GEO | gabinete de estudos olisiponenses
lisboa do século XVII “a mais deliciosa terra do mundo” Imagens e textos nos quatrocentos anos do nascimento do padre António Vieira
direcção municipal de cultura | Câmara Municipal de Lisboa
GEO
exposição
catálogo
Chefe de Divisão Luisa Mellid Monteiro
Coordenação / Projecto / Textos José Manuel Garcia
Produção / Divulgação Ana Paula Garcez Paula Candeias Vanda Souto Grafismo / Exposições João Rodrigues
Desenho da exposição João Rodrigues
Edição Gabinete de Estudos Olisiponenses Direcção Municipal de Cultura
Digitalização / Fotografia Anabela Ferreira Carlos Didelet Jorge Rodrigues Biblioteconomia Ana Sansão Restauro Sofia Vasconcelos Nunes Arquivo Elisabete Gama Projectos específicos Efemérides / Património / Edição / Site Geo José Manuel Garcia (Coordenador) Inês Matoso Site Alexandre Fonseca Direcção Municipal de Cultura / DGED GEO – Gabinete de Estudos Olisiponenses Palácio do Beau Séjour Estrada de Benfica, 368. 1500-100 Lisboa Tel: 217701100 / Fax: 217782598 Email: geo@cm-lisboa.pt Internet: geo.cm-lisboa.pt
Investigação Inês Matoso José Manuel Garcia
Coordenação / Projecto / Textos José Manuel Garcia Desenho do catálogo João Rodrigues
Montagem Celina Trindade João Rodrigues
Investigação Inês Matoso José Manuel Garcia
Construção e Execução Direcção Municipal Projectos e Obras DCCE / DEOME / Carlos Costa,
Impressão Palma Editora
DREP Ducover Eurostand Imprensa Municipal João Antunes Amaro, lda.
ISBN 978 - 972 - 9231 - 02 -5
Bartolomeu Cordeiro, Joaquim Almeida, Carlos Silva
© GEO, todos os direitos reservados 1000 exemplares, Outubro de 2008
Depósito Legal
agradecimentos Andreas Gehlert. ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL Inês Viegas. BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. DIVISÃO DE CADASTRO MUNICIPAL Paulo Eloy. ÉDITIONS CASTERMAN (Bélgica) Luís Dias Ferreira. EMBAIXADA DE FRANÇA. FUNDAÇÂO DA CASA DE BRAGANÇA, MUSEU- BIBLIOTECA DA CASA DE BRAGANÇA João Gonçalo do Amaral Cabral, Maria de Jesus Monge. FUNDAÇÃO RICARDO DO ESPÍRITO SANTO SILVA – MUSEUESCOLA DE ARTES DECORATIVAS PORTUGUESAS Claúdia Lino, Conceição Amaral.
INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS / TORRE DO TOMBO. INSTITUTO DOS MUSEUS E DA CONSERVAÇÃO, DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA José Pessoa. MUSEU DA CIDADE Cristina Leite, Lurdes Garcia, Rosário Dantas. MUSEU NACIONAL DO AZULEJO Maria de Fátima Loureiro, Rosário Carvalho, Susana Flor. MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA Ana Markl, Anísio Franco, Paulo Henriques, Regina Peixeiro, Tânia Olim. UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA, Instituto de Estudos Portugueses – FCSH. Vítor Serrão.
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Apresentação
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Introdução
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Parte I. O padre António Vieira e Lisboa
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Parte II. Iconografia da Lisboa seiscentista
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Parte III. Livros do século XVII sobre Lisboa
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Parte IV. Cartografia de Lisboa no século XVII
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Alguma bibliografia
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índice
lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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(…) O mar finalmente, na monstruosa fecundidade, porque naquela campina imensa, que não seca o sol, nem regam as chuvas, assim como nos prados da terra pastam os rebanhos dos gados maiores e menores, assim ali se criam sem pastos os marítimos em inumerável multidão e variedade, entrando pela barra da cidade em quotidianas frotas, tanto para a necessidade dos pequenos, como para o regalo dos grandes, sendo nesta singular abundância Lisboa, não só a mais bem provida, mas também a mais deliciosa terra do mundo. António Vieira «(…) Lisboa, onde estou sempre com o pensamento (…)» Roma, 10 de Julho de 1674 António Vieira
“a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
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Há quatrocentos anos nascia em Lisboa António Viera, uma das personalidades mais eminentes da história e da literatura de Portugal e do Brasil e cuja longa vida acompanha quase todo o século XVII. O Gabinete de Estudos Olisiponenses, na sua missão de promover o estudo de Lisboa e de valorizar e preservar a memória da cidade e daqueles que lhe estiveram ligados, associa-se ao conjunto de iniciativas comemorativas de tão distinto lisboeta, apresentando no Palácio do Beau Séjour, entre 18 de Outubro e 15 de Dezembro de 2008, a exposição Lisboa do século XVII “a mais deliciosa terra do mundo”: imagens e textos nos quatrocentos anos do nascimento do padre António Vieira. Acompanhada da publicação do presente catálogo, a iniciativa contribui, desta forma, para suprir uma lacuna na Olisipografia: a inexistencia de um trabalho sobre a iconografia contextualizada da Lisboa seiscentista. O inventário das imagens que aqui apresentamos procurou ser o mais abrangente possível e contou com a circunstância de grande parte ter sido reunida por Augusto Vieira da Silva, colecção que foi comprada pela Câmara Municipal de Lisboa. Aliás, consultados os principais museus e bibliotecas do País, em mais nenhum local se encontra tão completo acervo documental relativo à Lisboa do século XVII como aquele que, agora, se encontra repartido entre o Gabinete de Estudos Olisiponenses e o Museu da Cidade.
Ao evocarmos a Lisboa que há quatrocentos viu nascer António Vieira, devemos igualmente sublinhar que, nesta mesma cidade e ano, a 23 de Novembro, nasceu D. Francisco Manuel de Melo, autor da tão celebrada “Carta de Guia de Casados” e, ainda em 1608, foi impresso o primeiro livro encomiástico da cidade: Do sítio de Lisboa, aí publicado pelo lisboeta Luís Mendes de Vasconcelos. Esta edição também merece ser devidamente destacada para nos lembrar quanto, no dizer de Mendes de Vasconcelos, a capital portuguesa era vista simbolicamente como os “olhos” de uma Europa que lhe apreciava a beleza e grandeza, como se revela através de imagens e textos aqui publicados neste catálogo evocativo da Lisboa do Padre António Vieira.
apresentação
Rui Mateus Pereira Director Municipal de Cultura
lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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Introdução Lisboa entre o projecto de ser capital de um império ibérico e o sonho de ser a cabeça do Quinto Império Ao introduzirmos a recolha de imagens e livros sobre a Lisboa do século XVII, onde o padre António Vieira nasceu e viveu períodos marcantes da sua vida, que abarca quase todo o século, achámos por bem aproveitar do eloquente jesuíta algumas ideias fortes que nos ajudem a compreender o papel da cidade na história do seu tempo, cujo ambiente social e espiritual já em 1956 foi tão bem descrito por Fernando Castelo Branco nesse clássico da Olisipografia que é a Lisboa seiscentista. Nos inícios do século XVII Lisboa continuava a ser a maior cidade da Península Ibérica, posição que resultava da proeminência que alcançara no século anterior devido às actividades expansionistas que os portugueses tinham vindo a desenvolver à escala mundial. A posição de Lisboa no conjunto Penínsular contudo, foi posta em causa desde que em 1561 Felipe II de Espanha escolheu Madrid para ser a capital dos seus reinos e sobretudo desde que o seu sucessor Filipe III de Espanha oficializou essa decisão em 1606, permitindo com esta determinação que os castelhanos afirmassem a sua hegemonia na balança dos poderes peninsulares, ainda que sob uma aparente procura de equilíbrios, pois esta opção derivaria da posição geográfica dessa cidade corresponder a um centro territorial “a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
da Península Ibérica. Para lograr o propósito de impor a supremacia castelhana afastava-se a possibilidade de Lisboa alcançar preponderância como centro de um mais ambicioso projecto imperial à escala mundial. Com efeito a grandeza e boa posição marítima da capital portuguesa face ao Atlântico permitiria assegurar quer a Portugal quer às diferentes partes de Espanha um melhor e mais forte governo dos seus domínios em África, América e Ásia, contra os interesses e investidas crescentes das potências europeias rivais. Tal concepção hegemónica alternativa, contudo, foi menosprezada e foram em vão as tentativas no sentido de valorizar a posição de Lisboa, como está patente no esforço ainda levado a cabo por Luís Mendes de Vasconcelos logo em 1608 ao publicar uma obra intitulada Do sítio de Lisboa, em que se defendia que «As qualidades do sítio de Lisboa fazem-na capaz de ser cabeça de um grande império». Pelo seu teor esta obra veio a ser evocada pelo padre António Vieira para sustentar as suas ideias em torno do Quinto Império no difícil período da sua vida situado entre 1663 e 1667 durante o qual foi obrigado a passar pelo tribunal do Santo Ofício. Tal evocação é explicitada quando o nosso jesuíta quis profetizar a futura grandeza de Portugal e Lisboa ao afirmar que:
(…) parece o fez e a fez Deus para cabeça do Mundo, excedendo a Nínive, a Babilónia, a Constantinopla, a Roma e a todas as que têm sido cabeças de império, com infinitas vantagens, entre as quais se nota a capacidade e segurança do porto e a facilidade de navegação para todas as partes do Mundo, com uma certa mediania e ainda vizinhança de todas elas, por remotas e remotíssimas que sejam, cujas proporções nem juntas nem divididas se podem achar ou concorrer em outra costa, rio, porto, clima, altura, ventos, lugar e cidade, e o demais que acerca do sítio dela se pode ver no livro que escreveu sobre este assunto Luís Mendes de Vasconcelos1.
Vieira mesmo sob a pressão inquisitorial continuava a sonhar em 1665 com um: (…) tempo em que todo o Mundo estiver reduzido ao conhecimento da nossa santa Fé Católica, se há-de consumar o Império de Cristo, e que é este o Quinto Império profetizado por Daniel, e que então há-de haver no Mundo a paz universal prometida pelos profetas no tempo do Messias, a qual ainda não está cumprida senão incomodamente, e que no tempo deste Império de Cristo há-de haver no Mundo um só imperador, a que obedeçam todos os reis e todas as nações do Mundo, o qual há-de ser Vigário de Cristo no temporal, assim como o Sumo Pontífice no espiritual; o qual Império espiritual então há-de ser perfeito e consumado, e que todo esse novo estado da Igreja há-de durar por muitos anos, e que a cabeça deste
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Império temporal há-de ser Lisboa, e os reis de Portugal os Imperadores supremos, e que neste tempo há-de florescer universalmente a justiça, inocência e santidade em todos os estados (…)2
Em 1666, estas mesmas ideias foram reafirmadas por Vieira quando alegou em defesa da sua obra Quinto império (…) a esperança na vinda de um imperador que: (…) há-de ser europeu, cristão e descendente de príncipes cristãos, zelosíssimos do serviço de Deus e propagação da Fé de Custo, e que todo o poder e autoridade se há-de empregar nela e no serviço da Igreja e obediência do Sumo Pontífice. Ajudado deste imperador se há-de converter e reformar o Mundo, florescendo mais que nunca o culto divino, a justiça, a paz e todas as virtudes cristãs, acrescentando, pelos fundamentos particulares deste Reino, que o dito imperador há-de ser português e rei de Portugal, a cabeça do império, Lisboa3.
Na sentença lavrada pelo tribunal do Santo Ofício em Coimbra de 23 de Dezembro de 1567 registou-se de forma conclusiva a afirmação vieirina de: «(…) que a cabeça deste império temporal há-de ser Lisboa e os reis de Portugal os imperadores supremos (…)»4. O sonho de apresentar Lisboa como capital de um mítico quinto império desenvolveu-se no pior período das perdas de possessões portuguesas no Oriente e das mais fortes ofensivas dos castelhanos da guerra da Restauração, que os portugueses conseguiram derrotar, logrando por isso que Castela desistisse da
intenção de acabar com a independência do “Portugal restaurado” e assinasse a paz em 1668. Dezoito anos antes de tal evento as autoridades castelhanas tinham recusado uma proposta de D. João IV, expressa por Vieira, que, a ter sido aceite, poderia ter alterado essa história. Com efeito em 1650, Vieira propôs em nome do monarca português a possibilidade de pôr fim à guerra da Restauração através de uma reunificação hispânica que passaria por um processo em que Lisboa seria a capital de uma nova Espanha, em detrimento de Madrid. A defesa desta hipótese foi narrada por Vieira em 1695 num registo memorial em que recuou quarenta e cinco anos para lembrar a missão diplomática que o levara a Roma em 16 de Fevereiro de 1650. Foi no seu Sermão de Acção de Graças pelo felicíssimo nascimento do novo infante, de que a Majestade Divina fez mercê às de Portugal em 15 de Março de 1695, impresso em 1696 nos seus Sermões. Parte XI, que registou as seguintes e eloquentes observações com que vale a pena deliciarmo-nos: (…) Pelos anos de cinquenta, como el-rei Filipe IV não tivesse mais que uma única herdeira, a princesa Maria Teresa de Áustria, entenderam os juízos mais sisudos, antevendo as consequências, que hoje dão tanto cuidado, que devia casar dentro de Espanha. E diziam livremente os que de nenhum modo queriam que casasse fora: Por que no tendremos un rey con unos bigotes negros? Aos ecos destas vozes, ajudados de outras inteligências secretas, intentou el-rei que está no Céu,
solicitar o casamento para o príncipe D. Teodósio. E a este fim, debaixo de outros pretextos, me enviou a Roma com as instruções e poderes necessários, para que lá introduzisse e promovesse esta prática. Era embaixador na Cúria o Duque del Infantado, e assistente de Espanha na Companhia o Padre Pedro González de Mendoça, seu tio, bom e doméstico intérprete. O prólogo desta negociação, sem o parecer, fazendo-me neutral, ou interessado (como verdadeiramente era) por ambas as partes, foi lamentar-me de religioso a religioso, do muito sangue espanhol e católico que se estava derramando nas nossas fronteiras, triunfando e fazendo se mais poderosos os hereges com aquela diversão. E doía-me juntamente de que as campanhas de Flandres pouco antes pacificadas se haviam de passar a Espanha, e que aquela guerra seria tanto mais perigosa, quanto mais das portas adentro. Sobre esta primeira pedra do temor tão bem fundado, em outra conversão do mesmo assistente, na qual se achavam dous grandes sujeitos também castelhanos da companhia, Ve1azquez, e Monte Maior (os quais já eram da minha opinião), vindo à prática o casamento da princesa em Espanha, disse eu: Se as cousas estiveram no estado antigo, pouca dúvida podia haver na eleição do esposo. O sangue real da Casa de Bragança é o mais unido à mesma princesa; porque ela e o duque de Barcelos são netos dos mesmos avós, e ele sobretudo, pelas virtudes e qualidades pessoais, merecedor do maior império, como reconhecido e celebrado no Mundo pelo príncipe mais perfeito de toda Europa. Todos assentiram com aplauso a uma e outra preferência do sangue e da pessoa, como ambas sem controvérsia. E eu então, concedida esta evidente premissa tirei da bainha o meu argumento, e lhe lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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apertei os punhos com todas as forças, dizendo assim: Pois se o primogénito de Bragança só como duque de Barcelos, e filho de seu pai, é o mais digno de toda a Espanha, para que a princesa lhe dê a mão, quanto mais no estado presente, trazendo consigo por dote a Portugal, e tudo o que Portugal possui em a metade do Mundo? Dizer que tudo isto se há-de reconquistar, é pensamento fundado só no desejo; porque tendo mostrado os Portugueses que eles por si sós se podem defender, é certo que os émulos de Espanha os hão-de assistir e ajudar, como fizeram a Holanda, insensivelmente. Mas quando a contrária apreensão tivesse alguma probabilidade; quanto sangue se havia de derramar, quantos tesouros se haviam de despender, quantos anos se haviam de esperar os fins dessa contingência? Não é melhor e mais seguro conselho, assim como tudo e perdeu em um dia, recuperar tudo em um dia sem golpe de espada? Porventura foi mais decente a paz com os Holandeses, dando-lhes o domínio de sete províncias, do que será a paz com os Portugueses, não lhes dando cousa alguma, mas recebendo de contado quanto possuem dentro e fora do reino? Onde se deve muito notar, que o que é Portugal só dentro em si são partes e membros da mesma Espanha, com que ela e a monarquia se tornará a repor na sua total inteireza. Finalmente, com esta reunião, e Portugal restituído, ficará Espanha em muito mais poderoso e florente estado, que quando o tinha sujeito. Porque ela agora o tem cingido e sitiado com os seus exércitos, e ele se defende corn os seus em um cerco de cento e cinquenta léguas, com soldados tão valentes, com capitães tão experimentados, com cabos tão famosos de uma e outra parte, e todas estas armas juntas, as suas e as nossas, no mesmo dia serão suas; e Espanha ficará “a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
tão estabelecida, tão forte, e tão formidável, que seja o amparo dos amigos, a reverência dos neutrais, e o terror de todos seus inimigos. Até aqui ouviam mudos os circunstantes, olhando uns para os outros. E murmurando-se a verdade destas razões até chegarem às melhores cabeças da facção espanhola, eram geralmente aprovadas, e com muito particular empenho no voto do cardeal de Lugo, em tudo eminentíssimo. Mas como a questão se havia de decidir, não no juízo do Capitólio romano, senão em outro muito distante, onde a dor e a ferida estava ainda fresca, e o progresso das nossas armas não tinha amadurecido as verduras do pundonor, que depois humanou a experiência e a necessidade; não foi lá aceita a proposta. Assim ficou no ar a águia, e no ar a negociação; mas os que então lhe negaram os ouvidos, depois torceram as orelhas. Agora me consintam os Portugueses que lhes tire uma espinha da garganta. Porque vejo que estão notando a el-rei, de que quisesse neste contrato desfazer o que tinha feito, e tornar a unir o que tinha desunido. Mas é porque até agora calei uma cláusula do projecto, sem a qual eu também não havia de aceitar a comissão. A cláusula é, que no tal caso a cabeça da monarquia havia de ser Lisboa: e deste modo se conseguia para o nosso partido a segurança, e para o governo da monarquia a emenda. O erro que tem causado muitos em Espanha, como ponderam os melhores políticos, é estar a corte em Madrid. Por isso el-rei Filipe o II, quando veio e viu Lisboa, logo a sua prudência determinou e prometeu passar a corte para ela. E a esse fim se começou a edificar aquela parte de palácio, que chamam o Forte. Tendo Espanha tanta parte dos seus domínios no mar Mediterrâneo, tanta no mar Setentrional, e
tantas e tão vastas em todo o mar Oceano, havia de ter a corte onde as ondas lhe batessem nos muros: e dependendo todo o manejo da monarquia da navegação de frotas e armadas, e dos ventos que se mudam por instantes; que política pode haver mais alheia da razão, que tê-la cem léguas pela terra dentro, onde os navios só se vêem pintados, e o mar só na água, pouca e doce, que o Inverno empresta ao Manzanares? Mas assim haviam de preceder todas estas violências da razão, e da natureza, para que mais se lograssem os frutos da Graça. (…)5.
De notar que o padre André de Barros seguiu de perto o teor deste texto vieirino ao tratar a embaixada de 1650 na sua biografia de Viera, de que podemos apontar a título de exemplo as seguintes expressões, que utilizou a propósito da ideia de Lisboa como capital ibérica: Mas o fim e condição de todo este projecto era que, no tal caso, havia de ser Lisboa cabeça e corte de toda a monarquia. (…) Difundiu-se a notícia desta prática até chegar às maiores cabeças da facção espanhola que havia em Roma. Assentiam a ela geralmente todos e entre os maiores o eminentíssimo Lugo, em cujo juízo tiveram grande peso as razões alegadas. Reforçavam-se com a ponderação política, que se fazia sobre a capital de Espanha e os membros dela se regiam. O erro (diziam) que tem causado muitos em Espanha é estar a corte em Madrid; por isso el-rei D. Filipe II, quando viu Lisboa, logo sua prudência determinou e prometeu passar a sua corte para ela. A este fim se começou a edificar aquela parte de palácio, a que chamam “o forte”, obra verdadeiramente real6.
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O projecto apresentado teria ainda chegado à «escandalizada Madrid», onde Filipe IV «altamente ferido (…) com a nossa separação» instou para que o seu embaixador em Roma, o Duque do Infantado, fizesse sair imediatamente de Roma o padre António Viera sob a a ameaça de que o mandaria matar, caso não deixasse a cidade, o que ele fez de imediato. Desta forma acabava a última tentativa de erguer Lisboa a capital de uma Espanha reunificada, possibilidade que começara a ser defendida em 16087. No contexto das observações e citações que aqui apresentamos deveremos lembrar que até à eclosão da Restauração Vieira se apresentara como fiel vassalo de Filipe IV e que só depois da revolta portuguesa se ter iniciado é que se tornou num dos mais fervorosos adeptos de D. João IV. A justificação de Vieira no sentido de contribuir em 1650 para uma tentativa de pacificação que voltasse a conduzir à reunificação ibérica era a de conseguir que o monarca fosse português e a capital dos seus reinos fosse estabelecida em Lisboa. Era afinal e apenas mais um dos projectos utópicos do seu tempo. Pelas linhas aqui traçadas sobre algumas ideias e palavras do padre António Vieira em torno de uma introdução à Lisboa seiscentista bem se vê quão rica é a problemática que queremos equacionar. Os nossos limitados meios, contudo, vão-nos confinar nesta visita à Lisboa de há quatrocentos anos ao mundo das imagens e dos livros que servirão para
conduzir a uma abordagem em que procurámos acima de tudo valorizar um discurso coerente transmitido pela leitura das imagens e dos textos, cuja eloquência vale por muitas mil palavras. Ainda assim estas são necessárias para encaminhar o fio condutor que lhes dê um nexo possível, tornando-se bem explícita a possibilidade de encontrar as imagens devidamente enquadradas nas palavras que têm ao seu lado. Nessa tão difícil como agradável missão de expor a nossa Lisboa seiscentista tivemos de concentrar de forma breve muita informação, que nem sempre foi possível analisar e descrever de forma tão exaustiva como teríamos desejado fazer, mas ainda assim consideramos ter valido a pena este esforço que desejamos venha a contribuir para a renovação constante em que se encontram os estudos vierinos e olisipográficos, aqui conjugados com a harmonia possível.
1746, p. 40-51. 7 Sobre os assuntos aqui versados cf. nomeadamente Fernando Bouza Alvarez, «Lisboa sozinha, quase viúva: a cidade e a mudança da corte no Portugal dos Filipes», Penélope, 13, Lisboa, 1994, p. 71-93 e de Hugues Didier, «”Lusitaniae est imperarare orbi universo”. El padre António Vieira (1608-1697) y los autores “austrohispanistas“ de Castilla», Literatura portuguesa y literatura española, (Cuadernos de Filología, anexo XXXI), Valência, 1999, p. 143-153.
José Manuel Garcia
Notas 1 Obras escolhidas / Padre António Vieira, volume VI; obras várias (IV), prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1952, p. XLVIII-XLIX. 2 Idem, ibidem, p. 78-79. 3 Idem, ibidem, p. 144-145. 4 Idem ibidem, p. 210. 5 Sermões / Padre António Vieira, prefácio e revisão de Gonçalo Alves, volume, V, Porto, Lello & Irmão (Obras completas do Padre António Vieira), 1993, p. 935-938. 6 Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra (...) , Lisboa, lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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Rua dos Cónegos A rua dos Cónegos, onde nasceu António Vieira, desapareceu na sequência do terramoto de 1755 mas sabemos que ficava entre as actuais Rua das Pedras Negras (a sul) e Rua do Correio Velho (a ocidente). Em 1650 essa rua aparece desenhada no mapa de Lisboa feito por João Nunes
Tinoco (reproduzido na p. 105 deste volume), do qual reproduzimos em cima à esquerda um detalhe assinalando a amarelo a sua localização. Em cima à direita tenta localizar-se a rua dos Cónegos de forma aproximada, igualmente a amarelo, numa fotografia aérea da zona.
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Para termos perspectivas antigas da área onde se localizava a rua dos Cónegos destacamos em baixo, a negro, o casario que lhe poderá corresponder, em detalhes de duas gravuras com a representação de Lisboa (apresentados de forma esbatida), sendo o da esquerda impresso em
Urbium praecipiarum Mundi theatrum quintum, de Georg Braunius, c. 1598 e o da direita impressa em Viage de la Catholica (…) D. Filipe III, de João Batista Lavanha, Madrid, 1622 (reproduzida na p. 27 deste volume).
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Parte I O padre António Vieira e Lisboa Lisboa assumiu uma grande relevância na vida do padre António Vieira pois foi aí que nasceu e exerceu a parte mais substancial da grande influência que teve no seu tempo, o qual abrange quase todo o século XVII, pois a sua longevidade permitiu-lhe acompanhar um longo período da história de Portugal e do mundo. É na consideração destas perspectivas que iremos abordar aqui de forma muito sumária a complexa biografia e obra de Vieira, apontando alguns dos seus tópicos e tendo por referência as suas passagens por Lisboa. António Vieira nasceu em 6 de Fevereiro de 1608 na rua dos Escolares, perto da Sé de Lisboa, local onde viviam os seus pais Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo. A família do pai contava com a protecção dos senhores da casa de Unhão e por isso António Vieira ao ser baptizado na sé de Lisboa, no dia 15 de Fevereiro de 1608, teve por padrinho Fernão Teles de Meneses, que seria conde de Unhão. Depois do casamento o pai de Vieira foi nomeado escrivão dos agravos e apelações cíveis do Tribunal da Relação da Baía, cidade para onde levou a família em 1614. Em 5 de Maio de 1623, o jovem Viera entrou para a Companhia de Jesus no noviciado do colégio da Baía, cidade onde foi ordenado sa-
cerdote em 10 de Dezembro de 1634. Na sequência da chegada ao Brasil da notícia da Restauração, Vieira foi escolhido para acompanhar D. Fernando Mascarenhas, filho do primeiro vice-rei do Brasil, na sua ida a Lisboa para declarar a obediência do território ao novo rei português. Em 27 de Fevereiro de 1641, o nosso jesuíta deixou a Baía rumo à Europa, onde iria começar uma fase que o iria projectar para o futuro. No dia 30 de Abril de 1641, Vieira estava de regresso à sua cidade natal, onde logo foi recebido por D. João IV, de quem ficou amigo e sobre o qual veio a alcançar um considerável ascendente. A 1 de Janeiro de 1642, Vieira pregou o seu primeiro sermão na capela real, a que se seguiram muitos outros que tiveram então uma enorme audiência e contribuíram para incutir esperança e confiança na população num período difícil, facto que levou o rei a nomeá-lo pregador régio em 1644. Portugal vivia então uma conjuntura particularmente dramática a nível interno com a ameaça espanhola sobre as suas fronteiras e nos territórios de além mar devido à pressão dos holandeses. Na acção e no pensamento de Vieira as ideias messiânicas e utópicas que defendeu contrastaram vivamente com a defesa de medidas
pragmáticas e de bom senso que chocavam com práticas tradicionais e ultramontanas que então eram dominantes em Portugal, com relevo para a defesa de uma atitude de tolerância para com os judeus e cristãos-novos, o que estava em manifesta oposição com a poderosa Inquisição. Tal defesa resultava da necessidade que então havia de tais pessoas para o fornecimento do imprescindível apoio financeiro ao enorme esforço a desenvolver no sentido de assegurar o êxito da reafirmação da independência de Portugal. Também se deve a António Vieira a sugestão para a criação de novos organismos económicos que propôs publicamente, em 21 de Agosto de 1644, no sermão que pregou na Capela Real ao referir a necessidade de, imitando holandeses e outros europeus, fundar “duas companhias mercantis, Oriental uma e outra Ocidental, cujas frotas poderosamente armadas, tragam seguras contra Holanda as drogas da Índia e do Brasil”. A situação do Brasil, onde se agudizavam os conflitos entres portugueses e holandeses, levou D. João IV a enviar Vieira à Holanda para negociar uma solução para os problemas que ali se viviam. O nosso jesuíta partiu de Lisboa a 1 de Fevereiro de 1646, passando primeiro por França antes de chegar a Haia, onde as hostilidades suscitadas pelos portulisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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gueses em Pernambuco criaram um ambiente que levou ao malogro da missão. Vieira teve então de partir para Portugal sem ter logrado qualquer acordo, sendo apenas de destacar os contactos que entretanto estabeleceu com judeus portugueses que viviam em França e na Holanda, os quais em troca do seu apoio à causa nacional solicitavam o fim das perseguições de que eram alvo em Portugal por parte da Inquisição. Nos finais de Julho de 1646 Vieira estava de volta a Lisboa onde ficou pouco mais de um ano, repartindo a sua estada entre Carcavelos e a capital, continuando a pregar sermões e a defender medidas favoráveis aos cristãos novos. Em 13 de Agosto de 1647, Vieira foi enviado numa segunda missão diplomática a França e à Holanda, tendo feito uma viagem acidentada que o levou inicialmente a Londres, antes de conseguir chegar a Paris a 11 de Outubro de 1647. Aqui foi recebido a 17 de Outubro pelo cardeal Mazarino, com o qual negociou o casamento do príncipe D. Teodósio com mademoiselle de Montpensier, filha do Duque de Orleães. D. João IV comprometia-se então a abdicar do trono no filho, retirandose para o Brasil, que passaria a ser um reino autónomo, ficando na regência do reino o pai da noiva, enquanto o príncipe não atingisse a maioridade. Com esta proposta o monarca português revelava a sua inquietude com a segurança do país, reflectindo uma posição em que visava desesperadamente captar o apoio “a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
da França para a causa portuguesa. A ideia da retirada do rei para o Brasil constitui uma concepção aparentemente estranha mas na realidade antecipou iniciativas idênticas formuladas no reinado de D. José, acabando por ser levada à prática por D. João VI em 1807. Este tipo de relação entre o poder da metrópole com esse “outro Portugal”, como era então visto o Brasil, esteve ainda presente em 1661, quando em Lisboa se receou uma invasão triunfante por Castela. Com efeito Vieira declarou que nesse último ano recebeu ordem de D. Luísa de Gusmão para ir do Pará a Pernambuco no sentido de preparar alojamento para a família real, caso esta aí se tivesse de refugiar. As propostas apresentadas por Vieira em Paris não tiveram aceitação junto de Mazarino e o delegado português continuou a sua missão partindo, a 22 de Novembro, para Haia, onde chegou a 17 de Dezembro de 1647. Nos meses seguintes Vieira negociou com os holandeses a cedência de Pernambuco mas os seus esforços voltaram a malograr-se, tendo acabado por receber ordens para terminar a sua missão. Vieira chegou a Lisboa em 18 de Outubro de 1648, tendo de novo repartido a sua presença entre o retiro de Carcavelos e o buliço da capital, onde pregou mais sermões e assistiu ao triunfo de algumas das suas iniciativas, como foram a protecção dos cristãos-novos e a fundação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, cujo alvará aprovando os seus estatutos
está datado de 10 de Março de 1649. Os êxitos obtidos por Vieira levaram a que aumentassem as intrigas contra a sua influência mas a amizade que lhe votava D. João IV continuou a protege-lo, tendo o rei decidido envia-lo para uma nova e muito difícil missão diplomática, desta vez a Roma. A 8 de Janeiro de 1650, Vieira deixou o Tejo para a sua missão no centro da cristandade, à qual já atrás nos referimos, pelo que nos limitamos agora a referir que os seus dois objectivos essenciais consistiam em sondar autoridades castelhanas que ali residiam sobre a possibilidade de se realizar o casamento do príncipe D. Teodósio com a princesa D. Maria Teresa de Áustria, a única filha de Filipe IV, e averiguar se Portugal poderia estimular e apoiar uma eventual revolta de Nápoles contra Castela, para que esta dividisse as suas forças. Vieira chegou a Roma a 16 de Fevereiro de 1650, entrando em seguida em contacto com jesuítas espanhóis que ali residiam, tendo estes ficado espantados com as suas palavras relativas ao projecto do referido casamento, cujo conhecimento ainda teria chegado a Madrid, de onde Filipe IV teria instado para que o seu embaixador em Roma fizesse sair imediatamente dali o padre António Viera, com a ameaça de que o mandaria matar caso não deixasse a cidade, o que este fez. Em Roma, Vieira verificou ainda que não havia condições para incentivar a revolta de Nápoles e por isso voltou a Portugal, sem que tivesse logrado qualquer êxito em mais uma
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das missões diplomáticas de que havia sido incumbido. Nos finais de Junho de 1650 Vieira estava de novo em Lisboa, onde retomou a pregação de sermões com o sucesso habitual, o qual está bem reflectido numa carta de D. Francisco Manuel de Melo a D. João Pereira, datada de 25 de Janeiro de 1650, na qual afirmava perante a grande quantidade de pessoas que assistia aos seus sermões que era necessário “mandar lançar tapete de madrugada em S. Roque para ouvir o padre Vieira”1. O ambiente em Lisboa, contudo, começou a não ser favorável a Vieira, que viu adensar contra si o reforço das intrigas e o insucesso de algumas das suas posições, nomeadamente em prol dos cristãos-novos, tendo por isso abandonado com desgosto a capital e partindo como superior de uma missão jesuíta enviada ao Maranhão. A 25 de Novembro de 1652, Vieira foi para o Brasil e depois de uma paragem nas ilhas de Cabo Verde chegou a São Luís do Maranhão a 16 de Janeiro de 1653, realizando de seguida missões na selva amazónica. Vieira passou então a viver num ambiente rude que contrastava com a sofisticação daquele em que se movimentara nas cortes europeias. A 13 de Junho de 1654, Vieira proferiu em São Luís do Maranhão um dos seus mais famosos sermões, o sermão de Santo António aos peixes, que foi marcante na sua luta em defesa dos índios oprimidos. Esta atitude, contudo, suscitou contra si a ira dos colonos,
que queriam a escravidão desses mesmo índios, levando a que Vieira tivesse de regressar precipitadamente à Europa com o propósito de obter do rei medidas favoráveis à população indígena. Depois de uma viagem difícil em que teve de passar pelas ilhas Graciosa e São Miguel, Viera regressou a Lisboa em meados de Novembro de 1654. Aí logrou alcançar a 9 de Abril de 1655 uma lei de D. João IV favorável à liberdade dos índios, partindo de novo para o Brasil em 16 de Abril de 1655. Durante esta curta permanência na capital Vieira proferiu alguns dos seus sermões mais notáveis, como é caso do sermão da Sexagésima. Após uma tranquila viagem de um mês, Vieira chegou em 16 de Maio de 1655 ao Maranhão e realizou de seguida novas missões na selva, onde em 1659 escreveu um tratado denominado Esperanças de Portugal. Quinto Império do Mundo. Primeira e segunda vida de El Rey D. João lV escritas por Gonçalianes Bandarra. Na sequência da continuação da sua defesa dos índios Viera acabou por ser perseguido pelos colonos, sendo mesmo preso no Maranhão e enviado para Lisboa a 28 de Julho de 1661. Os infortúnios que levaram Vieira a deixar o Brasil iriam continuar na metrópole algum tempo depois de ter chegado a Lisboa nos inícios de Novembro de 1661, ainda que nos meses seguintes ainda tivesse continuado a
contar com a protecção da rainha Dona Luísa de Gusmão, que após a morte de D. João IV em 1656 assumira a regência do reino em nome de D. Afonso VI. Em 23 de Abril de 1662, Vieira assistiu à partida da infanta D. Catarina de Bragança para Inglaterra, onde foi ao encontro do seu esposo Carlos II, rei de Inglaterra, e em Junho desse ano foi nomeado confessor do infante D. Pedro (futuro D. Pedro II) quando ao fazer 14 anos lhe foi posta casa no chamado palácio Corte Real. Pouco depois, em 16 de Junho de 1662, um movimento político apoiado por Vieira declarou D. Afonso VI incapaz de governar. O Conde de Castelo Melhor, contudo, dirigiu em 23 de Junho um golpe de Estado ao levar o rei para o palácio de Alcântara e aí formar um novo governo em que colocava no poder D. Afonso VI, afastando da corte a facção que se lhe opunha, na qual se incluía Vieira. Este, caído em desgraça, foi exilado para o Porto nos inícios de Julho de 1662. Nos anos seguinte Vieira foi violentamente perseguido, pois em Fevereiro de 1663 foi chamado a Coimbra pela Inquisição, aí tendo ficado detido para enfrentar um longo e estéril processo que lhe foi movido, o qual se prolongou dolorosamente até à leitura da sentença em 24 de Dezembro de 1667. Foi então condenado a reclusão por ter defendido nomeadamente o Quinto Império e as trovas do Bandarra. Entretanto a 23 de Novembro de 1667, D. Afonso VI foi destronado pelos partidários do infante D. Pedro, que logo começaram a diligenciar a favor de Vieira. lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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A 2 de Março de 1668, Vieira estava de volta a Lisboa onde ainda ficou em reclusão na Casa de Noviciado da Cotovia até que lhe foi concedida liberdade em 12 de Junho. Esta nova conjuntura da vida de Vieira coincide com a assinatura da paz com Castela a 11 de Março de 1668, e com a sentença de divórcio entre D. Afonso VI e D. Maria Francisca de Sabóia a 24 de Março, a qual foi seguida a 2 de Abril do casamento desta mesma rainha com D. Pedro, que continuou como regente, pois só foi proclamado rei como D. Pedro II, após a morte do irmão em 1683. Vieira voltou a ganhar influência na corte mas não de uma forma tão notória como anteriormente. Em Janeiro de 1669, Vieira contactou com Cosme de Médicis, grão duque da Toscana, que então visitou Lisboa e com o qual se viria a encontrar alguns meses depois em Marselha, quando estava a caminho da capital da cristandade, para onde partiu de Lisboa a 15 de Agosto de 1669. Chegado a Roma, em 21 de Novembro de 1669, Vieira procurou ser ilibado das acusações de que fora alvo, o que acabaria por alcançar, bem como algumas decisões que tentaram diminuir temporariamente a acção da poderosa Inquisição. Os sermões que Vieira proferiu em Roma tiveram grande aceitação e foi mesmo nomeado pregador oficial da rainha Cristina da Suécia, que aí residia. Antes de Vieira abandonar Roma em 22 de Maio de 1675, recebeu a 17 de Abril um breve pontifício pelo qual ficava isento da juris“a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
dição dos inquisidores portugueses e absolvido de todas as censuras, interditos e penas a que havia sido condenado. A 23 de Agosto de 1675, Vieira reentra em Lisboa, onde permaneceu quase seis anos, durante os quais preparou para edição os seus famosos Sermões (cerca de 230), de que o primeiro volume foi impresso em 1679. Durante esta última estadia na capital Vieira foi-se desiludindo com a realidade portuguesa e a força renovada da Inquisição, pelo que decidiu regressar à Baía, que havia deixado quarenta anos antes. A 27 de Janeiro de 1681, abandonou definitivamente a sua cidade natal, atravessando pela sétima vez o Atlântico. No colégio da Baía, seguindo as palavras de Diogo Barbosa Machado, Vieira: “Recebeu com terníssima piedade os Sacramentos, e expirou entre a meia noute e uma hora para o dia de 18 de Julho de 1697, em idade de 89 anos, 5 meses e 12 dias, e de Religião 74, 2 meses e 13 dias”2. A primeira biografia impressa do padre António Vieira foi publicada em 1746 pelo padre André de Barros, com o título Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jesus chamado por antonomasia o Grande: acclamado no mundo por Principe dos Oradores Evangelicos, Prégador Incomparavel dos Augustissimos Reys de Portugal, Varão esclarecido em Virtudes, e Letras Divinas, e Humanas, Restaurador das Missões do Maranhão, e Pará (...) e
encontra-se desde agora em versão digitalizada no site do GEO: http://geo.cm-lisboa.pt/. No decorrer das pesquisas que realizámos sobre as relações de Vieira com Lisboa e mais especificamente sobre a biografia aqui em causa deparámo-nos na Biblioteca Nacional de Portugal com um manuscrito com a cota COD. 6821, que não encontrámos mencionado na abundante bibliografia vieirina. Esse volume contém o texto da obra do padre André de Barros mas numa versão com variantes do que foi publicado em 1746 e que por certo seria a versão original do trabalho antes de ser impressa no referido ano. Chamámos então a atenção da responsável pela Divisão de Reservados – Área de Manuscritos, a dr.ª Lígia de Azevedo Martins, para esse códice e de imediato, com toda a sua simpatia e eficácia, fez introduzir na base de dados da referida biblioteca a sua descrição bibliográfica por Ana Cristina de Santana Silva da seguinte forma: BARROS, André de, 1675-1754, S.J. Vida, do Apostolico Padre Antonio Vieyra. Da Companhia de Jesus, chamado por antonomaria, o grande. Acclammado no Mundo por Principe dos Oradores Evangelicos. Pregador Incomparavel, Dos Augustissimos Reys de Portugal. Varão esclarecido. Em virtudes, e Letras, Divinas, e Humanas. Restaurador Das Missoens do Maranhão, e Pará. Dedicada, Ao Serenissimo Senhor Infante D. Antonio. Pelo Padre Andre de Barros da Companhia de Jesus. - [antes de 1746]. - [4] f. br, [235] f., [2] f. br, enc. : papel ; 25 cm Cópia cuidada, em letra de duas mãos (a segunda letra a partir da f. 177).
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Editado em 1746 (Nova Officina Sylviana, Lisboa), sendo a f. de rosto rigorosamente idêntica à do manuscrito. A obra impressa reproduz, com poucas diferenças, o texto da «Noticia Previa», da «Protestação do Autor» e dos cinco livros que constituem este códice, assim como as notas de margem, não constando do manuscrito apenas o índice e as licenças de impressão. B. Machado, tomo I, p. 138 refere um manuscrito preparado para edição, que a notícia prévia da obra de André de Barros, Vozes Saudosas, da eloquencia, do espirito, do zelo e eminente sabedoria do Padre Antonio Vieira […]. Lisboa Occidental : na Officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Senhor Patriarca, 1736, prometia «brevemente sahir à luz». Encadernação da época em pele castanha gravada a seco nas pastas e a ouro na lombada; título da lombada: «VIDA DO P. VIEYRA». Pert.: «Do Visconde de Fonte Arcada» manuscrito nas 2 f. brancas que antecedem a f. de rosto. Cota antiga: U-2-93 BNP COD. 6821
A edição Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra (…) foi abrilhantada por um conjunto de gravuras das quais apenas se tem destacado o retrato do padre António Vieira de corpo inteiro e em posição de evangelizar os índios, o qual ocupa uma página do volume e foi copiado de uma gravura impressa em 1742. Para lá dessa imagem, que adaptou um retrato mais antigo, é ainda de assinalar a iconografia aí gravada por um obscuro Cor Olivarius, cujo teor se deve tirar do esquecimento a que foi votada. As ilustrações a considerar foram colocadas a abrir cada uma das cinco partes em que se divide a obra, sendo de realçar as duas que retratam aspectos de Lisboa. Estas imagens da cidade natal do biografado ocupam cronolo-
gicamente o segundo lugar entre as gravuras com representações de Lisboa impressas em Portugal. Com efeito antes daquelas que aqui referimos terem sido impressas apenas se tinha aberto uma gravura sobre Lisboa pela mão do francês Bernard Picard (1673-1733), a qual abrange a parte inferior da folha que antecede o rosto do livro de Manuel de Andrade de Figueiredo, Nova escola para aprender a ler, escrever e contar offerecida a Augusta Magestade do Senhor Dom João V Rey de Portugal, impresso em Lisboa Ocidental na oficina de Bernardo da Costa de Carvalho em 1722. Nesta pequena gravura representa-se o Terreiro do Paço, o paço da Ribeira, a Ribeira das Naus e o palácio Corte Real, notando-se ao fundo outros aspectos da cidade. Este trabalho foi alvo de ligeiros retoques numa das duas gravuras referidas de Lisboa de Cor Olivarius, sendo a segunda uma representação da foz do Tejo com o registo da torre de Belém, da fortaleza de São Julião da Barra e do forte do Bugio (ou de São Lourenço da Cabeça Seca). Em ambos os casos os padrões destas imagens recuavam ao século XVII, ainda que com adaptações, pois neste último caso acrescentou-se o registo das duas últimas fortalezas mencionadas e, no primeiro, verifica-se ter havido a junção do conteúdo de várias gravuras preparadas por Jacobus Baptist em 1707 e reproduzidas em vários volumes impressos por Pierre Vander Aa, as quais vinham culminar um conjunto de gravuras seiscentistas. É esse panorama iconográfico que num recuo retrospectivo e de forma integrada iremos apresentar. mais à frente.
Notas 1 Cartas Familiares, prefácio e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento, Lisboa, Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1980, p. 330. 2 Biblioteca lusitana, tomo I, Lisboa, 1741, p. 419.
Frontispício do livro de André de Barros, Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra da Companhia de Jesus chamado por antonomasia o Grande : acclamado no mundo por Principe dos Oradores Evangelicos, Prégador Incomparavel dos Augustissimos Reys de Portugal, Varão esclarecido em Virtudes, e Letras Divinas, e Humanas, Restaurador das Missões do Maranhão, e Pará... / pelo P. André de Barros da Companhia de Jesus, Lisboa, na nova officina Sylviana, 1746, 686 p., 30,5 x 21,5 cm GEO REL 20-G RES lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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Gravuras Cor Olivarius na obra de André de Barros, Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra (…) À esquerda retrato do padre António Vieira; em cima, alusão à missão do Maranhão em 1653 (livro II, p. 117); ao meio alusão à expulsão do Maranhão em 1661 (livro III, p. 269); em baixo, evocação da vida e obra de Vieira (livro V, p. 513) “a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
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Torre de Belém, forte do Bugio e fortaleza de São Julião da Barra Gravura de Cor Olivarius na obra de André de Barros, Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra (…) (livro IV, p. 367) alusiva a saída do navio em que Vieira embarcou para Roma a 15 de Agosto de 1669
Terreiro do Paço e palácio Corte Real Gravura de Cor Olivarius na obra de André de Barros, Vida do apostolico Padre Antonio Vieyra (…) (livro I, p. 1) alusiva a Lisboa como local do nascimento de Vieira (a confrontar com a gravura em baixo)
Terreiro do Paço e palácio Corte Real Detalhe da parte inferior de uma gravura de Bernard Picard (1673-1733) impressa como ante-rosto da obra de Manuel de Andrade de Figueiredo, Nova escola para aprender a ler, escrever e contar offerecida a Augusta Magestade do Senhor Dom João V Rey de Portugal, Lisboa Occidental, Off. de Bernardo da Costa de Carvalho, [1722], [20], 156 p., [45] p. il. Col. Vieira da Silva, VS 1626/D8 GEO AE 150-G RES lisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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Parte II Iconografia de Lisboa seiscentista Lisboa entre os Filipes e o Portugal Restaurado
As imagens não nascem por acaso, têm as suas histórias, as suas justificações, os seus contextos explicativos; importa, por isso, apurar quais foram as suas origens e saber como foram divulgadas, projectando para o futuro uma carga memorial do que, no nosso caso, era a cidade de Lisboa no século XVII. São essas imagens que nos permitem hoje apurar as formas de alguns dos seus sítios. A recolha do conjunto da iconografia que durante o século XVII visou transmitir o conhecimento da Lisboa desse tempo é tão mais importante quanto grande parte dessa cidade desapareceu ou foi profundamente alterada na sequência do terramoto de 17551. Ao procedermos a uma observação global das representações que retratam essa Lisboa, em convergência com a sua história, estamos a aproximar-nos da cidade em que o homem que aqui nos serve de referência - o padre António Vieira - nasceu e viveu intensamente alguns dos dias mais marcantes da sua longa vida. A memória urbana da Lisboa seiscentista reflecte-se na sua iconografia em pontos específicos, que começam por se situar em torno de 1619, isto é, quando Filipe II de Portugal visitou a cidade. Esta tinha então atingindo uma grandiosidade que levava alguns a acalentarem a esperança de que ainda se poderia
tornar uma capital hispânica de cunho imperial. Este sonho surgira em 1608 mas foi-se rapidamente desvanecendo depois de 1619, ainda que só em 1650 tenha desaparecido por completo, como já atrás assinalámos. Em 1619, não se agravara de uma forma generalizada o descontentamento do escol português com a dinastia filipina, situação que só se começou a alterar na terceira década do século XVII, acabando por conduzir à rotura de 1640 com o triunfo do golpe seccionista da Restauração. O processo complexo que então se iniciou permitiu à capital portuguesa voltar a assumir a preponderância perdida havia sessenta anos, ainda que através de uma conjuntura muito dura, marcada pelo enfrentamento violento com uma Castela que não abdicara da sua força absorvente para tentar acabar com a ruptura surgida em Lisboa. D. João IV, ainda que sem possibilidades de reacender a chama de anteriores aspirações de grandeza de Lisboa, reafirmou de forma realista o seu protagonismo como capital. Este evidenciou-se, nomeadamente, já depois da sua morte, em momentos importantes como o do casamento da sua filha D. Catarina com Carlos II de Inglaterra em 1662, quando a cidade teve a grande oportunidade de promover a sua imagem na Europa. Foi então que se destacou a criação de um conjunto iconográfico que está na origem de sucessivas campanhas de divulgação visual de Lisboa. Durante o século XVII a imagem de Lisboa
continuou a ser divulgada a partir da impressão sucessiva de ilustrações que copiavam ou adaptavam as duas gravuras publicadas sob a direcção de Georg Braunius em 1572 e cerca de 15982, respectivamente nos volumes II e V da Civitatis orbis terrarum, tendo sido apenas em 1619 que surgiu uma nova matriz para registar a imagem de Lisboa. Esta foi criada na sequência da visita a Lisboa de Filipe II de Portugal, que em 29 de Junho de 1619 desembarcou no Terreiro do Paço e por isso esta imagem está centrada nessa famosa praça. Este padrão é da traça de Domingos Vieira Serrão3 e foi passado a gravura em Madrid por Hans Schorken com a legenda “DESEMBARCACION DE SU M. EN LISBOA. Debuxada por Domingos Vieira Pintor del Rey y cortada por Ion Schorquem”(p. 27). Este trabalho era destinado a ser integrado no livro de João Baptista Lavanha quer na sua versão castelhana quer na portuguesa, tendo esta o título Viagem da Catholica (…) D. Filipe II. Ambas foram impressas em Madrid em 1622, e nelas surgem ainda gravuras do mesmo autor em que se retratam os arcos triunfais que se ergueram em Lisboa em 1619. Essa mesma vista, mas sem o desembarque régio, surgiu numa enorme pintura votiva a óleo sobre tela da autoria de Domingos Vieira Serrão, associado a Simão Rodrigues, com a legenda: “N. S. de Porto Seguro roga a seu presioso filho por esta sidade e sua navegasão” (p. 28-29). Esta obra prima do final do malisboa do século XVII | “a mais deliciosa terra do mundo”
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neirismo português foi encomendada cerca de 1620 para a capela do mercador francês Antoine Magnonet na igreja de São Luís dos Franceses, que acabara de ser construída em 16194. Algum tempo depois de famosa visita, não se tendo conseguido ainda determinar quanto, foi feita uma outra pintura em tela com a representação da região de Lisboa compreendida entre Belém e Xabregas apresentando numa cartela a legenda que indica tratar-se da «Entrada de SV MG. Don Phelipe III en Lisboa en 1613», texto que terá sido repintado sobre um outro em que estaria a data correcta de 1619, pois 1613 é um erro manifesto e difícil de explicar, a não ser por uma (in)correcção de quem não conhecia um facto tão importante como o que é ali referido (p. 30). Esta pintura, que ficou anónima, estava em 1633 no Salón de los espejos do Real Alcázar em Madrid e actualmente encontrase no palácio de Weilburg (Alemanha), para onde foi levada no século XIX, depois de ter sido adquirida em Madrid pelo embaixador da Alemanha em Espanha, tendo sido dada conhecer em 2006 por Andreas Gehlert5. Ao reflectirmos sobre esta muito ampla vista de Lisboa, ao contrário das representações anteriores, que eram muito mais restritas, fomos levados a ponderar que ela revela algumas semelhanças com o mapa da região de Lisboa traçado em 1634 por Pedro Teixeira no seu atlas Descriptión de España y de las costas y puertos de sus reynos (…), que também só desde há muito pouco tempo é conhecido e “a mais deliciosa terra do mundo” | lisboa do século XVII
se reproduz e comenta mais à frente (cf. p. 96-97 e 102-103). A circunstância de Pedro Teixeira ter pintado vistas de cidades portuárias da Península Ibérica para o Real Alcazar de Madrid6 leva-nos a sugerir a possibilidade der ser ele o autor de tal obra, tanto mais que o estilo dessa pintura não se assemelha ao dos restantes pintores da época. A comparação da pintura desta tela com a do mapa talvez possa ajudar a compreender a sua génese e estilo, pelo que deixamos aqui esta hipótese para continuar a ser trabalhada. O modelo da imagem de Lisboa criada em 1619 por Domingos Vieira Serrão, ainda que tendo surgido para glorificar o segundo Filipe português, acabou por ser o que foi retomado depois da Restauração, pois é nele que se baseiam as duas representações que retratam a subida ao trono de D. João IV no Terreiro do Paço. Com efeito, foi este o cenário escolhido para dois momentos chave da Restauração que surgem em duas pinturas a óleo sobre tela feitas cerca 1641. As representações aqui em causa estão bastantes escurecidas não nos permitindo uma boa leitura do seu conteúdo pelo que não é sem algum esforço que nelas descortinamos as cenas referenciadas nas legendas inscritas em cartelas emolduradas nas quais se regista que apresentam a: Aclamação da Magestade Del Rei Dom João o Quarto, em o Primeiro De Dezembro de 1640 e Em 15 de Dezembro de 1640 se Jurou Rei de Portugal a El Rei Dom João Quarto deste nome N Senhor (p. 32). Ao questionarmo-nos sobre quem poderia ter
feito estas pinturas, que ficaram anónimas, e tendo em conta a sugestão de Vítor Serrão, que nos mencionou a possibilidade de poderem ter sido feitas por Miguel de Paiva ou o seu filho António de Paiva, inclinamo-nos para a possibilidade de ter sido o primeiro. Para tal hipótese é de considerar que Miguel de Paiva foi discípulo de Domingos Vieira Serrão, a quem sucedeu em 19 de Agosto de 1632 no cargo de pintor régio, o qual lhe foi mantido por D. João IV em 4 de Março de 16417. Sendo este pintor discípulo de Serrão não admira que lhe tenha adaptado o desenho de Lisboa na representação das cenas em torno da Restauração, pois passara a ser o pintor régio de D. João IV, que como tal deveria enaltecer8. Para lá destas duas imagens de Lisboa, que acabaram por ir caindo no esquecimento, há a assinalar entre as iniciativas iconográficas destinadas a promover a Restauração no estrangeiro a figuração de cenas relativas aos acontecimentos que então ocorreram em Lisboa, as quais foram publicadas numa gravura a buril aberta em 1641 na Alemanha (p. 31), a qual foi depois copiada nesse mesmo ano na Holanda. Traduzindo do alemão o título e as legendas dessa gravura aí se lê: «Acontecimentos da época da ascensão do rei D. João IV de Portugal ao trono. 4 sucessos ocorridos em 1641: João IV, rei de Portugal e dos Algarves, etc. (em cima, ao centro). Morte de Miguel de Vasconcelos (A.). João de Bragança proclamado rei (B). Juramento do novo rei (C.). Coroação de D. João IV (D).».9 De assinalar que na versão desta gravura que se conserva
Lisboa do século XVII, “a mais deliciosa terra do mundo” (125 páginas, 23x25cm) Uma publicação disponível para consulta e venda no Gabinete de Estudos Olisiponenses Estrada de Benfica, 368 tel. 21 7701100