Revista Maracajá - 4ª Edição

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VOL. 4 | nº 4 Maio de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373

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Realização:


FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

04 06 07 ARTIGO

FLORES DE AÇUCENA

CHAPULETADAS

Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos

Ode ao Amor do Mar

Alba Valdez: em sonho e realidade

Barros Pinho

Charles Ribeiro Pinheiro

Minha Terra

Lílian Martins

Caio Porfírio Carneiro

Dia da libertação Invenção (in memoriam)

11 12 15 GENTE ILUSTRADA

CRISTALEIRA

RADIADORA

Weaver Lima

Franklin Nascimento: a história de uma biografia perdida

Bruno Paulino Ricardo Kelmer Juliana Guedes João Bosco Ribeiro Raymundo Netto Milena Bandeira Marcello Camelo Henrique Beltrão Daniel Glaydson Ribeiro

MALA DE ROMANCES

TIRAGOSTOS

Inocêncio de Melo Filho

O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro

Raymundo Netto

Íris Cavalcante

Daniel Brandão

Dércio Braúna

Leni Chaves

Gylmar Chaves

Klévisson Viana

Artista da capa

Renato Pessoa

Rafael Limaverde

Carlos Nóbrega Alves de Aquino Luan Brito de Azevedo

Para ler todas as edições da revista Maracajá e assistir a todas as suas videoentrevistas, acesse:

fdr.org.br/maracaja 2

Raymundo Netto gerente editorial e de projetos Emanuela Fernandes análise de projetos MARACAJÁ

Emanuela Fernandes assistência editorial

Nilto Maciel

23 24

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Caetano Ximenes Aragão

Raymundo Netto

João Dummar Neto presidência

Charles Ribeiro, Lílian Martins, Weaver Lima, Lene Chaves, Daniel Brandão e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”) Rafael Limaverde ilustrações Amaurício Cortez editor de design Giselle Fernandes projeto gráfico Amaurício Cortez Welton Travassos editoração eletrônica Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores. Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018. ISSN 2596-1373 Todos os direitos desta edição reservados à:

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Do Alpendre

O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará. O mar não se tinge de vermelho porque o sangue do Ceará é azul

L

eitores, amigos e amigas dessas aventuras maracajás, bem-vindos e bem-vindas. Como nas demais edições, trazemos uma parte, apenas, da produção da literatura pintada no cenário cearense. Dela, extraímos contos, poesias e artigos, sempre no

esforço de traçar a diversidade e a pluralidade estética e/ou temática, seja de autores reconhecidos (vivos ou não), assim como a de iniciantes.

O Rio Jaguaribe é uma artéria aberta (Demócrito Rocha – assinando “Antônio Garrido” – para Maracajá nº 1)

A “Mala de Romances” volta nessa edição com Klévisson Viana. Alba Valdez, primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras é o tema da “Chapuletadas”, por Lílian Martins. “A História de uma Biografia Perdida” deita na “Cristaleira” Franklin Nascimento, um dos autores de O Canto Novo da Raça, obra inaugural do Modernismo no Ceará, e de Maracajá. “Gente Ilustrada” tem como protagonista do mês, Weaver Lima, artista plástico, quadrinista e fanzineiro. O pesquisador Charles Ribeiro, nos 190 anos de José de Alencar, fala um pouco sobre o famigerado e polêmico debate jornalístico entre Alencar e Joaquim Nabuco. Na videoentrevista do mês, Daniel Brandão, jornalista, professor e quadrinista, autor de “Os Mundos de Liz”, tiras diárias publicadas em O POVO, e colaborador deste suplemento. A Maracajá é terreno vasto e pertence a todos que dela se apropriarem. Abanquemse e a devorem! Raymundo Netto Curador e editor de Maracajá

3


Artigo

Alencar e Nabuco: dois polemistas e cavalos

U 4

ma das mais instigan-

que passou uma longa estadia na França e, para se afirmar

tes polêmicas da litera-

como novo escritor, imprescindível era demolir o “gigante”.

tura brasileira ocorreu

Nabuco iniciou a série de ataques com a coluna “Aos do-

entre José de Alencar e

mingos”, no dia 3 de outubro de 1875, com o intuito de “fazer

Joaquim Nabuco.

um minucioso exame da obra literária de Alencar”. Com a

O mote da briga foi a repercussão negativa da peça O

repercussão do texto, revelou sua identidade e escreveu mais

jesuíta, escrita por Alencar em 1860, somente encenada em

sete artigos. Impetuosamente, acusou o autor de Iracema de

1875. O espetáculo atraiu pouco público ao Teatro São Luís, no

estar em decadência literária; de ser um escritor de gabinete

Rio de Janeiro, saindo de cartaz após a terceira apresentação.

que “desconhecia” as paisagens brasileiras que pintava; de en-

Com esse fracasso, a polêmica se instaurou quando Nabuco,

tregar um livro mais falso do que outro e de só ter sucesso na

anonimamente, escreveu um texto ácido contra a peça no

imprensa, pois coagia os jornalistas com seu prestígio político.

jornal O Globo. Esse confronto verbal é significativo para ob-

José de Alencar, aborrecido com as críticas, defendeu a

servamos a tensão na construção da tradição literária brasi-

sua peça e, ao descobrir a identidade do seu algoz, seguiu es-

leira, pois Alencar já era considerado o “chefe da literatura

crevendo mais artigos irritadiços no mesmo jornal. A troca de

nacional”, segundo Afrânio Coutinho. O desafiador, Joaquim

desaforos se estendeu por três meses: Nabuco, aos domingos,

Nabuco, era jovem aristocrata, filho de um senador imperial,

e Alencar, às quintas.


Artigo O mais interessante dessa polêmica

o irrelevante “Sr. J. Nabuco” não pas-

é a comparação entre escritores e cavalei-

sava de um dr. Fausto montado em

ros, por Nabuco. Ele comparou a ativida-

um cabo de vassoura, “a cavalgar por

de literária a uma corrida e a obra de cada

esses ares a fora, levando por pajem

autor a um cavalo, tendo como hipódro-

um Mefistófeles, bom diabo, fanfar-

mo principal, o Rio de Janeiro.

rão, mas inofensivo”. Anos depois, no livro Minha

mo, cujo prêmio era a “popularidade”

Formação, Joaquim Nabuco reconhe-

entre os leitores, citou vários corredores

ceu ter sido bastante audacioso e ima-

como Gonçalves de Magalhães, Sales

turo em tentar demolir José de Alencar,

Torres Homem, Porto Alegre, Pereira

que também tinha uma face prepo-

da Silva, contudo, declarou que o “jo-

tente. Os dois foram intelectuais que

ckey do Guarani” se encontrava muito

contribuíram inestimavelmente para

adiantado e o único que lhe estava pró-

a cultura brasileira, porém o embate

ximo era Joaquim Manuel de Macedo.

verbal estampado nos jornais nos reve-

Na metáfora do crítico, os cavalos de

la que nem tudo são flores em relação

Alencar foram vencedores porque,

à Literatura, constituindo-se também

além do público ser diminuto, os concorrentes fraquíssimos. Em contrapartida, Alencar com a missão de “arrancá-lo do êxtase em que vive como um narciso namorado de si” usou vários epítetos para desqualificá-lo como escritor, taxando-o de “folhetinista parisiense”, “tribuno gorado”, “macaqueador da língua francesa” e, para ser alvo constante da atenção pública, seus textos nos jornais serviam como um “tônico” ao “orgasmo de vaidade” que impacientemente cultivava. Sobre

a

metáfora

suscitada,

Alencar como “jockey” afirma que se sua Carta sobre Confederação dos Tamoios foi uma égua voraz, enquanto

Na metáfora do crítico, os cavalos de Alencar foram vencedores porque, além do público ser diminuto, os concorrentes fraquíssimos.

No concorrido turfe do romantis-

num minado espaço de concorrência. No afã de vituperar um contra o outro, os escritores se comportaram mais como cavalos do que cavaleiros. Charles Ribeiro Pinheiro zefiro_cr@hotmail.com Professor de Literatura, com doutorado em Literatura comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com a tese “Rodolfo Teófilo polemista: a crítica polêmica como estratégia de glorificação literária” (Capes). Foi coordenador do projeto de extensão “O entre-lugar na Literatura cearense” (UFC), além de atuar como revisor, redator, roteirista e autor de livros didáticos de literatura.

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Flores de Açucena

Ode ao Amor do Mar

Minha Terra

Dia da libertação

Invenção

Gosto do mar

querida com laço de fita

pelas vertentes da noite

desesperado, resolvi inventar-te.

pelo absurdo

eu rimaria sem pressa.

a manhã já se fazia

Hoje duvido se eras desse jeito

sensual

A minha terra é áspera

quando Iansã abriu as grades

e se de fato és, no todo ou em parte.

de suas sereias

é tempo que se prolonga

das cadeias da Bahia

desde avoengos tropéis

pra ver Bárbara passar

De tanto não te ver, nunca te ver,

pelo encrespar

que o sopro do vento não mata

por dentro da luz do dia

ou por sumires tão furtivamente,

do vento

em espaço tão corrido

ou minha sorte bem mesquinha ser,

no ventre

ao embalo desta rede.

dia pleno de orixás

achei por bem criar-te novamente.

de peixes

Meu pé borrando a parede

cavalgando a ventania

abomináveis

e o ranger dos armadores

ogun oxum olorun

Quem mais existe? Qual mais delas noto?

pra cá pra lá

vento alvo alvenaria

Talvez a que me fez seu criador,

pelo lésbico

pra lá pra cá

de cabelos cor de cal

talvez a que me fez versejador.

despudor

marca o tempo presente

que de seu rosto escorria

das ondas

tic-tac ao correr do tempo

Não sei a quem amor eu mais devoto:

violentando

que firma o mourão na terra

do corpo dos encantados

se a ti que foges − minha inspiração,

as águas

e com ela perpetua

a noite se fez em dia

se a ti que chegas − minha criação.

currais porteiras campos

tocaram todos os sinos

gosto do mar

espelhos de águas tranquilas

das igrejas da Bahia

Nilto Maciel

absorvendo

paredes buscando os céus

pra ver Bárbara passar

(in memoriam)

sol

pé direito oito metros

por dentro da luz do dia

na máscara

janelas portas rangentes

de bronze

alpendre aberto aos caminhos

dos pescadores

retratos que fitam austeros

Minha terra

esperam muito de mim gosto do mar

e me eternizam aqui

mistério azul

na argila deste chão.

das mulheres-marinhas visivelmente estranguladas gosto do mar concupiscente e paradoxal em seus horrores. Barros Pinho

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Caio Porfírio Carneiro

Caetano Ximenes Aragão

De tanto não te ver, aflito o peito,


Chapuletadas

Alba Valdez:

em sonho e realidade

Q

uando o assunto é a presença feminina nas academias literárias no país, muito se fala sobre Rachel de Queiroz (1910-2003), a primeira mu-

lher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas este aparente pioneirismo não nos deveria ser um motivo de orgulho e, sim, de vergonha! Pensar que somente em 1977 permitiram que uma mulher pudesse ocupar o espaço de poder1 da mais prestigiosa academia literária nacional é, para 1

A expressão vem dos postulados teóricos de Pierre Bourdieu sobre os campos de produção cultural (intelectual, científica e artística) e as suas relações de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, em que permeiam todas as relações humanas, em toda parte do espaço social.

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Neste sentido, apesar da relevância da romancista de O Quinze, poucos saberiam dizer qualquer fato a mais sobre a presença dela e de quaisquer outras mulheres nas academias e agremiações literárias no Brasil.

Chapuletadas 8

nós brasileiros, um advento tardio

Letras (1894). Pois bem, esta mulher foi

frente a todas as demais mulheres

Alba Valdez (1874-1962), e é para ela e

escritoras que a antecederam e que

a todas as mulheres silenciadas e avil-

muito contribuíram para as letras

tadas em seus trabalhos, relegadas à

nacionais, até mesmo para a própria

invisibilidade do esquecimento biblio-

edificação do projeto artístico-literá-

gráfico, a quem dedico este artigo.

rio da ABL como, por exemplo, Júlia Lopes de Almeida (1862 - 1934). Neste sentido, apesar da relevân-

Nascida

Maria

Rodrigues

Peixe, no sítio Espírito Santo, em São Francisco

de

Uruburetama,

atual

cia da romancista de O Quinze, poucos

Itapajé, a 12 de dezembro de 1874, ado-

saberiam dizer qualquer fato a mais

taria mais tarde, com o intuito de que

sobre a presença dela e de quaisquer

os pais não soubessem de seu ofício de

outras mulheres nas academias e agre-

escritora, o pseudônimo “Alba Valdez”.

miações literárias no Brasil. Bem pou-

“Alba” em homenagem a sua gran-

cos, ainda, saberiam informar quem

de amiga, Alba Pompeu (1878 - 1949),

teria sido a primeira escritora cearense a ingressar na primeira academia de letras no país, a Academia Cearense de


Chapuletadas

filha de Thomaz Pompeu (1852-1929). O sobrenome “Valdez” foi retirado do antigo Dicionário Valdez da Língua Portuguesa. Em 1877, seus pais passaram a residir em Fortaleza, devido à mou-se professora pela Escola Normal

uma publicação impressa no Ceará e é

e, em 1922, ingressou na Academia

o resultado de uma seleção feita pela

Cearense de Letras. Infelizmente, em

própria autora dos seus textos publi-

1930, a ACL passou por uma reestru-

cados no Diário do Ceará. Além de crô-

turação e, nela, o seu nome foi retira-

nicas, a obra contém também contos e

do da composição da entidade, retor-

alguns deles ganharam tradução para

nando somente em 1937, quando sob

o sueco, pelo poeta Göran Björkman

nova reestruturação. O triste episódio

(1860-1923) e para o francês, sendo o

rendeu um dos artigos mais belos es-

seu conto “A Carta” publicado no jor-

crito pela escritora, intitulado “De pé”,

nal Le Matin, de Paris.

publicado no Jornal do Comércio, de Fortaleza, em 22 de maio de 1930.

Em 2017, o livro ganhou segunda edição para a Coleção Clássicos

Além da ACL, Alba Valdez per-

Cearenses, publicado pelas Edições

tenceu ao Centro Literário, Instituto

Demócrito Rocha. Ironicamente, a

do Ceará, Boêmia Literária, Iracema

nova edição ganhou prefácio da escri-

Literária e à Ala Feminina da Casa de

tora Ângela Gutiérrez (1945), que se

Juvenal Galeno. Seu primeiro livro,

tornaria, posteriormente, a primeira

Em Sonho... Fantasias foi publicado, em

mulher a presidir a ACL. Seis anos de-

1901, quando tinha apenas 26 anos.

pois da sua estreia na literatura, Alba

A obra marca também o primeiro re-

Valdez publicou Dias de Luz, recor-

gistro literário do gênero crônica em

dações da adolescência, obra até hoje ainda não reeditada. O pioneirismo da escritora não foi somente na literatura, mas também nas áreas da educação e do jornalismo, nas quais colaborou escrevendo para jornais e revistas em Fortaleza e em outras cidades do Brasil.

Em 2017, o livro ganhou segunda edição para a Coleção Clássicos Cearenses, publicado pelas Edições Demócrito Rocha.

grande seca daquele ano. Em 1889, for-

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Chapuletadas

É uma das fundadoras e presidenta da Liga Feminista Cearense (1904), onde lutou pela emancipação feminina e pelo direito ao voto

É uma das fundadoras e presi-

Lílian Martins

denta da Liga Feminista Cearense

lilianabreu_mar t ins@yahoo.com.br

(1904), onde lutou pela emancipação

Jornalista, tradutora, professora, pes-

feminina e pelo direito ao voto, e há

quisadora e militante em Literatura

quem diga que ela serviu até de inspi-

Cearense.

ração ao pintor Raimundo Cela (1890-

Comparada pela UFC com a disser-

1954) para a imagem feminina da

tação vencedora do Prêmio Bolsa de

Liberdade no célebre painel “Abolição

Fomento à Literatura da Fundação

dos Escravos”, de 1938, fato lembra-

Biblioteca Nacional e Ministério da

do no discurso de posse de Eduardo

Cultura (2015) e do Edital de Incentivo

Campos (1923-2007), na ACL, em

às Artes da Secretaria de Cultura de

1963, na cadeira de número 22, antes

Fortaleza (Secultfor) em 2016. Desde

pertencido a Alba Valdez.

2008, apresenta e produz o programa

Mestre

em

Literatura

A história surpreendente de Alba

literário semanal Autores e Ideias da

Valdez, marcada pela luta em defesa

Rádio FM Assembleia (96,7 MHz) da

dos direitos da mulher, nos encoraja a

Assembleia Legislativa do Estado do

seguir adiante, pois onde mais r-exis-

Ceará. Escreve, mensalmente, sobre

tam “mulheres que, como eu, moure-

música e literatura para a coluna: “Ao

jam na seara das letras” persistiremos

pé do ouvido: Baladas para Leitores”

na luta, lembrando que ninguém solta

do Blog Leituras da Bel, vinculado ao

a mão de ninguém!

Portal O POVO Online.

2

2

Trecho do artigo “De pé” de Alba Valdez.

Para conhecer mais de Alba Valdez Em Sonho... Fantasias, de Alba Valdez (EDR), Coleção Clássicos Cearenses O livro pode ser adquirido na Livraria Dummar Endereço físico: Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora (sede do jornal O POVO) Endereço virtual (e-commerce): livrariadummar.com.br

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Gente Ilustrada

Weaver Lima Cearense, iniciou no meio artístico criando e integrando o grupo Seres Urbanos, responsável pela edição, na década de 1990, de uma série de fanzines que se tornaram referência no meio alternativo brasileiro. Em 2015, publicaria Seres Urbanos: antologia do quadrinho underground cearense, eleito melhor livro de HQ no prêmio Miolo(s), organizado pela editora Lote 42 e pela Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Desde o início dos anos 2000, Weaver dedica-se às artes visuais. Sua exposição individual “Weaver Discos: pop descarado” circulou, entre 2012 e 2013, em seis capitais brasileiras, além de Itália e Portugal. Desde 2011, realiza o projeto de arte itinerante “RASTRO”, percorrendo cidades do interior do estado do Ceará e realizando intervenções artísticas. Em 2016, uma exposição sobre o projeto foi selecionada no programa nacional da CAIXA Cultural. A ilustração “História Oral III” (spray sobre recorte de madeira, 67 x 53cm) integra a série RASTRO.

11


Cristaleira

Cristaleira

Franklin Nascimento:

a história de uma biografia perdida

A

o recebermos a indicação de Sânzio de Azevedo e a autorização do, então, secretário da Cultura, Auto Filho, para a publicação, como parte integrante da

série Luz do Ceará, coleção Nossa Cultura, do título O Canto Novo da Raça, poesias de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza (Pereira Júnior) e Sidney Netto, obra originalmente impressa pela tipografia Urânia em 1927, ficamos bastante felizes. Sentíamos que estávamos conseguindo trazer à tona, dos porões escuros do nosso tradicional esquecimento, obras de relevância que contribuiriam, doravante, para a compreensão da formação artística e literária cearense. Vinha-nos sempre a questão: como era possível uma obra, que conforme bem nos define o prof. Sânzio, é o livro inaugural de uma corrente literária, o Modernismo, no Ceará, ter que esperar 84 anos para ter direito a uma segunda edição? Pois bem,

12


Cristaleira

durante o processo de organização e publicação de tal livro, teríamos outras alegrias que gostaríamos de compartilhar agora com, você, leitor. Quando lemos na apresentação de Sânzio de Azevedo, sobre o poeta Franklin Nascimento, um dos quatro autores da referida obra, “(...) aquele cujos dados biobibliográficos são mais escassos. Nascido em Fortaleza no dia 21 de abril de 1901, não se sabe onde e quando faleceu (...)”, nos preocupamos. Isto, pois, reconhecido o trabalho incansável, honesto e sério de pesquisador, aceitamos tal afirmativa como uma provocação que justificaria ainda mais a edição da obra. E assim o fizemos. Passamos a buscar na internet e conversar com outros pesquisadores sobre o possível paradeiro de Franklin. Tínhamos sempre a impressão de que ele teria saído do Ceará, o que justificaria o seu “desaparecimento” e o desconhecimento de sua continuidade na literatura. Um dia, porém, quase por acaso, encontramos numa página da web um comentário de uma neta de Franklin, Karla, residente em Belém do Pará, citando qualquer coisa a respeito do avô que era poeta no Ceará. Tentamos rastreá-la e conseguimos descobrir o seu filho, Felipe, um jovem que tinha um blogue no qual postava crônicas. Por meio de uma rede social do qual faz parte, escrevemos, falamos sobre a proposta de publicação do livro do bisavô, a sua importância e a necessidade de resgatarmos a sua biografia, ora inconclusa. Com dias, conseguimos conversar, por telefone, com o filho de Franklin, Túlio, residente em

Recife, e depois com Tereza, residente em

profissional e familiar e, inclusive, não

Fortaleza, e, desde então, muitos dos mis-

poderia deixar de ser, a data de seu fa-

térios sobre o suposto “paradeiro” come-

lecimento, em 24 de janeiro de 1978, e o

çaram a ser naturalmente desvendados.

seu local, fato que nos causou maior as-

O primeiro deles foi descobrir que

sombro: em Fortaleza, Ceará! Ou seja, o

o Franklin Nascimento, na realidade, se

Franklin, ou João, nasceu, viveu e morreu

chamava João Abreu do Nascimento.

aqui, “debaixo de nossas barbas”, como se

“Franklin”, um pseudônimo. Cremos, uma

diz. Ou seja, foi “esquecido” ainda em vida.

homenagem ao seu pai Abdon Franklin

Estranhou-nos a família — teve 10

do Nascimento. Por meio de contatos

filhos — não ter conhecimento da exis-

telefônicos ou e-mails, além da única

tência de O Canto Novo da Raça, nem de

foto de Franklin em juventude, a famí-

seus poemas publicados neste livro. “Não

lia nos apresentou a sua origem, nome

falava sobre isso (poesias, livros) em casa”,

dos pais, histórias da infância, trajetória

nos afirmou o filho. Asseguraram-me

13


Cristaleira

não saber de outra publicação qual-

no livro. João, que atuava como conta-

publicar — o que de fato aconteceu, por

quer de Franklin. Perguntei-lhes sobre

bilista, era simpatizante do comunismo,

conta da obediência da filha —, e anexou

Nuvem de Gafanhotos, título que encon-

ateu e boêmio, nunca apegado às coisas

alguns deles, além de quadrinhas de sátira

trei na Revista de Antropofagia nº 6, de

materiais. O filho Túlio se recorda de ter

e humor. De quebra, é claro, arriscou pedir

outubro de 1928, dirigido por Antônio

crescido vendo na sala de casa, pendu-

a Drummond um livro seu autografado.

de Alcântara Machado e gerenciado por

rado em local de honra, o retrato de Luís

Graças ao empenho da família

Raul Bopp, em São Paulo. Na revista, o

Carlos Prestes. Como poeta que era não

de Franklin, que sempre nos atendeu

seu poema “Pomo Roído” aparece como

nos surpreende seu comportamento de

prontamente,

se extraído de Nuvem de Gafanhotos.

estranhamento e desajuste a este mundo,

rar a nova biografia de João Abreu do

Provavelmente, supomos, o título provi-

a sua sensação de solidão e uma tal angús-

Nascimento, o Franklin Nascimento,

sório de um livro que o poeta pensava em

tia que parecia nunca se acabar.

um dos autores de O Canto Novo da

publicar e não o fez.

conseguimos

elabo-

Na carta a Drummond, felizmente

Raça, um pequeno, mas para quem sabe

O fato é que Franklin, com pouco,

mantida em fotocópia — e ainda desco-

bem o que é isso, um grande serviço

desapareceu do circuito literário, sabe-se

nhecida por alguns de seus familiares —,

para nossa historiografia literária.

lá por que razão. Depois do lançamento

todos esses sentimentos são devidamente

Para mim, particularmente, poucas

de O Canto..., além de pequenas contribui-

revelados, como se Franklin soubesse que

são as emoções que podem ser compara-

ções na revista Movimento e na Revista

a outro poeta ele poderia fazê-lo, e se tra-

das à de se ler, mesmo por telefone, um

de Antropofagia, foi um dos fundadores

tando de Drummond, com certeza o en-

poema desconhecido de um pai a uma

de Maracajá (1927) e Cipó de Fogo (1931), e

tenderia. Na carta ele fala de sua velhice

filha, e ter a certeza de que, após tantos e

casou-se, em 1933, com Francisca Aguiar,

(estava com 73 anos), da sua tristeza por

tantos anos, a voz do poeta se fez imortal,

a Francinete. Inclusive, me foi relatada a

não ter “tutu” para publicar um livro com

forte, clara e melódica transcendendo a

história muito romântica da perseguição

seus versos acumulados de uma vida, da

tudo, inclusive à vida, e tudo aquilo que

do jovem e apaixonado João, em bondes,

sua dificuldade de pedir a ajuda de ami-

ela, pessoalmente, lhe negou.

à futura esposa.

gos para fazê-lo, da sua intenção de levar

Por meio de um recorte de jornal, descobrimos que Franklin, que

em seu caixão os versos que nunca iria

Raymundo Netto raymundo.netto@gmail.com

gostava de anedotas e as escrevia, participou da fundação da Academia Cearense de Humoristas, com sede na Associação Cearense de Imprensa, já na década de 1960. Também soubemos que chegara a

do Ceará, da Coleção Nossa Cultura da

se corresponder com Carlos Drummond

Secult (2011), com coordenação editorial,

de Andrade, “poeta amado meu”, como a

capa, projeto gráfico, revisão, digitação e

ele se dirigiu em primeira carta, em 1974,

apêndice de Raymundo Netto, apresen-

e que obteve resposta.

tação de Sânzio de Azevedo, diagramação

Dos filhos, pouco mais conseguimos além do que se lê na biografia publicada

14

O Canto Novo da Raça, 2ª edição, série Luz

de Elias Saboia e ilustrações de Audifax Rios (90 páginas).


As Almas Penadas do Açude Grande

roupa no cercado. E além do mais tô

pobre família? Por que criaturas tão pue-

com uns pressentimentos.

ris teriam sofrido tanta violência?

– Calma, mulher! Calma! Não fale

O tempo passou e logo surgiram

em diabo, que isso atrai coisa ruim. Deixe

as primeiras histórias das aparições das

de tanta besteira. Devem de está por aí

almas das crianças à noite, vestidas de

nos terreiros, brincando com o menino

branco com velas nas mãos, na beira

Foi numa noite de chuva forte, com re-

do cumpadre Luís, eles aparecem já. –

d’água do açude grande.

lâmpagos e trovões, que ouvi pela primei-

respondeu sem demonstrar muita preo-

Zé Lins ficou sabendo das supostas

ra vez ao redor de uma fogueira junto aos

cupação Zé Lins, tentado também dessa

aparições pelo cochichado de seus clien-

meus primos a horripilante história das

forma acalmar a mulher.

tes na bodega, mas não acreditou naquilo

almas penadas do açude grande contada

Deu a noite e os meninos não apa-

pelo velho Manuel Rosendo, vaqueiro da

receram. A mãe caiu nos prantos receosa

fazenda Forquilha – propriedade do meu

de suas premonições. Zé Lins fechou a

avô – e um dos maiores contadores de

bodega, foi acima e foi abaixo, e não deu

casos de assombração em toda a redon-

vista de nenhum sinal dos dois filhos,

O bodegueiro não conseguiu en-

deza do vilarejo de Boa Fé.

acabando por reunir todos os homens

golir mais nada. Insone, perturbado

Manuel Rosendo dizia que o açude

do vilarejo, que solidários ganharam os

com as palavras da mulher ressoando

grande, aquele mundão de água, quando

matos com lampiões acesos no caminho

na cabeça e a lembrança doída dos fi-

nos dias de cheia era atração garantida

do açude grande, pois foram informados

lhos. Ela insistia:

para os pescadores, os banhistas, os ani-

pela preta velha Nastácia que as crianças

mais, e, claro, para os moradores do vi-

tinham sido vistas brincando na beira

larejo, sobretudo para as crianças que se

d’água no fim da tarde.

divertiam, apesar dos perigos.

Radiadora

Radiadora

até que sua mulher numa noite lhe disse na hora do jantar: – Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nossos filhos mortos! Eles querem te ver.

– Zé, eu vi nossos filhos. Eu vi nossos filhos mortos! Eles querem te ver. Ele saiu de casa sem que ninguém o

Os corpos das crianças foram

visse e seguiu no rumo do açude grande.

As histórias sobre as almas penadas

encontrados por um pescador, boian-

No outro dia pela manhã, suas rou-

do açude grande eram antigas, reforçava

do perto da parede do açude, naquela

pas, sua faca e seu rosário, que costuma-

o velho narrador. E iniciaram no dia em

mesma noite, enganchados numa árvore.

va carregar no pescoço, foram encontra-

que um casal de crianças, Mariazinha e

Os olhos esbugalhados, a face carcomida

dos numa canoa que vagava solitária no

Pedrinho, filhos do bodegueiro Zé Lins,

pelos pequenos peixes e as marcas indis-

meio do açude. Porém o seu corpo nunca

sumiram misteriosamente aos olhos da

tintas de machucados espalhadas pelos

foi encontrado.

mãe zelosa que sempre foi dona Lúcia e

corpos deixou todos atônitos e perplexos.

Ainda hoje contam alguns pes-

que entrava agora aflita e aos gritos na

Nunca ninguém conseguiu entender o

cadores mais antigos que, ao pescar no

bodega do marido:

que se deu com os filhos de seu Zé Lins.

açude grande em noite de lua alta, é pos-

– Zé me acuda! Me acuda! Não

Teria alguém matado aquelas crianças

sível esbarrar com a alma do homem

consigo achar os meninos. Já procurei

e jogado os corpos na água? As crianças

na canoa a perguntar por seus filhos,

em tudo que foi canto, não sei onde

teriam ido nadar e se afogado? Nunca

Mariazinha e Pedrinho.

diabos se meteram. Sumiram desde

ninguém soube responder. E por que tra-

Bruno Paulino

manhãzinha, quando fui estender a

gédia tão sofrida se abatera sobre aquela

bruno_enxadrista@hotmail.com

15


Radiadora

Cem Vezes Mais Deus é fiel, tá sabendo? Prova disso é que semana passada abriu uma igreja evangélica aqui pertinho. Toda noite tem culto, uma ruma de carrão importado na frente. Chance boa de faturar um troco, ajudar a tia a pagar o aluguel do barraco, ela que me cria desde que mamãe morreu. Morreu no corredor do hospital, gosto nem de lembrar, bola pra frente, meu irmão. Primeiro, segundo, terceiro dia guardando os carros da

Essa Moça ‘Tá Diferente

igreja, faturei nada. Eles não tinham dinheiro, só cartão. Mas

Desde a infância, Alan e eu nos entreolhávamos, com muita

sempre diziam que eu orasse muito que Deus proveria. Tinha

doçura. Ao completarmos quinze anos, passamos a frequen-

um que dizia assim, “Precisa olhar o carro não, moleque, Deus

tar a Sociedade Lírica do Belmonte, criada pelo padre Ágio

tá vigiando”. Era o carrão mais bacana de todos. Olhei no vidro,

Moreira de Deus. Lá, comecei os estudos de flauta transversal

tinha um adesivo, “Foi Deus que me deu”. Uma noite descobri

e Alan tocava violão clássico.

que o dono do carro era o pastor da igreja. Descobri porque

Os tempos tinham mudado, saímos do Cariri e nos

entrei lá acompanhando minha tia, ela queria orar pelo primo

mudamos para Fortaleza, o ano era 1969 e o casamento ia

que os polícia mataram por engano numa batida dia desses.

muito bem. Estudávamos, agora, no Conservatório de Música

O pastor estendeu um bauzinho na nossa frente e disse que

Alberto Nepomuceno. Neste espaço, conheci a holandesa

aquela noite era especial, que Deus estava ali ao lado dele, e

Judy. Ela tinha olhos de piscina, usava roupas folgadas e fai-

que a gente receberia cem vezes mais o que a gente botasse

xas florais na cabeça.

naquele bauzinho. Minha tia enxugou as lágrimas, abriu a

Alan sentiu que algo estava muito estranho. Com Judy,

bolsa e contou as moedas. Dava uns dez reais, era tudo que ela

aprendi a renovar os valores dentro de uma casa. Por isso, pas-

tinha. Ela botou as moedas no bauzinho e rezou. Eu olhei nos

sei a reivindicar direitos iguais em relação às tarefas domésti-

olhos do pastor. Ele repetiu, sorrindo, “Cem vezes mais, meu

cas. Em poucos dias, o café de Alan tinha o sabor mais apurado

filho, tenha fé”. Eu acreditei nele, claro. E botei uma nota de

que o meu, deixando o lar inteiro cheirando à baunilha. Pelas

vinte. No dia seguinte, quando o pastor saiu da igreja, cadê o

calçadas, as pessoas comentavam baixinho: “essa moça ‘tá di-

carrão? Tava lá não. O lugar mais vazio do mundo. Eu também

ferente”. Passei a sair de casa sem sutiã, o que era um escânda-

não tava. Naquela hora eu tava dirigindo o carro dele, o Isaías

lo e usava uma enorme peruca loira.

me esperando com dois milzim na mão. Deus é fiel.

Neste mesmo ano, fui convidada pelo pessoal do Ceará a me apresentar em alguns festivais. Não parava mais em

Ricardo Kelmer

casa, o que fez Alan entrar em total desespero. Às vezes, ele

ricardokelmer@gmail.com

preparava alguns jantares românticos, mas quase sempre eu estava de pileque, sem muita fome, escutando, no último volume, uma velha radiola, os discos dos Mutantes e da Gal Costa, saindo a rodopiar pela casa. O ano estava muito frutífero e tinha feito amizades de toda uma vida. Pensei em me separar, mas Alan fazia uma boa comida, dividia as tarefas de casa, era amoroso e o olhar doce permanecia. Então, resolvi dar uma nova chance, com o combinado de que não interferisse na minha carreira artística.

16


“Vão-se os anéis, ficam os dedos.”

surrado narrava, como um romance

Minha avó repetia estas palavras

gráfico, contos cuja memória fora varri-

sempre que um objeto que nos era que-

da pelo apressado correr dos anos. Um

rido se perdia ou acabava em pedaços.

ingresso de cinema, quase completa-

Dizia para nos irritar, ou assim pare-

mente apagado, contava de uma ami-

Em novembro, criei um grupo de

cia-nos, em meio à fútil ira da privação

zade morta precocemente.

rock progressivo, o Apolo Crazy, com-

que, na falta de adequada perspectiva,

posto por garotas insubmissas, Judy

tomava proporções dramáticas.

Não havia fotos, apenas objetos que, apartados da alma que os manti-

era a baterista. O regime militar pres-

Seu sábio e meigo riso de divertida

vera reunidos por tanto tempo, diziam

crevia um bom comportamento nas

compreensão, como o de quem pacien-

muito pouco de seu real valor, como

apresentações de bandas. O grupo to-

temente ouve as fabulosas queixas de

que relutantes em revelar os segredos

cava apenas um som experimental e

uma criança frustrada com suas ques-

de sua falecida curadora.

não tínhamos problemas com a polícia,

tões cotidianas, nos soava sarcástico e

No fundo do recipiente, uma joia

aparentemente.

cruel. Aos nossos ouvidos, suas palavras

– um relicário dourado onde lia-se,

de conforto eram descarada afronta.

gravado em relevo, “tempus fugit”. Ao

Era uma quarta-feira, próxima aos festejos natalinos, e a banda foi se

A perspectiva, contudo, hora ou

toque, abriu-se, revelando um pedaço

apresentar na Rádio Dragão do Mar. O

outra, em catarse ou relutante rendi-

envelhecido de papel, dobrado incontá-

programa chamava-se “Hoje é dia de

ção, nos arrebata, revoluciona e en-

veis vezes à forma de um pequeno qua-

Rock”, que contava com o apoio popu-

vergonha, e o faz com distinto talento

drilátero intocado por décadas. Inscrita

lar e tinha muitos fãs. Judy costumava

para o drama.

em seu interior uma confissão desespe-

falar em nome de todas nós, mas senti

“Vão-se os dedos, ficam os anéis”

rada de uma mente humana corroída

uma vontade de pegar o microfone e

Reconheci a desenhada letra pre-

pelo medo. Medo de ver escorregar por

manifestar alguns pontos de vista sobre

enchida de significado no ordinário

entre seus dedos a felicidade que custa-

as últimas perseguições e repressões

pedaço de papel pardo que encimava a

ra a conquistar e que julgava imerecida.

aos artistas nordestinos. Não deu outra,

pequena caixa azul-marinho de pape-

Encantada, encarei uma última

quando saímos do estúdio da emissora,

lão mantida fechada graças a um fino

vez o conteúdo, ora devassado, da caixa

os militares nos atacaram com trucu-

elástico prateado preso à sua face infe-

de relíquias anônimas, na certeza de

lência e prenderam os radialistas.

rior, envolvendo-lhe precariamente. O

que os medos de sua colecionadora ja-

conteúdo era algo mais curioso.

mais escaparam às fronteiras daquele

Depois de realizar um depoi-

Radiadora

O Relicário

mento para o Doi-Codi, Judy voltou

Um caderninho em ruínas, de

para casa, transtornada. Enquanto eu

miolo nobre não-pautado, estava pre-

acabei ficando. Duas semanas depois,

enchido de notas sobre tudo e coisa

João Bosco Ribeiro

meu marido saiu pelas ruas, entregan-

nenhuma, palavras que, há muito, per-

joaobosco_neto@yahoo.com.br

do panfletos pela cidade, em tempos

deram seu significado. Um passaporte

débil bilhete.

de chumbo, com o seguinte título: “Eu, Alan Ferreira, procuro minha esposa.” Juliana Guedes

guedesbjuliana@gmail.com

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Radiadora

De Pedra Mesmo não suportando a loucura da mulher, vê-la partir lhe

um telefonema — “Ela não está. Quer deixar recado?” — Não

seria insuportável.

queria. Sabia que a ingrata não retornaria.

Uma noite, durante conflituoso jantar, a drogou.

Aos finais de tarde, aguardava a noite ao lado da mulher.

Tomou-a adormecida nos braços e a levou para o mato,

Falava sobre seu dia, contava-lhe novidades, a presenteava,

quase em frente à lagoa, ainda visível à janela de sua casa. Lá

confessava a falta que lhe fazia e, por fim, numa loucura pró-

chegando, amarrou-a rente a um tronco estreito de árvore,

pria e sincera dos amantes, a cobria em beijos amorosos, se

onde previamente havia preparado baldes com água, areia

agarrando àquele corpo frio, áspero e inerte.

e cimento.

Em uma noite quente, porém, ele acordou e viu ao pé

Desacordada, ela respirava suavemente, balbuciando

de sua cama a mulher de pedra. Em silêncio, e através de

seu nome e deixando que a lua revelasse a ternura no rosto,

seus olhos nus e cinzentos, parecia mirá-lo, até jogar-se sobre

à medida que ele punha e moldava sobre seu corpo a massa

ele, e, com as mãos, tomar-lhe fortemente o pescoço e o ar.

ainda molhada do cimento. Começou pelos pés. Aos poucos,

Valendo-se do vagar desajeitado da estátua, ele conseguiu,

as pernas, o tronco, os seios, os braços, até finalmente cobrir-

com esforço, escapar-lhe. Ainda torpe e surpreso, pegou uma

lhe toda a cabeça.

marreta e a golpeou no abdome. O corpo começou a rachar.

Amanheceu. O Sol o encontrou sentado no capim, ainda

Abriu-se de meio a meio. “O que foi que eu fiz, meu amor? O

trêmulo, com uma pequena espátula à mão e olheiras mar-

que foi que eu fiz?”, repetia. A estátua fez-se em pedaços e

cadas de despedida, enquanto iluminava e aquecia a figura

de seu interior apenas um grito moribundo, aterrorizante, de

tosca daquela mulher. Foi quando teve a impressão de ouvir

uma agonia jamais ouvida igual.

dela um soluço abafado, quase como um estalo. Acordara? Todos os dias, seria a primeira imagem que veria ao levantar. Horas e horas à janela. À noite, tinha pesadelos. Ouvia os seus desaforos, as suas lamúrias. Imaginava que ela lá não mais estaria, que

Ele, abalado, jogou-se sobre os escombros, a procurar a mulher, qualquer pedaço dela, mas nada encontrou. Saiu gritando, com restos de entulho nas mãos, e jogou-se na lagoa, pondo-se no fundo da lama com o peso de sua própria consciência e da imagem perdida de sua mulher amada.

mesmo em pedra pudesse lhe escapar, se lançando nas águas lodosas da lagoa. Mas não. Ela permanecia ali, imóvel, como

Raymundo Netto

encantada, a seu alcance, aquecida para sempre em seu amor

raymundo.netto@gmail.com

e zelo. E assim foi durante meses. A ausência dela era quase despercebida. Trabalhava em casa, poucos amigos, filha única de mãe idosa. Quando muito,

18


Para Esquecer

eu não tenho

Não comporei para ti poemas,

medo da chuva.

para que tua imagem se desfaça aos poucos,

Radiadora

Dormência

a clareza da pele imersa na luz desta terra, eu tenho medo

para que tuas linhas se apaguem no ar,

é de não sentir

sem delícia, nem memória, nem fantasias,

os pingos caindo

para que teus gestos – que dançam! –

no meu corpo cansado.

venham, com o tempo, a parar.

Milena Bandeira

Henrique Beltrão

milenamaquinadeescrever@gmail.com

beltraohenrique@gmail.com

Maracaiá avia, avoa, vaia azunha, arranha, assanha ruge, urge, ressurge abocanha, arreganha, entranha arenga, assunga, rasga afronta, confronta, reconta enfeita, descatita, empriquita cutuca, papoca, provoca frondoso, garboso, lustroso afrontado, espritado, inzabuado porreta, arrombado, aloprado alencarino, genuíno, malino arisco, risco, trisco atento, retinto, maracajá Marcello Camelo marcellocamelo@bol.com.br

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Radiadora

Tempo Herança

O Poema

Cirurgicamente se amputa coração dopado de veado preto.

O poema é fruto do meu ofício

Proibicionismo inventado para matar pobre e lavar Grana.

Está em minha vida

Em nome da REAL generosidade: Primeira-Dama, libras

No meu cotidiano

maçônicas, amazonas, etnocídio, fugas brancas.

Na minha rotina Seu tecido veste-me

– Larga meu corpo, Estado do caralho!

Seu nascimento em mim

diz potiguar enjaulada, cujo CRIME:

Renova-me apesar dos árduos combates

monetizar e ingerir cultura natural, mijada

Apesar do tempo que pesa nos meus ombros

maconha coca crack mec feice;

Curvando-me as costas.

das redes sociais ela trafica conversões à Facção Paulista

Inocêncio de Melo Filho

e inefáveis códigos éticos

prof.inocencio@gmail.com

hoje picha, seu sangue repentista corta cabeça de Novos Batistas Ministros Damares Messias enquanto, indígena, canta: – Supremos Corvos Federais, que se regalam da carniça sentenciáveis “nunca mais” ao que só tem em Vossa missa: bilionários, fraternidade! “Nunca mais!”, direi eu insubmissa, petrificada em marginalidade, “Nunca mais!” dirá a carniça, torturada em neoliberdade, ao Espantalho da Justiça. Daniel Glaydson Ribeiro danielglaydson@gmail.com

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Impressões aos Sessenta

a poesia ocorre, surta, surge, surpreende

A impressão que eu tenho

assalta, assusta, luta

é ter me deslocado para dentro

a poesia não se cala, a poesia

de uns sonhos duradouros.

ela insiste, insiste, insiste

Vivi toda a infância

ate ser parida, virar palavra, verso, reverso, germinar

sem me importar com ruínas,

ela fala do saqueio, da opressão, do túnel sem luz

casas mal-pintadas,

do abismo, do abismo, do abismo

pessoas que mancavam,

ah, mas ela fala da vida também

estradas sinuosas.

apesar dos cataclismas, dos holocautos

Na adolescência,

ela fala da vida

continuei dentro deles,

a poesia é a resposta tenaz

Também não me ative

para uma terra devastada

em sempre acordar cedo

para um coração estéril

para ler as estrelas derradeiras,

vantagem sobre a destruição em série

ver o sol nascer.

a poesia é a resposta do homem para a desumanização

Por essa época,

vou ali, levar minha poesia para passear

estava mesmo era engraçado

vamos indo de braços dados e peito aberto

por namorar agarradinho,

brincar de ser poema

beijar com muito aceite.

Radiadora

A Resposta para a Desumanização

Veio então um sopro Íris Cavalcante

e cheguei aos sessenta,

iris@idt.org.br

ainda pelejando

Pela Caridadede Suas Mãos e Dentes

em desfazer rochas

É o mais certo amor

Gylmar Chaves

o que temos pela rudeza das coisas.

gylmarlc@gmail.com

onde residem alguns poemas.

O bicho que se milagrou homem (pela caridade de suas mãos e dentes), que pariu um deus com gravetos e pedras (para depois apedrejá-lo): esse bicho talha sem descanso dentro da coisa milagrada.

Dércio Braúna derciobrauna@gmail.com

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Radiadora

O Batismo Depois do Outuno eu não digo o teu nome na febre do vulcão, na mão de argila, domada de ventania e alagamento. eu não digo o teu nome ecoado de pássaros, dentro do ventre, orçado na miudez. eu não digo o teu nome com a ajuda de deus, ferido na dimensão aguda da língua. eu não digo o teu nome no poema, na asa do caos, na louça e no amargo.

Não há tempo a perder com poesia, inaproveitável mercadoria Espaço não há pra se gastar com Paul Valéry Por isso

o teu nome, o teu líquido nome, saído do absurdo e da fé. amor. Renato Pessoa

ANUNCIE AQUI

renatopessoa_21@hotmail.com

Estátua

Alves de Aquino deaquinoalves@gmail.com

A minha ruga da raiva risca meu rosto de rusga. A minha ruga da dúvida risca meu rosto de busca. A minha testa é um texto que escreve e apaga meu susto.

Nasceu o Poema

Sim eu tenho esse rosto

Atropela um pássaro em voo

que enquanto existe é meu busto.

Rosto de menino versus bico e penas Os carros cá embaixo olham de través

Carlos Nóbrega

Dois corpos que colidem

carlosamnobrega@hotmail.com

Na prisão do ar Acima das cruzes, acima dos topos Construções, tosca soberba Livres partilham na jaula em meu tórax Este seio azul Constelado de poemas Luan Brito de Azevedo luanbritoda@gmail.com

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O Impossível Romance da Franga de Granja com o Galo Pé-Duro Minha querida franguinha,

Nasceste em berço de ouro,

Nosso amor é sem futuro...

Numa linda chocadeira;

Peço, não fique abatida:

Eu sou um frango matuto,

Entre nós existe um muro!

Desses vendidos na feira.

Você é moça tão fina,

Sou boêmio e o meu cantar

Não sobe em qualquer poleiro...

Sempre rompe a madrugada:

Vou-me embora, sem destino,

Meu corococó saúda

Cantar noutro galinheiro!

O surgir da alvorada.

Sou rústico como o sertão,

Sou um cantador do mato,

Sou aço duro de espada!

Só temo mesmo a raposa.

És frágil como uma rosa

Ao morrer, quero seu nome

De feição mais delicada...

Junto ao meu, na fria lousa...

E, nesse ingrato porvir,

Não vejo luz no caminho,

Sofro igual a um aleijado:

Somente o breu do escuro...

Eu sou um filho da plebe!

Você é franga de granja

Tu comes milho importado...

E eu sou galo pé-duro.

Adeus, adeus, minha amada!

Klévisson Viana

Do meu pai, herdei prudência.

kleviana@ig.com.br

Mala de Romances

Mala de Romances

Sou um fruto da natura; Tu és filha da ciência.

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Tiragostos

Os FitoManos de Raymundo Netto

artista da capa Rafael Limaverde Nascido em Belém/PA, 1976, naturalizado cearense, iniciou sua carreira ilustrando para o jornal O POVO. Formado em Artes visuais pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE), é xi-

Os mundos de Liz de Daniel Brandão

logravurista, grafiteiro, design e ilustrador. Teve sua primeira exposição de pinturas e infogravuras intitulada “Caos” - Fortaleza (2000) e, depois, a segunda, “Xilofagia”. Realizou a exposição individual “Gabinete Místico” com 13 aquarelas na Galeria Estoril - Fortaleza/CE (2015). É curador da exposição Eco Barroco no CCBNB e Bestiário Nordestino. Pesquisa atualmente desenhos, pinturas, gravura e assemblages, tendo como referência a cosmovisão religiosa, tanto litúrgica (sacralizada pela igreja) como a para-litúrgica (sacralizada pela religiosidade popular), bem como o imaginário fantástico, bestial, grotesco. Baseia seu trabalho na simbologia, no imaginário, na história, nos objetos, templos e rituais que compõem a experiência sagrada e profana da transcendência humana.

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Tira de Lene Chaves


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