Centro de Arqueologia de Lisboa
Gabinete de Estudos Olisiponenses
Junta de Freguesia de São Vicente
Departamento de Desenvolvimento e Formação
São Vicente, freguesia nascida da última restruturação administrativa de Lisboa, localiza-se num dos mais antigos territórios de Lisboa, no Centro Histórico da cidade. Os vestígios da rica e variada história de Lisboa que encontramos neste espaço, cobrindo múltiplos séculos de ocupação humana e testemunhos da evolução das formas de fazer e de estar das populações, tornam este território num dos mais interessantes da cidade. Esse interesse reflete-se nas variadas investigações desenvolvidas sobre a freguesia, bem como no desejo de melhor compreender e mais saber dos munícipes sobre a sua cidade. Conhecer a cidade, como foi e como é, torna-se também um instrumento para melhor exercer a cidadania.
Neste colóquio, procurou-se apresentar a história de São Vicente, o seu passado, as memórias e as vivências dos diversos bairros que compõem a freguesia, desde os vestígios pré-históricos, aos palácios e conventos, às coletividades populares e operárias, o seu importante passado republicano e a ameaça atual da gentrificação. A partilha do conhecimento sobre o passado comum, mais remoto ou mais presente, é um dos principais pilares da construção de comunidades mais fortes e interventivas, com genuíno interesse no evoluir do seu território, e é objetivo principal destes colóquios, desenvolvidos pelo Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, em colaboração com o Departamento de Desenvolvimento e Formação, e em parceria com as Juntas de Freguesia.
Anabela Valente
Coordenação
Anabela Valente
Organização e Produção
Vanda Souto (GEO)
Jorge Luís (GEO)
Paginação/design
João Rodrigues
Gabinete de Estudos Olisiponenses | 2021
|
Organização
2019
Mário Cachão
As histórias que o chão da freguesia conta
Ana Sofia Antunes/ Anabela Castro/ Victor Filipe
Ocupação Proto-Histórica na Calçada do Monte, Nº 2 - Lisboa
Manuel Fialho
São Vicente de Fora: do Arrabalde à Paróquia
Miguel Martins
A Capela de Estêvão da Guarda em S. Vicente de Fora
Delminda Rijo
Entre o Termo e o Centro Urbano: a freguesia de Santa Engrácia no século XVII
Sérgio Proença
Becos, escadinhas, travessas, caracóis e outras ruas da Colina de São Vicente
Joaquim Pintassilgo
Escola Nova, Educação popular e regeneração social: dois casos no bairro lisboeta da Graça (Escola-Oficina Nº 1 e Voz do Operário)
Elisabete Serol
O Campo de Santa Clara em Lisboa –Cidade, História e Memória
Elisabete Gama
O Convento de Santa Apolónia e a extinção das ordens religiosas: um exemplo de descontinuidade
Maria João Figueiroa Rego
As colectividades da freguesia de São Vicente
índice ACTAS DO COLÓQUIO DE SÃO VICENTE
The geology and paleontology of Saint Vincent’s perish As histórias que o chão da Freguesia de
São Vicente conta
Mário Cachão
É abordada e interpretada parte da geoidentidade de Lisboa, nomeadamente a que serve de substrato à Freguesia de São Vicente. A mais superficial, sobre a qual assenta o edificado desta freguesia, raramente aflora (por exemplo, no Geomonumento da Rua da Judiaria e no Teatro Romano de Lisboa). Outra, escondida centenas de metros abaixo do solo nesta freguesia, mas aflorante nos sectores mais ocidentais, é tradicionalmente utilizada na edificação e pavimentação de vários dos seus monumentos mais emblemáticos como o Mosteiro/Igreja de São Vicente de Fora e o Convento da Graça e sua envolvente. Referimo-nos aos calcários compactos, fossilíferos, mais conhecidos por liós.
O susbtrato geológico da Freguesia de São Vicente
A freguesia de São Vicente situa-se no limite sul da cidade de Lisboa, sobranceiro ao rio Tejo, onde afloram algumas das unidades geológicas mais recentes (recentes com mais de uma dezena de milhões de anos, bem entendido), que constituem o seu substrato urbano. Este subsolo enquadra-se temporalmente no que, em termos de idades geológicas, é conhecido como a Época Miocénico. A maior parte da cidade de Lisboa, das colinas que bordejam a Baixa, ao eixo central do Terreiro do Paço, Praças do Rossio, Restauradores e da Figueira, Avenidas da Liberdade e da República, Campo Pequeno, Entrecampos e Campo Grande, até à Ameixoeira, e todo o seu sector ocidental assentam num espesso e variado conjunto de rochas sedimentares desta época miocénica, depositadas num intervalo de tempo grosso modo entre os 20 e os 10 milhões de anos. Por vezes ocorrem pouco consolidadas, como as areias soltas extraídas em anos idos de locais como o ainda conhecido “Areeiro”. Noutros casos apresentam-se coesas como as argilas de múltiplos barreiros que alimentaram indústrias de cerâmica como, por exemplo as do “Forno do Tijolo”. Noutros casos ainda surgem bancadas mais concrecionadas de arenitos grosseiros a finos, geralmente bastante fossilíferos. Estes biocalcarenitos foram bastante utilizados como revestimento de edifícios e monumentos históricos nomeadamente na Sé, no castelo de S. Jorge, nas muralhas medievais como a Cerca Moura (Portas do Sol), no Postigo (Geomonumento de Lisboa 18, Rua da Judiaria; Figura 1 A e B) e na Torre de São Pedro (Figura 2), ligados à Cerca Velha”, no Teatro Romano de Lisboa (Figura 3) ou no preenchimento das paredes de edifícios antigos um pouco por toda a Lisboa.
The present work describes part of the geodiversity of the city of Lisbon, namely the Miocene geological units that outcrop in the Saint Vincent’s perish, one of the youngest that constitute Lisbon’s substrate. An older (Cretaceous) unit, the Bica formation, is also referred during the presentation, mainly composed by limestone is locally known as liós. This fossiliferous formation contains rich assemblages of extinct bivalve mollusks, the Rudists, whose dominance is interpreted both in terms of its paleoenvironmental tropical marine conditions and on possible reasons for the present day and future scarcity on coral reefs on coastal areas subjected to extreme warming events.
Cretaceous
limestone
Rudist
Miocene biocalcarenite Cretácico biocalcarenito rudista Liós Miocénico
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Esta variedade de litótipos miocénicos, a geodiversidade miocénica de Lisboa, foi profusamente descrita há mais de um século por Berkeley Cotter, distribuída por um conjunto de sete unidades principais, ditas “Assentadas”, numeradas de I a VII, nalguns casos subdivididas em subunidades (secções), publicadas postumamente em 1956, fruto da pesquisa, recolha e análise de manuscritos por George Zbyszewski. A partir de então têm sido retomadas com designações e codificações, mais ou menos modificadas, em todos os trabalhos de cartografia da região de Lisboa (Quadro I). Como refere G. Zbyszewski no prefácio desta obra, já Pereira da Costa tinha publicado antes uma memória sobre gastrópodes do Miocénico de
Quadro I
Portugal, encontrando-se a preparar outra sobre bivalves quando faleceu, memória esta publicada postumamente em 1903-04. Outro trabalho de referência, desta feita sobre Equinodermes do Terciário, foi publicado em 1896 por Perceval de Loriol. Em 1950 foi publicado, igualmente a título póstumo, o trabalho incompleto de P. Choffat sobre o Terciário português, o qual retoma as unidades definidas pelo seu conterrâneo B. Cotter. Mais tarde o estudo do Miocénico de Lisboa foi retomado por G. Zbyszewski (e.g. Zbyszewski, 1949, 1953) e depois revisto por T. Antunes e colaboradores em várias publicações do final do séc. XX, início do séc. XXI (e.g. Antunes & Ginsberg, 2003).
Quadro comparativo das várias designações utilizadas para as principais unidades miocénicas, desde as propostas inicialmente por B. Cotter (1956) às que foram sendo utilizadas em sucessivos trabalhos de cartografia e interpretação geológica. As unidades estão representadas da mais antiga, na base, para a mais recente, no topo, o modo tradicional de representar o tempo em Geologia. É igualmente apresentado o respectivo enquadramento geocronológico, proposto por diversos autores (Nota: À época de B. Cotter, o Helveciano correspondia ao Miocénico médio, um intervalo de tempo geológico mais tarde subdividido nos andares formais Langhiano e Serravaliano).
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A idade das unidades de Cotter (Berkeley-Cotter, 1956) estende-se dos 20 aos 11 milhões de anos (Cachão e Silva, 2000; Pais et al., 2012) com as unidades mais antigas ocupando o sector central e setentrional da cidade de Lisboa, e as mais recentes aflorando progressivamente mais para oeste. Os litótipos são bastante variados, de argilitos a arenitos e biocalcarenitos, mais ou menos cimentados, com componente fóssil por vezes bastante abundante, lumachélica. As unidades mais basais comportam fósseis de animais coloniais como corais e briozoários (Carvalho, 1971), bem como de outros de maiores dimensões como os mamíferos marinhos da ordem dos Sirénios (Prista et al., 2014). As unidades médias a superiores testemunham alternâncias de unidades mais marinhas, costeiras, com níveis fluviais e lagunares onde ocorrem fósseis de vertebrados terrestres que incluem antigos elefantes (Gomphoterium), rinocerontes (Hispanotherium), ancestrais de hipopótamos (Brachyodus), cavalos primitivos (Anchitherium), girafas primitivas (Paleotragus) e carnívoros felídeos (Styriofelis) e canídeos (Amphicyon), entre outros de menor porte
(Antunes, 1969). Para o topo da sequência sedimentar voltam a predominar sedimentos marinhos, onde ocorrem, para além de variados vestígios de animais invertebrados, fósseis de cetáceos e de crocodilos (Tomistoma lusitanica) (Pais et al., 2008; Antunes, 2017).
Dos geomonumentos de Lisboa, apenas o da Rua da Judiaria, está inserido no território da Freguesia de S. Vicente. Nele afloram vários níveis do biocalcarenito miocénico da Assentada V, secção a) (“Molasso calcário de Pecten scabrellus do Casal Vistoso e de Musgueira) (Quadro I), servindo de substrato rochoso ao antigo Postigo de São Pedro. Evidenciando marcas de talhe para fins vários, nomeadamente para escoamento de águas pluviais, estes níveis são particularmente carbonatados, compactos, ricos em fósseis de moluscos, espatizados ou em molde, e com sinais de dissolução e carsificação. A este respeito são evidentes depósitos bandados travertínicos de calcite, formados por escorrência de águas em cavidades cársicas, as quais poderão mesmo ter dado origem a espeleotemas, actualmente destruídos (Figura 1C)
Figura 1
Geomonumento de Lisboa (18) da Rua da Judiaria. Afloramentos de biocalcarenitos do Miocénico de Lisboa muito compactos e cimentados. A) Aspecto geral das camadas miocénicas aflorantes onde assenta um antigo palácio de estilo manuelino construído sobre as muralhas da cerca fernandina. B) Afloramentos na base da reconstituição do Postigo de São Pedro, com marcas de talhe e revestimento de gruta. C) Detalhe do depósito travertínico de calcite.
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Torre de São Pedro, com revestimento a blocos de biocalcarenito miocénico. A) Pormenor de parte da Torre. B) Detalhe de alguns dos blocos de biocalcarenito, alguns mais ricos em somatofósseis de moluscos bivalves (ostreídeos e pectinídeos) outros onde se evidenciam estruturas sedimentares, como por exemplo, laminações oblíquas, indicando a existência de correntes de fundo que condicionaram a deposição da componente siliciclástica arenítica.
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Figura 1C
Figura 2
Aspectos do biocalcarenito no contexto do Teatro Romano de Lisboa. A) Níveis aflorantes evidenciando aspectos da estratificação original, no seio do Teatro Romano.
B) Colunas talhadas no biocalcarenito. C) Capitéis de colunas talhados no biocalcarenito.
Formação marinha carbonatada
A unidade mais antiga é constituída por duas formações geológicas, a inferior, mais antiga (Albiano superior a Cenomaniano médio) é a Formação de Caneças (Dinis et al., 2008), também conhecida por Belasiano (Choffat, 1885, Berthou, 1973), sobre a qual ocorre a mais recente (Cenomaniano superior), a Formação da Bica (Pereira de Sousa, 1897, 1904; Dinis et al., 2008), origem dos calcários conhecidos por liós (ou lioz).
Pertencem à Formação da Bica os calcários mais ou menos compactos, umas vezes microcristalinos (o típico liós), outras vezes pulverulentos, outras ainda nodulares, também designados, “apinhoados”. Ocasionalmente aparecem
Dois dos monumentos emblemáticos da Freguesia de São Vicente, ambos com revestimentos maioritariamente constituídos por liós, o calcário fossilífero da Formação da Bica, do Cretácico Superior da região de Lisboa.
A) Detalhe do topo do Mosteiro de São Vicente de Fora. B) Entrada da Igreja e Convento da Graça.
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Figura 3
Figura 4
fósseis de amonites (“Camadas com Neolobites vibrayeanus”; Choffat, 1900), embora os seus fósseis típicos sejam os Rudistas, grupo extinto de moluscos bivalves, particularmente abundantes em algumas unidades superiores. A concentração destes rudistas, particularmente nas lajes utilizadas na construção de monumentos como o Mosteiro de São Vicente de Fora ou a Igreja e Convento da Graça (Figura 4).
Nestes e em muitos outros monumentos, assim como em lajes de pavimentos da Baixa Pombalina ocorrem fósseis destes rudistas as formas mais frequentes pertencem a duas famílias, os Radiolitídeos, geralmente representados pelo género Sauvagesia, e os
Caprinídeos, representados pelos géneros
Caprina e Caprinula (Figura 5). Estes denunciam terem existido, na região de Lisboa, há cerca de 90 milhões de anos, extensos biohermes ou estruturas bioedificadas, também ditas recifais. Estas, por sua vez, indicam que as águas marinhas onde se formaram, à semelhança do que acontece com os recifes de corais actuais, seriam pouco profundas, quentes e límpidas (pobres em nutrientes e plâncton), bem iluminadas, agitadas e oxigenadas. Esta riqueza em fósseis de rudistas é, aliás, uma das características mais típicas e que permitem a fácil identificação de um calcário como sendo liós. Efectivamente, muitas das lajes talhadas nesta rocha são sectores desses antigos recifes fossilizados (Figura 6).
Figura 5
Dois exemplos de lajes de calcário liós rico em fósseis de rudistas. A) Detalhe do uma laje cortada transversalmente a uma grande quantidade de rudistas quase exclusivamente Radiolitídeos, na sua maioria em posição de vida, tal como estariam no sector mais externo do recife. B) Detalhe de várias lajes talhadas exclusivamente em fósseis de rudistas Caprinídeos.
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Conclusão
As rochas aflorantes na região de São Vicente ilustram o último dos paleoambientes marinhos, miocénicos (dos 20 aos 10 milhões de anos), que ocuparam boa parte do que é hoje a cidade de Lisboa, repleto de fósseis que se podem ver em alguns dos seus monumentos e elementos arquitectónicos
medievais e, mesmo, romanos. Abaixo destas ocorrem outras, bem mais antigas, que testemunham um episódio igualmente marinho, cretácico (~90 milhões de anos) mas de águas mais quentes e recifais, com bizarros bivalves extintos, os rudistas, na altura, os principais edificadores de recifes na região da grande Lisboa.
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Figura 6
Reconstituição de recife de rudistas Radiolitídeos e Caprinídeos em posição externa e interna, respectivamente. Reprodução de original de Nuno Farinha.
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Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, Vol. XI, Fasc. I, pp. 91-92
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Um sítio da Pré-Histórica Recente e da Idade do Bronze na Calçada do Monte, n.º 2 – Lisboa
Ana Sofia Antunes1
Anabela Castro2
Victor Filipe3
A intervenção arqueológica
A Late Prehistory and Bronze Age site at Calçada do Monte 2
Lisbon
Nos trabalhos de arqueologia preventiva realizados na Calçada do Monte, n.º 2, em Lisboa, foram identificados vestígios arqueológicos que recuam ao Neolítico Final – um espaço funcional revelado por uma lareira e uma área de despejos. Posteriormente, talvez já no Calcolítico, foi erguida uma estrutura extensa e robusta, com 2 m de largura, que poderá corresponder a uma muralha. Após a sua desactivação ocorreu outro momento de ocupação no sítio, que se enquadrará na Idade do Bronze.
Pré-História
Neolítico Final
Calcolítico
Os trabalhos arqueológicos realizados no imóvel edificado no século XX, situado na Calçada do Monte, n.º 2 enquadraram-se numa perspectiva de minimização de impactes sobre o património decorrentes do projecto de alterações, promovido pela empresa de investimento imobiliário Sustentoasis S.A.. Em termos administrativos, localiza-se em plena cidade de Lisboa, no bairro histórico da Mouraria (fig. 1), freguesia de Santo Estevão (coordenadas geográficas: 38º 43´03.7´´ N; 9º 07.6´ 60´´ O). O projecto de alterações contemplava a escavação de valas perimetrais para reforço das paredes, infraestruturas, um poço de elevador e um acesso que partia deste último até ao parque de estacionamento já construído no âmbito de outro projecto (fig. 2). Numa etapa inicial, que decorreu no mês de Janeiro de 2017, escavaram-se duas sondagens de diagnóstico, cujos resultados já faziam antever contextos com cronologias bastante recuadas. Já em fase de obra, retomaram-se os trabalhos de escavação arqueológica, que decorreram durante os meses de Fevereiro e Março do mesmo ano, com recurso à escavação mecânica dos níveis contemporâneos e modernos, seguindo-se, a escavação manual dos contextos medievais, da Idade do Bronze e pré-históricos. A profundidade alcançada oscilou entre os 0,60 m e os 4,50 m, atingindo-se o substrato geológico. A escavação destas áreas permitiu identificar uma diacronia balizada entre o Neolítico Final e a Época Contemporânea. Neste breve ensaio apresenta-se uma primeira análise dos contextos da Pré-História Recente e da Idade do Bronze, salientando-se a estrutura de combustão, a área de descarte e a robusta construção que poderá ser uma muralha.
1 Centro de Arqueologia de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa; Uniarq - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
2 Instituto Superior de Ciências Sociais e Humanas / Universidade de Lisboa; Uniarq - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
3 Uniarq - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa
Idade do Bronze
Povoamento
In the preventive archeology work carried out at Calçada do Monte 2, in Lisbon, archaeological remains that go back to the Late Neolithic were identified - a functional space revealed by a fireplace and a dump area. Later, perhaps in the Chalcolithic, an extensive and robust structure, 2 m wide, which may correspond to a wall, was built. After its deactivation, there was another moment of occupation on the site, probably framed in the Bronze Age.
Prehistory
Late Neolithic
Chalcolithic
Bronze Age
Settlement
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Figura 1
Localização da intervenção arqueológica, na Calçada do Monte, n. º2, Lisboa.
Figura 2
Indicação das áreas escavadas na planta da obra.
As evidências arqueológicas
A ocupação mais antiga documentada no n.º 2 da Calçada do Monte e, por conseguinte, na colina da Graça, recua ao Neolítico Final, que corresponde, de um modo geral, a uma cronologia centrada na segunda metade do IV milénio a.C. (3500-3000 a.C.). A fase mais antiga encontra-se testemunhada por uma estrutura de combustão (lareira)U.E. [348] - associada a uma área de despejos (U.E. [349]), que incluía cerâmica manual e fauna mamalógica e malacológica, e que corresponderá a um espaço funcional, possivelmente de natureza doméstica (fig. 3). No momento seguinte promoveu-se uma reformulação do espaço, mediante a colocação de um depósito (U.E. [345])
que se terá destinado possivelmente a regularizar o terreno (fig. 4) e que embalava um expressivo conjunto de materiais arqueológicos que nos permitiram enquadrar cronologicamente esta fase da ocupação. Para além de alguns objectos de pedra polida (fig. 6) e de pedra lascada (fig. 5), destacam-se o recipiente mamilado (fig. 8), a taça carenada (fig. 9) e as taças de bordos denteados (fig. 7) típicas do Neolítico Final da Estremadura (Carreia e Cardoso 1994), com paralelos, por exemplo, na Travessa das Dores (Neto, Rebelo e Cardoso 2015), em Vila Pouca (Moita 1967) ou em Leceia (Cardoso 2007). Sobre este depósito do Neolítico Final foi edificada uma construção robusta (U.E. [344]).
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Figura 3
Espaço funcional de carácter doméstico. (em baixo, detalhes)
Apesar de estar muito truncada pelas sepulturas medievais, foi possível perceber que tinha cerca de 2 metros de largura e era composta por blocos pétreos de grande dimensão nas faces exteriores, sendo o interior preenchido por blocos pétreos menores (fig. 10).
Foi registada em duas das sondagens, com uma extensão de 4 m numa delas, mas prolongava-se, tanto em largura, como em comprimento,
para as áreas que não foi possível escavar, sugerindo constituir uma muralha ou um muro particularmente robusto, embora por ora mantenhamos a interpretação em aberto sobre esta realidade. A escassez de materiais arqueológicos associados a esta construção limita o seu enquadramento cronológico, sendo ponderado, de forma provisória, um momento possivelmente centrado já no Calcolítico (III milénio a.C.).
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Figura 4
Representação em corte da U.E. [345].
Figura 5
Objectos de pedra lascada recolhidos na U.E. [345].
Figura 6
Objecto de pedra polida recolhido na U.E. [345].
Figura 7 Taças de bordo denteado recolhidas na U.E. [345].
Figura 9
Taça carenada (345.1) e taça em calote (345.2) recolhidas na U.E. [345].
Figura 8 Vaso mamilado recolhido na U.E. [345].
Sondagem 3. Corte Norte
Aparentemente, a destruição desta construção robusta terá ocorrido ainda em momentos antigos, durante o Calcolítico ou a Idade do Bronze (II milénio a.C.). O momento de ocupação posterior encontrase documentado apenas por um depósito (U.E. [342]) que se sobrepõe ao último nível do Neolítico Final e à estrutura robusta porventura edificada no Calcolítico e que fora entretanto destruída (fig. 11). Não é fácil enquadrar cronologicamente este momento e, por ora, mantemos em aberto esta adscrição. A presença de alguns materiais arqueológicos que podem enquadrar-se já na Idade do Bronze,
nomeadamente vasos esféricos e um vaso de colo recto (fig. 13), com paralelos no Catujal (Carreira 1997), no Casal da Torre (Carvalho, Bragança, Neto e Justino 1999) ou no Agroal (Lillios 1993), bem como uma taça carenada (fig. 13, n.º 37) idêntica a uma peça recolhida no casal agrícola do Bronze Final do Abrunheiro (Cardoso 2010/2011a, p. 60, fig. 26, n.º 3), em Oeiras, parecem sugerir que na Calçada do Monte pode ter existido uma ocupação deste período (último quartel do II milénio a.C.) ou eventualmente do Bronze Pleno, enquadrada nos três primeiros quartéis do II milénio a.C. (2000-1250 a.C.).
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Figura 10
Provável muralha [344] (Calcolítico?).
Figura 11
Representação em corte do depósito [342].
Sondagem 3. Corte Sul
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Figura 12
Objectos de pedra lascada recolhidos na U.E. [342].
Figura 13
Vasos esféricos e vaso de colo recto (342.3) recolhidos na U.E. [342].
Um enquadramento regional do sítio da Calçada do Monte
A análise que é possível efectuar no estádio actual da investigação sobre este sítio arqueológico é necessariamente provisória, desde logo pela limitação da área escavada e da amostra artefactual existente, podendo as ausências agora detectadas e as leituras realizadas ser revistas, tanto pelo aprofundamento do estudo que estamos a realizar, como pelos resultados de outras intervenções arqueológicas na colina da Graça, que esperamos que venham de futuro a alcançar os mesmos horizontes cronológicos. De qualquer modo, os dados revelados pela escavação arqueológica realizada na Calçada do Monte, n.º 2 revestem-se de grande importância, não só porque era até aos dias de hoje absolutamente desconhecida uma ocupação tão antiga na colina da Graça, como foi ainda possível registar uma sequência estratigráfica com estruturas e contextos preservados e com momentos de ocupação distintos. Atendendo ao cariz tematicamente abrangente do colóquio que deu origem às presentes actas e considerando que se destinam a um público não especializado, iremos neste trabalho privilegiar o enquadramento do sítio na respectiva época, em detrimento de uma análise detalhada da cultura material e das estruturas arqueológicas. Assim, importa referir que durante o Neolítico Final se assiste à aceleração da consolidação do sistema agro-pastoril que decorreu ao longo do 4.º milénio, o qual beneficiou, entre outros, da introdução de melhorias tecnológicas, como a utilização da força de tracção animal, aplicada ao transporte de mercadorias e à agricultura, acompanhada neste caso do arado, possibilitando a lavoura de solos pesados de elevada capacidade agrícola. A melhoria das condições de vida terá originado um aumento de população no Neolítico Final, a qual se estabeleceria em grupos de pequena ou de média dimensão, em povoados usualmente abertos, portanto, desprovidos de sistemas defensivos construídos, e por vezes bastante próximos entre si. O modelo de implantação dos povoados do Neolítico Final da Estremadura é diversificado, e se para alguns locais de habitat foi privilegiada a localização no topo de outeiros, como no caso de Montes Claros (Jalhay, Paço e Ribeiro, 1945; Jalhay e Paço 1947; Carreira e Cardoso 1992; Cardoso 1995a; Cardoso e Carreira 1995) – fig. 14, n.º 7 -, Alto das Perdizes (França 1949) – fig. 14, n.º 6 - ou Alto do Duque (Cardoso 1988a; 1988b) – fig. 14, n.º 10 -, na Serra de Monsanto, em Lisboa, ou ao longo das suas encostas, como a Calçada do Monte, mas sempre com um bom domínio visual do território envolvente, ao mesmo tempo que beneficiam de boas condições naturais de defesa, para outros sítios foi dada preferência à instalação em vertentes suaves, como sucede com o povoado da Parede (Paço, Serrão e Vicente 1957;
Vicente e Serrão 1958), em Cascais. Importa destacar a implantação privilegiada que o povoado da Calçada do Monte tinha, que lhe conferia boas condições naturais de defesa, numa zona de encosta que constituiria uma pequena plataforma ou promontório sobre a margem esquerda da Ribeira de Arroios, a qual subjaz à actual Avenida Almirante Reis. Era um local resguardado, porque se encontrava situado numa segunda linha desde a foz do esteiro da Baixa, onde se adianta a colina do Castelo e, desse modo, provavelmente mais abrigado e adequado à acostagem de canoas, e a partir do qual o domínio visual, tanto para montante para a Ribeira de Arroios, como para o esteiro da Baixa (que corre, grosso modo, sob a actual Baixa Pombalina), seria excelente (fig. 14, n.º 1).
A área em torno do esteiro da Baixa que desagua na zona da actual Baixa Pombalina revelou ser particularmente propícia para a instalação de comunidades humanas, pelo menos desde a transição do 5.º para o 4.º milénio a.C., durante o designado Neolítico Antigo Evolucionado, época de que se conhecem já diversos núcleos de habitat neste território. É o caso da Colina de Santana, então situada em posição interfluvial, tendo-se registado ocupações tanto no topo do outeiro, no Campo Mártires da Pátria - Palácio José Vaz de Carvalho (Reis, Pereiro, Cabaço, Ramos e Valera 2017), como no seu sopé, junto ao Largo do Martim Moniz (Muralha, Costa e Calado 2002; Muralha e Costa 2006; Angelucci, Soares, Almeida, Brito e Leitão 2007; Leitão e Henriques 2014), na margem direita da Ribeira de Arroios. Também no topo da colina de São Francisco, importa ainda referir o povoado localizado no Bairro Alto, identificado na Rua dos Mouros, na Travessa da Boa-Hora / Rua do Diário de Notícias e na Rua de São Pedro de Alcântara, sob os Palácios dos Lumiares e Ludovice (Valera 2006, 2014; Valera, Coelho e Ferreira 2008; Reis, Pereiro, Cabaço, Ramos e Valera 2017). Destaca-se neste âmbito a sepultura identificada no sopé da colina do Castelo, na Rua Cais de Santarém - Eurostars Museum Hotel (Rebelo, Neto, Ribeiro, Granja e Cardoso 2017; Cardoso, Rebelo, Neto e Ribeiro 2018). Refira-se, a propósito, que foram recolhidos um machado de pedra polida e materiais de pedra talhada na área do Castelo de São Jorge, que se consideraram então oriundos de um povoado que se localizaria na proximidade, tendo sido avançada a possibilidade da colina da Graça ou da Penha de França (Viana e Zbyszewski 1946), mas estes elementos não são suficientes para uma cabal caracterização desta realidade. No que se refere ao povoamento do Neolítico Final, a Calçada do Monte não se encontra isolada na área da actual cidade de Lisboa, identificandose já um padrão de instalação de sítios desta época em encostas articuladas com as ribeiras
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subsidiárias do Tejo ou com o próprio rio, como é o caso de sítios ainda mal caracterizados como a Cerca dos Jerónimos (Correia 1913; Chaves 1937), em Belém e da Junqueira (Vaultier e Zbyszewski 1947), em Alcântara (fig. 14, n.º 8), entre outros. Destaca-se, por ter sido identificado mais recentemente e por ter sido alvo de uma escavação arqueológica mais abrangente, o povoado detectado em vários pontos na Ajuda, designadamente na Travessa das Dores (Neto, Rebelo e Cardoso 2015; 2017), na Rua dos Quartéis (Basílio e Pereiro 2017) e no Antigo Quartel do Rio Seco (Costa, 2017), localizado na encosta de uma das colinas da Serra de Monsanto, na margem direita do Rio Seco (fig. 14, n.º 9), com o qual a Calçada do Monte mantém um paralelismo evidente do ponto de vista da implantação e da cultura material, designadamente das produções cerâmicas, de pedra lascada e de pedra polida. Em alguns casos os dados sugerem uma possível estratégia concertada de exploração e/ou de gestão das ribeiras subsidiárias do Tejo, mediante a instalação de povoados ao longo do seu curso, em ambas as margens. É o caso de Vila Pouca (Correia 1912b; Roche, Ferreira e Zbyszewski 1959; Moita 1967; 1994; Carreira e Cardoso 1992) e de Sete Moinhos (Correia 1912a; Castelo-Branco 1985; Carreira 1995), implantados frontalmente em margens opostas da Ribeira de Alcântara (fig. 14, n.os 5
e 4), encanada desde meados do século passado sob a Avenida de Ceuta. Será também o caso, porventura, da Ribeira de Arroios, onde para além do povoado da Calçada do Monte (e da colina da Graça) se identificaram vestígios no Largo de Santa Bárbara do que será outro povoado pré-histórico, localizado algures na colina que lhe é sobranceira (Agradecemos a Vanessa Filipe e a José Pedro Henriques a informação inédita facultada sobre a intervenção arqueológica que realizaram no Largo de Santa Bárbara.). Todavia, apenas o conhecimento da cronologia de ocupação concreta de cada povoado pode fundamentar leituras territoriais e comprovar a efectiva contemporaneidade entre sítios. Mesmo no caso de Vila Pouca e de Sete Moinhos, a sugestiva relação decorrente da sua implantação, encontra alguns obstáculos nos dados revelados pela cultura material, que parece indicar que a ocupação de Sete Moinhos terá tido início após o abandono de Vila Pouca (Cardoso 2008-2009, p. 105-106). Efectivamente, em Vila Pouca, apesar das referências de A. Mesquita de Figueiredo à recolha de objectos de cobre ou de bronze nos «fundos de cabana» que escavou no local no início do século XX, a par de machados de pedra polida e de uma colher de cerâmica (Figueiredo 1922, p. 195), não se comprovou uma ocupação calcolítica nos trabalhos posteriores, nem se observaram
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Figura 14
Implantação de sítios do Neolítico Final numa possível perspectiva do território à época.
até à data os materiais arqueológicos mencionados. Por outro lado, ainda que Sete Moinhos possa ter tido uma ocupação, mais ou menos efémera, no Neolítico Final, representada pelos recipientes carenados, a ausência de cerâmicas com bordos denteados (presentes abundantemente em Vila Pouca) pode indicar que estes povoados não foram coevos. Sete Moinhos terá vigorado essencialmente no Calcolítico Pleno, conforme testemunharão um formão de cobre e a cerâmica decorada (“folha de acácia” e “crucífera”), bem como a cerâmica campaniforme, sendo o único exemplar de colo canelado recolhido (possível perduração) um escasso indicador de uma ocupação no Calcolítico Inicial (Cardoso 2008-2009, p. 106). De qualquer modo, importa salientar a limitação de que padece a análise destes sítios, uma vez que se baseia em dados parcos, parcelares, provenientes de recolhas antigas e destituídos de enquadramento contextual e estratigráfico, em locais que actualmente se encontram urbanizados ou florestados e que dificultam a contrastação das presenças e das ausências crono-culturais.
Uma das questões que se mantém em aberto relacionase com o tipo de sítio que configuraria a ocupação da Calçada do Monte, ou seja, com a sua funcionalidade. A presença da lareira (fig. 3) e de um conjunto diversificado de objectos utilizados em distintas tarefas do quotidiano, como as cerâmicas (figs. 7-9), os furadores de sílex (fig. 5), vocacionados para a preparação de peles, os machados e as enxós de pedra polida (fig. 6), destinados aos trabalhos com madeira ou as peças de sílex talhadas utilizadas na colheita de cereal (fig. 5), bem como o dormente de mó relacionado provavelmente com a moagem de cereais (encontrado reaproveitado numa construção da fase de ocupação posterior), induzem a ponderar um cariz permanente ou semipermanente para este povoado no Neolítico Final. Denota-se aparentemente uma ausência de pontas de seta, que seriam úteis na caça, mas assinala-se a presença de fauna mamalógica e esta comunidade beneficiava certamente da diversidade de espécies do estuário, pontualmente representadas na fauna malacológica registada. No caso da indústria lítica de sílex, assinale-se a riqueza da região de Lisboa nesta matéria-prima e existência de diversos pontos possíveis de exploração na Pré-História, com destaque para a Serra de Monsanto (Valera 2014; Leitão, Pimentel, Didelet, Mourão, Luz e Cardoso 2019) e a oficina de talhe de Santana (Cardoso 2008-2009, p. 103). Dada a relativa proximidade com a colina da Graça, é possível que uma das fontes de aprovisionamento se localizasse a cerca de 3 km, em Campolide (fig. 14, n.º 3), num local com ocupação pré-histórica identificado em 1907 por Paul Choffat, quando decorriam os trabalhos para a ampliação do Túnel do Rossio, mas logo infelizmente destruído pelos trabalhadores
(Choffat 1889; 1907; Vasconcelos 1937; Leitão, Cardoso e Didelet 2017). A relação imediata que o povoado da Calçada do Monte mantinha tanto directamente com a Ribeira de Arroios, como indirectamente com a Ribeira de Valverde e até com o próprio Tejo, terá sido certamente relevante no tipo de actividades que ali eram desenvolvidas, sem esquecer a própria navegação, que potenciava os intercâmbios transregionais. Nestes destacam-se, por exemplo, no âmbito geral da Pré-História, os que traziam placas de xisto decoradas do Alentejo, como a identificada na Quinta da Fareleira (Zbyszewski 1957), em Chelas, usada provavelmente em contexto funerário e os que trocavam o abundante sílex da região de Lisboa pelo anfibolito do Alentejo ou pelas rochas da região de Sintra, com que se produziam objectos de pedra polida. A questão da funcionalidade do sítio está associada a outra: o papel que desempenhava na rede de povoamento em que se integrava. Numa perspectiva regional mais alargada, tem constituído uma referência incontornável para a investigação o povoamento do Neolítico Final documentado em torno da Ribeira de Barcarena, em Oeiras, com destaque para o povoado de Leceia (Cardoso 1989; 1997; 2000), que seria o núcleo principal, com o qual se articulariam os povoados de Barotas (Costa 1992), do Monte do Castelo e do Carrascal (Cardoso 2009; Cardoso, Sousa e André 2015), para os quais João Luís Cardoso preconiza uma ocupação semi-permanente associada a estratégias especializadas de exploração de recursos, funcionando nomeadamente como oficinas de talhe de sílex (Cardoso 2004). Em outros casos, a vocação funcional estaria relacionada por exemplo com o tratamento de peles, caso do povoado do Estoril, em Cascais, ou com o armazenamento, tendo sido proposto para a Travessa das Dores, na Ajuda, onde não se identificaram cabanas, mas apenas silos, que ali se tivesse estabelecido um celeiro colectivo (Neto, Rebelo e Cardoso 2015). Com base na leitura que os dados actualmente permitem, o povoado aberto da Calçada do Monte não parece ter perdurado para além do Neolítico Final, ou, porventura, para além de momentos iniciais do Calcolítico. Neste aspecto, conhece semelhanças com o que sucedeu com os povoados de Vila Pouca, de Montes Claros e de Carnaxide, na Serra de Monsanto e com o povoamento da Ribeira de Barcarena, onde os povoados de Barotas e do Carrascal foram abandonados no Neolítico Final, revelando aparentemente, neste caso, uma tendência para a concentração demográfica em alguns povoados que detinham condições mais favoráveis e que acabaram por crescer, dotar-se de construções mais complexas e perdurar ao longo do Calcolítico, como sucedeu em Leceia (Cardoso 2000; 2004; 2010).
Desconhecemos as razões que levaram ao abandono 21
do povoado da Calçada do Monte num determinado momento do Neolítico Final ou do Calcolítico Inicial. De igual modo, desconhece-se por que motivo cessou a ocupação no Neolítico Final dos restantes povoados mencionados, mas que parece ser uma tendência transversal na Baixa Estremadura, sendo apontadas algumas possibilidades que invocam uma eventual epidemia, fenómeno natural ou conflito social (Cardoso 2004), sem prejuízo de outras causas. No caso de Oeiras, João Luís Cardoso parece ter efectivamente identificado um período de despovoamento que perdurou por algumas décadas entre o abandono dos povoados do Neolítico Final e a ocupação do Calcolítico Inicial de Leceia (circa 2900 / 2800 cal BC), marcada pela chegada de novas populações, portadoras de uma panóplia artefactual diferente e responsáveis pela edificação perfeitamente planeada do sistema defensivo no sítio (Cardoso 2004; 2010). Se o mesmo sucedeu na colina da Graça e no território envolvente e se aqui existiu um povoado fortificado calcolítico (fig. 10) são questões que permanecem, por ora, em aberto. Do mesmo modo, mantém-se a incógnita sobre uma eventual coexistência com a comunidade utilizadora de cerâmica campaniforme (exclusivamente decorada a ponteado) instalada na Praça da Figueira no Calcolítico Pleno (Cardoso e Carreira 1997), algures no III milénio
a.C., a partir de 2700/2600 a.C., de acordo com as datações radiométricas e os dados arqueológicos apurados para o fenómeno campaniforme da Estremadura, que atestam que os grupos campaniformes foram coevos das populações calcolíticas que habitavam nos povoados fortificados (Cardoso 2014). Esta ocupação da Praça da Figueira conformaria um pequeno habitat aberto de base familiar, idêntico a outros sítios campaniformes da área ribeirinha de Lisboa, nomeadamente os que partilham a localização numa encosta voltada para o Tejo, caso dos povoados da Junqueira (Correia 1913; Chaves 1937) e de Pedrouços (Castro, Filipe e Barbosa 2017). Finalmente, no n.º 2 da Calçada do Monte, foi ainda documentado um vestígio posterior às realidades que abordámos supra. Trata-se de um depósito (U.E. [342]) que se sobrepõe à estrutura robusta (eventual muralha) porventura edificada no Calcolítico e que fora entretanto destruída ou desactivada, pelo Tempo ou pelo Homem (fig. 11). A presença de vasos esféricos, com colos rectos e de uma taça carenada (fig. 13) sugere um enquadramento na Idade do Bronze para esta ocupação, porventura na transição entre o Bronze Pleno e o Bronze Final. A dificuldade em atribuir uma cronologia a esta fase radica essencialmente na inexistência de uma cabal caracterização da cultura material, particularmente
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Figura 15
Implantação de sítios da Idade do Bronze numa possível perspectiva do território à época.
cerâmica, do Bronze Pleno na Baixa Estremadura, decorrente da escassez de dados, tanto artefactuais, como radiométricos, devidamente contextualizados. Refira-se, por um lado, que a (re)ocupação de povoados calcolíticos na Idade do Bronze é um fenómeno documentado na Estremadura, por exemplo em Vila Nova de São Pedro e no Zambujal (Cardoso 1999/2000; 2005). Por outro lado, a confirmar-se esta ocupação da Calçada do Monte, ela não estaria isolada no território envolvente, no qual se conhece, bem próximo, na margem oposta da ribeira de Arroios, na Encosta de Santana, um testemunho do Bronze Pleno (Leitão e Cardoso 2014) – fig. 15, n.º 2 -, cronologia que está ainda documentada no Bairro Alto, nomeadamente no Palácio do Ludovice - Rua de São Pedro de Alcântara (fig. 15, n.º 4), onde se recolheu em posição secundária um punhal ou pequena alabarda com três rebites, de cobre ou bronze, cujo contexto original se localizará numa área situada mais a norte e acima na vertente, na direcção do Príncipe Real (Reis, Pereiro, Cabaço, Ramos e Valera 2017). Já o Bronze Final encontra-se documentado na Praça da Figueira (fig. 15, n.º 3), embora em momentos tardios dentro deste período, cronologicamente enquadrados nos séculos X-IX a.C., no que seria uma pequena instalação (Cardoso e Carreira 1997; Silva
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2013). Embora também existam povoados de altura, normalmente fortificados, neste período, como sucede com a Penha Verde (Cardoso 2010/2011b), em Sintra, um dos traços marcantes do povoamento desta época são os pequenos casais agrícolas, unidades familiares de pequena dimensão que exploram os recursos da sua envolvente. Em Lisboa é conhecido o sítio da Tapada da Ajuda (fig. 15, n.º 5), datado da fase mais antiga do Bronze Final (século XIII a.C.), onde se identificaram cabanas de planta oval com 6 m de comprimento (Cardoso, Rodrigues, Monjardino e Carreira, 1986; Cardoso 1995b; Cardoso e Silva, 2004). Como nota final, importa realçar que, embora o crescimento urbano da cidade de Lisboa tenha ocultado os vestígios das mais antigas fases de povoamento deste território, comprova-se que elas não foram totalmente obliteradas e preservam-se ainda parcialmente sob os edifícios e sob as ruas, por vezes a apenas uns escassos 20 cm abaixo da cota de circulação actual, como sucede na Calçada do Monte, o que justifica a existência de cuidados redobrados quando da execução das intervenções urbanísticas de modo a que aqueles testemunhos possam ser cabalmente documentados e analisados.
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São Vicente de Fora: do Arrabalde à Paróquia Manuel Fialho
The geology and paleontology of Saint Vincent’s perish
Neste artigo iremos tecer algumas considerações sobre o arrabalde oriental de Lisboa, mais precisamente, sobre a evolução urbana do território da actual freguesia de S. Vicente de Fora durante a época medieval. Este espaço será observado em dois níveis geográficos e em dois períodos cronológicos distintos: os níveis superior e inferior, e as épocas de domínio político islâmico e cristão. A questão matricial que aqui colocamos e para a qual pretendemos contribuir aborda a ausência, neste espaço, do crescimento urbano dinâmico e preponderante que esteve presente no arrabalde ocidental, ao longo da história da cidade, desde a época medieval.
Lisboa
Medieval
Arrabalde
Crescimento urbano
Evolução urbana
Antes de iniciarmos a nossa análise do arrabalde oriental da Lisboa medieval importa compreender em que consistia um arrabalde de uma cidade medieval, e qual a sua forma e limites físicos na cidade da foz do Tejo. As urbes medievais possuíam, na sua larga maioria, sistemas defensivos caracterizados por uma cerca urbana e, em alguns casos, uma alcáçova ou castelo que serviam a dupla função de proteger e controlar os seus habitantes. O étimo português arrabalde é herdeiro da palavra árabe ar-rabd que significa subúrbio, ou seja, um espaço urbano situado fora da medina, desabrigado da protecção oferecida pela cerca urbana. A Lisboa medieval possuía dois grandes arrabaldes, um a oriente e outro a ocidente do espaço murado, e um terceiro, de menor dimensão, situado a norte: a Mouraria. O arrabalde ocidental foi desde muito cedo um espaço eleito para a vida social e económica da cidade medieval, e foi nessa direcção que, por vários motivos, Lisboa se desenvolveu desde essa época até ao final do século XIX. A Mouraria foi, até ao final do século XV, o bairro da comunidade muçulmana lisboeta, caracterizado por uma dimensão mais reduzida relativamente aos outros arrabaldes, por uma menor exposição solar, e também por um desenvolvimento urbano mais tardio do que o arrabalde ocidental. O arrabalde oriental, foco central deste artigo, não sofreu, entre a idade média e o final do século XIX, mutações drásticas nem um crescimento urbano exponencial, o que permitiu a manutenção de um tecido urbano mais antigo e zonas de diferente densidade e desigual crescimento urbano.
In this article I will make some considerations about the eastern outskirts of Lisbon, more precisely, about the urban evolution of the territory of the current parish of S. Vicente de Fora during the medieval period. This space will be observed at two geographic levels and in two distinct chronological periods: the upper and lower levels, and the periods of Islamic and Christian political domination. The main question that we pose here addresses the absence, in this space, of the dynamic and preponderant urban growth that was present in the western outskirts, throughout the history of the city, since medieval times.
Lisbon
Medieval
Suburb
Urban Growth
Urban Evolution
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Relativamente aos limites e à configuração física do arrabalde oriental, importa, antes de mais, sublinhar que a estrutura do tecido urbano desta parte da cidade sofreu poucas alterações entre o final da época medieval e os finais do século XIX. Este arrabalde consistia no espaço circunscrito a norte pela Colina da Graça, a sul pelo rio Tejo, a ocidente pela Colina
Adaptado de: Augusto Vieira da Silva, “Redução à
1:5000
do Castelo e a oriente pela Colina de S. Vicente, a qual fazia parte do arrabalde. Este espaço pode ser observado em dois níveis diferenciados que se distinguem fisicamente pelas cotas altimétricas entre os 30 e 35 metros (ver imagem 1).
Figura 1 Níveis do Arrabalde Oriental de Lisboa
escala
de um trecho da Planta da Cidade de Lisboa levantada em 1856/58 na escala 1:1000” publicada em: Augusto Vieira da SILVA, A Cerca Fernandina de Lisboa, 2ª ed, vol. 2, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987.
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Numa leitura do espaço que observa e examina as mutações urbanas num tempo longo, estes dois níveis revelam graus de urbanização muito desiguais. A morfologia urbana do nível superior parece ter sido desenhada por um desenvolvimento urbano mais lento e progressivo, mantendo o sistema viário actual vestígios dos acidentes naturais, algo que não seria possível se aqui tivesse ocorrido uma intervenção urbana radical e extensiva. Além disso, as evidências arqueológicas de estruturas de época romana no nível superior são quase inexistentes, excetuando a necrópole de Santa Clara que já se encontrava fora do perímetro urbano de Olisipo, uma realidade expectável pois nas cidades romanas os cemitérios situavam-se, normalmente, fora das cidades. Considerando o grau de urbanização destes dois níveis na época medieval, é bem notório na documentação coetânea que o nível superior foi uma zona semirrural até muito tarde. No que respeita ao nível inferior, entre a cota dos 30 metros e a margem do Tejo, o grau de urbanização era bastante mais alto, tanto ao nível da densidade como do crescimento em altura. Além disso, ao contrário do nível superior, no nível inferior do arrabalde oriental foram encontrados vários vestígios de estruturas urbanas de época romana e de época islâmica, consolidando a ideia de que o nível inferior foi mais urbanizado. Durante a época de domínio muçulmano (711-1147) a cidade da foz do Tejo esteve integrada na civilização islâmica o que levou à assimilação de várias características do mundo urbano muçulmano. Quando, no século VIII, o poder muçulmano toma a cidade esta seria uma sombra do que teria sido séculos antes. Entre a queda do império romano do ocidente e a chegada dos muçulmanos, Lisboa, então chamada Olisipona, perdeu habitantes, relevância económica e área urbana. Os vestígios quer arqueológicos, quer documentais, enquadráveis na antiguidade tardia são escassos e apontam para uma considerável regressão urbana, demográfica e económica. Significativamente, no espaço que aqui mais nos interessa, o arrabalde oriental, não foram até agora sequer encontradas quaisquer estruturas ou peças arquitectónicas da antiguidade tardia. Terá sido uma
área da cidade que foi progressivamentet abandonada? A lógica parece apontar para tal cenário, mas não existem dados documentais ou arqueológicos que nos permitam ir além desta suposição. De qualquer modo, durante a época de domínio islâmico Lisboa recuperou gradualmente área urbana, potência demográfica e relevância económica. Alexandre Herculano, na sua obra, O Monge de Cister, retrata uma Alfama em época muçulmana “aristocrática, alindada e culta”. Esta ideia de Alfama como um bairro “nobre”, em época islâmica surge repetidamente em vários autores posteriores, mas a verdade é não existem evidências documentais ou arqueológicas de que esta parte da cidade tenha tido essas características. Devemos então considerar que, nesta passagem, Herculano se baseou apenas na sua imaginação, ao contrário de muitos outros momentos das suas narrativas históricas que se suportavam numa extensa pesquisa documental. Importa então desconstruir este mito que Eduardo Sucena associava a uma “Alfama do Alto, onde vivera a nata da população mourisca”, algo que não podemos hoje afirmar, nem sequer propor, visto que nenhuma evidência existe nesse sentido. É possível sim, afirmar que em época de domínio islâmico, o nível inferior do arrabalde oriental, denominado desde época medieval como Alfama, foi ganhando consolidação urbana (ver imagem 2). Deste modo, durante a época islâmica, afirma-se a dicotomia entre os referidos níveis do arrabalde oriental, permanecendo um factor bem perceptível na observação dos dados das escavações arqueológicas realizadas nessa área. Ao contrário do nível superior, no nível inferior verificaram-se a existência de vários vestígios de estruturas que apontam para uma ocupação urbana mais intensa junto à orla fluvial, mais precisamente, ao longo da antiga via romana que saia de Lisboa em direcção a Santarém. É possível que tenha existido algum tipo de agrupamento de estruturas comerciais ao longo desta via, mas o único vestígio que aponta para essa hipótese é, neste momento, o topónimo “alcaçaria”, palavra herdeira do árabe, língua onde significa um mercado coberto dedicado a artigos de maior valor comercial.
Entre as várias estruturas de difícil interpretação destacam-se vestígios de estruturas habitacionais encontradas em vários locais: no Pátio da FRESS, junto à Cerca Velha; no Largo das Alcaçarias, na Rua de S. Miguel e na Rua dos Remédios. Importa também referir os vestígios de olarias verificados no Largo das Alcaçarias e no Largo do Chafariz de Dentro, ou seja, junto à margem do Tejo, o que permitiria aos oleiros, escoar mais facilmente os seus produtos e vazar os desperdícios para o rio. No Beco do Azinhal foi descoberta uma estrutura que deverá ter sido um celeiro e também um poço, em actividade durante a época islâmica (ver quadro 1).
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Figura 2. Arrabalde Oriental na Época de Domínio Islâmico (c. 1140). Manuel Fialho
Quadro 1. Sítios Arqueológicos do Arrabalde Oriental em Época de Domínio Islâmico
Largo das Alcaçarias
Rua de S. Miguel, 43
Largo do Chafariz de Dentro
Rua dos Remédios, 7 a 9
Rua dos Remédios, na via em frente a 5 -9 e 11-13
Rua da Regueira
Beco do Azinhal, 13
Largo de S. Miguel
Beco da Cardosa
Pátio da FRESS
Calçadinha do Tijolo, 37 a 43
Manuela Leitão Sécs. XI-XII
Rodrigo Banha da Silva Séc. XII
Habitacional; olaria
Habitacional
Rodrigo Banha da Silva, Cristina Nozes e Pedro Miranda Séc. XI-XII Despejo; olaria
Rodrigo Banha da Silva Séc. XI-XII
Habitacional
Rodrigo Banha da Silva Séc. XI-XII Estruturas de condução de água
Rodrigo Banha da Silva Sécs. XI-XII(?) Evidência Estratigráfica
Rodrigo Banha da Silva, Cristina Nozes e Pedro Miranda Sécs. XI-XII(?) Poço e Celeiro (?)
Rodrigo Banha da Silva Sécs. XI-XII(?) estrutura de funcionalidade desconhecida
Nuno Ribeiro e Jorge Ferreira Sécs. XI-XII Lixeira (?)
Ana Gomes e Maria José Sequeira Séc. XI-XII
Habitacional
Vanessa Filipe Necrópole
Rua das Escolas Gerais, 15 a 23 Nuno Neto e Tiago Fontes Séc. XI-XII Silo (armazenamento de alimentos)
M. S. Vicente de Fora
Fernando Rodrigues Ferreira Séc. XII
Armazenamento
Palácio de Santa Helena Neoépica - Necrópole
30 Local Responsável Cronologia Tipo de Contexto
Relativamente ao nível superior, o qual coincide em maior medida com a actual freguesia de S. Vicente, devemos sublinhar a presença de dois tipos de estruturas de grande importância para a cidade, e que normalmente se situavam nos limites urbanos: sepulturas e silos de armazenamento. Actualmente podemos afirmar que a hipótese proposta por Claúdio Torres em 1994 sobre a existência de um cemitério nas encostas de S. Vicente de Fora obteve, na última década, confirmação arqueológica, pois foi verificada a existência de várias sepulturas, realizadas de acordo com os preceitos da religião muçulmana, ou seja, com o corpo em decúbito lateral direito. As referidas sepulturas foram encontradas em, pelo menos, três sítios arqueológicos relativamente próximos, situados no nível superior do arrabalde oriental. Em primeiro lugar, no Mosteiro de S. Vicente de fora, foi encontrado um indivíduo na referida posição “inserida num depósito compatível com o século XIV”, uma data um pouco inesperada, pois nessa época já a comunidade muçulmana habitaria a zona da Mouraria e teria aí perto o seu cemitério. Em segundo, escavações realizadas numa propriedade situada na Calçadinha do Tijolo revelaram a existência de uma necrópole de época islâmica, ou seja, anterior ao cerco de 1147, constituída por cinco inumações. Em terceiro e último lugar, no Palácio de Santa Helena, ou seja, no Largo do Sequeira, foram descobertas dezanove sepulturas de época islâmica. Este conjunto de sítios arqueológicos parecem configurar uma área de necrópole que provavelmente constituiria o principal almocávar da cidade durante a época de domínio muçulmano. Em alguns destes últimos sítios arqueológicos e também numa escavação efetuada na rua das Escolas Gerais foram encontrados silos ou fossas, que poderiam servir quer para armazenar alimentos quer como simples lixeiras. À semelhança do que ocorria no arrabalde ocidental, as zonas de cota mais alta eram eleitas para a implantação destes silos ou fossas. Escavações arqueológicas revelaram a existência destas estruturas de armazenamento, abertas originalmente em época islâmica, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, na Rua das Escolas Gerais e no Beco da Cardosa. Estes silos serão uma peça chave para entendermos a evolução urbana do arrabalde oriental e particularmente do seu nível superior durante a Idade Média.
Em 1147, Afonso Henriques e os cruzados tomaram definitivamente a cidade aos muçulmanos. A longo prazo as alterações à morfologia urbana da cidade foram bastante consideráveis, abandonando-se o
modelo da casa-pátio em benefício do modelo do lote alongado com quintal nas traseiras, o que veio a reconfigurar a imagem da cidade. No entanto, estas alterações tiveram sobretudo efeito nas zonas com maior densidade urbana, e menor efeito em espaços com baixa densidade, como era o caso do nível superior do arrabalde oriental. Durante o cerco, as informações documentais revelam que os cruzados teutónicos terão montado acampamento na encosta da Colina de São Vicente de Fora, e terão aí implantado um cemitério para as suas baixas em combate. Estas afirmações foram corroboradas em várias escavações arqueológicas ocorridas desde as últimas décadas do século XX até 2013. Por baixo das fundações do actual Mosteiro de São Vicente de Fora encontra-se de facto um cemitério que provavelmente corresponde ao cemitério descrito nas fontes documentais.
Segundo uma das fontes, o primeiro rei português terá prometido erguer um templo no local do cemitério se o cerco lhe fosse favorável, o que veio a acontecer. Na verdade, os primeiros monarcas portugueses mantiveram uma ligação estreita com o este mosteiro, apoiando-o com doações testamentárias feitas por Sancho I, Afonso II, Sancho II, Afonso III e D. Dinis. Com o apoio dos monarcas da primeira dinastia o Mosteiro de São Vicente de Fora tornou-se gradualmente em uma das mais poderosas instituições eclesiásticas do reino, possuindo património desde Silves até à Guarda, com especial concentração de propriedades na região da sua sede entre Sesimbra, Torres Vedras, Santarém e Sintra. A ligação entre os monarcas portugueses e S. Vicente de Fora encontra um paralelo relevante na relação entre a Coroa e o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, o qual foi casa-mãe do mosteiro lisboeta e também panteão dos dois primeiros reis. Não deverá então constituir surpresa que uma instituição com esta dimensão e poder tenha tido um efeito profundo na forma urbana do espaço onde existia a sua sede. Na verdade, essa influência chegou mesmo ao século XXI, pois o seu nome permanece ainda na freguesia de São Vicente. Confirmando o estatuto singular do mosteiro, note-se que, ao contrário da maioria das paróquias de Lisboa, que serão delimitadas com rigor apenas em meados do século XV, uma inquirição régia feita em 1220 dá a entender que esta paróquia teria sido delimitada antes dessa data. Esta delimitação paroquial precoce permitiu, consequentemente, ao Mosteiro de S. Vicente de Fora ampliar a capacidade administrativa da sua paróquia. Considerando a mais antiga planta de Lisboa, feita em 1650, por João Nunes Tinoco e a gravura impressa na obra de Braunio, do terceiro quartel do século XVI, é possível elaborar uma proposta de reconstituição sobre a cerca conventual medieval, que terá sido levantada em determinado momento que não é possível perceber (ver imagem 3).
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Esta seria a área de influência directa do Mosteiro de S. Vicente, pois a paróquia estendia-se para além deste espaço. Em 1373, quando D. Fernando ordena e financia a construção de uma nova muralha, a área compreendida pela Cerca de S. Vicente foi seccionada em duas partes, ficando uma parte no exterior da muralha da cidade e outra parte no seu interior. Não temos conhecimento sobre os motivos que levaram a que o traçado da Cerca Fernandina não tivesse aproveitado a cerca conventual, no entanto é possível perceber que o espaço abrangido pela Cerca de São Vicente não perderá a sua coesão, permanecendo como uma área homogénea até à abertura da Rua da Infância, a actual Rua da Voz do Operário, no último quartel do século XIX (ver imagem 4.). Observando a planta da Freguesia de São Vicente da autoria do sargento-mor José Monteiro de Carvalho, feita após o terramoto de 1755, é possível verificar que a paróquia nessa altura se desenvolvia sobretudo para a área a Norte do espaço compreendido pela cerca conventual até ao antigo Campo da Parada, actual Rua dos Sapadores (ver imagem 5.). Em direcção a ocidente a paróquia em meados do século XVIII abarcava ainda a zona do Convento das Mónicas. Tentar perceber a área da paróquia de S. Vicente durante a época medieval tornase um exercício particularmente complexo, pois além de não existirem fontes cartográficas ou iconográficas que possam colaborar nesta pesquisa, as flutuações toponímicas nesta área dificultam esse processo.
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Figura 3
Arrabalde Oriental de Lisboa (c. 1325) Manuel Fialho
Figura 4
Cerca de São Vicente
Atlas da carta topográfica de Lisboa de Filipe Folque (1856-1858)
Para este efeito, note-se a disparidade toponímica entre as ruas atribuídas à freguesia de S. Vicente no Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa (1756-1768) e o Sumário de Cristóvão Rodrigues de Oliveira elaborado em meados do século XVI. Seja como for, é clara na nossa reconstituição da área de influência directa do Mosteiro de S. Vicente de Fora a sua dimensão extraordinária, abrangendo 6.88 hectares, ou seja, uma área maior do que a alcáçova da cidade. Além da dimensão desta área, importa também destacar que funcionou como uma força de bloqueio ao desenvolvimento urbano da cidade, refreando a implantação de novas construções nesta zona da cidade. Esta afirmação torna-se evidente na Carta Topográfica elaborada por Filipe Folque entre 1856 e 1858, onde se verifica que a zona abrangida pela cerca conventual permaneceu com uma forte componente rural até aos meados do século XIX (ver imagem 4.). Entre o Mosteiro de São Vicente de Fora e o Rio Tejo existiu, durante a idade média, um outro conjunto de estruturas que bloquearam a evolução urbana da cidade para oriente. Se no nível superior do arrabalde a presença dos cónegos regrantes de S. Vicente terá afetado o desenvolvimento urbano, no nível inferior foi a Coroa que desempenhou um papel semelhante.
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Figura 5
Planta da Freguesia de S. Vicente Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa, fl.82. (1756-1768).
Para compreendermos a ação dos monarcas portugueses neste extremo oriental da cidade cabeça de reino, devemos recuar a 1263, momento em que D. Afonso III concede a sua autorização para que Martinho Pires e sua mulher, Constança Afonso, seus criados, possam construir casas sobre os muros da Porta da Cruz. A localização aproximada desta porta foi feita por Augusto Vieira da Silva, seguindo a mais antiga planta de Lisboa na bifurcação entre a Rua dos Remédios e a mais recente Rua do Museu de Artilharia (A. V. Silva 1987, vol. 2, mapa XVIII - ver imagem 6). A referência a uma porta normalmente implica a existência de uma muralha onde a primeira se abre, no entanto, não é possível perceber que estrutura defensiva existiria no local da Cruz, além da referida porta. Pois, até ao momento, não se conhecem resultados de escavações arqueológicas nesta zona que possam ajudar a confirmar a existência de uma muralha anterior a 1373, momento em que D. Fernando ergue uma nova cerca urbana que abrangeu toda a cidade, e que parece ter aproveitado a Porta da Cruz. Deste modo, podemos apenas desenhar dois cenários que expliquem esta estrutura defensiva. Em primeiro lugar, poderia se tratar de uma antiga muralha do arrabalde oriental que, como se observou, já tinha uma ocupação urbana considerável em época de domínio islâmico, todavia as descrições do cerco da cidade em 1147 não referem outra muralha além da Cerca Velha. Estaria essa muralha em ruínas, em meados do século XII? Em segundo lugar, a Porta da Cruz poderá ter sido levantada apenas posteriormente à conquista da cidade por Afonso Henriques e os cruzados, ou seja, em algum momento entre 1147 e 1263.
Com o conhecimento actual nenhum destes dois cenários pode ser comprovado ou refutado. Assim sendo, teremos que aguardar por novos dados que possam surgir de escavações arqueológicas feitas nesse local. Perto da Porta da Cruz, mais precisamente entre esta e o Mosteiro de São Vicente de Fora existiu uma vasta propriedade régia onde D. Dinis mandou fazer covas para guardar pão, tal como informa um documento produzido em 1286. Estas covas, ou seja, silos de armazenamento, constituíam uma importante peça no sistema de abastecimento da Casa da Coroa e também da própria cidade. Além disso, a presença destes silos no reinado de D. Dinis revela uma continuidade funcional de um espaço que já em época de domínio islâmico servia o mesmo propósito, tal como se verificou em escavações arqueológicas feitas no Mosteiro de São Vicente, na Rua das Escolas Gerais. No Palácio de Santa Helena foram realizadas escavações arqueológicas que revelaram, além de um espaço de necrópole de época islâmica já referido, silos de grandes dimensões que os arqueólogos classificaram como “medievais”. Estes silos, em determinado momento, possivelmente no século XVI, perderam a sua funcionalidade original, a conservação de alimentos, para se tornarem fossas de despejo, função que mantiveram até ao século XVII. Seriam os silos encontrados no Palácio de Santa Helena parte do complexo constituído por vários silos de armazenamento que a Coroa possuía nessa zona, documentados desde o século XIII? Na nossa opinião a resposta deverá ser positiva, pois a grande dimensão dos silos encontrados parece apontar para que fossem pertença de uma instituição, indício que, aliado às evidências documentais, constitui prova suficiente.
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Figura 6
Do Postigo do Arcebispo ao Postigo da Lapa Augusto Vieira da Silva, A Cerca Fernandina, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2ª ed., 1987, vol. 2, mapa XVIII.
Entre a Porta da Cruz e o rio Tejo a Coroa possuiu, durante o reinado de D. Dinis, um conjunto urbano de grande relevância onde se incluíam diversas estruturas, nomeadamente, Casas da Moeda, um rossio e paços para galeões. Num documento datado de 1287 atestase que foi feita moeda perto do local da Porta da Cruz, sem esclarecer quando se iniciou e terminou esta actividade. Em 1377, quando o Estudo Geral regressa a Lisboa, é instalado na “moeda velha onde antes costumava estar”, confirmando que, antes de 1308, o Estudo Geral se localizou no local onde se fez moeda, pois nesse ano foi transferido para Coimbra. Não se conhecem mais detalhes sobre estes edifícios, sabemos apenas que este local foi um ponto nevrálgico para os objetivos da Coroa durante o reinado de D. Dinis, monarca que teve grande impacto na forma urbana da cidade, pois remodelou a Ribeira através da construção da fachada sul da Rua Nova e da muralha da Ribeira. Na margem ribeirinha possuía ainda a Coroa “dois paços para galeões”, ou seja, duas estruturas que albergavam embarcações do tipo das galés, as quais normalmente se resguardavam em doca seca. Este local na margem ribeirinha, perto da Porta da Cruz, não era o principal ponto de interesse da marinha real na cidade, pois as Tercenas Régias, que albergavam em 1300 doze galés, situavam-se no extremo do arrabalde ocidental. Estes “paços para galeões” serviriam provavelmente para apoio militar marítimo da estrutura defensiva situada na Cruz, a qual por sua vez defendia tanto as valiosas covas do Rei como o acesso à cidade por oriente. Por último, importa referir o rossio da Lapa que se situava perto das referidas Casas da Moeda.
Em época medieval os rossios eram espaços abertos, normalmente planos e amplos, sem edificações, maioritariamente localizados fora do recinto urbano e junto dos principais eixos de circulação, servindo para a realização de treinos militares, justas e torneios, para corridas de cavalos e de touros, sendo a sua função mais relevante albergar feiras ou mercados sazonais. Tratava-se, portanto, de um rossio situado numa posição estratégica junto a uma das principais entradas na cidade e junto da margem ribeirinha, possibilitando um acesso fluvial, sendo o rio principal via de entrada dos vários produtos que abasteciam a cidade e de saída daqueles que Lisboa exportava. Após esta análise à evolução urbana do arrabalde oriental de Lisboa, com especial enfoque na área mais próxima ou mesmo incluída pela actual freguesia de S. Vicente, podemos compreender melhor porque esta parte da cidade permaneceu com um carácter rural até meados do século XIX, estando neste espaço ausente a extraordinária expansão urbana que aconteceu no arrabalde ocidental e que no século XVI se estendia já pelo Bairro Alto. Com efeito, se observarmos o desenho de Lisboa existente na Biblioteca de Leiden, realizado em meados do século XVI, notamos como o crescimento urbano se desenvolveu sobretudo dentro da área protegida pela Cerca Fernandina (ver imagem 7). Consideramos que o desenvolvimento urbano no arrabalde oriental foi em grande medida obstruído pela presença das duas instituições que estavam na posse de boa parte da propriedade urbana nos limites do arrabalde.
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Figura 7
O Arrabalde Oriental no Desenho de Lisboa da Biblioteca da Universidade de Leiden Excerto do desenho de Lisboa mantido na Biblioteca da Universidade de Leiden.
No nível superior, o Mosteiro de São Vicente de Fora foi desde a sua origem, directamente relacionado com o cerco de 1147, um ator da maior importância na modelação da forma urbana. A posição física do Mosteiro, junto de uma importante via de saída da cidade, associada à grande dimensão das suas propriedades e à solidez da sua administração tornaram o espaço em torno da sua sede um ponto de atração urbana, mas, simultaneamente, refrearam qualquer avanço do crescimento urbano para além da área de influência desta instituição. No nível inferior, a Coroa controlava a área junto da Porta da Cruz, implantando aí várias estruturas de grande relevância, destacando-se uma vasta área de armazenamento na encosta da Colina de S. Vicente. A existência de estruturas de armazenamento de época islâmica, no mesmo local, ou em locais próximos, ao espaço onde D. Dinis irá fazer as suas “covas de pão” deverá ser tido em conta como uma possível herança na gestão urbana entre o domínio político islâmico e o cristão. Efectivamente, apesar de se terem alterado
os atores, a lógica da gestão urbana pouco mudara após a alteração de poder ocorrida em 1147. Na perspectiva da Coroa portuguesa importava controlar uma das principais entradas na cidade, e estabelecer nesse limite oriental uma posição militar clara e efetiva. A manutenção da Porta da Cruz suportada por uma estrutura de apoio ao combate marítimo parecem ter desempenhado essa função. Mas além da questão militar, à Coroa também interessava obter rendimentos económicos provenientes da realização de feiras ou mercados no rossio da Lapa, visto que este estava na sua posse. A implantação do Estudo Geral num espaço periférico da cidade também deve ser observada na perspectiva do controlo régio que preferia manter essa instituição sob uma vigilância e protecção eficaz. Importa notar que a implantação destas estruturas, excetuando a Porta da Cruz que já ali existiria, recai sobre a mesma pessoa, o rei D. Dinis, monarca que teve um papel modelar na forma urbana da cidade, deixando um sólido legado na história de Lisboa.
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A capela de Estêvão da Guarda no Mosteiro de S. Vicente de Fora
Miguel Gomes Martins
The chapel of Estêvão da Guarda in Saint Vicente de Fora´s monastery
Trovador e detentor de diversos cargos na corte de D. Dinis, de quem foi uma figura muito próxima, Estêvão da Guarda é uma personagem relativamente bem conhecida, sobretudo através da sua faceta de poeta e do papel que desempenhou no desembargo régio. Contudo, há inúmeros aspectos da sua vida – as suas origens, a constituição do seu património, a sua descendência – que permanecem obscuros e envoltos em dúvidas, aliás tal como as questões relacionadas com a sua morte, em particular com a capela por si fundada e onde se fez sepultar. Assim, o nosso objectivo é revisitar algumas destas temáticas e, através de novos dados, fornecer um novo olhar sobre uma das mais brilhantes figuras das muitas que atravessaram os reinados de D. Dinis, Afonso IV e D. Pedro.
Em 1527, após autorização papal concedida anos antes por Clemente VII, tinha início a construção do mosteiro franciscano da Esperança, erguido nos terrenos da Quinta da Sisana, em Santos. A obra, iniciativa de D. Isabel de Mendanha, encontrava-se praticamente concluída em 1536, altura em que as primeiras religiosas começaram a habitar o edifício. Todo este processo havia começado catorze anos antes, em Julho de 1522, quando Isabel de Mendanha solicitou a D. João III que exercesse a sua influência junto da Câmara de Lisboa, de modo a que esta lhe aforasse perpetuamente a Quinta da Sisana, propriedade de uma capela instituída no Mosteiro de S. Vicente de Fora e administrada pelo concelho da capital. O monarca escreveu então aos vereadores instando-os para que aceitassem a proposta de D. Isabel que, aliás, havia já acertado a transferência do domínio útil da propriedade com Fernão de Noronha, que a tinha aforada, pelo menos, desde Julho de 1520. Mas se a transacção do terreno foi, ao que parece, simples e pacífica, a gestão da capela a que pertencia a Quinta da Sisana não o era. Pelo contrário, revelava-se, desde há muito, problemática e causadora de contendas entre os vereadores, os cónegos de S. Vicente de Fora, os provedores e os foreiros das propriedades da capela.
A troubadour and holder of several positions at the court of king Dinis, to whom he was a very close person, Estêvão da Guarda is a relatively well-known character, especially through his poetic side and the role he played in the royal court decisions. However, there are numerous aspects of his life – his origins, the constitution of his estates, his family – that remain obscure and shrouded in doubts, as well as the issues related to his death, in particular with the chapel he founded and where he was buried. Thus, our objective is to revisit some of these themes and, through new data, provide a new look at one of the most brilliant figures of the many who crossed the reigns of kings Dinis, Afonso IV and Pedro I.
Estêvão da Guarda
Lisbon
Saint Vicente de Fora´s Monastery
king Dinis biocalcarenite
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biocalcarenito
Estêvão da Guarda
Mosteiro de S. Vicente de Fora
Lisboa
D. Dinis
A falta de rendimentos provenientes desse património foi um dos principais motivos para os desentendimentos. Um documento de Dezembro de 1513 refere precisamente que os anteriores administradores tinham delapidado esses bens, o que se reflectia no estado de degradação da capela, a qual não tinha já qualquer ornamento e onde se encontrava apenas um capelão. Este cenário em nada se alterou nos anos seguintes, como nos dá conta um documento datado de Outubro de 1516. Exceptuava-se um retábulo recentemente encomendado por um dos seus administradores –mestre Pedro – e colocado no altar da capela. Contudo, o quadro geral era o de uma profunda desolação. Para tal contribuíam as parcas rendas provenientes das propriedades anexadas à instituição e que, na centúria de Quinhentos, se limitavam à Quinta da Sisana e a umas casas na Rua Nova, em Lisboa. A capela em causa havia sido fundada em 1320 por Estêvão da Guarda e sua mulher, Sancha Domingues, que tinham estipulado que a sua provedoria ou administração deveria ser entregue pelo concelho de Lisboa – a quem caberia essa nomeação e a
supervisão da actividade dos provedores –, prioritariamente, a membros masculinos da sua descendência. O primeiro de que temos conhecimento nessa função é, precisamente, um neto do instituidor, Álvaro Afonso, que ocupou o cargo durante aproximadamente 40 anos e a que sucedeu o seu filho Diogo Álvares, que assumiu funções em Outubro de 1400. Ter-se-á mantido no cargo até 1428, altura em que foi desapossado pela vereação lisboeta sob a acusação de irregularidades cometidas na administração da capela, designadamente a falta de pagamento aos capelães. Ao longo do século XV as notícias são escassas, sendo que só voltamos a ter referência à administração da capela em Março de 1496, quando um escudeiro de Lisboa, João de Andrade, por renúncia de seu pai, Estêvão Pinheiro – que alegava impossibilidade de compatibilizar essa função com os seus negócios e sobre o qual nada se refere quanto a uma eventual relação linhagística com os instituidores –, foi empossado como provedor pelos vereadores do concelho da capital.
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Figura 1
Mosteiro da Esperança em inícios do século XVIII - Pormenor da maqueta de Lisboa Antes do Terramoto. (Museu de Lisboa-Palácio Pimenta)
O século XVI tem início com uma questão complexa em torno da administração da capela de Estêvão da Guarda. O acima referido João de Andrade, foi destituído, também ele, por “erros que fizera”, surgindo para ocupar o lugar um alegado descendente do fundador, de nome Paio Rodrigues. Viria a falecer pouco tempo depois, sendo substituído, antes de Agosto de 1503, pela sua mulher, Maria Gonçalves “A Brandoa”. Nessa altura, um outro candidato aparecia em cena. Tratavase de Pedro de Andrade, cavaleiro da casa do rei, que se apresentava disponível para assumir a provedoria, argumentando que esta não poderia, por disposições dos instituidores, ser atribuída a mulheres. Dez anos depois, o administrador era já mestre Pedro, cavaleiro da Ordem de Santiago, bacharel, físico e cirurgião e que em Outubro de 1516 ainda se encontra documentado como administrador, mas que foi substituído por Pedro Fernandes antes de 28 de Abril de 1544. Nesta data, D. João III, em carta enviada à câmara de Lisboa, solicitava à vereação que, quando o administrador da capela morresse, entregasse a provedoria da capela à abadessa e freiras do convento da Esperança localizado, relembre-se, numa propriedade pertencente a essa mesma capela. Em Outubro de 1546, imaginamos que logo após a morte de Pedro Fernandes, o monarca reafirmava este pedido, alegando que essas religiosas “terão melhor
cuidado de cumprir os encargos da ditta capella por serem (…) de muito boa vida e de puras consciencias e poderão olhar por isso melhor que os leigos”. Mas tudo indica que o pedido do rei não teve eco. Facto é que em finais de Quinhentos / inícios Seiscentos, a capela voltava a ter um outro administrador leigo – Luís Mendes – que em 1608, por morte, havia já sido substituído, segundo parece, por Pedro Vaz de Villas Boas e sua mulher Justa de Magalhães. Estes, em 19 de Agosto desse ano apresentavam a sua carta de renúncia justificando-se com os elevados encargos da capela, muito superiores aos seus rendimentos. O problema revelava-se em toda a sua extensão. A capela não tinha já quaisquer meios de suportar as suas despesas, ou seja, a sua manutenção e os sufrágios estipulados pelos instituidores. Não admira, portanto, que aquando das obras filipinas do mosteiro de S. Vicente de Fora a capela tenha acabado por ser demolida, bem como os sarcófagos de Estêvão da Guarda e de sua mulher, sendo as ossadas trasladadas para uma outra capela, mais modesta e localizada por detrás do coro, do lado oriental. Mas para que tal acontecesse a câmara teria que cumprir as obrigações estipuladas pelos instituidores, isto é, pagar ao convento os referidos sufrágios estabelecidos pelo instituidor, o que não é seguro que tenha acontecido.
Localização provável da Capela de Estêvão da Guarda, após as obras Filipinas do Mosteiro de S. Vicente de Fora (Baseado na planta publicada por José da Felicidade Alves, O Mosteiro de S. Vicente de Fora, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, nº 6)
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Figura 2
Com efeito, em meados do século XX uma lápide funerária assinalava apenas, no claustro do mosteiro de S. Vicente de Fora, o local onde se encontravam os ossos dos instituidores, pelo que é natural que a câmara não tenha chegado a cumprir aquelas obrigações, face ao que os cónegos terão optado por desmantelar a capela e emparedar os ossos. De Estêvão da Guarda restava apenas uma vaga memória. No seguimento de frei Francisco Brandão – que, sem grandes certezas, lançou essa possibilidade –, a maior parte dos autores tem colocado a hipótese de Estêvão da Guarda ter nascido em Aragão, vindo para Portugal no séquito de D. Isabel. No entanto, como avançámos já num outro estudo, Estêvão da Guarda terá nascido, aliás como o seu nome sugere, na cidade da Guarda, em torno de 1280, sendo filho do escrivão régio Lourenço Esteves da Guarda e neto de Estêvão Rodrigues da Guarda. Aparentemente, casou apenas uma vez, com Sancha Domingues – cuja ascendência ignoramos –, um enlace que parece ter tido o patrocínio régio e que ocorreu seguramente antes de 4 de Setembro de 1317. Sancha Domingues morreu entre 1347 e 1352 e terá sido ela a primeira a ser sepultada na capela de S. Vicente de Fora. Estêvão da Guarda teve quatro filhos e uma filha: Diogo Esteves, Álvaro Esteves, Fernão e Afonso da Guarda e Maria Esteves, mas não nos parece seguro afirmar – com
base no facto de nem todos ostentarem o patronímico – que todos eles fossem fruto do casamento com Sancha Domingues. Diogo Esteves, talvez o primogénito, teve uma filha, Sancha Dias, que casou com Lourenço Martins do Avelar, copeiro da rainha D. Beatriz e filho de Martim Esteves do Avelar, Mestre de Avis e mordomo da rainha. Desse casamento não houve qualquer descendência. De Álvaro Esteves não se conhecem dados biográficos, sendo provável que tivesse uma formação universitária em Direito, já que o seu pai lhe deixou em testamento diversos livros do Corpus Iuris Civilis. Quanto a Fernão da Guarda, é sabido estar já morto em 1352, tendo deixado dois filhos, Estêvão e Afonso que, por essa altura, eram criados por Estêvão da Guarda. Afonso da Guarda, tal como o anterior, encontrava-se já morto aquando da redacção do testamento de seu pai, em 1352. Foi casado com Catarina Anes, com quem teve dois filhos: Constança e Álvaro Afonso, o pai de Diogo Álvares, que, como vimos, chegou a administrar a capela fundada pelo avô. No que diz respeito a Maria Esteves, sabemos que casou com João Anes Escola, de quem teve dois filhos: Rodrigo e João Anes. Estes, após a morte dos pais, foram tutorados por Estêvão da Guarda, mas acabariam por morrer em 1348 em consequência da Peste Negra, pouco tempo depois de Maria Esteves e de seu marido, que é possível que tenham também sido vitimados pela pandemia. A visibilidade histórica de Estêvão da Guarda é, acima de tudo, uma consequência do papel destacado que desempenhou no seio do funcionalismo dionisino, com uma longa carreira ligada ao desembargo régio e iniciada em 1299, tendo elaborado, entre esta data e 1310, cerca de 20 diplomas.
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Figura 3
Genealogia de Estêvão da Guarda
A partir de 1312, e numa situação verdadeiramente fora do comum, o seu nome surge na documentação assumindo um papel que Armando Luís de Carvalho Homem classifica como o de "Escrivão da Puridade avant la lettre". Isto é, "aparece em numerosos casos [cerca de 160 cartas, a última das quais de Dezembro de 1324] numa função que parece conclusiva sobre a sua real importância na Corte dionisina: em numerosos diplomas também de subscrição régia o escatocolo regista, a seguir à indicação do ano e quando se esperaria a - eventualindicação “El-Rei”, a transcrição da assinatura do próprio Estêvão da Guarda". Trata-se de um facto que vem revelar a enorme confiança de que era depositário por parte do monarca, a qual se observa também na nomeação para os importantes cargos de eichão-mor e escanção-mor.
Esta relação com D. Dinis era de tal forma estreita que este o designou mesmo, em 1322, como um dos seus testamenteiros, encontrando-se nesta qualidade ao lado da rainha; do bastardo régio Afonso Sanches; de Estêvão Vasques Pimentel, prior do Hospital; de Gonçalo Pereira, deão do Porto e de frei João Monge, confessor e capelão do monarca. Estêvão da Guarda encontra-se ainda presente, enquanto testemunha, nos documentos que atestam alguns dos mais importantes actos políticos dos finais do reinado, tais como a relação das queixas do monarca contra o Infante D. Afonso (1320); a publicação dos agravamentos de D. Dinis relativamente ao herdeiro da coroa (1321) ou a instituição dos comendadores da recentemente criada Ordem Militar de Cristo (1321). Foi ainda procurador do rei, encontrandose registado com essas funções em 1321.
O seu distanciamento da corte verificase imediatamente após a subida de Afonso IV ao trono, ocorrida em Fevereiro de 1325. De facto, até Dezembro de 1327, a documentação régia não volta a fazer menção do seu nome, tal como acontece com a sua documentação particular – essencialmente de gestão patrimonial –, que deixa de ser produzida. A explicação para esta "travessia do deserto" deverá ser procurada nas dissensões políticas que varreram os últimos anos do reinado de D. Dinis e que acabaram por colocar, em campos militares opostos, o rei e o herdeiro da coroa, conflitos esses nos quais Estêvão da Guarda tomou o partido de D. Dinis. É possível que durante este período subsequente à morte do Rei Lavrador, se tenha dedicado à produção literária, área em que tanto brilhou como trovador, tendo produzido para cima de 30 composições, das quais mais de 20 são cantigas de escárnio e mal-dizer. Apesar deste afastamento da corte, a experiência e o prestígio de Estêvão da Guarda acabariam por levar Afonso IV a solicitar os seus serviços: em finais de 1327, quando foi enviado a Castela para negociar o casamento da infanta D. Maria com Afonso XI; em Julho de 1336, testemunhando, em Estremoz, uma procuração dos alcaides de Sortelha, de Celorico e de Penamacor a propósito dos pactos firmados entre os reis português e castelhano; em Outubro de 1338, quando é referido pela primeira vez, como conselheiro do rei; em Novembro desse ano, a testemunhar o tratado assinado com entre Afonso IV e Pedro IV de Aragão; em 1347, enquanto testemunha da promolugação da "Ordenação sobre as vindictas privadas" e, ainda nesse ano, entre os signatários do documento que comprovava que a rainha de Aragão, D. Leonor, havia recebido, de Afonso IV, jóias que haviam pertencido a D. Maria, mulher que foi do infante D. Pedro de Castela, apenas para citar alguns desses momentos.
Todo este percurso e proximidade à Coroa granjearamlhe, não só um enorme prestígio, como lhe possibilitaram a acumulação de uma grande fortuna expressa, essencialmente, em bens de raiz, muitos deles obtidos por compra, outros por doação, bem como alguns recebidos do rei a título vitalício:
-O Forno do Pedrolo, situado junto das suas casas de morada na Freguesia de S. Mamede e adquirido entre 1312 e 1317; uma lezíria situada junto da Azambuja e que tinha pertencido a Afonso Guilherme de Santarém, comprada, ao que parece, em 1317; a Quinta da Sisana, localizada junto do mosteiro de Santos e adquirida em 1319; treze courelas de herdade e de vinha situadas entre Benfica e Alfornelos, compradas em 1322; a Lezíria da Fraceira, localizada no termo da Azambuja, doada pelo rei em 1317 e trocada, em 1318, pela Lezíria de D. Sancha; um moinho de maré em Alcântara, que possuía,
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Figura 4
Assinatura autógrafa de Estêvão da Guarda (AML, Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV e D. Pedro I, doc. 9)
por doação régia de 1322, de parceria com Estêvão Martins, mestre dos Engenhos; diversas propriedades doadas pelo rei e situadas em Torres Vedras, e que recebeu em 1322; a Lezíria do Galego, situada junto do paço real de Valada e que recebeu de D. Dinis a título vitalício; a Quinta de Montagraço, recebida de Afonso IV em 1336 e enquanto fosse vontade deste; a Quinta do Lumiar, que recebeu da Ordem de Avis, antes de 1320, em troca pelos bens que possuía em Pavia, próximo de Mora, no Alto Alentejo; umas casas na Rua Nova de Lisboa, recebidas de Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, em Outubro de 1321; o Casal de Caparide e diversas outras propriedades localizadas junto a Loures, herdadas de seus netos, Rodrigo e João Eanes. No dia 8 de Novembro de 1320, Estêvão da Guarda e sua mulher, Sancha Domingues, instituíram uma capela no mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa, para cuja manutenção destinavam uma parte deste vasto património. O documento da fundação foi lavrado na casa de morada de Estêvão da Guarda, situada na alcáçova de Lisboa, e limita-se, praticamente, a referir quais as propriedades que anexa a essa capela (o Forno do Pedrolo e a Quinta da Sisana), o número de capelães e a forma de sucessão na administração da capela. Perante o carácter lacónico do documento, não é possível perceber todo o processo que levou a essa
instituição, ou o motivo que levou a que optassem por S. Vicente de Fora como local da sua última morada. Porém, é sabido que a escolha de conventos como local de sepultura, em detrimento das igrejas paroquiais, era uma característica dos grupos nobres e do funcionalismo, grupos esses a que Estêvão da Guarda pertencia. E sendo que em Lisboa, a instituição monástica de maior importância e de maior prestígio era, sem dúvida – e apesar do crescente protagonismo dos mosteiros dominicano e franciscano –, o mosteiro de S. Vicente de Fora, parece-nos que esta sua opção nada tem de invulgar. A ratificação da instituição da capela deu-se a 13 de Outubro de 1322, tendo sido testemunhada por Estêvão Eanes, cónego de S. Jorge; Geraldo Esteves, cónego do mosteiro de Landim; Domingos Peres, cónego do mosteiro de Grijó; Afonso Esteves, tabelião de Lisboa; Afonso Domingues da Chancelaria; e João Baião, abade de Carrazeda, entre outros. Porém, desta feita, os instituidores foram muito mais precisos, determinando, detalhadamente, tudo o que se relacionava com a capela, desde o número de sufrágios que aí deveriam ser rezados até às alfaias religiosas, passando pela norma que obrigava a que fosse mantida permanentemente acesa uma candeia de azeite.
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Figura 5
Mosteiro de S. Vicente em finais do século XVI (Detalhe da vista panorâmica de Lisboa – Biblioteca da Universidade de Leiden)
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Em 1321, por saber da vontade de Estêvão da Guarda de “juntar a dita capella mais possessões para se acresentarem hi mais capellães”, Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, doou-lhe umas casas localizadas na Rua Nova de Lisboa. Destinavam-se ao “mantimento de vossa capella que vos ordinhastes em Sam Vicente de Fora de Lisboa e dos capellaens que vos hi mandastes poer”. Assim, a partir de 1322, aos dois capelães adstritos desde 1320, acrescentava-se um terceiro, dos quais conhecemos apenas o nome de Vicente Domingues. Todos eles seriam escolhidos pelo instituidor, mas em articulação com o prior do mosteiro, que teria sempre uma palavra a dizer sobre o assunto. Com a morte de Maria Esteves – ocorrida entre 1347 e 1352, talvez durante a Peste Negra – e de seus netos Rodrigo e João Eanes, sepultados à porta da capela, certamente que por falta de espaço no interior, Estêvão da Guarda procurou, utilizando parte dos bens que deles havia herdado, aumentar para quatro o número de capelães. Contudo, punha-se um problema. A Peste havia feito um grande número de baixas no convento, pelo que esse aumento seria, temporariamente, inviável. A solução encontrada foi determinar que os capelães então existentes rezassem também missas de aniversários pelas almas dos seus netos e ainda pela alma do pai de ambos, João Anes Escola.
Por cada um destes ofícios religiosos, Estêvão da Guarda pagaria 4 libras. Os frades de S. Vicente deveriam ainda cantar uma antífona diária em louvor da Virgem Maria à porta da capela, pela qual seriam também remunerados. Para o pagamento destes novos sufrágios, Estêvão da Guarda anexava à sua capela diversas propriedades herdadas desses seus netos, situadas em Loures, bem como o Casal de Caparide. No documento da ratificação, de 1322, Estêvão da Guarda estipulara ainda o modo como se deveria proceder à escolha do administrador da capela. Durante o período de execução do seu testamento, essa função estaria atribuída aos seus testamenteiros, passando depois para a sua mulher. À morte desta, seria nomeado um novo administrador, que deveria ser o seu filho varão legítimo, ou a sua filha legítima mais velha, caso não houvesse nenhum filho legítimo vivo. Se nenhum destes estivesse vivo, a administração ficaria a cargo do seu neto mais velho, ou neta, caso não existisse nenhum neto, ou seja, em regime de morgadio. Na inexistência de herdeiros habilitados, essas funções ficariam entregues a um homem bom nomeado pelo concelho de Lisboa, o que acabaria mesmo por acontecer. Tudo indica que essa incumbência esteve entregue aos testamenteiros até cerca de 1374, altura em que Álvaro Afonso, neto de Estêvão da Guarda, passou a deter esse cargo, nele permanecendo até à sua morte, no dia 1 de Janeiro de 1414. Foi substituído duas semanas depois, como vimos já, pelo seu filho, Diogo Álvares, morador em Loures. Não chegou até aos nossos dias qualquer descrição do aspecto físico desta capela, em boa medida devido ao facto ter sido completamente demolida aquando da construção do novo edifício conventual, durante o reinado de Filipe I. Supomos, ainda assim, que seria uma capela relativamente espaçosa e com algum aparato decorativo, situando-se, tudo o indica, no corpo da igreja conventual. Ora por se tratar de uma capela de dimensão razoável – relembre-se que tinha espaço para dois sarcófagos e um altar em frente do qual ardia permanentemente uma lâmpada de azeite –, por ter uma porta que podia ser fechada e por ter o tecto abobadado, não parece tratar-se uma capela lateral. Assim, o mais provável é que se localizasse numa das duas absides laterais, mas tudo não passa de meras hipóteses. Quanto à sua decoração, as fontes referem apenas a presença, numa parede, das armas de Estêvão da Guarda, entre outros motivos ornamentais, nomeadamente o retábulo aí colocado em início de Quinhentos. De entre as alfaias religiosas pertencentes à capela, destacavam-se diversas cruzes, cálices, vestimentas, paramentos e um missal. A arca sepulcral de Estêvão da Guarda, que tal como a de Sancha Domingues também não chegou aos nossos dias, era toda ela de pedra trabalhada, com a tampa ornamentada com as suas armas, tal como testemunhou, séculos depois, Gaspar Álvares de Lousada, e
Figura 6
Localização Provável da Capela de Estêvão da Guarda antes das obras Filipinas do Mosteiro de S. Vicente de Fora (Baseado na planta publicada por José da Felicidade Alves, O Mosteiro de S. Vicente de Fora, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, nº 4)
encontrava-se junto da parede onde se podia, segundo este mesmo autor, ver o seu escudo, embora não se perceba se se tratava de um fresco ou se da própria peça de armamento. E importa não esquecer que os principais reflexos da expansão da armaria, visíveis a partir do século XIII se manifestam, essencialmente, na lapidária ornamental ligada à sepulcrologia. A heráldica era, aliás, um elemento central de todo o cerimonial fúnebre. As armas de Estêvão da Guarda – as que se podiam observar, quer na arca, quer na parede da capela – eram de azul com três flores-de-lis do mesmo esmalte, postas e dispostas em banda de ouro. Trata-se, na verdadeira acepção da palavra, de uma situação de ouro sobre azul em que o azul simboliza a lealdade - neste caso, para com o rei - e o ouro a nobreza, que Estêvão da Guarda procurava sublinhar. No dia 9 de Junho de 1352, 32 anos depois de fundar a sua capela, Estêvão da Guarda elaborou o seu testamento. Não nos é possível apontar com segurança o motivo que o terá impelido a redigir esse documento. No entanto, existem algumas pistas que convém não descurar. Em primeiro lugar, há que ter em linha de conta o facto de ter já cerca de 70 anos, o que lhe oferecia poucas perspectivas quanto a muitos mais anos de vida. Em segundo, registe-se que a sua saúde não era já a melhor pois atravessava períodos em que se encontrava bastante debilitada devido aos ataques de gota que o impediam até de montar
a cavalo. Em terceiro lugar, imaginamos, deve ter ficado profundamente abalado com as mortes próximas de sua mulher, filha, genro e netos e ainda de seus filhos Fernão e Afonso da Guarda. Face a todo este conjunto de circunstâncias, acreditamos que se sentisse então bastante perto do fim da vida e, por isso, na altura de estipular as suas últimas vontades. De admirar é, isso sim, que não o tenha feito antes. Contudo, a morte não chegaria tão cedo. Só dez anos volvidos sobre a elaboração do seu testamento, Estêvão da Guarda se juntaria, como o próprio desejava, à sua mulher, filha e netos (estes últimos sepultados no exterior da capela). Reconstituíase assim a estrutura familiar cujos laços se pretendiam manter para além da morte. A data precisa da sua morte é, para já, uma incógnita de difícil resposta. Porém, um documento lavrado no dia 28 de Março de 1364 refere-o “ja finado”, pelo que o seu falecimento deve ter ocorrido pouco tempo antes desta data. Com a sua morte o reino perdia uma das mais destacadas personalidades das muitas que atravessaram os reinados de D. Dinis, Afonso IV e D. Pedro. Porém, a sua figura não cairia em total esquecimento. A sua memória, e a da sua linhagem, ficariam preservadas para a posteridade, pelo menos por mais alguns séculos, através das suas armas e da capela por si instituída. Porém, desaparecida a capela, ou seja, a memória material, permanece o seu legado poético, unanimemente reconhecido como um dos mais importantes de toda a poesia trovadoresca, o qual faz dele, a par do conde D. Pedro e do próprio D. Dinis, um dos últimos grandes trovadores portugueses da Idade Média.
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Figura 7
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Livro III de Contratos
Livro II de Contratos
Arquivo Nacional Torre do Tombo
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Mosteiro de S. Vicente de Fora, 2ª Inc., Caixa 6
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Between the urban center and the Term: The Santa Engrácia parish in the 17th century. Notes on population and urban growth
Entre o centro urbano e o Termo: a freguesia de Santa Engrácia no século XVII. Apontamentos sobre população e crescimento urbano
O estudo sobre a antiga freguesia de Santa Engrácia, de cariz histórico-demográfico, analisa o comportamento social e demográfico na longa duração, o movimento natural da população e a evolução urbanística, a percepção de quais eram os grupos sociais e laborais predominantes, as vivências do quotidiano, um conjunto de variáveis que podem contribuir para a construção da memória histórica local. O processo narrativo contou também com a validação científica através do cruzamento de outras fontes históricas coevas aos factos demográficos e históricos aqui relatados e com evidências da transformação espacial – o tema por excelência do presente esboço.
Delminda Rijo
Introdução
A realização do colóquio “Freguesia de São Vicente: História, Memória,Vivências” em Outubro de 2018 motivou a sinopse de ideias que se seguem e que ganharam vulto com a reconstituição paroquial da antiga freguesia de Santa Engrácia1, a mais oriental do mapa de Lisboa à data da sua fundação na segunda metade do século XVI. Embora o contexto espácio-temporal reportado na documentação produzida entre 1586 e 1705 corresponda a uma unidade religiosa e administrativa assente num vasto território periférico e remotamente ligado ao actual, não deixa de ser função da memória consubstanciar a partir dos testemunhos a sua reconstituição, ainda que fragmentária. A freguesia cedo iniciou o processo de dispersão e integração territorial noutras que foram criadas no âmbito de reorganizações institucionais. Contribuições territoriais para a freguesia do Beato em 1756, já no século XX, para as de Marvila e Penha de França, espaços eleitos para a fixação de fábricas e para alojamento da crescente população urbana, sobretudo a mais carenciada.
The study on the former parish of Santa Engrácia, of a historical-demographic nature, analyzes the social and demographic behavior in duration, the natural movement of the population and the urban evolution, a perception of which were the predominant social and labor groups, as experiences of the daily, a set of variables that can contribute to the construction of local historical memory. The narrative process also counted on the scientific validation of the crossing of other historical sources coeval with the demographic and historical facts reported here and evidence of spatial transformation - the theme of this sketch.
1 Projecto História da população de Lisboa (por freguesias) no Antigo Regime. Em curso. Base de dados demográfica com informação dos registos paroquiais dos baptizados, casamentos e óbitos ocorridos entre 1586 e 1705. Primeira fase: transcrição integral, incorporação e articulação dos dados num repositório digital individualizado por freguesias, em construção. Segunda fase: exploração das vertentes quantitativas e qualitativas da informação coligida.
47 Parish Santa Engrácia Urbanism Parish Register Santa Engrácia Paróquia Urbanismo Registo Paroquial
Assim o ditou o crescimento da cidade e o repensar continuado da organização político-administrativa.
Por razões opostas - a inversão demográfica e transformações socio-económicas, o remanescente da freguesia de Santa Engrácia que corresponde à parte mais urbanizada no século XVII foi integrada, por ocasião da reestruturação de freguesias em 2012, na actual freguesia de São Vicente.
IAntecedentes e contextualização
O ano de 1569 foi um ano muito difícil na História de Lisboa, então devastada pela epidemia de peste bubónica que ficou na memória como a Peste Grande, e que em poucos meses terá provocado entre 40 a 80 mil mortos (Conceição, 1818:292). Aparentemente um ano estranho para a fundação de uma nova freguesia. Mas fora autorizada no ano anterior devido ao aumento populacional que tanto marcou o século XVI e que exerceu uma elevada pressão urbanística na cidade muralhada, acabando por expandir-se para o exterior. À época da sua fundação a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel e tia-avó do rei D. Sebastião, habitava no Campo junto ao convento feminino de Santa Clara e teve um desempenho importante na instituição da nova paróquia, que consagrou a um orago da sua devoção, Santa Engrácia.
Figura 1
Pormenor de Mapa da região de Lisboa e da foz do Tejo. Iluminura nos f. 46v-47 do atlas Descriptión de España y de las costas e puertos de sus reynos (…) de Pedro Teixeira, 1634. Viena, Hofbibliotek, Codex Miniatus 46
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Foi também benemérita da nova igreja paroquial, conjuntamente construída com os contributos da finta dos fregueses que habitavam no território desanexado de Santo Estêvão de Alfama (Silva 1968: 272)
A segunda metade do século XVI assistiu à dilatação do número de novas freguesias, por desdobramento das existentes, sobretudo para ocidente e norte, onde foram fundadas onze, duas no interior das muralhas e Santa Engrácia, a única a oriente e que passou a estabelecer o limite oriental da cidade, prolongandose no exterior da Porta da Cruz até ao Grilo. Limitada geograficamente pelas freguesias urbanas de Santo Estêvão e de S. Vicente (sudoeste); dos Anjos (oeste), fundada poucos anos antes, em 1564, e dos Olivais (nordeste), foram determinantes nas formas de ocupação do espaço e das vivências na sua extensão, as diferenças morfológicas espaciais e o índice demográfico conjugando vários cenários - urbano, portuário e rural - num mesmo território paroquial. Um passado comum e um único território marcados pela heterogeneidade e vastidão adquirem uma leitura mais eficiente quando observados por fracções. Particularizámos três áreas consideradas identitárias, quer pela contiguidade geográfica, como pela partilha de características funcionais.
II
O território – heterogeneidade e vastidão
Figura 2
Princesa D. Maria, filha do Rei D. Manuel I e co-fundadora da paróquia de Santa Engrácia. Retrato. Francisco de Holanda. 1540. Convento da Encarnacão. Lisboa.
A primeira área individualizada coincidia à data da fundação com o foco de urbanização que se desenvolveu no espaço exterior à muralha tendo como eixo principal a rua Direita que atravessava a porta da Cruz e prosseguia para oriente. A sul desta rua prosperou outro aglomerado, na direcção da frente ribeirinha e limitado entre o cais do Carvão e a praia de Santa Apolónia. Ultrapassada esta área e continuando para oriente, junto à margem e com algum avanço para o interior, o terceiro espaço, mais amplo, que incluía a Bica do Sapato e Santa Apolónia, avançava para Santos-o-Novo, inflectia para a Penha de França e chegava aos vales de Chelas, Xabregas e às suas praias. Os testemunhos documentais e iconográficos do período moderno certificam que a evolução urbanística foi mais precoce e acentuada no exterior da muralha conforme podemos conferir nas representações cartográficas e desenhos da cidade (Fig. 3). Nesta malha urbana intercalaram-se casas e actividades económicas em torno de igrejas, conventos, fortes, nos cais e outras áreas geográficas de referência como o Campo de Santa Clara, em olivais, nos caminhos e nas praias. Distando quase um século entre a panorâmica de G. Braunius (1598, mas que pode representar a cidade em 1567) e a planta de João Nunes Tinoco (1650) percepciona-se um aparente e moderado dinamismo urbano, embora para norte e oriente a feição rural permaneça quase inalterável até ao século XIX. A terceira representação - o novo perímetro da capital após o terramoto (1758) – revela uma progressão que condiz com a evolução do crescimento populacional.
Figura 3
Vista de Santa Engrácia Final séc. XVII. Pormenor Panorama de Lisboa em Azulejo. Gabriel del Barco. 1698-1699. Museu Navional do Azulejo. Lisboa.
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Confrontando com o número de residentes, em perspectiva longitudinal, os primeiros dados estatísticos sobre a sua população datam de 1620 e dão conta de cerca de três mil moradores; Em 1712 seriam pouco mais de quatro mil e só após 1755, à semelhança de outros locais com grandes espaços livres e muito procurados pela população das zonas destruídas, teve um aumento estabilizado em cerca de nove mil moradores.
1º eixo: Porta da Cruz/Campo de Santa Clara
A primeira extensão “Porta da Cruz/Campo de Santa Clara” desenvolveu-se no exterior da principal Porta de entrada pelo lado oriental da cidade e que era atravessada pelo caminho que vinha de Sacavém, muito frequentado pelos viajantes do norte. Por ali circulavam diariamente centenas de pessoas e as mercadorias que abasteciam mercados e os vendedores ambulantes. Vinham do extremo oriental, de uma vasta área de quintas, hortas de produção agro-pecuária, conventos e casas apalaçadas. No terceiro quartel do século XVI esta primeira área tinha dois importantes eixos de organização do espaço (iniciado com o convento de Santa Clara, no séc. XIII): a ermida de N. Senhora do Paraíso (1562) e a igreja paroquial de Santa Engrácia (1568).
Evolução urbanística. Eixo urbanização oriental 1590-1780. Pormenores G. Braunius (1590), Tinoco (1640), ?? (1780).
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Figura 4
Figura 5
1590 1640 1780
Pormenor. Igreja de N. S. Paraíso. Gravura publicada por Georg Braunius em Urbium praecipiarum mundi theatrum quintum. Georg Braun, s.l., s.d. (c. 1598). MC. GRA. 1733.
A igreja paroquial foi sempre uma importante referência espacial na vida da freguesia, embora palco de inúmeras contrariedades como a profanação de 1630 e a demolição posterior, a nova construção e a derrocada e novamente a construção. Uma sucessão de acontecimentos que impediram o culto durante séculos e que foi transferido para a ermida de Nossa Senhora do Paraíso. Esta ermida, apesar da simplicidade arquitectónica, tinha um elevado reconhecimento espiritual e foi amplamente representada na iconografia de Lisboa pré-terramoto. A paroquial aí permaneceu até ser transferida a 5 de Abril de 1835 para a igreja do convento dos barbadinhos italianos de N. Sra. da Porciúncula, enquanto a igreja de Santa Engrácia, somente concluída no século XX, foi consagrada para Panteão Nacional. Com o crescimento da cidade, a vasta extensão fora da muralha tornou-se um espaço atractivo para a localização de habitações e oficinas de produção. Quando foi instituída a freguesia já aí existiam focos residenciais distintos, alguma produção artesanal especializada como a de cordoaria no Campo de Santa Clara onde existiam várias rodas de cordoeiro conforme atesta o registo de “um chão […] junto da praça onde os cordoeiros fazem as cordas” ( AML-AH, Livro 1.º de tombos antigos, f. 57 v.) e de atafonas na Rua Direita, também mencionadas em Vila Galega, conforme um registo de que existiam, rodeadas
de hortas, umas “casas encostadas à igreja de N. S. Paraíso na loja tem um engenho de atafonas” (Idem, 58v.).
O eixo principal – rua Direita - assente no antigo caminho assimilou o topónimo da ermida passando a rua Direita de N. S. do Paraíso. Deste trajeto desenharam-se novos arruamentos e adensaram-se outros, direccionados em vários sentidos, para o campo e para o rio e que foram sendo preenchidos por edifícios de rendimento, pátios e palácios, oficinas manufactureiras, tendas comerciais. A informação qualitativa dos aforamentos do Senado reforça algum conhecimento nesta matéria. Por exemplo na 2ª metade do século XVI a ocupação de terrenos no Campo de Santa Clara e na área envolvente foi pretendida sobretudo por artesãos mais ligados às actividades de cordoaria, pesca, atafoneiros, fundidores e também algumas figuras de destaque social que aí fixaram as suas residências: o chanceler da cidade Francisco Dias (1553) ou D. Henrique de Castro em 1558 (Idem, 123v). Seguir-se-iam outros por todo o período de observação, destacando a casa que o conjurado Tristão de Mendonça mandou construir - um “assento de casas nobres com suas varandas e jardim no Campo de Santa Clara para o cais da Madeira e estrada que vai para Enxobregas” (Idem, fl. 59 v).
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Figura 6
Pormenor da Panorâmica de Lisboa num desenho anónimo,
A procura de “chãos” para construção foi tão intensa que D. Sebastião desincentivou os aforamentos por decreto de 1573, suspendendo-os sem o consentimento régio, uma vez que os excessos causavam “prejuízo ao bem comum da cidade” (AML-AH, Livro 3º de emprazamentos, f. 134 a 135v. Carta missiva dirigida aos oficiais da Câmara ). Traçando uma linha evolutiva a partir dos dados das fontes, concisa e com a premissa de que a construção da paisagem – seja ela urbana, rural ou ribeirinha – decorre da ocupação territorial, difunde-se no urbanismo e obtém expressão na toponímia o que, por sua vez, acompanha e materializa o crescimento da cidade. Em 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira indicava cinco arruamentos que nessa data ainda pertenciam à freguesia de Santo Estêvão: rua Direita da Porta da Cruz que continuava na rua Direita de N. S. Paraíso, calçada do Cais do Carvão (também designada de trav. que vai do cais do carvão para a Porta da Cruz (1565), calçada da Porta da Cruz para o mar (1616) e em 1634 calçada do Forte); a rua João de Avelar (trav. da Porta da Cruz para o Campo de Santa Clara (1565); trav. de João Cascão (1616) que em 1693 é designada de “rua que vai das Portas da Cruz para o Campo de Santa Clara e Postigo do Arcebispo a que chamam Rua do Avelar”). Além destas, a trav. da Cordoaria e o Campo de Santa Clara. O livro de lançamento de impostos do Senado de 1565 acrescentou-lhe outras vias de circulação/espaços residenciais: travessa “que vai para N. S. Paraíso até Santa Clara” (só designada de Calçada de Santa Clara em 1638); o “segundo beco que vai do Campo para N. Sra. do Paraíso”; o cais da Madeira e “as Casas que estão a Santa Apolónia da banda da Praia”. Este conjunto de arruamentos salienta o avanço da construção urbana para o Campo onde já estava em formação um “bairro” que era designado pela população local como Vila Galega e que aparece pela primeira vez num assento de casamento de 1588. Na direcção da praia, para sul, há referências a um outro aglomerado de casas à volta do recolhimento de Santa Apolónia. Chegando à primeira metade do séc. XVII a percepção da evolução adquire maior clareza, tornando-se a informação paroquial mais abundante e já com referência a quinze novas serventias, eventualmente algumas já existentes, mas omissas na documentação consultada ou devido a outras denominações. Para além dos arruamentos, surgem outros topónimos alusivos a sítios, incluindo as dezoito localizações geográficas incertas, de locais de abrigo e alojamento temporário, e estruturas de produção em ruas: fornos de cal, atafonas, rodas de cordoeiro. Na segunda metade de Seiscentos a documentação contem apenas quatro novos arruamentos nesta área – a rua das Freiras, a calçada da Praia, o beco do Vidro e uma travessa no cais do Carvão, para além de especificar outros equipamentos e detalhes territoriais.
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CALÇADAS ANO Calçada do Cais do Carvão 1607 Calçada da Porta da Cruz para o Mar 1616 Calçada do Forte 1634 Calçada de Santa Clara 1638 Calçada de Santa Clara para o Cais do Carvão 1641 RUAS ANO R. do Toscano 1605 R. dos Arciprestes 1605 R. da Figueira 1605 R. de Manuel Fernandes 1616 R. de João Cascão 1616 R. Direita df. N. S. do Paraíso 1616 R. do Meio 1619 R. de Manuel de Basto 1623 R. dos Mouros 1645 TRAVESSAS ANO Trav. Gregório de Morais de Távora 1605 Trav. Domingos Lopes, df. da igreja 1605 Trav. N. S. do Paraíso 1634 Trav. (última) junto a S. Engrácia 1636 Trav. do Zagalo 1641 Trav. D. Luís de Almeida 1648 Trav. de Francisco de Almeida 1648 Trav. De João Cascão 1648 OUTROS TOPÓNIMOS ANO Praia junto a santa Apolónia 1605 Roda dos Cordoeiros 1605 Campo S. Clara df casas D. João 1605 Cais da madeira 1607 Roda campo de Santa Clara 1607 Horta de D. Filipa 1607 Horta de D. Francisco 1607 Fora do Postigo do Arcebispo 1607 Roda das Freiras 1616 Campo atrás da igreja 1616 Quinta “acima da nossa quinta” 1616 Bica do Sapato 1617 Bairro Stª Apolónia 1619 Horta por cima de Stª Apolónia 1631 Forno da Cal 1636 Junto ao forte 1636 Fundição da Artilharia df igreja 1636 Detrás capela-mor Igreja S. Engrácia 1637
Toponímia
Quadro I
da freguesia de Santa Engrácia na 1ª metade do séc. XVII
Em perspectiva micro, embora parcelar, do que seria este espaço no século XVII constata-se que dos arruamentos que convergiam para a rua Direita, à excepção da travessa de Gregório de Morais de Távora, travessa de Domingos Lopes em frente à igreja do Paraíso (1605), a rua Manuel Fernandes (1616) e a rua Manuel de Basto (1623) as restantes só começam a aparecer nos registos paroquiais após 1634. Como já referimos, não se descarta a sua existência anterior, uma vez que os documentos apenas referem, e nem sempre, onde efectivamente ocorreram os sacramentos. Para além da possibilidade de se lhe atribuir outra designação, como também já se referiu. Outro termo referencial geográfico é “frontaria” que surgiu associado a actos sacramentais para localizar acontecimentos. A frontaria da igreja de Santa Engrácia é referida num assento de casamento de 1651; a frontaria do Campo surge noutro assento de óbito de 1678 e ainda a frontaria de Vila Galega que foi referida pela primeira vez em 1637. Este termo indica uma correnteza de casas, evocando a malha urbana em formação. As vias de comunicação ligadas à rua principal começaram a adquirir designações onomásticas no início do séc. XVII. Particularmente neste espaço observou-se uma dezena de topónimos indicadores da morada de figuras locais e que acabaram por se transformar em referência espacial. O exemplo mais popular é a travessa de João Cascão que remete para um contratador de mercadorias que aí residiu. A de D. Luís de Almeida, futuro conde de Avintes indica a proximidade ao palácio dos marqueses do Lavradio. Tratando-se de um território íngreme, identificam-se cinco calçadas - a de Santa Clara, a do cais do Carvão, a da Porta da Cruz para o Mar, a do Forte e na segunda metade do século, surge um novo acesso na calçada que ligava directamente o Campo de Santa Clara ao Cais do Carvão. Por outro lado, metade das serventias identificadas eram travessas, isto é, vias de ligação entre ruas, também indicador de progressão urbana que tal como os anteriores comprovam a dinâmica construtiva
que caracterizou o período. Mas outras estruturas entraram na toponímia local conforme indica um registo de óbito de uma “pobre mulher”, Ana Pereira, que em Janeiro de 1688 faleceu “junto do muro alto” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O2, fl. 96). Poderá indicar a parte da muralha da cidade que foi reconstruída em 1660, fronteira à igreja de Santa Engrácia e contígua à fundição de artilharia de cima e que devido ao risco de derrocada para o campo de Santa Clara foi reedificada e funcionou, neste caso, como ponto referencial. Observou-se a multiplicação de geónimos que norteavam a população, sobretudo referentes a estruturas militares e funcionais e que acabaram por entrar no léxico quotidiano. São variantes de geónimos principais - as fundições de artilharia; o baluarte de Santa Apolónia que foi construído na proximidade do convento do mesmo nome; os forçados/armazém dos forçados em referência à prisão da galé para os condenados de tribunais civis e da inquisição. O Campo de Santa Clara que se articulava a esta primeira área de influência e desenvolvimento, foi profusamente mencionado na documentação, reafirmando-se mais uma vez o enorme potencial informativo dos registos paroquiais. A sua designação proveio do convento feminino aí fundado em finais do século XIII. À semelhança de outros conventos medievais, este complexo conventual esteve entre as primeiras construções fora da muralha, que na busca de isolamento acabaram por funcionar como vectores de atracção demográfica e de crescimento urbano. Esta evidência ocorreu noutros pontos da freguesia, ainda com reserva no século XVII, nomeadamente os pequenos aglomerados populacionais que se formaram à volta dos conventos de Santos-o-Novo, da Madre de Deus, de São Francisco de Xabregas, de Chelas e da Penha de França, e que mais tarde se transformaram em zonas de expansão fabril e urbana. No topo norte do Campo de Santa Clara já existia desde pelo menos a segunda metade do século XVI o bairro de Vila Galega, um núcleo populacional quase insulado a norte, cujas características sociais e arquitectónicas lhe conferiam uma identidade autónoma que o diferenciava dos outros bairros do interior da muralha. Cristóvão Rodrigues de Oliveira não o refere em 1551 e a referência escrita mais antiga que identificamos foi um assento de casamento de 1588 cuja noiva, Catarina Fernandes, era moradora em Vila Galega (IANTT, ADL, RP Santa Engrácia). Está representado na gravura de Braunius, em frontaria, mas aparentemente omisso no desenho de Leiden. Desenvolveu-se entre os conventos de Santa Clara e a cerca de S. Vicente de Fora e progrediu para o interior, na direcção do vale de Cavalinhos (actual vale de Santo António).
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As referências nos registos paroquiais dão conta de pelo menos oito arruamentos que estavam organizados a partir de uma rua do meio, entrecortada por ruas e travessas: rua do Toscano (1605), rua dos Arciprestes (1605), rua do Meio (1619), rua dos Mouros/Mourões (1645), travessa de D. Luís de Almeida (1648), rua das Freiras (1657), Beco do Vidro (1677) e Horta da Cera (1681). Embora não exclusivamente, foi uma área residencial e laboral das camadas populares urbanas, onde coexistiam, à semelhança de qualquer bairro medieval, oficinas artesanais e rodas de cordoeiro, fornos, atafonas que faziam a moagem de cereais, pequenas hortas e espaços produtivos de vidro e cera. A ruralidade era muito marcante neste período conforme revela uma reclamação de 1656 que alguns moradores levaram ao Senado. Nesta queixavam-se dos obstáculos que um agulheiro, Luís Francisco, causou ao tapar dois caminhos públicos “para cercar o seu olival” (AML-AH, emprazamentos, 57). O extenso Campo de Santa Clara permaneceria por muito tempo com poucos edifícios e a descoberto em encosta até ao rio entre a porta de S. Vicente até ao mirante (Araújo 1993:74). A sua topografia e a dimensão fizeram dele um espaço propício a funções onde o isolamento em caso de emergência era um importante requisito. Incluindo aquelas funções menos aprazíveis do ponto de vista sanitário e social, como a que manteve até ao século XVI de campo da forca, além da abertura de vários cemitérios de pestes (pelo menos em 1506 e de 1523). Ao longo do período em estudo foi considerado suficientemente isolado para a prática da exposição de crianças, abundando os registos correspondentes “[…] baptizei subconditione a Clara enjeitada
nas portas do Mosteiro de Santa Clara, quando a encontraram teria de idade ano e meio e a baptizei em casa“ (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, B1).
A disponibilidade de espaço está também refletida nos vários aforamentos de chãos em 1693, em frente da porta da igreja de Santa Engrácia, já considerada velha (AML-AH, Foros, fl. 59) e outro junto do muro das freiras. De facto, a dimensão do Campo colocava-o como uma referência toponímica quase incontornável e ponto referencial da vida local até para a cobrança de foros em expressões oficiais como “campo de santa clara para o cais da madeira e estrada que vai para Enxobregas”; ou “casas no cais da madeira entrando pela banda da cidade à esquerda encostados à barroca do Campo de Santa Clara”. Mas essa relevância não dissuadiu no início do século XVII, entre 1603 e 1611, estando já em curso o processo de transformação e ocupação urbana, a Companhia de Jesus de considera-lo como o espaço ideal para a transferência do matadouro do campo de Santana, pois a vizinhança do matadouro com o colégio de Santo Antão-o-Novo, na freguesia da Pena, causava muito incómodo devido ao mau odor e a insalubridade. Mas as freiras de Santa Clara e a população local resistiram com veemência, acabando a ideia por cair. Mas não sem uma longa polémica com alegações entre as partes dirimindo argumentos que incluíram tubarões e de como o escoamento de sangue do gado morto para o rio iria atraí-los. Indignações públicas de ambas as partes alegando a Companhia que até “lançaram mão dos tubarões para intimidar e espantar gente” (AML-AH, Provimento da Saúde, Livro 2º do provimento da saúde, fl. 60).
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Figura 7
Composição Vila galega cf. Anexo A Vila Galega de Santa Engrácia. Pormenores do desenho anónimo de Leiden (1570) e da gravura de G. Braunius (1590).
Argumento esse que terá criado, pelo menos, algum desassossego numa comunidade tão dependente da actividade fluvial. Mais do que recurso sanitário em situação de crise, a localização e extensão do Campo de Santa Clara adequou-o a importantes actividades laborais como já foi referido, neste caso tão essenciais ao bemestar da cidade como para a eficácia das navegações ultramarinas. Tornou-se num importante espaço produtivo de uma actividade que obrigava à disponibilidade de espaços desimpedidos. De facto, pelo menos desde 1534 e até ao início do século XVIII, aí estiveram instaladas várias rodas de cordoeiros (Regimento do ofício dos cordoeiros da porta da Cruz e obra delgada de 1534 a 1569) obrigados por postura municipal a permanecer fora de portas devido ao perigo de incêndio pelo armazenamento de matérias-primas como o linho e a estopa. Nestas rodas os fios eram estendidos por uma distância considerável, em espaço aberto. Estão claramente representadas na panorâmica de Lisboa do desenho de Leiden (Fig. 8), um bom exemplo de validação da fonte escrita com a iconografia. A exploração de pedreiras que forneceram tantas obras da cidade estava já desativada no início do século XVIII,
e para o aproveitamento do espaço foi necessário o entulhamento das mesmas, em parte solucionado com o despejo dos lixos produzidos pela população de Alfama. O Campo ia perdendo, progressivamente, o antigo papel de “logradouro” da cidade, aparecendo com maior frequência nas fontes os edifícios de maior volumetria entretanto construídos em expressões como “defronte das casas de D. João de Castro”, ou o seu “pátio na rua Direita de N. S. do Paraíso” alusivo ao palácio do senhor e morgado de Resende, ou ainda a instalação em 1681 do colégio de S. Francisco Xavier da Companhia de Jesus2.
2 Por decreto de 11 de agosto o rei mandou que o Senado analisasse a petição do provincial da Companhia de Jesus onde dizem que o rei tinha concedido licença para a fundação de um colégio, num local situado fora das portas da Cruz, de Luís Sodré Ferreira que é foreiro ao Senado em 2 080 réis anuais e que pedem remissão.
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Figura 8
Hospital Real da Marinha (antigo colégio do Paraíso da Companhia de Jesus) no Campo de Santa Clara. José Bárcia. Entre 1890-1945. Arquivo Municipal de Lisboa. Lisboa. BAR000217.
2º eixo: Junto ao rio
Para sul, abaixo da Rua Direita, no sentido da frente ribeirinha entre o cais da Galé e a praia de Santa Apolónia desenvolveu-se o que se convencionou chamar um segundo eixo ou área de fixação económica e residencial da freguesia. Uma área utilitária por excelência, em cuja extensão de praias e cais portuários decorriam importantes actividades comerciais de abastecimento alimentar, de transporte e armazenamento de bens de primeira necessidade como o carvão e a lenha e outras matérias-primas que aí chegavam diariamente por via fluvial. Áreas que foram, gradualmente, ocupadas com habitações nos espaços disponíveis, e que funcionaram como agentes de transformação urbana e adaptação funcional. A documentação coeva contempla inúmeros casos. No cais da madeira, mesmo em locais menos protegidos foram edificadas casas “entrando nele pela banda da cidade à mão esquerda encostadas à barroca do Campo de Santa Clara”. Algumas destas habitações tinham funções mistas, anexas a fornos de cal, por exemplo
“junto ao cais da madeira no caminho que vai do cais para Santa Apolónia no longo do muro”, ou com fornos de pão “junto a Santa Apolónia da banda da praia” (AML-AH, Livro 1.º de tombos antigos, Fl. 59).
No enfiamento para ocidente a fundição, também designada como forte, era um edifício manuelino que ocupava parte considerável da área junto à praia e constituía uma importante estrutura de apoio à defesa do país e expansão ultramarina. Aqui se fundiam metais e fabricavam artilharia e munições. Esta foi aliás uma actividade marcante da freguesia que mantinha junto ao Campo de Santa Clara outra fundição, a dita “de cima”. Abundam as referências toponímicas a equipamentos e estruturas de armazenamento das matérias-primas que chegavam via fluvial. Os cais mais antigos, os do carvão e da madeira eram os locais de desembarque dessas matérias-primas mas que foram adoptando diferentes nomenclaturas no decurso da observação em associação a alterações funcionais:
o
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cais da praia,
cais junto à fundição, o cais da galé ou o cais do quartel
Figura 9
Evolução urbanística. Eixo urbanização zona ribeirinha. Pormenores Desenho anónimo de Leiden (1570), Grande Panorama em Azulejo (1698-1699), Planta da paróquia de Santa Engrácia após o terramoto de 1755 (1756-1768). Cota da planta de Lisboa após o terramoto: IANTT, Livro de Plantas de Lisboa, f. 111. Códices e documentos de proveniência desconhecida, n.º 153.
dos soldados que mais não são que os primitivos cais e as estruturas que foram construídas na sua vizinhança. Identificaram-se também moradores que se destacaram, espaços de lazer como as tabernas e casas de alcoice que para a população eram importantes referências de localização geográfica. Por exemplo, num testamento de 1669, de um alfaiate, o testador foi indicado como morador no Cais do Carvão na esquina da Tenda (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O1). Para além da importância na economia da cidade, em apoio aos mercados de alimentos e como espaço de atracagem de barcos de pesca e de passageiros oriundos do interior, desempenhou outro papel basilar que foi reforçado após a Restauração - o da defesa da cidade, pois integrou a linha defensiva de Lisboa com a fortificação da marinha e a construção do baluarte de Santa Apolónia (1676). Já anteriormente, após 1668, começa a surgir a designação de cais dos soldados em simultâneo ao cais do carvão aludindo à presença de um regimento de cavalaria em instalações provisórias para soldados e estrebarias. A praia passou também a designar-se de praia junto ao quartel dos soldados. O espaço envolvente a ocidente estava reservado a funções penais, com a localização já no limite da freguesia da prisão da galé. Esta infra-estrutura recebia condenados pela justiça civil e inquisitorial e que eram conhecidos como forçados das galés.
A dureza de trabalho e as condições sanitárias tornou-os assíduos nos registos de óbito. Os forçados estavam inicialmente ligados ao trabalho nos barcos usados na defesa da costa, como remadores, mas no século XVII o trabalho limitou-se aos cais na condução de madeira para os estaleiros, na descarga de navios e outros trabalhos de grande exigência física. A instituição passou assim a dar nome ao cais (1656), que também ficou popularizado como cais dos forçados.
II
3º eixo: Chelas, Xabregas, Penha de França Ultrapassado o território portuário, prosseguindo além da Bica do Sapato e Santa Apolónia estendia-se a terceira área da freguesia, ampla e inserida numa paisagem rural que era habitada por uma população heterogénea socialmente, mas predominantemente vinculada a unidades produtivas agro-pecuárias em hortas, quintas e pequenas povoações. Estas expandiram-se junto a edifícios simbólicos como a ermida da Penha de França, dos conventos nos vales de Chelas e Xabregas e nas praias vizinhas, em actividade piscatória e fluvial. Paisagens e padrões de ocupação que prevaleceram até meados do século XIX quando o movimento industrial começou a instalar-se.
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Figura 10
Vista da Penha de França. Tomás da Anunciação. 1857. Lisboa. MNAC.
O trajecto mais comum com partida da área urbana, para alcançar o extremo oriental da freguesia era seguindo o antigo caminho que era marginado de praias e enseadas por Chelas e daí ao Grilo, embora o acesso também se fizesse por navegação fluvial. Outra via de circulação seguia na direcção da ermida de N. S. da Penha de França, na intercepção da Cruz da Pedra para norte. Aqui formara-se uma pequena povoação, no sítio da cabeça de Alperche, na confluência da ermida construída em 1597. Embora só comece a figurar na documentação paroquial em 1607, ano em que já estava em construção o convento dos eremitas Agostinhos (1604), para cujo domínio passaria mais tarde a ermida (1635). A Penha de França constitui outro exemplo de povoamento com origem num local de devoção e que acabou por crescer na presença de uma importante casa religiosa. Aqui a rede de vias de comunicação era um rendilhado de caminhos rurais que acercavam às propriedades agrícolas. A ponte de Xabregas conhecida como a ponte junto ao mosteiro de S. Francisco, foi um elemento de comunicação importante e uma referência local pela qual transitava o tráfego local e se acedia ao rio, coadjuvando a circulação viária para a capital. Apesar da distância, a acessibilidade terrestre e fluvial, e a ambiência amena favoreceram a instalação
de palácios e quintas de veraneio na vizinhança dos conventos, fixando também grupos sociais privilegiados.
à profusa referência a casas nobres e domicílios, alguns não localizados, de importantes figuras da sociedade seiscentista que aqui habitaram ou possuíam casas de veraneio e que influenciaram a população local do ponto de vista social e económico, marcando presença nos registos paroquiais não só como protagonistas das suas vidas, mas também na vida de criados e protegidos, acabando por funcionar como referências toponímicas ou de relação laboral (cf. Quadro II). Os núcleos de cariz popular, pré-existentes ou ampliados nas referidas áreas de influência localizavamse nas margens do rio, em pequenas comunidades piscatórias e no “hinterland” de quintas e hortas. No conjunto, o extremo oriental de Santa Engrácia caracterizava-se por uma menor densidade demográfica, como é notório na documentação pelo menor número de baptismos, casamentos e óbitos. A distância também promovia o adiamento de sacramentos ou a realização ocasional nas igrejas conventuais e ermidas locais. Foi por vezes necessário apelar a testemunhas para comprovar um óbito, conforme se
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Figura 11
Convento de Chelas, séc. XIX. 1864. Lisboa. Archivo Pittoresco, vol. XIV.
Quadro II
Evolução Toponímica da Freguesia século XVII: Quintas e Hortas IANTT, ADL, Registos Paroquias da paróquia de Santa Engrácia. Século XVII
Quinta do Lamas 1643
Quinta de O. Guiomar Pantoia 1648
Quinta de António Ferreira, o carcereiro 1656
Quinta dos Ladrões 1658
Quinta de Manuel da Silva 1658
Horta Nova 1659
Horta de Gonçalo Manuel 1661
Horta de João Soares 1661
Pátio de D. Miguel Pereira 1663
Quinta de D. Custódia 1663
Quinta do Preto 1663
Quinta do Cativo 1665
Horta do Faria 1666
Horta da Molha 1670
Quinta do Brasileiro 1672
Quinta da alforoeira 1675
Quinta da Ameixoa 1675
Quinta do Capitão Francisco Pereira 1675
Horta do Moirão 1676
Quinta do Foró 1677
Quinta de João Morato 1679
Figura 12
pode comprovar no registo que refere o hortelão Pedro Jorge, morador no Vale de Xabregas “na orta de D. Barbosa”, que atestou conhecer Mateus Francisco “e que este era viúvo pois vira morrer sua mulher e enterrar em S. Bento havera 2 anos […]“ (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, M, 10-12-1589). Quanto à actividade económica, a população residente dedicava-se à exploração agro-pecuária e fluvial, com presença de elevado número de pescadores (contam-se 38 nos registos paroquiais e a iconografia é também elucidativa (cf. Fig. 14).
A actividade extractiva seria pouco significativa, com presença de alguns locais de produção como a saboaria à Cruz da Pedra (1692) e estabelecimentos comerciais que serviam a população, como o açougue de Xabregas, a venda do Grilo (1662) e tabernas.
A agricultura foi a principal actividade económica de produção alimentar para abastecimento da cidade. Identificaram-se nos registos paroquiais pelo menos 24 hortas, com maior concentração em Chelas e Xabregas, mas também junto aos conventos, e outras dispersas pela freguesia (quadro III). Para além de 35 quintas que eram simultaneamente unidades de produção e espaços residenciais, de dimensão variável, dando alguma
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Vista do Convento de Madre de Deus. Dirk Stoop. 1662. Londres. British Museum.
origem a bairros actuais como a quinta de Montecoxo ou o dos Apóstolos, à Penha de França. Localizavamse em Chelas, em Xabregas, no Grilo e na Penha de França, outras ainda mais próximas do centro urbano, em Santa Apolónia e Vale de Cavalinhos, além de pelo menos duas, a quinta do Cativo e a quinta de António Ferreira, o carcereiro cuja localização não foi clarificada. As casas religiosas de maior dimensão como os conventos de Xabregas (1455), da Madre de Deus (1509), de Chelas ou de Santo Agostinho (1663), de Santos-o-Novo (1609-1685), o convento dos barbadinhos italianos (no edifício que estivera ocupado pelas comendadeiras até 1689) estavam primitivamente inseridos em espaços isolados, com pouca população e que funcionaram, posteriormente, como pontos fundamentais de expansão e estruturação urbana como já referimos. De facto, à necessidade de mão-de-obra para a sua edificação e depois para a manutenção das casas, aliouse o papel assistencial aos mais desfavorecidos e até de protecção das populações, dando origem a pequenas povoações que cresceram ao seu redor. Assim o ilustra o registo de óbito de Maria Soares que morreu em 1639 “muito pobre que pedia esmola junto ao Mosteiro de Santos” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O1, 20-06-1669). A comendadeira do convento de Santos-o-Novo tinha ao seu serviço mais de 40 pessoas entre freiras, criadas, escravas e pessoas de fora.
Algumas dispunham de residência na vizinhança. O pátio do convento, uma tipologia arquitectónica que aparece com frequência na documentação, anexos às grandes casas, seria um espaço residencial alargado e protegido, mais comum fora da cidade e vinculado às grandes casas religiosas e senhoriais. Existiram vários neste espaço: o pátio da Madre de Deus, o pátio de D. Miguel Pereira, o pátio junto a N. S.do Paraíso, o pátio do Senhor de Pancas ou o pátio dos Lobos, no Vale de Chelas. Enquanto exemplo de evolução/transformação urbana, as obras de Santos e do respectivo pátio figuraram durante décadas nos registos paroquiais, frequentemente associados a mortes acidentais nas obras de construção. Outros testemunhos de construção e modificação da paisagem, ainda mais a oriente, foram a edificação de casas no Grilo junto ao mar (1636) ou as casas novas junto a Chelas conforme registo de óbito em 1693 de Helena Rodrigues que seria a “… cunhada de António Rodrigues morador em Chelas nas casas novas…” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais O1, fl. 693), ou de um desconhecido, já em 1705, que faleceu às “Casas novas dos Apóstolos” (Idem, O2, fl. 231). E numerosos espaços domiciliários em lugares identitários na vastidão desta área foram indicados aos párocos, como a Cruz da Pedra que já existia pelo menos em 1593; o Vale Escuro na Penha de França, ou a Fonte do Louro (1611).
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Figura 13
Fábrica de tabacos no antigo Convento de S. Francisco de Xabregas. J. Pedrozo. 1868. Lisboa. Palácio Pimenta, MC.
III Considerações Finais
O âmbito da investigação, ainda em fase primária e o alcance que o cruzamento das fontes históricas permite, aliados à complexidade metodológica reverteu em conhecimento de facto, manifesto na forma de apontamentos, particularmente sobre urbanismo. Determinado como ponto central da análise, o urbanismo e a sua progressão no território de Santa Engrácia desde a fundação ao século XVIII foi um conceito persistente no texto, com maior ênfase no primeiro dos três espaços conjecturados. Uma sequência tripartida que indica o primeiro como o verdadeiramente urbano do ponto de vista habitacional, intercalado por importante actividade manufactureira e de exploração de recursos, com uma heterogeneidade social marcante. Apontaram-se alguns dos marcos orientadores na formação e progresso do traçado que no Termo se foi firmando como cidade. Uma segunda zona quase exclusivamente dedicada a actividades económicas de comércio interno fluvial e piscatória tão essenciais à subsistência da capital; mas também a fundição de metais e o fabrico de armas, a defesa militar e para fins penais. A terceira área também caracterizada por uma função económica fundamental à vida urbana adquire singularidade pela presença vincada dos dois extremos da hierarquia social: de um lado os que exploram a terra e o rio, os servos e os criados e do outro os senhores e os eclesiásticos possuidores de terras e palácios. A população, a representação do lugar na economia urbana, o cenário socioprofissional, a defesa militar da capital; a condição de periferia e lugar de eleição para fundar casas monásticas, sobretudo femininas, vocacionando-o como espaço espiritual e contemplativo e, paradoxalmente, como agregador de populações constituem outras das temáticas enunciadas e ou possibilidades de investigação acerca do espaço oriental de Lisboa no período Moderno. O potencial analítico da informação dos registos paroquiais estende-se às vivências do quotidiano. De facto, a observação das variáveis demográficas da natalidade, nupcialidade e da mortalidade na vertente qualitativa e no âmbito das mentalidades vai além dos movimentos populacionais e da mortalidade de crise entrando no domínio da violência urbana ou das redes de assistência muito evidentes neste espaço da cidade –a morte violenta, acidentes, naufrágios e afogamentos no rio e praias, a falta de assistência espiritual e médica são alguns dos temas que sobrevêm ao longo da documentação.
A presença de grupos sociais socialmente marginais, o elevado número de ciganos por exemplo, os relacionamentos ilegítimos, o abandono frequente de recém-nascidos e crianças, o elevado número de crianças baptizadas em casa, a ausência de sacramentos constituem indicadores fruto do isolamento e distâncias/mobilidade que são passíveis de observação, de síntese e contributo para um melhor conhecimento da História de Lisboa no período Moderno.
Quadro III
Membros da nobreza, eclesiásticos e outros moradores ilustres da freguesia de Santa Engrácia no século XVII. IANTT, ADL, Registos Paroquias da paróquia de Santa Engrácia. Século XVII.
Dom Diogo de Menezes (24-05-1588)
Dom Francisco de Viveiros (19-06-1605)
Dom Prior de Palmela (09-12-1613)
Dom Jorge d'Eça (29-01-1617)
Dom Luís de Castro Pereira (29-03-1618)
Alferes-Mor deste Reino (28-10-1618)
Dom Luís d'Almeida (30-08-1609)
Dom Tomás de Noronha (08-07-1606)
Dom João de Castro, Presidente da Câmara (16-07-1607)
Dom António de Almeida (31-01-1619)
Dom Diogo Lobo
Dom Francisco de Almeida (11-08-1619)
Dom João da Silva Deputado do Santo Oficio da Inquisição de Lisboa (02-08-1620)
Dom Luís de Castro Pereira (20-04-1622)
Dom Frei João de Valadares, Bispo do Porto (30-04-1628)
Capelão Mor Dom João de Lencastre (28-03-1622)
Dom António da Silva (16-06-1628)
Dom Francisco Mascarenhas (18-02-1621)
Dom Pedro Barbosa Prior de Avis (20-07-1634)
Dom João de Ataíde Conde da Castanheira (13-09-1637)
Mordomo de Sua Alteza lsabela (12-01-1641)
Dom Gastão Coutinho (20-01-1652)
Dom Luís Álvares Carneiro (17-06-1664)
António Cavide (1-08-1666)
Dom António de Meneses (27-04-1685)
Dom João Cárcome (01-11-1693)
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Fontes Manuscritas
ANTT-ADL – Paróquia de Santa Engrácia. Registos de baptismos, casamentos e óbitos.
AML-AH, Chancelaria da Cidade, Livro 1.º de tombos antigos, f. 123v.
AML-AH, Administração, Livro 3º de emprazamentos, f. 134 a 135v.
Bibliografia geral
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, 2ª edição, Lisboa, Ed. Veja, 1993.
CASTRO, João Baptista de.Mappa de Portugal antigo e moderno, 3ª ed. revista e accrescentada, Typ. do Panorama, 1818.
CONCEIÇÃO, Frei Cláudio da, Gabinete Histórico, Lisboa, Imprensa Régia, tomo III, 1818.
COSTA, Pe. António Carvalho da, Corografia Portugueza e descripçam topográfica do famoso Reyno de Portugal…, Lisboa, na oficina de Valentim da Costa Deslandes, 3 vol, 1708-12.
MACEDO, Luís Pastor de, Lisboa de Lés-a-Lés, Lisboa, CML, 1942.
OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de, Sumário em que brevemente se contém algumas cousas, assim eclesiásticas como seculares, que há na cidade de Lisboa, pref. Augusto Vieira da Silva, 3ª ed., Lisboa, 1939.
PEREIRA, Luís Gonzaga, Monumentos Sacros de Lisboa em 1833: Lisboa, 1927.
SILVA, A. Vieira da, As Freguesias de Lisboa, Estudo Histórico, Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, 1943.
SILVA, A. Vieira da, Dispersos, Lisboa, Biblioteca de Estudos Olisiponenses, 1968.
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Becos, Escadinhas, Caracóis e outras Ruas da Colina de São Vicente
Alleys, small stairs, snails and other streets of São Vicente hill
Sérgio Barreiros Proença
A partir da evocação das primeiras memórias de infância que existem sobre a cidade de Lisboa e que se cruzam com o lugar da Freguesia de São Vicente, ensaia-se um possível reconhecimento e ordenação das ruas da freguesia segundo duas abordagens. Na primeira trata-se da adequação recíproca entre a forma do traçado urbano e a configuração do sítio que o acolhe, uma especificidade da cidade de Lisboa particularmente evidente em São Vicente, que aqui produz espaços de singular qualidade. Na segunda trata-se de espaços que se podem reconhecer a partir das designações toponímicas que encontramos em São Vicente, que constituem uma amostra rica da diversidade toponímica das ruas de Lisboa.
Uma impressão de Lisboa
A impressão mais longínqua que tenho de Lisboa, devia ter uns 4 anos, fundem dois momentos. O primeiro é a travessia do Tejo pela ponte 25 de Abril, a chegada a Lisboa no banco de trás do Fiat 127 do meu avô que me dizia “Olha o Tollan!”1 enquanto apontava para o lado direito do carro e a minha avó lhe dizia, entre o assustado e o recriminador, para olhar para o caminho antes que tivesse um acidente. O casco voltado à tona de água, como eu imaginava que fosse uma baleia à superfície, era insólito. No entanto, o recorte da cidade de Lisboa, com o Castelo, a cúpula do Panteão e a linha da margem do Tejo, ficou impresso na minha memória não só pela repetição que depois existiu do mesmo momento, desta travessia sempre que vinha a Lisboa, mas sobretudo pela singularidade daquele enquadramento, pela excepcionalidade desta cidade que mais tarde, após coleccionar cidades em viagens, confirmei. O segundo consiste na vista que se observava a partir da varanda das traseiras da casa onde viviam os melhores amigos dos meus avós, num segundo andar da Rua de São Gens. O João e a Céu nunca mudaram de casa porque a vista a partir da varanda de tardoz para o Castelo de São Jorge era para eles insubstituível.
Stemming from early childhood memories of the city of Lisbon that intersect with the place of the Parish of São Vicente, a possible acknowledgement and ordering of the streets of the parish is tested according to two approaches. The first deals with the reciprocal adaptation between the shape of the urban layout and the configuration of the site that receives it, a specificity of the city of Lisbon particularly evident in São Vicente, that produces spaces of singular quality. The second deals with types of spaces that can be recognized from the toponymic designations we find in São Vicente, which constitute a rich sample of the toponymic diversity of the streets of Lisbon.
1 O navio porta contentores de bandeira britânica “Tollan” esteve encalhado no Tejo frente à Ribeira das Naus, com o casco virado para cima, entre 16 de Fevereiro de 1980 e 2 de Dezembro de 1983, na sequência de um embate junto à Doca do Jardim do Tabaco com o navio sueco “Barranduna”.
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urban layout urban morphology street topography toponimy
urbana toponímia rua traçado urbano topografia
morfologia
1
dizia que só ali podia adormecer a olhar para o Castelo iluminado, numa perspectiva próxima da que podemos tomar a partir do Miradouro da Senhora do Monte. Estas duas memórias impressas são para mim, hoje, reflexo de uma especificidade de Lisboa que no espaço que pertence à freguesia de São Vicente é particularmente evidente: a afinidade da forma da cidade com a forma do sítio que a acolhe. [fig. 01]
A forma do sítio e a forma da cidade em São Vicente Tando na iconografia como na literatura, a descrição de Lisboa foi invariavelmente feita de modo indissociável do seu contexto geográfico. Se recuarmos a meados do século XVI, a representação de Lisboa gravada por Georg Braun (Braun c.1572) ou a descrição de Damião de Góis que referia que “O sítio da antiga cidade de Lisboa ocupava primitivamente apenas uma colina elevada que se prolongava até à margem do Tejo; mas actualmente a sua extensão abarca vários monte e vales. (...) com as suas cinco colinas e outros tantos vales férteis e muito aprazíveis” (Góis 1554, pp. 42-43, 48), atestam o reconhecimento da relação de Lisboa com o Tejo e o entrelaçamento entre o tecido urbano e a topografia. A diversidade e complexidade da forma de Lisboa é parcialmente descodificada quando se extrai e sobrepõe dois estratos da cidade: a topografia e o traçado urbano2.
Este exercício, mesmo numa escala que abrange toda a cidade permite reconhecer a coincidência de traçados de arruamentos e espaços da cidade com elementos significantes da topografia como as linhas de água, as linhas de festo ou a linha de costa (Carrilho da Graça 2002, pp. 8-11; Proença 2014, pp. 319-335). A percepção destas coincidências do traçado urbano com os elementos mais significantes da topografia permite intuir que existe uma relação genética entre a forma do sítio e a forma das ruas de lisboa, ou melhor dizendo, uma adequação recíproca construída ao longo do tempo que ainda hoje pode ser identificada, principalmente na parte central de Lisboa. Se nos focarmos na área da freguesia, o carácter da topografia contribuiu seguramente para a inclusão de São Vicente como uma das míticas sete colinas de Lisboa.
2 Carlos Dias Coelho define o traçado como “conceito abstracto e bidimensional, é obtido por um processo redutor ao retirar ao tecido uma das suas três dimensões. Remete para a representação do espaço público e da estrutura parcelar, indiferenciando os vários elementos que os materializam. Ao primeiro componente – o espaço público – estruturador das parcelas individuais, podemos chamar de Traçado Urbano” (DIAS COELHO 2013, p. 31). Traçado urbano remete assim para uma representação abstracta e bidimensional da componente pública da cidade.
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2
O João
Figura 1
Igreja de Santa Engrácia / Panteão Nacional a partir da cobertura/terraço do Terminal de Cruzeiros de Lisboa (Sérgio Proença 2018).
Foi na obra do frade trinitário Nicolau de Oliveira, o “Livro das Grandezas de Lisboa”, publicado pela primeira vez em 1620, que surgiu inicialmente esta ideia das sete colinas de Lisboa, seguramente por reflexo das sete colinas de Roma, cidade que à altura seria um ideal de urbanidade para a cultura Europeia, pelo menos no mundo católico. Seja como for, destas “sete colinas sobre as quais estava assente Lisboa: São Jorge, São Vicente, São Roque, Santo André, Santa Catarina, Chagas e Sant’Ana” (Oliveira, 1992[1620]), duas delas fazem hoje parte da freguesia de São Vicente, a saber: São Vicente, que mantém o topónimo, e Santo André, hoje a colina da Graça. Ao procedermos ao exercício de decomposição e sequente sobreposição do estrato da topografia, representado pelas curvas de nível, e do estrato do traçado urbano, uma abstração bidimensional do espaço público da cidade, tornam-se evidentes configurações coincidentes nesta parte da cidade de Lisboa. Exemplo disso é o mimetismo de linhas de festo, de linhas de água, da linha de costa ou mesmo de curvas de nível que é operado pelo traçado urbano em diferentes sequências de espaços públicos da freguesia.
2.1 festo
A ocupação primária dos festos, inicialmente por razões de defesa e controlo do território, depois pela maior salubridade associada à circulação de ventos e melhor insolação e também por razões simbólicas de prestígio e representação, na cidade deram origem a sequências urbanas lineares fruto da consolidação desses percursos matriz, como explicam Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei na sua teorização dos ciclos de ocupação do território, na qual a implantação dos percursos dos festos correspondem à primeira fase do primeiro ciclo de antropização do território (Caniggia, Maffei 2001[1979], pp.194-212). Quando observamos as colinas de São Vicente e da Graça, é também evidente o protagonismo de alguns elementos construídos não só pela sua dimensão, mas pela sua posição em pontos notáveis da topografia da colina, ao longo do festo e particularmente em promontórios dominantes do território envolvente das encostas, vales e linha de costa, e mais tarde pontuando a margem do Tejo. [fig. 02]
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Figura 2
São Vicente: topografia + traçado urbano + edificado singular (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).
Em São Vicente, os principais edifícios religiosos, igrejas e conventos, bem como alguns palácios, foram implantados nos pontos mais altos ou em limites de planaltos, pontuando o território com um conjunto de elementos polarizadores e organizadores da cidade que, invariavelmente, se encontram associados a espaços públicos excepcionais. Deste modo, largos, praças, campos, terreiros ou miradouros reflectem e expressam no traçado do espaço público a importância cívica dos edifícios singulares.
Figura 3
Casos exemplares destes elementos que sublinham os pontos notáveis mais elevados do território são a Senhora do Monte ou o Convento e Igreja da Graça, que pertencem a um festo onde a sucessão de espaços que estrutura a fixação humana na colina – o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, o Largo da Graça, a Rua da Graça e a sua sequência para norte – segue sensivelmente essa prega topográfica até ao Convento da Penha. [fig. 03]
Festo. Colinas da Graça e Penha: topografia + Senhora do Monte e Convento da Graça; traçado urbano com a rua de festo sublinhada (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).
66
A coincidência do traçado de ruas com as linhas de um conjunto de vales secundários, que enrugam através das suas incisões as encostas do território de São Vicente e o ondulam, encaixase na descrição do segundo ciclo de ocupação do território conforme foi proposto por Caniggia e Maffei (Caniggia, Maffei 2001[1979], pp. 212-223). Pela sua menor inclinação quando comparados com as encostas envolventes, os fundos de vale constituem corredores propícios para serem apropriados como percursos naturais, particularmente para deslocações a grandes distâncias, contribuindo para esta vocação a necessidade de manter a linha de vale livre para a passagem de água, ainda que ocasionalmente, o que impossibilita ou pelo menos dificulta a sua ocupação por edifícios. A utilização continuada no tempo e a progressiva edificação das margens dos percursos no fundo do vale conduziu à progressiva definição das ruas de vale como elementos urbanos lineares mais ou menos sinuosos, estruturantes dos tecidos urbanos adjacentes que se lhes seguiram, substituindo as ocupações rurais que predominavam nos fundos de vale. Na cidade de Lisboa, edificada sobre uma topografia onde alternam colinas e vales, é comum a ocorrência de traçados de ruas que mimetizam ou duplicam linhas de vale. A vocação destas ruas como canais privilegiados de mobilidade, invariavelmente estimulou o florescimento e manutenção de funções terciárias.
A intensificação da vida urbana ao longo destes eixos e a sua continuidade sequencial reforçaram o papel de elementos estruturantes dos tecidos urbanos adjacentes, sendo em alguns casos regularizadas ou duplicadas com perfis mais generosos para suportar o aumento de tráfego ou por razões simbólicas e de prestígio (Proença 2014, pp. 325, 433-439). As sequências lineares das ruas do Vale de Santo António e Diogo do Couto, da Rua da Voz do Operário e Calçada de São Vicente e a Calçada de Santo André são alguns exemplos de ruas cujo traçado mimetiza linhas de vale em São Vicente. [fig. 04] A presença dos carris e do eléctrico na Calçada de Santo André e na Calçada de São Vicente confirma a inicial vocação destas ruas como canal de mobilidade [fig. 05] e na rua do Vale de Santo António e sua sequência na rua Diogo do Couto, a relação com o Tejo no horizonte evidencia a primordial necessidade de manter estes canais livres para a passagem das águas da chuva.
Vale. São Vicente: topografia com a marcação das linhas de vale; traçado urbano com as ruas de vale sublinhadas (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).
67 2.2 vale
Figura 4
68
Figura 5
Calçada de São Vicente: os carris e a importância das ruas de vale no sistema de mobilidade (Sérgio Proença 2019).
meia encosta
A construção da cidade nas encostas de Lisboa muitas vezes procurou uma adequação recíproca entre o traçado das ruas e a forma do sítio que as acolhe. Numa colina, o percurso mais eficaz entre dois pontos na maioria dos casos não é uma linha recta mas sim uma linha sinuosa que acompanha a topografia. Este mimetismo da forma do sítio foi operado em diversos casos pelo traçado de ruas que sensivelmente acompanham uma mesma cota altimétrica ao longo da encosta ou constituem uma síntese formal do encurvamento do plano da encosta. O reconhecimento deste mimetismo é mais imediato em traçados urbanos homogéneos que em conjunto se adaptam à forma da encosta (Proença 2014, pp. 439441). No entanto, pode também ser lido no traçado de elementos singulares como no caso exemplar da Rua Damasceno Monteiro que, com uma inclinação relativamente suave, tendo em conta a topografia da encosta em que se encontra, serpenteia à volta do monte de São Gens ou da Senhora do Monte. [fig. 06]
2.4
costa
Entre as ruas que mimetizam curvas de nível, o traçado das ruas que mimetizam a linha de costa constitui um caso particular que, pela especificidade de marginar um plano de água e pelas suas características morfológicas, constitui um tipo singular. Em Lisboa, a margem do Tejo é o resultado artificial de aterros sucessivos que conformaram em cada momento a linha de costa. Apesar desse facto, e se considerarmos o Terreiro do Paço como foco, é possível identificar no traçado urbano de Lisboa, para nascente e para poente, linhas quase ininterruptas que mimetizam o contorno da ancestral linha de costa e se situam numa cota segura em relação ao nível médio das águas do Tejo, quase sempre numa dobra da topografia, quando as encostas de Lisboa encontram o plano mais ou menos de nível dos aterros portuários. Estes traçados contínuos e mais ou menos sinuosos, essenciais nas deslocações de pessoas e mercadorias ao longo da margem,
Meia encosta. Rua Damasceno Monteiro: topografia + Senhora do Monte + traçado urbano com a rua sublinhada (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).
69
2.3
Figura 6
duplicando o Tejo como infraestrutura de comunicação, consolidaram-se em ruas ao longo do tempo como resultado da repetição do uso e da edificação marginal que os acompanha. A sequencial construção do aterro portuário afastou fisicamente o rio do traçado destas ruas e progressivamente regularizou a linha de costa. Por outro lado, sobre a plataforma dos aterros foram traçadas ruas que reproduziram o princípio de referência à linha de costa e duplicaram o itinerário ribeirinho preexistente com perfis mais generosos (Proença 2014, pp. 443-445). O território da Freguesia de São Vicente estendese até ao Tejo e, consequentemente, inclui uma parte considerável dos traçados que mimetizam a linha de costa para nascente da Praça do Comércio. Neste segmento da zona ribeirinha do Tejo é possível identificar: a herança impressa do
Costa. Sucessivas ruas de costa: topografia + traçado urbano com as ruas de costa sublinhadas e Avenida Dom Afonso Henriquês, sobre o aterro, a tracejado vermelho (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).
traçado do caminho ancestral que progressivamente teve as suas margens edificadas; a duplicação regrada visível no traçado da Rua dos Caminhos de Ferro e a Rua da Bica do Sapato que entroncam com o eixo primitivo na Calçada de Santa Apolónia; e ainda o traçado da Avenida Infante Dom Henrique, entre a linha de caminho de ferro e o Porto de Lisboa. [figs. 07, 08, 09]
2.5
Adequação entre sítio e forma
Estes exemplos permitem ilustrar a partir de São Vicente os tipos de coincidências que em Lisboa permitem atestar a predominância de afinidades morfológicas entre o sítio e o traçado das ruas. Este
70
Figura 7
mimetismo do sítio operado pelo traçado urbano permitiu migrar uma ordem ancestral presente no sítio para a ordem da forma da cidade.
“A configuração de um lugar pode ter semelhanças com a de outro mas é única, cada contexto é irrepetível, logo cada rua também é criada com um carácter próprio e individual, distinto mas articulado com as restantes a partir das relações territoriais que são mimetizadas. Neste sentido, as condicionantes naturais e humanas não são entendidas como contrariedades mas como elementos de composição geradores que, em maior ou menor grau, evidenciam na forma da rua a memória do lugar.“ (Proença 2014, p.677) Uma diversidade ordenada do sítio que se reflecte na forma da cidade. Em grande medida por essa razão, qualquer passeio que se escolha fazer por São Vicente será sempre memorável.
(à direita) Figura 8
Rua dos Caminhos de Ferro, nas costas de Santa Apolónia (Sérgio Proença 2019).
Figura 9
Avenida Dom Afonso Henriques e aterro portuário no Cais de Santa Apolónia (Judah Benoliel 195-).
Arquivo Municipal de Lisboa, cota: JBN004687.
71
Um passeio por becos, escadinhas, caracóis e outras ruas Passear por São Vicente com alguma atenção às designações toponímicas dos espaços que percorremos permite-nos um outro reconhecimento da diversidade de espaços públicos que compõem a freguesia. Em outros momentos dedicámo-nos à questão da diversidade das designações toponímicas para abordar a diversidade das ruas de Lisboa (Proença 2013). No entanto, aqui interessa-nos concentrar a atenção na especificidade dos nomes dos espaços que encontramos em São Vicente. Para este exercício o foco de interesse é a designação toponímica e não o atributo toponímico. A designação reflecte as características específicas que são partilhadas entre os espaços que a ostentam, o que permite sintetizar tipos com base no significado do nome. De modo semelhante à restante cidade, a designação toponímica não resulta de uma disposição legal como acontece noutras cidades3. Deste modo, quem propõe a designação ao desenhar um novo espaço, recorre a uma sensibilidade cultural adquirida com a prática ao longo do tempo, informada pela riqueza e características dos elementos urbanos da própria cidade, cabendo depois à Comissão de Toponímia avaliar, propor e definir os atributos toponímicos.
Na freguesia de São Vicente encontramse 18 designações para 137 espaços que lhe pertencem total ou parcialmente, se excluirmos “Escolas Gerais” que apenas tem atributo toponímico. Esta distribuição acusa uma diversidade de designações oficiais significativa e, apesar de não ser tão diversa quanto as 27 designações que existem na cidade, é relativamente representativa daquela que encontramos em Lisboa. Naturalmente, a proporção das designações não reproduz aquela que encontramos na cidade, antes atesta o carácter do lugar de São Vicente4. Deste modo, e por ordem de frequência com que existem, encontramos: Rua (56); Travessa (22); Calçada (15); Beco (15); Largo (10); Escadinhas (6); Avenida (3); Arco (1); Calçadinha (1); Campo (1); Caracol (1); Costa (1); Cruz (1); Escadas (1); Miradouro (1); Outeirinho (1); Telheiro (1); e Vila (1). [fig. 10]
A predominância da designação Rua, com 56 ocorrências num total de 137 espaços, atesta a abrangência e a versatilidade da sua aplicação. No “Vocabulario Portuguez...” Raphael Bluteau, indicava uma origem imediata francesa para rua na palavra “rue”, derivada do grego “ruo” que significava o mesmo que em latim “fluo” e em português “corro”, “porque pelas ruas corre a agua da chuva, que cahe dos telhados (...) tambem a dos poços, & das fontes, que se derrama nas ruas. Tambem corre a gente as ruas, & cada hua dellas he hua corrente do povo, que vai ao seu negocio (...)” (Bluteau 1712-28) escreve que, segundo alguns etimólogos, rua chamava-se em latim “ruga” porque as ruas nas cidades fazem o mesmo efeito que na testa as rugas, dividindo o espaço que há entre as casas. Neste sentido, etimologicamente, podemos afirmar que uma rua é uma linha conformado pelo movimento humano ao longo do tempo. Uma rua é um elemento linear do espaço público, duplamente um lugar e um itinerário, um produto cultural colectivo das sociedades que o conformaram e apropriaram ao longo de gerações. No entanto, em São Vicente nem todos os espaços são ruas e se, por um lado, a forma do sítio é determinante para a conformação dos espaços, por outro, a designação toponímica parece reflectir o carácter dos espaços. Podemos então intuir que a especificidade da forma dos espaços que é gerada pela relação da forma da cidade com o suporte geográfico, também se reflecte nas designações toponímicas dos espaços. Ou seja, o modo como a forma da cidade se adequa à topografia é responsável, por exemplo, pela existência de tantas calçadas e escadinhas.
3 Por exemplo no caso da cidade de Paris existem determinações específicas para atribuição das designações aos arruamentos a partir de características morfológicas como a dimensão, o perfil e a arborização.
4 A título de exemplo podemos referir que em Lisboa encontramos tantas avenidas quanto becos e em São Vicente o número de becos ultrapassa o número de avenidas.
3
Figura 10
Nuvem de palavras da proporção das designações toponímicas da freguesia de São Vicente (Sérgio Proença 2019).
72
Apesar de actualmente a escrita ser cada vez mais estenográfica e até hieroglífica, conhecer a etimologia e significado das palavras permanece essencial para comunicarmos e também para a compreensão das designações toponímicas dos espaços. Podemos então percorrer as designações de um conjunto de espaços de São Vicente que de algum modo constituem referências memoráveis e exemplares para a descodificação desta relação entre a designação e a forma dos elementos públicos da cidade: arco, beco, calçada, campo, caracol, escadinhas e miradouro.
3.1
arco
Junto à Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora encontramos o Arco Grande de Cima. A palavra arco tem origem na latina arcus, proveniente do ProtoIndo-Europeu arcw, e referia-se à arma que disparava a flecha. No contexto disciplinar da Arquitectura e do Urbanismo, designa uma forma geométrica linear, uma porção de circunferência, uma curva, que serve de directriz a um arco estrutural. Por outro lado, também designa o próprio elemento estrutural que cobre um vão, quase sempre com uma forma curva simples ou composta (Rodrigues, Sousa, Bonifácio 1996 pp.36-39).
A designação de arruamentos como Arco é uma extensão da designação do elemento construtivo presente, que caracteriza a imagem do espaço, para o elemento do espaço público.
Caso não existisse o arco, o topónimo Rua Direita de São Vicente poderia facilmente estender-se para nascente ao longo do Arco Grande de Cima. No caso de Lisboa, a maior parte dos Arcos existentes correspondem a antigas portas das muralhas da cidade e o Arco Grande é exemplo desta herança física, neste caso localizado sensivelmente onde existia a primitiva Porta de São Vicente da Cerca Fernandina. [fig. 11]
3.2
beco
A origem da palavra beco provavelmente estará na adição do sufixo pejorativo -eco à palavra latina via, portanto designaria uma rua de segunda categoria, cuja evolução da língua e por corruptela terá gerado a palavra beco. Actualmente a designação Beco corresponde a rua estreita e curta, escura e por vezes sem saída, o que contribui para a confirmação da sua origem. Os becos são arruamentos capilares do traçado urbano da cidade que invariavelmente partilham essas características. A posição secundária em relação aos restantes espaços da cidade e ao servirem quase exclusivamente edifícios habitacionais gera apropriações quase domésticas do espaço público, como extensão dos edifícios limítrofes. Os 15 becos que encontramos em São Vicente constituem uma amostra da diversidade morfológica destes elementos, desde os casos que não têm saída, como o Beco dos Peixinhos [fig. 12], até aqueles que constituem percursos alternativos à estrutura principal do traçado urbano, por vezes mais imediatos e completamente pedonais, como o Beco dos Lóios. [fig. 13]
73
Figura 11
Arco Grande de Cima ou Arco Grande de São Vicente (Eduardo Portugal 194-) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: EDP000815.
Figura 12
Beco dos Peixinhos (Artur João Goulart 1964-06) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: A44881.
74
Figura 13
Beco dos Lóios (Fernando Martinez Pozal 191-) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: POZ000383.
3.3 calçada
A designação calçada tem origem na palavra calcere que significa pavimentar com cal, um meio relativamente simples e económico utilizado para estabilizar o solo e aumentar a sua capacidade de carga sem desagregar. A pavimentação em pedra consistiu numa evolução natural deste tipo de pavimentação que herdou a designação. A excepcionalidade dos primeiros arruamentos que receberam este tipo de pavimentação fez com que recebessem o nome do tipo de pavimento: calçada. Gomes de Brito, nas suas Ruas de Lisboa (Gomes de Brito 1935, vol. 3, p.13) refere que existiriam três categorias iniciais de arruamentos – becos, travessas e ruas – tendo a designação calçada ganho independência no correr dos tempos quando as “rua da calçada” perdem a designação “rua”. No “Sumário...” de Cristóvão Rodrigues de Oliveira [Rodrigues de Oliveira 1987[1551]), de meados do século XVI, ainda existiam alguns arruamentos que tinham a designação “Rua da calçada” seguido do atributo toponímico, como a Rua da Calçada de Nossa Senhora do Monte, o que demonstra a novidade e excepcionalidade da pavimentação do espaço público nesse período. Na verdade, a pavimentação no reinado de Dom Manuel tinha iniciado
pelos espaços e percursos principais e arruamentos mais inclinados, que permitiam ligar a Ribeira às colinas de São Francisco e São Jorge (Carita 1999, p. 60)
Actualmente o significado de calçada é rua ou caminho empedrado, rua ladeirada ou inclinada, e também designa o conjunto das pedras que formam um tipo pavimento construído a partir de pequenos paralelepípedos de pedra justapostos. As 15 calçadas que existem em São Vicente correspondem a percursos de pendente acentuada, como a Calçada dos Barbadinhos [fig. 14], por vezes coincidentes com linhas de água como a Calçada de São Vicente, origem da essencial necessidade de pavimentar estes arruamentos para evitar a desagregação da sua superfície por erosão das águas da chuva.
3.4 campo
Campo designa um espaço amplo e aberto que no caso do único campo de São Vicente, o Campo de Santa Clara, se situava fora do limite da cidade, à saída da Porta de São Vicente e do Postigo do Arcebispo da Cerca Fernandina. Estes espaços que se situavam no exterior das muralhas, campos, terreiros
75
Figura 14
Calçada dos Barbadinhos em 1900. Arquivo Municipal de Lisboa, cota: FAN003194.
ou rossios, cada qual com as suas especificidades, eram tradicionalmente utilizados para a troca de bens, evitando desse modo as taxas aduaneiras que se praticavam ao entrar e transacionar na cidade. A memória desta vocação do Campo de Santa Clara enquanto espaço de trocas comerciais permanece na realização bissemanal da Feira da Ladra, em contínuo desde o final do século XIX, apesar desta feira descender da que se realizava desde o século XIII no Chão da Feira, junto às portas do Castelo de São Jorge, tendo depois sido realizada em diferentes espaços da cidade até se ter fixado definitivamente neste local. [figs. 15, 16]
3.5 caracol
A palavra caracol remete para a ideia de espiral e, quando designa um arruamento, tem o significado de caminho em ziguezague num terreno inclinado. Caracol é um caso excepcional de um arruamento que conecta cotas muito distintas, ziguezagueando em sucessivos lanços de rampas ou escadas que vencem as descontinuidades da topografia. A composição de elementos rectos dispostos em ângulos mais ou menos acentuados resulta num traçado complexo e ziguezagueante, encaracolado e encaixado na topografia. [fig. 17]
O Caracol da Graça, único Caracol que subsiste na cidade de Lisboa5, teve a sua origem num caminho de pé posto que serpenteava a encosta da Graça, abaixo do Convento, e ligava o Postigo do Caracol da Graça ao arrabalde da Mouraria, de modo mais imediato do que o percurso pela Porta de Santo André. A sua posição relativamente secundarizada em relação aos percursos principais da encosta e ser ladeado exclusivamente por habitações e muros fez com que o Caracol da Graça tivesse apropriações de alguma domesticidade no seu espaço, como vasos de flores e roupa estendida. O recente aumento do turismo e a abertura do Jardim da Cerca da Graça integraram-no em circuitos mais frequentes, tomando partido da atmosfera pitoresca e enquadramento das vistas que a partir dele se podem tomar.
5 Na cidade de Lisboa existiram, pelo menos, outros dois Caracóis: o Caracol do Carmo, desaparecido com os efeitos do terramoto e reconstrução setecentista da Baixa e do Chiado; e o Caracol da Penha, cuja toponímia foi alterada e desde o final do século XIX é designado por Rua
76
Marques da Silva.
Figura 15 Campo de Santa Clara / Feira da Ladra (Judah Benoliel 1959)
Arquivo Municipal de Lisboa, cota: JBN005029.
Figura 16 Campo de Santa Clara / Feira da Ladra Ladra (Judah Benoliel 1959) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: JBN005026.
Figura 17 Caracol da Graça (Fernando Martinez Pozal 1945 nat.) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: POZ000288.
Em São Vicente encontramos uma única Cruz, a de Santa Helena. Santa Helena era a mãe de Constantino, o primeiro imperador Romano católico, que teria ido em peregrinação à terra santa e encontrado a cruz onde Jesus Cristo foi crucificado. Ou seja, podemos estar em presença de um arruamento sem designação toponímica, apenas com atributo toponímico. No entanto, neste caso, Cruz pode ser a designação e significar o encontro e intersecção de caminhos. A Cruz de Santa Helena é um topónimo com uma longevidade considerável e já estava presente na representação de Lisboa de João Nunes Tinoco. A sua posição, na intersecção do percurso de vale constituído pela Calçada de São Vicente com um caminho sensivelmente de nível que corre desde o Campo de Santa Clara, abaixo da plataforma de São Vicente, onde existia o Postigo do Arcebispo, e que a partir deste ponto bifurca para as Escolas Gerais ou para a Calçadinha do Tijolo, parece suportar a hipótese da Cruz, neste caso, designar o encontro de caminhos. [fig. 18]
3.7
escadinhas
A existência de escadinhas numa topografia relativamente acentuada como a de São Vicente é expectável.
A designação destes arruamentos é um reflexo dos elementos que compõem o plano do chão, uma sucessão de degraus que configuram uma escada de dimensão e número variável de lances e degraus. As Escadinhas cumprem sempre com um mesmo propósito: suprir a necessidade da existência de percursos rápidos e directos entre níveis altimétricos muito distintos em colinas que têm declives acentuados. O traçar de percursos lineares perpendiculares às pendentes gera elementos urbanos muito inclinados cujo plano do chão, para ser melhor praticável, é resolvido com degraus, dando origem a escadas ou escadinhas.
A referência a uma escada designando um sítio em Lisboa parece recuar ao século XV e a escadinha ao século XVI (Pastor de Macedo 1942, vol. III, p. 119, vol. IV, pp. 178-179). No entanto estas designações parecem ter entrado em uso mais corrente apenas quando estes arruamentos, normalmente ladeirentos, receberam a definição do plano do chão com a pavimentação em degraus. Nas designações presentes na cartografia de João Nunes Tinoco, por exemplo, não se encontra qualquer escada ou escadinha, e alguns arruamentos lisboetas com origem anterior apenas receberam a designação Escadinha já no século XIX (Pastor de Macedo 1942 vol. III, p. 34, vol. IV, p. 134, 203). São Vicente conta mesmo com Escadinhas já construídas no início do século passado, como as Escadinhas do Bairro América. [fig. 19]
77 3.6 cruz
Figura 18
Cruz de Santa Helena (Sérgio Proença 2019)
Figura 19
Escadinhas do Bairro América (Fernando Martinez Pozal s/d) Arquivo Municipal de Lisboa, cota: POZ000394.
miradouro
Uma colina pressupõe um domínio sobre a paisagem envolvente e, em São Vicente, são diversas as vistas e enquadramentos que podemos tomar sobre Lisboa. A singular conformação da cidade de Lisboa sobre esta topografia característica em que montes e vales se sucedem deu origem a espaços excepcionais cujo principal propósito é justamente permitirem olhar sobre a paisagem, vistas e enquadramentos memoráveis. A palavra miradouro, literalmente uma vista de ouro, portanto um enquadramento belo, não poderia estar mais adequada à designação destes espaços cuja ocorrência oficial singular em São Vicente é o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, no adro da igreja do Convento da Graça, mas outros espaços como o Largo da Senhora do Monte com o miradouro da Senhora do Monte bem ilustram a categoria. Em Lisboa, estes espaços têm a particularidade de não só possibilitarem tomar uma perspectiva significante sobre a cidade, como também a explicam a partir dos painéis de azulejos que duplicam e legendam a vista para quem observa esta representação.
A utilidade da beleza
Na sociedade actual tudo parece necessitar de quantificação para ter o reconhecimento da sua utilidade, como caricaturou Afonso Cruz no livro “Vamos comprar um poeta” (Cruz 2016). Talvez por essa razão seja cada vez mais importante caminhar através dos espaços da cidade e fruir as sucessivas vistas que tomamos sobre Lisboa, confirmando a intemporal utilidade de contemplarmos a beleza desta paisagem, que os miradouros tornam especialmente evidente. Uma contemplação que permite reconhecermo-nos na própria cidade. [fig. 20]
78 3.8
4
Figura 20 Miradouro / Largo da Senhora do Monte (Sérgio Proença 2019)
(1980). "Diário de Lisboa", nº 20183, Ano 59, Sábado, 16 de Fevereiro de 1980, pp. 1 e 24. Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. Acedido em 2020-05-05 em http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_2614 (1983). "Diário de Lisboa", nº 21320, Ano 63, Sábado, 3 de Dezembro de 1983, pp. 1 e 6. Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. Acedido em 2020-05-05 em http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_1661
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79
New education, popular education and social regeneration: two cases in the lisbon neighborhood of Graça
(Escola Oficina nº 1 and a Voz do Operário)vincent’s perish
Escola nova, educação popular e regeneração social: dois casos no bairro lisboeta da Graça
(Escola Oficina nº 1 e a Voz do Operário)
Este texto propõe-se apresentar uma síntese histórica da trajetória de duas instituições educativas situadas na atual freguesia de São Vicente, a Escola Oficina Nº 1 e A Voz do Operário, enfatizando o contributo de ambas tanto para a promoção da educação popular como para o desenvolvimento de práticas educativas inovadoras. Embora uma e outra tenham raízes no final do século XIX, mantendo-se uma delas ativa ainda hoje e permanecendo o edifício da outra como um lugar de memória da Educação Nova, daremos aqui uma particular atenção às décadas iniciais do século XX.
Educação nova
Introdução
regeneração social
Educação popular inovação
lugar de memória
Os anos finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX constituíram um período em que podemos testemunhar a existência de um grande investimento na chamada educação popular. As inúmeras iniciativas então desenvolvidas tiveram como impulsionadores sectores diversos como o republicanismo, a maçonaria e o operariado, entre outros. Esse foi igualmente um momento central da divulgação, em Portugal, de um conjunto de ideias educativas inovadoras no âmbito de um movimento internacional que ficou conhecido pela expressão Educação Nova. A Escola Oficina Nº 1 de Lisboa, cujo grande inspirador foi Adolfo Lima, foi, porventura, a mais exemplar de entre as experiências escolares diferentes ou alternativas que então se desenvolveram. Nela se juntaram, em curiosa sintonia, o impulso educativo de raiz maçónica, um radicalismo pedagógico e social de conotação libertária e as novas conceções e práticas educativas nesse momento em voga.
This text proposes to present a historical synthesis of the trajectory of two educational institutions located in the current parish of São Vicente, Escola Oficina Nº 1 and A Voz do Operário, emphasizing the contribution of both for the promotion of popular education and for the development of innovative educational practices. Although both have roots at the end of the 19th century, one remains active today and the building of the other remains a place of memory for New Education, we will pay particular attention to the early decades of the 20th century.
New education
Popular education
social regeneration
innovation place of memory
80
Figura 1
Adolfo Lima
Joaquim Pintassilgo
Por outro lado, mesmo não sendo tão paradigmáticas, as inúmeras escolas bem cedo fomentadas ou enquadradas pela Voz do Operário, uma associação criada pelos operários tabaqueiros, testemunham o impressionante esforço feito pelo operariado mais consciente para promover uma regeneração social tendo como ponto de partida a escolarização das crianças portuguesas oriundas dos meios populares no âmbito de um projeto mais vasto de assistência social. É sobre estas duas instituições, ambas pertencentes à atual freguesia de São Vicente, bem como o contexto em que elas evoluíram, que este texto se debruçará. Uma delas, a Voz do Operário, continua em pleno funcionamento; outra, a Escola Oficina, viu a sua atividade suspensa nos anos 80 do século XX, ainda que o seu espaço, hoje um verdadeiro “lugar de memória” da Educação Nova em Portugal, esteja em fase de revitalização, aí decorrendo outras atividades de natureza cultural e educativa. Se lhes associarmos mais algumas instituições educativas que aí existem (ou já existiram), como o antigo Liceu (hoje Escola Secundária) de Gil Vicente, bem podemos considerar o tradicional bairro da Graça como um verdadeiro “bairro educador”.
A Escola Oficina Nº 1 de Lisboa: A grande referência da Educação Nova em Portugal
Aquela que foi a mais famosa (mesmo em termos internacionais), e mais visitada, das escolas portuguesas no período republicano é hoje bem conhecida, tendo já sobre ela incidido um conjunto de importantes trabalhos de investigação. Importa destacar, acima de todos, a excelente tese de doutoramento (depois livro) de António Candeias (1994), significativamente intitulada Educar de outra forma, e que se dedica ao estudo do período áureo da instituição (1905-1930). Para além de a enquadrar no seu contexto e de ter em conta a influência que nela teve o pensamento anarquista, o autor analisa a forma como essa influência se conjugou com as ideias pedagógicas características do movimento da Educação Nova, dando origem àquilo que ele designa por modelo educativo libertário. O principal impulsionador da renovação da escola foi o intelectual e educador libertário Adolfo Lima, cuja figura atravessa as páginas da obra a par de outros protagonistas maiores como Luís da Matta, César Porto, António Lima ou Deolinda Lopes Vieira Quartim.
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Figura 2
Rua Voz do Opeário. Escola Oficina Nº1. c. 1910. Ft. Alberto Carlos Lima. AF-CML
O autor estuda, para além da trajetória da escola, muito em particular, a evolução dos planos de estudo; as regras, as práticas e o quotidiano; a opção pela coeducação e o sistema de autonomia dos alunos aí implementado, na perspetiva do então chamado selfgovernment escolar, corporizado numa associação denominada “Solidária”; e as aprendizagens dos alunos, através do exemplo das ciências da natureza. Uma outra obra a abordar a história da Escola Oficina Nº 1 é o livro (anteriormente uma dissertação de mestrado) de Manuel Henrique Figueira (2004) intitulado Um Roteiro da Educação Nova em Portugal. O autor recorre ao espólio de Álvaro Viana de Lemos, que se encontra à guarda do Movimento da Escola Moderna, para elaborar um roteiro do que considera ser, entre o final do século XIX e os anos 30 do século XX, um conjunto de 12 escolas novas (ou que poderiam ser consideradas como tal), uma delas a Escola Oficina Nº 1. Na segunda parte do trabalho o autor aborda o que considera serem práticas pedagógicas inovadoras, sendo selecionadas quatro: os trabalhos manuais educativos; a correspondência interescolar; a imprensa escolar; e o cinema educativo. No capítulo específico sobre a Escola Oficina Nº 1 - que inclui um conjunto amplo de fotografias - é feita uma apresentação geral da escola e dos seus princípios pedagógicos. Importa referir, ainda, o capítulo sobre a Escola Oficina Nº 1 inserido numa obra coletiva resultante de um projeto de investigação dedicado a um conjunto de escolas diferentes no Portugal do século XX – o projeto INOVAR: Roteiros da inovação pedagógica. Nesse capítulo, que é da autoria de Maria João Mogarro e de Alda Namora de Andrade (2019), são apresentados os espólios arquivístico e patrimonial da escola, é caracterizado o seu projeto educativo, são identificados os professores e as publicações, referidos os alunos e a sua associação, para além de ser analisado o quotidiano e os valores e regras que o permeavam. As raízes da Escola Oficina Nº 1 mergulham no século XIX, mais concretamente em 1876, ano em que é criada a Sociedade Promotora de Creches, uma associação para-maçónica; a iniciativa partiu das lojas Sementeira e José Estêvão. Inicialmente localizada em Alfama, a creche então criada passou para o novo edifício do largo da Graça depois de este ser construído, o que ocorreu entre 1877 e 1878. Em 1903 a creche foi encerrada e em 1904 a Sociedade muda o seu nome para Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas, dando conta da maior ambição que passava a caracterizar o projeto. Em 1905 é, então, criada a Escola Oficina Nº 1 de Lisboa. Inicialmente localizada na Rua de São João da Praça, à Sé, a escola passa no ano seguinte para o edifício da Graça onde permanecerá até 1987. Seguindo a sistematização de António Candeias (1994), podemos considerar a existência de 4 fases
distintas da vida da escola. Entre 1905 e 1907 ela apresenta-se como uma escola ainda relativamente tradicional, com um caráter profissional, em particular nas áreas da carpintaria e da marcenaria, e destinada às crianças pobres do bairro da Graça. Em 1907 inicia-se a revolução pedagógica inspirada principalmente por Adolfo Lima e que conduz à implementação e consolidação do já referido modelo libertário de educação, que teve por base os planos de estudo de 1907 e 1912 que procuraram pôr em prática os princípios da Educação Nova. Adolfo Lima permaneceu na escola até 1914 e Luís da Matta até 1918. É esta a fase mais dinâmica da vida da escola, reconhecida como uma instituição de referência e amplamente visitada por políticos e educadores portugueses e estrangeiros. Entre 1918 e 1930 a escola conhece, segundo o mesmo António Candeias, uma fase de menor exuberância, ainda que mantendo o essencial do modelo pedagógico e muitos dos seus professores, e em que se vão avolumando os problemas de natureza financeira. A partir de 1930, com a Ditadura Militar, inicia-se uma nova fase em que a escola retorna a um registo mais acomodado, apesar de manter algumas das suas características, e que irá durar até à sua extinção em 1987, já em período democrático. Em 1941, em pleno Estado Novo, a coeducação, uma das suas marcas mais originais, é proibida e as oficinas, igualmente um dos seus ex libris, são encerradas. A escola torna-se uma escola primária destinada ao sexo feminino e tendo como público-alvo as jovens oriundas das camadas populares da Graça. Curiosamente, ao longo da sua trajetória de mais de oito décadas, a escola esteve sempre nas mãos da mesma entidade, a qual mudou o seu nome, em 1913, para Sociedade Promotora de Escolas, designação que se manteve até hoje, continuando ainda a ser a proprietária do imóvel e mantendo a sua ligação ao Grande Oriente Lusitano, a mais antiga das organizações maçónicas existentes em Portugal. Um aspeto interessante, também notado por António Candeias, é o facto da concretização do projeto da escola ter resultado da improvável confluência entre maçons, os proprietários da escola, e anarquistas, os seus professores mais influentes.
A designação Escola Oficina que lhe foi atribuída dá conta, de alguma maneira, de duas das particularidades da escola. Ela vai manter, na sua fase de apogeu, o caráter de escola profissional com que foi fundada e, por outro lado, os trabalhos manuais, desenvolvidos nas oficinas da escola, vão transformar-se numa das atividades curriculares mais importantes, na perspetiva da educação integral e dos métodos ativos defendidos pela Educação Nova. Sendo uma escola primária, a Escola Oficina Nº 1 assumiu-se, desde cedo, como uma espécie de escola primária “de continuação”, para usar uma expressão cara a António Sérgio, aproximando-se
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da ideia de Escola Primária Superior que a República procurou (sem grande sucesso) concretizar, ou seja, era uma escola primária prolongada; em 1912 a duração do seu curso, que era de 6 anos, passou para 8 anos. Em relação ao número de alunos, podemos seguir os dados apresentados por Manuel Henrique Figueira (2004) para a fase inicial de vida da escola para ter em conta qual era a sua escala: 20 alunos em 1905; 35 em 1907; 60 entre 1908 e 1910; 70 em 1911; 80 em 1912 e 1913; 119 em 1914; 120 em 1916; 151 em 1917. Ou seja, o número de alunos não era muito elevado em linha com o que era habitual nas escolas novas que possuíam um baixo rácio professor-aluno. O período letivo, diferentemente do que acontecia com as outras escolas, correspondia ao ano civil (janeiro a dezembro), não havendo as habituais férias escolares. No seu lugar existiam atividades educativas mais informais como excursões, colónias de férias, passeios e visitas de estudo. No que se refere ao espaço, a escola ocupava o edifício de dois amplos pisos que hoje podemos observar e possuía ainda um quintal de 600m2 onde se realizavam algumas das atividades educativas. O interior surge hoje transformado em relação à estrutura de então. Possuía 5 salas de aula; 1 sala de desenho; 2 oficinas (marcenaria, modelação e talha); ginásio/salão de festas com palco;
laboratório-museu; e biblioteca escolar. Tinha, ainda, várias instalações de apoio como o posto médico, o refeitório e a cozinha, horta e zona de criação de animais (Figueira, 2004).
A diversidade e a qualidade dos espaços eram coerentes com um projeto educativo que ambicionava a educação integral dos alunos. Como se diz no Plano de Estudos para a Escola Oficina Nº 1 de 1906/07, “desta correlação e simultaneidade de funções resulta necessária a simultaneidade da educação nos aspetos em que é uso classifica-la: físico, intelectual e moral […]. A educação deve pois ser integral, isto é, abranger todas as faculdades do homem – e fazer-se duma maneira simultânea” (citado em Candeias, 1994, p. 210). Essa conceção implicava a valorização de um conjunto de áreas educativas cuja presença era, à época, pouco habitual nas escolas. Uma das mais valorizadas eram os trabalhos manuais os quais tinham um fim educativo e não meramente profissional. Em artigo publicado em 1924 na revista Educação Social, por ele dirigida, e onde compara os famosos 30 princípios das Escolas Novas, propagandeados por Adolphe Ferrière, com as práticas desenvolvidas na Escola Oficina Nº 1, Adolfo Lima enfatiza a importância que a carpintaria deveria assumir
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Figura 3
Largo da Graça. Escola Oficina Nº1. 2020 Ft. José Vicente. AF-CML
entre os trabalhos manuais e justifica-a com os seguintes argumentos: “Entre os trabalhos manuais, a carpintaria ocupa o primeiro lugar, porquanto desenvolve a habilidade e a firmeza manual, o sentido da observação exata, a sinceridade e a posse de si”. E acrescenta: A cultura do solo e a criação de pequenos animais entram na categoria das atividades ancestrais, que toda a criança gosta e deve ter ocasião de exercer. O conhecimento direto da natureza viva serve de preliminar ao conhecimento da natureza humana” (Lima, 1924, p. 279).
Destaque-se, por um lado, a importância que a ideia de natureza tem no âmbito da Educação Nova e, por outro lado, a relevância assumida pelos trabalhos manuais, que é justificada pelo valor educativo que lhe é atribuído, tanto no plano da motricidade fina como no dos valores e atitudes. Nesta ótica, os trabalhos manuais apetrecham os alunos com, diríamos hoje, competências para a vida. Segundo o testemunho do mesmo Adolfo Lima, “a oficina de carpintaria da Escola Oficina Nº 1 era frequentada diariamente por todos os alunos de um e outro sexo” (Lima, 1924, p. 279). Igualmente importantes na escola eram as atividades nas áreas da educação física e da educação estética. No já referido artigo, Adolfo Lima defende “a cultura do corpo”, que deve ser assegurada “pela ginástica natural feita ao ar livre” e por “viagens a pé e de bicicleta” (Lima, 1924, p. 279), e considera que a escola “deve ser um meio de beleza”, sugerindo para tal o recurso à música coletiva, ao canto, à orquestra e ao teatro escolar (Lima, 1924, p. 281). Registe-se o facto dele próprio ser autor de diversas peças que foram encenadas na escola. Ao nível da educação intelectual, o currículo da escola incluía igualmente um conjunto diversificado de disciplinas, algumas delas nada usuais no tradicional ensino primário, como Francês, Inglês e Ciências, para além de Sociologia, no caso lecionada pelo próprio Adolfo Lima. Segundo ele, devia evitar-se “uma acumulação de conhecimentos memorizados”.
“Os exames que se faziam na escola no fim de cada ano letivo, finalmente, foram abolidos por completo e substituídos por exposições dos trabalhos dos alunos, efetuados durante o ano” (citado em Candeias, 1994, p. 257). Caminhava-se, assim, no sentido de um ideal de avaliação contínua. Como muitas outras escolas inovadoras, a Escola Oficina Nº 1 exibia publicamente, no final do ano escolar, os trabalhos dos seus alunos como uma forma de publicitar a excelência dos resultados obtidos (Mogarro & Andrade, 2019). Muito característico da Educação Nova foi, igualmente, o sistema de educação moral através do chamado selfgovernment, que Adolfo Lima preferia designar por “autonomia dos escolares”. Segundo ele, a educação moral “deve exercer-se, não de fora para dentro, pela autoridade imposta, mas de dentro para fora, pela experiência e pela prática gradual do senso crítico e da liberdade” (Lima, 1924, p. 281). Quer dizer, as crianças e jovens deveriam aprender a ser cidadãos através da prática concreta da cidadania, em pequena escala, no microcosmos que era a própria escola. Passando a exemplificar, o autor considera que “entre nós este regime é realizado pelas associações escolares denominadas ‘Solidárias’, inovação da Escola Oficina Nº 1, e depois espalhadas por alguns outros estabelecimentos educativos” (Lima, 1924, p. 281).
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A educação intelectual a promover deveria assentar no “espírito crítico” e no “método científico”, ter por base “factos e experiências” e resultar da “observação”, dos “interesses espontâneos” e da “atividade pessoal” dos alunos (Lima, 1924, pp. 279-280). Encontramos aqui alguns dos grandes princípios da Educação Nova, em particular a defesa de um ensino intuitivo e ativo. A formação na área profissional foi, igualmente, muito diversificada; dependendo dos momentos, podíamos encontrar cursos de entalhador, marceneiro, escultorestucador, artes culinárias, manufatura de flores artificiais, construção de mobiliário, entre outros (Figueira, 2004). Em coerência com a pedagogia alternativa que se procurava desenvolver na escola, mudaram também radicalmente as formas de avaliação, algo que surge destacado no Relatório do Conselho Escolar de 1909/10:
Na «Solidária» da Escola Oficina nº 1 os alunos escolhiam os seus dirigentes que se responsabilizavam pela gestão de um conjunto de atividades que estavam organizadas em secções; algumas das mais importantes foram: Lanche Escolar, Desportiva, Dramática, Capoeiras e Pombal, tendo existido em alguns momentos secções de Dança, Ciclismo, Natação e Excursões (Mogarro & Andrade, 2019).
Em síntese, a Escola Oficina nº 1 de Lisboa foi a experiência educativa que, no caso português e nas primeiras décadas do século XX, se revestiu de maior exemplaridade à luz do paradigma das Escolas Novas usufruindo, durante cerca de duas décadas, de um grande prestígio tanto em termos nacionais como internacionais. Essa consciência do que representava a escola a esse nível, um modelo para o futuro, está bem presente nos discursos dos atores que lhe davam vida, sendo um exemplo disso o excerto a seguir apresentado do Relatório do Conselho Escolar do ano de 1910/11:
O que choca e provoca a surpresa agradável que a Escola oficina Nº 1 oferece aos estudiosos que a têm visitado […] é sobretudo a atmosfera de justiça, de liberdade e de alegria que se respira em toda a escola. É um quid pelo qual a escola se distingue das demais. […] É que a Escola Oficina é antes de tudo, para o visitante, qualquer coisa de ideal, qualquer coisa para que se caminha, qualquer coisa que deve ser assim. Este ideal está em que ela traduz as aspirações pedagógicas e sociológicas modernas do que deve ser a escola primária do futuro, o tipo para que tende a escola. (citado em Candeias, 1994, p. 281
A Voz do Operário: associativismo, educação e assistência
A Voz do Operário é, sem dúvida, a mais grandiosa das instituições ligadas à história do movimento operário português. Tendo nascido no final do século XIX, mantém-se ainda hoje em atividade possuindo uma história muito rica, em particular no terreno educativo, ainda que a sua atividade não se reduza a essa vertente. Possuímos já várias obras sobre a história e a atualidade das escolas de A Voz do Operário, de entre as quais passamos a destacar quatro. A dissertação de mestrado de Ramiro Lopes (1995) representa, a este nível, um papel pioneiro. A investigação tomou o jornal da Sociedade como fonte privilegiada e delimitou como objeto de estudo o período de meio século entre 1883 e 1933, procurando articular a história da instituição com a das suas atividades nas áreas da educação e da assistência. A tese de doutoramento de Pascal Paulus (2013) decorre de uma investigação sobre uma das escolas de A Voz do Operário, a escola da Ajuda, sendo estudada uma década da sua atividade (1986-1995). O título, Uma outra forma de fazer escola, expressa
a preocupação do autor de olhar para a forma escolar alternativa que a escola procura corporizar tendo como referência o modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna.
Em 2018, por ocasião do que se considera serem os 135 anos da história de A Voz do Operário, é publicada uma obra comemorativa, da autoria de Alberto Franco (2018), que procura acompanhar a trajetória histórica da instituição até aos nossos dias. Trata-se de uma edição de qualidade, com abundantes imagens, e que dedica bastante atenção à ação educativa d’A Voz. Queremos, finalmente, destacar um artigo publicado já no presente ano, da autoria de Filomena Bandeira (2020), no âmbito do projeto INOVAR, o qual pretendia fazer a história de um conjunto de cerca de duas dezenas de escolas diferentes, sendo uma das entidades escolhidas A Voz do Operário. A autora enfatiza um dos momentos em que o investimento na inovação educativa é mais visível na instituição, o período de transição entre os anos 20 e os anos 30, marcado pela elaboração de um novo programa pedagógico e pela reforma dos serviços escolares.
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Figura 4 Sociedade de Instrução e Beneficência “A Voz do Operário”. c. 1910. Ft. Joshua Benoliel. AF-CML
A Voz do Operário começa por ser o jornal com esse nome, cujo primeiro número tem a data de 11 de outubro de 1789, sendo apresentado como Órgão dos Manipuladores de Tabacos. Logo aí, Custódio Brás Teixeira, um dos impulsionadores da publicação, afirma que um dos seus objetivos é “concorrer para a educação profissional e moral da classe operária e instrução do povo” (citado em Lopes, 1995, p. 100). Ou seja, reconhece-se, à partida, a intencionalidade educativa da iniciativa bem como o público a que se destina, o operariado e o povo. Tendo em vista a sustentabilidade financeira do projeto, em 1883 é criada a Sociedade Cooperativa A Voz do Operário, a qual, em 1889, assume a designação por que hoje é conhecida: Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário. Esta opção é muito significativa e dá bem conta das duas grandes finalidades da Sociedade tal como se começavam a vislumbrar: a instrução, em particular no que se refere ao combate ao analfabetismo que surgia como a grande barreira à dignificação social do operariado e do povo em geral; a assistência aos sócios, em correspondência com a tradição do associativismo oitocentista. No caso, esta vertente começa por ter uma forte expressão no apoio dado à realização dos
funerais dos sócios, alargando-se mais tarde a outras áreas. Desde o início da Sociedade que é formalizada uma divisão entre “sócios efetivos”, os tabaqueiros, e “sócios auxiliares”, pertencentes a outros grupos socioprofissionais. Estes últimos podiam participar nas assembleias mas sem direito de voto nas decisões a tomar. Esta opção, que mantinha a direção da Sociedade nas mãos dos tabaqueiros, foi um fator de divisão, em particular em alguns momentos, e só ficou resolvida nos em 1925 com a anulação dessa distinção. No ano anterior, em 63590 sócios, apenas 281 eram “efetivos”, havendo 63300 “auxiliares” (Lopes, 1995). Do ponto de vista político, confluem na Sociedade, segundo Filomena Bandeira (2020), “militâncias e sensibilidades socialistas, anarquistas, sindicalistas e republicanas. E em todas elas existiam elementos pertencentes à organização maçónica” (p. 190).
Na transição do século XIX para o século XX parece ser predominante a proximidade para com o ideário socialista, ainda que isso não seja claramente explicitado. Em 1891 é inaugurada a primeira aula para crianças do sexo masculino e dois anos mais tarde, em 1893, é inaugurada a sua equivalente para o sexo feminino,
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Figura 5 Sede da Sociedade de Instrução e Beneficiência “A Voz do Operário”. 1975. Ft. Emídio Santana. AF-CML
para além de aulas noturnas para adultos. Verificamos, partir daí, um grande aumento do número de sócios o que vai implicar necessidades crescentes em termos de escolas. Em 1894, num momento em que tinha cerca de 11000 associados, a Sociedade possuía 4 escolas “privativas” mas, a partir do ano seguinte, assume a opção de contratar com proprietários de escolas privadas o acesso a lugares nessas mesmas escolas de filhos de sócios; são as chamadas “escolas de contrato”. É com base nestas últimas que a rede se expande. Em 1905 havia perto de uma centena de escolas, porventura o seu número mais elevado, e no início da 1ª República eram cerca de sete dezenas (Tavares & Pimenta, 1987). Nesse momento a Sociedade tinha mais de 50000 sócios. São números verdadeiramente impressionantes, em particular se os virmos à escala da época. Entre os anos de 1930 e 1950 o número de escolas tendeu a não ultrapassar as quatro dezenas (Bandeira, 2020). Esta opção, se representou um bom contributo para a escolarização das crianças portuguesas, teve, no entanto, alguns efeitos perversos. As condições de funcionamento das “escolas de contrato” nem sempre eram exemplares e, não obstante a contratualização, escapavam ao controlo da Sociedade que, em vários momentos, se viu obrigada a pôr termo a esse vínculo. Segundo a opinião de Ramiro Lopes (1995), a opção, que ele designa por “escolaridade extensiva”, implicava uma aposta na alfabetização, em termos quantitativos, mas com prejuízo da qualidade do ensino ministrado e de um eventual caráter alternativo das escolas operárias em relação ao ensino oficial, tido por “burguês”. As escolas de A Voz do Operário subordinavam-se às normas e aos programas do ensino oficial, de modo a não prejudicar os resultados nos exames públicos e o reconhecimento dos diplomas dos seus alunos. Entretanto, segundo o referido autor, “o ensino ministrado nas escolas da Voz mantém-se, ao longo dos anos, rotineiro, elementar e subordinado ao sistema de ensino oficial” (Lopes, 1995, p. 129), uma situação que se manterá até meados dos anos 20. Um elemento importante a ter em conta, na trajetória da Sociedade entre a segunda e a terceira décadas do século XX, é o enorme investimento feito num edifício próprio, o monumental edifício que ainda hoje lhe serve de sede, situado na atual rua da Voz do Operário (antiga rua da Infância). A primeira pedra foi lançada em 1912 nos terrenos da cerca das Mónicas, cedido pelo governo. O arquiteto, que ofereceu os seus serviços graciosamente, foi Norte Júnior. No entanto, a construção acabou por se arrastar no tempo, em parte devido às circunstâncias decorrentes da Grande Guerra, da crise financeira e da crise sanitária (com a pneumónica), o que encareceu a obra e colocou a Sociedade numa situação financeira precária que só ficou resolvida com a nomeação, por parte do Governador Civil, de uma Comissão Administrativa e de Sindicância, que dirigiu a vida da Sociedade entre os anos de 1924 e 1925,
tendo promovido a sua modernização administrativa e regularizado a situação financeira (Franco, 2018). Entretanto, em 1922 foi inaugurada uma parte do edifício, tendo passado para as novas instalações alunos de duas escolas privativas e, gradualmente, vários outros serviços. O emblemático salão social da Sociedade foi inaugurado em 1930. Paradoxalmente, e ao contrário do que vimos acontecer com a Escola Oficina nº 1, A Voz do Operário conheceu uma fase de intensa renovação pedagógica no conturbado período de transição política da 1ª República para o Estado Novo. É nesse momento que se desencadeia, de forma mais intensa, o debate em torno da reforma dos serviços de educação da instituição tendo como referência o programa pedagógico de 1929, da responsabilidade de Domingos da Cruz, um dos protagonistas maiores do projeto de modernização da Sociedade e do esforço de renovação da sua atividade educativa. Adolfo Lima foi convidado, nesse mesmo ano (1929), para chefe dos referidos serviços, mas demitiuse passado um ano em divergência com a direção e com os professores, que resistiam às inovações que o educador pretendia implementar. Entre 1931 e 1933 esse cargo foi exercido por Mariano Roque Laia, sendo então Presidente da direção outra figura emblemática d’A Voz, Raúl Esteves dos Santos, o seu primeiro cronista. É nestes anos que, pela primeira vez, o projeto educativo da instituição se aproxima do paradigma da Educação Nova, designadamente no que se refere ao ideal de educação integral dos alunos, aos métodos ativos, ao contacto com a natureza ou à coeducação, o que implicou o desenvolvimento e a valorização de atividades em áreas diversas como os trabalhos manuais, a educação física, as visitas de estudo e os passeios, o horto escolar, o desenho, a música e o canto, recreios e atividades ao ar livre, colónias de férias, etc. O cientismo que caracterizava essa perspetiva educativa manifestou-se, em particular, por via do conhecimento e da intervenção médica junto das crianças que frequentavam as escolas d’A Voz do Operário. Foram instituídos métodos de registo e de observação dos alunos através da realização de inspeções regulares e da criação de um boletim de saúde. Em 1926 foram abertas consultas gratuitas para os alunos (e com desconto para os sócios) que evoluíram, em 1930, para uma Policlínica. Em 1937 foi aberto um consultório médico-dentário. Foram desenvolvidos programas de vacinação, construídos balneários e criada uma cantina escolar (Franco, 2018). Esse projeto de intervenção médico-pedagógica junto do aluno é caracterizado da seguinte forma por Filomena Bandeira (2020): De salientar, por fim, que o modelo desenhado se centrava, em particular, na promoção do desenvolvimento físico do aluno (alimentação, atividade física, gestão do tempo escolar, recreios, colónias de férias, fiscalização da saúde, despiste de
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doenças e anomalias, adequação do trabalho escolar às capacidades do educando, avaliação das aptidões e orientação profissional) e colocava o médico escolar e a observação médico-psicopedagógica no centro da escola e do ensino. Os cursos profissionais respondiam à cadeia final deste processo. (p. 209)
A última parte do texto evoca uma outra área que adquiriu grande importância a partir desta altura no projeto educativo da instituição, a formação profissional, que tinha em vista a preparação para a vida e a qualificação socioprofissional dos filhos dos operários e de outros trabalhadores. Terão existido, em momentos diversos, cursos como os seguintes (para um ou outro dos géneros): corte e costura, modista, lavores e educação doméstica, alfaiataria, carpintaria, marcenaria, serralharia, sapataria, tipografia, litografia, encadernação, gravura, brochura, comercial, línguas estrangeiras, etc. (Franco, 2018). Procurando interpretar o significado do processo de renovação pedagógica que atravessou a Sociedade na transição dos anos 20 para os anos 30, Filomena Bandeira (2020) afirma o seguinte: “O modelo não era original. Mas era inovador” (p. 209), em particular se o enquadrarmos no âmbito de uma associação até aí mais preocupada com a dimensão numérica da alfabetização e menos com a qualidade ou com o caráter alternativo da educação proporcionada. A vertente social, ligada às origens da Sociedade (e ao apoio funerário aos sócios), não só se manteve como se alargou, e fez-se sentir, por exemplo, ao nível da assistência na gravidez e no parto, da oferta de enxovais aos filhos dos associados, das bolsas de estudo e da distribuição gratuita de roupa, de calçado ou de material escolar aos alunos carenciados. A educação pré-escolar, a educação especial e a educação de adultos foram outras áreas em que a Sociedade decidiu intervir. Esta última implicou a realização regular de cursos noturnos e, com início em fevereiro de 1930, a dinamização, em colaboração com a Universidade Popular Portuguesa, de cursos livres de extensão universitária. A partir de janeiro de 1939, e com o apoio de outro sócio prestigiado, Fernando Rau, foram criadas bibliotecas infantis em várias escolas e, em 1945, um efémero museu do trabalho. A Sociedade possuía, é bom lembrá-lo, uma importante biblioteca que foi sendo enriquecida, não só com doações de sócios, mas, também, com a incorporação de bibliotecas de instituições entretanto extintas ou encerradas como a Sociedade de Estudos Pedagógicos e a já referida Universidade Popular Portuguesa. Este facto dá conta da inserção de muitos dos seus dirigentes numa rede de intelectuais que estavam presentes em vários desses fóruns e que procuravam contribuir, de diversas maneiras, para a transformação da sociedade portuguesa tendo como ponto de partida a promoção da educação e da cultura. A partir dos anos 30, esses intelectuais, à partida com diferentes posicionamentos políticos, tiveram como ponto de união o facto de se situarem
no campo da oposição política ao regime autoritário. O salão da Sociedade serviu, de resto, em vários momentos, de palco para a realização de ações nesse âmbito como, por exemplo, os comícios da candidatura presidencial de Norton de Matos (Franco, 2018).
Concluindo, A Voz do Operário e a Escola Oficina Nº 1 são instituições veneráveis que se inserem não só na tradição da inovação educativa mas, também, na tradição da luta pela democracia em Portugal. Uma persiste na sua militância associativa, bem mais que centenária, nos campos da educação, da cultura e da solidariedade social; outra reinventa-se como contexto privilegiado para a construção do homem novo sonhado pelas utopias educativas da modernidade.
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The Santa Clara Field in Lisbon - City, History, Memory and Identity O Campo de Santa Clara, em Lisboa - Cidade, História, Memória e Identidade
Elisabete Serol
De arrabalde oriental da primitiva cidade de Lisboa, parece ter encontrado na decisão de aí localizar, em 1147, a Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora razões para se constituir, desenvolver e manter enquanto freguesia. O Campo de Santa Clara reúne, assim, um forte legado patrimonial, artístico e cultural testemunho da sua longa vivência e revelador das diversas mutações sociais operadas ao longo dos anos.
From the eastern suburb of the primitive city of Lisbon, it seems to have found in its decision to locate there, in 1147, the Church and Monastery of São Vicente de Fora reasons to constitute, develop and maintain as a parish. The Santa Clara Field thus brings together a strong heritage, artistic and cultural legacy testifying to its long experience and revealing the various social changes that have taken place over the years.
No ano de 1147, quando no ancoradouro de Lisboa atracaram cerca de cento e sessenta navios que transportavam homens de diversas nacionalidades, costumes e línguas, com o objectivo único de acudir ao pedido de ajuda feito por D. Afonso Henriques (1109- 1185), “Lisboa era uma cidade populosa, rica e forte. Edificada à beira dum vasto porto, estava indicada naturalmente como ponto de escala para o comércio entre o Mediterrâneo e o ocidente da Europa.” 1
À sua chegada, o espaço urbano da cidade era constituído pela alcáçova e pelo burgo, tudo reunido dentro de muralhas, a cerca de 95 metros de altitude. Desenganados pelo inimigo da facilidade de conquista da cidade, os Cruzados tomaram posse dos arrabaldes a oriente e a ocidente. Da parte ocidental, ficaram os ingleses e normandos e da parte oriental, os alemães e flamengos, juntamente com D. Afonso Henriques que, no decurso do cerco, terá feito voto a São Vicente de mandar edificar, nesse local, uma igreja e mosteiro em sua homenagem (Figura 1).
A 21 de Outubro de 1147 renderam-se os Mouros aos Cristãos, um mês depois, e em cumprimento da promessa terá sido lançada a primeira pedra da Igreja Paroquial de São Vicente de Fora.
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Feira da Ladra
Lisbon
Field Santa Clara National Pantheon
Pantheon Dinastia Bragança
Lisboa
Panteão Dinastia de Bragança
Feira da Ladra
Panteão Nacional
Campo Santa Clara
1 OLIVEIRA,
Augusto de, 1938,
29.
José
p.
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Figura 1 Conquista de Lisboa, acampamento do exército conquistador, gravura que fantasia o cerco de Lisboa em 1147, Gravura de Francisco Vieira Lusitano, (1716), AML. Cota : A31985 / N29483 / FIL000010
Uma nova e heterogénea população, o aumento da segurança, imposto pela conquista definitiva das terras do Algarve, e a franca prosperidade da cidade ditaram a transferência da Corte de D. Afonso III de Portugal para Lisboa e a nomeação desta como Capital do Reino. Em 1288, no então denominado Campo da Forca, pela existência de um local para a aplicação de penas capitais, surge uma nova edificação religiosa, o Convento de Santa Clara (Figura 2). Este convento feminino que, segundo Gomes de Brito (1843-1923) em “Lisboa do Passado: Lisboa dos Nossos Dias”, com o decorrer dos anos passou a caracterizar-se e a distinguir-se entre as diversas casas de religiosas de Lisboa, pela primazia do número de religiosas que albergava, chegando às 140 Freiras de Véu e outras tantas Noviças, Servidoras e «mulheres ali depositadas».
“Como a primeira igreja do mosteyro de Santa Clara levantou sua fundadora Dona Ines no anno de 1294 fosse feyta com muyta preça, e por isso com menos perfeyçam pello dezejo grande que a fundadora tinha de ver seo mosteyro em forma de ser habitado lhe nam desse tempo pera a igreja ter a grandesa e perfeyçam que a fundadora quizera,(…) e assim, sendo Abbadeça a madre soror Maria de Jesu, se resolveram a dar principio à reedificaçam da igreja na forma em que hoje se vê, sendo architecto Pedro Nunes Tinoco que a fundou com tanta capacidade que se lhe nam iguala alguma de todas as igrejas que se vem em os muytos mosteyros de Lixboa e nam so tem a dita igreja a excellencia de sua muyta capacidade, junta com grande proporçam em cumprimento, largura e altura que se termina em hum nobilíssimo tecto em meyo circulo, (…).”2
Permaneceram estas duas edificações no lado de fora dos muros de Lisboa, até que, em 1373, após o cenário de devastação deixado pela invasão protagonizada pelo exército Castelhano, D. Fernando (13451383) decidiu mandar construir uma nova muralha. Da Graça veio a descer um muro, da cerca nova, que incluiu o Mosteiro de São Vicente de Fora, porém, separando-o das suas quintas e propriedades que lhe ficavam a oriente e do Convento de Santa Clara. (Figura 3). Abriram-se-lhe dois postigos, o Telheiro de São Vicente e o que dava para o Campo de Santa Clara que, com a transformação em arco, passou a chamar-se Arco Grande de Cima (Figura 4).
Entretanto, uma série de acontecimentos concorreram para a interrupção da prosperidade de Lisboa, que com a revolução de 1383/85 veio a conhecer um novo capítulo da sua história, registando-se por altura do reinado de D. Manuel (1459/1521) como uma das mais poderosas e importantes capitais da Europa. Revelou-se, igualmente, urgente aumentar a capacidade de defesa da cidade e das conquistas além-mar, “Daí a necessidade para ter tomado providências no sentido de ampliar os armazéns já existentes e criar outros (…) As tercenas da Porta da Cruz: situadas no local onde hoje se encontra o Museu Militar (…) 3
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2 COSTA, Padre António Carvalho, 1998, p. 17.
Figura 2 Pormenor do Convento de Santa Clara, Museu de Lisboa, Maqueta de Lisboa antes do Terramoto de 1755, Vicente, José, © CML, DPC.
Figura 3 Pormenor da gravura Olisipo, da obra Urbium Praecipuarum Mundi Theatrum Quintum, da autoria de Jorge Bráunio, 1593, Portugal, Eduardo, AML. Cota: A10405 / N9002-47 / EDP001631
3 SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, 1994, p. 425.
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Figura 4 Arco Grande de Cima, (194 –), Portugal, Eduardo, AML. Cota: A11376 / N9727 / EDP000814
Lisboa beneficiou, paralelamente, de grandes obras de renovação e requalificação arquitectónicas, revelandose a parte oriental, banhada pelo rio e com uma longa extensão de terra por ocupar, numa zona chave para o crescimento e desenvolvimento da cidade.
À época, a Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora destacavam-se como pontos de grande romaria, acabando por desempenhar diversos papéis na vida dos fiéis e dos residentes na cidade. Devido à grande afluência de peregrinos, nele, estava instituído um hospital-albergaria e uma botica. Caracterizavase, ainda, por ser local de impressão de obras, e um dos pioneiros na área da educação e formação monástica, onde professou Santo António de Lisboa.
Simultaneamente, no Convento de Santa Clara cultivavase a aprendizagem dos mais diversos géneros literários, línguas, estudo de música, artes decorativas, desenho, pintura, bordados a ouro e prata e o desenvolvimento das artes culinárias aos quais, com a escritura de livros culinários, aliaram os dotes caligráficos.
Situação que, segundo Pinho Leal, terá atraído a Infanta D. Maria (1521/1577), filha de D. Manuel I (1469-1521), caracterizada por ter bastante sensibilidade para as artes e dotada de uma cultura invulgar, ao Campo de Santa Clara onde terá mandado construir “(…) umas casas (…) junto ao convento (…) por estimar muito as suas religiosas(…)”4, bem como, em 1569, terá conseguido a desanexação de uma parcela do território para mandar edificar a Igreja Paroquial de Santa Engrácia.
A noite de 15 de Janeiro de 1630 revelou-se fatídica para esta igreja, que terá sido alvo de um gravíssimo desacato, culminando com o seu encerramento e a transferência do culto para a Ermida de Nossa Senhora do Paraíso.
Em consonância com o seu estatuto e respeitando a vontade testamentária da Infanta D. Maria, terá a nobreza instituído uma vertente mais elogiosa de se dedicar ao desagravo da situação e num acto de compromisso, de cerca de cem dos mais ricos nobres de Portugal, fundado a Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, estabelecendo que, a partir dessa data, nos dias 16, 17 e 18 de Janeiro se celebrassem umas festas em desagravo do sacrilégio.
As Festas atraíam uma imensa multidão de crentes, de tal modo que a primitiva igreja se tornou pequena para a receber e acomodar, decidindo a Irmandade mandar construir, no mesmo local, uma segunda edificação de maior porte. Assim, no ano de 1632, o Templo profanado foi demolido para dar lugar a uma nova edificação, sob ambicioso projecto do
Arquitecto Mateus de Couto, o Velho, com alterações sob o risco de Mateus de Couto, Sobrinho, da qual nada restou numa noite de temporal do ano de 1681.
Por volta de 15825, quando os cónegos regrantes se dispuseram a dar início a obras de conservação na Igreja e Mosteiro de São Vicente, que ameaçavam ruir, D. Filipe I de Portugal (1527/1598), o então Regente de Portugal, reclama o poder que detinha sobre as coisas do reino e após o embargo das obras, confere plenos poderes ao arquitecto Felippo Terzi (1520/1597) para que construísse algo digno do soberano que o ordenava, alterando completamente a fisionomia da dita edificação.
Deste segundo templo, foi, pelo Cardeal Arquiduque Alberto de Áustria (1559/1621), que detinha, então, o Cargo de Vice-Rei de Portugal, lançada a primeira pedra a 25 de Agosto de 1582. Mais de quarenta anos depois, a 28 de Agosto de 1629, a igreja foi oficialmente inaugurada, prosseguindo, no entanto, as obras de conclusão por mais quase um século (Figura 5).
Passado um século, em 1682, sob licença de D. Pedro II (1648-1706) e desejo de Jorge Fernandes de Vila Nova, um nobre senhor natural e residente em Lisboa, foi, no então já denominado Campo de Santa Clara, inaugurado o Colégio de São Francisco de Xavier, que visava “(…) acrescentar dous Collegios, hum no bayrro de Alfama, pêra os moradores delle, e pêra os que se estendem diante do Campo de Santa Clara.”6
4 LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho, 1874, p. 168.
5 TRAVASSOS, J. M. D. O., 1863, p. 6.
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Figura 5 Igreja e Mosteiro de São Vicente, fachada principal, (194-), Portugal, Eduardo, AML. Cota: A10407 / EDP002069
6 CML, LXXII, p. 155.
O ano de 1682 ditou ainda o início da construção de uma terceira igreja de invocação a Santa Engrácia, tendo sido para o efeito, e depois de analisadas várias propostas, escolhida a planta apresentada pelo, então, Mestre Pedreiro João Antunes (1643/1712).
Visando o intento da Irmandade, o Mestre terá riscado uma planta em que se pretendia que a igreja, “(…) inserida numa política de perseguição aos cristãos-novos, fosse um símbolo da vitória do Santo Ofício. Para isso era necessário que a igreja se demarcasse das restantes existentes no reino (…).”7
Em 1712, encontrava-se a igreja construída até à cimalha quando o, então já, arquitecto morre, situação que, conjugada com diversos factores, provocou a interrupção no normal do decorrer das obras e o posterior abandono (Figura 6).
O Templo de Santa Engrácia, caracterizando-se pela originalidade e grandiosidade, tornou-se no projecto pioneiro da Arquitectura Barroca em Portugal.“(…) um verdadeiro marco de passagem; é um edifício estranhamente isolado no panorama arquitectónico nacional; não pertence ao período anterior nem ao
seguinte. (…) Entre um classicismo purificado e a influência do barroco romano mais audaz, Sta. Engrácia concentra em si o melhor da mais erudita leitura portuguesa das correntes europeias, mas dá ao mesmo tempo mostras de um ecletismo de escolha que, embora o templo pareça simbolizar a própria «arquitectura do humanismo» em si, à margem de subcorrentes e subperíodos, ainda se não traduz em ecletismos formais.”8
O Campo de Santa Clara contou, ainda, com a implementação de diversos palácios, cujos proprietários, senhores nobres, com ocupações na Corte ou detentores de altos cargos militares, desempenharam um importante factor de desenvolvimento económico e urbanístico, uma vez que juntamente com as casas religiosas foram delimitando o espaço na sua periferia, possibilitando, à sua sombra, o crescimento de um labirinto de ruas e ruelas de casa pequenas, lojas e todos os mais serviços necessário à vida da comunidade.
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7 MANTAS, Helena Alexandra Jorge Soares, 2002, p. 10.
8 GOMES, Paulo Varela, 1988, pp. 14/15.
Figura 6 Panorâmica da Igreja de Santa Engrácia no funeral de Dom Carlos e de Dom Luís Filipe, (1908), Cruz, José Chaves, AML. Cota: CRU000739 / A19788 / N17748 / PT/AMLSB/CRU/000739
Da possessão de um edifício apalaçado, de amplas dimensões, existente no Campo de Santa Clara, a sul da Igreja de S. Vicente e Santa Engrácia, dá-nos conta Castilho (1840- 1919):
“A primeira pessoa da família possuidora do Morgado de Resende que encontramos morando na freguesia de Santa Engrácia e de-certo já nas suas casas do Campo de Santa Clara, D. João de Castro, filho de D. Simão de Castro, senhor de Roriz e de Resende, e de D. Margarida de Vasconcelos, filha de Diogo de Sousa de Vasconcelos, o Galego. (…) por intermédio do assento do baptismo (…) lançado com a data de 13 de Outubro de 1606 é que tivemos conhecimento da sua morada na freguesia.”9
O Cargo de Almirante do Reino, foi desempenhado por várias gerações desta família, que na pessoa de D. António José de Castro (1745/1814), casado em 1741, com D. Teresa Xavier de Távora (1720-1783), recebeu, de D. José I (1714-1777), o título de 1º Conde de Resende por carta de 9 de Junho de 1754, nome que foi, igualmente, atribuído para designar o palácio como Palácio dos Condes de Resende (Figura 7).
Segundo nos diz Vilhena Barbosa (1811-1890), descendentes de João Baptista Cordes, nomeado por Filipe III de Espanha e II de Portugal como tesoureiro do fisco real, que veio para Portugal e mandou
edificar a Quinta de Nossa Senhora da Conceição à beira da Ribeira de Barcarena, terão mandado construir um Palácio ao Campo de Santa Clara (Figura 8):
“(…) este palácio da família Sinel de Cordes foi construído pouco depois de 1740 (…). Por nossa parte o que sabemos é que os Condes moraram nas suas casas da rua Direita do Loreto até às proximidades do cataclismo de 1755, conforme nos elucidam os livros paroquiais da freguesia da Encarnação. ”10
Durante este período e em consonância com a condição social da família, D. Tomás de Almeida (16701754) terá mandado erguer um imponente edifício, o qual terá sido, posteriormente, oferecido ao seu sobrinho, D. António de Almeida Soares Portugal e Alarcão Eça e Melo (1729-1790), 4º Conde de Avintes e 1º Conde e Marquês do Lavradio, uma das famílias mais ilustres do Reino de Portugal (Figura 9):
“Teve como principio em Payo Guterres, esforçado cavalleiro de D. Sancho I, ao qual, por ter tomado aos mouros a praça de Almeida, appelidaram o Almeidão. Era filho de Soeiro Paes e neto de Pelayo Amato, fidalgo da corte do conde D. Henrique (pae de D. Afonso I) e seu amigo e companheiro. Teem os srs. Marquezes de Lavradio a honra de contar entre os seus nobilíssimos ascendentes, o grande D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da India.”11
Próximo deste surgiu um outro palácio cujo projecto terá fugido ao padrão mais comum dos palácios portugueses, mandado fazer por Luís Xavier Furtado de Mendonça (1692), 4º Visconde de Barbacena, o Palácio dos Condes de Barbacena (Figura 10).
No 1 de Novembro de 1755, apesar de ter sido considerado um dos locais menos afectados da capital, o lugar teve a lamentar a ruína total do Convento de Santa Clara e avultados prejuízos na Igreja de São Vicente de Fora:
“O zimbório do templo era a cousa mais magnifica que tinha a Côrte, assim na altura como na sua arquitectura. Com os movimentos do terramoto, que durou nove ou dez minutos, desencaixaraõ aquella admirável maquina, e se despenhou, parte das pedrarias para a rua á parte do norte, e a mayor parte no meyo do cruzeiro, offendendo muito as simalhas reais que em sirculo o sustentavaõ.”12
9 CASTILHO, Júlio de, 1940, p. 264.
10 Idem Ibidem., 1940, p. 270.
11 LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho, 1874, p. 60.
12 SILVA, A. Vieira da, MCMXXIX, p. 27.
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Figura 7 Palácio Resende, Fachada lateral, Rua do Paraíso, (1900), Machado&Souza, AML. Cota: FAN000923 / A923 / N923 / PT/AMLSB/FAN/000923
Figura 8 Palácio Sinel de Cordes, Fachada principal, (1949), Portugal, Eduardo, AML. Cota: EDP000852 / A11967 / N10242
(em baixo) Figura 9 Palácio do Lavradio, Fachada principal, (1949), Portugal, Eduardo, AML. Cota: EDP000854 / A11969 / N10244
(em baixo , à direita) Figura 10 Palácio Barbacena, Fachada principal e sul, (1900), Machado&Souza, AML. Cota: FAN002916 / A2916 / N2916.
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Sob indicação do Marquês de Pombal (16991792), terá sido estabelecido sobre as ruínas do Convento de Santa Clara um depósito de artilharia que funcionava como estabelecimento de apoio à Fundição de Cima. Conhecido por Parque de Artilharia, o espaço foi transformado numa outra fundição, a Fundição de Santa Clara13, à qual foi, mais tarde, acrescentada a Fábrica de Armas (Figura 11).
13 Neste mesmo local, no ano de 1842, o Tenente - General José Baptista da Silva Lopes (1784/1857), Barão de Monte Pedral, com a clara intenção de vir a criar um núcleo museológico, determinou as medidas necessárias para se reunissem e classificassem, objectos raros e curiosos, modelos de máquinas e aparelhos, armas de vários géneros, etc., em depósitos próprios.
Figura 11 Fábrica de Armas, Porta de entrada, (1900), Machado&Souza, AML.
Cota: FAN000927 / A927 / N927 / PT/AMLSB / FAN / 000927
Figura 12 Fundição de Cima, Portal de entrada, (1949), Portugal, Eduardo, AML. Cota: EDP000876 / A11994 / N10269
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Figura 13 Monumento a Dom José I, (1900 – 1945), Bárcia, José Artur Leitão, AML. Cota: BAR000863 / A7422 / N6228
Durante o reinado de D. João V e depois de assinada a paz com Espanha, iniciou-se, no Campo de Santa Clara onde para “Além das fundições, por conta da Fazenda Real, havia nesta época ainda outras particulares, como é o caso das do Postigo do Arcebispo, de St:ª Engrácia, de St.ª Clara, das Campainhas, etc.”14, uma vaga de construções do Arsenal do Exército, destacando-se “(…) uma oficina de fundição de artilharia, a norte das tercenas da Porta da Cruz, a qual se passou a designar por «Fundição de Baixo», por antonímia à antiga «Fundição da Coroa de Portugal» (situada em local elevado), ficando esta, a partir de aí, a ser conhecida por «Fundição de Cima». (…) encontra-se inscrita, na verga do portão de entrada para a agora extinta Direcção de Armas de Artilharia, a data de «1762», a qual assinala, talvez, o final da execução das obras da remodulação das instalações da Fundição de Cima, constituídas por mais de uma dúzia de «casas», figurando, entre estas, duas «casas de fundição» - a do «dinheiro» e a da «artilharia». (…) Em 1771, a Fundição de Cima, (…), foi encarregada da fundição da estátua equestre de D. José I15, a partir de um modelo em estuque a executar pelo escultor Machado de Castro, e no tamanho natural. Esta tarefa levou cerca de 4 anos (1771 a 1774). (…) o General João Manuel Cordeiro (In Apontamentos para a História da Artilharia) afirma que os fornos construídos por essa altura foram quatro: dois deles vieram, em 1774, a ser reservados para a fundição do bronze para a estátua de D. José – só o maior veio a ser utilizado, depois de reforçadas as suas estruturas, tendo sido demolidos já no séc. XIX; os outros dois ainda existiam em 1895 e neles se continuaram a fazer todas as fundições de bronze – o maior tinha capacidade de 10 000Kg e o menor de 4 000Kg.”16(Imagens n.º 12 e 13). No decorrer do ano de 1779, a Corte Mariana desdobrava-se em atenções na reconstrução e construção de casas religiosas, sendo a mais emblemática, de todas elas, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Grande destaque teve igualmente o Convento
de Desagravo ao Santíssimo, mais tarde foi apelidado de “Conventinho do Desagravo”, mandado erguer, em 1783, por vontade da Infanta D. Maria Ana (1736/1813), filha de D. José I, junto ao local onde mais de um século antes teria ocorrido o desacato de Santa Engrácia (Figura 14).
Em consequência do Alvará de 3 de Setembro de 1759, que expulsou os Jesuítas do Reino de Portugal, confiscou e incorporou os seus bens na Fazenda Nacional, deu-se por extinto o Colégio de São Francisco de Xavier no Campo de Santa Clara. Em 1797, as suas instalações terão acolhido a implantação do Hospital da Real Armada (Figura 15):
“Para Hospital privativo da marinha, Sousa Coutinho consegue obter o edifício do antigo Convento de S. Francisco de Xavier, (…) que depois da sua expulsão do reino pelo Decreto de Pombal de 3 de Setembro de 1759, tinha sido adaptado a asilo de mulheres, designado por Recolhimento do Castelo (…) Hospício dos Jesuítas (…) que por ordem do Ministro Sousa Coutinho, (…) teve de procurar outro edifício (…) a fim de que no mesmo local se construísse o novo Hospital Real da Marinha, «sólido, cómodo e sadio», segundo a expressão do autor desconhecido do projecto, e cuja necessidade tanto se fazia sentir «porque os doentes estavam muito mal acomodados no Desterro.»”17
14 SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, 1994, p. 425.
15 “Trata-se da primeira estátua equestre realizada em Portugal, sendo também, neste país, um dos primeiros monumentos escultóricos feitos na rua dedicados a uma pessoa viva. Ela tornou-se, pois, a referência de uma nova actividade, até então cingida à representação de santos.”, CNC, 2011.
16SUCENA, Eduardo e SANTANA, Francisco, 1994, pp. 425/6.
17 FARO, Emílio de Tovar, 1967, p. 767.
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Figura 14 Convento do Desagravo do Santíssimo Sacramento, Fachada principal, (1890/1945), Bárcia, José Artur Leitão, AML. Cota: BAR000094 / A7336 / N6142
Figura 15 Hospital da Marinha, Fachada principal, (1907), Machado&Souza, AML. Cota: FAN001679 / A1679 / N1679
O Colégio de São Francisco de Xavier terá sido o primeiro a sentir os efeitos negativos que a extinção das Ordens Religiosas vieram a ter no Campo de Santa Clara, seguindo- se-lhe o Conventinho do Desagravo, que por decreto de 5 de Agosto de 1833, viu serem expulsas todas as noviças e proibida a admissão de novas, provocando-lhes uma morte lenta.
A extinção e ocupação do Mosteiro de São Vicente de Fora teve início, em 1771, quando por força do estabelecimento da Patriarcal nas suas instalações veem-se os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho deslocados para Mafra, regressando em 1792, para saírem definitivamente em 1834, ano em que foi decretada a extinção das Ordens Religiosas.
Devido às obras na Sé de Lisboa, entre 1858 e 1863, a Cátedra Patriarcal foi transferida para São Vicente. Por iniciativa do Cardeal Patriarca D. José Neto, entre 1896 e 1905, funcionou em São Vicente um novo seminário de preparatórios, destinado a crianças pobres que se dispusessem à aprendizagem do ensino eclesiástico, o qual foi transferido para Santarém, no ano de 1905. Foram transferidos, ainda, para o Paço de São Vicente os serviços da Câmara e Cúria Patriarcal, tornando-se o mosteiro no único Pólo de formação sacerdotal da Diocese de Lisboa.
No final do século XIX, a vida do mosteiro pautou-se por um quotidiano de ofícios fúnebres e inúmeros sepultamentos, devido à criação, no local onde em tempos terá funcionado o refeitório, de um Panteão Real da Dinastia de Bragança (Figura 16).
“Por decreto de 31 de Janeiro de 1834 foram o convento, a igreja e a cerca incorporados nos Próprios da Nação para residência do Cardeal- Patriarca, estabelecimento de Seminário Patriarcal e Câmara Eclesiástica, e para guarda das pessoas reais tumuladas no Panteão. A igreja foi requisitada pelo governador civil para servir de paróquia de S. Vicente, em ofício de 27 de Abril de 1836.” 18 18
Figura 16 Funeral nacional da Rainha Dona Amélia. A Igreja de São Vicente de Fora no momento da entrada do corpo a caminho do Panteão Real, (1951), Costa, Firmino Marques da, AML. Cota: FMC000095 / A18019 / N16092
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SILVA, Augusto Vieira da, 1968, p. 220.
Por decreto de 16 de Junho de 1910 a Igreja de São Vicente de Fora foi declarada Monumento Nacional, porém à sombra da Lei da Separação da Igreja e do Estado, de 20 de Abril de 1911, viu-se privada das suas competências e espoliada dos seus bens materiais.“No dia 3 de Janeiro de 1912, D. António Mendes Belo parte para o exílio, encerrando-se assim o ciclo do Mosteiro de São Vicente enquanto Paço Patriarcal.”19
No período que se seguiu, viram-se as suas instalações invadidas por inúmeras instituições, nomeadamente pelo Liceu Gil Vicente, pelo Registo Civil, pelo Recenseamento Militar, entre outras repartições públicas. Em 1940, o Patriarcado de Lisboa conseguiu, para seu usufruto, reaver o Paço de São Vicente e a zona envolvente, bem como criar, para acolher os restos mortais de todos os prelados lisbonenses desde D. Carlos da Cunha, o Panteão do Patriarcas.
No ano de 1944 foi, “O edifício conventual mostra, ao todo, 222 panos, de alguns duplos ornados de molduramento, e 202 intercolúnios, florões, ligações e ângulos. (…) representam deliciosos assuntos das fábricas Lafontaine, e os restantes paisagens, vistas do mar, cenas de corte, da caça, assuntos pastoris ou campestres.”20, classificado como Imóvel de Interesse Público.
A década de 80 trouxe ao mosteiro várias obras de beneficiação e a instalação do arquivo histórico e biblioteca do Patriarcado de Lisboa. Na década de 90 a igreja ficou afecta ao Instituto Português do Património Arquitectónico e sob o âmbito do Programa de Infraestruturas Turísticas e Equipamentos Culturais deu-se o restauro e a criação de espaços museológicos na zona conventual. O ano de 1998 marcou o regresso da Cúria Patriarcal de Lisboa ao Mosteiro de São Vicente de Fora.
Contrariamente apresenta-se a importância e ampliação dos diversos equipamentos do Exército no Campo de Santa Clara, que por esta altura iniciam uma onda de ocupação dos edifícios civis ou religiosos que, por uma razão ou por outra, iam ficando desocupados, aumentando e reforçando a sua presença no local.
Na Fundição de Santa Clara, por volta de 1842, o Tenente - General José Baptista da Silva Lopes (1784/1857), Barão de Monte Pedral determinou as medidas necessárias para que se reunissem e classificassem, objectos raros e curiosos, modelos de máquinas e aparelhos, armas de vários géneros, etc., em depósitos próprios.
“(…) que deram origem, em 1851 pelo decreto que reformou o Arsenal do Exército, ao Museu de Artilharia (4), (…) o Museu «ocupava um vasto salão (…) que entretanto, com a reorganização da Arma de Artilharia, em 1869, passou a estar a cargo do director da
Fábrica de Armas, a que Pinho Leal (…) sua transferência definitiva, em 1876, para as instalações do extinto Colégio dos Aprendizes da Fundição de Baixo, (…)”21
Devido às diversas reestruturações sofridas por este organismo, e apesar dos vários melhoramentos ocorridos, a Fundição de Cima e a Fábrica de Armas vêem-se extintas pelo decreto de 18 de Dezembro de 1902. As instalações da extinta Fábrica das Armas deram lugar, no ano de 1903, às Oficina e Depósito de Fardamento (OGF), que por seu lugar e tendo em conta a crescente necessidade de proceder à constituição de reservas para abastecimento das tropas se viu transformada num Depósito Central de Fardamento de todo o Exército.
Com o alargamento do seu âmbito, desenvolvido, através de um estudo feito, no sentido de criar um novo modelo de bota de infantaria (mod. 1911), houve a necessidade de procurar um novo local para a implantação de uma nova fábrica de calçado. Devido à proximidade o inacabado e abandonado Templo de Santa Engrácia, apesar de, pelo Decreto de 16 de Junho de 1910, ter sido classificado como Monumento Nacional, tornou-se propício à referida instalação, que veio a ocorrer no ano de 1911.
No decorrer desta ocupação, com origens anteriores à implantação do Liberalismo em Portugal, registaramse diversos estudos com o intento de concluir as obras e dar lugar à ideia e interesse, defendidos por intelectuais e políticos, arreigados do espírito romântico, de destinar esse mesmo monumento a uma nova funcionalidade, a de Panteão Nacional.
Já em 1896, Ramalho Ortigão teria apresentado publicamente essa sugestão, que recolheu apoio por parte do Conselho Superior dos Monumentos Nacionais (1906):
“(…) o seu presidente, o arquitecto Ventura Terra veio a realizar um projecto para concluir e adaptar o monumento a Panteão Nacional. A proposta viria a ser levada ao parlamento, já na República, por iniciativa do coronel e senador Francisco Ramos da Costa a 14 de Março de 1913 e três anos depois, seria consagrada a adaptação da igreja de Santa Engrácia a Panteão Nacional por lei de 29 de Abril de 1916.”22
19 SALDANHA, Sandra Costa, 2010, p. 64.
20 ARAÚJO, Norberto de, 1939, p. 67.
21 Revista Casão Militar, 2001-2002, p. 6.
22 IGESPAR,2010, p. 83.
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Através das novas ideologias revolucionárias e anticlericais, e apesar de todo o interesse e regulamentação para proteger e terminar as obras de Santa Engrácia, porque Portugal se encontrava envolvido numa situação de guerra (Primeira Guerra Mundial), a fábrica de calçado ter-se-á mantido em laboração dentro das suas instalações, até ao ano de 1954.
Entretanto, aqueles que, pela sua dedicação e zelo pela pátria, se viram distinguidos, foram sepultados provisoriamente no Mosteiro dos Jerónimos. “Na Antiguidade, a palavra pântheion significava o conjunto de todos os deuses. O termo veio a ter uma conotação funerária, distinguindo o lugar de sepultura de reis, altas dignidades da Igreja e nobres famílias. Já sob o espírito da Revolução Francesa, toma o sentido de monumento laico consagrado à memória dos grandes homens da Nação, constituindo a última morada daqueles que, por obras valorosas, contribuíram para a grandeza da sua pátria. Aos Grandes Homens a Pátria reconhecida (Marquês de Pastoret, decreto de 1791).”23
No âmbito do Plano de Fomento Económico e mediante novos programas de orçamento para as Obras Públicas, em 1950, as atenções voltaram-se para o inacabado
templo e ”O restauro monumental, encarado como parte integrante de uma política de restauração mais vasta que visava alcançar todos os sectores da vida nacional, impôs-se como um meio por excelência de afirmação do poder e superioridade de um regime que pusera fim ao caos lançado pelos governos anteriores, (…)”24
Do convite saído das mãos de Arantes de Oliveira, em 1956, surgiram diversas propostas, nomeadamente dos arquitectos António Lino, Joaquim Areal e Silva, Raul Lino e de Luís Amoroso Lopes. O projecto escolhido terá sido deste último que “ (…) ao considerar o monumento como alvo de um restauro, onde a acção deveria ser mínima, o suficiente, apenas, para permitir a utilização do templo.” 25 , apresentou uma proposta que consistia no simples remate do cruzeiro com uma cúpula (Figura 17). Os trabalhos, que decorreram sob a alçada da DirecçãoGeral dos Edifícios e Monumento, arrancaram em 1960, com um prazo de dez anos para a sua conclusão, e terminaram quatro anos antes do final do prazo estipulado. Por altura da inauguração do Panteão Nacional, foram transladados do Mosteiro dos Jerónimos, os restos mortais dos antigos Presidentes da República, Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona, e dos escritores Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro. O Panteão Nacional foi, com toda a pompa e circunstância, inaugurado
23IGESPAR, 2010, p.79.
24 MANTAS, Helena Alexandra Jorge Soares, 2002., p. 45.
25 IGESPAR, 2010, p. 94.
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Figura 17 Igreja de Santa Engrácia, obras, (1966), Casa Fotográfica Garcia Nunes, AML. Cota: A56581 / N54065 / NUN001929
Figura 18 Inauguração do Panteão Nacional na Igreja de Santa Engrácia, (1967), Casa Fotográfica Garcia Nunes, AML. Cota:A56494 / N53978 / NUN001916
no dia 7 de Dezembro de 1966 (Figura 18).
A situação de ocupação militar estendeu-se, igualmente, ao vizinho e extinto Conventinho do Desagravo que, após o desmantelamento do interior, entre 1914 e 1919, deu lugar à instalação de oficinas e armazéns de calçado e fardamento do Exército.
Mais tarde, em 1927, por Decreto nº 13.171 de 17 de Fevereiro, nas instalações da antiga Fábrica de Armas foi criada a Fábrica de Equipamentos e Arreios, com a finalidade de se “(…) proceder à manufactura e reparação de correame, equipamentos individuais, arreios e equipamentos regimentais”.26 A partir de 1969, pelo Decreto-lei nº 49.188, de 13 de Agosto de 1969, foram todas estas oficinas concentradas nas instalações da extinta Fábrica Militar de Santa Clara, passando a designar-se por Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE).
A emergência dos séculos XIX e XX revelou-se fulminante para as vidas dos palácios que, a salvo do grande terramoto de 1755, se mantinham de pé no Campo de Santa Clara. Por razões quase sempre semelhantes, viram-se, estes, alienados das posses familiares a que há tantas gerações pertenciam, para darem lugar a outros proprietários e a outras utilizações, nomeadamente e uma vez mais, darem lugar à instalação de serviços e equipamentos do Exército Português.
O Conde de Resende e a sua família habitaram o Palácio do Campo de Santa Clara até, possivelmente, 1822, depois “(…) em parte do palácio se inaugurou em 11 de Abril de 1844 o teatro Sociedade Thalia a que pertenciam as famílias mais distintas da capital, e que para a noite de inauguração escreveu Garrett O tio Simplício, comédia em um acto que obteve aplauso unânime. Em 11 de Janeiro de 1873 inaugurou-se ainda no palácio outra casa de espectáculos, o teatro Popular de Alfama, que Sousa Bastos diz não ter chegado a durar um ano porque o público teimou em não frequentar.” 27
No ano de 1880, o edifício foi vendido, por D. Juliana Castro Pamplona, filha do 4º Conde de Resende, ao comerciante Sr. Henry Burnay que o terá restaurado e vendido ao Ministério da Guerra. Essa venda terá provocado, com a instalação do Quartel do Regimento de Artilharia de Guarnição Nº 4 e da Oficina de Alfaiate, alterações profundas no antigo palácio.
Em 1957 foi instituído nas instalações do antigo Palácio dos Condes de Resende um Centro Comercial das OGF, destinado ao corpo do exército. O edifício, que conta com uma profunda descaracterização, mantém na memória a imponência de uma construção volumosa, que abraça um quarteirão, ostentando com orgulho o brasão de armas da família que o habitou – os Condes
de Resende, Almirante do Reino.
O Palácio de Barbacena, “(…) em cujos descendentes permaneceu até à extinção da família, com o 7º Visconde e 2º Conde, Francisco Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, falecido em 1854. Posteriormente o palácio foi a leilão, sendo adquirido pelo Patriarcado para residência dos prelados, recebendo então obras de beneficiação que lhe introduziram algumas alterações.”28
Passou, em 1925, para as mãos dos serviços de Manutenção Militar que nele fez instalar a Messe dos Oficiais do Exército, com obras de adaptação à nova funcionalidade, mantendo a antiga traça de uma imponente construção barroca bordejada pelo brasão da família que o mandou erguer – os Condes de Barbacena.
O Palácio Cordas, “(…) assim designado pelo vulgo, foi adquirido pelo dr. José Correia Godinho da Costa, depois Visconde de Correia Godinho por decreto de 17 de Agôsto de 1865, juiz do Supremo Tribunal de Justiça, (…) o qual reformou o palácio «acrescentando-lhe a bablaústrada e vasos que o coroam. Sucedeu na posse da casa seu filho José da Costa Godinho, 2º Visconde de Correia Godinho (…).”29
No ano de 1869, viria a falecer o seu novo proprietário, sendo anos mais tarde ocupado pela Legação de Itália, altura em que, terá o edifício sofrido de um violento incêndio no seu interior, seguido de obras de reconstrução. No século XX, já sob propriedade de descendentes de Carlos Ribeiro Ferreira, foi o antigo Palácio transformado em Escola Primária Oficial.
O Palácio do Lavradio permaneceu nas mãos dos seus descendentes, até ir à praça depois da morte do 5º conde, em 1874. Foi adquirido pelo Estado em 1875, onde instalou, depois de obras de adaptação, os Tribunais Militares.
Dessas obras de adaptação contam-se, entre outras, a sua ampliação, passando a ocupar a totalidade de um quarteirão, o acrescente de salas e de um frontão triangular, no qual está colocada uma estátua, uma figura feminina, sentada, com a espada e a balança em cada uma das mãos e uma cimalha decorada com motivos de gosto neoclássico, panóplias constituídas por couraças, elmos e escudos redondos armoriados, representando a Justiça.
26 Revista Casão Shopping, Lisboa, 2001, p. 9.
27 CASTILHO, Júlio de, 1940, p. 265.
28 MOITA, Irisalva, 1973, p. 183.
29 Barbosa, Vilhena (c), 1864, pág. 30.
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No interior foram feitas obras de adaptação muito profundas, abusando-se de estuques que cobriam tectos e paredes. Salvaram-se apenas alguns silhares de azulejos polícromos setecentistas, no vestíbulo, na escadaria e patamar nobre, representando cenas palacianas e caçadas.
A inicial utilização militar do palácio centrou-se em duas entidades: a Engenharia Militar (Comando-Geral de Engenharia, desde a arrematação para o Estado e até 1889) e os Tribunais Militares (desde a arrematação para o estado e até ao ano de 2004). Em virtude das várias reorganizações do Exército, ao longo dos anos, houve uma maior rentabilização das instalações do edifício, com a instalação de diversos órgãos militares. Assim, no ano de 2004, o imóvel foi entregue à, então, Direcção dos Serviços de Engenharia.
Já em pleno século XIX e de modo isolado e singular, quase junto ao Palácio dos Condes de Barbacena, surgiu um edifício residencial, de planta rectangular, com três pisos e mansarda do tipo pombalino, mostrando-se, o piso inferior rasgado por três portais em arco abatido, o central flanqueado por óculos e os superiores com janelas de sacada e guarda
metálica vazada, completamente revestido a azulejo decorativo. No final do século XIX para dar resposta às necessidades de uma sociedade emergente, mais letrada, mais culta e mais urbana, foram a arquitectura e a engenharia colocadas à disposição do ambicioso programa de obras públicas implantado pelo governo português. Do conjunto de infra-estruturas indispensáveis à vida na cidade surgiu a necessidade de construir novos espaços para a comercialização de produtos frescos.
Assim, em 1877, com base em novas técnicas e materiais, nomeadamente o tijolo industrial, o ferro, o vidro, sob o domínio de uma arquitectura do ferro de estética romântica, que estava a ser ensaiada, por engenheiros, no ramo das obras públicas, foi construído o Mercado de Santa Clara (Figura 19). Ao mercado veio juntar-se, mais tarde, a Feira da Ladra (Figura 20). Uma feira franca lisboeta com origem nos velhos mercados medievais, anteriores possivelmente à fundação da nacionalidade, que depois de ter percorrido e permanecido em diversos locais da cidade, foi, em 1882, mandada transferir definitivamente para o Campo de Santa Clara.
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Figura 19 Mercado de Santa Clara, (1900 – 1958), Portugal, Eduardo, AML. Cota: A4510 / N4495-C / EDP001361
“Não abrangendo o comércio de carnes, peixes, legumes e frutas verdes, (…) na feira junto ao Castelo negociava-se naturalmente tudo o que constitui objecto de uso doméstico, vestuário, calçado (…)”30 Com o passar dos anos, esta foi perdendo o seu carácter de mercado abastecedor e transformandose, cada vez mais, num mercado de bugigangas, objectos e roupas usadas, ocasionalmente objectos de arte ou raridades, um verdadeiro mercado de trapo e ferro velho, tornando-se num centro de animação e de atracção popular e turística.
“ Nada mais original, mais typico, mais característico e pittoresco do que esta antiga feira da ladra, esta escala chromatica de todas as notas da fortuna humana, desde o dó da miséria pelintra, que precisou vender o ultimo tacho, até ao si da grandeza decadente, que teve de alienar, por dez réis de mel coado, o ultimo par de jarras da India, que um avô remoto, vice-rei talvez, trouxera de Goa. E todos esses variadíssimos objectos, que se baralham na feira da ladra, chegam até lá aos pontapés da sorte, e de lá partem do mesmo modo, para um destino incerto e aventuroso, (…)”31
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Figura 20 Feira da Ladra, (1890 – 1945), Bárcia, José Artur Leitão, AML. Cota: BAR000186 / A7503 / N6308
30 SILVA, Augusto Vieira da, 1968, p. 295.
31 DIAS, Marina Tavares, 1990, p. 35.
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de Santa Apolónia de Lisboa e a Extinção das Ordens Religiosas. Um exemplo de descontinuidade*
Elisabate Gama
* Conferência apresentada no Colóquio “Freguesia São
Vicente. História, Memória, Vivências”, que decorreu na Escola-Oficina Nº 1, à Graça, de 24 a 26 de outubro de 2019.
A investigação sobre o Convento de Santa Apolónia, integrou-se no Projeto da FCT “Da cidade sacra à cidade laica. A extinção das ordens religiosas e as dinâmicas de transformação urbana na Lisboa do Séc. XIX”, que decorreu entre 2012 e 2015. Coube-nos o levantamento documental e a análise dos conventos femininos da Ordem dos Frades Menores (Clarissas), em Lisboa.
Conventos
Extinção das Casas Religiosas
Desamortização
Dinâmicas Urbanas
Estações de comboio Património
No contexto do Liberalismo, a extinção das casas conventuais foi apenas o início de um longo percurso na história das comunidades regrantes em Portugal que pressupôs, entre outros, a incorporação na Fazenda Real do vasto património material e imaterial. As casas masculinas foram as primeiras a serem ocupadas, adaptadas, vendidas em hasta pública ou demolidas; as femininas sucumbiram gradual e paulatinamente, reguladas pela morte da última freira. Houve, contudo, exceções, como o Convento de Santa Apolónia, suprimido em outubro de 1833, antes, portanto, do decreto nacional de maio de 1834. Depois de ocupações várias, em 1852 o conjunto passou para a Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro Portugueses. Acolheu uma estação provisória de passageiros e de mercadorias até 1865, quando inaugurou a nova Estação de Santa Apolónia, no Cais dos Soldados. Foi demolido no final da década de 1950, dando lugar a um prédio da CP – Comboios de Portugal. De forma sumária, propomo-nos revisitar a fundação e o destino deste conjunto patrimonial ao longo dos séculos XIX e XX. Incidiremos, em particular na leitura dos acontecimentos que marcaram o ano da extinção, em 1833, e as alterações posteriores que culminaram na sua demolição na década de 1950, tentando perceber o que resta da sua memória histórica.
Convento de Santa Apolónia de Lisboa antes de 1833. Notícia histórica
O Convento de Santa Apolónia foi a única casa religiosa feminina extinta em Lisboa até dezembro de 18331, antes portanto do decreto de maio de 18342
O ingresso das religiosas no Convento de Santa Ana, em outubro de 1833, determinou o início de um novo capítulo na história do edifício, que remonta, pelo menos, ao último quartel do século XV.
Decreed in 1834, the extinction of the conventual houses was the beginning of a long journey in the history of the regular communities in Portugal, and led, among others, to the incorporation in the Royal Threasury, and subsequent transfer of the immense material and immaterial heritage. The male institutes were the first to be occupied, sold at public auctions or demolished; the female ones succumbed, gradual and slowly, determined by the death of the last nun. This was not the case of the Convent of Santa Apolónia of Lisbon, suppressed in October 1833, during the liberal war and before the national decret of May 1834. After several occupations, in 1852 it passed to the Central Peninsular Railway Company in Portugal. The building housed a passenger railway station till 1865, when the new one was inaugurated, in another place, at the Cais dos Soldados. The convent was demolished in the 1950s, giving place to a modern building of the CP - Comboios de Portugal. We will try to revisit the history of this female regular house, its foundation and destiny, considering the suppression and abolition in 1833, the architectural and urban changes during the second half of the 19th century and the demolition in the middle of 20th century, and trying to understand what remains of its historical and physical memories.
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Extinction of the regular houses Convents Confiscation laws Railway stations Urban Dynamics
The Convent of Santa Apolonia of Lisbon and the extinction of the religious orders. An example of discontinuity
Patrimony
O Convento
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A invocação e o topónimo associado ao sítio parecem derivar de uma ermida dedicada a Santa Apolónia3, situada fora da Cerca Fernandina, entre o Mosteiro da Madre de Deus e a Ermida de Nossa Senhora do Paraíso4 (Fig. 1), no sítio onde a “estrada que vinha da Cruz da Pedra bifurcava em direcção às tercenas da Porta da Cruz”5. Documentada, pelo menos, desde 1485, a “…Hermijda de Sancta Apellonia”, que estava “no Camijnho pp.º [público]”6 (Fig. 1), localizava-se certamente num ponto elevado, sobranceira ao rio e próxima da praia, o que parece comprovar-se pelas referências quinhentistas à “barroca em Santa Apolónia”7 (próxima do Cais da Madeira) e a “Santa Apolónia da banda do mar”, onde se situavam as casas de “Dom Diogo deÇaa”8. Em 1551 a Ermida era “casa de muita devoção e esmolas, avaliadas em oitenta cruzados”9; pertencia à freguesia de Santo Estevão, passando à de Santa Engrácia depois de 156910 Falamos de um arrabalde que registou significativas alterações urbanas, sobretudo a partir do século XVI. Com efeito, de zona essencialmente agrícola, onde predominavam hortas, vinhas e olivais11, passou a
núcleo povoado. Viu “nascer” conventos, como o de Santa Clara, da Madre de Deus ou de Santos-o-Novo12 (Fig. 2); equipamentos e estruturas fabris ligadas ao armamento (como as tercenas da Porta da Cruz13) e à produção de bens de consumo (como as padarias e os fornos de biscoito14); depósitos de matérias-primas (como o Terreiro do Trigo15); e cais de embarque16 (como o do Carvão, da Madeira, o dos Soldados e o do Tojo, à Bica do Sapato).
Na centúria seguinte registou-se um aumento do número de casas apalaçadas e quintas de recreio (Fig. 3) como: a de Manuel Quaresma Barreto, vedor da Fazenda de D. Sebastião (Palácio Quaresma-Alvito); a de Luís de Meneses, Senhor de Pancas (depois dos Palha e dos Van-Zeller); a dos Abreu de Freitas, no topo da Calçada de Santa Apolónia, com casas e uma ermida dedicada a São Pedro de Alcântara; a dos Sousa de Meneses (de Francisco de Sousa de Meneses, 1º Copeiro-mor do reino e do filho António, dito o “Braço-de-Prata”), adquirida em 1862 pela Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses à família Coimbra; ou a dos Veloso-Rebelo, à Cruz de Santa Apolónia (depois Fábrica da Companhia Lisbonense de Tabacos)17.
Figura 1 Referência à Ermida de Santa Apolónia, em 1485. Pormenor da “Carta de emprazamento que fez o Mosteiro de Santos-o-Novo a Pêro Vaz, cavaleiro, de umas casas e olival, em Santa Maria do Paraíso, por seiscentos reis brancos”, 16 de agosto de 1485 (ANTT. Mosteiro de Santos-o-Novo, nº 128)
Figura 2 (em baixo) Pormenor da zona ribeirinha entre a Porta da Cruz e Santa Apolónia, no Panorama de Lisboa, da Biblioteca de Leiden, ca. 1540. Nota: não foi representada a Ermida de Santa Apolónia, mas sim a “cruz” que ficava defronte. [Prospect]. Anonymous. Drawing [1534-1537?]. Leiden University Libraries. Nº Inv. COLLBN J29-15-7831-110/30a-q
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O incremento da edificação e da circulação trouxe consigo a preocupação com o melhoramento e o alargamento das vias públicas18, mas também com a defesa, de que resultou a construção dos fortes de Santa Apolónia e da Cruz da Pedra19 Foi neste contexto de desenvolvimento urbano da zona oriental que se inseriu a nova comunidade feminina devota de Santa Apolónia. Dela encontramos registo em 24 de agosto de 1665, data em que “a Regente das Recolhidas do Recolhimento de Santa Appolonia” comprou a Gaspar de Abreu e Freitas20 e a sua mulher D. Úrsula de Abreu “humas Cazas junto à Ermida de Stª Appolonia que erao foreiras em 80 reis à Igreja Parochial de S. Estevão”, por 450$000 réis21. Segundo informação do escrivão José Maria Teixeira de Aragão, a escritura encontrava-se no Cartório do extinto Convento e registou-a no Inventário em 1833, sob o título “Nº 18”22. Até à data, não foi possível localizar a escritura pois não consta do Inventário. Não obstante, o registo do escrivão parece-nos essencial para a historiografia do edifício e da comunidade feminina23, pelo que dele deixamos testemunho, pela primeira vez (Fig. 4). O recolhimento foi-se estruturando e as Recolhidas manifestaram, desde cedo, a vontade de fundar um
convento franciscano. Segundo Frei Jerónimo de Belém começaram por pedir “à Província [de Portugal, da Ordem dos Frades Menores] para estarem sujeitas à sua obediência, professando Clausura”.
Em 670 terão conseguido um breve pontifício, mas que foi de curta duração24. Continuaram, assim, com o estatuto de irmãs terceiras franciscanas a residir num recolhimento, que teve a primeira
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intervenção arquitetónica, documentada, em 1692.
Figura 3 Pormenor da zona de Santa Clara e de Santa Apolónia, em 1619. Anónimo.”Joyeuse entrée” do Rei Filipe III de Espanha em Lisboa em 1619, c. 1620-22, óleo s/tela. Castelo de Weilburg. Inv. 1.1.160.
Figura 4 Registo “Nº 18” dos documentos do Cartório do Convento de Santa Apolónia, feito pelo escrivão J. M. Teixeira de Aragão, em 1833. ANTT. Inventário de Extinção do Convento de Santa Apolónia de Lisboa: 1833-1834. Ministério das Finanças, Convento de Santa Apolónia de Lisboa, cx 2235, fl. 33.
Com efeito, falamos de um projeto de ampliação que implicou a ocupação de um terreno vizinho. Disso nos dá conta uma petição das irmãs terceiras, de 18 de março daquele ano, apresentada ao Senado da Câmara, que nos permitiu comprovar a intenção de fazerem “huma Redificação No seu Recolhim.to” e a necessidade de “oCupar o vão de hum Recanto pegado a sua Igreija”25. Da leitura do documento concluímos que, antes de março de 1692, as Recolhidas já dispunham de uma “Igreija” (provavelmente, a antiga ermida) que foi também ela reedificada, “ficando Com a porta pera Norte”26 (o que nos leva a supor que a primitiva entrada principal teria uma orientação diferente). A reedificação e a ampliação vinham na sequência de “hum Incendio que neste Recolhim.to sucedeu”27; pediam à Câmara licença para começarem as obras, mas também para ocuparem o terreno em causa, um chão que “domina em hum beco”, que lhes pertencia e do qual o Senado lhes fizera mercê em tempos28. Reclamavam urgência nas medições e nas vistorias, uma vez que estavam mal alojadas “por quanto Metidas em duas Cazas, Comtudo aperto”. O cordeamento e a vistoria ficaram o cargo do “Arquitecto e Medijdor das Obras da Cidade, Mateus de Sousa”29. No dia 21 de maio deslocou-se ao local para “ver e Medir hum Recanto que esta da banda de fora do Recolhimento Domde he a portaria velha que fica emcostado a Igreeia pela banda de Nasente”30, garantindo que as Recolhidas não excediam as permissões. Tratava-se de um pequeno chão, que tinha “de Comprido quinze palmos e Meijo deste Canto da banda do Sul vindo do Nasente [eventualmente da esquina da Igreja] pera o poente athe o cabo do Recolhim.to aonde esta hum bequo da vazão das agoas”. A medição foi feita com a “Vara de Sinco Palmos da Marca da Cijdade” (que equivalia a 110cm). Interrogámo-nos se teria sido feito algum projeto da obra? Se sim, quem teria sido o autor?
Até à data não encontrámos qualquer informação. Consideramos, no entanto, pela primeira vez, a hipótese de ter sido o próprio Mateus de Sousa, que entrou ao serviço do Senado da Câmara em 167831, com o propósito de “riscar” em planta as obras que se fizessem de novo “para que fiquem com mais formosura”. Além disso, a partir dessa data, o cargo de arquiteto das obras passou a acumular também a obrigação de “assistir aos fogos”32. Ora, o Recolhimento de Santa Apolónia tinha sido intervencionado devido a um incêndio. A obra implicava ainda o alinhamento do arruamento público. No caso concreto, a eliminação de um recanto (ou de uma sacada saliente), de forma que a Rua de Santa Apolónia ficasse “Estrosida Com as Cazas que ficam pera diante e ficar a Rua sem o Recanto”. Pela “Certidão da Medição”, vemos que o arruamento ficou alinhado com as edificações e mais largo, com quarenta e sete palmos e meio (aproximadamente 10,45 metros). Entretanto, a devoção, a caridade e a pobreza praticada pelas irmãs terceiras franciscanas foi ganhando fama, merecendo a atenção da Coroa e de particulares. Conforme consta nos “Autos de Inventário” de 1833, depois do seu regresso a Portugal, D. Catarina de Bragança (1638-1705) promoveu diversas ações caritativas e mecenáticas, entre elas a atribuição de dotes a raparigas órfãs, recolhidas em Santa Apolónia, que pretendessem contrair matrimónio33. Todavia, o grande impulso para a futura casa conventual de Santa Apolónia foi dado por particulares – Domingos Ferreira Souto e a sua esposa Cristina da Silva34. No testamento de 26 de junho de 169835 (Fig. 5) firmaram a vontade última de promover “por conta de nossa fazenda” um novo edifício “para as recolhidas de Santa Apolónia”, cujas “muitas vertudes” lhes foram “narradas” por Domingos da Cruz36, frade da Ordem Terceira de S. Francisco.
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Figura 5 Excerto do testamento de Domingos Ferreira Souto e de sua mulher Cristina da Silva, de 1698. ANTT. Registo Geral de Testamentos”, 1678-1699. Feitos Findos. Registo Geral de Testamentos, Liv. 86, fl. 20.
No acordo, os mecenas requeriam o padroado e a “capella mor do d.to Convento” para sepultura do corpo (ou dos ossos) do testador, onde constaria o seguinte epitáfio: “Sepultura de Domingos Ferreira Souto fundador e padroeiro deste Convento no qual se dizem sinco missas quotidianas pela sua alma e de sua mulher Cristina da Silva padroeira também deste convento e está sepultada no de São Francisco desta Cidade”37 Da leitura do testamento depreende-se o rigor e a minúcia das intenções dos patronos quanto ao destino a dar ao convento, à sua decoração, ao número de religiosas, aos lugares destinados a familiares e aos dotes das noviças. Assim: dotavam o padroado do convento com “duzentos e quarenta mil reis de renda pera ordinária e sustento das religiosas”; consagravam seis lugares perpétuos (“em qt.o o mundo durar”) de noviças para familiares seus, (…) “três pera as parentes de cada hum de nos”38 e na falta destes para os de Custódio Nogueira39; e deixavam, ainda, 40.000 réis para a ornamentação da “sancristia e guizamento das missas”, mais 80.000 réis anuais para o capelão (e confessor), em troca de cinco missas diárias pelas suas almas, ao qual as religiosas deveriam garantir morada “nas cazas que as d.tas Relligiozas lhe darão”40.
Determinavam ainda que o convento tivesse apenas vinte e cinco religiosas, número ideal para que a instituição não sofresse “os damnos que padesem aquelles que se alterou numero da sua fundação e dotação”41
Sob pena de rescisão do contrato, as Recolhidas tinham dois anos para obterem as “licenças necessárias, assim eclesiásticas, como seculares pera a d.ta fundação e solenemente profeçarem as Regras de São Francisco”42. Cabia ainda aos administradores e aos seus testamenteiros garantirem a feitura das obras necessárias “no cítio e banda em que hoje se achão as recolhidas em que se posam recolher”43 Enquanto o templo não estivesse conlcuído, o corpo do fundador ficaria sepultado temporariamente no carneiro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja de São Julião, onde tinha servido como escrivão e secretário da Mesa. Em maio de 1702, as irmãs terceiras ainda não tinham obtido os documentos para fundação do convento, como se pode confirmar na petição que apresentaram sobre um “bocado de terra que esta na estrada junto a este Recolhimento (…) nesesario pera acresentar a Caza do Capelão por ser muito limitada e ficar ganhando Com o muro que se agora fes no forte e não fas dano na estrada”44 (Fig. 6, 7, 8).
Na centúria seguinte, são escassas as referências a novos trabalhos ou aos patronos. O nome que mais destaque passou a ter no seio da comunidade foi o de Clemente XI (Papa de 23 novembro de 1700 a 19 de março de 1721), precisamente por ter oficializado a passagem de Recolhimento a Convento: primeiro, em 1717, quando determinou a entrada das recolhidas em clausura, documentos que o próprio Júlio de Castilho diz ter visto no cartório de Santa Apolónia45; depois, a 6 de fevereiro de 1718, quando autorizou que professassem na “primeyra regra de S. Francisco quatorze Recolhidas”, que ficaram sob a jurisdição do arcebispo de Lisboa46.
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Figura 6 Pormenor da Grande Panorama de Lisboa: Recolhimento de Santa Apolónia? (hipótese). MNA. Anónimo [atrib. Gabriel del Barco. Painel de azulejos, ca. 1700. Nº Inv. 1.
Figura 8 Baluarte de St. Apolónia, junto ao Convento de Santa Apolónia, ca. 1727. ML. Planta Topográphica da Marinha das Cidades de Lisboa Ocidental e Oriental (…) no ano de 1727. Planta. Ms. col.. MS.DES. 1403.
Figura 7 Convento de Santa Apolónia: pormenor. ML. Lisboa antes do terramoto de 1755. Ticiano Violante. Maqueta, 1955-1959 (fot. José Vicente, 2015). MC.MAQ.0005
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Figura 9 (na pág. anterior) Petição das religiosas de Santa Apolónia para fazerem obras na fachada, 1719. AML-AH. [Consulta sobre a petição das Religiosas de Santa Apolónia]. Chancelaria Régia. Livro 1º das consultas e decretos de D. João V do senado ocidental.
Assistiram à cerimónia membros da corte e eclesiásticos, entre eles o Cónego e Visitador José Ferreira Souto47, familiar de Domingos Ferreira Souto (presença que parece abonar no sentido do cumprimento dos desígnios testamentários). De salientar ainda que foi também ele o redator da Regra e dos Estatutos das Religiosas da Terceira Ordem de S. Francisco, em 171848 A 5 de julho de 1719 as religiosas pediram ao Senado da Câmara para “fazer a Frontaria da sua Igreja de novo”49 (Fig. 9), endireitando-a pela parede que ia da Portaria (a poente) para a Casa dos Padres (a nascente). Queixavam-se da exiguidade do templo, sobretudo na zona do coro “que he tão piqueno que não cabem, as Religiosas nelle, senão estando m.to apertadas”. Argumentavam ainda as religiosas que desse “aperto” resultava “estarem Continuam.te doentes, Além de não Poderem assistir bem nelle aos Oficios divinos”50. A 12 de agosto desse ano, depois de vistoriadas, aprovaramse as obras, que obedeciam a uma planta apresentada pelo procurador do Convento. O objetivo era “…rotrocer direita a Frontaria da dita Igreija com a ombreira da sua Portaria que fica da parte poente, athe ao Cunhal das Cozinhas dos Padres que ficão da parte do Nasente”51 Tendo em conta que eram uma comunidade muito pobre, pretendiam fazer esta obra em duas fases, especificando que “querião agora somentes fazer a frontaria da Igreja e por evitar recantos de hua e outra parte bolear dos cunhais dellas o que baste dentro do Estrocimento pera Evitar os Recantos e vencerem os Vãos deles”, o que permitiria fazer dois confessionários52.
Feita a medição, percebemos que a fachada, com os seus oitenta e dois palmos e meio, tomava da via pública, a nascente do cunhal, “quatro palmos, e meio, e da parte do poente no outro Cunhal três palmos, e três quartos e de huma e outra parte hade morrer em ponta aguda”53 (Fig. 10). Tendo em conta que o Medidor das Obras da Cidade, José Freire, usou a “vara de cinco palmos” (110cm), a obra traduziu-se num aumento de c. 1,62 m (4,5 palmos mais 3,3/4 palmos), o que fez com que a fachada passasse de 18,15m (82 palmos e meio) para 19,77 m. O Senado, por seu turno, garantiu a ampla circulação na Rua de Santa Apolónia. A nascente, desde o cunhal da Igreja até “ao parapeito da serventia do pátio das Cazas Grandes de Senhor de Pancas”, foi alargada para 36 palmos (c. 7,90m); a poente, contando do mesmo cunhal até “à parede das Cazas piquenas do dito Senhor de Pancas”54, para 49 palmos (c. 10,78m),. O aumento era significativo; não podemos esquecer que só em 1745 se determinou que os arruamentos ou serventias de entrada ou saída pública das vilas tivessem entre 20 e 40 palmos55.
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Figura 11 Zona de Santa Apolónia: nº “94 - Convento de Santa Apolónia”, ca. 1763. BNP. Caula, Bernardo de (1763). Lisboa, vista e perspectiva da Barra, Costa e Cidade de Lisboa. Bernardo de Caula, 1º tenente de artilharia do Algarve. Cota D-177-R.
Figura 10 [Convento de Santa Apolónia]: pormenor. ML. Lisboa antes do terramoto de 1755. Ticiano Violante. Maqueta, 1955-1959 (fot. José Vicente, 2015). Cota MC.MAQ.0005
Em 1728, na qualidade de “Senhoras e pessuhidoras de Cazas, e terras que estão fronteiras ao seu Mosteiro”, as freiras apresentaram uma nova petição para “murar as terras, e Redeficar as Cazas, ou parte dellas”56. Segundo o cordeamento57, tratava-se de “huma morada de casas e hum chão em que tem huma Estancia de lenha a face da Estrada Real que vay de Santa Clara pera a Madre de Desos”58. A propriedade fazia esquina com a travessa fronteira à Igreja do dito Mosteiro e com o “cunhal das casas de Dom Thomas de Napolles”59. O Senado autorizou a obra, com a condição de endireitarem as paredes à face da via pública, eliminarem recantos e construírem sacadas acima dos dezasseis palmos de altura. Tendo em conta que se tratava de uma instituição com parcos recursos financeiros, não deixa de ser interessante esta pretensão, que pode ser entendida num contexto de alguma folga económica. Estaria essa suposta liquidez relacionada com a instituição de algumas capelas e com os respetivos legados pios, dos quais destacamos o do Padre Diogo Tinoco da Silva, em 172760? Deixamos aqui a hipótese.
O terramoto de 1 de novembro de 1755 abalou o edifício, é certo (Fig. 11). Contudo, o grau de destruição não foi consensual, na opinião dos autores. Segundo Baptista de Castro “ficou pouco arruinado este Mosteiro, porem as Religiosas se abarracaram no forte a elle contíguo”61; já o relatório do pároco Luís da Costa Barbuda, de 22 de julho de 1758, deixou-nos a imagem de um conjunto inabitável, que obrigou as trinta e duas religiosas (vinte e oito de véu preto e quatro de véu branco) a recolherem-se no Forte de Santa Apolónia (Fig. 12), donde saíram em 175762. As dificuldades financeiras63, que marcaram a vida da comunidade ao longo de Setecentos, não lhes permitiram restaurar a igreja, tendo reconstruído apenas o convento. Segundo Baptista de Castro, “a piedade de um certo Devoto o tem mandado edificar todo a fundamentis [fundações] com prompta e liberal grandeza”, acrescentado “para a parte do mar, ganhando mais comodidade e fortaleza”64. Não foi possível, até à data, confirmar estes dados.
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Figura 12 Planta do Forte de Sta. Apolónia, junto ao Convento (Casas dos Padres), em novembro de 1813. GEAEM. Planta do Laboratório Fulminante no Forte de Sta. Apolonia [em Lisboa], no estado em que se achava no 1º de novembro de 1813. Esc. N/ determinada. [S.l.: s.n.], 1813. 1 planta, ms., col. DIE. Cota 3845/II-2-23-32
1833, o ano da supressão
Em junho de 1830, três anos antes da entrada do Regente D. Pedro na capital65, teve lugar no Convento de Santa Apolónia uma cerimónia religiosa que mereceu destaque na imprensa da época. Tratouse da entrada de uma noviça, que contou com a presença do Rei D. Miguel (governou entre 1826 e 1834), da Corte e das dignidades eclesiásticas, que visitaram o “Convento e Officinas”66. A protagonista, D. Gertrudes Magna, da Santa Casa da Misericórdia, protegida do monarca, chegou acompanhada de D. Francisca do Vadre67, para ser recebida em clausura pela abadessa, Soror Gertrudes do Amor Divino. Este episódio, que trazemos à luz pela primeira vez, chamou-nos a atenção pela singularidade dos acontecimentos. Como é que a entrada de uma noviça em Santa Apolónia contou com a presença do monarca e da corte absolutista? Que papel desempenhou aquele ato no destino da comunidade? Eventualmente, nenhum. Ainda assim, não deixa de ser curioso que, pouco depois de ter acolhido uma cerimónia de cariz absolutista, tenha sido um dos primeiros conjuntos conventuais femininos a ser extinto e expropriado. Poderia essa proximidade ter sido vista com maus olhos pelas hostes liberais? Não podemos esquecer que, à luz da legislação vintista, o acontecimento era ilegal,
não só porque os noviciados tinham sido proibidos em 1821 (Decreto de 23 de março), mas sobretudo porque qualquer tipo de “apoio” aos absolutistas era proibido, o que deixava a comunidade de freiras numa posição vulnerável, a raiar a “alta traição”. Episódio à parte, certo é que, entre julho e outubro de 1833, obedecendo ao programa liberal de reforma eclesiástica (que antecipou o diploma de maio de 1834), sucederam-se as ordens e os decretos68 que culminaram na supressão daquele conjunto conventual feminino (Fig. 13).
A Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares69, reinstaurada em agosto de 1833, iniciou o processo de extinção do Convento de Santa Apolónia, executando a Portaria de 1 de Outubro de 183370 de D. Pedro, Regente em nome da Rainha D. Maria II (1819-1853).
Para redator dos Autos de Inventário nomeou-se o escrivão José Maria Teixeira de Aragão e para juiz comissário, o pároco da Igreja de S. Tomé, João de Deus Antunes Pinto. Competia-lhes verificar o espaço conventual e responder a um breve inquérito do qual constavam quatro perguntas, a saber: “1º Quantas religiosas tem o mencionado Convento; 2º Que utilidades espirituais achão os Povos na conservação delle; 3º Quantos e quais são os rendimentos do referido convento; 4º Quais os legados Pios com que os bens são onerados”71. Perante as religiosas e “três testemunhas, de reconhecida probidade” lavraram-se os autos e entregou-se a “Igreja, Tabernáculo, e utensílios sagrados ao Parocho do districto”. Da consulta do cartório do Convento, resultaram quatro inventários: o “1º dos objetos preciosos não sagrados, o que formarão um Segundo Inventario; 2º de objectos de refetorio, cosinha e enfermaria, e mais mobília da comum; 3º da Livraria e manuscritos; 4º finalmente do Casco, Cerca e Predios Rusticos ou urbanos, foros, pensões, títulos de juros ou outra qualquer cousa de valor”72
A 3 de outubro de 1833, o juiz comissário e o escrivão entraram no Convento, dando início ao “Auto de Investigação”. Foram acompanhados por António Feliciano da Silveira Gusmão, prior da freguesia de Santa Engrácia, constituído procurador das dezanove religiosas73 de Santa Apolónia, que foram transferidas, na véspera, para o Convento de Santa Ana, onde tinham sido ”incorporadas perpetuamente”74. Nesse dia, questionado sobre as “utilidades espirituais” do convento, Silveira Gusmão declarou que “nenhumas utilidades espirituais achava na conservação deste convento”75. Os argumentos avançados foram, no essencial, os mesmos emitidos durante o governo pombalino: a relaxação dos costumes, o elevado número de religiosas e as dívidas contraídas para sustento.
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Figura 13 Gravura da fachada de Santa Apolónia, ca. 1834. BNP. Pereira, L. G. (1840). Descripção dos monumentos sacros de Lisboa …; recopilado por Luiz Gonzaga Pereira. Manuscrito original. 1 des., ms. 1840, [p. 60]. Cota COD. 215.
De resto, em 1834, Joaquim António de Aguiar justificava a necessidade de decretar a extinção das Ordens regulares “porque a Religião nada se lucra com ela, e a sua conservação não era compatível com a Civilização e as Luzes do Século”, sendo, como tal, forçoso “dar destino aos Bens que possuíam porque era Inútil pretender Reformá-las”76.
Finalizado o “Auto de Investigação” procedeu-se aos “Autos de Inventário”: “1º dos objetos preciosos não sagrados (…); 2º de objectos de refetorio, cosinha e enfermaria, e mais mobília da comum; 3º da Livraria e manuscritos; 4º finalmente do Casco, Cerca e Predios Rusticos ou urbanos, foros, pensões, títulos de juros ou outra qualquer cousa de valor”77. Entre os rendimentos anuais do Convento destacavamse: dois armazéns arrendados, que rendiam 300 mil réis/ano, foros no valor de 82.000 rs.; padrões de três capelas, que importavam em 252.727 rs.; apólices de empréstimos que rendiam de juro 176.780 rs.; juros reais, no valor de 814.573 rs., “tudo avaliado em 1 conto e setecentos mil réis”78. Assinaram os “Autos” Miguel do Carmo Alves do Rio e José António Mâncio da Costa Ubaldo, deputados da dita Junta. Em concordância, justificaram que a “supressão não Sendo leziva ao Povo, pelas Razões acima ditas, he util a Fazenda Publica, que lucra muito na extinção, porquanto profanada a Igreja (…), fica todo o Edifício reduzido a Armazéns”.
Não podemos esquecer aqui o papel do Conselheiro e Presidente da Junta, Marcos Pinto Soares Vaz Preto79 (Fig. 14), que redigiu o decreto de extinção, de 29 de outubro de 1833, onde se pode ler: “Supprimimos, extinguimos, e profanamos o Convento de Stª Apolonia com todas as suas oficinas, predios rústicos e urbanos, foros, censos, direito e acções”80 D Pedro emitiu a decisão final: o edifício ficava à disposição da Alfândega das Sete Casas. Cumpria, assim, a decisão tomada um mês antes, a 13 de setembro, de garantir um espaço onde pudessem “ser recolhidos os géneros, que na mesma Alfândega já não podem ser arrecadados por falta de cómodo”81. Segundo a nova orgânica82, a instituição que concentrava a gestão e a cobrança de direitos e impostos a aplicar aos géneros e produtos entrados na capital, passou a dispor de quatro Casas de Despacho, uma delas em Santa Apolónia83
Percebemos, desta forma, o papel que o Convento passou a desempenhar: a nível económico, enquanto espaço de armazenamento de bens e produtos, comercialização e arrecadação de impostos; a nível geográfico, pela implantação estratégica junto ao rio, fronteiro a uma das estradas de saída da cidade, próximo da Porta da Cruz da Pedra e protegido por dois fortes. Em 1834, pela Portaria de 24 de fevereiro, a Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos solicitou informações sobre a requisição do Convento de Santa Apolónia e do Colégio da Graça pelo Marechal de Campo para “aboletamento das tropas”84. A Junta de Melhoramento respondeu a 28 de fevereiro; em jeito de sumário, o documento revelou-se de grande valor, por registar as várias ocupações por que passou o edifício, desde que fora requisitado pela Alfândega das Sete Casas. Percebemos, assim, que a instituição “logo o largou, passando a quarto dos empregados das duas margens do Tejo”, alojando “gente Pobre”, o que contribuiu para a sua ruina e risco de incêndio85. A 5 de março desse ano, D. Pedro designou a venda do edifício pelo Tesouro Público e a 14 estava destinado ao Colégio dos Aprendizes do Arsenal do Exército. Segundo Gonzaga Pereira, servia de “domicílio dos meninos da Real Caza Pia, que se achão aprendendo diversas faculdades no Arsenal do Exército”86. Mantiveramse por lá, pelo menos, até ao final da década de 185087.
Extinguir, desamortizar e reutilizar. Santa Apolónia e as “estradas de ferro” Como vimos, desde março de 1834 que o extinto Convento de Santa Apolónia estava disponível para ser vendido em hasta pública pelo Tesouro. Foi sendo ocupado, mas em agosto de 1852, no governo do Duque de Saldanha, João Carlos de Oliveira Daun (17901876), passou para a posse da Companhia Central Peninsular88, com o propósito de servir a primeira rede férrea portuguesa, entre Lisboa e Espanha.
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Figura 14 Retrato de Marcos Pinto Soares Vaz Preto, em 1834. BNP. Primavera, José Joaquim Rodrigues – [Marcos Pinto Soares Vaz Preto, dito Padre Marcos]. [s.n.], Oficina Régia Litográfica, 1834, 1 litografia: sépia. Cota E. 28 A.
Não pretendemos fazer aqui a história do caminhode-ferro em Portugal, por não caber neste estudo. No entanto, não sendo possível desligar o extinto cenóbio da fase de implantação da primeira rede férrea nacional, onde funcionou como primeira gare, deixamos aqui um resumo, assinalando os momentos mais relevantes do processo. Começamos por salientar que Portugal lançou-se na corrida pelo desenvolvimento do transporte ferroviário na segunda metade do século XIX, com um ligeiro atraso em relação a alguns países da Europa89. Na materialização do progresso tecnológico, que era também civilizacional, esteve o Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (MOPCI), criado em agosto de 185290 e à frente do qual ficou José Maria de Fontes Pereira de Melo (1819-1887). Neste cenário, privilegiando a ligação com a Europa através de Espanha, os Regeneradores consideraram prioritária a linha entre Lisboa e Santarém (primeira seção da linha internacional)91
A 13 de maio de 1853, o governo assinou contrato definitivo com a Companhia Central Peninsular para o projeto do engenheiro inglês Thomaz Rumball (1824-1902), que remontava a 185192. O responsável pelos estudos do traçado fez algumas alterações à proposta inicial, em função do parecer do Conselho Superior de Obras Públicas e Minas, que considerava
Figura 15 Zona ribeirinha entre a Fundição de Baixo e o Convento de Santa Apolónia: pormenor, entre 1808-1832 BNP. Fava, Duarte José (ca. 1808-ca. 1832). [Carta topográfica da Cidade de Lisboa Comprehendendia entre Barreiras ] : [desde a Ribeira da Alcântara até ao Convento de Santa Apolónia]. [Esc. Ca. 1:2500]. 1 planta, ms. Cota D-153-R.
mais conveniente que a exploração da linha de ferro tivesse o seu ponto de partida na margem do Tejo, junto ao Cais dos Soldados93 (Fig. 15). A 28 de maio desse ano, a Rainha D. Maria II inaugurou os trabalhos de construção (Fig. 16). Avançou-se, entretanto, para o processo de expropriação do Convento. A Companhia propôs ao governo a expropriação de “parte do edifício dos Aprendizes do Arsenal do Exercito, a Santa Apolónia (…), visto que o traçado da linha férrea de Leste havia de passar pelo terreno em que existe a parte do dito edifício”94.
Figura 16 Desenho da inauguração dos trabalhos de construção da linha férrea em Lisboa, em 7 maio de 1853. MNF. Bárbara, A. José de Santa (1853). Início dos trabalhos de construção do caminho de ferro. Des. aguarelado, color. Nº inventário: FMNF/ENT/000976
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Entre março e abril de 1855 o Ministério das Obras Públicas oficializou a proposta e uniu esforços com o Ministério da Guerra, de quem dependia o dito colégio, no sentido de executar as obras necessárias e indemnizar o inquilino que trazia de aluguer dois armazéns contíguos. Recorde-se que “Santa Apolónia” era uma das muitas instalações do Arsenal (antiga Fundição) espalhadas pela capital, que alojava a “casa do inspector”, o “colégio de aprendizes” e a “oficina pirotécnica”95. Com a aprovação da Lei de 6 de julho de 1855, o governo foi autorizado a iniciar a construção da linha no Cais dos Soldados. Apesar dos incumprimentos96 e da falta de um levantamento geológico e topográfico rigoroso97 foi possível inaugurar o troço Lisboa-Carregado. A cerimónia ficou marcada para o dia 28 de outubro de 1856 e contou com a presença do Rei D. Pedro V (18371861), que saiu da “Gare Provisória de St.ª Apolónia” (Fig. 17, 18, 19) na carruagem real (locomotiva a vapor) e percorreu os primeiros 30,5 km de linha (Fig. 20).
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Figura 17 Benção da primeira locomotiva, sob o pavilhão montado na gare provisória de Santa Apolónia, 1856. “Caminho de ferro do leste – pavilhão em Santa Apolonia”. Histórias com História (Blog).
Figura 20 Chegada do primeiro comboio à estação do Carregado. Outubro de 1856. MNF. Barbara, A. José de Santa. Des. aguarelado, color, 1865. Nº inventário: FMNF/ENT/00097
Figura 18 Planta da zona de Santa Apolónia entre o Cais dos Soldados e a Estação de comboios, em 1858. Pormenor: Rua de Santa Apolónia, o edifício da Estação provisória, as linhas férreas e o cais de embarque AML. Atlas da Carta Topográfica de Lisboa: Nº 38: Setembro 1858 / Dir. Filipe Folque. Esc. 1:500. Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa. Cod. PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/05/01/40.
Figura 19 Estação Central [extinto Convento] e Cais de embarque do caminho de ferro, em 1871. GEO. Levantamento Topográfico de Lisboa: nº 38 / Repartição de Calçada e Canalizações. Lisboa: Câmara Municipal, 1871, 1 planta, ms. (tela s/ cartão). Cota MP 4412 RES.
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Um ano depois, a 15 de setembro de 1857, principiou o transporte de mercadorias. Depois da rescisão do governo com a Companhia Peninsular, em 1857 (decreto de 9 de julho), seguiu-se uma nova fase, marcada por um maior dinamismo. Em 1859 constituiu-se uma nova empresa - a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses98. Ao empresário e político espanhol, D. José de Salamanca (1811-1883), o governo português concedeu a construção e a exploração de duas linhas a partir de Lisboa: uma até à fronteira espanhola e outra até ao Porto. O concessionário era obrigado a fornecer todo o material fixo e circulante da linha99, a instalar o telégrafo e a construir uma estação central na capital, na zona do Cais dos Soldados. Os prazos foram sendo cumpridos: o projeto da estação de caminhode-ferro do Norte e Leste foi aprovado pela Portaria de 5 de maio de 1862; e em 31 de maio de 1863 inaugurou-se a circulação entre Lisboa e Espanha. Por fim, a 1 de maio de 1865, a capital engalanou-se para celebrar a abertura da nova “Estação dos Caminhos de Ferro do Norte e Leste”, no Largo do Cais dos Soldados (antiga Praia dos Algarves). O projeto foi dos engenheiros Angel Arribas Ugart, João Evangelista Abreu e Nicolas Lecrenier, com trabalhos do construtor Oppermann. O edifício dispunha apenas de um piso100, destacando-se a extensa nave em ferro e vidro (Fig. 21, 22). Com o funcionamento da nova estrutura, a estação provisória no extinto Convento tornou-se obsoleta. Mais tarde, amputou-se uma parte do edifício a sul, para alargamento das linhas (Fig. 23, 24).
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Figura 21 Estação de Santa Apolónia: entre 1865 e 1880 AML-AF. Estação de Santa Apolónia: vista geral. 1 foto, sépia, [entre 1865-1880]. Cotas. ORI000737 Cat 35. Cod. Ref. PT/AMLSB/ORI/000737
Figura 22 Estação principal dos Caminhos de Ferro do Norte: vista do lado do Tejo e interior do cais, ant. 1907 AML-AF. /em baixo:) Estação principal dos Caminhos de Ferro do Norte: vista do lado do Tejo, fot. A. S. Fonseca, 1 foto, p&b, ant. 1907. Cod. Ref. PT/AMLSB/CMLSBAH/; PT/AMLSB/POR/060347
Figura 23 (na pág. seguinte, em cima) Planta da Estação provisória de Santa Apolónia (extinto Convento), em 1866. ML. Extincto Convento de Stª Apolónia. Antiga Estação de Lisboa: Planta do 2º e do 1º andar: Março 1866. Esc. 1:200. 1 planta, color. Cota: MC.DES 1502.
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Figura 24 Convento de Santa Apolónia: lado sul. Edifícios do extinto Convento. AML-AF. Convento de Santa Apolónia: lado sul visto do rio. Foto. Ed. Portugal, 1 foto, p&b, [déc.. 1940]. Cod. Ref. PT/AMLSB/POR/059438
Neste contexto, foi necessário conquistar terreno ao Rio (Fig. 25). O embelezamento e o melhoramento citadino, enquanto imagem de progresso civilizacional, entraram na ordem do dia e com ele a melhoria das condições de circulação viária e a abertura de novas estradas e linhas férreas, que faziam parte do plano de melhoramentos lançado pelo governo fontista em 1853 e consolidado, mais tarde, em 1864101. A configuração do local dificultou sobremaneira a execução do projeto: uma margem muito estreita e um rio relativamente profundo. Sucederam-se estudos,
Figura 25 Evolução das obras da zona ribeirinha: 1856/58 a 1950. Comparação dos levantamentos de Lisboa (Filipe Folque e IGC).
alterações ao projeto e problemas de execução102. Contudo, só em 1885, se reuniram as condições necessárias para proceder a obras na frente ribeirinha da capital. Pela Carta de Lei de 16 de julho, foi o governo autorizado a adjudicar as obras do porto de Lisboa (projeto dos engenheiros João Matos e Adolfo Loureiro) ao engenheiro francês Pierre Hildernet Hersent. Pressupunham a regularização da margem do Tejo através de aterros, cais e docas de abrigo, muros de acostagem, equipamentos portuários, linhas férreas, pontes e armazéns.
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A 31 de outubro de 1887, o Rei D. Luís (1838-1889) inaugurou o início dos trabalhos da primeira empreitada (de Santa Apolónia a Alcântara).
No início do século XX, o extinto convento serviu de armazém dos funcionários da CP, acabando por ser demolido na década de 1950 (Fig. 26).
Por iniciativa do Dr. Rui Sommer a fachada barroca da Igreja foi apeada e transportada para a aldeia do Arripiado, concelho da Chamusca onde hoje pode ser contemplada, na Igreja de S. Marcos (Fig. 27).
4
Entre a demolição e a sobrevivência da memória. Considerações finais
O Convento de Santa Apolónia de Lisboa constituiu, como vimos, uma exceção no programa da reforma liberal das ordens religiosas, por ter sido expropriado antes da legislação nacional de maio de 1834.
A localização geográfica, na margem oriental do Tejo, perto do Arsenal do Exército e do Cais dos Soldados, estruturas essenciais para as tropas liberais, mas também junto à Porta da Cruz da Pedra, pesou certamente na escolha do local pelo Regente D. Pedro, que o destinou a armazém de géneros da Alfândega das Sete Casas (em 1833). Essa mesma posição, no eixo de saída da capital para o Norte e para Leste (até Espanha), motivou, mais tarde, a aquisição do conjunto conventual para estação provisória de comboios (passageiros e mercadorias), expressão máxima da modernidade e do progresso oitocentista.
No processo decisório de 1833, não terá sido alheia a posição das Religiosas de Santa Apolónia, quanto aos noviciados e a proximidade à facção absolutista de D. Miguel. De igual forma, não podemos ignorar o papel dos intervenientes no processo de avaliação e de inventariação, que decidiram pela supressão e desamortização. Falamos de um conjunto de decisores políticos e religiosos vintistas, alguns da ala liberal mais radical, em particular do Padre Marcos, amigo pessoal e confessor do Regente D. Pedro e da Rainha D. Maria II. Por último, gostaríamos de salientar que o Convento de Santa Apolónia foi suprimido mas só mais tarde demolido. A parte sul do edifício conventual foi sacrificada (quase um corte a meio) com o alargamento das linhas férreas no último quartel de Oitocentos. A frontaria virada a norte, para a Rua de Santa Apolónia, sobreviveu até à década de 1950. A memória histórica do templo setecentista permanece ainda hoje na fachada da Igreja Paroquial do Arripiado, virada para o Tejo, rio que a viu nascer, para onde foi deslocada e remontada no início da década de 1960.
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Figura 26 Rua de Santa Apolónia: o Convento na década de 1940 e o prédio da CP em 2018. AML-AF. Convento de Santa Apolónia: a parte baixa é demolida / Ed. Portugal. 1 foto, p&b, 1943. Cod. Ref. PT/AMLSB/POR/050441.
Figura 27 Igreja de S. Marcos do Arripiado: frontaria (post. 1960)
1 Com efeito, nos termos do Decreto de 9 de agosto de1833 (que determinava o encerramento dos Conventos, Casas Regulares e Hospícios com menos de doze indivíduos professos), até dezembro desse ano foram suprimidos em Lisboa apenas institutos religiosos masculinos: o de N. Senhora da Estrela, vulgo da Estrelinha; o de N. Senhora da Boa-Hora (de Belém e de Lisboa); o de São Pedro de Alcântara; o de N. Senhora da Porta do Céu; o de N. Senhora da Penha de França; o de N. Senhora do Livramento (ou da Santíssima Trindade); o de S. Francisco de Paula; o de S. João de Deus; o de N. Senhora da Divina Providência (ou de S. Caetano); o de Santa Maria de Belém (ou dos Jerónimos); o da Boa-Morte de Lisboa; de N. Senhora dos Anjos da Porciúncula, vulgo dos Barbadinhos Franceses; e o de São Cornélio dos Olivais. Vide sobre o assunto: Projecto LxConventos- Base de Dados Disponível em http://lxconventos.cm-lisboa.pt/base de dados/
2 No âmbito da “Reforma eclesiástica” empreendida pelo Ministro e Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, promulgouse o Decreto de 30 de maio de 1834 (assinado a 28 de maio) que determinou a extinção dos colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens e de todos os seus bens, móveis e imóveis (à exceção dos paramentos e vasos sagrados, que deveriam ser entregues aos Ordinários das dioceses), seguida da respetiva nacionalização e incorporação na Fazenda Nacional., Impedidas de receber noviças (Decreto de 5 de agosto de 1833) as casas femininas encerravam à morte da última freira; enquanto a comunidade não se extinguisse permitia-se a posse de bens, prerrogativa que terminou em 1861, pela Lei de 4 de abril.
3 Apolónia de Alexandria viveu no Egito, onde foi martirizada por não renunciar à fé cristã (249 d. C). A descrição das torturas – dentes arrancados e queimada viva – foram relatados por São Dionísio, Bispo de Alexandria (séc. III). A padroeira das dores de dentes e dos odontologistas, identificada pelos atributos da palma do martírio e do alicate, foi canonizada por volta de 300 d.C. e tem festa litúrgica a 9 de fevereiro.
4 A Ermida de N. S. do Paraíso localizava-se abaixo do Convento de Santa Clara, na Rua do Paraíso, sensivelmente no largo hoje fronteiro ao prédio nº 9 e à Travessa do Paraíso. Em 1551 pertencia à freguesia de Santo Estevão (depois Santa Engrácia); tinha “um ermitão (…), missa de canto de órgão todolos domingos e festas e uma confraria governada por pescadores”, cujas esmolas valiam 100 cruzados (Oliveira 1987, 56). Entre 1630 e abril de 1835 foi sede da paróquia de Santa Engrácia. Segundo Francisco Luiz Pereira de Sousa, o templo assentava sobre um banco de grés, afloramento rochoso que se mantinha em 1909 (Sousa 1909, 447).
A confraria de Nossa Senhora do Paraíso parece remontar ao século XIV (c.1366). Teria sido instituída no Mosteiro de Santos (o Velho), administrada pelas Comendadeiras e transferida, no final de Quatrocentos, acompanhando a mudança das Donas para oriente (futuro Mosteiro de Santo-o-Novo). Vide sobre o assunto: “Colégio de S. Francisco Xavier”. Projecto LxConventos - Base de Dados Disponível em http://lxconventos.cm-lisboa.pt/base-de-dados/ 5 Silva 1968, V. 2, 265.
6 A referência documental mais antiga ao “Caminho pp.co honde esta a Hermijda de Sancta Apellonia”, que se conhece, até ao presente, é 16 de agosto de 1485. Consta do emprazamento que fez o Mosteiro de Santos-o-Novo a Pêro Vaz (cavaleiro do rei e vedor das obras da cidade) de umas casas e olival, em Santa Maria do Paraíso, por seiscentos reis brancos” (ANTT. Mosteiro de Santos-o-Novo, nº 128). Foi citada por J. Sarmento de Matos, na obra “Caminho do Oriente. Guia Histórico” (V. 1, 63), mas com uma cota antiga, que agora localizámos, o que foi possível com o cruzamento de dados e a aturada ajuda do serviço de referência do ANTT, a quem agradecemos.
7 As propriedades ou “chãos” transacionados em meados do século XVI situavam-se na “barroca” e “além da barroca” em Santa Apolónia. Vide sobre o assunto: AML-AH. [Registo do foro de um chão em Santa Apolónia], 1551.01.29. Chancelaria da Cidade, Livro 1.º de tombos antigos, fl. 118v; AML-AH. [Registo do foro de um chão e
barroca em Santa Apolónia], 1547.09.01. Chancelaria da Cidade, Livro 1.º de tombos antigos, fl. 116
8 Em 1565, “Dom Diogo deÇaa” (ou de Eça) era um proprietário abastado, que tinha ao seu serviço, pelo menos, catorze pessoas (Livro do Lançamento e Serviço… de 1565, 1947, Vol. IV, 296).
Tratava-se, provavelmente, de D. Diogo de Eça Corte Real (filho de D. Pedro de Eça e de D. Maria da Silva), herdeiro do morgado instituído em 1548 por sua tia materna D. Filipa da Silva (filha de Vasco Eanes Corte Real e de D. Joana da Silva). Vide sobre o assunto: ANTT. “Instituição de Morgados por D. Filipa da Silva, filha de Vasco Eanes Corte Real e de D. Joana da Silva”, 1548. Morgados e Capelas. Núcleo Antigo, 195. Cod. Ref. PT/TT/MC/1/195.
9 Oliveira 1987, 57.
A ermida de Santa Apolónia não era “curada” ou seja não tinha cura de almas (Brandão 1990, 114). Ainda em 1551, temos conhecimento de propriedades (“huns chãos”) em Santa Apolónia, pertencentes a Gaspar Mendes, físico do Rei, e a sua mulher Catarina Vieira, que passaram depois para Diogo de Eça [Corte Real]. Vide sobre o assunto: AML-AH. “Chancelaria da Cidade. Livro 1º de tombos antigos”, fl. 119 (PT/AMLSB/CMLSBAH/ADM/002/0372/0302).
10 Da desanexação de uma parte do território de Santo Estevão criou-se a freguesia de Santa Engrácia- Breve do Papa Pio V de 30 de agosto de 1568, confirmado pelo Arcebispo D. Jorge de Almeida a 2 de dezembro de 1569. Em 1620 já tinha 790 vizinhos e cerca de 3040 pessoas (Oliveira 1991, 530). Em 1825 contava 1890 fogos e 7820 habitantes (Notícia estatística de Lisboa ou Breve notícia das cousas mais notaveis …, 1834, 3).
Em 2012, com a reforma administrativa do concelho de Lisboa, o território passou a integrar a freguesia de S. Vicente (Lei 56/2012, de 8 de novembro). Vide sobre o assunto: Gabinete de Estudos Olisiponenses (2011). Nova proposta administrativa para Lisboa, coord. geral Anabela Valente. Lisboa, GEO. Disponível em https://issuu.com/gabinete.estudos. olisiponenses/docs/nova_proposta_administrativa_lisboa
11 Encontrámos alguns documentos relativos a emprazamentos e aquisições de propriedades de vinha, olival e horta junto à Ermida de Santa Maria do Paraíso, parte delas pertencentes ao Mosteiro de Santos-o-Novo. Vide sobre o assunto ANTT. Mosteiro de Santos-o-Novo, n.º 129, nº 136 e nº 119
12 Falamos, entre outros, dos conventos: de Santa Clara, das freiras Clarissas, construído no atual Campo de Santa Clara, a partir de 1290; da Madre de Deus, fundado em 1508 pela Rainha D. Leonor, viúva de D. João II; e de Santos-o-Novo, iniciado em 1609, para alojar as comendadeiras da Ordem de Santiago, saídas do edifício primitivo em Santos-o-Velho.
13 As Tercenas da Porta da Cruz, iniciadas por volta de 1488 e ampliadas a partir de 1515, eram importantes estruturas de fabrico e armazenamento de material de guerra (fundição de peças de artilharia e espingardaria) e de pólvora, que dependiam de moinhos, movidos a força animal. O edifício a nascente da Casa da Pólvora, assentava num “pedroso pódio regular de pedra, projetado sobre o rio, com cais privativo” (Caetano, 2004, 168-169, 179-181). No piso térreo instalou-se a Fundição de Baixo. Depois de 1640, o piso superior recebeu a Tenência, repartição do Estado que assegurava o fabrico, armazenamento e distribuição de artilharia e material de guerra às forças armadas. Após o incêndio de 1726, D. João V ordenou a reedificação do edifício (arquiteto Fernando de Larre). Ficou concluído em 1760, passando a designar-se Real Arsenal do Exército, em 1764. No local funciona atualmente o Museu Militar. 14 A par da moagem, a panificação desempenhou um papel de relevo na zona ribeirinha oriental. A indústria de fornos de biscoito teve um papel determinante na expansão ultramarina. Na capital, destacaram-se os Fornos de Biscoito das Portas da Cruz (séc. XV), na base da encosta ao longo da qual corria a atual Rua do Paraíso. Na margem sul, destacou-se o complexo real de Vale de Zebro (séc. XVI), no Barreiro, com 27 fornos, armazéns de trigo, cais de embarque, moinhos e pinhal circundante, do qual foi provedor Duarte da Gama. De salientar que, em 1524, D. João III autorizou a retirada de 12 mós que se encontravam nas “paderias de Sancta Apollonia” para
Notas
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os fornos do Vale de Zebro; um ano depois proibia o ato, sob pena de prejudicar os caminhos de acesso (AML-AH. Chancelaria Régia. Livro 2º de D. João III, doc. 17, fl. 23-23v; doc. 33, fl. 48-49v.).
15 Paredes meias com a Alfândega Nova e fronteiro à antiga Igreja da Misericórdia, o “Terreiro do Trigo” ou “Terreiro do Pão” era um edifício quinhentista com duas alas paralelas e trinta e dois arcos, que servia de celeiro e alfândega de cereais. Em 1766 deu lugar ao Celeiro Público (plano do arq. Eugénio dos Santos Carvalho), com a sua característica fachada virada para a atual Avenida Infante D. Henrique, onde funcionou a Alfândega de Lisboa.
16 Para além dos conventos, os cais de embarque revelaram-se fundamentais na evolução da frente ribeirinha, permitindo o escoamento rápido e cómodo dos produtos. Falamos, no caso oriental, dos cais: da Pólvora, do Carvão e da Madeira, mas também do Tojo e dos Soldados, à Bica do Sapato. De considerar ainda as pequenas docas de abrigo das embarcações, ou “caldeiras”, com seus muros de abrigo e escadas de acesso. O Cais do Tojo antecedia a “caldeira” e as carvoarias da Bica do Sapato que ficavam nas traseiras do palacete da família Abreu de Freitas, no local onde se encontram as linhas férreas da Estação de Santa Apolónia. O Cais da Bica do Sapato e as caldeiras adjacentes foram mandadas construir em 1768 pelo Senado da Câmara, sob a presidência de Paulo de Carvalho (irmão do Marquês de Pombal). Vidé sobre o assunto: Castilho, Júlio de - A Ribeira de Lisboa; Ratton, Jácome (1813) – Recordações de Jácome Ratton (…) sobre ocorrências do seu tempo em Portugal, Londres, p 207. De referir que à Bica do Sapato existiu uma forca para execução de penas capitais, pelo que o sítio ficou conhecido também como “Cais da Forca”. Em 1867 decretou-se a abolição da pena de morte em Portugal, facto assinalado em março de 2018 com a obra “Mural”, do artista Mário Belém.
17 Vide sobre “Lisboa oriental”: Matos, J. S.; Paulo, J. F. 1998, II.
18 Em dezembro de 1568, D. Sebastião ordenou a reparação do caminho entre Santa Apolónia e o Convento das Comendadeiras de Santos (“Decreto de D. Sebastião, 1568”. Chancelaria Régia, Liv. 1º de Consultas e Decretos de D. Sebastião, doc. 41 e 41ª, fls. 63-64v. PT/AMLSB/CMLSBAH/CHR/010/0001/0043).
Entre 1673 e 1683 abriu-se a rua e concluiu-se o cais da Bica do Sapato, melhoramentos públicos que implicaram a ocupação de um terreno de Gaspar de Abreu Freitas que pediu uma recompensa pelo prejuízo (“Consulta sobre a petição de Gaspar de Abreu Freitas, 17-05-1683”. Chancelaria Régia. Livro 7º de consultas e decretos de D. Pedro II, fl. 293-294v.).
19 Depois de 1640, D. João IV ordenou a elaboração de um projeto geral de defesa do reino, do qual resultou a chamada “Linha Fundamental de Fortificação”, gizada pelos engenheiros militares Charles Legart, Jean Cosmander e Jean Girot. Foi no âmbito desse programa que se idealizou para Lisboa, em 1652, uma cintura fortificada entre Alcântara e a Cruz da Pedra, da qual apenas se construíram os fortes do Sacramento e do Livramento, a ocidente, e os de Santa Apolónia e da Cruz da Pedra, a oriente (Silva, 1968, Vol. 1, 68).
20 Filho de Luís de Abreu Freitas (falecido em 1665), Gaspar de Abreu e Freitas era licenciado em Cânones. O ministro residente em Roma e vedor da princesa D. Isabel, foi um dos enviados à corte de Carlos II da Inglaterra (1668), tendo sido também embaixador em Londres (1671). Gaspar faleceu a 23 de janeiro de 1686 e foi sepultado na Ermida de S. Pedro de Alcântara, fundada por seu pai, junto às casas brasonadas da família, sobre a praia e a poente do Convento de Santa Apolónia, demolidas em 1871 para se proceder ao alargamento dos armazéns da Real Companhia dos Caminhos de Ferro (Palha 1871, 17, 24). Vide: Moraes (1673), T. 4, 154; Faria 2008, p.252. 21 ANTT. Inventário de Extinção do Convento de Santa Apolónia de Lisboa: 1833-1834. Ministério das Finanças, Convento de Santa Apolónia de Lisboa, cx 2235, fl. 33v. PT/TT/MF-DGFO/E/002/00123).
A tradição aponta a década de 1640 e o nome de D. Isabel da Madre de Deus, religiosa da Ordem Terceira de S. Francisco de Vila Viçosa, como fundadora de um recolhimento em Santa Apolónia, com o apoio da Rainha D. Luísa de Gusmão (Castro, 1758, 449-450).
22 O registo faz parte do “Tomo 5º - Título das Sentenças, Execuções, Pinhoras” (ANTT. Inventário de Extinção do Convento de Santa Apolónia de Lisboa: 1833-1834. Op. cit., fl. 33v).
23 Até ao presente, não nos foi possível localizar o dito documento, nem nos fundos do Convento de Santa Apolónia nem no processo de Inventário de 1833.
24 Belém 1750, CCXX.
25 AHM-AL. [Treslado da petição das Religiosas de Santa Apolónia], 1692. Livro de Cordeamentos de 1692, fl. 36v-38v.
26 Idem. Ibidem, fl. 36v.
Aventamos a hipótese das irmãs terceiras terem reedificado a primitiva Ermida de Santa Apolónia, que passaram a identificar como “igreja”.
27 AHM-AL, Treslado da petição das Religiosas de Santa Apolónia], 1692, fl. 36v.
28 A licença incluía a “autoridade para se aproveitarem de toda a confrontação do Recanto”. Perante o pedido do Senado para apresentarem o documento de posse, alegaram não o poderem fazer por se ter perdido no incêndio (anterior a março de 1692). O Senado confirmou-lhes o direito ao dito chão (Idem, Ibidem, fl. 37-37v).
29 AHM-AL, Treslado da petição das Religiosas de Santa Apolónia], 1692, fl. 36v.
30 Mateus de Sousa fez-se acompanhar pelo Dr. Sebastião Ruy de Barros, vereador e responsável pelo pelouro das obras, e por Domingos da Gama, “homem das obras da Cidade” (Idem, Ibidem, fl. 37v).
31 Em 1665, a vereação do Senado da Câmara decidiu extinguir o cargo de “arquitecto das obras da cidade”, que só foi reposto em 1678 com a proposta do nome de Mateus de Sousa (Consulta da Câmara de 23 de maio). Vide: Oliveira 1894, T. VIII, 281.
32 O Senado da Câmara admitiu Mateus de Sousa porque já conhecia o seu trabalho, tendo dele “boa satisfação, assim pelas plantas que tem feito, como pela prontidão com que acode aos fogos, em que manda trabalhar com acerto” (Oliveira 1894, T VIII, 281). Em 1695, após a morte de Mateus de Sousa (c. 1694), João Antunes foi encartado no oficio de arquiteto das obras da cidade. Vide sobre o assunto: Tojal 2006, 42-68.
33 D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão, foi Rainha de Inglaterra por casamento com Carlos II, de quem ficou viúva em 1685. Regressou a Portugal em 1693. Assumiu o cargo de Regente de Portugal, sobretudo nos últimos anos de reinado de seu irmão D. Pedro II, marcados pela doença (Troni, J. 2008, 295).
34 Domingos Ferreira Souto, falecido a 23 de agosto de 1698, era natural do lugar de Souto, Freguesia de São Salvador de Tolões, em Vila Pouca de Aguiar. Casou com Cristina da Silva, natural do lugar da Vermoeira, Freguesia de São Pedro da Azoeira, em Torres Vedras. Era familiar do Santo Ofício e residia na cidade de Lisboa, na freguesia de Santiago, próximo do Chão da Feira (Simões 2003, Vol. 1, 259-261).
35 O testamento encontra-se no ANTT: “Registo Geral de Testamentos”, 1678-1699. Feitos Findos. Registo Geral de Testamentos, Liv. 86, fls. 20v a 29v.
Foi transcrito e publicado por João Miguel Ferreira Simões na sua Tese de Mestrado (“Testamento de Domingos Ferreira Souto, de 26 de Junho de 1698”. In Simões 2003, Vol. 2, 101-103). Domingos Ferreira Souto fez Codicilo (ANTT. “Registo Geral de Testamento. Liv. 95, fl. 193”).
36 Frei Domingos da Cruz foi apontado como um dos fundadores de um hospital da Ordem Terceira de São Francisco (no Chiado), cuja primeira pedra foi lançada em agosto de 1671 (História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, V. 1, 478).
37 O epitáfio foi ditado pelo próprio. A esposa foi sepultada no Convento de São Francisco da Cidade, com indicação que “dahi não sera transferida pera outra parte” (ANTT. “Registo Geral de Testamentos”, 1678-1699. Feitos Findos, Registo Geral de Testamentos, Liv 86, fls. 20v-29v).
38 Os patronos deixaram ainda um legado de 240 mil réis anuais para a subsistência das ditas familiares e igual
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valor para o resto da comunidade. Para as noviças suas parentes, 100.000 réis de dote, quantia que deveria suprir as despesas de entrada e de profissão de fé (Idem, Ibidem).
39 Domingos Ferreira Souto e sua mulher incluíram Custódio Nogueira no testamento “pelo m.to amor que temos ao nosso Comp.e Costodio Nug.ra por o criarmos em caza e pelo m.to que lhe devemos”. Especificavam os moldes em que esses lugares de noviça seriam preenchidos (de forma alternada entre os três, sempre que o casal ou os seus testamenteiros não indicassem parentes - ANTT. Idem, Ibidem, fl. 22-22v.
40 Os mecenas determinavam que o capelão (e confessor) das religiosas fosse “apresentado por nossos Testamenteiros, havendo parente nosso sera eleito; e havendo (sic) dous, mais idonio; e na falta de parente nosso o parente de Costodio Nug.ra” (ANTT. Idem, Ibidem, fl. 22-22v).
41 Os patronos consideravam fundamental a questão do número de professas: proibiam os lugares supranumerários, pelo que só entraria uma noviça (familiar de Domingos Souto, de Catarina da Silva ou de Custódio Nogueira, alternadamente) caso houvesse um lugar vago. As candidatas eram submetidas à prova de limpeza de sangue e só depois aprovadas pelos administradores e pelos testamenteiros (ANTT. Idem, Ibidem, fl. 23-26).
42 O prazo começaria a contar a partir do 1º de Janeiro de 1699, aplicando-se a partir daí uma renda de 600 réis, a favor dos quatro capelães (ANTT. Idem, Ibidem, fl. 22v).
43 ANTT. Idem, Ibidem, fl. 22v-23.
44 O terreno tinha 25 palmos de largo, à face da estrada; tratava-se de um chão e uma estância de lenha (AHM-AL. “Petição da Regente e das Recolhidas do Recolhimento de Santa Apolónia pedem esmola”, 1702, 8 Mai-2 Jun. Livro dos Cordeamentos, 1699-1704, fl. 395-396v).
O forte em causa, onde se acabara de fazer um muro, era o de Santa Apolónia, visível na Grande Panorâmica de Lisboa (Museu Nacional do Azulejo).
45 Júlio de Castilho escreveu: “vi eu próprio, nos papéis que existem no Convento de Santa Apollonia, a Bulla de 16 das Kallendas de Maio (17 de abril) de 1717, que o Santo Padre Clemente XI deu licenças às recolhidas de se constituírem em clausura; e em 6 de fevereiro seguinte, de 1718, professaram como monjas franciscanas quatorze senhoras, treze de véu preto e uma de véu branco” (Castilho, 1893. A Ribeira de Lisboa. Descrição histórica…, 110-111).
46 O Papa Clemente XI ordenou que professassem todas as que tivessem dez anos de Recolhimento (“Portugal. Gazeta de Lisboa 1718, 10 Fevereiro, N 6, 48).
A propósito da cor dos véus: as religiosas recebiam o véu preto após o noviciado, eram geralmente letradas e capazes de celebrar o ofício divino (em latim); recebiam o véu branco as que não tinham ainda professado os votos, executando os serviços mais humildes do convento (varrer, cozinhar, lavar).
Vide sobre o assunto: Castro 1758, Vol. 2, 450; AHMF. Ordem dos Frades Menores. Convento de Santa Apolónia. Mç. 1.
47 Encontrámos referência a um José Pio Ferreira Souto, filho de um Domingos Ferreira Souto, inscrito em Cânones na Universidade de Coimbra em 1739 (“José Pio Ferreira Souto. 1735-1741”. Indice de Alunos da Universidade de Coimbra 12537-1919).
A 14 de outubro de 1758 foi habilitado na Ordem de Cristo (ANTT. “Deligência de Habilitação para a Ordem de Cristo a José Pio Ferreira Souto” (1758). Mesa da Consciência e Ordens, Habilitações para a Ordem de Cristo, Letra I e J, mç. 8, n.º 11 Localizámos também, em meados de Setecentos, um José Pio Ferreira Souto, Desembargador no Rio de Janeiro e Ouvidor em Vila Rica (atual Ouro Preto, Brasil).
48 PL. Leis e estatutos que devem observar as Religiosas da Terceira Ordem de S. Francisco que habitao no Mosteiro de S.ta Appolonia desta Cidade de Lx. (…), 1718. Mosteiro de Santa Apolonia, Cx 5 Nº 2.
49 AML-AH. [Consulta sobre a petição das Religiosas de Santa Apolónia]. Chancelaria Régia. Livro 1º das consultas e decretos de D. João V do senado ocidental, 251. PT/AMLSB/
CMLSBAH/CHR/010/0045/0119
50 Idem, Ibidem, 251.
51 Idem, Ibidem, fl. 252.
52 Idem, Ibidem, 252.
53 Idem, Ibidem, 252v-253.
54 Idem, Ibidem, 252v-254v.
55 Pelo decreto de 13 de abril de 1745, proibia-se a abertura de qualquer rua ou serventia de entrada ou saída pública com menos de ”cinco varas [1 vara =110cm], ou vinte e cinco palmos craveiros de largo, dentro ou fora do povoado” e entre 20 a 25 palmos de largo e 40 palmos no máximo, dentro das cidades (Chancelaria Régia. Livro 23º de Consultas, Decretos e Avisos de D. João V, fls. 14-14v). A largura da Rua de Santa Apolónia percebe-se ainda melhor se compararmos com o programa de reconstrução pombalino, em que as vias principais tinham em média 60 palmos de largura (13,2 m) e as secundárias 40 palmos (ou seja 8,8 m).
Vide sobre o assunto: “Alvará régio de 12 de Maio de 1758”.
56 AHM-AL. [Petição das Religiosas do Mosteiro de Santa Apolónia], 1728. Administração. Livro de Cordeamentos de 1720-1729, fl. 577-180v.
57 Para “ver e cordear” deslocaram-se ao Mosteiro: José Moreira, medidor e escrivão do Tombo dos Bens e Propriedades do Senado da Câmara de Lisboa Ocidental e Oriental e seus Termos; Jerónimo da Costa de Almeida, desembargador e vereador do pelouro das obras; António Pereira de Viveiros, procurador da Cidade Oriental; Manuel Antunes, “Mestre medidor das Obras” (no impedimento de José Freire); e João Baracho da Gama, como “Homem das Obras” (Idem, Ibidem, fl. 577v).
58 Tratava-se de uma “Estrada de Carro”, larga o suficiente para passar uma carruagem.
59 D: Tomás de Nápoles de Noronha e Veiga foi casado com D. Luiza Marchão Ravasco, filha de Dr. Diogo Marchão Themudo, de quem teve o filho D. Diogo Nápoles de Noronha. Foram proprietários da quinta de Pancas, fronteira á dos Senhores de Pancas que foi adquirida, entre 1732 e 1743, por Vasco Lourenço Veloso. Vide sobre o assunto: Mendes, Rui Manuel Mesquita (2021). O sítio de Santa Maria do Paraíso e a segunda casa das Comendadeiras de Santiago em Lisboa (1490-1685). Actas do VIII Encontro sobre Ordens Militares: Ordens Militares, Identidade e Mudança, coord. Isabel Cristina Fernandes, 2º Vol., Palmela: Câmara Municipal e GEsOS: Gabinete de Estudos da Ordem de Santiago, pp. 881-913. 60 Em 1727, o Padre Diogo Tinoco da Silva (f. 1730) instituiu uma capela no Convento para a qual deixou um padrão de 56.000 réis “assentado no rendimento de hum por cento da Casa da Moeda”, em troca de 147 missas anuais por sua alma. Para além dessa, havia mais quatro capelas: a do Pe. Manuel Pegado, a de Nicolau Dias e sua mulher e a do Pe. António Monteiro de Gouveia (ANTT Ordem dos Frades Menores. Convento de Santa Apolónia, mç. 1, Pasta 15, fl. 1; “Inventário da Extinção do Convento de Santa Apolónia”. Convento de Santa Apolónia de Lisboa. Cx 2235, Capilha 5, fl. 7v).
61 Contíguo ao convento estava o Forte e Santa Apolónia (Castro, Vol. 5, 540).
Segundo informação de Júlio de Castilho, o pároco da Igreja da Madalena, João Pinto da Cruz, refugiou-se na “igreja das freiras de Santa Apolonia”, o que pressupõe que o templo fosse um espaço minimamente seguro (Castilho, 1937. Lisboa Antiga. Bairros Orientais, 2ª ed. 180).
62 Lisboa em 1758.
A propósito da cor dos véus: as religiosas recebiam o véu preto após o noviciado, eram geralmente letradas e capazes de celebrar o ofício divino (em latim); recebiam o véu branco as que não tinham ainda professado os votos, executando os serviços mais humildes do convento (varrer, cozinhar, lavar).
Vide sobre o assunto: Castro 1758, Vol. 2, 450; AHMF. Ordem dos Frades Menores. Convento de Santa Apolónia. Mç. 1.
63 No final de Setecentos, as religiosas abdicaram de algumas propriedades para fazer face às dificuldades de gestão do convento e a dívidas contraídas; tal foi o caso das casas (com adro, quintal, horta e poço), na rua do Matadouro (Freguesia da Ajuda), junto à
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quinta do Conde da Ega, que venderam a Paulo Carrilho, fabricante de sedas, por 1:300$000 reis (Escritura, 30 de julho de 1799). Vide: ANTT. Ordem dos Frades Menores. Convento de Santa Apolónia, Mç 1.
64 Castro, Vol. 5, 540. Não podemos ignorar uma certa contradição do autor que, numa parte, diz que o edifício não sofreu muito, e noutra, que um devoto o estava a reconstruir desde as fundações.
65 D. Pedro (1798-1834), Regente de Portugal na menoridade de D. Maria II, entrou em Lisboa a 28 de julho de 1833, quatro dias depois das tropas do Duque da Terceira, D. António José de Sousa de Meneses Severim de Noronha (1792-1860).
Subiu ao trono de Portugal em 1826, depois da morte de D. João VI. Abdicou em nome da sua filha D. Maria da Glória, que foi coroada em 1834, depois da vitória dos liberais sobre os absolutistas.
66 Gazeta de Lisboa 1830, N 136, 11 junho e N 174, 26 de julho.
67 D. Francisca Joana do Vadre foi ama de D. Miguel, figura muito importante na sua vida, que o acompanhou até no exílio (de Roma a Bronnbach, na Alemanha).
68 Antes do decreto de 30 de maio de 1834 destacamos os diplomas de 30 de abril e de 15 de maio de 1833 (referendados por José da Silva Carvalho) que suprimiram os conventos abandonados. De igual forma, os decretos de 3, 5 e 9 de agosto do mesmo ano, que determinaram, respetivamente: a extinção de qualquer convento ou mosteiro que acolhesse religiosos insurgidos contra o partido de D. Pedro e de D. Maria II; a proibição dos noviciados e a extinção das casas religiosas com menos de 12 indivíduos; bem como, a sujeição das ordens regulares aos prelados diocesanos (Silveira 1980, 87-110). Vide sobre o assunto: Franco (2010); Azevedo (2000).
69 A Junta do Exame foi criada em 1789, pelo Decreto de 21 de novembro, com o propósito de analisar a documentação depositada na Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos que era enviada pelos prelados monacais, em resposta a um inquérito régio que solicitava informações relativamente ao número de casas conventuais existentes, valor, natureza das rendas, encargos e obrigações. Em conformidade com a situação de cada um, a Junta propunha as alterações necessárias à sua melhoria: manter, suprimir ou unir comunidades. Foi suprimida em 1829, pelo Decreto miguelista de 7 de setembro, para ser reinstaurada a 23 de agosto de 1833. Foi extinta, definitivamente, a 10 de outubro de 1834 (Abreu 2004, 119-120).
70 A Portaria de 1 de outubro de 1833 foi assinada também pelo Cónego Miguel do Carmo Alves do Rio e pelo desembargador da Casa da Suplicação e Deputado da Junta de Melhoramento Temporal, José António Mâncio da Costa Ubaldo (ANTT. Convento de Santa Apolónia, Cx 2235, capilha 5, 5v).
71 ANTT. “Inventário da Extinção do Convento de Santa Apolónia”. Ministério das Finanças, Convento de Santa Apolónia de Lisboa, cx. 2235, Capilha 5, 1-3.
72 ANTT. Idem, Ibidem, Capilha 5, 3.
73 Assinaram a Procuração as sorores Gertrudes Maria do Amor Divino (vice-abadessa), Bernardina Maria da Apresentação (vigária), Anastácia Maria das Dores, Maria Bernardina de São José, Maria Madalena de Santo Agostinho, Mariana Luísa da Conceição, Gertrudes Maria do Pilar, Maria da Soledade Bárbara da Conceição, Maria Joana de Santa Clara, Maria Eugénia da Conceição, Ana Vicência de Jesus Maria, Gertrudes Magna da Conceição, Maria da Conceição de São Francisco de Assis, Maria da Luz do Sacramento, Maria Joaquina da Conceição, Leonor Efigénia de Santa Maria (não assinou por não saber escrever), Maria Eufémia da Santíssima Trindade, Francisca Maria de Jesus (não assinou por não saber escrever), Josefa Inácia da Madre de Deus (escrivã). A lista consta da “Relação nominal das Religiosas do extincto Convento de Santa Apolonia, assistentes no Convento de Santa Anna” (ANTT. Idem, Ibidem, Capilha 2, fl.1).
74 A sentença determinava ainda a prestação de 24 reis diários a cada religiosa, como garantia de subsistência. As freiras foram transportadas em ”seis carros de transporte e duas seges” (ANTT. Ibidem, Capilha 2, fl.1, 11, 15v-16).
75 Para além do juiz comissário, do escrivão e do procurador do
Convento de Santa Apolónia, foram constituídas três testemunhas de “reconhecida probidade”: o padre Luís Joaquim Pinto Saraiva (nascido em Carrazedo, em 1797), José António Barbosa do Rego e José Casimiro da Cruz (ANTT. Idem, Ibidem, Capilha 2, fl. 5)
76 Relatório de Joaquim António de Aguiar, qua antecedeu o Decreto de 30 de maio de 1834 (Subtil 2019, 65-115).
77 ANTT. Idem, Ibidem, Capilha 5, fl.3-4. Os quatro inventários parciais deveriam ser enviados à Secretaria do Tribunal da Junta do Exame, que os distribuiria depois pelas repetivas repartições. A Arte Sacra formaria, por si só, um “Segundo Inventário”.
78 Somavam-se ainda duas esmolas: uma “pela conta corrente” e outra “pela Casa das Senhoras Rainhas “ (ANTT, Idem, Ibidem, fl.7).
79 Marcos Pinto Soares Vaz Preto (1782-1851), mais conhecido por Padre Marcos, foi um presbítero e político vintista, maçon e defensor das ideias liberais. Conheceu D. Pedro IV em 1831, nos Açores, de quem se tornou amigo, confidente e confessor. Foi, entre outros, provedor e vigário geral do Patriarcado de Lisboa, Arcebispo de Lacedemónia (1835), conselheiro e presidente da Junta do Exame dos Melhoramentos das Ordens, deputado às cortes (entre 1834 e 1851) e grão-mestre da Loja Provincial do Oriente Inglês. Vide sobre o assunto: Corromeu, Francisco (2007-2008). O romantismo político do Padre Marcos (1820-1851), Lusitânia Sacra, 2ª Série, 19-20, p. 15-40.
80 Decreto de 29 de Outubro de 1833. Chronica Constitucional do Porto, Nº 278 (25 de Novembro de 1833), p. 555-556.
81 ANTT. Idem, Ibidem, fl. 9 e 13.
82 Integrada na Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, a Alfândega das Sete Casas (antiga Contadoria da Fazenda), começou a ser reorganizada em setembro de 1833 (confirmada pelo decreto de 27 de dezembro). Criaram-se duas alfândegas em Lisboa: a Alfândega Grande de Lisboa e a Alfândega das Sete Casas. Esta última passou a dispor de quatro Casas de Despacho que funcionavam junto às Portas da Cidade, uma das quais foi a Casa de Despacho de Santa Apolónia (Silva 1837, 244-255). A organização da Alfândega inseriu-se no programa de reestruturação dos Negócios da Fazenda, iniciado por Luís Mouzinho de Albuquerque em março de 1830 e continuado por José da Silva Carvalho entre dezembro de 1832 e setembro de 1834.
83 Em 1833 criaram-se quatro Casas de Despacho, através das quais se fiscalizava a entrada de géneros: a de Santa Apolónia, a de Alcântara, a de São Sebastião da Pedreira e a de Arroios (Silva 1837, 244-255). Em 1801 chamavam-se Casas da Sisa e nelas se cobrava o imposto de consumo ou de barreira; a de Santa Apolónia era uma delas (Regulação para o Estabelecimento da Pequena Posta…, 1801, 135, 1l0, 129 e 101; Silva 1968, Vol. 1, p. 78).
84 “Aboletar” ou “dar aboleto”, consistia em requisitar alojamento para os militares em casas particulares, em povoações onde não existiam instalações para o efeito.
85 ANTT. Inventário da Extinção do Convento de Santa Apolónia”. Ministério das Finanças, Convento de Santa Apolónia de Lisboa, cx. 2235.
86 Pereira, 1927, 280.
87 Em 1845 constava do “Manual Descriptivo de Lisboa e Porto” sob o título “Collegio de Aprendizes do Arsenal – Extincto Convento de Santa Apolonia” (Chianca 1845, 523). Embora já pertencesse à Companhia Real dos Caminhos de Ferro, desde 1852, o imóvel ainda figurou com essa designação num guia de viagens luso-brasileiro, de 1859 (Moita 1859, 12).
O Colégio dos Aprendizes do Arsenal do Exército garantia a formação profissional dos aprendizes dos vários ofícios ligados à fundição de armas. Entre 1800 e 1833, esteve na dependência da Junta dos Três Estados, passando a depender de um inspetor do Arsenal, a partir de 1833.
88 A Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro Portugueses foi fundada em Londres a 14 de maio de 1852, dirigida e representada em Portugal pelo empresário inglês Hardy Hislop. A 10 de agosto de 1852, com concurso aberto desde 6 de maio, o governo português adjudicou provisoriamente com Hislop (e a Companhia Peninsular) a linha férrea do Leste (lisboa-Espanha), passando por Santarém (em vez do atravessamento do Tejo junto ao Carregado).
89 Quando os trabalhos começaram, em 1853, já a Inglaterra tinha
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uma rede férrea sólida (iniciada a 1825), que ligava as principais cidades a Londres, onde se instalaram as sedes das companhias ferroviárias. A forte instabilidade política, militar, económica e social das décadas de 1820-1840 não permitiu que Portugal passasse da discussão pública. Depois dos estudos preparatórios de Mouzinho da Silveira e da Inspeção Geral das Obras Públicas, no final de 1830, só na década de 1840, no governo de António Bernardo da Costa Cabral, a melhoria das vias de comunicação nacionais, nomeadamente das estradas, ganhou novo alento. Chegou a constituir-se a Companhia das Obras Públicas de Portugal (COPP), que terminou em janeiro de 1856. E, até 1851, à exceção da renovação do programa férreo em 1848 e de um estudo de Albino de Figueiredo para uma linha entre Lisboa e Sintra (1849), pouco mais se adiantou (Pereira 2012, 82-86).
90 O MOPCI foi criado por decreto de 30 de agosto de 1852, para descentralizar as áreas essenciais das obras públicas, do comércio e da indústria, que pertenciam ao Ministério do Reino.
91 O governo assinou três contratos para a construção das vias entre Lisboa-Santarém, Lisboa-Sintra e Barreiro-Vendas Novas, mas deu preferência à linha internacional (Pereira 2012, 87).
92 Em 1851, a proposta do engenheiro-chefe da Companhia Peninsular, Thomaz Rumball, ligava Lisboa a Espanha pelo Carregado. Em 1852 propôs algumas alterações, entre elas a construção da linha do Leste (Lisboa-Badajoz) a passar por Santarém (em vez do atravessamento do Tejo junto ao Carregado). O projeto foi aprovado a 3 de fevereiro de 1853.
93 Gomes (2009, 14-16 out), 1. Relembramos que a proposta inicial de Thomaz Rumball localizava a estação central no Largo do Intendente, para evitar as cheias do Tejo e as irregularidades da linha de praia.
O topónimo Cais dos Soldados, remetia para o antigo Quartel de Artilharia, entre a Praia dos Algarves e a Bica do Sapato, que albergou o Regimento de Cavalaria do Cais, criado em 1707, quando a cavalaria portuguesa foi organizada em regimentos (Regimento das Novas Ordenanças, de 15 de novembro de 1707).
94 AHM. “Ofícios de Fontes Pereira de Melo, para o duque de Saldanha (…), sobre a expropriação do edifício do Colégio de Aprendizes do Arsenal do Exército em Santa Apolónia”, 1854-1855. PT/AHM/DIV/3/20/23
Fontes Pereira de Melo justificou a proposta de expropriação, ao abrigo das disposições do artº 3º e 4º da Carta de Lei de 16 de julho de 1853.
95 Pinto 2009, Dez.
96 A 15 de dezembro de 1855, Fontes Pereira de Melo firmou um contrato com Shaw & Waring Brothers, que rescindira com a Companhia Central Peninsular por falta de pagamento. Em fevereiro de 1856 entregou os trabalhos ao engenheiro francês B. Wattier, que foi assistido pelo engenheiro A. Margiochi.
97 O conhecimento sobre a geografia, a topografia e os recursos do reino tornou-se possível com a criação em 1856 da Direcção-Geral dos Serviços Geodésicos. Entre 1860-1865 fez-se o primeiro levantamento topográfico e só em 1876 seria publicado o primeiro mapa geológico de Portugal. Vide sobre o assunto: Alegria, M. F. (1990).
98 A 15 de dezembro de 1859, D. José de Salamanca assinou a escritura pública dos Estatutos da sociedade anónima (aprovados por decreto de 22 desse mês), mas só pelo decreto de 20 de junho de 1860 se declarou constituída. Previa-se, entre outros, um período de exploração de 99 anos; as obras eram fiscalizadas pelo Governo, que garantia também um subsídio por cada linha (4500 libras esterlinas por quilómetro para a do Leste e 5400 libras para a do Norte), pago em três prestações. Defina-se ainda o prazo de conclusão (3 anos para a Linha do Leste e 5 para a do Norte), cujo incumprimento poderia resultar na rescisão unilateral (Salgueiro 2008, Vol. 1, 20-26). Ver sobre o assunto: Fino, G. (1883). Legislação e disposições Regulamentares sobre o Caminho-de-ferro. Vol. 1, Lisboa, Imp. Nacional.
99 Em 1864 adotou-se a bitola espanhola de 1,67 m.
100 Pela Portaria de 17 de outubro de 1907, do MOPCI (publicada em Diário do Governo nº 235, de 18 de outubro), foi aprovado o projeto para a construção de um segundo andar.
101 Neste contexto, foram essenciais: o “Plano geral de
Melhoramentos da Capital”, consignado no Decreto de 31 de dezembro de 1864 (publicado a 13 de janeiro de 1865), assinado por João Crisóstomo de Abreu, Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria; e os estudos da comissão de 1871 (nomeada por Portaria régia de 9 de Setembro), para a margem direito do Tejo, desde Santa Apolónia a Belém. Vide sobre o assunto: Barata, A. (2010). Lisboa Caes da Europa: realidades, desejos e ficções para a cidade (1860-1930). Lisboa, Colibri-IHA. 102 Entre outras propostas de linhas férreas ribeirinhas, destacamos a do Conde Clarange de Lucotte (1855) e a de Tomé de Gamond (1870). A comissão foi nomeada por Portaria régia de 9 de Setembro de 1871, do Ministério da Marinha e dos Negócios do Ultramar. Integrou a comissão o arquiteto municipal Domingos Parente da Silva. Não deixa de ser interessante a proposta de deslocação da gare. Com efeito, a Estação de Santa Apolónia foi edificada na periferia, para servir de ligação rápida com o resto da Europa (a partir de Espanha), pelo que a relação com o núcleo urbano não foi uma prioridade. No edifício implantado no Cais dos Soldados ficaria apenas a estação de mercadorias. Vide sobre o assunto: Barata, A. 2010.
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Colectividades da Freguesia de São Vicente
Maria João Figueiroa
colectividades
The Collectivities of S. Vicente Parish
desporto
excursionismo teatro
educação
A partir da segunda metade do século XIX o movimento associativo em Portugal e, em particular, em Lisboa, ganhou uma grande dinâmica com o surgimento das chamadas sociedades de cultura e recreio, hoje em dia abreviadamente designadas por colectividades. De inegável importância social, prestaram um relevante contributo à população mais desfavorecida, sobretudo até à década de 1970, através da distribuição do chamado bodo aos pobres. A sua acção social passou em algumas delas também pela vertente educacional, nelas funcionado escolas primárias destinadas ao ensino dos filhos dos associados e até dos próprios sócios. A grande riqueza das colectividades e o interesse que despertam reside substancialmente no eclectismo. A sua actividade não se resume apenas a um dos planos cultural, recreativo, social ou desportivo. Raras são as que se dedicam apenas a um deles, o que não invalida que a sua natureza penda para uma ou outra valência. Actualmente constituem, ainda, um factor identitário da Lisboa moderna assente na diversidade das suas freguesias e bairros, na qual se inclui a de S. Vicente.
A partir da segunda metade do século XIX o movimento associativo em Portugal e, em particular, em Lisboa, ganhou uma grande dinâmica com o surgimento das chamadas sociedades de cultura e recreio, hoje em dia abreviadamente designadas por colectividades. Fundadas nos diferentes bairros da cidade, acompanharam estreitamente a sua evolução. Algumas delas, actualmente centenárias, surgiram no contexto político e social dos finais do século XIX e dealbar do século XX, com o crescimento do operariado e a proliferação do ideário socialista e republicano, sobretudo nos bairros operários. Importa ressalvar, no entanto, que apesar dessa motivação política que deu origem ao aparecimento de algumas destas colectividades nessa época, estatutariamente era clara a interdição de actividades políticas nas suas sedes. A freguesia de São Vicente, criada pela reforma administrativa aprovada pela Lei nº 56/2012, de 8 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/2015, de 7 de Agosto, integra o território correspondente às anteriores freguesias da Graça, São Vicente de Fora e Santa Engrácia. Esta realidade geográfica foi acentuadamente marcada, a partir do final do século XIX e início do século XX, pelo surgimento de bairros e vilas operárias cujos residentes desenvolviam a sua actividade laboral sobretudo na indústria tabaqueira.
From the second half of the 19th century onwards, the associative movement in Portugal and, in particular, in Lisbon, gained a great momentum with the emergence of the so-called cultural and recreational societies, nowadays known as collectivities. Of undeniable social importance, the collectivities made a relevant contribution to the most disadvantaged population, chiefly until the 1970s, through the distribution of the so-called food of the poor.
Its social action also included the educational aspect, namely operating primary schools for the children of members and even the members themselves. The great wealth of collectivities and the interest they arouse resides substantially in eclecticism. Its activity is not just limited to one of the cultural, recreational, social or sporting plans. Rare are the collectivities who dedicate themselves to only one of these plans, which does not invalidate that their nature leans towards one or another valence.
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excursionism collectivities sport theatre education
Rego
Entre as vilas e bairros da freguesia destacam-se a Vila Sousa, construída em 1890 por Francisco e Guilherme Tomás da Costa, a Vila Berta, (Figura 1) edificada em 1908, onde Alfredo Marceneiro trabalhou na década de 1930 nas oficinas Diamantino Tojal, a Vila Maria, de 1910, e o Bairro Estrela D’Ouro. Este último foi mandado construir em 1909 pelo industrial galego Agapito Serra Fernandes para nele residirem os seus empregados. Ele próprio, aliás, morava no bairro. Foi também por sua iniciativa que foi edificado o histórico cinema Royal, na Rua da Graça nº 100, (Figura 2) projectado por Norte Júnior. Nesse cinema, de 900 lugares, com plateia, balcão e camarotes, foi exibido o primeiro filme sonoro em Portugal, intitulado Asas Brancas nos Mares do Sul, de W. S. Van Dyke. Bairro emblemático da freguesia, em
1933 foi berço de uma das colectividades, que durante muitos anos aí funcionou, o Grupo Recreativo Estrela d’Ouro. De inegável importância social, as colectividades prestaram um relevante contributo à população mais desfavorecida, sobretudo até à década de 1970, ao promover uma acção beneficente traduzida, grande parte das vezes, na distribuição do então denominado bodo aos pobres. Esta iniciativa coincidia, habitualmente, com as comemorações do aniversário da colectividade e com a quadra natalícia. Nessas ocasiões eram oferecidas às crianças roupas e brinquedos e servido um lanche. (Figura 3,4,5) Sem esquecer, naturalmente, o apoio prestado aos idosos mais necessitados.
Figura 1 Vila Berta. Fot. Luís Ponte. Figura 2 Fachada do antigo Cinema Royal na Rua da Graça, nº 100. Fot. Luís Ponte.
Figura 3 (em baixo) Grupo de Crianças vestidas pelo Grupo Excursionista Civil do Monte, ainda com a primitiva designação de Grémio. 31 de Janeiro de 1941.
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Figura 4 Grupo de crianças apoiadas pelo Grupo Excursionista Civil do Monte na década de 1950.
Figura 5 Lanche oferecido a crianças da freguesia vestidas pelo Grupo dos Cinco Réis por ocasião do seu 40 aniversário, numa acção de beneficência conjunta com o Sport Lisboa Monte Pedral. 1947.
Na freguesia de São Vicente ainda hoje existe uma colectividade fundada em 8 de Novembro de 1876 por 18 operários, à época com características expressamente assistenciais, a Caixa Económica Operária, que chegou a ter um número muito expressivos de associados.
A Câmara Municipal de Lisboa cedeu o terreno onde construiu a sua própria sede na então Rua da Infância, na qual está instalada desde 14 de Agosto de 1887. Esta artéria tem actualmente a designação de Rua da Voz do Operário, nome da sua congénere sediada no lado oposto da rua. Constituída posteriormente, a Sociedade de Instrução Voz do Operário viu o seu esforço reconhecido pela vereação republicana que, em 1915, atribuiu o seu nome à rua onde se encontra sediada desde 1913.
A Caixa Económica Operária assumiu desde início contornos específicos ditados pelo fim para que foi criada e pelos condicionalismos sociais e económicos do seu tempo, resultando de uma iniciativa de inspiração cooperativista. Em Portugal o movimento cooperativo de consumo teve início nas últimas décadas do século XIX, face ao aumento populacional e consequente crescimento
das grandes cidades e à necessidade de se encontrar resposta para a salvaguarda dos consumidores mais desfavorecidos. Desenvolvendo-se nas duas principais cidades do País e com intensa ligação ao quotidiano dos seus bairros populares, surgiram as primeiras cooperativas e caixas económicas, as quais, além dos seus objectivos de solidariedade ou de crédito e consumo, tinham, igualmente, preocupações de índole cultural que pressupunham a organização de diversas iniciativas com o objectivo de melhorar a formação integral dos seus associados. A Caixa Económica Operária surgiu neste contexto, tendo por fim garantir meios de subsistência a uma classe emergente, através da constituição de uma sociedade de crédito onde os operários seus associados pudessem depositar as suas economias, para formarem um fundo de empréstimo que evitasse, nas horas de aflição, o recurso às casas de penhores. Esta colectividade, onde chegou a funcionar uma mercearia, (Figura 6) uma padaria e uma barbearia destinadas aos sócios, foi tendo ao longo dos anos outros objectivos e preocupações culturais.
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Figura 6 Mercearia da Caixa Económica Operária.
O seu edifício de três andares, dotado de um grande salão com palco, chegou a albergar, a partir do final da década de 1930, emissores de rádio, que transmitiam numa frequência comum em horários diferentes. Tratavase da Rádio Peninsular, da Rádio Voz de Lisboa e da Rádio Acordeón, de que eram proprietários os irmãos Amadeu e Fernando Laranjeira. Nos programas emitidos por essas rádios e, em particular pela Peninsular, havia momentos de teatro radiofónico muito apreciados pelos ouvintes. Pelos seus microfones passou o prestigiado locutor Artur Agostinho, então em início de carreira, e diversas artistas, entre as quais: Milu, Maria Eugénia, que ficaria conhecida como a Menina da Rádio e as Irmãs Remartinez, o primeiro duo feminino que surgiu no panorama musical português na senda das Andrew Sisters americanas. Os programas humorísticos conquistaram também o seu espaço na Rádio Peninsular, tendo bastante audiência, caso da Parada da Paródia, na década de 1950, da autoria dos Parodiantes de Lisboa, que, mais tarde, fizeram outros programas no Rádio Clube Português. Esta companhia de teatro humorístico comemorou o seu 50º aniversário nesta colectividade, à qual, na ocasião, ofereceu um elemento escultórico representando a comédia e a tragédia, que se encontra por cima do palco. O universo radiofónico na Graça incluía, ainda outra estação, a Rádio Graça, que, fundada em 1932, se instalaria em 1937 na Rua da Verónica, nº 124. Facilmente se percebe, pois, a importância da rádio na freguesia e a quantidade de artistas que atraiu para os seus programas ao vivo. Por esta rádio passaram locutores como Eládio Clímaco, António Sala e artistas como Milu, Fernanda Baptista entre tantos outros.
A acção social destas agremiações passou em algumas delas também pela vertente educacional, nelas funcionando escolas primárias destinadas ao ensino dos filhos dos associados e até dos próprios sócios. Na freguesia de São Vicente, esse papel coube desde início e, até à actualidade, com particular sucesso, à centenária Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, fundada em 13 de Fevereiro de 1883, na sequência da criação do jornal A Voz do Operário, em 1879. Este periódico tinha sido criado com o propósito de dar voz aos operários, sobretudo da indústria tabaqueira. Com sede na freguesia de São Vicente, dispõe de outras instalações escolares em diferentes locais da cidade, designadamente na Ajuda e no Restelo, em Belém, e noutras zonas fora de Lisboa. A sua actividade estendese a outras áreas que não apenas a educativa. Esta agremiação promove iniciativas de índole cultural, recreativa e desportiva, sendo de salientar, igualmente, a organização da Marcha Infantil, que actualmente integra 70 crianças e que, em 1988, participou pela primeira vez no desfile da Marchas Populares. Para além dos aspectos de natureza social, que determinaram a constituição de algumas destas colectividades, as componentes cultural, desportiva e de lazer foram ganhando cada vez maior expressão ao longo do século XX. (Figura 7) Entre as iniciativas de cariz cultural destacase o teatro amador. Grande parte das suas sedes possuía pequenos palcos.
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Figura 7 Desfile. 1.os Jogos Luso-Brasileiros. Grupo Desportivo da Mouraria. 1960.
A paixão pela representação levou ao surgimento de uma série de grupos teatrais organizados nas colectividades, compostos por associados que levavam muito a sério a arte de Talma. (Figura 8) Nos órgãos de comunicação chegavam a publicar-se críticas jornalísticas sobre a exibição de algumas peças, em que se realçava a qualidade da representação, por vezes equiparada à dos actores profissionais. A produção teatral nas colectividades tinha larga expressão e qualidade na representação e na escolha do reportório, que incluía, naturalmente, além do drama e da comédia, a revista. De realçar que muitos actores que se distinguiram profissionalmente ao longo do século XX, se estrearam na arte dramática nas colectividades. Foi o caso de actores como Raul Solnado, Jacinto Ramos e Anita Guerreiro entre tantos outros, que permitem qualificar as colectividades, sobretudo até aos anos de 1960, como verdadeiras escolas de teatro. De referir, ainda, a realização de concursos teatrais, disputados pelas colectividades, e a importância que para estas significava a conquista de prémios ou menções honrosas.
A partir da década de 1960 a televisão, que nos primeiros anos reunia os associados para assistirem às emissões da RTP, havendo fotografias curiosas desse tempo, em que um aparelho de televisão ocupava o centro do palco e se dispunham as salas como se de um cinema se tratasse, com cobrança de bilhetes, acabou por provocar uma quebra na produção teatral. Algumas destas colectividades recuperariam a actividade dramática com o surgimento de novas gerações de actores amadores, mas nem todas com a pujança de outros tempos. Os bailes realizados durante as comemorações do aniversário, da pinhata, da chita, de carnaval, de fim de ano, bem como as soirées dançantes, constituíam momentos de recreio na vida das colectividades. Inicialmente eram animados por troupes jazz, depois por conjuntos e bandas com nomes muito curiosos, mencionados nos programas, que dão testemunho da intensa actividade musical registada ao longo de vários anos. Um desses conjuntos musicais que actuou em colectividades da freguesia e também no cinema Royal foi o dos muito afamados Seis Latinos. (Figura 9)
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Figura 8 Cena da peça O Dia Seguinte, de Luis Francisco Rebello representada na Caixa Económica Operária pelo Grupo de Teatro Popular em 5.07.1958.
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Figura 9 Baile de Carnaval do Grupo Recreativo Estrela d’Ouro. Década de 1960.
O recreio foi sempre uma das principais missões das colectividades, proporcionado em bailes ou soirées dançantes. O Grupo Recreativo Estrela D’Ouro possuía um espólio fotográfico ilustrativo da intensa programação, que preencheu grande parte da sua existência. As noites de fado ainda hoje reúnem os sócios nas colectividades. (Figura 10) Na fronteira da freguesia de São Vicente com a de Santa Maria Maior tem sede O Grupo Desportivo da Mouraria, que pela sua localização e designação desenvolve a sua actividade em estreita ligação com a freguesia vizinha.
A esta colectividade que organiza a Marcha da Mouraria está ligado um grande nome do fado, Fernando Maurício. Também com tradição no fado, o Clube Desportivo da Graça foi o vencedor da Grande Noite do Fado, em 1987. A partir de 1932, com a criação das marchas populares, algumas das colectividades da cidade ganharam protagonismo organizando as marchas dos respectivos bairros. Uma produção cada vez mais sofisticada e que melhorou em qualidade de espectáculo,
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Figura 10 Sessão de Fados no Grupo dos Cinco Réis.
Figura 11 Almoço de Confraternização. Grupo dos Cinco Réis.
principalmente a partir do momento em que passou a ser transmitida pela televisão.
A Marcha da Graça e a Marcha de São Vicente são organizadas, respectivamente, pelo Clube Desportivo da Graça, fundado em 1935 e pela centenária Academia Recreativa Leais Amigos, constituída em 1915. Os convívios, os almoços de aniversários e, naturalmente, os passeios, serviam e ainda servem, igualmente, de recreio aos associados.
A história das colectividades de São Vicente regista alguns desses momentos, inclusive com fotografias, que ilustram não só a sua actividade, como uma época da vida da cidade e das suas gentes. (Figura 11)
A título de exemplo refere-se um original passeio de eléctrico por Lisboa organizado pelo Grupo dos Cinco Réis em Abril de 1968, para comemorar mais um aniversário. Com partida às 8h30 de uma manhã de domingo, do Largo da Graça, o passeio teve a duração de duas horas e meia, nas quais os 27 participantes percorreram 40 km.
A iniciativa foi objecto de notícia em vários periódicos da época, entre os quais o Diário de Lisboa. (Figura 12) O excursionismo foi uma actividade preponderante, que a par das outras iniciativas de cariz recreativo, cultural e desportivo, marcou a vida das colectividades. Ainda hoje algumas delas organizam passeios e promovem o cicloturismo. O excursionismo foi, inclusive, pretexto para a criação de algumas destas agremiações que, para melhor explicitar os fins a que se propunham, adoptavam a designação de grupos excursionistas.
No território da actual freguesia de São Vicente surgiram em 1898 o Grupo Excursionista Civil do Monte e, em 1921, o Grupo Excursionista Recreio Familiar. (Figura 13)
Ao longo de mais de cem anos de associativismo, no território da actual freguesia de São Vicente, nasceram inúmeras colectividades, muitas delas de vida breve ou até mesmo muito breve. Entre estas algumas tinham por fim específico o excursionismo. Referemse três com designações curiosas tais como: Grupo Excursionista Os Malcriados, fundado em 1924, Grupo de Recreio Excursionista Os 10 Embirrantes, fundado em 1916, composto por apenas 10 sócios, e Grupo Excursionista Avante pelo Futuro. O nome desta última prometia muito, mas avançou pouco pelo futuro. Fundada em Agosto de 1926 foi extinta em Setembro do mesmo ano, por divergências entre os sócios.
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Figura 12 Excursão de eléctrico comemorativa do aniversário do Grupo dos Cinco Réis. Abril de 1968.
Figura 13 Excursão realizada pelo Grupo dos Cinco Réis. Década de 1950.
Os jogos tradicionais, como o da laranjinha, proporcionavam, também, o recreio aos sócios, sendo, todavia, já reduzido o número de colectividades que possuem espaço adequado para a sua prática. O Grupo dos Cinco Réis, fundado em 1907, com sede na Rua da Graça, nº 162, distinguiu-se durante muitos anos pelo seu famoso campo de laranjinha, onde se realizaram inúmeros torneios. Foi substituído há alguns anos por calçada portuguesa, passando o espaço a ser utilizado como sala para jogar matraquilhos. A originalidade da colectividade não se limitava ao campo de laranjinha, o nome desta agremiação é, igualmente, interessante. Cinco réis era o valor mais baixo da moeda então em circulação no País, ainda monárquico, e foi também esse o valor inicial fixado como quota. A utilização da internet veio revolucionar a vida destas agremiações criando novos interesses e desafios junto dos sócios mais idosos, tendo algumas colectividades disponibilizado espaços para aprendizagem e utilização das novas tecnologias e navegação na internet, caso do Futebol Clube Monte Pedral, que há uma década atrás promovia a utilização das novas tecnologias com o apoio de alguns jovens.
A comunicação com os sócios e a divulgação dos programas de actividade das colectividades faz-se, cada vez mais, pela internet, em sites e nas redes sociais, o que traduz bem o esforço de modernização que muitas destas associações têm vindo a fazer. Esforço esse que é uma condição de revitalização e sobrevivência, fundamental para incluir os mais idosos e atrair os mais novos. A divulgação das actividades juntos dos sócios e a comunicação em geral esteve sempre no horizonte das colectividades, sobretudo nas que possuíam maior número de associados. Muitas delas antes da internet e das redes sociais, tinham boletins, folhas de notícias e outras publicações do género, algumas até mesmo um jornal, que publicavam com a regularidade possível. Num desses jornais, O Maria Pia, (Figura 14) editado pela primeira vez em 1927, pelo Maria Pia Sport Clube, fundado cinco anos antes, foram publicadas em 1928 as “condições e leis” de um jogo muito em voga nas colectividades entre o final da década de 1920 e a década de 1940, o Fox-ball. O nome é sugestivo e a modalidade, no mínimo, original. Consistia num jogo de futebol realizado nos salões das colectividades, praticado por duas equipas de quatro pares – guarda-redes, meia-defesa e dois avançados - que chutavam a bola na tentativa de marcar golo nas balizas, colocadas em lado opostos da sala, enquanto dançavam o foxtrot. Fica a saber-se por essa publicação que o primeiro campeonato se realizou em 1928, no salão do Maria Pia Sport Clube. Entre as regras do jogo destacam-se as seguintes: a bola de saída não podia ser rematada directamente à baliza,
o jogo tinha de ser praticado sem perda de compasso, sob pena da marcação de um livre, a bola não podia ser levantada a mais de 0,50m de altura, igualmente, sob pena da marcação de um livre. Realizaram-se vários campeonatos desta modalidade em diferentes agremiações, chegando um deles a contar com a participação de 22 equipas, cada uma de sua colectividade. O desporto tem feito parte da vida destas associações, nas quais se praticaram e ainda se praticam diferentes modalidades que envolvem diversas faixas etárias. Na freguesia de São Vicente encontramos um número expressivo de colectividades fundadas quase todas em contexto de bairro, essencialmente com vocação desportiva como o Maria Pia Sport Clube que se tem vindo a destacar na prática do basquetebol. O clube tem sido uma verdadeira escola de desporto no que diz respeito ao ensino e prática desta modalidade. Ao longo dos anos foram vários os atletas do clube que se distinguiram no panorama desportivo nacional e internacional, entre os quais Carlos Andrade (Figura 15), Sérgio Ramos e João Santos. (Figura 16)
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Figura 14 Jornal O Maria Pia. Número Comemorativo do 2º aniversário da sua publicação. 31.01.1928.
O Futebol Clube Monte Pedral, apesar da designação, foi no andebol que se distinguiu durante alguns anos. Já o Clube Desportivo da Graça proporciona aos seus associados a prática do futsal e de jiu-jitsu. O Operário Futebol Clube, fundado em 1921, que desenvolve a sua actividade em duas freguesias, tem ligação a São Vicente e constitui uma referência no mundo do futebol. A grande riqueza destas agremiações e o interesse que despertam reside, substancialmente, no seu eclectismo. A actividade promovida não se resume apenas aos planos cultural, social ou desportivo. Raras são as que se dedicam apenas a um deles, o que não invalida que a sua natureza penda para uma ou outra valência. A relevância destas agremiações em termos sociais, culturais e desportivos na vida dos bairros é particularmente significativa em toda a cidade. Nesta zona territorial de Lisboa foram sendo, ainda, fundadas, ao longo dos anos, outras colectividades que merecem referência tais como: o Grupo dos Nove, fundado em 1910, o Mirantense Futebol Clube, instituído em 1935, o Grupo Sempre Unidos, constituído em 1913, o Clube Ferroviário de Portugal, criado em 1961, com instalações nesta freguesia e também em Alcântara e Marvila, o Clube Recreativo da Bela Vista, de 1948, o Grupo Desportivo Os Jovens fundado em 1972, o Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia constituído em 1975 e o Núcleo dos Amigos do King, uma das mais recentes, fundada em 1996. O Lusitano Clube, fundado em 1905, apesar de uma longa história que o liga à freguesia de Santa Maria Maior, onde estava sediado, está actualmente instalado na freguesia de São Vicente, aí desenvolvendo a sua actividade.
As colectividades da freguesia de São
Vicente, que outrora pertenciam à antiga freguesia da Graça, foram tratadas no segundo volume de uma colecção de que sou autora, dedicada às freguesias da cidade e respectivas colectividades que a Câmara Municipal de Lisboa, através do Gabinete de Estudos Olisiponenses, tem vindo a publicar. A esse volume intitulado Colectividades de Lisboa-Freguesia da Graça, publicado em 2008, (Figura 17) seguiram-se outros mais, respeitando já a nova reforma administrativa. A história das restantes colectividades de São Vicente constará no respectivo volume, a publicar oportunamente. Actualmente as colectividades constituem, ainda, um factor identitário da Lisboa moderna assente na diversidade das suas freguesias e bairros, na qual se inclui a de São Vicente com toda a sua riqueza associativa.
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Figura 17 (em baixo) Capa do livro Colectividades de Lisboa-Freguesia da Graça, publicado em 2007
Figura 15 Carlos Andrade em primeiro plano, num jogo de basquetebol.
Figura 16 Equipa feminina de basquetebol, cadetes, do Maria Pia Sport Clube. Década de 1990.