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The geology and paleontology of Saint Vincent’s perish

Neste artigo iremos tecer algumas considerações sobre o arrabalde oriental de Lisboa, mais precisamente, sobre a evolução urbana do território da actual freguesia de S. Vicente de Fora durante a época medieval. Este espaço será observado em dois níveis geográficos e em dois períodos cronológicos distintos: os níveis superior e inferior, e as épocas de domínio político islâmico e cristão. A questão matricial que aqui colocamos e para a qual pretendemos contribuir aborda a ausência, neste espaço, do crescimento urbano dinâmico e preponderante que esteve presente no arrabalde ocidental, ao longo da história da cidade, desde a época medieval.

Lisboa

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Medieval

Arrabalde

Crescimento urbano

Evolução urbana

Antes de iniciarmos a nossa análise do arrabalde oriental da Lisboa medieval importa compreender em que consistia um arrabalde de uma cidade medieval, e qual a sua forma e limites físicos na cidade da foz do Tejo. As urbes medievais possuíam, na sua larga maioria, sistemas defensivos caracterizados por uma cerca urbana e, em alguns casos, uma alcáçova ou castelo que serviam a dupla função de proteger e controlar os seus habitantes. O étimo português arrabalde é herdeiro da palavra árabe ar-rabd que significa subúrbio, ou seja, um espaço urbano situado fora da medina, desabrigado da protecção oferecida pela cerca urbana. A Lisboa medieval possuía dois grandes arrabaldes, um a oriente e outro a ocidente do espaço murado, e um terceiro, de menor dimensão, situado a norte: a Mouraria. O arrabalde ocidental foi desde muito cedo um espaço eleito para a vida social e económica da cidade medieval, e foi nessa direcção que, por vários motivos, Lisboa se desenvolveu desde essa época até ao final do século XIX. A Mouraria foi, até ao final do século XV, o bairro da comunidade muçulmana lisboeta, caracterizado por uma dimensão mais reduzida relativamente aos outros arrabaldes, por uma menor exposição solar, e também por um desenvolvimento urbano mais tardio do que o arrabalde ocidental. O arrabalde oriental, foco central deste artigo, não sofreu, entre a idade média e o final do século XIX, mutações drásticas nem um crescimento urbano exponencial, o que permitiu a manutenção de um tecido urbano mais antigo e zonas de diferente densidade e desigual crescimento urbano.

In this article I will make some considerations about the eastern outskirts of Lisbon, more precisely, about the urban evolution of the territory of the current parish of S. Vicente de Fora during the medieval period. This space will be observed at two geographic levels and in two distinct chronological periods: the upper and lower levels, and the periods of Islamic and Christian political domination. The main question that we pose here addresses the absence, in this space, of the dynamic and preponderant urban growth that was present in the western outskirts, throughout the history of the city, since medieval times.

Lisbon

Medieval

Suburb

Urban Growth

Urban Evolution

Relativamente aos limites e à configuração física do arrabalde oriental, importa, antes de mais, sublinhar que a estrutura do tecido urbano desta parte da cidade sofreu poucas alterações entre o final da época medieval e os finais do século XIX. Este arrabalde consistia no espaço circunscrito a norte pela Colina da Graça, a sul pelo rio Tejo, a ocidente pela Colina

Adaptado de: Augusto Vieira da Silva, “Redução à

1:5000 do Castelo e a oriente pela Colina de S. Vicente, a qual fazia parte do arrabalde. Este espaço pode ser observado em dois níveis diferenciados que se distinguem fisicamente pelas cotas altimétricas entre os 30 e 35 metros (ver imagem 1).

Numa leitura do espaço que observa e examina as mutações urbanas num tempo longo, estes dois níveis revelam graus de urbanização muito desiguais. A morfologia urbana do nível superior parece ter sido desenhada por um desenvolvimento urbano mais lento e progressivo, mantendo o sistema viário actual vestígios dos acidentes naturais, algo que não seria possível se aqui tivesse ocorrido uma intervenção urbana radical e extensiva. Além disso, as evidências arqueológicas de estruturas de época romana no nível superior são quase inexistentes, excetuando a necrópole de Santa Clara que já se encontrava fora do perímetro urbano de Olisipo, uma realidade expectável pois nas cidades romanas os cemitérios situavam-se, normalmente, fora das cidades. Considerando o grau de urbanização destes dois níveis na época medieval, é bem notório na documentação coetânea que o nível superior foi uma zona semirrural até muito tarde. No que respeita ao nível inferior, entre a cota dos 30 metros e a margem do Tejo, o grau de urbanização era bastante mais alto, tanto ao nível da densidade como do crescimento em altura. Além disso, ao contrário do nível superior, no nível inferior do arrabalde oriental foram encontrados vários vestígios de estruturas urbanas de época romana e de época islâmica, consolidando a ideia de que o nível inferior foi mais urbanizado. Durante a época de domínio muçulmano (711-1147) a cidade da foz do Tejo esteve integrada na civilização islâmica o que levou à assimilação de várias características do mundo urbano muçulmano. Quando, no século VIII, o poder muçulmano toma a cidade esta seria uma sombra do que teria sido séculos antes. Entre a queda do império romano do ocidente e a chegada dos muçulmanos, Lisboa, então chamada Olisipona, perdeu habitantes, relevância económica e área urbana. Os vestígios quer arqueológicos, quer documentais, enquadráveis na antiguidade tardia são escassos e apontam para uma considerável regressão urbana, demográfica e económica. Significativamente, no espaço que aqui mais nos interessa, o arrabalde oriental, não foram até agora sequer encontradas quaisquer estruturas ou peças arquitectónicas da antiguidade tardia. Terá sido uma área da cidade que foi progressivamentet abandonada? A lógica parece apontar para tal cenário, mas não existem dados documentais ou arqueológicos que nos permitam ir além desta suposição. De qualquer modo, durante a época de domínio islâmico Lisboa recuperou gradualmente área urbana, potência demográfica e relevância económica. Alexandre Herculano, na sua obra, O Monge de Cister, retrata uma Alfama em época muçulmana “aristocrática, alindada e culta”. Esta ideia de Alfama como um bairro “nobre”, em época islâmica surge repetidamente em vários autores posteriores, mas a verdade é não existem evidências documentais ou arqueológicas de que esta parte da cidade tenha tido essas características. Devemos então considerar que, nesta passagem, Herculano se baseou apenas na sua imaginação, ao contrário de muitos outros momentos das suas narrativas históricas que se suportavam numa extensa pesquisa documental. Importa então desconstruir este mito que Eduardo Sucena associava a uma “Alfama do Alto, onde vivera a nata da população mourisca”, algo que não podemos hoje afirmar, nem sequer propor, visto que nenhuma evidência existe nesse sentido. É possível sim, afirmar que em época de domínio islâmico, o nível inferior do arrabalde oriental, denominado desde época medieval como Alfama, foi ganhando consolidação urbana (ver imagem 2). Deste modo, durante a época islâmica, afirma-se a dicotomia entre os referidos níveis do arrabalde oriental, permanecendo um factor bem perceptível na observação dos dados das escavações arqueológicas realizadas nessa área. Ao contrário do nível superior, no nível inferior verificaram-se a existência de vários vestígios de estruturas que apontam para uma ocupação urbana mais intensa junto à orla fluvial, mais precisamente, ao longo da antiga via romana que saia de Lisboa em direcção a Santarém. É possível que tenha existido algum tipo de agrupamento de estruturas comerciais ao longo desta via, mas o único vestígio que aponta para essa hipótese é, neste momento, o topónimo “alcaçaria”, palavra herdeira do árabe, língua onde significa um mercado coberto dedicado a artigos de maior valor comercial.

Entre as várias estruturas de difícil interpretação destacam-se vestígios de estruturas habitacionais encontradas em vários locais: no Pátio da FRESS, junto à Cerca Velha; no Largo das Alcaçarias, na Rua de S. Miguel e na Rua dos Remédios. Importa também referir os vestígios de olarias verificados no Largo das Alcaçarias e no Largo do Chafariz de Dentro, ou seja, junto à margem do Tejo, o que permitiria aos oleiros, escoar mais facilmente os seus produtos e vazar os desperdícios para o rio. No Beco do Azinhal foi descoberta uma estrutura que deverá ter sido um celeiro e também um poço, em actividade durante a época islâmica (ver quadro 1).

Figura 2. Arrabalde Oriental na Época de Domínio Islâmico (c. 1140). Manuel Fialho

Quadro 1. Sítios Arqueológicos do Arrabalde Oriental em Época de Domínio Islâmico

Largo das Alcaçarias

Rua de S. Miguel, 43

Largo do Chafariz de Dentro

Rua dos Remédios, 7 a 9

Rua dos Remédios, na via em frente a 5 -9 e 11-13

Rua da Regueira

Beco do Azinhal, 13

Largo de S. Miguel

Beco da Cardosa

Pátio da FRESS

Calçadinha do Tijolo, 37 a 43

Manuela Leitão Sécs. XI-XII

Rodrigo Banha da Silva Séc. XII

Habitacional; olaria

Habitacional

Rodrigo Banha da Silva, Cristina Nozes e Pedro Miranda Séc. XI-XII Despejo; olaria

Rodrigo Banha da Silva Séc. XI-XII

Habitacional

Rodrigo Banha da Silva Séc. XI-XII Estruturas de condução de água

Rodrigo Banha da Silva Sécs. XI-XII(?) Evidência Estratigráfica

Rodrigo Banha da Silva, Cristina Nozes e Pedro Miranda Sécs. XI-XII(?) Poço e Celeiro (?)

Rodrigo Banha da Silva Sécs. XI-XII(?) estrutura de funcionalidade desconhecida

Nuno Ribeiro e Jorge Ferreira Sécs. XI-XII Lixeira (?)

Ana Gomes e Maria José Sequeira Séc. XI-XII

Habitacional

Vanessa Filipe Necrópole

Rua das Escolas Gerais, 15 a 23 Nuno Neto e Tiago Fontes Séc. XI-XII Silo (armazenamento de alimentos)

M. S. Vicente de Fora

Fernando Rodrigues Ferreira Séc. XII

Armazenamento

Palácio de Santa Helena Neoépica - Necrópole

Relativamente ao nível superior, o qual coincide em maior medida com a actual freguesia de S. Vicente, devemos sublinhar a presença de dois tipos de estruturas de grande importância para a cidade, e que normalmente se situavam nos limites urbanos: sepulturas e silos de armazenamento. Actualmente podemos afirmar que a hipótese proposta por Claúdio Torres em 1994 sobre a existência de um cemitério nas encostas de S. Vicente de Fora obteve, na última década, confirmação arqueológica, pois foi verificada a existência de várias sepulturas, realizadas de acordo com os preceitos da religião muçulmana, ou seja, com o corpo em decúbito lateral direito. As referidas sepulturas foram encontradas em, pelo menos, três sítios arqueológicos relativamente próximos, situados no nível superior do arrabalde oriental. Em primeiro lugar, no Mosteiro de S. Vicente de fora, foi encontrado um indivíduo na referida posição “inserida num depósito compatível com o século XIV”, uma data um pouco inesperada, pois nessa época já a comunidade muçulmana habitaria a zona da Mouraria e teria aí perto o seu cemitério. Em segundo, escavações realizadas numa propriedade situada na Calçadinha do Tijolo revelaram a existência de uma necrópole de época islâmica, ou seja, anterior ao cerco de 1147, constituída por cinco inumações. Em terceiro e último lugar, no Palácio de Santa Helena, ou seja, no Largo do Sequeira, foram descobertas dezanove sepulturas de época islâmica. Este conjunto de sítios arqueológicos parecem configurar uma área de necrópole que provavelmente constituiria o principal almocávar da cidade durante a época de domínio muçulmano. Em alguns destes últimos sítios arqueológicos e também numa escavação efetuada na rua das Escolas Gerais foram encontrados silos ou fossas, que poderiam servir quer para armazenar alimentos quer como simples lixeiras. À semelhança do que ocorria no arrabalde ocidental, as zonas de cota mais alta eram eleitas para a implantação destes silos ou fossas. Escavações arqueológicas revelaram a existência destas estruturas de armazenamento, abertas originalmente em época islâmica, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, na Rua das Escolas Gerais e no Beco da Cardosa. Estes silos serão uma peça chave para entendermos a evolução urbana do arrabalde oriental e particularmente do seu nível superior durante a Idade Média.

Em 1147, Afonso Henriques e os cruzados tomaram definitivamente a cidade aos muçulmanos. A longo prazo as alterações à morfologia urbana da cidade foram bastante consideráveis, abandonando-se o modelo da casa-pátio em benefício do modelo do lote alongado com quintal nas traseiras, o que veio a reconfigurar a imagem da cidade. No entanto, estas alterações tiveram sobretudo efeito nas zonas com maior densidade urbana, e menor efeito em espaços com baixa densidade, como era o caso do nível superior do arrabalde oriental. Durante o cerco, as informações documentais revelam que os cruzados teutónicos terão montado acampamento na encosta da Colina de São Vicente de Fora, e terão aí implantado um cemitério para as suas baixas em combate. Estas afirmações foram corroboradas em várias escavações arqueológicas ocorridas desde as últimas décadas do século XX até 2013. Por baixo das fundações do actual Mosteiro de São Vicente de Fora encontra-se de facto um cemitério que provavelmente corresponde ao cemitério descrito nas fontes documentais.

Segundo uma das fontes, o primeiro rei português terá prometido erguer um templo no local do cemitério se o cerco lhe fosse favorável, o que veio a acontecer. Na verdade, os primeiros monarcas portugueses mantiveram uma ligação estreita com o este mosteiro, apoiando-o com doações testamentárias feitas por Sancho I, Afonso II, Sancho II, Afonso III e D. Dinis. Com o apoio dos monarcas da primeira dinastia o Mosteiro de São Vicente de Fora tornou-se gradualmente em uma das mais poderosas instituições eclesiásticas do reino, possuindo património desde Silves até à Guarda, com especial concentração de propriedades na região da sua sede entre Sesimbra, Torres Vedras, Santarém e Sintra. A ligação entre os monarcas portugueses e S. Vicente de Fora encontra um paralelo relevante na relação entre a Coroa e o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, o qual foi casa-mãe do mosteiro lisboeta e também panteão dos dois primeiros reis. Não deverá então constituir surpresa que uma instituição com esta dimensão e poder tenha tido um efeito profundo na forma urbana do espaço onde existia a sua sede. Na verdade, essa influência chegou mesmo ao século XXI, pois o seu nome permanece ainda na freguesia de São Vicente. Confirmando o estatuto singular do mosteiro, note-se que, ao contrário da maioria das paróquias de Lisboa, que serão delimitadas com rigor apenas em meados do século XV, uma inquirição régia feita em 1220 dá a entender que esta paróquia teria sido delimitada antes dessa data. Esta delimitação paroquial precoce permitiu, consequentemente, ao Mosteiro de S. Vicente de Fora ampliar a capacidade administrativa da sua paróquia. Considerando a mais antiga planta de Lisboa, feita em 1650, por João Nunes Tinoco e a gravura impressa na obra de Braunio, do terceiro quartel do século XVI, é possível elaborar uma proposta de reconstituição sobre a cerca conventual medieval, que terá sido levantada em determinado momento que não é possível perceber (ver imagem 3).

Esta seria a área de influência directa do Mosteiro de S. Vicente, pois a paróquia estendia-se para além deste espaço. Em 1373, quando D. Fernando ordena e financia a construção de uma nova muralha, a área compreendida pela Cerca de S. Vicente foi seccionada em duas partes, ficando uma parte no exterior da muralha da cidade e outra parte no seu interior. Não temos conhecimento sobre os motivos que levaram a que o traçado da Cerca Fernandina não tivesse aproveitado a cerca conventual, no entanto é possível perceber que o espaço abrangido pela Cerca de São Vicente não perderá a sua coesão, permanecendo como uma área homogénea até à abertura da Rua da Infância, a actual Rua da Voz do Operário, no último quartel do século XIX (ver imagem 4.). Observando a planta da Freguesia de São Vicente da autoria do sargento-mor José Monteiro de Carvalho, feita após o terramoto de 1755, é possível verificar que a paróquia nessa altura se desenvolvia sobretudo para a área a Norte do espaço compreendido pela cerca conventual até ao antigo Campo da Parada, actual Rua dos Sapadores (ver imagem 5.). Em direcção a ocidente a paróquia em meados do século XVIII abarcava ainda a zona do Convento das Mónicas. Tentar perceber a área da paróquia de S. Vicente durante a época medieval tornase um exercício particularmente complexo, pois além de não existirem fontes cartográficas ou iconográficas que possam colaborar nesta pesquisa, as flutuações toponímicas nesta área dificultam esse processo.

Para este efeito, note-se a disparidade toponímica entre as ruas atribuídas à freguesia de S. Vicente no Livro das Plantas das Freguesias de Lisboa (1756-1768) e o Sumário de Cristóvão Rodrigues de Oliveira elaborado em meados do século XVI. Seja como for, é clara na nossa reconstituição da área de influência directa do Mosteiro de S. Vicente de Fora a sua dimensão extraordinária, abrangendo 6.88 hectares, ou seja, uma área maior do que a alcáçova da cidade. Além da dimensão desta área, importa também destacar que funcionou como uma força de bloqueio ao desenvolvimento urbano da cidade, refreando a implantação de novas construções nesta zona da cidade. Esta afirmação torna-se evidente na Carta Topográfica elaborada por Filipe Folque entre 1856 e 1858, onde se verifica que a zona abrangida pela cerca conventual permaneceu com uma forte componente rural até aos meados do século XIX (ver imagem 4.). Entre o Mosteiro de São Vicente de Fora e o Rio Tejo existiu, durante a idade média, um outro conjunto de estruturas que bloquearam a evolução urbana da cidade para oriente. Se no nível superior do arrabalde a presença dos cónegos regrantes de S. Vicente terá afetado o desenvolvimento urbano, no nível inferior foi a Coroa que desempenhou um papel semelhante.

Para compreendermos a ação dos monarcas portugueses neste extremo oriental da cidade cabeça de reino, devemos recuar a 1263, momento em que D. Afonso III concede a sua autorização para que Martinho Pires e sua mulher, Constança Afonso, seus criados, possam construir casas sobre os muros da Porta da Cruz. A localização aproximada desta porta foi feita por Augusto Vieira da Silva, seguindo a mais antiga planta de Lisboa na bifurcação entre a Rua dos Remédios e a mais recente Rua do Museu de Artilharia (A. V. Silva 1987, vol. 2, mapa XVIII - ver imagem 6). A referência a uma porta normalmente implica a existência de uma muralha onde a primeira se abre, no entanto, não é possível perceber que estrutura defensiva existiria no local da Cruz, além da referida porta. Pois, até ao momento, não se conhecem resultados de escavações arqueológicas nesta zona que possam ajudar a confirmar a existência de uma muralha anterior a 1373, momento em que D. Fernando ergue uma nova cerca urbana que abrangeu toda a cidade, e que parece ter aproveitado a Porta da Cruz. Deste modo, podemos apenas desenhar dois cenários que expliquem esta estrutura defensiva. Em primeiro lugar, poderia se tratar de uma antiga muralha do arrabalde oriental que, como se observou, já tinha uma ocupação urbana considerável em época de domínio islâmico, todavia as descrições do cerco da cidade em 1147 não referem outra muralha além da Cerca Velha. Estaria essa muralha em ruínas, em meados do século XII? Em segundo lugar, a Porta da Cruz poderá ter sido levantada apenas posteriormente à conquista da cidade por Afonso Henriques e os cruzados, ou seja, em algum momento entre 1147 e 1263.

Com o conhecimento actual nenhum destes dois cenários pode ser comprovado ou refutado. Assim sendo, teremos que aguardar por novos dados que possam surgir de escavações arqueológicas feitas nesse local. Perto da Porta da Cruz, mais precisamente entre esta e o Mosteiro de São Vicente de Fora existiu uma vasta propriedade régia onde D. Dinis mandou fazer covas para guardar pão, tal como informa um documento produzido em 1286. Estas covas, ou seja, silos de armazenamento, constituíam uma importante peça no sistema de abastecimento da Casa da Coroa e também da própria cidade. Além disso, a presença destes silos no reinado de D. Dinis revela uma continuidade funcional de um espaço que já em época de domínio islâmico servia o mesmo propósito, tal como se verificou em escavações arqueológicas feitas no Mosteiro de São Vicente, na Rua das Escolas Gerais. No Palácio de Santa Helena foram realizadas escavações arqueológicas que revelaram, além de um espaço de necrópole de época islâmica já referido, silos de grandes dimensões que os arqueólogos classificaram como “medievais”. Estes silos, em determinado momento, possivelmente no século XVI, perderam a sua funcionalidade original, a conservação de alimentos, para se tornarem fossas de despejo, função que mantiveram até ao século XVII. Seriam os silos encontrados no Palácio de Santa Helena parte do complexo constituído por vários silos de armazenamento que a Coroa possuía nessa zona, documentados desde o século XIII? Na nossa opinião a resposta deverá ser positiva, pois a grande dimensão dos silos encontrados parece apontar para que fossem pertença de uma instituição, indício que, aliado às evidências documentais, constitui prova suficiente.

Entre a Porta da Cruz e o rio Tejo a Coroa possuiu, durante o reinado de D. Dinis, um conjunto urbano de grande relevância onde se incluíam diversas estruturas, nomeadamente, Casas da Moeda, um rossio e paços para galeões. Num documento datado de 1287 atestase que foi feita moeda perto do local da Porta da Cruz, sem esclarecer quando se iniciou e terminou esta actividade. Em 1377, quando o Estudo Geral regressa a Lisboa, é instalado na “moeda velha onde antes costumava estar”, confirmando que, antes de 1308, o Estudo Geral se localizou no local onde se fez moeda, pois nesse ano foi transferido para Coimbra. Não se conhecem mais detalhes sobre estes edifícios, sabemos apenas que este local foi um ponto nevrálgico para os objetivos da Coroa durante o reinado de D. Dinis, monarca que teve grande impacto na forma urbana da cidade, pois remodelou a Ribeira através da construção da fachada sul da Rua Nova e da muralha da Ribeira. Na margem ribeirinha possuía ainda a Coroa “dois paços para galeões”, ou seja, duas estruturas que albergavam embarcações do tipo das galés, as quais normalmente se resguardavam em doca seca. Este local na margem ribeirinha, perto da Porta da Cruz, não era o principal ponto de interesse da marinha real na cidade, pois as Tercenas Régias, que albergavam em 1300 doze galés, situavam-se no extremo do arrabalde ocidental. Estes “paços para galeões” serviriam provavelmente para apoio militar marítimo da estrutura defensiva situada na Cruz, a qual por sua vez defendia tanto as valiosas covas do Rei como o acesso à cidade por oriente. Por último, importa referir o rossio da Lapa que se situava perto das referidas Casas da Moeda.

Em época medieval os rossios eram espaços abertos, normalmente planos e amplos, sem edificações, maioritariamente localizados fora do recinto urbano e junto dos principais eixos de circulação, servindo para a realização de treinos militares, justas e torneios, para corridas de cavalos e de touros, sendo a sua função mais relevante albergar feiras ou mercados sazonais. Tratava-se, portanto, de um rossio situado numa posição estratégica junto a uma das principais entradas na cidade e junto da margem ribeirinha, possibilitando um acesso fluvial, sendo o rio principal via de entrada dos vários produtos que abasteciam a cidade e de saída daqueles que Lisboa exportava. Após esta análise à evolução urbana do arrabalde oriental de Lisboa, com especial enfoque na área mais próxima ou mesmo incluída pela actual freguesia de S. Vicente, podemos compreender melhor porque esta parte da cidade permaneceu com um carácter rural até meados do século XIX, estando neste espaço ausente a extraordinária expansão urbana que aconteceu no arrabalde ocidental e que no século XVI se estendia já pelo Bairro Alto. Com efeito, se observarmos o desenho de Lisboa existente na Biblioteca de Leiden, realizado em meados do século XVI, notamos como o crescimento urbano se desenvolveu sobretudo dentro da área protegida pela Cerca Fernandina (ver imagem 7). Consideramos que o desenvolvimento urbano no arrabalde oriental foi em grande medida obstruído pela presença das duas instituições que estavam na posse de boa parte da propriedade urbana nos limites do arrabalde.

No nível superior, o Mosteiro de São Vicente de Fora foi desde a sua origem, directamente relacionado com o cerco de 1147, um ator da maior importância na modelação da forma urbana. A posição física do Mosteiro, junto de uma importante via de saída da cidade, associada à grande dimensão das suas propriedades e à solidez da sua administração tornaram o espaço em torno da sua sede um ponto de atração urbana, mas, simultaneamente, refrearam qualquer avanço do crescimento urbano para além da área de influência desta instituição. No nível inferior, a Coroa controlava a área junto da Porta da Cruz, implantando aí várias estruturas de grande relevância, destacando-se uma vasta área de armazenamento na encosta da Colina de S. Vicente. A existência de estruturas de armazenamento de época islâmica, no mesmo local, ou em locais próximos, ao espaço onde D. Dinis irá fazer as suas “covas de pão” deverá ser tido em conta como uma possível herança na gestão urbana entre o domínio político islâmico e o cristão. Efectivamente, apesar de se terem alterado os atores, a lógica da gestão urbana pouco mudara após a alteração de poder ocorrida em 1147. Na perspectiva da Coroa portuguesa importava controlar uma das principais entradas na cidade, e estabelecer nesse limite oriental uma posição militar clara e efetiva. A manutenção da Porta da Cruz suportada por uma estrutura de apoio ao combate marítimo parecem ter desempenhado essa função. Mas além da questão militar, à Coroa também interessava obter rendimentos económicos provenientes da realização de feiras ou mercados no rossio da Lapa, visto que este estava na sua posse. A implantação do Estudo Geral num espaço periférico da cidade também deve ser observada na perspectiva do controlo régio que preferia manter essa instituição sob uma vigilância e protecção eficaz. Importa notar que a implantação destas estruturas, excetuando a Porta da Cruz que já ali existiria, recai sobre a mesma pessoa, o rei D. Dinis, monarca que teve um papel modelar na forma urbana da cidade, deixando um sólido legado na história de Lisboa.

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A capela de Estêvão da Guarda no Mosteiro de S. Vicente de Fora

Miguel Gomes Martins

The chapel of Estêvão da Guarda in Saint Vicente de Fora´s monastery

Trovador e detentor de diversos cargos na corte de D. Dinis, de quem foi uma figura muito próxima, Estêvão da Guarda é uma personagem relativamente bem conhecida, sobretudo através da sua faceta de poeta e do papel que desempenhou no desembargo régio. Contudo, há inúmeros aspectos da sua vida – as suas origens, a constituição do seu património, a sua descendência – que permanecem obscuros e envoltos em dúvidas, aliás tal como as questões relacionadas com a sua morte, em particular com a capela por si fundada e onde se fez sepultar. Assim, o nosso objectivo é revisitar algumas destas temáticas e, através de novos dados, fornecer um novo olhar sobre uma das mais brilhantes figuras das muitas que atravessaram os reinados de D. Dinis, Afonso IV e D. Pedro.

Em 1527, após autorização papal concedida anos antes por Clemente VII, tinha início a construção do mosteiro franciscano da Esperança, erguido nos terrenos da Quinta da Sisana, em Santos. A obra, iniciativa de D. Isabel de Mendanha, encontrava-se praticamente concluída em 1536, altura em que as primeiras religiosas começaram a habitar o edifício. Todo este processo havia começado catorze anos antes, em Julho de 1522, quando Isabel de Mendanha solicitou a D. João III que exercesse a sua influência junto da Câmara de Lisboa, de modo a que esta lhe aforasse perpetuamente a Quinta da Sisana, propriedade de uma capela instituída no Mosteiro de S. Vicente de Fora e administrada pelo concelho da capital. O monarca escreveu então aos vereadores instando-os para que aceitassem a proposta de D. Isabel que, aliás, havia já acertado a transferência do domínio útil da propriedade com Fernão de Noronha, que a tinha aforada, pelo menos, desde Julho de 1520. Mas se a transacção do terreno foi, ao que parece, simples e pacífica, a gestão da capela a que pertencia a Quinta da Sisana não o era. Pelo contrário, revelava-se, desde há muito, problemática e causadora de contendas entre os vereadores, os cónegos de S. Vicente de Fora, os provedores e os foreiros das propriedades da capela.

A troubadour and holder of several positions at the court of king Dinis, to whom he was a very close person, Estêvão da Guarda is a relatively well-known character, especially through his poetic side and the role he played in the royal court decisions. However, there are numerous aspects of his life – his origins, the constitution of his estates, his family – that remain obscure and shrouded in doubts, as well as the issues related to his death, in particular with the chapel he founded and where he was buried. Thus, our objective is to revisit some of these themes and, through new data, provide a new look at one of the most brilliant figures of the many who crossed the reigns of kings Dinis, Afonso IV and Pedro I.

Estêvão da Guarda

Lisbon

Saint Vicente de Fora´s Monastery king Dinis biocalcarenite

A falta de rendimentos provenientes desse património foi um dos principais motivos para os desentendimentos. Um documento de Dezembro de 1513 refere precisamente que os anteriores administradores tinham delapidado esses bens, o que se reflectia no estado de degradação da capela, a qual não tinha já qualquer ornamento e onde se encontrava apenas um capelão. Este cenário em nada se alterou nos anos seguintes, como nos dá conta um documento datado de Outubro de 1516. Exceptuava-se um retábulo recentemente encomendado por um dos seus administradores –mestre Pedro – e colocado no altar da capela. Contudo, o quadro geral era o de uma profunda desolação. Para tal contribuíam as parcas rendas provenientes das propriedades anexadas à instituição e que, na centúria de Quinhentos, se limitavam à Quinta da Sisana e a umas casas na Rua Nova, em Lisboa. A capela em causa havia sido fundada em 1320 por Estêvão da Guarda e sua mulher, Sancha Domingues, que tinham estipulado que a sua provedoria ou administração deveria ser entregue pelo concelho de Lisboa – a quem caberia essa nomeação e a supervisão da actividade dos provedores –, prioritariamente, a membros masculinos da sua descendência. O primeiro de que temos conhecimento nessa função é, precisamente, um neto do instituidor, Álvaro Afonso, que ocupou o cargo durante aproximadamente 40 anos e a que sucedeu o seu filho Diogo Álvares, que assumiu funções em Outubro de 1400. Ter-se-á mantido no cargo até 1428, altura em que foi desapossado pela vereação lisboeta sob a acusação de irregularidades cometidas na administração da capela, designadamente a falta de pagamento aos capelães. Ao longo do século XV as notícias são escassas, sendo que só voltamos a ter referência à administração da capela em Março de 1496, quando um escudeiro de Lisboa, João de Andrade, por renúncia de seu pai, Estêvão Pinheiro – que alegava impossibilidade de compatibilizar essa função com os seus negócios e sobre o qual nada se refere quanto a uma eventual relação linhagística com os instituidores –, foi empossado como provedor pelos vereadores do concelho da capital.

O século XVI tem início com uma questão complexa em torno da administração da capela de Estêvão da Guarda. O acima referido João de Andrade, foi destituído, também ele, por “erros que fizera”, surgindo para ocupar o lugar um alegado descendente do fundador, de nome Paio Rodrigues. Viria a falecer pouco tempo depois, sendo substituído, antes de Agosto de 1503, pela sua mulher, Maria Gonçalves “A Brandoa”. Nessa altura, um outro candidato aparecia em cena. Tratavase de Pedro de Andrade, cavaleiro da casa do rei, que se apresentava disponível para assumir a provedoria, argumentando que esta não poderia, por disposições dos instituidores, ser atribuída a mulheres. Dez anos depois, o administrador era já mestre Pedro, cavaleiro da Ordem de Santiago, bacharel, físico e cirurgião e que em Outubro de 1516 ainda se encontra documentado como administrador, mas que foi substituído por Pedro Fernandes antes de 28 de Abril de 1544. Nesta data, D. João III, em carta enviada à câmara de Lisboa, solicitava à vereação que, quando o administrador da capela morresse, entregasse a provedoria da capela à abadessa e freiras do convento da Esperança localizado, relembre-se, numa propriedade pertencente a essa mesma capela. Em Outubro de 1546, imaginamos que logo após a morte de Pedro Fernandes, o monarca reafirmava este pedido, alegando que essas religiosas “terão melhor cuidado de cumprir os encargos da ditta capella por serem (…) de muito boa vida e de puras consciencias e poderão olhar por isso melhor que os leigos”. Mas tudo indica que o pedido do rei não teve eco. Facto é que em finais de Quinhentos / inícios Seiscentos, a capela voltava a ter um outro administrador leigo – Luís Mendes – que em 1608, por morte, havia já sido substituído, segundo parece, por Pedro Vaz de Villas Boas e sua mulher Justa de Magalhães. Estes, em 19 de Agosto desse ano apresentavam a sua carta de renúncia justificando-se com os elevados encargos da capela, muito superiores aos seus rendimentos. O problema revelava-se em toda a sua extensão. A capela não tinha já quaisquer meios de suportar as suas despesas, ou seja, a sua manutenção e os sufrágios estipulados pelos instituidores. Não admira, portanto, que aquando das obras filipinas do mosteiro de S. Vicente de Fora a capela tenha acabado por ser demolida, bem como os sarcófagos de Estêvão da Guarda e de sua mulher, sendo as ossadas trasladadas para uma outra capela, mais modesta e localizada por detrás do coro, do lado oriental. Mas para que tal acontecesse a câmara teria que cumprir as obrigações estipuladas pelos instituidores, isto é, pagar ao convento os referidos sufrágios estabelecidos pelo instituidor, o que não é seguro que tenha acontecido.

Localização provável da Capela de Estêvão da Guarda, após as obras Filipinas do Mosteiro de S. Vicente de Fora (Baseado na planta publicada por José da Felicidade Alves, O Mosteiro de S. Vicente de Fora, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, nº 6)

Com efeito, em meados do século XX uma lápide funerária assinalava apenas, no claustro do mosteiro de S. Vicente de Fora, o local onde se encontravam os ossos dos instituidores, pelo que é natural que a câmara não tenha chegado a cumprir aquelas obrigações, face ao que os cónegos terão optado por desmantelar a capela e emparedar os ossos. De Estêvão da Guarda restava apenas uma vaga memória. No seguimento de frei Francisco Brandão – que, sem grandes certezas, lançou essa possibilidade –, a maior parte dos autores tem colocado a hipótese de Estêvão da Guarda ter nascido em Aragão, vindo para Portugal no séquito de D. Isabel. No entanto, como avançámos já num outro estudo, Estêvão da Guarda terá nascido, aliás como o seu nome sugere, na cidade da Guarda, em torno de 1280, sendo filho do escrivão régio Lourenço Esteves da Guarda e neto de Estêvão Rodrigues da Guarda. Aparentemente, casou apenas uma vez, com Sancha Domingues – cuja ascendência ignoramos –, um enlace que parece ter tido o patrocínio régio e que ocorreu seguramente antes de 4 de Setembro de 1317. Sancha Domingues morreu entre 1347 e 1352 e terá sido ela a primeira a ser sepultada na capela de S. Vicente de Fora. Estêvão da Guarda teve quatro filhos e uma filha: Diogo Esteves, Álvaro Esteves, Fernão e Afonso da Guarda e Maria Esteves, mas não nos parece seguro afirmar – com base no facto de nem todos ostentarem o patronímico – que todos eles fossem fruto do casamento com Sancha Domingues. Diogo Esteves, talvez o primogénito, teve uma filha, Sancha Dias, que casou com Lourenço Martins do Avelar, copeiro da rainha D. Beatriz e filho de Martim Esteves do Avelar, Mestre de Avis e mordomo da rainha. Desse casamento não houve qualquer descendência. De Álvaro Esteves não se conhecem dados biográficos, sendo provável que tivesse uma formação universitária em Direito, já que o seu pai lhe deixou em testamento diversos livros do Corpus Iuris Civilis. Quanto a Fernão da Guarda, é sabido estar já morto em 1352, tendo deixado dois filhos, Estêvão e Afonso que, por essa altura, eram criados por Estêvão da Guarda. Afonso da Guarda, tal como o anterior, encontrava-se já morto aquando da redacção do testamento de seu pai, em 1352. Foi casado com Catarina Anes, com quem teve dois filhos: Constança e Álvaro Afonso, o pai de Diogo Álvares, que, como vimos, chegou a administrar a capela fundada pelo avô. No que diz respeito a Maria Esteves, sabemos que casou com João Anes Escola, de quem teve dois filhos: Rodrigo e João Anes. Estes, após a morte dos pais, foram tutorados por Estêvão da Guarda, mas acabariam por morrer em 1348 em consequência da Peste Negra, pouco tempo depois de Maria Esteves e de seu marido, que é possível que tenham também sido vitimados pela pandemia. A visibilidade histórica de Estêvão da Guarda é, acima de tudo, uma consequência do papel destacado que desempenhou no seio do funcionalismo dionisino, com uma longa carreira ligada ao desembargo régio e iniciada em 1299, tendo elaborado, entre esta data e 1310, cerca de 20 diplomas.

A partir de 1312, e numa situação verdadeiramente fora do comum, o seu nome surge na documentação assumindo um papel que Armando Luís de Carvalho Homem classifica como o de "Escrivão da Puridade avant la lettre". Isto é, "aparece em numerosos casos [cerca de 160 cartas, a última das quais de Dezembro de 1324] numa função que parece conclusiva sobre a sua real importância na Corte dionisina: em numerosos diplomas também de subscrição régia o escatocolo regista, a seguir à indicação do ano e quando se esperaria a - eventualindicação “El-Rei”, a transcrição da assinatura do próprio Estêvão da Guarda". Trata-se de um facto que vem revelar a enorme confiança de que era depositário por parte do monarca, a qual se observa também na nomeação para os importantes cargos de eichão-mor e escanção-mor.

Esta relação com D. Dinis era de tal forma estreita que este o designou mesmo, em 1322, como um dos seus testamenteiros, encontrando-se nesta qualidade ao lado da rainha; do bastardo régio Afonso Sanches; de Estêvão Vasques Pimentel, prior do Hospital; de Gonçalo Pereira, deão do Porto e de frei João Monge, confessor e capelão do monarca. Estêvão da Guarda encontra-se ainda presente, enquanto testemunha, nos documentos que atestam alguns dos mais importantes actos políticos dos finais do reinado, tais como a relação das queixas do monarca contra o Infante D. Afonso (1320); a publicação dos agravamentos de D. Dinis relativamente ao herdeiro da coroa (1321) ou a instituição dos comendadores da recentemente criada Ordem Militar de Cristo (1321). Foi ainda procurador do rei, encontrandose registado com essas funções em 1321.

O seu distanciamento da corte verificase imediatamente após a subida de Afonso IV ao trono, ocorrida em Fevereiro de 1325. De facto, até Dezembro de 1327, a documentação régia não volta a fazer menção do seu nome, tal como acontece com a sua documentação particular – essencialmente de gestão patrimonial –, que deixa de ser produzida. A explicação para esta "travessia do deserto" deverá ser procurada nas dissensões políticas que varreram os últimos anos do reinado de D. Dinis e que acabaram por colocar, em campos militares opostos, o rei e o herdeiro da coroa, conflitos esses nos quais Estêvão da Guarda tomou o partido de D. Dinis. É possível que durante este período subsequente à morte do Rei Lavrador, se tenha dedicado à produção literária, área em que tanto brilhou como trovador, tendo produzido para cima de 30 composições, das quais mais de 20 são cantigas de escárnio e mal-dizer. Apesar deste afastamento da corte, a experiência e o prestígio de Estêvão da Guarda acabariam por levar Afonso IV a solicitar os seus serviços: em finais de 1327, quando foi enviado a Castela para negociar o casamento da infanta D. Maria com Afonso XI; em Julho de 1336, testemunhando, em Estremoz, uma procuração dos alcaides de Sortelha, de Celorico e de Penamacor a propósito dos pactos firmados entre os reis português e castelhano; em Outubro de 1338, quando é referido pela primeira vez, como conselheiro do rei; em Novembro desse ano, a testemunhar o tratado assinado com entre Afonso IV e Pedro IV de Aragão; em 1347, enquanto testemunha da promolugação da "Ordenação sobre as vindictas privadas" e, ainda nesse ano, entre os signatários do documento que comprovava que a rainha de Aragão, D. Leonor, havia recebido, de Afonso IV, jóias que haviam pertencido a D. Maria, mulher que foi do infante D. Pedro de Castela, apenas para citar alguns desses momentos.

Todo este percurso e proximidade à Coroa granjearamlhe, não só um enorme prestígio, como lhe possibilitaram a acumulação de uma grande fortuna expressa, essencialmente, em bens de raiz, muitos deles obtidos por compra, outros por doação, bem como alguns recebidos do rei a título vitalício:

-O Forno do Pedrolo, situado junto das suas casas de morada na Freguesia de S. Mamede e adquirido entre 1312 e 1317; uma lezíria situada junto da Azambuja e que tinha pertencido a Afonso Guilherme de Santarém, comprada, ao que parece, em 1317; a Quinta da Sisana, localizada junto do mosteiro de Santos e adquirida em 1319; treze courelas de herdade e de vinha situadas entre Benfica e Alfornelos, compradas em 1322; a Lezíria da Fraceira, localizada no termo da Azambuja, doada pelo rei em 1317 e trocada, em 1318, pela Lezíria de D. Sancha; um moinho de maré em Alcântara, que possuía, por doação régia de 1322, de parceria com Estêvão Martins, mestre dos Engenhos; diversas propriedades doadas pelo rei e situadas em Torres Vedras, e que recebeu em 1322; a Lezíria do Galego, situada junto do paço real de Valada e que recebeu de D. Dinis a título vitalício; a Quinta de Montagraço, recebida de Afonso IV em 1336 e enquanto fosse vontade deste; a Quinta do Lumiar, que recebeu da Ordem de Avis, antes de 1320, em troca pelos bens que possuía em Pavia, próximo de Mora, no Alto Alentejo; umas casas na Rua Nova de Lisboa, recebidas de Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, em Outubro de 1321; o Casal de Caparide e diversas outras propriedades localizadas junto a Loures, herdadas de seus netos, Rodrigo e João Eanes. No dia 8 de Novembro de 1320, Estêvão da Guarda e sua mulher, Sancha Domingues, instituíram uma capela no mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa, para cuja manutenção destinavam uma parte deste vasto património. O documento da fundação foi lavrado na casa de morada de Estêvão da Guarda, situada na alcáçova de Lisboa, e limita-se, praticamente, a referir quais as propriedades que anexa a essa capela (o Forno do Pedrolo e a Quinta da Sisana), o número de capelães e a forma de sucessão na administração da capela. Perante o carácter lacónico do documento, não é possível perceber todo o processo que levou a essa instituição, ou o motivo que levou a que optassem por S. Vicente de Fora como local da sua última morada. Porém, é sabido que a escolha de conventos como local de sepultura, em detrimento das igrejas paroquiais, era uma característica dos grupos nobres e do funcionalismo, grupos esses a que Estêvão da Guarda pertencia. E sendo que em Lisboa, a instituição monástica de maior importância e de maior prestígio era, sem dúvida – e apesar do crescente protagonismo dos mosteiros dominicano e franciscano –, o mosteiro de S. Vicente de Fora, parece-nos que esta sua opção nada tem de invulgar. A ratificação da instituição da capela deu-se a 13 de Outubro de 1322, tendo sido testemunhada por Estêvão Eanes, cónego de S. Jorge; Geraldo Esteves, cónego do mosteiro de Landim; Domingos Peres, cónego do mosteiro de Grijó; Afonso Esteves, tabelião de Lisboa; Afonso Domingues da Chancelaria; e João Baião, abade de Carrazeda, entre outros. Porém, desta feita, os instituidores foram muito mais precisos, determinando, detalhadamente, tudo o que se relacionava com a capela, desde o número de sufrágios que aí deveriam ser rezados até às alfaias religiosas, passando pela norma que obrigava a que fosse mantida permanentemente acesa uma candeia de azeite.

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Em 1321, por saber da vontade de Estêvão da Guarda de “juntar a dita capella mais possessões para se acresentarem hi mais capellães”, Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, doou-lhe umas casas localizadas na Rua Nova de Lisboa. Destinavam-se ao “mantimento de vossa capella que vos ordinhastes em Sam Vicente de Fora de Lisboa e dos capellaens que vos hi mandastes poer”. Assim, a partir de 1322, aos dois capelães adstritos desde 1320, acrescentava-se um terceiro, dos quais conhecemos apenas o nome de Vicente Domingues. Todos eles seriam escolhidos pelo instituidor, mas em articulação com o prior do mosteiro, que teria sempre uma palavra a dizer sobre o assunto. Com a morte de Maria Esteves – ocorrida entre 1347 e 1352, talvez durante a Peste Negra – e de seus netos Rodrigo e João Eanes, sepultados à porta da capela, certamente que por falta de espaço no interior, Estêvão da Guarda procurou, utilizando parte dos bens que deles havia herdado, aumentar para quatro o número de capelães. Contudo, punha-se um problema. A Peste havia feito um grande número de baixas no convento, pelo que esse aumento seria, temporariamente, inviável. A solução encontrada foi determinar que os capelães então existentes rezassem também missas de aniversários pelas almas dos seus netos e ainda pela alma do pai de ambos, João Anes Escola.

Por cada um destes ofícios religiosos, Estêvão da Guarda pagaria 4 libras. Os frades de S. Vicente deveriam ainda cantar uma antífona diária em louvor da Virgem Maria à porta da capela, pela qual seriam também remunerados. Para o pagamento destes novos sufrágios, Estêvão da Guarda anexava à sua capela diversas propriedades herdadas desses seus netos, situadas em Loures, bem como o Casal de Caparide. No documento da ratificação, de 1322, Estêvão da Guarda estipulara ainda o modo como se deveria proceder à escolha do administrador da capela. Durante o período de execução do seu testamento, essa função estaria atribuída aos seus testamenteiros, passando depois para a sua mulher. À morte desta, seria nomeado um novo administrador, que deveria ser o seu filho varão legítimo, ou a sua filha legítima mais velha, caso não houvesse nenhum filho legítimo vivo. Se nenhum destes estivesse vivo, a administração ficaria a cargo do seu neto mais velho, ou neta, caso não existisse nenhum neto, ou seja, em regime de morgadio. Na inexistência de herdeiros habilitados, essas funções ficariam entregues a um homem bom nomeado pelo concelho de Lisboa, o que acabaria mesmo por acontecer. Tudo indica que essa incumbência esteve entregue aos testamenteiros até cerca de 1374, altura em que Álvaro Afonso, neto de Estêvão da Guarda, passou a deter esse cargo, nele permanecendo até à sua morte, no dia 1 de Janeiro de 1414. Foi substituído duas semanas depois, como vimos já, pelo seu filho, Diogo Álvares, morador em Loures. Não chegou até aos nossos dias qualquer descrição do aspecto físico desta capela, em boa medida devido ao facto ter sido completamente demolida aquando da construção do novo edifício conventual, durante o reinado de Filipe I. Supomos, ainda assim, que seria uma capela relativamente espaçosa e com algum aparato decorativo, situando-se, tudo o indica, no corpo da igreja conventual. Ora por se tratar de uma capela de dimensão razoável – relembre-se que tinha espaço para dois sarcófagos e um altar em frente do qual ardia permanentemente uma lâmpada de azeite –, por ter uma porta que podia ser fechada e por ter o tecto abobadado, não parece tratar-se uma capela lateral. Assim, o mais provável é que se localizasse numa das duas absides laterais, mas tudo não passa de meras hipóteses. Quanto à sua decoração, as fontes referem apenas a presença, numa parede, das armas de Estêvão da Guarda, entre outros motivos ornamentais, nomeadamente o retábulo aí colocado em início de Quinhentos. De entre as alfaias religiosas pertencentes à capela, destacavam-se diversas cruzes, cálices, vestimentas, paramentos e um missal. A arca sepulcral de Estêvão da Guarda, que tal como a de Sancha Domingues também não chegou aos nossos dias, era toda ela de pedra trabalhada, com a tampa ornamentada com as suas armas, tal como testemunhou, séculos depois, Gaspar Álvares de Lousada, e encontrava-se junto da parede onde se podia, segundo este mesmo autor, ver o seu escudo, embora não se perceba se se tratava de um fresco ou se da própria peça de armamento. E importa não esquecer que os principais reflexos da expansão da armaria, visíveis a partir do século XIII se manifestam, essencialmente, na lapidária ornamental ligada à sepulcrologia. A heráldica era, aliás, um elemento central de todo o cerimonial fúnebre. As armas de Estêvão da Guarda – as que se podiam observar, quer na arca, quer na parede da capela – eram de azul com três flores-de-lis do mesmo esmalte, postas e dispostas em banda de ouro. Trata-se, na verdadeira acepção da palavra, de uma situação de ouro sobre azul em que o azul simboliza a lealdade - neste caso, para com o rei - e o ouro a nobreza, que Estêvão da Guarda procurava sublinhar. No dia 9 de Junho de 1352, 32 anos depois de fundar a sua capela, Estêvão da Guarda elaborou o seu testamento. Não nos é possível apontar com segurança o motivo que o terá impelido a redigir esse documento. No entanto, existem algumas pistas que convém não descurar. Em primeiro lugar, há que ter em linha de conta o facto de ter já cerca de 70 anos, o que lhe oferecia poucas perspectivas quanto a muitos mais anos de vida. Em segundo, registe-se que a sua saúde não era já a melhor pois atravessava períodos em que se encontrava bastante debilitada devido aos ataques de gota que o impediam até de montar a cavalo. Em terceiro lugar, imaginamos, deve ter ficado profundamente abalado com as mortes próximas de sua mulher, filha, genro e netos e ainda de seus filhos Fernão e Afonso da Guarda. Face a todo este conjunto de circunstâncias, acreditamos que se sentisse então bastante perto do fim da vida e, por isso, na altura de estipular as suas últimas vontades. De admirar é, isso sim, que não o tenha feito antes. Contudo, a morte não chegaria tão cedo. Só dez anos volvidos sobre a elaboração do seu testamento, Estêvão da Guarda se juntaria, como o próprio desejava, à sua mulher, filha e netos (estes últimos sepultados no exterior da capela). Reconstituíase assim a estrutura familiar cujos laços se pretendiam manter para além da morte. A data precisa da sua morte é, para já, uma incógnita de difícil resposta. Porém, um documento lavrado no dia 28 de Março de 1364 refere-o “ja finado”, pelo que o seu falecimento deve ter ocorrido pouco tempo antes desta data. Com a sua morte o reino perdia uma das mais destacadas personalidades das muitas que atravessaram os reinados de D. Dinis, Afonso IV e D. Pedro. Porém, a sua figura não cairia em total esquecimento. A sua memória, e a da sua linhagem, ficariam preservadas para a posteridade, pelo menos por mais alguns séculos, através das suas armas e da capela por si instituída. Porém, desaparecida a capela, ou seja, a memória material, permanece o seu legado poético, unanimemente reconhecido como um dos mais importantes de toda a poesia trovadoresca, o qual faz dele, a par do conde D. Pedro e do próprio D. Dinis, um dos últimos grandes trovadores portugueses da Idade Média.

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Fontes

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Arquivo Municipal de Lisboa

Livro da Instituição da Cappella de Estevão da Guarda, e outras cartas, Instromentos, Sentenças, Letra Pontificia e contratos pertencentes a ditta Cappella

Livro dos Pregos

Livro III de Contratos

Livro II de Contratos

Arquivo Nacional Torre do Tombo

Chancelaria de D. Dinis, Livro 3

Mosteiro de S. Vicente de Fora, 2ª Inc., Caixa 6

Between the urban center and the Term: The Santa Engrácia parish in the 17th century. Notes on population and urban growth

Entre o centro urbano e o Termo: a freguesia de Santa Engrácia no século XVII. Apontamentos sobre população e crescimento urbano

O estudo sobre a antiga freguesia de Santa Engrácia, de cariz histórico-demográfico, analisa o comportamento social e demográfico na longa duração, o movimento natural da população e a evolução urbanística, a percepção de quais eram os grupos sociais e laborais predominantes, as vivências do quotidiano, um conjunto de variáveis que podem contribuir para a construção da memória histórica local. O processo narrativo contou também com a validação científica através do cruzamento de outras fontes históricas coevas aos factos demográficos e históricos aqui relatados e com evidências da transformação espacial – o tema por excelência do presente esboço.

Delminda Rijo

Introdução

A realização do colóquio “Freguesia de São Vicente: História, Memória,Vivências” em Outubro de 2018 motivou a sinopse de ideias que se seguem e que ganharam vulto com a reconstituição paroquial da antiga freguesia de Santa Engrácia1, a mais oriental do mapa de Lisboa à data da sua fundação na segunda metade do século XVI. Embora o contexto espácio-temporal reportado na documentação produzida entre 1586 e 1705 corresponda a uma unidade religiosa e administrativa assente num vasto território periférico e remotamente ligado ao actual, não deixa de ser função da memória consubstanciar a partir dos testemunhos a sua reconstituição, ainda que fragmentária. A freguesia cedo iniciou o processo de dispersão e integração territorial noutras que foram criadas no âmbito de reorganizações institucionais. Contribuições territoriais para a freguesia do Beato em 1756, já no século XX, para as de Marvila e Penha de França, espaços eleitos para a fixação de fábricas e para alojamento da crescente população urbana, sobretudo a mais carenciada.

The study on the former parish of Santa Engrácia, of a historical-demographic nature, analyzes the social and demographic behavior in duration, the natural movement of the population and the urban evolution, a perception of which were the predominant social and labor groups, as experiences of the daily, a set of variables that can contribute to the construction of local historical memory. The narrative process also counted on the scientific validation of the crossing of other historical sources coeval with the demographic and historical facts reported here and evidence of spatial transformation - the theme of this sketch.

1 Projecto História da população de Lisboa (por freguesias) no Antigo Regime. Em curso. Base de dados demográfica com informação dos registos paroquiais dos baptizados, casamentos e óbitos ocorridos entre 1586 e 1705. Primeira fase: transcrição integral, incorporação e articulação dos dados num repositório digital individualizado por freguesias, em construção. Segunda fase: exploração das vertentes quantitativas e qualitativas da informação coligida.

Assim o ditou o crescimento da cidade e o repensar continuado da organização político-administrativa.

Por razões opostas - a inversão demográfica e transformações socio-económicas, o remanescente da freguesia de Santa Engrácia que corresponde à parte mais urbanizada no século XVII foi integrada, por ocasião da reestruturação de freguesias em 2012, na actual freguesia de São Vicente.

IAntecedentes e contextualização

O ano de 1569 foi um ano muito difícil na História de Lisboa, então devastada pela epidemia de peste bubónica que ficou na memória como a Peste Grande, e que em poucos meses terá provocado entre 40 a 80 mil mortos (Conceição, 1818:292). Aparentemente um ano estranho para a fundação de uma nova freguesia. Mas fora autorizada no ano anterior devido ao aumento populacional que tanto marcou o século XVI e que exerceu uma elevada pressão urbanística na cidade muralhada, acabando por expandir-se para o exterior. À época da sua fundação a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel e tia-avó do rei D. Sebastião, habitava no Campo junto ao convento feminino de Santa Clara e teve um desempenho importante na instituição da nova paróquia, que consagrou a um orago da sua devoção, Santa Engrácia.

Figura 1

Pormenor de Mapa da região de Lisboa e da foz do Tejo. Iluminura nos f. 46v-47 do atlas Descriptión de España y de las costas e puertos de sus reynos (…) de Pedro Teixeira, 1634. Viena, Hofbibliotek, Codex Miniatus 46

Foi também benemérita da nova igreja paroquial, conjuntamente construída com os contributos da finta dos fregueses que habitavam no território desanexado de Santo Estêvão de Alfama (Silva 1968: 272)

A segunda metade do século XVI assistiu à dilatação do número de novas freguesias, por desdobramento das existentes, sobretudo para ocidente e norte, onde foram fundadas onze, duas no interior das muralhas e Santa Engrácia, a única a oriente e que passou a estabelecer o limite oriental da cidade, prolongandose no exterior da Porta da Cruz até ao Grilo. Limitada geograficamente pelas freguesias urbanas de Santo Estêvão e de S. Vicente (sudoeste); dos Anjos (oeste), fundada poucos anos antes, em 1564, e dos Olivais (nordeste), foram determinantes nas formas de ocupação do espaço e das vivências na sua extensão, as diferenças morfológicas espaciais e o índice demográfico conjugando vários cenários - urbano, portuário e rural - num mesmo território paroquial. Um passado comum e um único território marcados pela heterogeneidade e vastidão adquirem uma leitura mais eficiente quando observados por fracções. Particularizámos três áreas consideradas identitárias, quer pela contiguidade geográfica, como pela partilha de características funcionais.

Ii

O território – heterogeneidade e vastidão

Figura 2

Princesa D. Maria, filha do Rei D. Manuel I e co-fundadora da paróquia de Santa Engrácia. Retrato. Francisco de Holanda. 1540. Convento da Encarnacão. Lisboa.

A primeira área individualizada coincidia à data da fundação com o foco de urbanização que se desenvolveu no espaço exterior à muralha tendo como eixo principal a rua Direita que atravessava a porta da Cruz e prosseguia para oriente. A sul desta rua prosperou outro aglomerado, na direcção da frente ribeirinha e limitado entre o cais do Carvão e a praia de Santa Apolónia. Ultrapassada esta área e continuando para oriente, junto à margem e com algum avanço para o interior, o terceiro espaço, mais amplo, que incluía a Bica do Sapato e Santa Apolónia, avançava para Santos-o-Novo, inflectia para a Penha de França e chegava aos vales de Chelas, Xabregas e às suas praias. Os testemunhos documentais e iconográficos do período moderno certificam que a evolução urbanística foi mais precoce e acentuada no exterior da muralha conforme podemos conferir nas representações cartográficas e desenhos da cidade (Fig. 3). Nesta malha urbana intercalaram-se casas e actividades económicas em torno de igrejas, conventos, fortes, nos cais e outras áreas geográficas de referência como o Campo de Santa Clara, em olivais, nos caminhos e nas praias. Distando quase um século entre a panorâmica de G. Braunius (1598, mas que pode representar a cidade em 1567) e a planta de João Nunes Tinoco (1650) percepciona-se um aparente e moderado dinamismo urbano, embora para norte e oriente a feição rural permaneça quase inalterável até ao século XIX. A terceira representação - o novo perímetro da capital após o terramoto (1758) – revela uma progressão que condiz com a evolução do crescimento populacional.

Figura 3

Vista de Santa Engrácia Final séc. XVII. Pormenor Panorama de Lisboa em Azulejo. Gabriel del Barco. 1698-1699. Museu Navional do Azulejo. Lisboa.

Confrontando com o número de residentes, em perspectiva longitudinal, os primeiros dados estatísticos sobre a sua população datam de 1620 e dão conta de cerca de três mil moradores; Em 1712 seriam pouco mais de quatro mil e só após 1755, à semelhança de outros locais com grandes espaços livres e muito procurados pela população das zonas destruídas, teve um aumento estabilizado em cerca de nove mil moradores.

1º eixo: Porta da Cruz/Campo de Santa Clara

A primeira extensão “Porta da Cruz/Campo de Santa Clara” desenvolveu-se no exterior da principal Porta de entrada pelo lado oriental da cidade e que era atravessada pelo caminho que vinha de Sacavém, muito frequentado pelos viajantes do norte. Por ali circulavam diariamente centenas de pessoas e as mercadorias que abasteciam mercados e os vendedores ambulantes. Vinham do extremo oriental, de uma vasta área de quintas, hortas de produção agro-pecuária, conventos e casas apalaçadas. No terceiro quartel do século XVI esta primeira área tinha dois importantes eixos de organização do espaço (iniciado com o convento de Santa Clara, no séc. XIII): a ermida de N. Senhora do Paraíso (1562) e a igreja paroquial de Santa Engrácia (1568).

Evolução urbanística. Eixo urbanização oriental 1590-1780. Pormenores G. Braunius (1590), Tinoco (1640), ?? (1780).

A igreja paroquial foi sempre uma importante referência espacial na vida da freguesia, embora palco de inúmeras contrariedades como a profanação de 1630 e a demolição posterior, a nova construção e a derrocada e novamente a construção. Uma sucessão de acontecimentos que impediram o culto durante séculos e que foi transferido para a ermida de Nossa Senhora do Paraíso. Esta ermida, apesar da simplicidade arquitectónica, tinha um elevado reconhecimento espiritual e foi amplamente representada na iconografia de Lisboa pré-terramoto. A paroquial aí permaneceu até ser transferida a 5 de Abril de 1835 para a igreja do convento dos barbadinhos italianos de N. Sra. da Porciúncula, enquanto a igreja de Santa Engrácia, somente concluída no século XX, foi consagrada para Panteão Nacional. Com o crescimento da cidade, a vasta extensão fora da muralha tornou-se um espaço atractivo para a localização de habitações e oficinas de produção. Quando foi instituída a freguesia já aí existiam focos residenciais distintos, alguma produção artesanal especializada como a de cordoaria no Campo de Santa Clara onde existiam várias rodas de cordoeiro conforme atesta o registo de “um chão […] junto da praça onde os cordoeiros fazem as cordas” ( AML-AH, Livro 1.º de tombos antigos, f. 57 v.) e de atafonas na Rua Direita, também mencionadas em Vila Galega, conforme um registo de que existiam, rodeadas de hortas, umas “casas encostadas à igreja de N. S. Paraíso na loja tem um engenho de atafonas” (Idem, 58v.).

O eixo principal – rua Direita - assente no antigo caminho assimilou o topónimo da ermida passando a rua Direita de N. S. do Paraíso. Deste trajeto desenharam-se novos arruamentos e adensaram-se outros, direccionados em vários sentidos, para o campo e para o rio e que foram sendo preenchidos por edifícios de rendimento, pátios e palácios, oficinas manufactureiras, tendas comerciais. A informação qualitativa dos aforamentos do Senado reforça algum conhecimento nesta matéria. Por exemplo na 2ª metade do século XVI a ocupação de terrenos no Campo de Santa Clara e na área envolvente foi pretendida sobretudo por artesãos mais ligados às actividades de cordoaria, pesca, atafoneiros, fundidores e também algumas figuras de destaque social que aí fixaram as suas residências: o chanceler da cidade Francisco Dias (1553) ou D. Henrique de Castro em 1558 (Idem, 123v). Seguir-se-iam outros por todo o período de observação, destacando a casa que o conjurado Tristão de Mendonça mandou construir - um “assento de casas nobres com suas varandas e jardim no Campo de Santa Clara para o cais da Madeira e estrada que vai para Enxobregas” (Idem, fl. 59 v).

A procura de “chãos” para construção foi tão intensa que D. Sebastião desincentivou os aforamentos por decreto de 1573, suspendendo-os sem o consentimento régio, uma vez que os excessos causavam “prejuízo ao bem comum da cidade” (AML-AH, Livro 3º de emprazamentos, f. 134 a 135v. Carta missiva dirigida aos oficiais da Câmara ). Traçando uma linha evolutiva a partir dos dados das fontes, concisa e com a premissa de que a construção da paisagem – seja ela urbana, rural ou ribeirinha – decorre da ocupação territorial, difunde-se no urbanismo e obtém expressão na toponímia o que, por sua vez, acompanha e materializa o crescimento da cidade. Em 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira indicava cinco arruamentos que nessa data ainda pertenciam à freguesia de Santo Estêvão: rua Direita da Porta da Cruz que continuava na rua Direita de N. S. Paraíso, calçada do Cais do Carvão (também designada de trav. que vai do cais do carvão para a Porta da Cruz (1565), calçada da Porta da Cruz para o mar (1616) e em 1634 calçada do Forte); a rua João de Avelar (trav. da Porta da Cruz para o Campo de Santa Clara (1565); trav. de João Cascão (1616) que em 1693 é designada de “rua que vai das Portas da Cruz para o Campo de Santa Clara e Postigo do Arcebispo a que chamam Rua do Avelar”). Além destas, a trav. da Cordoaria e o Campo de Santa Clara. O livro de lançamento de impostos do Senado de 1565 acrescentou-lhe outras vias de circulação/espaços residenciais: travessa “que vai para N. S. Paraíso até Santa Clara” (só designada de Calçada de Santa Clara em 1638); o “segundo beco que vai do Campo para N. Sra. do Paraíso”; o cais da Madeira e “as Casas que estão a Santa Apolónia da banda da Praia”. Este conjunto de arruamentos salienta o avanço da construção urbana para o Campo onde já estava em formação um “bairro” que era designado pela população local como Vila Galega e que aparece pela primeira vez num assento de casamento de 1588. Na direcção da praia, para sul, há referências a um outro aglomerado de casas à volta do recolhimento de Santa Apolónia. Chegando à primeira metade do séc. XVII a percepção da evolução adquire maior clareza, tornando-se a informação paroquial mais abundante e já com referência a quinze novas serventias, eventualmente algumas já existentes, mas omissas na documentação consultada ou devido a outras denominações. Para além dos arruamentos, surgem outros topónimos alusivos a sítios, incluindo as dezoito localizações geográficas incertas, de locais de abrigo e alojamento temporário, e estruturas de produção em ruas: fornos de cal, atafonas, rodas de cordoeiro. Na segunda metade de Seiscentos a documentação contem apenas quatro novos arruamentos nesta área – a rua das Freiras, a calçada da Praia, o beco do Vidro e uma travessa no cais do Carvão, para além de especificar outros equipamentos e detalhes territoriais.

Em perspectiva micro, embora parcelar, do que seria este espaço no século XVII constata-se que dos arruamentos que convergiam para a rua Direita, à excepção da travessa de Gregório de Morais de Távora, travessa de Domingos Lopes em frente à igreja do Paraíso (1605), a rua Manuel Fernandes (1616) e a rua Manuel de Basto (1623) as restantes só começam a aparecer nos registos paroquiais após 1634. Como já referimos, não se descarta a sua existência anterior, uma vez que os documentos apenas referem, e nem sempre, onde efectivamente ocorreram os sacramentos. Para além da possibilidade de se lhe atribuir outra designação, como também já se referiu. Outro termo referencial geográfico é “frontaria” que surgiu associado a actos sacramentais para localizar acontecimentos. A frontaria da igreja de Santa Engrácia é referida num assento de casamento de 1651; a frontaria do Campo surge noutro assento de óbito de 1678 e ainda a frontaria de Vila Galega que foi referida pela primeira vez em 1637. Este termo indica uma correnteza de casas, evocando a malha urbana em formação. As vias de comunicação ligadas à rua principal começaram a adquirir designações onomásticas no início do séc. XVII. Particularmente neste espaço observou-se uma dezena de topónimos indicadores da morada de figuras locais e que acabaram por se transformar em referência espacial. O exemplo mais popular é a travessa de João Cascão que remete para um contratador de mercadorias que aí residiu. A de D. Luís de Almeida, futuro conde de Avintes indica a proximidade ao palácio dos marqueses do Lavradio. Tratando-se de um território íngreme, identificam-se cinco calçadas - a de Santa Clara, a do cais do Carvão, a da Porta da Cruz para o Mar, a do Forte e na segunda metade do século, surge um novo acesso na calçada que ligava directamente o Campo de Santa Clara ao Cais do Carvão. Por outro lado, metade das serventias identificadas eram travessas, isto é, vias de ligação entre ruas, também indicador de progressão urbana que tal como os anteriores comprovam a dinâmica construtiva que caracterizou o período. Mas outras estruturas entraram na toponímia local conforme indica um registo de óbito de uma “pobre mulher”, Ana Pereira, que em Janeiro de 1688 faleceu “junto do muro alto” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O2, fl. 96). Poderá indicar a parte da muralha da cidade que foi reconstruída em 1660, fronteira à igreja de Santa Engrácia e contígua à fundição de artilharia de cima e que devido ao risco de derrocada para o campo de Santa Clara foi reedificada e funcionou, neste caso, como ponto referencial. Observou-se a multiplicação de geónimos que norteavam a população, sobretudo referentes a estruturas militares e funcionais e que acabaram por entrar no léxico quotidiano. São variantes de geónimos principais - as fundições de artilharia; o baluarte de Santa Apolónia que foi construído na proximidade do convento do mesmo nome; os forçados/armazém dos forçados em referência à prisão da galé para os condenados de tribunais civis e da inquisição. O Campo de Santa Clara que se articulava a esta primeira área de influência e desenvolvimento, foi profusamente mencionado na documentação, reafirmando-se mais uma vez o enorme potencial informativo dos registos paroquiais. A sua designação proveio do convento feminino aí fundado em finais do século XIII. À semelhança de outros conventos medievais, este complexo conventual esteve entre as primeiras construções fora da muralha, que na busca de isolamento acabaram por funcionar como vectores de atracção demográfica e de crescimento urbano. Esta evidência ocorreu noutros pontos da freguesia, ainda com reserva no século XVII, nomeadamente os pequenos aglomerados populacionais que se formaram à volta dos conventos de Santos-o-Novo, da Madre de Deus, de São Francisco de Xabregas, de Chelas e da Penha de França, e que mais tarde se transformaram em zonas de expansão fabril e urbana. No topo norte do Campo de Santa Clara já existia desde pelo menos a segunda metade do século XVI o bairro de Vila Galega, um núcleo populacional quase insulado a norte, cujas características sociais e arquitectónicas lhe conferiam uma identidade autónoma que o diferenciava dos outros bairros do interior da muralha. Cristóvão Rodrigues de Oliveira não o refere em 1551 e a referência escrita mais antiga que identificamos foi um assento de casamento de 1588 cuja noiva, Catarina Fernandes, era moradora em Vila Galega (IANTT, ADL, RP Santa Engrácia). Está representado na gravura de Braunius, em frontaria, mas aparentemente omisso no desenho de Leiden. Desenvolveu-se entre os conventos de Santa Clara e a cerca de S. Vicente de Fora e progrediu para o interior, na direcção do vale de Cavalinhos (actual vale de Santo António).

As referências nos registos paroquiais dão conta de pelo menos oito arruamentos que estavam organizados a partir de uma rua do meio, entrecortada por ruas e travessas: rua do Toscano (1605), rua dos Arciprestes (1605), rua do Meio (1619), rua dos Mouros/Mourões (1645), travessa de D. Luís de Almeida (1648), rua das Freiras (1657), Beco do Vidro (1677) e Horta da Cera (1681). Embora não exclusivamente, foi uma área residencial e laboral das camadas populares urbanas, onde coexistiam, à semelhança de qualquer bairro medieval, oficinas artesanais e rodas de cordoeiro, fornos, atafonas que faziam a moagem de cereais, pequenas hortas e espaços produtivos de vidro e cera. A ruralidade era muito marcante neste período conforme revela uma reclamação de 1656 que alguns moradores levaram ao Senado. Nesta queixavam-se dos obstáculos que um agulheiro, Luís Francisco, causou ao tapar dois caminhos públicos “para cercar o seu olival” (AML-AH, emprazamentos, 57). O extenso Campo de Santa Clara permaneceria por muito tempo com poucos edifícios e a descoberto em encosta até ao rio entre a porta de S. Vicente até ao mirante (Araújo 1993:74). A sua topografia e a dimensão fizeram dele um espaço propício a funções onde o isolamento em caso de emergência era um importante requisito. Incluindo aquelas funções menos aprazíveis do ponto de vista sanitário e social, como a que manteve até ao século XVI de campo da forca, além da abertura de vários cemitérios de pestes (pelo menos em 1506 e de 1523). Ao longo do período em estudo foi considerado suficientemente isolado para a prática da exposição de crianças, abundando os registos correspondentes “[…] baptizei subconditione a Clara enjeitada nas portas do Mosteiro de Santa Clara, quando a encontraram teria de idade ano e meio e a baptizei em casa“ (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, B1).

A disponibilidade de espaço está também refletida nos vários aforamentos de chãos em 1693, em frente da porta da igreja de Santa Engrácia, já considerada velha (AML-AH, Foros, fl. 59) e outro junto do muro das freiras. De facto, a dimensão do Campo colocava-o como uma referência toponímica quase incontornável e ponto referencial da vida local até para a cobrança de foros em expressões oficiais como “campo de santa clara para o cais da madeira e estrada que vai para Enxobregas”; ou “casas no cais da madeira entrando pela banda da cidade à esquerda encostados à barroca do Campo de Santa Clara”. Mas essa relevância não dissuadiu no início do século XVII, entre 1603 e 1611, estando já em curso o processo de transformação e ocupação urbana, a Companhia de Jesus de considera-lo como o espaço ideal para a transferência do matadouro do campo de Santana, pois a vizinhança do matadouro com o colégio de Santo Antão-o-Novo, na freguesia da Pena, causava muito incómodo devido ao mau odor e a insalubridade. Mas as freiras de Santa Clara e a população local resistiram com veemência, acabando a ideia por cair. Mas não sem uma longa polémica com alegações entre as partes dirimindo argumentos que incluíram tubarões e de como o escoamento de sangue do gado morto para o rio iria atraí-los. Indignações públicas de ambas as partes alegando a Companhia que até “lançaram mão dos tubarões para intimidar e espantar gente” (AML-AH, Provimento da Saúde, Livro 2º do provimento da saúde, fl. 60).

Argumento esse que terá criado, pelo menos, algum desassossego numa comunidade tão dependente da actividade fluvial. Mais do que recurso sanitário em situação de crise, a localização e extensão do Campo de Santa Clara adequou-o a importantes actividades laborais como já foi referido, neste caso tão essenciais ao bemestar da cidade como para a eficácia das navegações ultramarinas. Tornou-se num importante espaço produtivo de uma actividade que obrigava à disponibilidade de espaços desimpedidos. De facto, pelo menos desde 1534 e até ao início do século XVIII, aí estiveram instaladas várias rodas de cordoeiros (Regimento do ofício dos cordoeiros da porta da Cruz e obra delgada de 1534 a 1569) obrigados por postura municipal a permanecer fora de portas devido ao perigo de incêndio pelo armazenamento de matérias-primas como o linho e a estopa. Nestas rodas os fios eram estendidos por uma distância considerável, em espaço aberto. Estão claramente representadas na panorâmica de Lisboa do desenho de Leiden (Fig. 8), um bom exemplo de validação da fonte escrita com a iconografia. A exploração de pedreiras que forneceram tantas obras da cidade estava já desativada no início do século XVIII, e para o aproveitamento do espaço foi necessário o entulhamento das mesmas, em parte solucionado com o despejo dos lixos produzidos pela população de Alfama. O Campo ia perdendo, progressivamente, o antigo papel de “logradouro” da cidade, aparecendo com maior frequência nas fontes os edifícios de maior volumetria entretanto construídos em expressões como “defronte das casas de D. João de Castro”, ou o seu “pátio na rua Direita de N. S. do Paraíso” alusivo ao palácio do senhor e morgado de Resende, ou ainda a instalação em 1681 do colégio de S. Francisco Xavier da Companhia de Jesus2.

2 Por decreto de 11 de agosto o rei mandou que o Senado analisasse a petição do provincial da Companhia de Jesus onde dizem que o rei tinha concedido licença para a fundação de um colégio, num local situado fora das portas da Cruz, de Luís Sodré Ferreira que é foreiro ao Senado em 2 080 réis anuais e que pedem remissão.

2º eixo: Junto ao rio

Para sul, abaixo da Rua Direita, no sentido da frente ribeirinha entre o cais da Galé e a praia de Santa Apolónia desenvolveu-se o que se convencionou chamar um segundo eixo ou área de fixação económica e residencial da freguesia. Uma área utilitária por excelência, em cuja extensão de praias e cais portuários decorriam importantes actividades comerciais de abastecimento alimentar, de transporte e armazenamento de bens de primeira necessidade como o carvão e a lenha e outras matérias-primas que aí chegavam diariamente por via fluvial. Áreas que foram, gradualmente, ocupadas com habitações nos espaços disponíveis, e que funcionaram como agentes de transformação urbana e adaptação funcional. A documentação coeva contempla inúmeros casos. No cais da madeira, mesmo em locais menos protegidos foram edificadas casas “entrando nele pela banda da cidade à mão esquerda encostadas à barroca do Campo de Santa Clara”. Algumas destas habitações tinham funções mistas, anexas a fornos de cal, por exemplo

“junto ao cais da madeira no caminho que vai do cais para Santa Apolónia no longo do muro”, ou com fornos de pão “junto a Santa Apolónia da banda da praia” (AML-AH, Livro 1.º de tombos antigos, Fl. 59).

No enfiamento para ocidente a fundição, também designada como forte, era um edifício manuelino que ocupava parte considerável da área junto à praia e constituía uma importante estrutura de apoio à defesa do país e expansão ultramarina. Aqui se fundiam metais e fabricavam artilharia e munições. Esta foi aliás uma actividade marcante da freguesia que mantinha junto ao Campo de Santa Clara outra fundição, a dita “de cima”. Abundam as referências toponímicas a equipamentos e estruturas de armazenamento das matérias-primas que chegavam via fluvial. Os cais mais antigos, os do carvão e da madeira eram os locais de desembarque dessas matérias-primas mas que foram adoptando diferentes nomenclaturas no decurso da observação em associação a alterações funcionais: o dos soldados que mais não são que os primitivos cais e as estruturas que foram construídas na sua vizinhança. Identificaram-se também moradores que se destacaram, espaços de lazer como as tabernas e casas de alcoice que para a população eram importantes referências de localização geográfica. Por exemplo, num testamento de 1669, de um alfaiate, o testador foi indicado como morador no Cais do Carvão na esquina da Tenda (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O1). Para além da importância na economia da cidade, em apoio aos mercados de alimentos e como espaço de atracagem de barcos de pesca e de passageiros oriundos do interior, desempenhou outro papel basilar que foi reforçado após a Restauração - o da defesa da cidade, pois integrou a linha defensiva de Lisboa com a fortificação da marinha e a construção do baluarte de Santa Apolónia (1676). Já anteriormente, após 1668, começa a surgir a designação de cais dos soldados em simultâneo ao cais do carvão aludindo à presença de um regimento de cavalaria em instalações provisórias para soldados e estrebarias. A praia passou também a designar-se de praia junto ao quartel dos soldados. O espaço envolvente a ocidente estava reservado a funções penais, com a localização já no limite da freguesia da prisão da galé. Esta infra-estrutura recebia condenados pela justiça civil e inquisitorial e que eram conhecidos como forçados das galés.

A dureza de trabalho e as condições sanitárias tornou-os assíduos nos registos de óbito. Os forçados estavam inicialmente ligados ao trabalho nos barcos usados na defesa da costa, como remadores, mas no século XVII o trabalho limitou-se aos cais na condução de madeira para os estaleiros, na descarga de navios e outros trabalhos de grande exigência física. A instituição passou assim a dar nome ao cais (1656), que também ficou popularizado como cais dos forçados.

Ii

3º eixo: Chelas, Xabregas, Penha de França Ultrapassado o território portuário, prosseguindo além da Bica do Sapato e Santa Apolónia estendia-se a terceira área da freguesia, ampla e inserida numa paisagem rural que era habitada por uma população heterogénea socialmente, mas predominantemente vinculada a unidades produtivas agro-pecuárias em hortas, quintas e pequenas povoações. Estas expandiram-se junto a edifícios simbólicos como a ermida da Penha de França, dos conventos nos vales de Chelas e Xabregas e nas praias vizinhas, em actividade piscatória e fluvial. Paisagens e padrões de ocupação que prevaleceram até meados do século XIX quando o movimento industrial começou a instalar-se.

O trajecto mais comum com partida da área urbana, para alcançar o extremo oriental da freguesia era seguindo o antigo caminho que era marginado de praias e enseadas por Chelas e daí ao Grilo, embora o acesso também se fizesse por navegação fluvial. Outra via de circulação seguia na direcção da ermida de N. S. da Penha de França, na intercepção da Cruz da Pedra para norte. Aqui formara-se uma pequena povoação, no sítio da cabeça de Alperche, na confluência da ermida construída em 1597. Embora só comece a figurar na documentação paroquial em 1607, ano em que já estava em construção o convento dos eremitas Agostinhos (1604), para cujo domínio passaria mais tarde a ermida (1635). A Penha de França constitui outro exemplo de povoamento com origem num local de devoção e que acabou por crescer na presença de uma importante casa religiosa. Aqui a rede de vias de comunicação era um rendilhado de caminhos rurais que acercavam às propriedades agrícolas. A ponte de Xabregas conhecida como a ponte junto ao mosteiro de S. Francisco, foi um elemento de comunicação importante e uma referência local pela qual transitava o tráfego local e se acedia ao rio, coadjuvando a circulação viária para a capital. Apesar da distância, a acessibilidade terrestre e fluvial, e a ambiência amena favoreceram a instalação de palácios e quintas de veraneio na vizinhança dos conventos, fixando também grupos sociais privilegiados. à profusa referência a casas nobres e domicílios, alguns não localizados, de importantes figuras da sociedade seiscentista que aqui habitaram ou possuíam casas de veraneio e que influenciaram a população local do ponto de vista social e económico, marcando presença nos registos paroquiais não só como protagonistas das suas vidas, mas também na vida de criados e protegidos, acabando por funcionar como referências toponímicas ou de relação laboral (cf. Quadro II). Os núcleos de cariz popular, pré-existentes ou ampliados nas referidas áreas de influência localizavamse nas margens do rio, em pequenas comunidades piscatórias e no “hinterland” de quintas e hortas. No conjunto, o extremo oriental de Santa Engrácia caracterizava-se por uma menor densidade demográfica, como é notório na documentação pelo menor número de baptismos, casamentos e óbitos. A distância também promovia o adiamento de sacramentos ou a realização ocasional nas igrejas conventuais e ermidas locais. Foi por vezes necessário apelar a testemunhas para comprovar um óbito, conforme se

Quadro II

Evolução Toponímica da Freguesia século XVII: Quintas e Hortas IANTT, ADL, Registos Paroquias da paróquia de Santa Engrácia. Século XVII

Quinta do Lamas 1643

Quinta de O. Guiomar Pantoia 1648

Quinta de António Ferreira, o carcereiro 1656

Quinta dos Ladrões 1658

Quinta de Manuel da Silva 1658

Horta Nova 1659

Horta de Gonçalo Manuel 1661

Horta de João Soares 1661

Pátio de D. Miguel Pereira 1663

Quinta de D. Custódia 1663

Quinta do Preto 1663

Quinta do Cativo 1665

Horta do Faria 1666

Horta da Molha 1670

Quinta do Brasileiro 1672

Quinta da alforoeira 1675

Quinta da Ameixoa 1675

Quinta do Capitão Francisco Pereira 1675

Horta do Moirão 1676

Quinta do Foró 1677

Quinta de João Morato 1679

Figura 12 pode comprovar no registo que refere o hortelão Pedro Jorge, morador no Vale de Xabregas “na orta de D. Barbosa”, que atestou conhecer Mateus Francisco “e que este era viúvo pois vira morrer sua mulher e enterrar em S. Bento havera 2 anos […]“ (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, M, 10-12-1589). Quanto à actividade económica, a população residente dedicava-se à exploração agro-pecuária e fluvial, com presença de elevado número de pescadores (contam-se 38 nos registos paroquiais e a iconografia é também elucidativa (cf. Fig. 14).

A actividade extractiva seria pouco significativa, com presença de alguns locais de produção como a saboaria à Cruz da Pedra (1692) e estabelecimentos comerciais que serviam a população, como o açougue de Xabregas, a venda do Grilo (1662) e tabernas.

A agricultura foi a principal actividade económica de produção alimentar para abastecimento da cidade. Identificaram-se nos registos paroquiais pelo menos 24 hortas, com maior concentração em Chelas e Xabregas, mas também junto aos conventos, e outras dispersas pela freguesia (quadro III). Para além de 35 quintas que eram simultaneamente unidades de produção e espaços residenciais, de dimensão variável, dando alguma

59 origem a bairros actuais como a quinta de Montecoxo ou o dos Apóstolos, à Penha de França. Localizavamse em Chelas, em Xabregas, no Grilo e na Penha de França, outras ainda mais próximas do centro urbano, em Santa Apolónia e Vale de Cavalinhos, além de pelo menos duas, a quinta do Cativo e a quinta de António Ferreira, o carcereiro cuja localização não foi clarificada. As casas religiosas de maior dimensão como os conventos de Xabregas (1455), da Madre de Deus (1509), de Chelas ou de Santo Agostinho (1663), de Santos-o-Novo (1609-1685), o convento dos barbadinhos italianos (no edifício que estivera ocupado pelas comendadeiras até 1689) estavam primitivamente inseridos em espaços isolados, com pouca população e que funcionaram, posteriormente, como pontos fundamentais de expansão e estruturação urbana como já referimos. De facto, à necessidade de mão-de-obra para a sua edificação e depois para a manutenção das casas, aliouse o papel assistencial aos mais desfavorecidos e até de protecção das populações, dando origem a pequenas povoações que cresceram ao seu redor. Assim o ilustra o registo de óbito de Maria Soares que morreu em 1639 “muito pobre que pedia esmola junto ao Mosteiro de Santos” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais, O1, 20-06-1669). A comendadeira do convento de Santos-o-Novo tinha ao seu serviço mais de 40 pessoas entre freiras, criadas, escravas e pessoas de fora.

Algumas dispunham de residência na vizinhança. O pátio do convento, uma tipologia arquitectónica que aparece com frequência na documentação, anexos às grandes casas, seria um espaço residencial alargado e protegido, mais comum fora da cidade e vinculado às grandes casas religiosas e senhoriais. Existiram vários neste espaço: o pátio da Madre de Deus, o pátio de D. Miguel Pereira, o pátio junto a N. S.do Paraíso, o pátio do Senhor de Pancas ou o pátio dos Lobos, no Vale de Chelas. Enquanto exemplo de evolução/transformação urbana, as obras de Santos e do respectivo pátio figuraram durante décadas nos registos paroquiais, frequentemente associados a mortes acidentais nas obras de construção. Outros testemunhos de construção e modificação da paisagem, ainda mais a oriente, foram a edificação de casas no Grilo junto ao mar (1636) ou as casas novas junto a Chelas conforme registo de óbito em 1693 de Helena Rodrigues que seria a “… cunhada de António Rodrigues morador em Chelas nas casas novas…” (IANTT-ADL, Registos Paroquiais O1, fl. 693), ou de um desconhecido, já em 1705, que faleceu às “Casas novas dos Apóstolos” (Idem, O2, fl. 231). E numerosos espaços domiciliários em lugares identitários na vastidão desta área foram indicados aos párocos, como a Cruz da Pedra que já existia pelo menos em 1593; o Vale Escuro na Penha de França, ou a Fonte do Louro (1611).

III Considerações Finais

O âmbito da investigação, ainda em fase primária e o alcance que o cruzamento das fontes históricas permite, aliados à complexidade metodológica reverteu em conhecimento de facto, manifesto na forma de apontamentos, particularmente sobre urbanismo. Determinado como ponto central da análise, o urbanismo e a sua progressão no território de Santa Engrácia desde a fundação ao século XVIII foi um conceito persistente no texto, com maior ênfase no primeiro dos três espaços conjecturados. Uma sequência tripartida que indica o primeiro como o verdadeiramente urbano do ponto de vista habitacional, intercalado por importante actividade manufactureira e de exploração de recursos, com uma heterogeneidade social marcante. Apontaram-se alguns dos marcos orientadores na formação e progresso do traçado que no Termo se foi firmando como cidade. Uma segunda zona quase exclusivamente dedicada a actividades económicas de comércio interno fluvial e piscatória tão essenciais à subsistência da capital; mas também a fundição de metais e o fabrico de armas, a defesa militar e para fins penais. A terceira área também caracterizada por uma função económica fundamental à vida urbana adquire singularidade pela presença vincada dos dois extremos da hierarquia social: de um lado os que exploram a terra e o rio, os servos e os criados e do outro os senhores e os eclesiásticos possuidores de terras e palácios. A população, a representação do lugar na economia urbana, o cenário socioprofissional, a defesa militar da capital; a condição de periferia e lugar de eleição para fundar casas monásticas, sobretudo femininas, vocacionando-o como espaço espiritual e contemplativo e, paradoxalmente, como agregador de populações constituem outras das temáticas enunciadas e ou possibilidades de investigação acerca do espaço oriental de Lisboa no período Moderno. O potencial analítico da informação dos registos paroquiais estende-se às vivências do quotidiano. De facto, a observação das variáveis demográficas da natalidade, nupcialidade e da mortalidade na vertente qualitativa e no âmbito das mentalidades vai além dos movimentos populacionais e da mortalidade de crise entrando no domínio da violência urbana ou das redes de assistência muito evidentes neste espaço da cidade –a morte violenta, acidentes, naufrágios e afogamentos no rio e praias, a falta de assistência espiritual e médica são alguns dos temas que sobrevêm ao longo da documentação.

A presença de grupos sociais socialmente marginais, o elevado número de ciganos por exemplo, os relacionamentos ilegítimos, o abandono frequente de recém-nascidos e crianças, o elevado número de crianças baptizadas em casa, a ausência de sacramentos constituem indicadores fruto do isolamento e distâncias/mobilidade que são passíveis de observação, de síntese e contributo para um melhor conhecimento da História de Lisboa no período Moderno.

Quadro III

Membros da nobreza, eclesiásticos e outros moradores ilustres da freguesia de Santa Engrácia no século XVII. IANTT, ADL, Registos Paroquias da paróquia de Santa Engrácia. Século XVII.

Dom Diogo de Menezes (24-05-1588)

Dom Francisco de Viveiros (19-06-1605)

Dom Prior de Palmela (09-12-1613)

Dom Jorge d'Eça (29-01-1617)

Dom Luís de Castro Pereira (29-03-1618)

Alferes-Mor deste Reino (28-10-1618)

Dom Luís d'Almeida (30-08-1609)

Dom Tomás de Noronha (08-07-1606)

Dom João de Castro, Presidente da Câmara (16-07-1607)

Dom António de Almeida (31-01-1619)

Dom Diogo Lobo

Dom Francisco de Almeida (11-08-1619)

Dom João da Silva Deputado do Santo Oficio da Inquisição de Lisboa (02-08-1620)

Dom Luís de Castro Pereira (20-04-1622)

Dom Frei João de Valadares, Bispo do Porto (30-04-1628)

Capelão Mor Dom João de Lencastre (28-03-1622)

Dom António da Silva (16-06-1628)

Dom Francisco Mascarenhas (18-02-1621)

Dom Pedro Barbosa Prior de Avis (20-07-1634)

Dom João de Ataíde Conde da Castanheira (13-09-1637)

Mordomo de Sua Alteza lsabela (12-01-1641)

Dom Gastão Coutinho (20-01-1652)

Dom Luís Álvares Carneiro (17-06-1664)

António Cavide (1-08-1666)

Dom António de Meneses (27-04-1685)

Dom João Cárcome (01-11-1693)

Fontes Manuscritas

ANTT-ADL – Paróquia de Santa Engrácia. Registos de baptismos, casamentos e óbitos.

AML-AH, Chancelaria da Cidade, Livro 1.º de tombos antigos, f. 123v.

AML-AH, Administração, Livro 3º de emprazamentos, f. 134 a 135v.

Bibliografia geral

ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, 2ª edição, Lisboa, Ed. Veja, 1993.

CASTRO, João Baptista de.Mappa de Portugal antigo e moderno, 3ª ed. revista e accrescentada, Typ. do Panorama, 1818.

CONCEIÇÃO, Frei Cláudio da, Gabinete Histórico, Lisboa, Imprensa Régia, tomo III, 1818.

COSTA, Pe. António Carvalho da, Corografia Portugueza e descripçam topográfica do famoso Reyno de Portugal…, Lisboa, na oficina de Valentim da Costa Deslandes, 3 vol, 1708-12.

MACEDO, Luís Pastor de, Lisboa de Lés-a-Lés, Lisboa, CML, 1942.

OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de, Sumário em que brevemente se contém algumas cousas, assim eclesiásticas como seculares, que há na cidade de Lisboa, pref. Augusto Vieira da Silva, 3ª ed., Lisboa, 1939.

PEREIRA, Luís Gonzaga, Monumentos Sacros de Lisboa em 1833: Lisboa, 1927.

SILVA, A. Vieira da, As Freguesias de Lisboa, Estudo Histórico, Lisboa, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, 1943.

SILVA, A. Vieira da, Dispersos, Lisboa, Biblioteca de Estudos Olisiponenses, 1968.

Becos, Escadinhas, Caracóis e outras Ruas da Colina de São Vicente

Alleys, small stairs, snails and other streets of São Vicente hill

Sérgio Barreiros Proença

A partir da evocação das primeiras memórias de infância que existem sobre a cidade de Lisboa e que se cruzam com o lugar da Freguesia de São Vicente, ensaia-se um possível reconhecimento e ordenação das ruas da freguesia segundo duas abordagens. Na primeira trata-se da adequação recíproca entre a forma do traçado urbano e a configuração do sítio que o acolhe, uma especificidade da cidade de Lisboa particularmente evidente em São Vicente, que aqui produz espaços de singular qualidade. Na segunda trata-se de espaços que se podem reconhecer a partir das designações toponímicas que encontramos em São Vicente, que constituem uma amostra rica da diversidade toponímica das ruas de Lisboa.

Uma impressão de Lisboa

A impressão mais longínqua que tenho de Lisboa, devia ter uns 4 anos, fundem dois momentos. O primeiro é a travessia do Tejo pela ponte 25 de Abril, a chegada a Lisboa no banco de trás do Fiat 127 do meu avô que me dizia “Olha o Tollan!”1 enquanto apontava para o lado direito do carro e a minha avó lhe dizia, entre o assustado e o recriminador, para olhar para o caminho antes que tivesse um acidente. O casco voltado à tona de água, como eu imaginava que fosse uma baleia à superfície, era insólito. No entanto, o recorte da cidade de Lisboa, com o Castelo, a cúpula do Panteão e a linha da margem do Tejo, ficou impresso na minha memória não só pela repetição que depois existiu do mesmo momento, desta travessia sempre que vinha a Lisboa, mas sobretudo pela singularidade daquele enquadramento, pela excepcionalidade desta cidade que mais tarde, após coleccionar cidades em viagens, confirmei. O segundo consiste na vista que se observava a partir da varanda das traseiras da casa onde viviam os melhores amigos dos meus avós, num segundo andar da Rua de São Gens. O João e a Céu nunca mudaram de casa porque a vista a partir da varanda de tardoz para o Castelo de São Jorge era para eles insubstituível.

Stemming from early childhood memories of the city of Lisbon that intersect with the place of the Parish of São Vicente, a possible acknowledgement and ordering of the streets of the parish is tested according to two approaches. The first deals with the reciprocal adaptation between the shape of the urban layout and the configuration of the site that receives it, a specificity of the city of Lisbon particularly evident in São Vicente, that produces spaces of singular quality. The second deals with types of spaces that can be recognized from the toponymic designations we find in São Vicente, which constitute a rich sample of the toponymic diversity of the streets of Lisbon.

1 O navio porta contentores de bandeira britânica “Tollan” esteve encalhado no Tejo frente à Ribeira das Naus, com o casco virado para cima, entre 16 de Fevereiro de 1980 e 2 de Dezembro de 1983, na sequência de um embate junto à Doca do Jardim do Tabaco com o navio sueco “Barranduna”.

dizia que só ali podia adormecer a olhar para o Castelo iluminado, numa perspectiva próxima da que podemos tomar a partir do Miradouro da Senhora do Monte. Estas duas memórias impressas são para mim, hoje, reflexo de uma especificidade de Lisboa que no espaço que pertence à freguesia de São Vicente é particularmente evidente: a afinidade da forma da cidade com a forma do sítio que a acolhe. [fig. 01]

A forma do sítio e a forma da cidade em São Vicente Tando na iconografia como na literatura, a descrição de Lisboa foi invariavelmente feita de modo indissociável do seu contexto geográfico. Se recuarmos a meados do século XVI, a representação de Lisboa gravada por Georg Braun (Braun c.1572) ou a descrição de Damião de Góis que referia que “O sítio da antiga cidade de Lisboa ocupava primitivamente apenas uma colina elevada que se prolongava até à margem do Tejo; mas actualmente a sua extensão abarca vários monte e vales. (...) com as suas cinco colinas e outros tantos vales férteis e muito aprazíveis” (Góis 1554, pp. 42-43, 48), atestam o reconhecimento da relação de Lisboa com o Tejo e o entrelaçamento entre o tecido urbano e a topografia. A diversidade e complexidade da forma de Lisboa é parcialmente descodificada quando se extrai e sobrepõe dois estratos da cidade: a topografia e o traçado urbano2.

Este exercício, mesmo numa escala que abrange toda a cidade permite reconhecer a coincidência de traçados de arruamentos e espaços da cidade com elementos significantes da topografia como as linhas de água, as linhas de festo ou a linha de costa (Carrilho da Graça 2002, pp. 8-11; Proença 2014, pp. 319-335). A percepção destas coincidências do traçado urbano com os elementos mais significantes da topografia permite intuir que existe uma relação genética entre a forma do sítio e a forma das ruas de lisboa, ou melhor dizendo, uma adequação recíproca construída ao longo do tempo que ainda hoje pode ser identificada, principalmente na parte central de Lisboa. Se nos focarmos na área da freguesia, o carácter da topografia contribuiu seguramente para a inclusão de São Vicente como uma das míticas sete colinas de Lisboa.

2 Carlos Dias Coelho define o traçado como “conceito abstracto e bidimensional, é obtido por um processo redutor ao retirar ao tecido uma das suas três dimensões. Remete para a representação do espaço público e da estrutura parcelar, indiferenciando os vários elementos que os materializam. Ao primeiro componente – o espaço público – estruturador das parcelas individuais, podemos chamar de Traçado Urbano” (DIAS COELHO 2013, p. 31). Traçado urbano remete assim para uma representação abstracta e bidimensional da componente pública da cidade.

Foi na obra do frade trinitário Nicolau de Oliveira, o “Livro das Grandezas de Lisboa”, publicado pela primeira vez em 1620, que surgiu inicialmente esta ideia das sete colinas de Lisboa, seguramente por reflexo das sete colinas de Roma, cidade que à altura seria um ideal de urbanidade para a cultura Europeia, pelo menos no mundo católico. Seja como for, destas “sete colinas sobre as quais estava assente Lisboa: São Jorge, São Vicente, São Roque, Santo André, Santa Catarina, Chagas e Sant’Ana” (Oliveira, 1992[1620]), duas delas fazem hoje parte da freguesia de São Vicente, a saber: São Vicente, que mantém o topónimo, e Santo André, hoje a colina da Graça. Ao procedermos ao exercício de decomposição e sequente sobreposição do estrato da topografia, representado pelas curvas de nível, e do estrato do traçado urbano, uma abstração bidimensional do espaço público da cidade, tornam-se evidentes configurações coincidentes nesta parte da cidade de Lisboa. Exemplo disso é o mimetismo de linhas de festo, de linhas de água, da linha de costa ou mesmo de curvas de nível que é operado pelo traçado urbano em diferentes sequências de espaços públicos da freguesia.

2.1 festo

A ocupação primária dos festos, inicialmente por razões de defesa e controlo do território, depois pela maior salubridade associada à circulação de ventos e melhor insolação e também por razões simbólicas de prestígio e representação, na cidade deram origem a sequências urbanas lineares fruto da consolidação desses percursos matriz, como explicam Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei na sua teorização dos ciclos de ocupação do território, na qual a implantação dos percursos dos festos correspondem à primeira fase do primeiro ciclo de antropização do território (Caniggia, Maffei 2001[1979], pp.194-212). Quando observamos as colinas de São Vicente e da Graça, é também evidente o protagonismo de alguns elementos construídos não só pela sua dimensão, mas pela sua posição em pontos notáveis da topografia da colina, ao longo do festo e particularmente em promontórios dominantes do território envolvente das encostas, vales e linha de costa, e mais tarde pontuando a margem do Tejo. [fig. 02]

Em São Vicente, os principais edifícios religiosos, igrejas e conventos, bem como alguns palácios, foram implantados nos pontos mais altos ou em limites de planaltos, pontuando o território com um conjunto de elementos polarizadores e organizadores da cidade que, invariavelmente, se encontram associados a espaços públicos excepcionais. Deste modo, largos, praças, campos, terreiros ou miradouros reflectem e expressam no traçado do espaço público a importância cívica dos edifícios singulares.

Figura 3

Casos exemplares destes elementos que sublinham os pontos notáveis mais elevados do território são a Senhora do Monte ou o Convento e Igreja da Graça, que pertencem a um festo onde a sucessão de espaços que estrutura a fixação humana na colina – o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, o Largo da Graça, a Rua da Graça e a sua sequência para norte – segue sensivelmente essa prega topográfica até ao Convento da Penha. [fig. 03] meia encosta

Festo. Colinas da Graça e Penha: topografia + Senhora do Monte e Convento da Graça; traçado urbano com a rua de festo sublinhada (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).

A coincidência do traçado de ruas com as linhas de um conjunto de vales secundários, que enrugam através das suas incisões as encostas do território de São Vicente e o ondulam, encaixase na descrição do segundo ciclo de ocupação do território conforme foi proposto por Caniggia e Maffei (Caniggia, Maffei 2001[1979], pp. 212-223). Pela sua menor inclinação quando comparados com as encostas envolventes, os fundos de vale constituem corredores propícios para serem apropriados como percursos naturais, particularmente para deslocações a grandes distâncias, contribuindo para esta vocação a necessidade de manter a linha de vale livre para a passagem de água, ainda que ocasionalmente, o que impossibilita ou pelo menos dificulta a sua ocupação por edifícios. A utilização continuada no tempo e a progressiva edificação das margens dos percursos no fundo do vale conduziu à progressiva definição das ruas de vale como elementos urbanos lineares mais ou menos sinuosos, estruturantes dos tecidos urbanos adjacentes que se lhes seguiram, substituindo as ocupações rurais que predominavam nos fundos de vale. Na cidade de Lisboa, edificada sobre uma topografia onde alternam colinas e vales, é comum a ocorrência de traçados de ruas que mimetizam ou duplicam linhas de vale. A vocação destas ruas como canais privilegiados de mobilidade, invariavelmente estimulou o florescimento e manutenção de funções terciárias.

A intensificação da vida urbana ao longo destes eixos e a sua continuidade sequencial reforçaram o papel de elementos estruturantes dos tecidos urbanos adjacentes, sendo em alguns casos regularizadas ou duplicadas com perfis mais generosos para suportar o aumento de tráfego ou por razões simbólicas e de prestígio (Proença 2014, pp. 325, 433-439). As sequências lineares das ruas do Vale de Santo António e Diogo do Couto, da Rua da Voz do Operário e Calçada de São Vicente e a Calçada de Santo André são alguns exemplos de ruas cujo traçado mimetiza linhas de vale em São Vicente. [fig. 04] A presença dos carris e do eléctrico na Calçada de Santo André e na Calçada de São Vicente confirma a inicial vocação destas ruas como canal de mobilidade [fig. 05] e na rua do Vale de Santo António e sua sequência na rua Diogo do Couto, a relação com o Tejo no horizonte evidencia a primordial necessidade de manter estes canais livres para a passagem das águas da chuva.

Vale. São Vicente: topografia com a marcação das linhas de vale; traçado urbano com as ruas de vale sublinhadas (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).

A construção da cidade nas encostas de Lisboa muitas vezes procurou uma adequação recíproca entre o traçado das ruas e a forma do sítio que as acolhe. Numa colina, o percurso mais eficaz entre dois pontos na maioria dos casos não é uma linha recta mas sim uma linha sinuosa que acompanha a topografia. Este mimetismo da forma do sítio foi operado em diversos casos pelo traçado de ruas que sensivelmente acompanham uma mesma cota altimétrica ao longo da encosta ou constituem uma síntese formal do encurvamento do plano da encosta. O reconhecimento deste mimetismo é mais imediato em traçados urbanos homogéneos que em conjunto se adaptam à forma da encosta (Proença 2014, pp. 439441). No entanto, pode também ser lido no traçado de elementos singulares como no caso exemplar da Rua Damasceno Monteiro que, com uma inclinação relativamente suave, tendo em conta a topografia da encosta em que se encontra, serpenteia à volta do monte de São Gens ou da Senhora do Monte. [fig. 06]

2.4

Costa

Entre as ruas que mimetizam curvas de nível, o traçado das ruas que mimetizam a linha de costa constitui um caso particular que, pela especificidade de marginar um plano de água e pelas suas características morfológicas, constitui um tipo singular. Em Lisboa, a margem do Tejo é o resultado artificial de aterros sucessivos que conformaram em cada momento a linha de costa. Apesar desse facto, e se considerarmos o Terreiro do Paço como foco, é possível identificar no traçado urbano de Lisboa, para nascente e para poente, linhas quase ininterruptas que mimetizam o contorno da ancestral linha de costa e se situam numa cota segura em relação ao nível médio das águas do Tejo, quase sempre numa dobra da topografia, quando as encostas de Lisboa encontram o plano mais ou menos de nível dos aterros portuários. Estes traçados contínuos e mais ou menos sinuosos, essenciais nas deslocações de pessoas e mercadorias ao longo da margem, duplicando o Tejo como infraestrutura de comunicação, consolidaram-se em ruas ao longo do tempo como resultado da repetição do uso e da edificação marginal que os acompanha. A sequencial construção do aterro portuário afastou fisicamente o rio do traçado destas ruas e progressivamente regularizou a linha de costa. Por outro lado, sobre a plataforma dos aterros foram traçadas ruas que reproduziram o princípio de referência à linha de costa e duplicaram o itinerário ribeirinho preexistente com perfis mais generosos (Proença 2014, pp. 443-445). O território da Freguesia de São Vicente estendese até ao Tejo e, consequentemente, inclui uma parte considerável dos traçados que mimetizam a linha de costa para nascente da Praça do Comércio. Neste segmento da zona ribeirinha do Tejo é possível identificar: a herança impressa do traçado do caminho ancestral que progressivamente teve as suas margens edificadas; a duplicação regrada visível no traçado da Rua dos Caminhos de Ferro e a Rua da Bica do Sapato que entroncam com o eixo primitivo na Calçada de Santa Apolónia; e ainda o traçado da Avenida Infante Dom Henrique, entre a linha de caminho de ferro e o Porto de Lisboa. [figs. 07, 08, 09]

Meia encosta. Rua Damasceno Monteiro: topografia + Senhora do Monte + traçado urbano com a rua sublinhada (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).

Costa. Sucessivas ruas de costa: topografia + traçado urbano com as ruas de costa sublinhadas e Avenida Dom Afonso Henriquês, sobre o aterro, a tracejado vermelho (Sérgio Proença e formaurbis LAB 2019).

2.5

Adequação entre sítio e forma

Estes exemplos permitem ilustrar a partir de São Vicente os tipos de coincidências que em Lisboa permitem atestar a predominância de afinidades morfológicas entre o sítio e o traçado das ruas. Este mimetismo do sítio operado pelo traçado urbano permitiu migrar uma ordem ancestral presente no sítio para a ordem da forma da cidade.

“A configuração de um lugar pode ter semelhanças com a de outro mas é única, cada contexto é irrepetível, logo cada rua também é criada com um carácter próprio e individual, distinto mas articulado com as restantes a partir das relações territoriais que são mimetizadas. Neste sentido, as condicionantes naturais e humanas não são entendidas como contrariedades mas como elementos de composição geradores que, em maior ou menor grau, evidenciam na forma da rua a memória do lugar.“ (Proença 2014, p.677) Uma diversidade ordenada do sítio que se reflecte na forma da cidade. Em grande medida por essa razão, qualquer passeio que se escolha fazer por São Vicente será sempre memorável.

(à direita) Figura 8

Rua dos Caminhos de Ferro, nas costas de Santa Apolónia (Sérgio Proença 2019).

Figura 9

Avenida Dom Afonso Henriques e aterro portuário no Cais de Santa Apolónia (Judah Benoliel 195-).

Arquivo Municipal de Lisboa, cota: JBN004687.

Um passeio por becos, escadinhas, caracóis e outras ruas Passear por São Vicente com alguma atenção às designações toponímicas dos espaços que percorremos permite-nos um outro reconhecimento da diversidade de espaços públicos que compõem a freguesia. Em outros momentos dedicámo-nos à questão da diversidade das designações toponímicas para abordar a diversidade das ruas de Lisboa (Proença 2013). No entanto, aqui interessa-nos concentrar a atenção na especificidade dos nomes dos espaços que encontramos em São Vicente. Para este exercício o foco de interesse é a designação toponímica e não o atributo toponímico. A designação reflecte as características específicas que são partilhadas entre os espaços que a ostentam, o que permite sintetizar tipos com base no significado do nome. De modo semelhante à restante cidade, a designação toponímica não resulta de uma disposição legal como acontece noutras cidades3. Deste modo, quem propõe a designação ao desenhar um novo espaço, recorre a uma sensibilidade cultural adquirida com a prática ao longo do tempo, informada pela riqueza e características dos elementos urbanos da própria cidade, cabendo depois à Comissão de Toponímia avaliar, propor e definir os atributos toponímicos.

Na freguesia de São Vicente encontramse 18 designações para 137 espaços que lhe pertencem total ou parcialmente, se excluirmos “Escolas Gerais” que apenas tem atributo toponímico. Esta distribuição acusa uma diversidade de designações oficiais significativa e, apesar de não ser tão diversa quanto as 27 designações que existem na cidade, é relativamente representativa daquela que encontramos em Lisboa. Naturalmente, a proporção das designações não reproduz aquela que encontramos na cidade, antes atesta o carácter do lugar de São Vicente4. Deste modo, e por ordem de frequência com que existem, encontramos: Rua (56); Travessa (22); Calçada (15); Beco (15); Largo (10); Escadinhas (6); Avenida (3); Arco (1); Calçadinha (1); Campo (1); Caracol (1); Costa (1); Cruz (1); Escadas (1); Miradouro (1); Outeirinho (1); Telheiro (1); e Vila (1). [fig. 10]

A predominância da designação Rua, com 56 ocorrências num total de 137 espaços, atesta a abrangência e a versatilidade da sua aplicação. No “Vocabulario Portuguez...” Raphael Bluteau, indicava uma origem imediata francesa para rua na palavra “rue”, derivada do grego “ruo” que significava o mesmo que em latim “fluo” e em português “corro”, “porque pelas ruas corre a agua da chuva, que cahe dos telhados (...) tambem a dos poços, & das fontes, que se derrama nas ruas. Tambem corre a gente as ruas, & cada hua dellas he hua corrente do povo, que vai ao seu negocio (...)” (Bluteau 1712-28) escreve que, segundo alguns etimólogos, rua chamava-se em latim “ruga” porque as ruas nas cidades fazem o mesmo efeito que na testa as rugas, dividindo o espaço que há entre as casas. Neste sentido, etimologicamente, podemos afirmar que uma rua é uma linha conformado pelo movimento humano ao longo do tempo. Uma rua é um elemento linear do espaço público, duplamente um lugar e um itinerário, um produto cultural colectivo das sociedades que o conformaram e apropriaram ao longo de gerações. No entanto, em São Vicente nem todos os espaços são ruas e se, por um lado, a forma do sítio é determinante para a conformação dos espaços, por outro, a designação toponímica parece reflectir o carácter dos espaços. Podemos então intuir que a especificidade da forma dos espaços que é gerada pela relação da forma da cidade com o suporte geográfico, também se reflecte nas designações toponímicas dos espaços. Ou seja, o modo como a forma da cidade se adequa à topografia é responsável, por exemplo, pela existência de tantas calçadas e escadinhas.

3 Por exemplo no caso da cidade de Paris existem determinações específicas para atribuição das designações aos arruamentos a partir de características morfológicas como a dimensão, o perfil e a arborização.

4 A título de exemplo podemos referir que em Lisboa encontramos tantas avenidas quanto becos e em São Vicente o número de becos ultrapassa o número de avenidas.

Apesar de actualmente a escrita ser cada vez mais estenográfica e até hieroglífica, conhecer a etimologia e significado das palavras permanece essencial para comunicarmos e também para a compreensão das designações toponímicas dos espaços. Podemos então percorrer as designações de um conjunto de espaços de São Vicente que de algum modo constituem referências memoráveis e exemplares para a descodificação desta relação entre a designação e a forma dos elementos públicos da cidade: arco, beco, calçada, campo, caracol, escadinhas e miradouro.

3.1 arco

Junto à Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora encontramos o Arco Grande de Cima. A palavra arco tem origem na latina arcus, proveniente do ProtoIndo-Europeu arcw, e referia-se à arma que disparava a flecha. No contexto disciplinar da Arquitectura e do Urbanismo, designa uma forma geométrica linear, uma porção de circunferência, uma curva, que serve de directriz a um arco estrutural. Por outro lado, também designa o próprio elemento estrutural que cobre um vão, quase sempre com uma forma curva simples ou composta (Rodrigues, Sousa, Bonifácio 1996 pp.36-39).

A designação de arruamentos como Arco é uma extensão da designação do elemento construtivo presente, que caracteriza a imagem do espaço, para o elemento do espaço público.

Caso não existisse o arco, o topónimo Rua Direita de São Vicente poderia facilmente estender-se para nascente ao longo do Arco Grande de Cima. No caso de Lisboa, a maior parte dos Arcos existentes correspondem a antigas portas das muralhas da cidade e o Arco Grande é exemplo desta herança física, neste caso localizado sensivelmente onde existia a primitiva Porta de São Vicente da Cerca Fernandina. [fig. 11]

3.2

beco

A origem da palavra beco provavelmente estará na adição do sufixo pejorativo -eco à palavra latina via, portanto designaria uma rua de segunda categoria, cuja evolução da língua e por corruptela terá gerado a palavra beco. Actualmente a designação Beco corresponde a rua estreita e curta, escura e por vezes sem saída, o que contribui para a confirmação da sua origem. Os becos são arruamentos capilares do traçado urbano da cidade que invariavelmente partilham essas características. A posição secundária em relação aos restantes espaços da cidade e ao servirem quase exclusivamente edifícios habitacionais gera apropriações quase domésticas do espaço público, como extensão dos edifícios limítrofes. Os 15 becos que encontramos em São Vicente constituem uma amostra da diversidade morfológica destes elementos, desde os casos que não têm saída, como o Beco dos Peixinhos [fig. 12], até aqueles que constituem percursos alternativos à estrutura principal do traçado urbano, por vezes mais imediatos e completamente pedonais, como o Beco dos Lóios. [fig. 13]

3.3 calçada

A designação calçada tem origem na palavra calcere que significa pavimentar com cal, um meio relativamente simples e económico utilizado para estabilizar o solo e aumentar a sua capacidade de carga sem desagregar. A pavimentação em pedra consistiu numa evolução natural deste tipo de pavimentação que herdou a designação. A excepcionalidade dos primeiros arruamentos que receberam este tipo de pavimentação fez com que recebessem o nome do tipo de pavimento: calçada. Gomes de Brito, nas suas Ruas de Lisboa (Gomes de Brito 1935, vol. 3, p.13) refere que existiriam três categorias iniciais de arruamentos – becos, travessas e ruas – tendo a designação calçada ganho independência no correr dos tempos quando as “rua da calçada” perdem a designação “rua”. No “Sumário...” de Cristóvão Rodrigues de Oliveira [Rodrigues de Oliveira 1987[1551]), de meados do século XVI, ainda existiam alguns arruamentos que tinham a designação “Rua da calçada” seguido do atributo toponímico, como a Rua da Calçada de Nossa Senhora do Monte, o que demonstra a novidade e excepcionalidade da pavimentação do espaço público nesse período. Na verdade, a pavimentação no reinado de Dom Manuel tinha iniciado pelos espaços e percursos principais e arruamentos mais inclinados, que permitiam ligar a Ribeira às colinas de São Francisco e São Jorge (Carita 1999, p. 60)

Actualmente o significado de calçada é rua ou caminho empedrado, rua ladeirada ou inclinada, e também designa o conjunto das pedras que formam um tipo pavimento construído a partir de pequenos paralelepípedos de pedra justapostos. As 15 calçadas que existem em São Vicente correspondem a percursos de pendente acentuada, como a Calçada dos Barbadinhos [fig. 14], por vezes coincidentes com linhas de água como a Calçada de São Vicente, origem da essencial necessidade de pavimentar estes arruamentos para evitar a desagregação da sua superfície por erosão das águas da chuva.

3.4 campo

Campo designa um espaço amplo e aberto que no caso do único campo de São Vicente, o Campo de Santa Clara, se situava fora do limite da cidade, à saída da Porta de São Vicente e do Postigo do Arcebispo da Cerca Fernandina. Estes espaços que se situavam no exterior das muralhas, campos, terreiros ou rossios, cada qual com as suas especificidades, eram tradicionalmente utilizados para a troca de bens, evitando desse modo as taxas aduaneiras que se praticavam ao entrar e transacionar na cidade. A memória desta vocação do Campo de Santa Clara enquanto espaço de trocas comerciais permanece na realização bissemanal da Feira da Ladra, em contínuo desde o final do século XIX, apesar desta feira descender da que se realizava desde o século XIII no Chão da Feira, junto às portas do Castelo de São Jorge, tendo depois sido realizada em diferentes espaços da cidade até se ter fixado definitivamente neste local. [figs. 15, 16]

3.5 caracol

A palavra caracol remete para a ideia de espiral e, quando designa um arruamento, tem o significado de caminho em ziguezague num terreno inclinado. Caracol é um caso excepcional de um arruamento que conecta cotas muito distintas, ziguezagueando em sucessivos lanços de rampas ou escadas que vencem as descontinuidades da topografia. A composição de elementos rectos dispostos em ângulos mais ou menos acentuados resulta num traçado complexo e ziguezagueante, encaracolado e encaixado na topografia. [fig. 17]

O Caracol da Graça, único Caracol que subsiste na cidade de Lisboa5, teve a sua origem num caminho de pé posto que serpenteava a encosta da Graça, abaixo do Convento, e ligava o Postigo do Caracol da Graça ao arrabalde da Mouraria, de modo mais imediato do que o percurso pela Porta de Santo André. A sua posição relativamente secundarizada em relação aos percursos principais da encosta e ser ladeado exclusivamente por habitações e muros fez com que o Caracol da Graça tivesse apropriações de alguma domesticidade no seu espaço, como vasos de flores e roupa estendida. O recente aumento do turismo e a abertura do Jardim da Cerca da Graça integraram-no em circuitos mais frequentes, tomando partido da atmosfera pitoresca e enquadramento das vistas que a partir dele se podem tomar.

5 Na cidade de Lisboa existiram, pelo menos, outros dois Caracóis: o Caracol do Carmo, desaparecido com os efeitos do terramoto e reconstrução setecentista da Baixa e do Chiado; e o Caracol da Penha, cuja toponímia foi alterada e desde o final do século XIX é designado por Rua

Em São Vicente encontramos uma única Cruz, a de Santa Helena. Santa Helena era a mãe de Constantino, o primeiro imperador Romano católico, que teria ido em peregrinação à terra santa e encontrado a cruz onde Jesus Cristo foi crucificado. Ou seja, podemos estar em presença de um arruamento sem designação toponímica, apenas com atributo toponímico. No entanto, neste caso, Cruz pode ser a designação e significar o encontro e intersecção de caminhos. A Cruz de Santa Helena é um topónimo com uma longevidade considerável e já estava presente na representação de Lisboa de João Nunes Tinoco. A sua posição, na intersecção do percurso de vale constituído pela Calçada de São Vicente com um caminho sensivelmente de nível que corre desde o Campo de Santa Clara, abaixo da plataforma de São Vicente, onde existia o Postigo do Arcebispo, e que a partir deste ponto bifurca para as Escolas Gerais ou para a Calçadinha do Tijolo, parece suportar a hipótese da Cruz, neste caso, designar o encontro de caminhos. [fig. 18]

3.7

Escadinhas

A existência de escadinhas numa topografia relativamente acentuada como a de São Vicente é expectável.

A designação destes arruamentos é um reflexo dos elementos que compõem o plano do chão, uma sucessão de degraus que configuram uma escada de dimensão e número variável de lances e degraus. As Escadinhas cumprem sempre com um mesmo propósito: suprir a necessidade da existência de percursos rápidos e directos entre níveis altimétricos muito distintos em colinas que têm declives acentuados. O traçar de percursos lineares perpendiculares às pendentes gera elementos urbanos muito inclinados cujo plano do chão, para ser melhor praticável, é resolvido com degraus, dando origem a escadas ou escadinhas.

A referência a uma escada designando um sítio em Lisboa parece recuar ao século XV e a escadinha ao século XVI (Pastor de Macedo 1942, vol. III, p. 119, vol. IV, pp. 178-179). No entanto estas designações parecem ter entrado em uso mais corrente apenas quando estes arruamentos, normalmente ladeirentos, receberam a definição do plano do chão com a pavimentação em degraus. Nas designações presentes na cartografia de João Nunes Tinoco, por exemplo, não se encontra qualquer escada ou escadinha, e alguns arruamentos lisboetas com origem anterior apenas receberam a designação Escadinha já no século XIX (Pastor de Macedo 1942 vol. III, p. 34, vol. IV, p. 134, 203). São Vicente conta mesmo com Escadinhas já construídas no início do século passado, como as Escadinhas do Bairro América. [fig. 19]

Miradouro

Uma colina pressupõe um domínio sobre a paisagem envolvente e, em São Vicente, são diversas as vistas e enquadramentos que podemos tomar sobre Lisboa. A singular conformação da cidade de Lisboa sobre esta topografia característica em que montes e vales se sucedem deu origem a espaços excepcionais cujo principal propósito é justamente permitirem olhar sobre a paisagem, vistas e enquadramentos memoráveis. A palavra miradouro, literalmente uma vista de ouro, portanto um enquadramento belo, não poderia estar mais adequada à designação destes espaços cuja ocorrência oficial singular em São Vicente é o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, no adro da igreja do Convento da Graça, mas outros espaços como o Largo da Senhora do Monte com o miradouro da Senhora do Monte bem ilustram a categoria. Em Lisboa, estes espaços têm a particularidade de não só possibilitarem tomar uma perspectiva significante sobre a cidade, como também a explicam a partir dos painéis de azulejos que duplicam e legendam a vista para quem observa esta representação.

A utilidade da beleza

Na sociedade actual tudo parece necessitar de quantificação para ter o reconhecimento da sua utilidade, como caricaturou Afonso Cruz no livro “Vamos comprar um poeta” (Cruz 2016). Talvez por essa razão seja cada vez mais importante caminhar através dos espaços da cidade e fruir as sucessivas vistas que tomamos sobre Lisboa, confirmando a intemporal utilidade de contemplarmos a beleza desta paisagem, que os miradouros tornam especialmente evidente. Uma contemplação que permite reconhecermo-nos na própria cidade. [fig. 20]

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New education, popular education and social regeneration: two cases in the lisbon neighborhood of Graça

(Escola Oficina nº 1 and a Voz do Operário)vincent’s perish

Escola nova, educação popular e regeneração social: dois casos no bairro lisboeta da Graça

(Escola Oficina nº 1 e a Voz do Operário)

Este texto propõe-se apresentar uma síntese histórica da trajetória de duas instituições educativas situadas na atual freguesia de São Vicente, a Escola Oficina Nº 1 e A Voz do Operário, enfatizando o contributo de ambas tanto para a promoção da educação popular como para o desenvolvimento de práticas educativas inovadoras. Embora uma e outra tenham raízes no final do século XIX, mantendo-se uma delas ativa ainda hoje e permanecendo o edifício da outra como um lugar de memória da Educação Nova, daremos aqui uma particular atenção às décadas iniciais do século XX.

Educação nova

Introdução regeneração social

Educação popular inovação lugar de memória

Os anos finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX constituíram um período em que podemos testemunhar a existência de um grande investimento na chamada educação popular. As inúmeras iniciativas então desenvolvidas tiveram como impulsionadores sectores diversos como o republicanismo, a maçonaria e o operariado, entre outros. Esse foi igualmente um momento central da divulgação, em Portugal, de um conjunto de ideias educativas inovadoras no âmbito de um movimento internacional que ficou conhecido pela expressão Educação Nova. A Escola Oficina Nº 1 de Lisboa, cujo grande inspirador foi Adolfo Lima, foi, porventura, a mais exemplar de entre as experiências escolares diferentes ou alternativas que então se desenvolveram. Nela se juntaram, em curiosa sintonia, o impulso educativo de raiz maçónica, um radicalismo pedagógico e social de conotação libertária e as novas conceções e práticas educativas nesse momento em voga.

This text proposes to present a historical synthesis of the trajectory of two educational institutions located in the current parish of São Vicente, Escola Oficina Nº 1 and A Voz do Operário, emphasizing the contribution of both for the promotion of popular education and for the development of innovative educational practices. Although both have roots at the end of the 19th century, one remains active today and the building of the other remains a place of memory for New Education, we will pay particular attention to the early decades of the 20th century.

New education

Popular education social regeneration innovation place of memory

Por outro lado, mesmo não sendo tão paradigmáticas, as inúmeras escolas bem cedo fomentadas ou enquadradas pela Voz do Operário, uma associação criada pelos operários tabaqueiros, testemunham o impressionante esforço feito pelo operariado mais consciente para promover uma regeneração social tendo como ponto de partida a escolarização das crianças portuguesas oriundas dos meios populares no âmbito de um projeto mais vasto de assistência social. É sobre estas duas instituições, ambas pertencentes à atual freguesia de São Vicente, bem como o contexto em que elas evoluíram, que este texto se debruçará. Uma delas, a Voz do Operário, continua em pleno funcionamento; outra, a Escola Oficina, viu a sua atividade suspensa nos anos 80 do século XX, ainda que o seu espaço, hoje um verdadeiro “lugar de memória” da Educação Nova em Portugal, esteja em fase de revitalização, aí decorrendo outras atividades de natureza cultural e educativa. Se lhes associarmos mais algumas instituições educativas que aí existem (ou já existiram), como o antigo Liceu (hoje Escola Secundária) de Gil Vicente, bem podemos considerar o tradicional bairro da Graça como um verdadeiro “bairro educador”.

A Escola Oficina Nº 1 de Lisboa: A grande referência da Educação Nova em Portugal

Aquela que foi a mais famosa (mesmo em termos internacionais), e mais visitada, das escolas portuguesas no período republicano é hoje bem conhecida, tendo já sobre ela incidido um conjunto de importantes trabalhos de investigação. Importa destacar, acima de todos, a excelente tese de doutoramento (depois livro) de António Candeias (1994), significativamente intitulada Educar de outra forma, e que se dedica ao estudo do período áureo da instituição (1905-1930). Para além de a enquadrar no seu contexto e de ter em conta a influência que nela teve o pensamento anarquista, o autor analisa a forma como essa influência se conjugou com as ideias pedagógicas características do movimento da Educação Nova, dando origem àquilo que ele designa por modelo educativo libertário. O principal impulsionador da renovação da escola foi o intelectual e educador libertário Adolfo Lima, cuja figura atravessa as páginas da obra a par de outros protagonistas maiores como Luís da Matta, César Porto, António Lima ou Deolinda Lopes Vieira Quartim.

O autor estuda, para além da trajetória da escola, muito em particular, a evolução dos planos de estudo; as regras, as práticas e o quotidiano; a opção pela coeducação e o sistema de autonomia dos alunos aí implementado, na perspetiva do então chamado selfgovernment escolar, corporizado numa associação denominada “Solidária”; e as aprendizagens dos alunos, através do exemplo das ciências da natureza. Uma outra obra a abordar a história da Escola Oficina Nº 1 é o livro (anteriormente uma dissertação de mestrado) de Manuel Henrique Figueira (2004) intitulado Um Roteiro da Educação Nova em Portugal. O autor recorre ao espólio de Álvaro Viana de Lemos, que se encontra à guarda do Movimento da Escola Moderna, para elaborar um roteiro do que considera ser, entre o final do século XIX e os anos 30 do século XX, um conjunto de 12 escolas novas (ou que poderiam ser consideradas como tal), uma delas a Escola Oficina Nº 1. Na segunda parte do trabalho o autor aborda o que considera serem práticas pedagógicas inovadoras, sendo selecionadas quatro: os trabalhos manuais educativos; a correspondência interescolar; a imprensa escolar; e o cinema educativo. No capítulo específico sobre a Escola Oficina Nº 1 - que inclui um conjunto amplo de fotografias - é feita uma apresentação geral da escola e dos seus princípios pedagógicos. Importa referir, ainda, o capítulo sobre a Escola Oficina Nº 1 inserido numa obra coletiva resultante de um projeto de investigação dedicado a um conjunto de escolas diferentes no Portugal do século XX – o projeto INOVAR: Roteiros da inovação pedagógica. Nesse capítulo, que é da autoria de Maria João Mogarro e de Alda Namora de Andrade (2019), são apresentados os espólios arquivístico e patrimonial da escola, é caracterizado o seu projeto educativo, são identificados os professores e as publicações, referidos os alunos e a sua associação, para além de ser analisado o quotidiano e os valores e regras que o permeavam. As raízes da Escola Oficina Nº 1 mergulham no século XIX, mais concretamente em 1876, ano em que é criada a Sociedade Promotora de Creches, uma associação para-maçónica; a iniciativa partiu das lojas Sementeira e José Estêvão. Inicialmente localizada em Alfama, a creche então criada passou para o novo edifício do largo da Graça depois de este ser construído, o que ocorreu entre 1877 e 1878. Em 1903 a creche foi encerrada e em 1904 a Sociedade muda o seu nome para Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas, dando conta da maior ambição que passava a caracterizar o projeto. Em 1905 é, então, criada a Escola Oficina Nº 1 de Lisboa. Inicialmente localizada na Rua de São João da Praça, à Sé, a escola passa no ano seguinte para o edifício da Graça onde permanecerá até 1987. Seguindo a sistematização de António Candeias (1994), podemos considerar a existência de 4 fases distintas da vida da escola. Entre 1905 e 1907 ela apresenta-se como uma escola ainda relativamente tradicional, com um caráter profissional, em particular nas áreas da carpintaria e da marcenaria, e destinada às crianças pobres do bairro da Graça. Em 1907 inicia-se a revolução pedagógica inspirada principalmente por Adolfo Lima e que conduz à implementação e consolidação do já referido modelo libertário de educação, que teve por base os planos de estudo de 1907 e 1912 que procuraram pôr em prática os princípios da Educação Nova. Adolfo Lima permaneceu na escola até 1914 e Luís da Matta até 1918. É esta a fase mais dinâmica da vida da escola, reconhecida como uma instituição de referência e amplamente visitada por políticos e educadores portugueses e estrangeiros. Entre 1918 e 1930 a escola conhece, segundo o mesmo António Candeias, uma fase de menor exuberância, ainda que mantendo o essencial do modelo pedagógico e muitos dos seus professores, e em que se vão avolumando os problemas de natureza financeira. A partir de 1930, com a Ditadura Militar, inicia-se uma nova fase em que a escola retorna a um registo mais acomodado, apesar de manter algumas das suas características, e que irá durar até à sua extinção em 1987, já em período democrático. Em 1941, em pleno Estado Novo, a coeducação, uma das suas marcas mais originais, é proibida e as oficinas, igualmente um dos seus ex libris, são encerradas. A escola torna-se uma escola primária destinada ao sexo feminino e tendo como público-alvo as jovens oriundas das camadas populares da Graça. Curiosamente, ao longo da sua trajetória de mais de oito décadas, a escola esteve sempre nas mãos da mesma entidade, a qual mudou o seu nome, em 1913, para Sociedade Promotora de Escolas, designação que se manteve até hoje, continuando ainda a ser a proprietária do imóvel e mantendo a sua ligação ao Grande Oriente Lusitano, a mais antiga das organizações maçónicas existentes em Portugal. Um aspeto interessante, também notado por António Candeias, é o facto da concretização do projeto da escola ter resultado da improvável confluência entre maçons, os proprietários da escola, e anarquistas, os seus professores mais influentes.

A designação Escola Oficina que lhe foi atribuída dá conta, de alguma maneira, de duas das particularidades da escola. Ela vai manter, na sua fase de apogeu, o caráter de escola profissional com que foi fundada e, por outro lado, os trabalhos manuais, desenvolvidos nas oficinas da escola, vão transformar-se numa das atividades curriculares mais importantes, na perspetiva da educação integral e dos métodos ativos defendidos pela Educação Nova. Sendo uma escola primária, a Escola Oficina Nº 1 assumiu-se, desde cedo, como uma espécie de escola primária “de continuação”, para usar uma expressão cara a António Sérgio, aproximando-se da ideia de Escola Primária Superior que a República procurou (sem grande sucesso) concretizar, ou seja, era uma escola primária prolongada; em 1912 a duração do seu curso, que era de 6 anos, passou para 8 anos. Em relação ao número de alunos, podemos seguir os dados apresentados por Manuel Henrique Figueira (2004) para a fase inicial de vida da escola para ter em conta qual era a sua escala: 20 alunos em 1905; 35 em 1907; 60 entre 1908 e 1910; 70 em 1911; 80 em 1912 e 1913; 119 em 1914; 120 em 1916; 151 em 1917. Ou seja, o número de alunos não era muito elevado em linha com o que era habitual nas escolas novas que possuíam um baixo rácio professor-aluno. O período letivo, diferentemente do que acontecia com as outras escolas, correspondia ao ano civil (janeiro a dezembro), não havendo as habituais férias escolares. No seu lugar existiam atividades educativas mais informais como excursões, colónias de férias, passeios e visitas de estudo. No que se refere ao espaço, a escola ocupava o edifício de dois amplos pisos que hoje podemos observar e possuía ainda um quintal de 600m2 onde se realizavam algumas das atividades educativas. O interior surge hoje transformado em relação à estrutura de então. Possuía 5 salas de aula; 1 sala de desenho; 2 oficinas (marcenaria, modelação e talha); ginásio/salão de festas com palco; laboratório-museu; e biblioteca escolar. Tinha, ainda, várias instalações de apoio como o posto médico, o refeitório e a cozinha, horta e zona de criação de animais (Figueira, 2004).

A diversidade e a qualidade dos espaços eram coerentes com um projeto educativo que ambicionava a educação integral dos alunos. Como se diz no Plano de Estudos para a Escola Oficina Nº 1 de 1906/07, “desta correlação e simultaneidade de funções resulta necessária a simultaneidade da educação nos aspetos em que é uso classifica-la: físico, intelectual e moral […]. A educação deve pois ser integral, isto é, abranger todas as faculdades do homem – e fazer-se duma maneira simultânea” (citado em Candeias, 1994, p. 210). Essa conceção implicava a valorização de um conjunto de áreas educativas cuja presença era, à época, pouco habitual nas escolas. Uma das mais valorizadas eram os trabalhos manuais os quais tinham um fim educativo e não meramente profissional. Em artigo publicado em 1924 na revista Educação Social, por ele dirigida, e onde compara os famosos 30 princípios das Escolas Novas, propagandeados por Adolphe Ferrière, com as práticas desenvolvidas na Escola Oficina Nº 1, Adolfo Lima enfatiza a importância que a carpintaria deveria assumir entre os trabalhos manuais e justifica-a com os seguintes argumentos: “Entre os trabalhos manuais, a carpintaria ocupa o primeiro lugar, porquanto desenvolve a habilidade e a firmeza manual, o sentido da observação exata, a sinceridade e a posse de si”. E acrescenta: A cultura do solo e a criação de pequenos animais entram na categoria das atividades ancestrais, que toda a criança gosta e deve ter ocasião de exercer. O conhecimento direto da natureza viva serve de preliminar ao conhecimento da natureza humana” (Lima, 1924, p. 279).

Destaque-se, por um lado, a importância que a ideia de natureza tem no âmbito da Educação Nova e, por outro lado, a relevância assumida pelos trabalhos manuais, que é justificada pelo valor educativo que lhe é atribuído, tanto no plano da motricidade fina como no dos valores e atitudes. Nesta ótica, os trabalhos manuais apetrecham os alunos com, diríamos hoje, competências para a vida. Segundo o testemunho do mesmo Adolfo Lima, “a oficina de carpintaria da Escola Oficina Nº 1 era frequentada diariamente por todos os alunos de um e outro sexo” (Lima, 1924, p. 279). Igualmente importantes na escola eram as atividades nas áreas da educação física e da educação estética. No já referido artigo, Adolfo Lima defende “a cultura do corpo”, que deve ser assegurada “pela ginástica natural feita ao ar livre” e por “viagens a pé e de bicicleta” (Lima, 1924, p. 279), e considera que a escola “deve ser um meio de beleza”, sugerindo para tal o recurso à música coletiva, ao canto, à orquestra e ao teatro escolar (Lima, 1924, p. 281). Registe-se o facto dele próprio ser autor de diversas peças que foram encenadas na escola. Ao nível da educação intelectual, o currículo da escola incluía igualmente um conjunto diversificado de disciplinas, algumas delas nada usuais no tradicional ensino primário, como Francês, Inglês e Ciências, para além de Sociologia, no caso lecionada pelo próprio Adolfo Lima. Segundo ele, devia evitar-se “uma acumulação de conhecimentos memorizados”.

“Os exames que se faziam na escola no fim de cada ano letivo, finalmente, foram abolidos por completo e substituídos por exposições dos trabalhos dos alunos, efetuados durante o ano” (citado em Candeias, 1994, p. 257). Caminhava-se, assim, no sentido de um ideal de avaliação contínua. Como muitas outras escolas inovadoras, a Escola Oficina Nº 1 exibia publicamente, no final do ano escolar, os trabalhos dos seus alunos como uma forma de publicitar a excelência dos resultados obtidos (Mogarro & Andrade, 2019). Muito característico da Educação Nova foi, igualmente, o sistema de educação moral através do chamado selfgovernment, que Adolfo Lima preferia designar por “autonomia dos escolares”. Segundo ele, a educação moral “deve exercer-se, não de fora para dentro, pela autoridade imposta, mas de dentro para fora, pela experiência e pela prática gradual do senso crítico e da liberdade” (Lima, 1924, p. 281). Quer dizer, as crianças e jovens deveriam aprender a ser cidadãos através da prática concreta da cidadania, em pequena escala, no microcosmos que era a própria escola. Passando a exemplificar, o autor considera que “entre nós este regime é realizado pelas associações escolares denominadas ‘Solidárias’, inovação da Escola Oficina Nº 1, e depois espalhadas por alguns outros estabelecimentos educativos” (Lima, 1924, p. 281).

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A educação intelectual a promover deveria assentar no “espírito crítico” e no “método científico”, ter por base “factos e experiências” e resultar da “observação”, dos “interesses espontâneos” e da “atividade pessoal” dos alunos (Lima, 1924, pp. 279-280). Encontramos aqui alguns dos grandes princípios da Educação Nova, em particular a defesa de um ensino intuitivo e ativo. A formação na área profissional foi, igualmente, muito diversificada; dependendo dos momentos, podíamos encontrar cursos de entalhador, marceneiro, escultorestucador, artes culinárias, manufatura de flores artificiais, construção de mobiliário, entre outros (Figueira, 2004). Em coerência com a pedagogia alternativa que se procurava desenvolver na escola, mudaram também radicalmente as formas de avaliação, algo que surge destacado no Relatório do Conselho Escolar de 1909/10:

Na «Solidária» da Escola Oficina nº 1 os alunos escolhiam os seus dirigentes que se responsabilizavam pela gestão de um conjunto de atividades que estavam organizadas em secções; algumas das mais importantes foram: Lanche Escolar, Desportiva, Dramática, Capoeiras e Pombal, tendo existido em alguns momentos secções de Dança, Ciclismo, Natação e Excursões (Mogarro & Andrade, 2019).

Em síntese, a Escola Oficina nº 1 de Lisboa foi a experiência educativa que, no caso português e nas primeiras décadas do século XX, se revestiu de maior exemplaridade à luz do paradigma das Escolas Novas usufruindo, durante cerca de duas décadas, de um grande prestígio tanto em termos nacionais como internacionais. Essa consciência do que representava a escola a esse nível, um modelo para o futuro, está bem presente nos discursos dos atores que lhe davam vida, sendo um exemplo disso o excerto a seguir apresentado do Relatório do Conselho Escolar do ano de 1910/11:

O que choca e provoca a surpresa agradável que a Escola oficina Nº 1 oferece aos estudiosos que a têm visitado […] é sobretudo a atmosfera de justiça, de liberdade e de alegria que se respira em toda a escola. É um quid pelo qual a escola se distingue das demais. […] É que a Escola Oficina é antes de tudo, para o visitante, qualquer coisa de ideal, qualquer coisa para que se caminha, qualquer coisa que deve ser assim. Este ideal está em que ela traduz as aspirações pedagógicas e sociológicas modernas do que deve ser a escola primária do futuro, o tipo para que tende a escola. (citado em Candeias, 1994, p. 281

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