adaptou-se às necessidades e às pré-existências desse local. Inicialmente, foi feita uma análise dos terrenos “vagos” de uso na região do Largo do Arouche (mapa 06) e, levando em consideração o zoneamento vigente, foram escolhidos dois terrenos de intervenção: um na esquina frontal do quarteirão 02, e outro terreno que conecta a Av. Duque de Caxias com a praça principal do Largo do Arouche no quarteirão 01, frontais a essa esquina (mapa 05). A escolha foi condicionada por esses terrenos estarem em áreas distintas não só visualmente como também no próprio zoneamento, já antes comentado. Pretende-se propor um projeto de “costura” na paisagem urbana baseado em conexões e formação de uma nova paisagem dentro de um ambiente consolidado como o Centro de São Paulo. Foi proposital essa escolha também porque juntos esses terrenos formam conexões diretas por entre-quadras, podendo assim configurar quadras permeáveis de acesso exclusivo dos pedestres (mapa 07), e criam novos percursos, a exemplo das galerias comerciais do Centro de São Paulo, referências constantes em todo o processo de desenho do projeto.

02 01 MAPA 05

Usos atuais dos terrenos escolhidos para o projeto

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


02

01

MAPA 06

Croqui inicial: anรกlise de terrenos vagos no Largo do Arouche

MAPA 07

Croqui inicial: terrenos para intervir, destacando os percursos

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

02

01


O programa sempre foi pensado de forma que as atividades se interrelacionassem, por exemplo, que todas pudessem buscar nas outras uma relação programática, mesmo que indireta. As atividades giram em torno de três formas de uso e ocupação do solo básicas: 01) atividade de caráter social (habitação); 02) atividade de caráter cultural (biblioteca); 03) atividades de caráter comercial e de serviços (salas de escritórios, restaurante e mercado);

DIAGRAMA 01

Relações diretas e indiretas entre os programas propostos no exercício de projeto

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

Como já foi comentado, o programa se “aproveitou” de pré-existências da região, atividades que já estavam estabelecidas e que funcionam e se articulam bem naquela área. A habitação é uma delas: sendo um uso já estabelecido no Largo do Arouche – uma “ponta” do Centro que contém um caráter bem mais local e residencial do que em outras partes, que se ocupam mais de atividades comerciais e de serviço – o uso residencial pode também trazer um maior adensamento para o Centro, fazendo com que maior número de pessoas vivam e realizem atividades diárias naquele local, retomando a parte central da cidade como espaço articulador. A atividade cultural, como a biblioteca que se localiza nos pisos inferiores do edifício residencial (ver implantação), foi pensada como uma “âncora” que atraísse um maior número de leitores e se apresentasse como um quarto ponto de apoio para acervo e atividades culturais entre as bibliotecas públicas que existem hoje no Centro, muito 74 | 75


01 02

03

IMPLANTAÇÃO (s/ esc.) 01) Edifício Residencial + Biblioteca 02) Edifício Escritórios 03) Edifício Mercado + Restaurante (ampliação nos anexos finais) Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

DETALHE 01 (s/ esc.) Entrada do edifício de escritórios, a qual se desenvolve como passagem entre a Av. Duque de Caxias e a Pça do Largo do Arouche. (ampliação nos anexos finais) Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


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MAPA 08

“Quadrilátero da leitura”: 01) Biblioteca do Arouche (proposta) 02) Ponto de leitura da Galeria Olido 03) Biblioteca Mário de Andrade 04) Biblioteca Monteiro Lobato Base: Google Earth

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próximas do terreno em questão. São elas: a Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação; a Biblioteca Monteiro Lobato, na Rua General Jardim e o ponto de leitura que existe dentro da Galeria Olido, na Av. São João. Todos esses pontos juntos formariam o proposto “quadrilátero da leitura” (ver mapa 08). Outra questão é o edifício de escritórios, que comporta exclusivamente salas comerciais, podendo servir a uma ou mais empresas, mas que contenham uma recepção em comum. Este edifício se articula no espaço entre dois edifícios existentes de gabarito mais alto, e se desenvolve acima da passagem principal por entre-quadra que vai conformar o percurso por entre os acessos da Av. Duque de


Caxias e a praça principal do Largo do Arouche (ver detalhe 01). Enquanto se estudava a área, o Restaurante La Casserole surgiu como uma questão importante a se tratar. Ele se localiza bem ao meio do terreno onde se propôs o Mercado (ver mapa 05), assim aproveitou-se do fato e a sua localização privilegiada foi mantida e o programa do restaurante foi incorporado ao projeto, para revitalizá-lo e recriar a condição de pólo gastronômico que um dia foi a região do Largo do Arouche. O edifício onde está o Restaurante atualmente não possui um valor histórico e também não é tombado como patrimônio histórico do Município. É uma casa pequena, térrea, que não se destaca visualmente (fig. 33, 34 e 35), e ainda não se abre à praça que se localiza logo à frente. O Restaurante exalta-se por estar à frente de um dos locais mais charmosos da cidade, o Mercado das Flores, mas tão pouco se abre ao Largo e permite que seus frequentadores tenham uma experiência direta com este lugar. Seus clientes chegam em seus automóveis, em sua maioria, e dessa mesma maneira vão embora, sem muito participar e experimentar aquela paisagem tão interessante da praça com seus altos edifícios rodeando-a e demarcando-a, criando naquele local um ambiente que vibra e pede para ser melhor utilizado, melhor “visto”. Pensando por outro lado, o Restaurante pode atuar como um patrimônio “imaterial” da cidade, no qual este não se destaca pelo seu edifício pois ele não tem muito valor, arquitetônicamente dizendo. Mas o que interessa é o local aonde ele se encontra – no Largo do Arouche em frente ao Mercado das Flores, exatamente – e também a atividade que exerce, sua gastronomia famosa há mais de 60 anos. Por esses motivos foi resolvido manter este uso já significativo e que representa a identidade daquele local, e abri-lo à praça que pede por essa vivência, em toda sua extensão, criando um contato visual direto entre ambos. A respeito dos outros terrenos, menos polêmicos que esse, o objetivo era ocupá-los por serem inicialmente “vagos” – palavra que denota tanto terrenos vazios de ocupação ou vazios de usos eficazes e apropriados para a cidade – por serem esses, em sua maioria, estacionamentos, postos de gasolina ou fundos de lote. São terrenos geralmente sub-utilizados.


fig. 33, 34 e 35

Fotos laterais e frontal do estado atual do “La Casserole�, no Largo do Arouche

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012


O Restaurante está naquele local desde 1954, em frente à praça e ao Mercado das Flores. O objetivo dessa relocação do mesmo é tentar abri-lo mais à essa praça, elevando-o alguns pisos acima do solo, melhorar seu espaço e cozinha e poder aliar o seu programa a outras atividades relacionadas à gastronomia, como o Mercado que se organiza nos pisos abaixo (ver detalhe 02). A presença desse Mercado é importante porque, além de apoiar as atividades do Restaurante e fornecer alimentos frescos, ele conforma um ambiente de troca não só de mercadorias, mas de experiências – é o local onde se desenvolve o convívio social. Esse mercado resulta de uma idéia e necessidade de se ocupar os espaços mais publicamente. Por mais que este seja um edifício privado, não significa que deva se comportar como tal, nas horas em que este é aberto ao público que seja de maneira democrática, permitindo a circulação livre de pessoas, criando um espaço semi-público ativo, onde pessoas de diferentes etnias, culturas e poder aquisitivo possam

01 02 02 02 DETALHE 02

Edifício Mercado + Restaurante 01) 02) 03) 04)

Pavimento Restaurante Pavimento Mercado Pavimento Acessos Estacinamentos

(ampliação nos anexos finais) Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012

03 04 04 04

p r a ç a


frequentá-lo confortavelmente em harmonia. Antigamente, a exemplo dos Bazares árabes, dos “marchés” franceses e, ainda mais, das ágoras gregas, os mercados eram considerados os verdadeiros centros-cívicos, locais onde se exercia a vida pública. O mercado não é só lugar do comércio, ele ajuda a conectar e fazer crescer economias rurais e urbanas, encoraja este desenvolvimento atuando como âncoras no comércio da região e apoia produtos de origem local, criando um senso de comunidade. É um “antídoto” aos espaços fechados que estamos constantemente submetidos dia-adia, como comentado anteriormente no Cap. 01. Todos esses programas foram pensados então de maneira a melhorar esse convívio social, em expandir os espaços da cidade para dentro do próprio edifício, tornando-o coletivo, e fazendo-o conectar esses usos mediante passarelas, facilitando o deambular dos passantes além de permiti-los ter um novo olhar sobre aquela paisagem da cidade, que é o Largo do Arouche. E fazer o próprio edifício atuar como transformador da paisagem, ou da maneira como as pessoas percebem aquela paisagem.

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fig. 36, 37 e 38

Borough Market, Londres

Fonte: Autora, arquivo pessoal, 2012 e www.boroughmarket.org.uk


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4. referência PARA O projeto 4.1. galerias no centro de são paulo: os percursos na cidade consolidada As galerias que se localizam no Centro de São Paulo foram utilizadas diretamente como referências neste projeto. O tema das conexões e permeabilidade do terreno foi constante durante todo o processo desde o início do projeto até a sua conclusão, e as galerias são representações de toda essa idéia das travessias os percursos no “olhar” do pedestre. Juntas ela conformam esses percursos de ligação, sendo propositais ou não, mas são alternativas ao passo do pedestre porque formam caminhos longe do espaço dos automóveis, deixando que o pedestre deambule por seus pensamentos e passos, sem ser “ameaçado” pelo veículo motorizado, além de oferecerem alguma cobertura para o abrigo, dependendo do clima afora. Essas galerias são espaços semi-públicos, ou seja, pertencem à algo ou alguém, mas são espaços que se “doam” à cidade, são coletivos, e fazem parte dela mesmo que por um certo período. Abertas às pessoas em geral, as barreiras entre o que é público e o que é privado não são muito bem definidas. Herman Hertzberger, em “Lições de arquitetura, conceitua o que é uma galeria:

“(...) o conceito de galeria contém o princípio de um novo sistema de acesso no qual a fronteira entre o público e o privado é deslocada e, portanto, parcialmente abolida; em que, pelo menos do ponto de vista espacial, o domínio privado se torna publicamente mais acessível” 22 22. HERTZBERGER, 1999:77

Essas galerias não são simplesmente espaços de passagem e conexão, mas principalmente de encontros e trocas. São um local onde se pode reproduzir as relações sociais dentro da cidade, assim como todo e qualquer espaço público, mas que conta com o fato delas se apoiarem no comércio, o qual instiga e complementa esse exercício social mesmo que não se compre nada passando por ali. Nesse mesmo aspecto podemos destacar as feiras-livres e


23. MACHADO, 2008

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os mercados, já comentados anteriormente, e que são situações que acontecem também em espaços públicos ou semi-públicos e nos quais as relações sociais também são latentes. Antigamente os bazares árabes e os antigos “marchés” parisienses eram, antes de tudo, lugares do encontro social e depois exerciam a função do comércio. Segundo Joana Sarue Machado, a revolução industrial suscitou muitas mudanças nessas relações comerciais23. Desde então a população passou a ter acesso direto às mercadorias, e o comércio passou a se realizar em locais cada vez mais fechados. Hoje, vemos uma profusão de shoppings centers, espaços completamentes fechados e que ainda têm o “apoio” da mídia neste delírio consumista. Mas antes disso, as relações comerciais passaram a se realizar no espaço das galerias. Estas são um meio-termo entre o comércio em local aberto e em local fechado. Podemos dizer que as galerias ainda tentam resgatar aspectos sociais porque se desenvolvem em um espaço urbano e se relacionam de forma aberta com a cidade, ao contrário dos shopping centers, que negam essa mesma cidade. Em São Paulo, as galerias só se estabeleceram no Centro no século XX, com o mesmo intuito que surgiram em Paris no início do século XIX: a de servirem como um aumento de áreas rentáveis de um edifício, de permitirem um melhor aproveitamento do solo e ainda garantirem um uso público em troca de potencial construtivo. Como exemplo, temos a maioria das galerias do Centro Novo, que se desenvolveram nesse âmbito. A Galeria Olido é uma delas (fig. 38, 39 e 40), e foi restaurada recentemente, em 2004. Hoje segue com as atividades comerciais no térreo e possui o cinema restaurado além de salas para exposição, teatro e ensaios. São Paulo iniciou um processo de verticalização em meados de 1910, culminando em 1950 com a construção dessas galerias no Centro Novo. Essa nova parte do Centro que se desenvolvia no além Anhangabaú, contava com um comércio que se desenvolveu em torno do luxo. O local era o pólo da elite paulistana em 1950, com os cinemas glamurosos, as lojas de luxo, o sentido de “ver e ser visto”. Tudo se concentrava primordialmente na R. Barão de Itapeti-


fig. 39, 40 e 41

Galeria Olido, S達o Paulo

Fonte: Google Strret View e arquivo pessoal, 2012


Mapa 09

Galerias na R. Barão de Itapetininga, São Paulo 1) 2) 3) 4) 5) 6)

Galeria Itapetininga Galeria Califórnia Galeria Lousã Galeria Nova Barão Casa Guatapará Galeria R. Monteiro

Base: Google Earth

Mapa 10

Concentração das Galerias no quadrilátero de praças: A) Praça B) Praça Gaspar C) Praça D) Largo

da República Dom José Ramos do Paissandú

Base: Google Earth


ninga, onde hoje ainda existem seis galerias que datam dessa época: Galeria Nova Barão, Galeria Itapetininga, Galeria Califórnia, Galeria Lousã, Casa Guatapará e Galeria R. Monteiro (mapa 09). E a maioria das galerias do Centro Novo se concentram no quadrilátero entre a Praça da República, a Praça Dom José Gaspar, a Praça Ramos e o Largo do Paissandú, locais públicos permeados por estas galerias (mapa 10). “Ao caminhar pela cidade, cruzam-se fronteiras, atravessam-se territórios interpenetrados. O trajeto efetivamente percorrido (com afetividade) no chão é diverso daquele que se percebe num sobrevôo (...), quando se mira do alto de algum ponto seguro. Os passos do caminhante atento não costuram simplesmente, uns aos outros, pontos desconexos e aleatórios da paisagem. Ele se arrisca, cruzando umbrais, e, assim fazendo, ordena diferenças, constrói sentidos, posiciona-se.” 24 Essa frase de Arantes discorre exatamente o que é caminhar por uma cidade com um andar despreocupado, desvendando suas paisagens, entrando em locais antes desconhecidos, fazendo relações e conexões visuais, criando narrativas a partir daquilo que nos oferecem e arriscando os passos, construindo sentidos. As galerias servem de suporte a esse “caminhar”, sem se preocupar em chegar a um ponto final, e sim em descobrir a cidade que nos rodeia. Hoje, o uso das galerias está um pouco distante do que foi proposto nas suas configurações originais. Com a decadência do Centro de São Paulo houve também a degradação do comércio de luxo na região, e o mesmo migrou para espaços fechados como os shopping centers, procurando uma maior segurança mas igualmente segregando-se do espaço urbano. Hoje, as galerias se adaptaram à nova configuração do Centro, com comércio mais variado e popular e muitas delas se especializaram em um só tipo de comércio ou atividade. Mas o importante é que elas ainda mantêm a configuração de passagem, e cumprem o papel de “diluir” as barreiras entre um espaço público e outro privado tornando-se espaços permeáveis ao passo do pedestre para poder criar as suas travessias e percursos por dentro da cidade consolidada.

24. ARANTES NETO, 2000:119


fig. 42

Galeria Itapetininga, São Paulo Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2012

fig. 43

Casa Guatapará, São Paulo Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2012

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fig. 44

Grandes Galerias, S達o Paulo Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2012

fig. 45

Galeria Nova Bar達o, S達o Paulo Fonte: Autora, fotografia de arquivo pessoal, 2012


O vermelho invade e guia o olhar, surpreende, exalta, e vai em direção ao Largo ali fora aonde se encontra uma Igreja, aonde milhões de pessoas esperam suas conduções apressadas... Mas a vista desse edifício, tão aberto, tão convidativo à entrada e ao desfrute, acaba por tornar essa espera menos longa. O passeio dos pedestres, a vida diária que se expressa ali todo dia enche os olhares de quem espera, distrai, diverte. A travessia, o percurso, são tão necessários à vida quanto o próprio ar. Temos que nos esquecer dos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares, como dizia um poeta: “é o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

25. ANDRADE, Fernando Teixeira In: “O medo: o maior gigante da alma”. s/data

Fonte: Autora, fotografia de

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arquivo pessoal, 2012



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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diluir barreiras, criar percursos, mudar olhares, costurar paisagens, alterar hábitos. Diluir olhares, criar paisagens, mudar hábitos, costurar barreiras, alterar percursos. Não importa a ordem, o projeto de arquitetura está dentro de um organismo em constante modificação, que é a cidade, e este influi certamente na paisagem. Através dele, paisagens serão modificadas, percepções alteradas e, por esse motivo, há de se ter certa delicadeza em propor algo. Dentro da ánalise que foi feita durante esse estudo, propõe-se ter um novo olhar sobre todos os cantos da cidade. Vamos nos fingir de estrangeiros, como se nada conhecêssemos, como se tivéssemos pousado em uma cidade totalmente desconhecida e fizéssemos uma releitura de tudo o que vimos, imaginando ser talvez Caetano, um baiano “qualquer”, a chegar de um outro sonho “feliz-de-cidade” direto no duro e quase poético concreto dessas esquinas paulistas. Vamos tentar nos desvencilhar de todos os pré-conceitos que já temos, de tudo aquilo que já possuímos alguma opinião formada, descontruí-las para poder acessar a campos visuais e paisagens antes inacessíveis aos nossos olhares. Propõe-se trabalhar com as reticências da cidade, continuando voluntariamente aquilo que já nos é proposto, trabalhando com as ferramentas que a cidade já nos dá. Está tudo ali, é só saber ver. Como se houvesse um trecho de uma música em aberto, e continuássemos a cantar: “alguma

coisa acontece no meu coração...”


Três peças de um quebra-cabeça, que se encaixam, que moldam uma vista surpreentemente nova naqueles espaços que não serviam de nada à cidade. A paisagem muda, se enriquece, surgem novos passantes que em pouco se tornarão frequentadores. Surgem cores, novas texturas, histórias, fatos. O cenário é outro: passagens protegem seus passantes e permitem um novo olhar àquela velha paisagem. Nova percepção do espaço, novos ares, mas tudo partindo do existente, daquilo que o local já pedia e pulsava surdamente em meio ao bombardeio diário de informações e imagens desnecessárias. Visto de cima, os edifícios se ligam, é clara a sua relação. Vistos de baixo, ao olhar do pedestre, nos resta entrar e descobri-los, desvendá-los, ver o que as conexões nos sugerem e o modo como mudam os pontos de vista e os olhares já acostumados.

Fonte: Autora, imagens de

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arquivo pessoal, 2012



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“... Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que, partindo dali,

construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta” CALVINO,Ítalo. Cidades Invisíveis Companhia das Letras – São Paulo, 1990 p. 149


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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS E TESES: _ALEIXO, Cynthia Augusta Poleto. Edifícios e galerias comer-

ciais: aquitetura e comércio na cidade de São Paulo, anos 50 e 60. Disssertação de Mestrado - Escola de Engenharia de

São Carlos da Universidade de São Paulo. São Carlos, 2005. _ALEX, Sun. O projeto da praça. São Paulo: Ed. Senac, 2002. _ARANTES NETO, Antonio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. _ASCHER, François. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Coleção RG Bolso, Romano Guerra; 1a edição, 2010. _CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. _DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Editora Contraponto, 1997. _GEHL, Jan. Cities for people. New York: Island Press, 2010. _GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano: la vida social entre los edifícios. Ed. Reverte, 2006. _GOMES, Paulo César da Costa. A condição Urbana: ensaios da geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2002. _HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Coleção Face Norte, Cosac Naify, 2008. _KOOLHAAS, Rem. La ciudad generica. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2000. _LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _MACHADO, Joana Sarue. O lugar das galerias do Centro de São Paulo – Relações entre espaço público e privado. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2008.


_MEYER, Regina Maria Prosperi. Org. Os centros das metrópoles. São Paulo: Editora Terceiro Nome. Imprensa Oficial do

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arte na paisagem urbana contemporânea: manifestações na cidade de São Paulo. Dissertação (Doutorado em Arquitetura

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