Arandu Ymanguaré

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TEXTO

Olívio Jekupé ILUSTRAÇÕES

Theo Siqueira


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Todos nós temos curiosidade de saber como vivem os índios: será que eles vão à escola? É verdade que pescam com arco e flecha? Será que têm medo de onça? O que fazem para se divertir? Qual sua comida predileta? Que remédios usam quando ficam doentes? Nós, da Editora Evoluir, também gostaríamos de saber dessas coisas e então fomos perguntar diretamente para Olívio Jekupé, um guarani da aldeia Krucutu, que fica em Parelheiros, na cidade de São Paulo. Ele nos deu muitas explicações, contou várias histórias e ensinou o significado de muitas palavras. É um pouco disso tudo que queremos compartilhar com vocês em “Arandu Ymanguaré”, que significa Sabedoria Antiga em guarani. As histórias e respostas da entrevista foram escritas pelo próprio Jekupé e como achamos que vocês gostariam de conhecer

sua verdadeira forma de se expressar, decidimos não modificar o texto. Mas para que entendam bem as histórias e aprendam algumas palavras novas, colocamos, no final do livro, um pequeno glossário Tupi-Guarani-Português. Ao conversarmos com Jekupé, lembramos que há muitas maneiras do ser humano viver em nosso planeta: no agito das grandes cidades, em fazendas, no campo, como nômades no deserto, ou pescadores à beira-mar. Pode também viver nas florestas e nelas encontrar sua alegria e seu sustento – como os índios, primeiros habitantes de nosso país, sobre cuja vida e cultura precisamos aprender mais. Só quando conhecermos a beleza, a riqueza e a força das tradições indígenas poderemos, de fato, valorizar e defender o seu povo. Vamos fazer isso juntos? 5


Vamos conhecer os povos indĂ­genas?


Olívio Jekupé nasceu em 1965, no norte do Paraná, perto da cidade de Itacolomi. Tem 3 filhos, dois meninos e uma menina: Tupã Mirim, Jeguaká Mirim e Kerexu Mirim. Para nos ajudar a compreender melhor a vida de povos indígenas, o nosso amigo escritor respondeu a uma entrevista que você pode acompanhar agora: Quais são as suas principais atividades? Presto serviço de liderança e sou secretário da Associação Guarani Nhé’em, em Porã. Faço contato com a comunidade e trabalho com o “mundo de fora”, porque entendo português. Também ajudo o cacique, líder da aldeia.

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Como é o dia das crianças em uma aldeia guarani? A que horas vão dormir? 
Se divertem o dia todo: sobem em árvores, nadam no açude, brincam com arco e flecha e quando há escola na aldeia, elas vão. Posso dizer que os dias são de grande alegria, pois as crianças são sempre felizes, até parece que não conhecem o que é tristeza. A maioria levanta cedo e também dorme cedo. Qual o papel dos homens na aldeia? E o das mulheres?
 Os homens procuram comida, caçam, pescam, plantam e buscam material para artesanato. As mulheres cozinham, cuidam dos filhos e fazem artesanato. Os homens e as mulheres devem ser bons, humildes, religiosos, educar bem os filhos e saber valorizar a Mãe Natureza que nos dá tudo. 8


Quem ensina às crianças o que é certo e o que é errado?
 Cabe aos pais a educação dos filhos. Mas numa aldeia todos educam. Às vezes pode ser o cacique que é o chefe da aldeia, ou o pajé que é o chefe religioso, ou os velhos que têm grandes conhecimentos e são respeitados por todos, principalmente pelas crianças. Como são tratadas as pessoas quando ficam doentes? Quem cuida delas? Ficamos tristes quando alguém da comunidade fica doente, mas quando
isso acontece, o doente vai até a opy, onde o pajé irá benzê -lo. Se a doença não for espiritual, o pajé o levará ao médico da cidade. 9


Quais as principais festas da aldeia?
 A principal é o Nhemongaraí, em que as crianças recebem o nome indígena, não através dos pais, mas do pajé. Também, o “Dia do índio”, no mês de Abril, quando todas as aldeias comemoram nosso dia, pois também temos direito. Qual a religião dos guarani? Nossa religião é milenar, própria do nosso povo. É através dela que aprendemos a respeitar a Mãe Natureza e a crer em Nhanderú. Sem ela somos nada. Por isso, as crianças são educadas a participar sempre na opy. E é através da participação das crianças que conseguimos resistir a séculos, continuando nossa cultura de geração em geração.

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Quantas aldeias guarani existem no Brasil? E de outras nações? Na capital de São Paulo, existem três aldeias guarani. Já no Brasil, existem mais de 80 aldeias guarani e, somando com outras nações, são mais de 550 aldeias. Como é o relacionamento entre as várias nações indígenas? E como era antigamente? Antigamente, havia guerras entre tribos. Guerras, também, manipuladas pelos jurua kuery, fazendo com que índios se tornassem inimigos. Mas hoje vivemos melhor, sem guerras, porque sabemos que nós indígenas não devemos ser inimigos e sim nos unir cada vez mais.

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Quais as maiores dificuldades que os indígenas enfrentam? 
Uma das principais dificuldades é a falta de terra que nos foi tomada; sem ela sofremos muito. Outra dificuldade que passamos no Brasil é o preconceito da sociedade e a falta de escolas nas aldeias. Quando há, não permitem que nosso povo tenha uma escola do jeito que queremos. Além da nossa língua, que nem sempre é respeitada. Quais são os maiores desejos das crianças guarani?
 Hoje em dia, vemos que elas têm um forte desejo de estudar. Também desejam conhecer um pouco do mundo fora da aldeia, para que quando cresçam, saibam se defender. 12


Por que você chamou este livro de Arandu Ymanguaré? Porque as nossas histórias são passadas de geração em geração e é uma grande sabedoria que vem sendo contada há séculos. Por isso, escolhi dar esse título que em português significa “Sabedoria Antiga”. Você poderia nos contar algumas histórias que as crianças de sua aldeia gostam de ouvir?
 Sim! Vou contar três histórias: “A índia que duvidou do Curupira”, “Ava’i na cidade” e “Ava’i que virou xivi”. 13


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Certa vez, uma Ă­ndia estava no mato pegando algumas sementes para fazer colares. Depois que pegou o bastante, aproveitou para nadar um pouco, o que, aliĂĄs, fazia muito bem. O lugar onde estava era bem longe de sua casa e ela estava sozinha.

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Só escutava o canto dos pássaros, que eram muitos naquela mata. Havia, também, vários tipos de animais. 17


Depois que nadou bastante, a índia saiu do rio e ficou sentada ao lado de uma pedra grande. Foi então que se lembrou das histórias que escutava na aldeia sobre o tal do curupira, ou pytajova’é. 18


Eram muitas as histórias que já tinha ouvido. Mas naquele momento pensou consigo mesma: “Será que ele existe mesmo ou é imaginação dos antigos?” 19


Acreditava na existência dele, mas ao mesmo tempo ficou com uma pequena dúvida na mente. “E se ele não existir de verdade, quando eu tiver meus filhos, se contar histórias sobre ele, aí estarei mentindo. Será bom isso?”, pensou ela.

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A Ă­ndia continuou sentada naquele lugar por mais alguns minutos. De repente ela sentiu um barulho tĂŁo silencioso que nem dava para escutar, mas ela escutou. 21


Olhou para os lados e até se levantou assustada, mas não viu nada. Ficou com um pouco de medo. “Vai que é algum animal perigoso?”, pensou.

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Mas, de repente, apareceu alguém na sua frente e os dois ficaram bem próximos. Ele olhou para ela e ficou rindo. A índia percebeu que iria ser pega por aquele estranho que nunca tinha visto.

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Pensou logo que ele poderia ser o curupira, pois era igual como 茅 contado nas hist贸rias. 24


Em seguida, o curupira chegou mais perto e, quando tentou agarrรก-la, ela foi mais esperta e deu um forte empurrรฃo conseguindo derrubรก-lo.

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Ela correu como nunca havia corrido antes. Foi então que a índia se lembrou que o curupira não gostava de água e, ligeiramente, pulou no rio atravessando depressa para o outro lado. 26


Saiu do rio e continuou correndo e, s贸 foi parar, quando chegou em casa, na aldeia. Quanto ao curupira, foi embora tamb茅m. 27


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Certa vez, um ava’i de uns 9 anos de idade, quis conhecer a cidade grande, pois jå tinha ouvido muito falar, mas nunca tinha visto uma. 30


Por isso, pediu ao pai que o levasse um dia, s贸 para ver de perto como era a vida dos que vivem fora de uma aldeia.

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Um mês depois, seu pai resolveu levar o pequeno ava’i até São Paulo, uma cidade grande, onde se vê de tudo, onde existem pessoas muito diferentes.

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Chegando na cidade, o ava’i começou a observar muitas coisas e viu que lá havia tanta gente que dava até medo.

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Na verdade, eram mais de 10 milhões de pessoas, algo que ele nem tinha noção de quanto era.


Na aldeia onde o ava’i morava, a população era, apenas, de 350 pessoas, com uma área de uns 1500 hectares, com muitas árvores, um belo rio e muitos pássaros que cantavam, principalmente, ao amanhecer e escurecer do dia.

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Ao andar pela cidade grande, o pequeno ava’i viu uma casa enorme, muito alta onde entrava e saia gente a todo momento.

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Seu pai falou que aquele lugar era chamado de igreja, onde o povo vai rezar com seu Deus.

— É como nossa opy onde cantamos a noite para Nhanderu! — exclamou o ava’i. — Sim — respondeu o pai.

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No dia seguinte, seu pai o levou para andar mais um pouco na grande cidade. O ava’i notou que havia muita gente, uns passavam tão perto mas não se falavam, era como se não conhecessem ninguém. 38


Achou isso engraรงado, porque na aldeia todos se conheciam, se cumprimentavam e conversavam ao passar perto uns dos outros.

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Mais tarde, ele viu uma casa muito grande, onde muitas pessoas trabalhavam. Seu pai lhe disse que se tratava da prefeitura e, ao explicar o que era esse lugar, o ava’i perguntou: — Seria como nosso cacique que comanda a aldeia, que resolve os problemas do nosso povo? 40


— Isso mesmo — concordou o pai — Só que aqui, eles o chamam de prefeito. Mais adiante viram um asilo. O ava’i achou o lugar muito bonito por fora. Seu pai, então, lhe explicou: — Aqui é o lugar onde os filhos trazem seus pais quando ficam velhos. 41


O ava’i não conseguiu entender, achou o fato triste, pois na aldeia não tem nada assim: os velhos têm suas casas ou moram com seus filhos.

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No dia seguinte, o ava’i foi passear mais uma vez com seu pai. Ele queria ouvir alguma história do povo da cidade, mas todos os amigos que seu pai conhecia, pareciam não ter o costume de contar histórias. 43


— Aqui na cidade se aprende nos livros — explicou seu pai. Por isso, é preciso que você pegue um livro para ler.

“Que pena!” pensou. Ele queria ouvir a história sem ter que ler... 44


O pequeno índio achava muito bom ler histórias nos livros, mas era muito bom, também, poder ouví-las.

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“Na aldeia, nosso povo conta muitas histórias e, graças a elas, podemos aprender sobre o passado. Aprendemos sobre o canto dos pássaros, sobre as matas, inclusive sobre caçadas. Tudo na vida tem histórias e, por isso, somos um povo de histórias orais”, explicou o indiozinho. 46


De volta à aldeia, o ava’i, muito animado, contou a todos que tinha conhecido um pouco do mundo dos jurua kuery. Queria voltar outra vez para conhecer mais sobre o povo da cidade grande. 47


— É um mundo diferente, sei que eles gostam dessa vida. Já eu prefiro a vida da aldeia. Por isso, cada povo com seus costumes! — exclamou o ava’i. 48


Depois desse passeio, o indiozinho ficou muito alegre por conhecer a cidade grande. Pôde ver o quanto a vida deles era diferente em relação a vida na aldeia.

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Ele percebeu que os jurua kuery têm seus costumes, assim como os indígenas têm os deles.

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O ava’i refletiu sobre o quanto é importante que cada um respeite o costume do outro e descobriu que não tem nenhum que está errado. 51


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Certa vez, uma Ă­ndia deu Ă luz um menino. Desde o dia que nasceu, mamava muito, mas nĂŁo parava de chorar, pois estava sempre com muita fome. Quando era noite dava de mamar para ele dormir, mas mesmo assim ele chorava como sempre.

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Certa noite, o menino, j叩 com um ano de idade, estava deitado com seus pais. Passou a m達o no rosto de seu pai para ver se ele estava dormindo, e estava. Depois passou a m達o no rosto de sua m達e. Ela estava acordada, mas fingiu que dormia. 55


Então, o pequeno ava’i se levantou e saiu de sua oka. De repente, aconteceu algo inacreditável: ele virou xivi e foi caçar. Sua mãe, vendo aquilo, ficou muito assustada mas foi dormir, fazendo de conta que nada tinha acontecido. 56


Depois que o xivi comeu bastante, virou outra vez o que era e voltou pra casa. Deitou-se perto da m達e, pois queria mamar, mas ela fingiu que dormia. Estava muito assustada por saber que tinha um filho que virava xivi. 57


No outro dia bem cedo, enquanto o ava’i dormia, a mãe contou tudo o que viu ao marido, enquanto assava jety ao lado da fogueira. O avá, pai do garoto xivi, ficou muito triste.

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— E agora, o que vou fazer?
 O pai pensou um pouco e disse: — Vou avisar a todos da aldeia e, essa noite, quando ele sair, os outros nhandekuery irão caçá-lo. 59


O pai saiu e comunicou a todos. Combinou o que teriam que fazer. Sabia que era seu filho, mas também era um xivi. Enquanto isso, o ava’i estava em casa com sua mãe. Ela estava com muito medo que ele virasse xivi ali mesmo. Tinha medo de ser comida pelo próprio filho.

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Mais tarde, o pai chegou na oka e não falou nada para que o ava’i não descobrisse o plano, só fez um sinal à mãe que seria naquela noite. Ao escurecer estava um verdadeiro silêncio, os índios estavam todos escondidos. O ava’i ficou esperando seus pais dormirem para então sair.

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Os pais fingiram que estavam dormindo, foi quando então o ava’i se levantou e saiu. Estava tudo muito quieto. De repente, virou xivi e saiu para caçar. Então, os outros índios saíram todos atrás do xivi, cada um com seu arco e flechas. 62


Cada grupo foi para um lado, mas sempre em dois ou três. Ninguém saiu sozinho. Demorou mais de uma hora a andança pela mata. Finalmente, um dos grupos viu o xivi. Estava ao lado de uma árvore comendo sua caça. 63


Porém, os índios foram vistos pelo xivi que deixou o que comia de lado e avançou para cima deles, só que não deu tempo. Um dos índios já estava preparado com seu arco e flecha. Quando o xivi deu seu pulo fatal, o índio acertou uma flechada bem no peito dele e, assim, ele caiu morto no chão da floresta. 64


Akã: cabeça Ará: tempo, dia Arandu: sabedoria Ava: homem, menino Eiko popã: como vai?
 Eté: bom, honrado
 Gwirá: pássaro
 Îakaré: jacaré
 Itá: pedra
 Iub: amarelo
 Jacuyju: bom dia
 Jaguá: cachorro
 Jaxi: lua
 Jety: batata doce
 Jurua kuery: homem branco Kaá: mato, folha Kua-ray: sol Kunhã: mulher Kyringué: criança
 Motirõ: pessoas reunidas para trabalho Mundéu: armadilha
 Nhandekuery: parentes (nossa gente) Nhanderu: Deus
 Nhe: falar, língua
 Nuande kaaruju: boa tarde

Oka: casa Opy: casa de reza
 Pajé: rezador, curandeiro Paranã: mar
 Pereba: ferida
 Petynguá: cachimbo
 Pirá: peixe
 Pyrang: vermelho Pytajovai’ va’e: curupira Taba: aldeia
 Taetetu: porco do mato Tendá: cadeira
 Tiba: em abundância, cheio Tinga: branco
 Tipa: bolo feito de farinha Tiririca: que arrasta Un: preto Uruanã: galo Urukunhã: galinha
 Xeiru: amigo
 Xivi: onça
 Y: água
 Ybirá: árvore
 Ymanguaré: antigo
 Yvy: terra


Evoluir Cultural, 2014 Este livro atende às normas do novo Acordo Ortográficos da Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro de 2009. Título original Autor Ilustrações Coord. Editorial Projeto gráfico Revisão

Arandu Ymanguaré Olívio Jekupé Theo Siqueira Flávia Bastos e Lilian Rochael Gabriela Ferreira Flávia Bastos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jekupé, Olívio Arandu Ymanguaré / Olívio Jekupé; [ilustração Theo Siqueira]. – São Paulo : Evoluir Cultural, 2014. 1. Literatura infantojuvenil I. Siqueira, Theo. II. Título. 14-01396 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantil 2. Literatura infantojuvenil ISBN

978-85-8142-039-4

Fontes Gotham e Gotham Rounded Tiragem 3.000 Papel miolo Papel Offset 120g/m2 2 Papel capa Couche Brilho 150g/m

028.5 028.5 Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Evoluir Cultural · FBF Cultural Ltda. Rua Aspicuelta, 329 · São Paulo-SP · CEP 05433-010 · (11) 3816-2121 evoluir@evoluircultural.com.br · www.evoluircultural.com.br

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