VOL. 3 | nº 3 Abril de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373
Apoio:
Realização:
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
04 06 07 ARTIGO
FLORES DE AÇUCENA
O Sertão de Marica Lessa O marujo que mexeu e Dona Guidinha do Poço na abóbora da Ribinha Bruno Paulino
Audifax Rios
CHAPULETADAS Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo
João Dummar Neto presidência André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira Raymundo Netto gestão de projetos Emanuela Fernandes análise de projetos
Gisa Carvalho
Um livro a ser descoberto* Alfredo Monte (in memoriam)
11 12 15 GENTE ILUSTRADA
CRISTALEIRA
RADIADORA
Daniel Dias
Jáder de Carvalho entre a presença e a ausência
Sânzio de Azevedo
Sarah Diva Ipiranga
Lucirene Façanha Rejane Nascimento Cupertino Freitas Almir Mota
24
Magna Maricelle
TIRAGOSTOS
Fabricio Saldanha
Alexandre Henrique
Luana Braga
Raymundo Netto
Valdemar Neto Terceiro
Artista da capa
José Jackson Coelho Sampaio
Audifax Rios (in memoriam)
Talles Azigon Rita Brígido Raisa Christina
Alan Mendonça
MARACAJÁ Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral Emanuela Fernandes assistência editorial Bruno Paulino, Gisa Carvalho, Alfredo Monte, Daniel Dias, Sarah Diva Ipiranga, Alexandre Henrique e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”) Audifax Rios (in memoriam) ilustrações Amaurício Cortez editor de design Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores. Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018. ISSN 2596-1373
Todos os direitos desta edição reservados à:
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fdr.org.br/maracaja Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br
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Do Alpendre
Maracajá não precisa de vocês Maracajá, em 7 de abril de 1929 Olhe, menino, você não deve comprar esta revista. Compre o seu chocolate e vá ao cinema berrar seu entusiasmo pelo cowboy. Olhe, menina (sei lá quantos anos você tem...), você não deve comprar esta revista. Compre o seu ruge, o seu carmim – faça do rosto duas papoulas e dos lábios anêmicos – com que você desperta o coração sangrento que ri para toda gente fútil da cidade.
Abril é um mês de comemoração, mas também de saudade. Foi em abril, num dia 17 (1946), que fez pouso nesse plano o santanense (de Marco) Audifax Rios. Também em abril, em 25 (2015), a onça caetana o arrastou para outra morada. Quem o conheceu e/ou conheceu a sua vasta e múltipla obra (crônicas, romances, pesquisas, pinturas, gravuras, cenários, almanaques e revistas, ilustrações e DE UM TUDO mais), sabe o tamanho da lacuna que esse sempre jovem, inquieto e cria-
Olhe, coronel, você não deve comprar esta revista. Você não entenderá nada do que ela contém e ficará arrependido dos níqueis que arrancou da bolsa. Guarde o seu dinheiro para o champanhe da francesinha.
tivo artista, no vigor dos seus 69 anos, nos deixou. Pessoa simples, tímido demais, a contrastar de suas camisas berrante-coloridas, desfilava entre rostos de apáticos a admirados, carregando sua bolsa de couro com sua marca pirografada imitando ferro de marcar boi, não dispensando uma boa conversa, falando baixinho das gaiatices da vida, da literatura de todo mundo – lia que
Olhe, almofadinha, você não deve comprar
era um danado – e contando causos e histórias dos bares de Fortaleza, cheio de ideias
esta revista para fingir que sabe ler e que é
e disponibilidades.
rapaz de espírito. Guarde seu dinheiro para as prestações do alfaiate. Olhe, garoto, você não apregoe Maracajá. Água, conselho e Maracajá só devemos dar a quem chama a gente a um canto e pede
É em homenagem a essa saudade inapagável e raramente coletiva desse nosso “tipo inesquecível”, que a Maracajá de Demócrito nos traz uma edição AUDIFAX RIOS especial, reverenciando a imortalidade daqueles que não morrem mesmo, pois que o talento não deixa. Daí, o convidamos para ilustrar essa edição, e ele, como de costume e sem cangapés, nos disse “Eu faço é na hora!”
baixinho.
Raymundo Netto Olhem, vocês todos, fiquem certos que Ma-
Curador e editor de Maracajá
racajá é um gato selvagem de boas garras e basta-lhe o mato para viver.
Último cabrito a ser entronizado por Audifax na Galeria Caprina do Clube do Bode (nº 225),
Antônio Garrido (Demócrito Rocha)
Ata nº 690, Livro de Atas nº 38, em 11 de abril de 2015.
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Artigo
O Sertão
de Marica Lessa e Dona Guidinha do Poço “O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da
muitos anos na fazenda “Canafístula” – palco principal da tra-
estrada a cruz sobre a cova do assassinado não indaga do crime, tira
gédia – no tempo de Damião Carneiro, o bandeirante do sertão,
o chapéu e passa.”
como o definiu Armando Falcão em livreto escrito sobre o fazen (Euclides da Cunha, Os Sertões)
deiro. Quando o vovô trabalhou por lá, anos 50 do século XX, a história de Marica Lessa, antiga dona daquelas terras, ainda estava fresca na memória de muita gente que morava por ali. Ele aca-
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uando era criança, meu avô Luís
bou guardando muitas delas, e eu tive a sorte de ouvi-lo contar.
Paulino foi quem primeiro me
Hoje quase ninguém se lembra dessas histórias na região.
contou sobre “a história da mu-
Da casa grande de Marica não resta mais uma parede
lher que mandou matar o mari-
sequer em pé, porém, é possível encontrar muitas porcela-
do”, como ficaria conhecida no
nas nos escombros, o que demonstra quão rica de fato, ela era.
imaginário dos rincões de Quixeramobim a tragédia greco-
Da velha “Canafístula” resta apenas a capelinha da Sagrada
sertaneja ocorrida em 1853, envolvendo a matriarca e eter-
Família (Jesus, Maria e José), onde ainda se reza missa pelo
na personagem do sertão Maria Francisca de Paula Lessa, a
menos uma vez no mês.
Marica Lessa, e seu marido o cel. Victor de Abreu Vasconcelos.
Uma história que meu avô contava era que quando Marica
O coronel fora assassinado em seu lar, pelo escravo
Lessa foi presa na fazenda, após preso Corumbé e ele acusá-la
Corumbé, supostamente a mando da esposa. O vô Luís trabalhou
de mandante do crime, vinha ela escoltada para a vila por um
e da consulta dos documentos cartoriais
lembro de o vovô me garantir como
de uns seis quilômetros da “Canafístula”,
do caso, e resolveu escrever o romance,
verdade absoluta.
ela mandou que parassem numa casa e
que só veio a ser publicado na íntegra
Outro fato relevante: Marica Lessa
pediu que o morador, seu agregado, pas-
em 1952, através do esforço da crítica
é a madrinha de batismo de Antônio
sasse um café, que logo ela viria, após re-
literária Lúcia Miguel-Pereira, que re-
Vicente Mendes Maciel, o “Antônio
solver um mal-entendido, para tomarem
cebeu um original das mãos do escritor
Conselheiro”.
esse café juntos. Porém, Marica Lessa
Américo Facó, que, por sua vez, o havia
sustentam que, quando ela foi presa,
nunca mais voltaria à sua “Canafístula”.
recebido de Antônio Sales .
Antônio teria testemunhado todos esses
1
Muitos
historiadores
Proprietária de uma imensidão de
O historiador Ismael Pordeus,
acontecimentos e que, certamente, aque-
terras e de grandes rebanhos de gado,
natural de Quixeramobim, publicou
las cenas deram-lhe um entendimento
além de teres e haveres de ouro e prata,
em 1961 o festejado estudo À margem
de como funcionava a Justiça, afinal,
a matriarca sertaneja despertou a inve-
de Dona Guidinha do Poço: história ro-
muitos creem que Marica foi vítima de
ja de seus inimigos e a cobiça de alguns
manceada, história documentada, em
uma intriga política. Ismael Pordeus afir-
membros da Justiça. Ao ser acusada
que comprova que a ficção de Oliveira
ma ainda no seu estudo que o “crime” de
do crime, Marica, uma mulher rica e
Paiva teria sido inspirada no caso real
Marica Lessa teve como pena 20 anos de
mandona numa sociedade patriarcal
de Marica Lessa. Desse modo, os nomes
reclusão, mas segundo Gustavo Barroso
do século XIX, ficou à mercê de seus
Marica Lessa e Guidinha do Poço são
ela ficou muito mais tempo presa, resul-
desafetos. Aos poucos, foi se desfazendo
hoje indissociáveis na memória social
tando morrer na miséria, aos 85 anos, nas
dos seus bens, vendidos a preço de
de Quixeramobim, num entrelaça-
ruas de Fortaleza, como uma “semilouca”,
banana para cobrir as despesas com o
mento perfeito entre ficção e história,
a bradar reiteradamente: “Deus é teste-
processo do qual nunca pôde se livrar.
embora não esqueçamos o alerta do
munha que não mandei matar ninguém!”
Depois que o vô Luís me contou a história da mulher que mandou matar
escritor Milan Kundera: “o romance não tem compromisso com a realidade”.
Bruno Paulino é escritor, professor
o marido, fiquei curioso para saber mais
Nesse sentido, outra lenda que
e pesquisador, autor de A Menina da
sobre o assunto. Logo passei a pergun-
muito se divulgou e que ainda hoje en-
Chuva, Pequenos Assombros, Sertão:
tar aos adultos sobre aquela história.
contra eco foi que Marica Lessa teria
poetas e prosadores, entre outros.
Descobri que tinha se escrito um livro
mandado construir – destinando a
bruno_enxadrista@hotmail.com
sobre a trama, mas naquela idade não
maior parte dos seus recursos – o pré-
atinei para ler o afamado romance
dio de Câmara e Cadeia, e que teria sido
Dona Guidinha do Poço, do escritor ce-
ela a primeira prisioneira do recinto.
Dona Guidinha do Poço, de
arense Oliveira Paiva (1861-1892). Só
Esse fato é refutado por quase todos
Oliveira Paiva, pode ser encon-
depois, já na faculdade é que o li.
os historiadores que consultei, mas me
trada facilmente na internet
Em 1889, atacado pela crise da tuberculose e em busca de um clima que lhe fosse mais aprazível, Oliveira Paiva pousou em Quixeramobim. Foi aí que teve contato com a trágica história de Marica Lessa, por meio da tradição oral
Artigo
enorme cortejo de homens e, na altura
1 Nota do Editor: Antônio Sales havia entregado uma cópia dos originais para Lopes Filho, seu confrade na Padaria Espiritual, que a perdeu. Outra cópia havia sido entregue a José Veríssimo, que não chegou a publicá-la por conta da falência da Revista Brasileira, ainda nos anos de 1940. Felizmente, mais tarde, Lúcia Miguel-Pereira encontrou essa cópia com Américo Facó.
em editoras diversas e em sebos virtuais. Não deixe de ler essa obra. LER TAMBÉM do autor A Afilhada, publicada originalmente em folhetim em 1889.
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Flores de Açucena
O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha Não pergunte pelo louro em Icó e nem fale de muriçoca em Sobral, se quiser se dar bem. E em Natal, peça tudo para acompanhar a saborosa carne de sol – macaxeira, manteiga da terra, cebola vermelha, farinha d’água – menos jerimum. Maria do Ribamar era de Caiçara do Rio dos Ventos, ali encostada à Cachoeira do Sapo, no sertão do Cabogi, no vizinho estado do Rio Grande do Norte. A coisa por lá andava também preta, a família mudou-se para estas bandas de cá, onde o pai vislumbrava um meio de vida melhor para sustentá-la. Caiu na construção civil, a mulher lavava roupa nas mansões da Aldeota e os filhos ficaram jogados num barraco espremido no vão das dunas mortas do Morro de Santa Terezinha. De tanto olhar para o Farol Velho, fascinada por um não sei o quê, a Ribinha desceu definitivamente e sentou praça no “Sereno da Madrugada”, um cabaré malafamado, enfestado de marginais e marujos vindos d’além-mar. Anos de infortúnio passados, um dia, o farol piscou uma luz alaranjada, como há muito não ousava brilhar. Aportara um cargueiro da Holanda assim de marujos ruivos, cabelos cor do brilho do farol, a barba roxa afogueada. Um deles gamou pela Ribinha e quis demonstrar sua gratidão, além dos euros, com um presente singular: uma camisa da seleção do tempo do carrossel holandês, dizia até que era a do Cruyjf. O marujo arrastava um pouco do português, saldo de inúmeras viagens a estes brasís, e, ao dar o presente, fez alusão à cor da camisa, não laranja, mas, sim, abóbora. Pra quê! A Ribinha ficou possessa, mandou o Popeye lá socar a camisa no seu baú mais indevassável, que comedor de jerimum era a mãe, e um bocado mais de desaforos que o gringo fogoió jamais irá traduzir. Extraído de O Riso, a Fé e a Dor, vol. 1, Edições Livro Técnico, Fortaleza, Ceará, 2002.
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Chapuletadas
Jarid Arraes
e as fraturas do cordel contemporâneo cordel cearense está mudando. Aliás, todo o universo do cordel está em transformação constante, a despeito da vontade de muitos daqueles que insistem em situar a poesia tradicional em um passado supervalorizado e conservador. Mas as mulheres estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento. Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhecê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segunda metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid – poeta cujas produções eu estudava na época.
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Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento
Chapuletadas
narrativas sobre as vidas de Antonieta
em suas composições. Discussões sobre
de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de
gênero, sobre sexualidade, sobre corpo,
Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança
peso, cabelos, autoaceitação são trazidas
Garcia, Eva Maria do Bonsucesso,
em seus folhetos de uma forma didática
Laudelina de Campos, Luísa Mahin,
e lúdica, e isso significa transformação.
Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis,
O que Jarid traz para o cordel são
Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza
quebras de tabus, tanto nas temáticas
de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.
quanto na própria definição do “que é
A proposta de Jarid é quase que
cordel”? Um questionamento cujas res-
uma meta-historiografia. Está inserida
postas passam pela forma, pela estrutu-
em um contexto combativo, militante.
ra, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja
Parte de uma reconstrução das memó-
história aponta para uma ampla diver-
rias, lançando luz ao que estava deixado
sidade de “origens”. Mas essas definições
no plano do esquecimento. Salete Maria,
todas terminam por serem muito mais
Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene
excludentes do que agregadoras.
Holanda, a recém-conhecida por mim
Ser mulher, poeta, cordelista e
Auritha Tabajara, Bastinha... todas tam-
falar sobre feminismo e questões ra-
bém trazem, aos seus modos, a política,
ciais, desafiar a institucionalidade que
a resistência, a militância em sua poesia.
tenta definir o cordel a partir do conhe-
A marca poética de Jarid está si-
cimento de um pequeno grupo de ho-
tuada no feminismo negro. Ela conta
mens compõem a desestabilização que
que sempre teve muita dificuldade em
Jarid traz a um universo que muitos
conhecer histórias de mulheres e, prin-
pretendem congelar. Mais do que fe-
cipalmente, sobre mulheres negras. Por
char um conceito para o cordel, a poe-
isso, se dedica a pesquisar e conhecer
sia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimen-
essas mulheres de forma a contribuir
sões simbólicas, culturais, históricas e,
com a visibilidade dos trabalhos delas e
sobretudo, política.
de tantas outras que ainda devem estar escondidas, mas que iremos encontrá-las.
A existência do cordel é um ato político.
A poesia de Jarid é potente. É resis-
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Jarid publicou em 2017 um livro
tência, é questionamento. É rompimen-
Gisa Carvalho
de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras
to. É a saída dos lugares-comuns do que
Jornalista e doutora em Comunicação
em 15 cordéis, que somou-se aos seus
se pretende – institucionalmente – que a
pela Universidade Federal de Minas
mais de 60 títulos de folhetos. O livro
poesia de cordel seja. Ela é o próprio con-
Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cor-
Heroínas... conta as histórias de mu-
ceito de tradição, que depende de reno-
del desde 2009 e tem interesse nas ma-
lheres, que foram escolhidas a partir
vações para que permaneça. Assim, ela
nifestações e performances contempo-
de uma série de cordéis sobre heroínas
usa redes sociais, recursos digitais e uma
râneas dessa prática.
negras que a autora já produzia. São
série de elementos contemporâneos
mgisacarvalho@gmail.com
a ser descoberto*
Chapuletadas
Um livro
esmo não levando em conta o restante da sua prolífica obra, Nilto Maciel (1945-2014) teria lugar garantido na melhor literatura brasileira com Os Guerreiros de Monte-Mor. Transcorrendo na virada do século XVIII para o XIX, até os tumultuosos anos da Independência e as décadas do Império, é incrível como o autor cearense não parece fazer qualquer esforço para apresentar uma narrativa “histórica”. E ainda assim, com seus tipos humanos bizarros, exagerados, Os Guerreiros de Monte-Mor nos transporta convincentemente para uma época arcaica, ainda marcada pela “longa duração”: as quatro gerações do clã Cardoso, através dos seus “varões assinalados”: Antônio, João, Pedro (este, na verdade, destoará nessa continuidade) e José. O que os une é a utopia separatista: parcialmente descendentes de um povo indígena (Jenipapo), o sonho é expulsar os portugueses e recriar uma grande nação nativa. Encantando-se com todos os movimentos revoltosos (desde a Inconfidência até a Confederação do Equador), desconfiados do proclamado Império, cada geração se propõe a efetivar a justa rebelião. Antônio estagnará numa existência pacata (com seu hobby de idear armas estrambóticas) e Pedro também optará pela rotina de colono conformado (mais tarde, será malvisto como um “espião” dentro da família). Já João (cujas perambulações e ziguezagues ideológicos da juventude acompanhamos com mais detalhe) e o neto José, mais exaltados, se conluiam a certa
9
Chapuletadas
altura, com o acréscimo de um escudeiro, Chicó, índio velho
E em meio a todas essas extravagâncias e esturdices, daque-
da etnia Xocó e Sancho Pança desses quixotes sertanejos, para
les que foram sendo deixados para trás no processo político na-
mirabolar a estratégia da invasão da Vila de Monte-Mor (na
cional, uma linguagem de admirável precisão (além de deliciosa).
serra de Baturité, no Ceará) e proclamar a nova nação. Lastimavelmente, nas suas reuniões conspiratórias, não
É um mundo Ariano Suassuna coado no filtro machadiano. Nada falta, nada sobra.
chegam a um acordo sobre o nome a adotar do nascedouro país, nem sequer a hierarquia entre eles, e mesmo de que
Alfredo Monte (1964-2018)
forma comunicarão ao mundo essa sacudida geopolítica.
Crítico literário e doutor em Teoria Literária e Literatura
A principal arma na invasão da vila: morcegos adestra-
Comparada (USP)
dos por Chicó, e este aproveita essa circunstância para, num inesperado golpe de estado, reivindicar a chefia da empreita-
(*) Resenha publicada originalmente em A Tribuna, de Santos, em 6 de maio de 2014.
da, justamente quando ela é levada a cabo. Portanto, o cômico (chegando ao ridículo) e o patético se unem na caracterização do trio visionário, conforme seu projeto utópico vai se tornando mais obsessivo. Mas o que faz de Os guerreiros de Monte-Mor um grande e
Nilto Maciel (perfil biográfico) da Coleção Terra Bárbara,
inesperado romance, além da maneira sinuosa, mas firme, com
por Raymundo Netto (EDR)
que incorpora os acontecimentos políticos daquelas décadas
livrariadummar.com.br
em que o país passou de colônia a Império (usando a técnica
Para adquirir Os Guerreiros de Monte-Mor, de Nilto
do “ouviu dizer”, do que foi contado e aumentado), é o fato de
Maciel (Armazém da Cultura)
que os personagens não se limitam a caricaturas. Das relações
armazemdacultura.com.br
familiares tensas até o compartilhamento belicoso da loucura revolucionária, o trio sempre parece muito verossímil para o leitor. Inclusive pelas suas contradições: João quer instaurar uma grande nação indígena, mas seu vocabulário e imaginário estão repletos do cancioneiro e dos mitos importados (não há a mais leve alusão a nenhum elemento da cultura pré-homem europeu): “De conversa em conversa, compreendeu João a necessidade de criação de um exército, antes de iniciar a guerra nativista, a maior guerra desde o começo do mundo. Coisa para ficar nos livros, nunca ser esquecida.”
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Para saber mais sobre Nilto Maciel:
Gente Ilustrada
Daniel Dias Ilustrador e artista gráfico. Nasceu em Fortaleza - CE, no ano de 1976. A maior parte da sua produção é destinada ao público infantil e infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. Atualmente, trabalha em projetos editoriais de fomento à leitura e de acesso ao livro. A ilustração “A conversa dos jovens com os clássicos” integra o livro do Programa Círculos de Leitura: a arte do encontro, do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial (2018).
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Foto: Arquivo Nirez
Cristaleira
Cristaleira
Jáder de Carvalho
entre a presença e a ausência “Às vezes fico tanto no passado/ que, vendo o luar na noite, vejo o leite/ correr do peito de uma escrava negra...” (Jáder de Carvalho)
a revista Maracajá, de abril de 1929, encontramos uma bela e persuasiva carta de Jáder de Carvalho (1901-1985) a Paschoal Carlos Magno, ator, poeta e teatrólogo que estava visitando o Ceará a fim de divulgar os ideais do projeto modernista para o país. Mal sabia Magno que já éramos modernos antes de o Brasil o ser e que Jáder, como poucos, tinha a noção da brasilidade assentada em si e na sua luta social: “Você não avalia o trabalho que nos vem dando o Brasil. É lá brincadeira! Mal a gente acaba o Acre, já está ouvindo o grito de São Paulo chamando a gente! Olhe: até o Peru precisou de nós. Dá-se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense se volta de mãos vazias. E, se vem do Amazonas – aquela terra menina, onde mal reportam os seios – é deste jeito: escapando do impaludismo para morrer de beribéri”. O Jáder que transparece nessa fala representa sua feição mais engajada, a mesma que, dois anos antes, em 1927, havia participado de uma publicação, O canto novo da raça, juntamente com outros três autores, apontada, por Sânzio de Azevedo, como o marco do Modernismo no Ceará. A filiação ao Grupo dos Modernos, entretanto,
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A luz solar, que se expande nos versos, em alguns mo-
clasta, esquivou-se de ‘escolas’ para criar seu rumo nas letras.
mentos passa a atormentar o poeta, que busca nos versos mais
Independente, tanto política quanto literariamente,
íntimos uma sombra para uma outra dor: a da solidão. Daí os
construiu uma carreira que oscila entre o lirismo, a melan-
Cristaleira
finda rapidamente, pois Jáder, de caráter irreverente e icono-
títulos dos livros que seguem: Delírios da solidão e Menino só.
colia e o compromisso social. Suas obras mais conhecidas são
Mais próximo da sua morte, publica Rua da minha vida,
aquelas cuja ênfase social é dominante (Classe média, Doutor
produção amadurecida, em que o poeta retoma o local de ori-
Geraldo e Sua majestade, o Juiz,), assim como o regionalismo
gem, tão presente e cantado em Terra bárbara, mas agora com
(Terra bárbara e Terra de ninguém). No entanto, Jáder tem na
um tom de nostalgia e despedida e assume-se como um sujeito
poesia autobiográfica um acento literário especial, em livros
poético melancólico e entristecido. Sai o vaqueiro errante ou
que tratam da sua infância (Menino só), do envelhecimento e
o sertanejo valente e imiscui-se um agricultor de lembranças,
da morte (Cantos da morte, Delírio da solidão e Rua da minha
cuja lavra é de poemas adormecidos na saudade e na despedi-
vida). Há que se fazer menção também que foi ganhador do
da próxima. Por isso, a ausência, na sua conformação geográ-
prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de
fica, emocional ou espiritual, é a dor mais sublinhada, cons-
Letras, pelo conjunto poético de Água da fonte.
tituindo-se o centro de irradiação da sua lírica. Se no poema “Terra bárbara” afirma sua pertença valorosa ao Quixadá, em
De braços com o poeta Para compreender um pouco desse homem de várias faces, olhemos novamente para “Terra bárbara”, poema mais emblemático da vertente telúrica, lírica e regionalista do poeta e sua feição mais conhecida e assentada no imaginário local. Nele encontramos as marcações clássicas do pertencimento e da filiação identitária: Eu nasci nos tabuleiros mansos do Quixadá E fui crescer nos canaviais do Cariri, Entre glebas e caboclos belicosos e ágeis. Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, Eu sou o índice do meu povo: Se o homem é bom – eu o respeito. Se gosta de mim – morro por ele. Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me, Ai, sertão! A dramaticidade e a valentia que imprime ao poema serão marcas que distinguirão o poeta, sobretudo em Terra de ninguém e Terra bárbara, nos quais guarda no mesmo embor-
“Joaquim”, retorna nostalgicamente ao nascedouro, marcado agora pelo silêncio e pela falta: Não me chamaste, Quixadá. Mas eu vou. [...] Há quantos anos não nos vemos? [...] Lembras-te, Quixadá, do primeiro arado Que te rasgou a terra? O comprometimento de Jáder de Carvalho com os movimentos sociais e políticos do estado acabou retendo-o em Fortaleza, o que ocasionou o abandono de uma carreira no sul do país, como fizeram muitos cearenses em busca de reconhecimento. O fixar-se na terra, entretanto, se conferiu prestígio local, acabou por causar um leve desgosto no poeta. Por isso, ao final do poema, após o reencontro bucólico com a terra natal, muda de tom e rumo e lamenta a escolha que poeticamente também o afastou de si e da possibilidade de se dedicar a outro manejo poético, mais confessional e autobiográfico e, ao mesmo tempo, mais próximo de uma projeção nacional. Assim, a queixa invade o antes bárbaro sertão e deseja outras geografias:
nal súplica e revolta, injustiça e regeneração.
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Cristaleira
Quixadá, sinto-me desiludido do meu nome.
Assim, no princípio e no fim, as angústias se instalam e
Nome que não anda. Não deixa o Ceará. Parado.
se tocam. Como dar sustentação à velhice e aliviar o futuro,
Dize ao teu vigário
com a morte à porta? Resta ao poeta, em seu isolamento, físico
Que desejo rebatizar-me, agora nas águas do Cedro.
e psicológico, reclamar essa falta. Entre presença e ausência, o
O novo nome? Joaquim,
ato poético se faz.
Vamos ver se esse não é como Jáder: gosta de andar... Sarah Diva Ipiranga A solução encontrada, ao final da vida, é singela e, ao
Professora Adjunta de Literatura Comparada do curso de
mesmo tempo, dolorida: mudar de nome. O nome sugeri-
Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Pós-doutora
do, Joaquim, é o do bisavô que veio de Portugal e representa
em Literatura Brasileira pelo Centro de Estudos Comparatistas
o ethos do viajante que Jáder nunca conseguiu incorporar.
da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Estudos
Percebe-se, portanto, que, com o envelhecimento, é comum
AMI (Autobiografia, memória e identidade) e autora do livro O
o desejo do não feito, do deixado para trás, do sofrimento da
sol na palavra: a literatura cearense sob o signo solar.
ausência e da incompletude. Por isso, busca-se refazer um
sarahdiva31@gmail.com
caminho já sabido impossível. Dessa forma, a dor duplica-se: além dela mesma, a impossibilidade da cura. Bem exemplar dessa feitura é o poema “Outra infância”, que resgata o sen-
Para conhecer Jáder de Carvalho
timento do irreversível mediado pela proximidade da morte:
Nascido em Quixadá, Ceará (29 de dezembro de 1901) e falecido em Fortaleza (7 de agosto de 1985),
Imagino um Deus,
é um dos nomes mais representativos da literatu-
Dono de todos os poderes,
ra produzida no Ceará. Com 16 anos, em Iguatu,
capaz de ver através de olhos cegos, de falar muito alto
por meio de uma tipografia, iniciou a publicação
de dentro de toda mudez,
de seus escritos, além de sonetos de Olavo Bilac.
para que me devolva a infância:
Em 1928, fundou o jornal A Esquerda. Mais tarde,
a infância que perdi
em 1947, o Diário do Povo e, nos anos de 1960, a
antes do tempo de perdê-la.
convite de Paulo Sarasate, passou a publicar em O POVO. Entre 1943 e 1945 esteve preso, acusado
O Deus que invoca tem algo de mórbido e vidente, cego como Tirésias e poderoso como um oráculo:
de comunista e por criticar o governo de Getúlio Vargas. Foi membro da Academia Cearense de Letras e, em 1974, foi eleito Príncipe dos Poetas
Repito:
Cearenses. Para saber mais sobre o poeta, acesse
Devolve-me a infância
o documentário “PERFIL: Jáder de Carvalho”, da
Ó Deus que enxerga pelos olhos dos cegos,
TV Assembleia do Ceará.
Escutas o mundo Pelos ouvidos mortos E falas, com clareza, Nas línguas paralíticas.
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Radiadora
A Capa de Chuva Era tempo de chuva. Um rapaz que gostava de festas e tinha
naquela mesma semana em um clube do bairro, olhou-o fixa-
fama de namorador encontrou, num baile de clube suburba-
mente e disse, a voz trêmula:
no, uma jovem que lhe chamou a atenção pela beleza: alva, loura e de olhar tristonho. Tirou-a para dançar, e tão bem se entenderam que, naquela noite, nenhum outro rapaz dançou com ela, nem ele dançou com outra moça. Tarde da noite, quando ela se despediu, revelando que prometera à mãe não se demorar muito no baile, pediu-lhe que não procurasse segui-la.
— Tive apenas uma filha, e se chamava Alzira... Mas ela morreu. Morreu há mais de cinco anos. Entre, por favor. Como ele insistisse na história, com o forte argumento de que a moça lhe havia dado nome e endereço, a senhora foi buscar um álbum de retratos e, passando as páginas, pediu que ele apontasse a moça com a qual havia dançado. — É esta aqui!
No momento em que a jovem ia saindo, começou a cho-
— Impossível. Esta é a Alzira, mas ela morreu, como eu
ver. O rapaz, por gentileza ou por vontade de revê-la, empres-
lhe disse. Vamos ao cemitério, que não fica longe, para que o
tou-lhe sua capa de chuva, ao mesmo tempo em que, rindo,
senhor se convença de uma vez por todas.
perguntava como a receberia de volta e qual o seu nome.
Tomaram um ônibus e já caíam os primeiros pingos de
— Meu nome é Alzira. Anote meu endereço.
chuva quando entraram no campo-santo. Com a força do
Dois dias depois, numa tarde de céu nublado ameaçando
vento, os ciprestes farfalhavam. Mas antes que a mulher de
chuva, foi ele à rua indicada e, chegando à casa cujo número
cabelos grisalhos mostrasse ao rapaz o jazigo da filha, ele re-
havia anotado, bateu palmas. Ao ser atendido por uma senhora
cuou, lívido. Sobre um dos túmulos estava estendida a sua
de cabelos grisalhos, indagou se ali morava a senhorita Alzira.
capa de chuva...
A mulher esboçou um gesto de espanto e perguntou de onde ele a conhecia. Ao saber que jovem havia dançado
Sânzio de Azevedo sanziodeazevedo@gmail.com
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Radiadora
A Conexão Ao sentar na cama, sonolento, o ar frio eriçando os pelos, olha com saudade a cidade. As luzes acesas, sem carros ou transeuntes nas ruas. Uma manhã atípica. O termômetro marca 21ºC. O sol poderoso que enche seu quarto todas as manhãs
– Onde está sua mãe? Como em resposta, uma mulher alta, bastante magra, de longos cabelos está ao lado deles, olhando-o curiosa:
está descansando. Aguardando, quem sabe, sua movimen-
– Desculpe, ele está importunando?
tação, um truque, talvez? Resoluto enfrenta. A hora chegou.
A pergunta proferida diverge do olhar de censura e des-
Reescrever sua história, como um poema: uma linha e outra,
confiança, ao pousar no pacote sendo consumido pelo menino.
e mais outra. Essa sensação de força e esperança o acompanha. Optara
– Eu que peço desculpas por ter atendido ao pedido dele sem consultá-la. Não me importunou de maneira alguma. Boa sorte!
pela mudança. Escolha certa após rompimento. As dúvidas o
Dirige-se ao garoto já arrastando sua mala para afastar-
assaltaram no início. A proposta de trabalho, depois de todas
se. Observa no painel que seu voo atrasara. Senta-se distante,
as etapas do processo seletivo, enriquecera-o, encorajara-o.
onde uma nesga de céu escuro e chuvoso deixa-se ver através
No saguão do aeroporto, resgatando-o dos pensamentos
das vidraças. Aquela conexão estava minando o bem-estar
que preenchem sua mente, um menino animado, roliço, de
que sentira ao acordar. Fechou os olhos. Ao ouvir o chamado
olhos negros e cabelos abundantes o aborda:
de seu voo, caminha na outra fila e vê o garoto com a mãe. Um
– Por favor, tio, abre esse pacote para mim?
olhar de desdém o insulta.
Com o braço distendido mostrava um pacote de chips.
Meses depois, totalmente incorporado ao ritmo da nova
Olhou em volta procurando alguém que acompanhasse aque-
empresa e aos ares da cidade que o recebera acolhedoramen-
la criança.
te, é convocado para um seminário. Encontra diversas pessoas
– Machuquei o dedo brincando – continua o menino –, fica difícil pressionar. Põe a mão no ombro do garoto, recebendo o pacote, enquanto isso seus olhos vasculham o ambiente buscando alguém que demonstre observá-los. Em vão. Indaga: – Está com fome? Vai viajar para onde? – Não é fome. Minha mãe me proibiu de usar o celular ou outro jogo. Vamos para o Nordeste de férias e você?
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– Vou para o Sul a trabalho. – Devolve o pacote já aberto.
com as quais travara conhecimento. Caminha entre as cadeiras, buscando um lugar central de boa visualização. Ao sentar é que observa. Ela o olha entre divertida e curiosa: – Olá, trouxe chips? Lucirene Façanha lucymlffacanha@hotmail.com
Radiadora
Asas para Rute Rute, 15 anos, entrou em casa com o olhar diferente e cor inde-
Um pouco de paz Rute só encontrava na casa de
cifrável nas faces salientes. O pai, um rude homem do campo,
Damiana. E era lá que, dia após dia, entre o feijão no fogo e
não conseguia decifrar o que ali se passava. Nem queria. Na
as panelas espelhadas ou uma troca de mantimento, que Rute
sua ignorância ruminava como a vaca magra que lá longe cor-
tecia suas asas para a acalentada liberdade.
tava o mato: “conheço essa inquietação. Mas se essa menina
– Abra, Rute! – vociferou o homem!
está pensando que vai ser como a danada da mãe e a sem-ver-
– Está aberta, pai – tratou de responder a menina para
gonha da irmã... não vai mermo”.
não piorar sua situação.
Caminhou decidido até o único cômodo com porta no
O pai trazia na mão o açoite e seu olhar escaneou o quarto
casebre quente, mas limpinho, como a mulher tinha ensinado.
e parou na cesta de vime em que repousavam tubos de linhas
Rute sentia saudade da mãe, morena com o rosto sempre
coloridas recém-comprados, agulha e tesoura sobre a humil-
em brasa, como gritava o pai nas horríveis discussões motiva-
de mesa. Ao lado uma camisa do patriarca. Envergonhado, o
das pelo demônio verde – era assim que a vizinha Damiana
homem olhou para a menina, fez que enfiava o tal cinto no cós
tinha explicado o ciúme do seu pai – quando a mãe criou asas
da calça e por nada beijou-lhe a testa e saiu.
e partiu.
Recuperada do susto, a menina esticou a mão e retirou de
A mãe voara após a surra que lhe deixou marcas pelo
sob a toalha da dita mesa um papel bem dobrado. Seus olhos
corpo bonito. Rute ainda guardava o calor dos lábios da mãe
correram ligeiros e alegres as linhas em que se lia: “Ficha de
ao se despedir dela e da irmã naquela maldita noite. O pai bê-
Inscrição para o EJA Ensino Fundamental” – sorriu. Mais uma
bado e inerte na cozinha. A mãe juntou seus molambos e se-
etapa de suas asas estava concluída e as suas não eram de cera.
guiu a vida. Rute tinha então 10 anos. Sua irmã, Sula, estava à época com 16. Assumiu a casa, mas não os carinhos da mãe, nem o colo, nem os cafunés. Sula
Rejane Nascimento rejanasc@gmail.com
partira com um motorista dois anos depois da mãe. Rute ficara com a casa e o pai – carcereiro e catapulta!
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Radiadora
Desterrada Fizeram ouvidos moucos quando os cumprimentou. Num mo-
Ela não portava o objeto que poderia transportá-la para o
vimento sincopado, os amigos de décadas simplesmente a igno-
universo onde estavam seus possíveis interlocutores. Por isso
raram, olhando para a mesa ao lado, para a tevê desligada ou
não teria como interagir, embora desejasse tanto. Não que ela
para as telhas. Em seguida baixaram a cabeça, um após o outro,
não pudesse conseguir um artefato daqueles. Podia. Mas não
pegaram objetos de plástico e vidro, e começaram a arrastar
queria possuir algo tão viciante. Restava aguardar. Quem sabe
as pontas dos dedos indicadores sobre suas superfícies lisas e
um par de olhos qualquer iria, em dado momento, cansar de
brilhantes. Quem os via, podia afirmar que eram compulsivos
olhar para baixo e virar em sua direção. Ela esperou paciente-
tentando eliminar, em vão, manchas que insistiam em ficar.
mente. Até que perdeu a esperança; todos permaneceram sur-
Às vezes ficavam a mirar seus objetos sem pestanejar e
dos, completamente alheios à sua presença. Nem mesmo nota-
abriam sorrisos de canto da boca. Ou então expressavam nojo,
ram quando ela, resignada, se levantou e tomou o rumo de casa.
indignação, medo, dó, numa sucessão de emoções que persis-
O dia chegou em que ela já não se sentia reconhecida por
tiam por segundos, apenas — já que, de pronto, retomavam o
ninguém. Estava presente, perto de todos, mas vivia desterra-
movimento impaciente com os dedos.
da, isolada do mundo, com seu celular de abrir e fechar, mode-
Ela ficou ali, bem ali, bem real, esperando o momento
lo antigo, que apenas ligava e atendia chamadas. Foi quando
certo de se manifestar. Queria muito expor seus pontos de
se deu por vencida e pediu para o cunhado trazer de Miami o
vista sobre os últimos acontecimentos. Queria ser ouvida. E
smartphone mais moderno que pudesse encontrar, lindo, com-
queria ouvir. Podia ser qualquer voz. Nem que fosse esganiça-
pleto, ostensivo. Criou perfil numa rede social, numa segunda,
da, desagradável e usada unicamente como mecanismo para a
numa terceira — marcou presença em todas as redes relevan-
emissão de tolices. Estava disposta a conversar com qualquer
tes. Os amigos se regozijaram e disseram “que bom te ver por
um deles sobre qualquer assunto: o melhor local para comer
aqui”, mas em pouco tempo ficaram entediados e fizeram de
sushi, a chacina da noite passada, o Trump, a carreira inter-
novo ouvidos moucos, pois ela passou a lhes dar bom dia dia-
nacional da Anitta. Podia até mesmo ser sobre o BBB, que ela
riamente às sete da manhã com fotos de gatinhos fofos.
tanto detestava. Mas a realidade não interessava àqueles poucos. Só lhes importava o que era visto em telas. A eles, bastava-lhes o movimento repetitivo de dedos para continuarem imersos no mundo estranho que rodopiava sob superfícies cristalinas movidas a lítio e metais raros.
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Cupertino Freitas josecdefreitasjr@yahoo.com
Aquele galo esperava o amigo gato todas as manhãs. Ele vinha
quando estava com fome mandava logo vir buscar umas duas
com seu andar macio pelo muro, até a cerca no fundo do quin-
das suas galinhas”.
tal. Trazia as notícias mais recentes da casa. Foi ele que alertou ao amigo que a galinha Joaninha seria o prato do aniversário do membro mais novo dos Braga. Não deu outra, foi muita correria, mas o galo não conseguiu fazer nada. Agora tem de passar horas agradando as galinhas restantes, dizendo coisas, como “Você está magra, fique tranquila!”
– Não me fale naquele homem. Perdi muitas para matar a fome dele. – lamentou o galo. – Pois é melhor que venha muita chuva e que tenhamos muitos peixes, que, aliás, eu gosto muito, senão você vai ficar, amigo galo, só administrando ovos. Era janeiro e o galo imaginava que o gato estava certo:
Em Saboeiro uma casa com visitas tem sempre um al-
não haveria mortança no galinheiro e logo iriam se lembrar da-
moço de galinha à cabidela, ou cabrito guisado. E falando na
quele bode velho que já estava passando da hora. O gato assim
peste, o cabrito – só berra bobagens – não deu as caras.
também pensava, pois o bode não era da família, tinha chegado
O galo procurava saber alguma coisa sobre o próximo a
há poucos meses, devia ter alguma serventia. “Ainda bem que
ir à panela para fazer um trabalho de conscientização no gali-
este povo não come gato”, imaginava, e ria-se por dentro como
nheiro. Ele não se importava com o peru, aquele que serviu ao
sempre fazia sobre o destino dos outros bichos do quintal, en-
Natal da família. Achou foi bem feito, que o bicho era metido.
quanto, por fora, ele se condoía todo, achava uma injustiça.
Mas o gato não tinha novidade, só sabia que os bichos
O papo se esticava, já quase sete da amanhã, e o gato
podiam ficar sossegados: “Estão fartos de tantas ceias nesses
tinha seus afazeres, como acordar as crianças em férias e ga-
dias de fim de ano.”
nhar torresmo do café da manhã do senhor da casa.
O galo não acreditava muito nisso. Bastava chegar algum
E por falar em bode, vinha ele por ali, mascando capim,
conhecido ou parente distante para que uma panela fosse ao
quando os dois amigos diriam, ao mesmo som: “Lá vem aque-
fogo e a cozinheira descesse até o quintal com aquela cara de
le besta!”
poucas amizades. “Será que eles não se lembram da igreja, das coisas que prometem ao seu Deus?” “Que nada!”, miava o gato, “Você se lembra do padre Geraldo? Era um santo homem, mas
Radiadora
Mortança em Saboeiro
Almir Mota historiasdoalmir@hotmail.com
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Radiadora
bairro antes das seis
Mendigos ACORDASTE!
quando o céu indeciso
Debaixo da ponte... sem destino!
não mostra luz nem trevas
ACORDEI!
paradas de ônibus enchem-se
Sob o teto que dormi, a solidão de menino!
de pessoas sonolentas
Teu frio de cobertor, meu frio de amor...
bocejos e bom dias tímidos
raios solares,
dinheiro trocado para não atrapalhar
em todas as pontes...
o tráfego de pessoas nas catracas
em todos os lares...
portões de rolar janelas grandes de ferro
ACORDEI!
deslizam para abrir
Contas a pagar, frutas e solidão,
cheiro de café cheiro de pão
leite e pão... ACORDASTE!
a vida está assando nos fornos industriais das padarias
Lixos fedidos, sobras de pães dormidos...
a rua não fica limpa num passe de mágica
Amanhã, quem sabe, tua alegria nas contas a pagar
são senhoras gordas pretas magras brancas
e na solidão a amar...
que sacam piaçabas limpam calçadas
Serás bem mais feliz
enquanto os homens do caminhão do lixo
do que o destino me quis?
rebolam no meio da rua os tambores
Amanhã, meu olhar de ponte sobre os olhos das amantes
para raiva e resmungo das senhoras
... sobre os olhos das mães e a partilha dos dormidos pães!
logo tudo parado se move
Serei bem mais feliz do que o destino te quis! ACORDASTE! ACORDEI!
carros bicicletas adolescentes raivosos indo pra escola
Silêncio... Dorme o companheiro, o mendigo herdeiro
as principais notícias vencidas de ontem
das lágrimas de meu verso rotineiro:
cruzam nas esquinas de sacolas nas mãos
Tu ficaste sem comer E chamas isto de fome.
todo dia é único
Eu fiquei sem amar e, para isso, não tem nome!!!
Talles Azigon tallesazigon@gmail.com
Rita Brígido ritabrigido@yahoo.com.br
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Radiadora
civil
Ossos
eu odeio você e teria voltado
Esgaravatar
quantos anos fossem necessários
com as unhas
para fazer tudo diferente e nunca
as crostas da terra
pisar o chão do lugar onde escutei
em busca de restos
seu nome mas penso que agora
para imprimir
ao erguer com certa desenvoltura
na brancura
Corpos que vão velejar
toda uma estrutura óssea que me faz
dos meus ossos
Corpos caindo do andaime ao luar
andar e arriscar mundos
meu último verso
Corpos cortando a cana
Corpos
Corpos consumidos na cama
sob risco de me julgarem mal posso tomar um atalho súbito
Magna Maricelle
Corpos frívolos como papelão
e desrespeitar minha conduta
magna.moraes@uece.br
Corpos ausentes na locomoção
e desconsiderar seu casamento
Corpos enclausurados sendo torturados
e beijar sua boca em horário comercial
Corpos minerando o ar soterrado
na calçada de sua agência
Corpos bêbados de alegria banal
com flexibilidade para abrir pernas
Corpos mortos em uma agonia social
mover quadris e sofrer colapsos
Corpos exclusos, sem voz e sem chão Corpos abandonados no alicerce da nação
Raisa Christina raisa.christina@gmail.com
Fabricio Saldanha fabriciosaldanha2010@hotmail.com
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Radiadora
ipumirim soberbo (o poema) I mas e agora que o poema silencia? o que resta além do devaneio feito de passado e trevas? – o que resta, alencar? a baunilha que recendia do campo agora é a fumaça feita de verdes árvores e vermelhos bichos; a relva que mal roçava o pé hoje é a bruta mata seca queimada ao relento e embebida de fuligem. a ará que não canta mais a predestinação da raça daqueles que partem rasgando sertões sem que voltem
– o poema silencia.
II sob a jaci nua e o vento cadente do juripari, corre a caapora torpe do cauim, lançando notas perdidas na argêntea noite com seu toró melindroso; a melodia é aquela que devolve o espírito das pessoas porque onde havia melodia, havia a lenda que o vinho da jurema guardava em virgindade – mas a lenda virou um verbo sem volta, virou o avesso da verdade que serviu de padrão pra cidade dormente sob essa jaci nua prateada, virou o desatino de quem o passado corre Meu Carnaval: independe de fevereiro. É
– grita caapora.
março, é janeiro. Eu, carnaval: eu sou: ano intei-
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ro. E carnaval é em mim: e para mim um desterro.
III
Carnaval sou eu toda: minhas veias-serpentinas;
era o teu testamento, mel-redondo, por quem foi sem volta
minhas hemácias-purpurina; minhas sardinhas: eu-
e quem voltou sem ida; o bélico deus latino vindo
confete; minha carne, meu cerne. Vem e me dança:
de ignota arma tirou-te da terra pra embranquecer osso perto do mar;
um samba qualquer, uma bossa de deus-quiser. Eu,
tua virgem velada pela canto poente deixou a semente da dor
carnaval: meu sangue verte um frevo-amarelo-
varar oceanos pela nau daquele pai de sangue na mão e fronte branca;
quente. O ano-todo: malemolência carnavalescente.
ficou na língua lusíada o destino do teu povo; e nesta lenda absurda
Eu só sou um samba-bom que ferve quente.
Luana Braga
Valdemar Neto Terceiro
luanamenezesbraga@gmail.com
valdemarneto_ipu@hotmail.com
– tua raça silencia.
– se –
fundamental é o imenso prazer de estar vivo
e se eu criasse a rua, a calçada, as casas numeradas
Radiadora
Gosto Fundamental
com as inverdades tão próprias delas fazer amor com a mulher querida
se os segredos que dividem a porta da frente
e embrulhar em cheiros púbicos
e as poeiras das famílias
o sono lasso
tudo criado num ouvi dizer
correr a mais de cem
inventado
pela manhã recém-lavada
e se na rua que liga a igreja ao cemitério houvesse
através da chuva fria
vidas
da chuva friíssima e criadora
e se o padre largasse do capeta e os políticos das tetas do profano santificado
não necessariamente resolver
e se a máquina-mostro parasse de asfaltar as ruas,
mas existir
as árvores
em meio ao fascinante jogo dos conflitos
e os pés e a saudade morresse esquecida
fundamental é o gosto de mel na boca
numa esquina da infância
por estar vivo e se a poesia servisse de alguma coisa... já sei que não serei jamais o grande poeta que minha adolescência alucinou
Alan Mendonça
mas a melhor parte de mim é a poesia
radiadora@gmail.com
é esta parte que me nutre de ritmo e de esperança José Jackson Coelho Sampaio jose.sampaio@uece.br
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Tiragostos
Chegada de Audifax no Céu de Alexandre Henrique
artista da capa Audifax Rios Audifax nasceu em 17 de abril de 1946. Iniciou-se nas artes com a irmã e professora de desenho Diana Rios. Garoto, já era convidado a pintar panos de lapinhas de Natal. Vindo morar em Fortaleza, ingressaria na TV Ceará como cenógrafo e desenhista. Participou e foi premiado em diversas exposições individuais, cole-
Publicado originalmente no Almanaque DE UM TUDO
tivas e salões no país e no exterior. É autor de vários murais, aberturas de filmes e novelas, ilustrações, capas, álbuns, crônicas, artigos, ensaios, cordéis, infanto-juvenis, romances, entre outros. Faleceu em 25 de abril de 2015, publicando o almanaque DE UM TUDO, com livros no prelo e muita vontade de conquistar o mundo, como já nos havia conquistado “a priscas eras”..
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Os FitoManos de Raymundo Netto