“Existe um modo natural de viver? – Fala-se muito em ‘modo natural’ de viver, em métodos terapêuticos ‘naturais’. Que é natural? Será natural que o pássaro edifique um ninho, criando uma casa artificial, fora da Natureza? Será natural que o camponês armazene, para o inverno, os grãos num celeiro subterrâneo? Será natural que o leopardo estraçalhe a gazela, cujos filhos, privados do leite materno, irão perecer de fome? Será natural que o homem tenha abandonado sua primitiva pátria, a zona tropical, para construir nas grotas das regiões nórdicas um refúgio de inverno, aquecido pelo fogo, o que lhe deu oportunidade para aprender a arte de cozer em água os grãos, lançando assim as bases da moderna civilização e aproveitando os lazeres do inverno para cobrir de pintura as paredes de sua caverna? Ou será a posse do fogo uma ofensa contra a Natureza, estando justificada a sentença dos deuses que condenou um ladrão do fogo, Prometeu, a ser encadeado num rochedo? Será natural o uso das roupas ou foi o pecado de Adão que forçou o homem a esconder sua nudez primitiva? Será natural que à noite, depois de apagada a grande luz mundial, o homem acenda no quarto sua pequena luz particular ou a razão está com a Igreja que protestou contra a introdução das lâmpadas de gás por infringirem a ‘ordem’ divina que criou a noite? Serão naturais a maquina a vapor, o avião, o rádio, êste livro, [o alimento produzido artisticamente tornando comestível o que não é se apoderando do futuro da humanidade]?
A noção de ‘natural’ não existe na Natureza. A planta retira do solo os sais sem se preocupar com o natural ou inatural. O leão ataca a zebra sem se preocupar com esse problema. O pássaro, obrigado a passar a noite sobre um ramo de árvore, habituou-se a se resguardar do frio graças ao artifício de um ninho; ele rouba os frutos das árvores, come os vermes da terra e os brotos das plantas sem se incomodar se isso é natural ou não, aproveitando todas as possibilidades de gôzo que lhe oferece a Natureza. O mesmo faz desde tempos imemoráveis o homem, que retira da Natureza tudo quanto possa contribuir para a sua felicidade. Êle se apodera das cavernas para aí morar, edificar choupanas, casas e cidades e ilumina-as, enfeita-as com pinturas, inventa máquinas que trabalham para ele. Divide os animais em nocivos, que extermina, e úteis, que cria... para depois matar. Combate às doenças e a idade, num esforço de procrastinar a época natural de morrer. Na natureza não existe nenhuma laranja, maça ou uva, nenhum trigo ou leite de vaca especialmente destinado ao homem. É absolutamente natural quando o homem se apodera do leite da vaca e dos ovos da galinha, como o é quando um habitante de Amsterdã come laranjas sicilianas e outro de Londres saboreia castanhas-do-pará. Não existem modos ‘naturais’ de viver nem métodos ‘naturais’ de criar.” (Fritz KAHN, 1962)
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