Revista Maracajá - Fevereiro

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REDACÇÃO: ANTONIO GARRIDO, PAULO SARASATE E MARIO DE ANDRADE

artigo de fundo ! ORA, escrever Vocês estão louquinhos !

Artigo de fundo lá o quê... Eu vou é contar uma história que aconteceu. O Mário de Andrade foi dormir em Soure. E sahiu no trem da R.V.C. E porque é inverno e tudo está verde, elle foi com a cabeça de fóra da janella do vagão. A chaminé da locomotiva fazia de chuveiro de São João: faiscas, faiscas, faiscas, no escuro da noite. Veiu bater um carvão no olho arregalado do Mario. E elle chegou em Soure de olho inchado. E queria que todo mundo lhe tirasse o argueiro. Eu varri com um capulho de algodão o olho do Mario – e nada... Elle cerrava as palpebras e dizia, cearensemente: – Tirou não... Foi quando a Tetê se propoz a tirar o argueiro. E pegou da palpebra do Mario, mandou que elle se assoasse tres vezes e rezou alto: << Co r r e , c o r r e , c a va l l e i r o Pe l a p o r t a d e S ã o Pe d r o Va e d i z e r a S a n t a L u z i a Que me tire esse argueiro Co m a p o n t i n h a d e s e u d ê d o . >>

O Mario ficou radiante. O argueiro sahiu. Ficou na ponta do dedinho de Santa Luzia. Ah ! Tetê ! Se Santa Luzia me tirasse uma brasa que está queimando meu coração... A. G

Passem muito bem!

FOLH A MODE R NI S TA DO

CEARÁ

ESTE E’O PRIMEIRO NUMERO E CIRCULOU NO DIA 7 DE ABRIL DE 1929

F O RTA L E Z A

Parece que estou vendo aquella gentinha, de pelle eriçada, grilando contra ella. Berrando. Zurrando. Cuspindo desaforos sobre <<Maracajá >>. Mas o diabo é que a revista não foi feita pra elles. Danemse. Mordam-se. Sapateiem. E estarão pregando no deserto... Uma coisa nós pretendemos. E havemos de conseguir: desprezar impiedosamente os remoques de vocês. Todo mundo deve saber a quem me refiro. Porque eu não poderia arremetter contra os pequenos. Contra os humildes que não entendem o modernismo. Eu me refiro é áquella outra casta. A’ casta sensaborona dos literatos. Ah! os literatos... Como elles não vão enticar com a gente ! Que tremenda não vae ser a sua guerra ! Estou a adivinhar-lhes a birra, o enfezamento e a malcreação. P au l o S

Os que se dizem passadistas, por exemplo, – e elles enchem a bocca com esse nome! –, vão pintar os canecos contra nós. Somos uns malucos. Uns doidos. E apontarão logo pra cima da gente com o dr. Odorico de Moraes. O director do Hospicio. Mas que se ha-de fazer? Todo movimento libertario tem surgido assim. Entre pedradas. Entre assobios. Coberto de apodos. Tal foi com o naturalismo e o parnasianismo, nas letras. Tal foi com as doutrinas de Ferri na criminologia. Aliás, isso é uma lei muito antiga de sociologia.A história apenas se repete, como diria o sr. João Ribeiro. Porque já no tempo de Galileu era assim. E com um aggravante: em vez de assobio, fogo. * * * Fiquem, pois, certos os passadistas cá da terra: nós, os de <<Maracajá >>, não os enxergaremos. E passem muito bem. Bôa noite! arasate

Supplemento literario do O POVO.

Sae aos domingos


Do Alpendre

O modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se eu continuasse a dizer o que penso do modernismo Não acabaria mais... Demócrito Rocha Jornal O POVO, 13 de junho de 1929

poeta e historiador Sânzio

E assim, nascia, há 90 anos, aos domingos, o suplemento

de Azevedo, maior pes-

literário Maracajá: folha modernista do Ceará, em referência ao

quisador da literatura cea-

felídeo encontrado com mais frequência na região Amazônica

rense, em O Modernismo

e cujo nome é originário da língua tupi. Na primeira página, a

na Poesia Cearense: pri-

marca produzida a partir do clichê em madeira de umbura-

meiros tempos (EDR, 2ªed, 2012), afirma: “Se é verdade que o

na de juazeiro feito pelo artista R. Moreira (que reproduzimos

marco inaugural do modernismo cearense é O Canto Novo

aqui em recomposição tipográfica). A redação estava a cargo

da Raça, de 1927, não é menos certo que a ebulição causada

de Antônio Garrido (Demócrito), Paulo Sarasate e Mário de

pelo advento da nova estética deveria muito à fundação, por

Andrade (do Norte).

Demócrito Rocha, do jornal O POVO, em 1928. [...] Filgueiras

Rachel de Queiroz, amiga de Demócrito Rocha antes

Lima por sinal já havia dado seu depoimento, quando disse

mesmo da fundação de O POVO e colaboradora dele até o seu

que ‘Demócrito se tornou, em pouco, a coluna mestra do mo-

falecimento, participou ativamente do Maracajá e relatou,

dernismo no Ceará.’ Percorrendo as páginas d’O POVO, de

sobre a revista: “Destinava-se o Maracajá a pregar o modernis-

1928 e 1929, veem-se desfilar os nomes dos mais destacados

mo pelas terras nordestinas, e nele todos nós desferimos voo

poetas do movimento da época: Mário de Andrade (do Norte),

[...] Sei que tivemos a glória insigne de nos ver lidos e comenta-

Filgueiras Lima, Edigar de Alencar, Heitor Marçal, Sidney

dos por alguns dos grandes do Rio e São Paulo, para nós, então,

Netto, Rachel de Queiroz, Antônio Garrido (que não é outro

as duas metades inacessíveis do Paraíso.”

senão o próprio Demócrito Rocha, que não assinava seus ver-

Agora, o Maracajá está de volta, como Demócrito Rocha,

sos com nome real), Mozart Firmeza (Pereira Júnior), Franklin

patrono desta Fundação, assim o queria: divulgando para o

Nascimento, Jáder de Carvalho, Martins D’Alvarez, Paschoal

Brasil e para o mundo um pouco da literatura produzida no

Carlos Magno, Silveira Filho e tantos outros vanguardistas

estado do Ceará. Dos antigos aos contemporâneos, a casa é do

de então. (...) Julgando talvez insuficiente a divulgação que O

POVO: Confira, leia, divulgue e participe.

POVO fazia do movimento renovador no Ceará, Demócrito Rocha, Paulo Sarasate e Mário de Andrade resolveram criar um suplemento exclusivamente literário.”

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Raymundo Netto Curador


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Apoio:

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VOL. 1 | nº 1

MÁ RIO

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(DO NORTE) DE RA ND A

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NASCIMENTO LIN NK RA

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Realização:

Fevereiro de 2019 Suplemento Gratuito

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05 08 09 ARTIGO

FLORES DE AÇUCENA

CHAPULETADAS

Os Canibais Daqui

A Ela

Thiago Nobre

Antônio de Castro

Bird Box: uma caixa sem surpresas

Um Soneto d’Amor Raymundo Varão

Vicente Jr

Do Tamanho de Tolstói Carlos Vazconcelos

13 14 15 TIRAGOSTOS

GENTE ILUSTRADA

Daniel Brandão

Raisa Christina

A Cartografia Poética de Mailson Furtado Viana

Lene Chaves J.J. Marreiro

Lílian Martins

Artista da capa Carlus Campos

POR CIMA DA CARNE SECA

18 21 CRISTALEIRA Aluízio Medeiros: o poeta dos injustiçados Ednardo Honório de Lima

RADIADORA José Jackson Coelho Sampaio Pedro Salgueiro Ricardo Guilherme Marília Lovatel Alves de Aquino Jesus Irajacy Costa Dimas Carvalho

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA João Dummar Neto presidência André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira Raymundo Netto gestão de projetos Emanuela Fernandes análise de projetos MARACAJÁ Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral Emanuela Fernandes assistência editorial Thiago Nobre, Vicente Jr., Carlos Vazconcelos, Daniel Brandão, Lene Chaves, J.J. Marreiro, Raisa Christina, Lílian Martins, Ednardo Honório de Lima colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”) Carlus Campos ilustrações Amaurício Cortez editor de design Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores. Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018. Todos os direitos desta edição reservados à:

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Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br


Artigo

Os Canibais Daqui

Em pé, da esquerda para a direita: Filgueiras Lima, Mário de Andrade (do Norte), não identificado e Martins D'Alvarez. Sentados, na mesma ordem: Paulo Sarasate, Suzana de Alencar Guimarães, Raul Bopp, Demócrito Rocha e Silveira Filho. (Arquivo Nirez)

Poucas pessoas sabem que

Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza,

no Ceará tivemos o nosso

Sidney Netto etc. Nomes pouco ou nada conhecidos pelo gran-

próprio movimento moder-

de público, o que demonstra o nosso longevo descuidado com

nista. Quando se fala em

a memória. Nada de novo no front.

geralmente,

Mas por que diferente? Sânzio de Azevedo nos deu uma

faz-se menção à experiência paulista com a festejada e sem-

pista interessante quando afirmou que o Modernismo daqui

pre lembrada Semana de 22, à leitura do poema coaxante de

foi precedido por notas de surdina penumbrista, explodindo

Manoel Bandeira em boca alheia, às vaias, alaridos e algazar-

em canglores de telurismo. Tanto é que o autor que influenciou

ras de uma plateia que, tendo o seu senso estético de classe

os jovens intelectuais que formariam as frentes de combate do

média aburguesada conspurcada, não estava entendendo

Modernismo em Fortaleza foi Ribeiro Couto com Jardim das

nada ou quase nada. E, por fim, a alguns de seus protagonis-

confidências (1921). Trazendo inovações nos temas e na forma

tas: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Anita Malfaltti,

que aludia aos fatos cotidianos de São Paulo, impressionando

Ronald de Carvalho e por aí vai.

os jovens letrados que frequentavam e se amesendavam no

Modernismo,

O fato é que tivemos sim uma experiência modernista

Café Riché, após o almoço, para recitar e discutir os poemas

com características peculiares, diversas e específicas. Inclusive

do poeta paulista. Mesmo sem fazerem a mínima ideia de qual

tivemos o nosso próprio Mário de Andrade, assinando como

a diferença entre a garoa de lá e o chuvisco daqui. Foi de um

Mário de Andrade (do Norte) para que não houvesse confu-

jeito lá e de outro aqui, nem melhor ou pior, apenas diferente.

são com o outro do Sul. Podemos citar outros mais: Demócrito

O mais interessante é perceber tais peculiaridades e as trocas

Rocha (Antônio Garrido), Paulo Sarasate, Rachel de Queiroz,

entre esses intelectuais.

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memorações cívicas do centenário da Independência do Brasil, dois livros importantíssimos para entender o processo formativo dessa geração foram publicados: A poesia cearense no Centenário e Os novos do Ceará no primeiro Centenário da Independência. O primeiro teve tom mais oficioso e apoio do governador Justiniano de Serpa, reunindo intelectuais consagrados no campo literário, como Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno etc. O segundo reuniu jovens estreantes que já estavam escrevendo, como Jáder de Carvalho, Edgar de Alencar, Aldo Prado etc. E trouxe, também, uma es-

Foi uma decepção: apesar de não ser vendida nas ruas, a edição foi esgotada nas agências.

Artigo

Em 1922, em Fortaleza, nas co-

pécie de prefácio-manifesto cáustico e sem assinatura contra os intelectuais de igrejinha, os palhaços de feira, os

modernistas Maracajá (1929) e Cipó de

semideuses, os medalhões e a turba ig-

fogo (1931), bem como a criação da agre-

nara e fofa que vivia de elogios baratos

miação Tribu cearense de antropofagia

e bajulações vergonhosas ao invés da

(1929). Não podemos esquecer também

pena e do livro. Segundo Otacílio de

do Tangapema, suplemento do O Ceará,

Colares, estava por trás desse texto ir-

surgido à época, no entanto ainda en-

reverente e ácido a figura de Jáder de

cerrado em algum acervo ou, para a

Carvalho, que, como sabemos, nunca

tristeza nossa, para sempre perdido. Os modernistas, talvez achando

fugia a uma boa briga. importan-

insuficiente a sua campanha no jornal

tes foram a criação do Ceará Ilustrado

O POVO, publicaram um suplemento

(1924), a visita de Guilherme de

literário: Maracajá. A folha modernis-

Almeida (1925) para proferir a sua con-

ta teve duas edições que circularam,

ferência “A revelação do Brasil pela

respectivamente, em 7 de abril e em 26

poesia moderna” no Theatro José de

de maio de 1929, tendo à frente de sua

Alencar, a publicação do Canto novo

redação Antônio Garrido (pseudônimo

da raça (1927), o surgimento do jornal

usado por Demócrito Rocha), Paulo

O POVO (1928), bem como dos folhetos

Sarasate e Mário de Andrade (o nosso).

Outros

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momentos


sua gente, o sol ardente, amoroso e ruivo, o sertão, o Orós, as

antropofágica dessa experiência. No dia posterior ao lança-

carnaúbas, a praça do Ferreira, o Cariri.

mento, saiu em O POVO uma espécie de antipropaganda que tinha lá a sua eficácia:

Artigo

Podemos entender a empreitada como o clímax e a guinada

O segundo foi uma resposta de Heitor Marçal a uma carta de Raul Bopp. Ele, como os seus pares, sabia muito bem das re-

“Maracajá - a melhor revista do mundo circulou ontem.

lações de poder e das discrepâncias materiais entre a provín-

Foi uma decepção: apesar de não ser vendida nas ruas, a edição

cia e os centros econômico-sociais do país. Os que faziam li-

foi esgotada nas agências. O povo não entendia nada, mas com-

teratura aqui eram tidos como meninos amarelos, comedores

prava e fingia que gostava, elogiava – o diabo! Não correspondeu

de broa. Porém, segundo Marçal, os antropófagos daqui eram

à expectativa de seus redatores: eles desejavam que ninguém a

bons de boca e a renovação ia se dar pelo cacete rijo. O nosso

comprasse e toda a gente comprou.” (grafia atualizada)

índio comeu o padre Pinto e só não deglutiu os portugueses

Mas o que nos interessa ressaltar, ademais o diminuto

por nojo ou fastio. O índio de Alencar foi uma ficção e todo

espaço, são dois textos publicados em Maracajá que ilustram

mundo caiu no conto do filho do vigário. Como era possível

bem a riqueza do movimento. O primeiro com o título de

um romance amoroso entre uma gazela e uma suçuarana? O

“Se eu fosse escrever o meu manifesto artístico”, de Rachel

verso no Brasil deveria ser nu, sem pontos, sem vírgulas, sem

de Queiroz. Não querendo ser um manifesto, acabou por

nada. Mais à frente se arranjariam sinais convencionais tira-

sê-lo propriamente. Resumiu as diretrizes gerais que mais ou

dos dos motivos da cerâmica primitiva.

menos se concordava, mas era mesmo a sua concepção pes-

O Modernismo no Ceará foi um grande banquete discur-

soal. É evidente que, estudando o movimento à época, perce-

sivo, quiçá um festim diabólico. E sabendo que toda tradição é

bemos a profusão de concepções, propostas e discursos que

uma invenção, tem sua historicidade e o seu contexto, apre-

convergiam ou até mesmo divergiam. Havia os cosmopolitas

ciemos com calma os sabores, os nuances e os temperos dessa

(universais), regionalistas, futuristas e nacionalistas.

experiência banhada na própria banha.

Aprendemos com Foucault que nas sociedades a produção de discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por procedimentos que têm por função excluir, interditar ou repetir. Assim, nos é legado uma imagem homogênea e sem vida da experiência humana, quando sabemos que ela, a vida, é diversa, variada e, muitas vezes, contraditória. Pois, toda experiência histórica, em certo sentido, é única e irrepetível, já nos alertara E. P. Thompson. Para Rachel, ser universal era ser regional. O artista só poderia ser espontâneo e sincero se cantasse o meio em que estava integrado, a paisagem familiar, as práticas e os tipos sociais próximos. Tal qual o dístico de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Afinal, o que era

Thiago Nobre é professor de História. Graduado em História com a monografia “Geração Moça desta Gleba”: Movimento Intelectual de Clã e a Consolidação do Campo Literário de Fortaleza na década de 40 (Universidade Estadual do Ceará), Especialista em História do Brasil (IDECC) e mestre em História com a dissertação “A Tribu de Antropofagia: Práticas Letradas, Cotidiano e Modernismo(s) em Fortaleza (1922 - 1931)” (Universidade Estadual do Ceará).

universalizar a arte? Torná-la uma colcha de retalhos cosmopolita ou construir uma expressão caracteristicamente brasileira? Por isso, Rachel preferiu cantar a sua terra, a alma da

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Flores de Açucena

A Ela

Um Soneto d’Amor

Ela tem sempre no olhar

Para Thompson Soares

Profunda Melancolia, Essa tristeza sombria

Anjo, mulher, demônio a quem venero,

Que lembra a luz do luar

Sombra que amaldiçoo e que bemdigo,

Em noite nevoenta e fria.

Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa do meu eterno desespero,

Tem a voz triste e magoada Como os queixumes do mar,

Se procuro esquecer-te é que mais quero

Das ondas que vêm rolar,

Dar-te em minh’alma sacrossanto abrigo,

De manso, na esbranquiçada,

E concentrando as lágrimas comigo

Extensa praia, a chorar...

As minhas próprias carnes dilacero...

Vejo as sombras do pesar

Do meu profundo amor, sempre a falar-te,

Anuvearem-lhe o rosto,

Encontrarás o espectro solitário

Como as sombras do sol posto.

Disperso a soluçar por toda parte!

Aos poucos vão-se espalhar Num céu sem nuvens de agosto.

E se em teu peito a compaixão não medra Eu irei pela senda do Calvário

Por ela sinto pulsar

Arrancando um soluço a cada pedra...

Meu coração, ai, coitado! Que, há muito, foi condenado

Raymundo Varão

A sofrer, sem descansar.

Revista Phenix nº12 (1913)

Dentro do peito enjaulado. Feliz de mim se algum dia Viesse seu brando olhar, Tão brando como o luar, A noite longa e sombria Da minha vida aclarar! Antônio de Castro O Pão da Padaria Espiritual nº 13 (1895)

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Chapuletadas

Bird Box

uma caixa sem surpresas iga-se logo o óbvio: o livro é

temos são seres, criaturas estranhas que se manifestam por

melhor. O filme (2018) em si,

meio de sussurros (costumam dizer o nome das pessoas) e pelo

produto razoável, bem ven-

vento nas árvores, nos arbustos e ao redor. Ao mesmo tempo,

dido, com muita propagan-

estes seres são louvados como lindos, divinos etc.

da, é decididamente fraco e

Mal dirigida, ou seja, tomou-se o caminho mais fácil, a

sustenta-se em um nome de peso: Sandra Bullock, impagável.

técnica do flashback realmente prejudicou o entendimento do

Partindo deste princípio, discutirei aqui apenas o estranho, o

leith motive do autor inclusive a empatia pelas personagens,

terrificante, o imensurável, o fantástico, o terror apenas como

excetuando-se claro a própria Malorie e o heroico Tom. O resto

uma possibilidade. O resto é mesmice. A repetição está níti-

é puro cliché: um tarado, um escritor frustrado, um cético etc.

da já no formato da própria narrativa, vide seus flashes sem

Essa ideia do fim pela mão de anjos ganha força quando,

muita função.

sem nenhuma referência a Saramago (em Ensaio sobre a ce-

Vamos então ao que interessa: AS CRIATURAS. O filme

gueira), a visão das criaturas leva à morte. Aqui se desmonta

nos surge espacialmente como um Walking dead, mas sem os

toda essa conversa de ser este um filme sobre o “desespero da

zumbis. Talvez isso tenha feito ficar interessante. Confirma-

sociedade contemporânea vítima da depressão...que leva ao

se, pois, como um texto apocalíptico, mas não pós-apocalíptico,

suicídio” e blá blá blá. O filme e o livro não são sobre isso. Não

já que o mundo ainda não acabou; o momento da narrativa é

há um viés teológico no sentido de doutrinação ou religiosida-

o da própria destruição ou “purificação”, como dizem algumas

de. Não. Mas é apocalipse mesmo.

personagens. Observa-se, então, a primeira e mais plausível

O ser humano parece merecer por vários motivos seu ex-

possibilidade de desvendamento das criaturas: são anjos, anjos

termínio. Isso é nítido no tema da maternidade não aceita por

destruidores normalmente mandados à Terra quando da ne-

Malorie e até na sua indiferença quanto aos filhos (proposição

cessidade de purificação do gênero humano.

edênica do mito de Adão e Eva), como o fato de terem nome ou

Note-se que não se trata de uso de arma química ou bio-

não, sendo chamados apenas de boy e girl. É possível serem ETs?

lógica, não é um caso de gás venenoso ou mutante etc. O que

Sim, mas para isso é necessário transformar o filme em série (não

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Chapuletadas

seria má ideia) e inventar essa lógica a partir dos desenhos deli-

questão humana, pouco mística e inclusiva dos cegos, e, muito

rantes de um dos loucos.

distante uma simbologia em relação às vendas que constituem

Outro reforço à teoria de anjos x homens é a questão dos olhos. Em vários evangelhos é bastante recorrente a ideia de

um mecanismo de cegueira necessária, ou proposital, segundo a vontade de cada um como já fazemos.

não contemplar Deus ou sua face ou mesmo seus mensageiros

Fechamos os olhos para o outro, para sua dor, para a sua

de luz. Existem anjos de vários tipos, mas destacam-se dois: os

fome, para a suas necessidades, para as crianças e suas urgên-

de misericórdia (o anjo que impede Abraão de sacrificar seu

cias, para os cegos, para os surdos (por que não?), para os pobres,

filho) e os de destruição (os anjos varões que aniquilam popu-

para a corrupção e para tudo que se configura como ruim para

lações e cidades inteiras como Jerusalém, Sodoma e Gomorra).

nós etc. Essa indiferença reside na protagonista e se espalha

Os olhos não são apenas as janelas da alma, mas os ele-

por outras personagens, o que faz ser um grande choque qual-

mentos incitadores ao erro (desejar, invejar, desobedecer,

quer postura sacrificial em relação ao outro. Frases intrigantes

odiar etc.). Tê-los ou não é algo bastante simbólico em ter-

como a de Shannon: “Se você não aceita uma coisa ela some” ou

mos literários, filosóficos, psicanalíticos ou mesmo teológicos,

mesmo de Malorie ao dizer: “Focar nas coisas erradas me acal-

como o que aconteceu com Saulo no caminho para Damasco,

ma” são emblemáticas quanto ao desmerecimento do outro, a

uma cegueira que posteriormente leva à morte simbólica e à

sua anulação e à fuga dos nossos problemas.

purificação para o exercício de uma nova vida.

No mais, palmas para o departamento de marketing da

Nessa perspectiva de enxergar ou não, compreende-se que

Netflix em promover um filme tão simples ao status de mega-

é exatamente por isso que há dois grupos de imunes: os cegos de

produção. Mas não são assim as coisas na internet, nos Estados

nascença e os loucos. Aqueles por não poderem ver a ira de Deus

Unidos ou um pouco abaixo da linha do Equador? Alguém que é

materializada em suas criaturas divinas; estes por possuírem um

apenas louco, ou nada, pode, contra cães e pássaros, chegar ao es-

tipo de cegueira pessoal que é a (des)razão. Exatamente por isso os

trelato ou mesmo à presidência de um país. Basta que as pessoas

loucos são partidários da “limpeza”, pois embora possam enxergar,

continuem com a venda bem firme, amarrada sobre os olhos.

só conseguem absorver a ideologia da purificação, ou seja, instrumentalizam-se, cegam para a torpeza, para o crime porque assim

O perigo existe, mas ignorá-lo também ajuda. A vida que é uma caixa de surpresas! Os pássaros somos nós...

já é o seu natural no mundo e sua (in)existência enquanto loucos. Em resumo, com a mesma pegada de terror psicológico do filme Os pássaros (1963), do mestre Alfred Hitchcock,

Vicente Jr, é dramaturgo, poeta, ficcionista

a maior influência na verdade para Bird Box é o filme Legião

e crítico. Professor adjunto da Universidade

(2010), de Scott Stewart, também apocalíptico, em que mais

Estadual Vale do Acaraú (UVA) e do Colégio Ari

uma vez o Criador, decepcionado, manda anjos exterminarem

de Sá Cavalcante.

a raça humana. Estamos tratando, então, mesmo com criaturas não nominadas, e talvez seja este o grande mérito do autor, de um dos temas mais antigos na Literatura e no Cinema. Por

Direção: Susanne Bier

deve mesmo ser lido.

Elenco: Sandra Bullock, Trevante Rhodes, John Malkovich,

Em última análise, é possível fazer relações pertinentes

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Serviço

isso defendemos que o livro Bird Box, de Josh Malerman (2014)

Sarah Paulson etc.

entre o filme dirigido por Susanne Bier e outros tantos temas da

Gênero: Terror, Suspense

atualidade: o protagonismo feminino, o tema da maternidade, a

Nacionalidade: EUA


Chapuletadas

Do Tamanho de Tolstói epois da leitura da trilogia Tempo dos Mortos, de José Alcides Pinto, nossos abismos mentais jamais serão os mesmos. A narrativa flui como um rio, mansamente, mas desemboca dentro do leitor com estrondo. Mas não é romance de explosão, vai implodindo aos poucos. Não provoca crateras ou rombos, vai desintegrando a matéria. É um misto de contenção e densidade. Em Estação da morte, primeiro livro da trilogia, José Alcides Pinto está do tamanho de Tolstói. Basta lembrar o clássico A morte de Ivan Ilitch, desse escritor russo. Compare-se. Radiografia das misérias e grandezas que habitam os vãos da alma. O ser coagido à beira do despenhadeiro final, a dúvida aterradora, o medo cruel do desconhecido. José Alcides Pinto sabe manejar suas goivas, formões e macetes para entalhar, com a precisão e a leveza estilística de um mestre, o drama seco e pungente de suas atormentadas criaturas. A “estação da morte” é o hospital, monstro esfomeado que devora seus inquilinos. Abocanha inclusive o engenheiro que o projetou com amor e dedicação. A criatura devora o criador, como em outra conhecida parábola: “Nenhum outro monstro possuiria a obesidade de seu ventre.” O enfermo vai se despindo da máscara do mundo, porque já a rasgou da alma e agora só lhe resta uma espera. Os médicos estão acima do bem e do mal. “São fantasmas que dão ordens”. O padre, instrumento do milagre da salvação, move-se atônito em seu labirinto. Os familiares são medíocres, os amigos, levianos. Acima de todas as futilidades paira o Regulamento, ditador poderoso, onipresente, feito o Grande Irmão, de George Orwell. Os signos da morte rondam o cenário e surgem no mostrador gigante do relógio da Central (marcando o angustiante tempo dos mortos), nos agentes do Dops (que buscam

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Profana para purificar, manipula o leitor, suga-o para dentro do livro antes mesmo de que ele tome consciência disso.

Chapuletadas

ainda vestígios de vida inteligente), no vento

E prevalecem os devaneios, a letargia, o

que uiva nos vãos (canto fúnebre, nênia) e até

onírico. Em O sonho, que finaliza a trilogia, a

na imagem-lembrança do galo, que canta mo-

indefinição do tangível. Onde começa e ter-

notonamente no inconsciente do moribundo.

mina a realidade? Fio tênue, abstração.

No interior do monstro, glóbulos bran-

Em Estação da morte, José Alcides Pinto

cos e vermelhos, células sãs e cancerosas, a

está do tamanho de Tolstói. Em O sonho e O

vida e imperiosamente a morte, Tânatos e

enigma, ombreia-se a Kafka e Dostoiévski. E

Eros, a sombra de Minerva e a intrujice de

se alguém achar que é exagero, está perdoado.

Afrodite. No escuro dos quartos, fantasmas

Sugestão: abstrair os comparativos e mergulhar

de branco (médicos e enfermeiros) antece-

no que é nosso. Nestes setentriões literários

dem o fantasma definitivo, sempre o último

ainda há muita joia fossilizada pelo não uso.

a deixar o recinto. No ventre da coisa agonizam sonhos. O monstro insaciável devora, rumina, cospe,

Professor, escritor e produtor cultural.

torna a engolir. Ai de quem cruzar suas

Publicou Mundo dos Vivos (contos) e Os Dias

colunas hirtas, seu esôfago de concreto.

Roubados (romance).

“Instituição-total”, no dizer de Goffman. Lá,

carlosvazconcelos@hotmail.com

o ser é uniforme, é número, perde a autonomia, vira autômato. “O sujeito não é mais nada depois de internado.”

Para Conhecer o Autor

Nossas emoções são marionetes sob o

José Alcides Pinto (Santana

comando desse talentoso escritor. Profana

do Acaraú, 1923 – Fortaleza,

para purificar, manipula o leitor, suga-o para

2008). Escreveu poesia, roman-

dentro do livro antes mesmo de que ele tome

ce, novela, conto, crônica, tea-

consciência disso.

tro, memória, crítica literária.

Em O enigma, segundo livro da trilogia,

Algumas obras de destaque:

permanece a atmosfera labiríntica. Os mean-

Romance: Trilogia da Maldição

dros do cérebro continuam permeados por

(O Dragão; Os Verdes Abutres

vultos e murmúrios, por segredos irrevelá-

da Colina, João Pinto de Maria:

veis e criaturas indecifráveis. Nesse clima

biografia de um louco); Poesia:

kafkiano, prevalece o desejo de se duelar com

Relicário Pornô e Cantos de

a morte e descobre-se que o adversário mais

Lúcifer;

cruel é antes de tudo a demência, nascida nos

Política da Arte.

longínquos do sangue como mal secreto de origem. O Despenseiro vive em situação-limite, assim como Gregor Samsa ou Raskólhnikov. “O segredo no centro da mão fechada, os dedos perros como ferrolhos.”

12

Carlos Vazconcelos

Crítica

Literária:


Daniel Brandão

Tiragostos

artista da capa Carlus Campos Russas - Ceará | Brasil - 1963 Carlus Campos é artista visual.

Lene Chaves

Começou a carreira em 1987 no jornal O POVO, do Ceará, como ilustrador. A partir dos anos de 1990 passou a dividir a sua atividade na imprensa com a produção de ilustrações para importantes revistas de circulação nacional e livros infantis. Na sua produção utiliza diversas linguagens como: pintura, desenho, aquarela e gravura.

J.J. Marreiro

A partir de 2011 a gravura ocupa considerável espaço nas suas experimentações. Desde 2016 integra o coletivo In-Grafika, importante reunião de artistas gravadores. Em 2017, participou, juntamente com o coletivo, da residência artística Oficina Guaianases de Gravura na

Universidade

Federal

de

Pernambuco (UFPE). No ano de 2018, teve obra selecionada no Salão de Abril, em Fortaleza.

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Gente Ilustrada

Raisa Christina é artista visual e escritora, nascida em Quixadá (Ceará). Em sua trajetória acadêmica, pesquisou a juventude presente no cinema de Gus Van Sant e a poética de mapas desenhados com jovens skatistas na cidade de Fortaleza. É autora dos livros Mensagens enviadas enquanto você estava desconectado (Editora Substânsia, 2014) e de Danza, em coautoria com Nahuel Souto Martínez (nadifúndio, 2018). Integra a Antologia de Contos Literatura Br (Editora Moinhos, 2016), a revista Para mamíferos n° 4, 2017, e a coletânea As cidades e os desejos (Selo Editorial Aliás, 2018). Participou do Projeto UrbanoArte BR em 2017/2018. Trabalha com ilustração e arte urbana. Mantém a página: corposonoro.tumblr.com

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Por Cima da Carne Seca

A Cartografia Poética de Mailson Furtado Viana encedor de dois Prêmios

espécie de epopeia do povo cearense, constrói um poema-li-

Jabuti, em 2018, o cearen-

vro a misturar a vida do autor e suas gerações à vida construí-

se Mailson Furtado Viana,

da por um povo migrante há mais de três séculos.

com apenas 27 anos, saltou

Por entre as páginas dessa arquitetura poética de uma

da condição de jovem autor

cidade-sertão viva e sentida a partir da memória e dos afetos

independente para ilustre escritor nacional em novembro

edificados, sem dúvida, encontramos também no posfácio do

passado. Por seu À Cidade, livro independente e custeado pelo

poeta e historiador Dércio Braúna um ponto basilar desta obra.

próprio autor, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) o laureou

Além dele, participa da publicação o poeta, folclorista e teatró-

com os prêmios de “Melhor Livro de Poesia” e “Livro do Ano”,

logo Oswald Barroso, que é quem assina a orelha do livro em

sendo este último considerado a maior honraria literária do

um convite à descoberta da poesia e do próprio autor.

país e nunca, em 60 anos de premiação, concedido a uma obra

Seja pelo ineditismo de sua conquista ou mesmo pela

independente. Esta também é a primeira vez que um cearense

qualidade de sua poesia, que coloca o Ceará no centro das

vence nesta categoria.

atenções da literatura brasileira, Mailson merece muito mais

Dentista por formação e artista por vocação, Mailson é, além de poeta, membro-fundador do Grupo Literário

que nossa congratulação, merece também nossa leitura e, quem sabe, um lugar especial na sua estante.

Pescaria, ator e diretor da companhia teatral Criando Arte,

Em entrevista para Maracajá, o escritor revela não só

a única de sua terra natal, o município de Varjota, a cerca de

os detalhes de À Cidade, como também explica o seu fazer-lite-

300 km de Fortaleza. A cidade, que nem sequer possui uma

rário, suas influências estéticas e a necessidade de reinvenção

livraria, foi motivo de inspiração para a obra que, como uma

dos campos que trabalham com a literatura.

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Maracajá: Falando da sua Varjota, Mailson, você escreveu um poema-livro que se apresenta como sendo uma espécie de epopeia do povo cearense, em especial, dos ribeirinhos do Rio Acaraú e do açude Araras. O que há de poético na paisagem cearense que lhe faz brotar o poema, a palavra escrita?

Mailson Furtado Viana: Eu sou um sertanejo, um apaixonado por este lugar. Ao caminhar e desvendar os quatro cantos deste estado entre praias, serras e o sertão – do Cariri ao Litoral Oeste; da Ibiapaba ao Apodi; toda essa paixão formatou-se e entranhou-se mais ainda carne adentro, e pude conhecer mais afundo o que esta terra de fato é. A história, o povo, o saber, a religiosidade, o ser aguerrido, a natureza, o jeito de ser motivam-me ao entender o que é o SER cearense (desse, que sou um bocado) e, a partir disso, por vezes escrevo e já não sei mais se falo de outros ou se somente de mim, afinal é o meu viver esboçado. O Ceará (no seu mais amplo sentido) já é um poema.

Maracajá: À Cidade traz diferentes marcas estilísticas. Há presença do concretismo, neoconcretismo, da experiência com a linguagem regionalista e com a linguagem chula. Este excesso caracteriza o esforço de um exercício linguístico ou uma tentativa de encontrar o seu próprio eu lírico?

MFV: O livro À Cidade foi construído (em sua fase de criação) de forma orgânica. Não me preocupava a época se possuía estilo tal ou qualquer outro. O poema foi acontecendo e arquitetou-se meio que osmoticamente. Trouxe neste período (de gênese) todas as influências que possuía e possuo nos ombros, e daí vieram as marcas neoconcretas, o linguajar popularesco, o apresentar imagético advindo de movimentos visuais e do próprio teatro, e toda a gama de visões que até hoje nem eu mesmo consegui encontrar todas. Sou um homem de experimentar as mais distintas possibilidades, que as faço por início, lendo. Leio de tudo o que o posso ou o que sinto que pode me acumular para produzir. Pesquiso. O meu ato de escrever em grande parte é inconsciente, mas alicerçado nessa busca incessante do que se escreve e não se escreve.

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isso. Neste atual momento, falando de uma forma mais bu-

como José Alcides Pinto, Vinicius de Moraes, Antônio Girão

rocrática, estou a analisar o que é o poema-livro À Cidade e

Barroso, Ferreira Gullar. Mas na sua cartografia de leituras,

minha poesia para esses dias, a partir de análises mais profun-

quem possui um território especial?

das que pude acompanhar em canais especializados, visto que

MFV: Sou um leitor bem mais de versos. Dos poetas, sem dú-

meu labutar poético é baseado inicialmente numa construção

vidas, João Cabral de Mello Neto é o que o possui o espaço mais

um tanto inconsciente, e por isso não sei direito o que ele pode

especial. É o poeta que me alicerça. Outros vem no À Cidade,

de fato ser. Essa visão externa é muito reveladora para mim,

e acho importantes citá-los, como Ferreira Gullar, Gerardo de

não que eu a busque, mas quando ela vem, me permite novos

Mello Mourão, José Alcides Pinto, poetas da poesia marginal e

olhares antes pra mim encobertos. Gosto muito disso.

Por Cima da Carne Seca

Maracajá: Em À Cidade reconhecemos ilustres habitantes,

a literatura de cordel.

Maracajá: E qual o seu prognóstico para a Literatura Nacional Maracajá: O seu novo livro Cinco Inscrições da Mortalidade,

neste 2019 que se inicia com menos livrarias e mais farmácias

obra em parceria com mais quatro poetas cearenses da sua

nas ruas?

geração, traz um escritor muito diferente d’À Cidade, desta

MFV: Vejo que estamos em um momento de grande

vez, que flerta com o minimalismo em razão da grande quan-

NECESSIDADE de reinvenção dos campos que trabalham com

tidade de micropoemas. O que você poderia nos dizer sobre

literatura, e aponto algo fundamental desse processo, que

essa coletânea.

no meu entender passa diretamente por ações e atividades

MFV: Cinco inscrições da Mortalidade é uma antologia compos-

voltadas para a formação de leitores. O mercado, os espaços

ta por poemas de 5 poetas cearenses contemporâneos (Bruno

educacionais, e nós, enquanto produtores literários e cultu-

Paulino, Dércio Braúna, Renato Pessoa, Alan Mendonça e eu),

rais, além de formadores de opinião, precisamos de discussões

com obras a lançadas a partir da última década. Para minha

mais aprofundadas sobre. Como todo e qualquer processo de

alegria, sou um deles. É um trabalho com 5 vozes próprias, que

mudança, atritos aparecerão, mas vejo como um trilhar sem

divergem e convergem nelas mesmas, e trazem um pouco do

volta. Assim pequenas editoras, pequenas livrarias e autores

retrato da poética e estética da poesia cearense dos últimos

independentes ganham maior espaço e locais alternativos

anos. Trouxe pra minha seção uma experiência de registrar

tornam-se mais fortalecidos para a difusão da literatura. Vejo

uma antologia do meu trilhar poético ao longo do tempo, assim

2019 como um ano de muita discussão (espero que produtiva)

republiquei (ou revisitei) alguns poemas presentes em obras

para entender o que será o mercado editorial daqui por diante,

anteriores e tentei apresentar “de cara limpa” o que foi (ou é) a

que lógico, não mudará da água para o vinho, mas passa pela

poesia do Mailson até aqui.

fundamental análise crítica para o caminhar. E espero que seja uma construção mútua e que todos cresçamos juntos.

Maracajá: Passada a euforia das premiações, qual tem sido o real espólio do Jabuti para a sua carreira literária? É possível já fazer essa avaliação?

Lílian Martins lilianabreu_martins@yahoo.com.br

MFV: Tudo está sendo um aprendizado. Cada momento, cada evento, cada crítica está sendo uma oportunidade, e tento a cada instante policiar-me para entender o que de fato é tudo

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Cristaleira

Cristaleira

Aluízio Medeiros

o poeta dos injustiçados O Poeta veio da noite

Lembramos que neste findo 2018, o centenário de seu nascimen-

da profundidade sem termo da noite escura

to, infelizmente, passou despercebido, sem uma nota sequer.

e quis apontar entre os múltiplos caminhos da vida

Nascido em Fortaleza em 16 de novembro de 1918,

o caminho a seguir

Aluízio Caldas Medeiros era filho do casal Alfredo Medeiros e

Mas, ó amigos, a confiança do mundo era tão grande

Senhorinha Caldas Medeiros.

Os gritos de dor que subiam eram tão dilacerantes

Aluízio inicia sua caminhada poética ainda nos bancos

Os horizontes dispersos eram tão espessos

escolares. Foi aluno do Colégio Castelo Branco, situado no então

as nuvens que já vinham eram tão negras que o Poeta não pôde falar

bulevar Dom Luís – hoje, avenida Dom Manuel. Começou apre-

que o Poeta não pôde apontar

sentar seus poemas seguindo a estética do Modernismo na revis-

o caminho luminoso a seguir.

ta Terra da Luz, periódico do Grêmio Literário Odorico Castelo Branco, com sede nesta escola. E é por meio da Terra da Luz que poeta

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Aluízio

Medeiros

inicia a popularização de seus versos, cuja lira é pungente.

foi um literato de grande

Mais tarde, cursaria o ensino secundário no Liceu do

presença na cena literária

Ceará e, concluindo, graduaria-se como bacharel em Direito pela

Fortalezense dos anos de

Faculdade de Direito do Ceará, turma do ano de 1944.

1940 e 1950. O poema acima,

Aluízio Medeiros, ainda quando acadêmico de Direito e

“O poeta não pôde”, é uma amostra de sua criação poética, publi-

ao lado de outros amigos, também poetas inconformados com

cado no seu primeiro livro, Trágico Amanhecer (1941), custeado

o cenário da literatura cearense, se uniram e corajosamente,

pelo próprio autor, com tiragem de somente 300 exemplares,

em 1942, realizaram um ousado Congresso de Poesia. Entre

aceitável para realidade editorial local de então, com versos

seus amigos, os poetas Antônio Girão Barroso (1914-1990),“o

sublimes a transmitir sentimento de incerteza, além das dú-

professor de Poesia”, e Otacílio Colares (1918-1988). Isso, quan-

vidas existenciais e da luta contra opressão em todos os níveis.

do o mundo assistia à Segunda Grande Guerra Mundial e o


representado pela figura do Interventor Menezes Pimentel. Mesmo assim, naquele segundo dia do mês de agosto de 1942, eles fizeram a abertura do Congresso de Poesia no Teatro José de Alencar. E só não fizeram o seu encerramento, pois em 18 de agosto daquele ano, a cidade de Fortaleza presenciou o “Quebra-Quebra”, a realidade da Guerra que invadiu o país. Aluízio Medeiros passou a integrar um grupo de jovens literatos e dele nasceu uma nova ação: o I Congresso Cearense de Escritores, desta vez em 1946. Depois dele, nasceria o Clube de Literatura e Arte, ou simplesmente Grupo CLÂ, uma editora homônima e a longeva revista Clã, que durou 40 anos (de 1946 a 1988). Concluído o curso de Direito, Aluízio teve uma rápida passagem pelo serviço público do governo do estado no, então, Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), e colaborou na imprensa cearense atuando como crítico literário nos suplementos dedicados à literatura. Entre eles: Correio do Ceará, Unitário e O Estado. O poeta era adepto da Ideologia Marxista. Foi ativista politico e filiado do Partido Comunista no Ceará, o que o levou também a escrever artigos no jornal O Democrata, porta-voz do Marxismo no estado. A sua poesia sempre buscou revelar as mazelas do sistema capitalista, sendo vate a defender os injustiçados fosse aqui no Ceará ou em qualquer lugar do mundo. Casou-se com Iracema Sales Freire, a dona Iracema Medeiros, e deste casamento nasceram os filhos: Essenine, Frederico, Cláudio e Isabela. Em 1956, Aluízio Medeiros deixou o Ceará e fixou residência na cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhou na revista A Cigarra dos Diários Associados e depois na Confederação Nacional da Indústria (CNI), vindo a falecer lá mesmo, em 3 de setembro de 1971, com apenas 52 anos, deixando-nos como legado poético: Trágico Amanhecer (1941), Mundo Evanescente (1944), Os Hóspedes (1946) – em parceira com Antônio Girão Barroso, Otacílio Colares e Artur Eduardo Benevides –, Os

Cristaleira

Brasil encontrava-se sob a Ditadura do Estado Novo, no Ceará

Trágico Amanhecer – um grito em forma de verso livre – Aluízio Medeiros, como foi mencionado, publicou 10 títulos entre poesia e critica literária, mas destacamos, entre seus livros de poesia, o de estreia: Trágico Amanhecer, de 1941, publicado pela editora Fortaleza com tiragem de somente 300 exemplares. Aqui, uma curiosidade: o contato do jovem poeta com o veterano paulista, escritor e poeta Mário de Andrade (1893-1945). Aluízio Medeiros enviou a Mário um exemplar para sua apreciação. A partir de então, manteve forte correspondência com poeta da Paulicéia Desvairada que, em primeira carta, lhe respondeu que Trágico Amanhecer era forma pura da intensidade poética no meio de um mundo confuso. De fato, a obra traz vinte poemas inseridos na estética Modernista, mas afundado num pessimismo nutrido pelas notícias da Segunda Guerra Mundial, compreendendo que naquele ano, 1941, as ditas nações do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), especialmente a Alemanha Nazista, vinham conquistando, com poderoso maquinário de guerra, o Continente Europeu e o Norte da África, enquanto o Japão dominava Ásia. Naquele momento, o Nazi-fascismo parecia invencível. Aluízio Medeiros percebia esse clima tenebroso, o futuro incerto. E amostra disto é o poema Caminhos - poema nª 2: Já trilhei todos os caminhos do mundo./ Fui aos mares e não vi peixes. Só vi sangue./ Fui aos campos e não vi flores. Só vi ossos./ Fui aos espaços e não vi aves. Só vi pássaros metálicos./ Fui a outras terras conheci outros homens/ outras mulheres outras crianças e não vi sorrisos/ Só vi lágrimas. Só ouvi choro./ Percorri todos os caminhos do mundo/ e voltei com os ouvidos cheios do grito único uníssono/ se avolumando se avolumando pelo tempo adentro. E assim no chega o grito em forma de verso livre do poeta Aluízio Medeiros. Ednardo Honório de Lima Professor de História

Objetos (1948) e Latifúndio Devorante (1949). Na crítica literária: Crítica, 1ª série (1947) e Crítica, 2ª série (1956).

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Cristaleira

Apostasia

Canto do Século

O negro trabalha nos extensos algodoais que ele ama.

Nunca mais ouvirei violinos em surdina

Lincharam um negro nos algodoais de Alabama.

nem planos em surdina nem cantos litúrgicos suavíssimos

O operário caminha para assistir a um comício.

nem músicas de sinos e de órgãos nunca mais.

Em Alagoas assassinaram um operário. É o início.

O espirito mecânico do século esmagou as doces melodias Nunca mais riscos de fogo de esferas vermelhas

Um camponês tomba na terra que ele adora.

nem a cabeleira azul de Olga flutuando no espaço

Morre de fome um camponês na China heroica.

nem alvas gaivotas revoando revoando nunca mais. O céu está plúmbeo o céu está plúmbeo.

Nos despenhadeiros dos confins da Mongólia,

Nunca mais veleiros singrando serenamente os mares

Nas tortuosas ruas dos arrabaldes de Nova York,

nem canções de águas claras nunca mais.

no mais fundo das minas de carvão da Inglaterra,

O navio de aço levou a namorada para a distância

em todas as fábricas e em todas as aldeias,

para a bruma silenciosa da distância.

em todos os recantos do mundo

Os mares estão revoltos os mares estão revoltos.

estão os meus irmãos de hoje,

O barulho do mundo sólido desabou com estrondo.

estão sofrendo os meus irmãos,

Universo que desfalece que desfalece.

estão morrendo os meus irmãos,

Ai mim! Estou esmagado estou cego. Ai de mim!

estão lutando os meus irmãos.

Um anjo metálico com asas de hélices me arrebatará para cima das nuvens.

Contigo estou sofrendo, contigo estou morrendo,

Aluízio Medeiros,

contigo estou lutando,

para Trágico Amanhecer (1941).

por isso estou contigo trabalhador, por isso estou contigo

Para conhecer Aluízio Medeiros:

classe operária.

Medeiros, Aluízio. POESIA COMPLETA. Fortaleza: Casa José de Alencar

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Aluízio Medeiros,

– Coleção Alagadiço Novo- Imprensa

para Os Objetos (1948).

Universitária da UFC, 1996.


Radiadora

Piódão de Açor Às Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino

Sai fumo das chaminés e alarido da escola. Da estrada que a evita e a circunda desce rumor de automóveis. Nessas

Quem chega pela manhã cedo ou ao entardecer não a percebe,

unhas de pedra há laranjais – globos rubros na névoa –, um rio

pela névoa opaca que faz confundir a encosta da montanha e seu

ruge na escuridão e o frio anestesia pele e alma; um rio ruge

casario. Também não a percebe quem chega ao meio-dia, pela luz

nas entranhas da terra e o povo montou em xisto uma vila de

branca e inclemente que incide sobre rochas, paredes e telhados

escadas e telhados negros. Naquelas pedras por onde despon-

feitos do mesmo minério escuro das montanhas, e que, refletin-

ta o pomo rubro das laranjas, em meio à sonolenta luz baça da

do a luz em faíscas, deixam estupefatas as retinas do viajante.

manhã, entrevê-se um estranho éden. No céu vazio um avião

De 9 às 11h e de 14 às 17h a cidade se oferece: a névoa não

a jato rasga cicatriz de tênues nuvens brancas.

a envolve, a faca de sol não cega quem lhe quer ver. Piódão, da

De volta à estrada, na hora em que estudantes iniciam as

Serra do Açor, Portugal, em forma de anfiteatro, poderia cha-

aulas da tarde, Piódão fica para trás. A tarde a reluzirá antes

mar-se Epidauro. As corredeiras de um rio veloz saem de uma

que mais uma noite a devore, como outras tantas fincadas no

curva, perdem-se em outra e deixam-se saltar por pontes ar-

presente da memória e no passado dos atos: eu era outro, a

queadas que convergem para um ovalado palco onde os carros

cidade era outra, a água sob estas pontes não é a mesma de

estacionam em frente ao museu paleontológico.

ontem. Tudo fica perdido na dependência gratuita da imagi-

Talvez uns 200 imóveis, casas, capelas, escola, posto de

nação e vira palavra e espanto.

saúde, supermercado, museu enfileiram-se concentricamente, e quanto mais alta, mais longa a fileira. Entre estes imóveis, tão sólidos quanto a serra, emergem escadarias e veredas ser-

José Jackson Coelho Sampaio jose.sampaio@uece.br

peantes. O xisto da montanha se torna parede e telhado. Na moldura de portas e janelas, azul, verde, vermelho, um raio de cor, além da cal claríssima nos degraus das portas principais.

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Radiadora

O Peso do Morto É possível acreditar nas vozes do morto.

quinas do mercado e desaparecia na escadaria da farmácia em

Elas devem estar em tudo.

que fora esfaqueado.

Moreira Campos

Na sala, o balançar de uma cadeira antiga, uma voz materna a lembrar-se do dia anterior e daquela noite que teima-

O medo e o remorso não vinham em tempestades e trovoa-

va em não acabar.

das, mas em conta-gotas e reticências... Há muito não atendia

– Nesta casa não tem homem. Se meu velho fosse vivo,

porta à noite ou de dia, e o coração tinha esconderijos que o

o nosso nome não estaria na rua a se lambuzar em boca de

guardavam de assombros e pesadelos.

cachaceiro. Ah, se nesta casa tivesse um homem!...

Carregava atado a seu pescoço um morto, e como pesa-

A noite parecia ter neblinado esperma de enforcado, tal

va. Peso sentido por gerações a fio; dizem que seu neto tam-

era a quantidade das mandrágoras que cercavam e invadiam

bém carregava um mortinho atado à cintura e, vez por outra,

a casa pela manhã, quando teve que tocar trombeta para sua

também sentia calafrios ao urinar na calçada.

mulher arrancá-las sem ficar louca. Mandou sua filha mais

Vezes por ano, estranhos cavaleiros madrugavam em sela e em cilhas, a batucar na porta.

nova buscar água no córrego, com seu rosto pálido; obrigou seu filho poeta a buscar flores no campo, com suas mãos tímidas; e,

– Cadê fulano?

à mais velha, incumbiu a tarefa de desenganchar as bruxas, que

– Saiu, foi pra capital!

durante a noite caíam como besouros pelos galhos do oitizeiro e

– Quando volta, sinhá?

rolavam para o telhado a se desmanchar em gargalhadas.

– ...?!?!

Ainda hoje sente o peso da rede do morto, escambicha-

Sentia suas presenças sorrateiras pelo amarelado das

da em varas de cerca, a passar vagarosamente nos rumos do

folhas do jacarandá e as confirmava à boca da noite, com o

cemitério. E se sabe que ele não se deixou enterrar, continua

barulho ensurdecedor das rasga-mortalhas. Nessas noites

tresvariando por aí, descansando à sombra de um baobá.

ninguém dormia... a rememorar visitas mais frequentes e au-

Também se sabe que ele jogou pedras na rede de rendas de sua

dazes, no tempo em que o morto ainda perambulava pelas es

mãe culpada e vive a esperar pelo seu cortejo, para se emparelhar rede a rede, quem sabe se jogar dentro da sua... pra que sinta a envergadura e o peso de um morto. Pedro Salgueiro pedrosalgueiro64@yahoo.com.br

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Uma menina. A seu lado, os restos mortais da mãe e dos

Decide a alarmada então caminhar, ainda que trêmula, e

irmãos. Por sobre seu corpo, sobretudo no rosto amar-

parece procurar no emaranhado das ruínas algo para saciar a

rotado, coágulos de sangue e narinas encharcadas de

sede ou a fome. Por várias vezes curva a espinha dorsal. E em

chorosssssssssssssssssssssssssssss.

seguida alça a fronte e enxuga na fronte o suor. Estende a mão

Snif snif snif snif snif snif snif snif Na lembrança dos ouvidos, o ressoar, dentre outras, de mais uma bombaaaaaaaaaaaaaaa. Bommm, bam pá bum ximmmm zimmmm zummm tum tchum prrrr trrrr trrrr.

e mais uma vez se agachaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhh. Aahhhh ufff ufffahhhh ufff ufff. Por sobre os monturos, com passadas e movimentos trôpegos, mas pacientes, continua a vasculhar em uma busca obsessivamente milimétrica. Reconhece entre os destroços o quarto

Mas não desponta na masmorra de sua garganta um

em que toda vida dormira e nele o espaldar da cama. Arquejante,

grito. Gasta, então, em silêncio todo o seu sopro de vida.

cai de joelhos sobre pedras e pedaços de alvenaria, sob a ânsia

Apenas desentende e respiraaaaahhhhhhhhhhhhhhhhh.

inadiável de quem finalmente esbarra no que quer que venha

Hã, heim Ahn?

à tona. E vem das profundezas da exumação uma menina de

Não diz palavra. Nem há o quê e a quem dizer. Está nas sobras de onde foi a cidade: ruas desmoronadas, um labirinto de

pano que, no entanto, o impacto das explosões não esgarçoooouuuuuuuuuuuuuuuuu. Ooou oou oou oou oou oou oou.

paredes sem teto, telhas no chão, portas e janelas que acessam

Restava também em orfandade. Porém, agora o resgate

o nada. Diante de si, escombros, vestígios, estilhaços-s-s-s-s-s-s-

lhe restitui o vínculo, a relação de amálgama. Com rota roupa

s-s-s-s-s-s-s-s. Ssssschuuuu, ploft, platf, pleft, catapluft cataplam.

de domingo volta, enfim, a filha aos braços inarredáveis da

Acima, um céu de fim de tarde que derrama o vermelho

menina-mãe. Olham-se. Na criança da criança, uma feição de

sobre a sua cabeça. Cadáveres nascidos dos bombardeios res-

beleza anacrônica onde ressaltam os olhos inviolavelmente

tam feitos manequins e por toda parte chamuscados se eviden-

abertos, como se para sempre atentos. Precisam, pelo menos

ciam. Alguns já sem entranhasssssssssssssssssssssssssssssssss.

por enquanto, da misericórdia de não ver os danos ao derre-

Snif snif snif snif snif snif snif.

dor. Para preservá-los, protegê-los, a mão da mãe, de dedos fe-

A órfã está só e não sabe estar só. Há de haver outras

chados, veda nas pálpebras de trapos a visão. Canta, então,

solidões por aí, em des-vielas e ex-becos, nos ermos a esmoooooohhhhhhhhhhhhhhhhh. Ohh oooh humm ah ai ai aaai. Surgem ventos súbitos, golpes de ar que a empurram, mas mesmo indefesa a sobrevivente resiste a rajadas

Radiadora

Pa Pou Ba Bum

um acalantooooooooooooooooooooo. Ôôôô óóóó hum hum hum hum hum. Há durante o canto, mas somente durante o canto, um tempo de pazzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

de poeiras e inclusive ao fogo que ainda, aqui e ali, ao redor

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

também sobrevive. Tem medo. Teme que o medo em metás-

Logo depoissssssssssssssssssssssss chuuuu, ploft, platf,

tase se alastre e venha a varar insone a noite onde presságios

pleft, catapluft cataplam baaa bommm bam pá bum ximmmm

possam paulatinamente contaminar a imaginação. E se nas

zimmmm zummm tum tchum prrrr trrrr trrrr etc etc etc etc

trevas, apenas sob a luz mortiça da lua, tivesse de em vigília

etc etc etc etc etc.

velar o sono dos mortos dali tão próximos e tangíveis? Estão aliiiiiiiiihhhhhhhh. Ih uh ui ui Ih uh ui ui Ih uh ui ui.

Ricardo Guilherme ricardo-guilherme@uol.com.br

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Radiadora

Mãos e Asas

Neminem

Poema na Praia

Todo livro tem duas capas

Ele que nascera sem posses

Por vezes

– Como se sabe bem –

tinha de seu a propriedade

escrevo com os pés descalços

E os pássaros têm duas asas

de um nome

à beira da praia

Que os levam além

(logo porém convertido

o sol queimando os ombros

em diminutivo)

o corpo entregando-se às ondas

As duas capas de um livro,

Ele que crescera sem passaporte

a sola da alma

Entretanto, porém,

tinha de seu a portabilidade

pisando em água-viva.

Não fazem o livro voar

de um apelido

Fazem voar os que leem

(mas idêntico ao de tantos

Jesus Irajacy Costa

divíduos)

irajacy@yahoo.com.br

São como duas mãos mágicas

Ele que vivera sem pose sem scotch

Que em muitas ou poucas páginas

tinha de seu a personulidade

– E isso não importa nada –

dos anônimos

Podem guardar de tudo

(vindos do e devolvidos ao

Contabilidade

olvido) a vida vamos pagando

Acreditem no que eu digo As capas de um livro

Ele que morrera por sorte

em suaves prestações:

São asas emprestadas

tem de seu a hospitalidade

anos e anos levando

São mãos de juntar o mundo

da gaveta 9

a hipotecar ilusões

(onde aguarda finalmente ser Marília Lovatel

as promissórias vencidas

reconhecido)

a juros acumulam juro

marilia.lovatel@fariasbrito.com.br Lembre-se irmão mesmo o joão-ninguém antes de ser ninguém é joão

de quantas vidas precisas para saldar o futuro? e, embora seja credor da esperança não cumprida, da boca jamais beijada

Alves de Aquino deaquinoalves@gmail.com [também dito “O Poeta de Meia-Tigela”. Membro-fundador da Academia dos Ausentes, na qual desocupa a cadeira número 0, cujo patrono é O Homem Invisível.]

serei sempre devedor: - da morte, que paga a vida, - da vida, que me deu nada

Dimas Carvalho dimasacarau@bol.com.br

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