O livro dos cacos e outros fragmentos incômodos (Tomo I: O livro dos cacos)

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o livro dos cacos

Gladstone Machado de Menezes


Coordenação Editorial Produção Executiva Gladstone Machado de Menezes Design Gabriel Menezes Luã Leão

Revisão Maria Clarissa Rocha Vale Assessoria de Imprensa Angélica Brunacci Larissa Itaboraí Assistente de Produção Judivan Leite

Este projeto foi realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M543  Menezes, Gladstone Machado de, 1962 — O livro dos cacos e outros fragmentos incômodos. Gladstone Machado de Menezes. – , Brasília, Edição do autor, 2017. 600 p. ISBN 978-85-913806-1-9 1. Literatura brasileira. 2. Poesia brasileira. M. Título. CDD B869 CDU 82-1


os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê? Roland Barthes por Roland Barthes



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A descida Estávamos puros. Do chão, paredes e teto negros, rajadas de luz brevíssimas nos ultrapassavam. Nós nos misturávamos, nos separávamos, enfastiados pelo super-excitante, pelo centrífugo, pela velocidade. Os sons perpassavam os ouvidos e se espatifavam nas paredes internas dos nossos crânios. Como corujas cruzando o ar em voos cegos. Que nostalgia nos manteve dentro, e vivos? ... Somos sós e os sóis são tantos. ... O ritmo da noite fora de rito. Tribo secreta reunida. Dança, transe, orgia, sacrifício, sabá, selvageria, morbidez e morte. O futuro amanheceu com cheiro de cinza e carne adormecida.

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A queda (do Livro dos Mortos egípcio) Meus cabelos são Noun; meu rosto é Rá; meus olhos são Hathor; meus lábios são Anúbis; meus molares são Ísis; meu pescoço é Neith; meu sexo é Osíris; meu ventre e minha espinha dorsal são Sekhemet; minhas nádegas são os olhos de Hórus; minhas coxas e a barriga de minhas pernas são Nut; minhas pernas são Ptah. ... Ofereço areia, cinzas, ossos e miragens. ... Íbis sobrevoam.

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O reflexo Quando, saturado o olho, a imagem se desfoca, apago a luz. Por uma fração mínima de tempo permaneço no vidro, mesmo após a claridade esvanecer. Antes das pupilas se adaptarem ao escuro, ligo o interruptor. Meu rosto salta do vidro até quase emergir na tridimensionalidade. Impedido pela película cristalina que me duplica.

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Nossos olhos não se cruzavam apesar de estarmos sempre nos olhando. … Talvez os crocodilos nos devorem. Talvez vivamos muitos anos uma alegria quase diabólica. ... Mares exteriores. Oceano subterrâneo. Territórios da alma. Equinócio. Frutos maduros. Planetas. Plexo. ... Estilhaços do castelo de vidro e espelhos.

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antenas que perscrutam em grutas friíssimas terremotos soterrando os monstros vagidos os líquidos fósseis vivos gosto de barro ainda na boca ... céu azul cobalto árvores lilases e amarelas sombras retalhadas no calçamento espinhos pétalas papéis brancos voam arco-íris ao alcance da mão

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Tirar meus olhos de mim. ... Ancoradouro para o corpo. O outro. ... A faca do olhar enferrujado do outro me atravessa. Eu me repito em cenas. ... Eu amo aquilo que o outro ĂŠ e nĂŁo sabe.

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A geometria obtusa da cidade. Edifícios sobrepostos enquadrados pela lente objetiva que aproxima. Que traz tudo para a superfície. Que acomoda o olhar ao bidimensional. ... O pôr-do-sol refletido nos vidros dos óculos escuros. Ríamos, falávamos, bebíamos bebidas coloridas, brisa, maresia. A felicidade à espreita. ... Às 3 horas da madrugada eu acordei. A milhares de quilômetros de onde tinha me deitado. Do vidro / escotilha, fios de alta tensão riscavam a luz cor de cobre – da iluminação da rua / das constelações / das galáxias – refletida no céu. Às 3 horas da madrugada eu era a única testemunha de mim.

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(Pesadelo: o vampiro) Depois da música explodindo os tímpanos. Na hora lodosa da morte. Relâmpagos. Semáforos cravando o breu de amarelo / amarelo / amarelo. Pelos desvãos das marquises. Olha em infravermelho. Sob a luz de acetileno. Em desprezo e ânsia: Carne, sangue e ossos humanos pulsantes. O travesti bêbado. O garoto encostado no parapeito. O mendigo embrulhado no cobertor. Cães. Ratazanas do bueiro. Em desespero e terror: Morcegos rasgados ao meio pela lâmina dos gritos. Sob a camada impermeável do escuro. Depois silêncio. O corpo nos braços. A mão direita sobre o ventre. Sangue, suor gelado, sereno. Boca. Língua. Hálito roxo. Em morte: 11 horas da manhã. Sob o sol, a força maligna fenece. A claridade do dia contorna os limites da sombra.

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(Pesadelo: licantropo) Costas e flancos clareados pela lua. O inconfessável. Uivo. Estalido. Corujas esvoaçam entre os galhos. Silêncio. Espreita a presa. Dentes e garras e fome e sede e ódio afiados. Sangue na laje gelada coagulado pela noite. Lavado pelo orvalho.

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A véspera: Vento e frio na motocicleta. Paisagem pontilhada de luzes. Estrelas de purpurina atravessavam as nuvens. Éguas galopavam nos espaços entre os edifícios. Relâmpagos na linha do horizonte. Discos voadores rodopiavam no céu. ... O filologista: A aranha tece nas flores murchas sobre a mesa. Mariposas queimadas nas arandelas. Trompete e piano misturados ao barulho da rua, vindo da janela. Veludo sonolento do escuro. Continuamos vivos. ... O fim: Abre os olhos. Levanta-se. Caminha até os cigarros. Barulhos de máquina velha. Espera o sono, envolto na nuvem de serpentes.

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M


A dos olhos de gelo. Dos laços de fita. Dos cabelos soltos. Das asas pequenas. Dos artifícios. A dos cílios postiços. Do esmalte nas unhas. Dos dentes arreganhados. Da longa língua em lambadas. Do grande nariz de máscara. ... Borboleta de nanquim e vidro no vermelho dos meus veludos. Olhos de vidro. Pálpebras de aço.

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Que árvores frondosas brotem em torno. Que cresça o mato. Que o mar engula. Que desabem os dilúvios. Que chova fogo e meteoros. ... Casulos. Ossos. Alabastro. Granito. Magma. ... Como esculpir a sensação. ... Paraísos inominados.

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O sol atravessa a cúpula e cintila nas gotas d’água entre as folhagens. A espessura da umidade engole os sons. Cabeleiras verde-escuras ondulam na correnteza. Insetos carregados de ovos emergem. Basta um ofegar mais forte e mariposas brotam no ar. ... A serpente líquida alimenta-se dos barrancos. ... Pedras escorregadias afiam-se na carne. ... Eu me queria cachoeira. Entrelaçada às pedras. Lançando espasmos esparsos. Tocada pelos galhos das margens. ... Estarei irreconhecível. Como o rio o será ao desembocar no oceano.

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O dia: Manhã ensolarada de batismo. Translúcida como um grito de criança se prolongando no ar. Transeuntes banhados de claridade. Na plenitude do dia. A luz aquece o ar. Abole a dúvida e o medo. ... Fachos do dia atravessam as frestas da persiana e iluminam a poeira em suspensão. Os sons vindos da rua, filtrados pelo vidro. Ouço e assisto.

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Dos sentidos: o resfolegar dos vivos e os suspiros dos mortos. ... As palavras ocas. A cinza dos pretéritos espalhada pelo vento. ... Fragmentos de memória talvez ainda viva e pulsante. Soterrados pelos invólucros mortos da própria memória. ... Velas ardem ao pé da parede. Até se desfazerem. Ou desfazerem a noite. ... O fogo-fátuo das ideias. Haverá mesmo alma?

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Dupla intenção: Varrer as teias de aranha das vigas das convicções. Lavar as paredes da alma. Mudar os móveis de lugar. Enxergar o inusitado das nuvens, dos cacos de porcelana pintada, da pelagem dos bichos e das asas dos insetos.

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Lição do triângulo: Ruem os pilares que sustentam as abóbadas dos meus dentros. Rugem o mar, a besta tricórnea, a tempestade de granizo. As telhas se despregam do madeirame. Desmoronam as muralhas dos castelos. Assomam fúrias. Titãs. Tempestades. Arranca-se o gozo das entranhas. ... Estou dividida ao meio. Tu também. A metade que prevalece em mim é oposta à tua. Minha metade lança tentáculos em todas as direções. A tua se desvia deles. Minha metade te engole. A tua me vomita. ... Travamos um combate interminável. Solidão de meus mesmos.

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Flor vermelha mergulhada em vinho. ... O próximo passo na direção do irrevogável. ... Recolher o próprio desespero. ... Quadrilátero. Cadeira no deserto. Cavalo cego. ... Às 5 horas da manhã, cheirando a sono e sonhos azedos, penteia os cabelos. Às 9 horas, ainda coberta pelos resquícios da noite, mergulha inteira na claridade das cores das coisas, protegida por óculos escuros. Às 11 horas, chora ao cortar cebolas e tomates. À tarde, diante do espelho, se pinta para o jantar enquanto celebra a proximidade do escuro.

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Pausa. Nas horas intermináveis de vigília. No calor do quarto. No intervalo entre uma gota e outra pingando no tubo de soro. Enquanto o câncer implacável corroía por dentro. Como um sonâmbulo. Frases impregnadas de agonia e morte. Descida ao Hades? Sobreposição vertiginosa de música, imagens, palavras e cores. Simultaneidade. O texto se expande. Na proporção em que as células se multiplicam e a devoram. De dentro para fora. Pausa. Escrevo aquilo que nunca foi nosso. Pausa.

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(Os pelos de escova da crina do bicho. As garras do bicho a lanhar o corpo. Ela espera. No antro do bicho. ... Fogo. Morte. Cavalo impossível a galopar. Crina arreganhada ao vento. ... A mão afrouxa a resistência dos músculos. A boca derrama saliva ácida na pele. Os cascos arrancam pedaços de carne).

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Enxerga com grande esforço. Como os peixes das águas profundas e das cavernas. Com o sonar dos morcegos. Com olhos de raio-x. O tênue do cristal do copo. A luz vacilante da vela no outro cômodo. A rosa murcha sobre a penteadeira. O peixe na redoma de mercúrio líquido. ... Quando surge, a música dessintoniza. ZN. ... Luz cor-de-carne irradiada do corpo. O morno de dentro. ... Caco de vidro na carne, até o osso. Esguicho de sangue pela cozinha. ... Clima de pré-catástrofe suspenso.

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B

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Essência trina: O espaço que envolve o indivíduo (e o encerra) é sempre em relação direta com aquele que o ocupa. A luz o delimita, centelha; o ar o preenche corporalmente, sopro; a imagem o reveste, signo.

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A sala: Chão de tacos velhos / colchão azul-marinho sobre tapete de sisal, à direita de quem entra / almofadas amarelas empilhadas / 2 peles de carneiro vermelhas ladeando o colchão e sobre o tapete de sisal/ cinzeiro cheio / revistas empilhadas. Parede A: porta de entrada / 3 pilares cilíndricos de concreto, alinhados, com 40 cm de altura, junto da parede / livros e revistas nos intervalos entre os pilares. Parede B: colchão azul escuro / penas de pavão em vaso longo no ângulo de junção entre as paredes A e B /potes de cerâmica ordenados por tamanho decrescente sobre uma caixa de madeira branca no ângulo entre as paredes B e C / 2 cocares indígenas de penas azuis, vermelhas e amarelas dependurados a uma altura de cerca de 1 metro do chão, acima do colchão azul escuro. Parede C: parede na metade da extensão da largura da sala / 2 pinturas abstratas alinhadas pela altura do pote mais alto no ângulo B – C / painel-cortina de algodão, contíguo à parede, separando a sala dos demais cômodos / rede vermelha dependurada defronte aos painéis acortinados, entre a extremidade da parede C e a parede D. 32


Parede D: Ausência de janela. Eu encostado. Do teto, em tom mais claro, 2 lâmpadas de 60W cobertas por globo de vidro leitoso.

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Fotografo no quase-escuro o contorno granulado das coisas da casa. Das quais me desfarei qualquer hora dessas. No primeiro plano, o par de vasos de porcelana preta. O tapete com motivos andinos. O globo espelhado. As orquídeas do último encontro anônimo. ... Longe, automóveis em alta velocidade riscam a escuridão em vermelho e mercúrio.

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A mĂşsica acaba. Eu me levanto sem acender a luz. Eu me aproximo. O escuro e meu corpo iluminados pela fosforescĂŞncia azul dos olhos dela. Da melancolia gorda e rosada que me espreita no lusco-fusco.

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Tarde: A chuva / o sangue da tarde escorrem na pele de granito dos faunos, das musas evanescentes / dançantes, do Hermes dos pés alados, na alameda de ciprestes. Motocicletas estacionadas no asfalto próximo. ... Noite: Pensamentos evolam no vapor do vinho. Borbulham no molho agridoce. Entre pimentões e pedaços de carne de porco na fritura. À guisa dos brotos de bambu.

... Talhar os flancos do peixe ainda vivo. Mergulhar em óleo fervente. Peixe nadando nos líquidos enzimáticos do estômago.

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Representações. Falácias. No espólio das incompreensões. ... Aconteceu. Sem palavras que esvaziassem o acontecimento. Nada mais. ... Tudo. ... As palavras banalizam os momentos. Os momentos são indescritíveis. Inenarráveis. Incontroláveis. ... A emoção estética engabela. ... Filosofia de pórticos. A criação continua.

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I still have my hands I still have my mind I still have my money I still have my telephone Hello, hellooo, hellooooo I still have my memory I still have my gold ring Beautiful, I love it, I love it! I still have my allergies I still have my philosophy (Meredith Monk, The tale)

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DiĂĄlogo de mim comigo mesmo. MĂĄrmore. Lava. Lavagem. ... Especular entre um poro e outro na pele das coisas. ... Talvez vestir cores nos pensamentos. ... O que disse por Ăşltimo tem gosto de mentira. Saboreia.

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Usar as palavras com a precisão do braço do atirador de facas. ... Tudo se esfarela. Palavras modeladas em açúcar de confeiteiro. ... Flechar a caça no escuro.

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Sísifo: Percorre uma espiral cônica interminável. Quando chega ao topo, cai no fosso que o leva novamente à base. Prende a respiração na queda. E recomeça a subir.

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Extraio cada รกtomo da imagem que pode vir a ser o outro. O vazio. O mundo nos ombros. ... A lua cheia me guia na noite azul petrรณleo pontilhada de raspas de estrelas. ... Construo o outro a partir do meu olho.

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Jogo: Lances vazios. Recolha palavras preenchidas. Modele as palavras preenchidas em novas formas vazias. Assim por diante. Eu: Duas mulheres sorriem da janela, e um vidro transparente nos separa. A imagem delas atravessa o vidro e ao mesmo tempo me reflete. O outro: A mulher velha e a do riso oco da maternidade. Elas estão mais em ti do que tu nelas. Deserto, homem, mulher, música, vento. Desde o princípio. Até o fim.

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Precisamos esgotar o diรกlogo.

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H


antes de nos dispersarmos nas direções dos pontos cardeais, para originar as nações, os povos da noite e das grutas, os plantadores de cânhamo, os navegadores ruivos, os devoradores de carne humana, ventres prenhes, terra a ser cultivada, cidades a serem construídas, represas, túneis, pontes sobre corredeiras, redes de comunicação submarinas, aparelhos de guerra e destruição, bolsas de valores, projeções, reflexos, e nós há anos-luz daquilo, flor de pedra arrancada, fogo, farpa, espinho dos séculos, cristal, dor, o princípio, âmago, areia, sob as ondas, no mais turvo de nós mesmos, e

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O outro é eu e eu sou o outro. Eu broto na vegetação rasteira. O outro floresce na ramagem. Nós: frutos maduros prestes a arrebentarem. ... O princípio. Desde o princípio. Término. ... Toca o meu corpo com teu corpo morto. Com teus gritos, pois os sons são surdos. Com luz e fogo. Com cheiro de flor e súlfur. Com a língua que me abre e deposita o outro inteiro em mim. ... Como uma discrepância, um deslocamento, uma superposição de imagens mal enquadradas, um descompasso, uma dublagem ruim, a fala sem correspondência aos movimentos labiais. Assim sou o que enxergo de mim. ... Tudo em volta brilha e me obscurece. Sou a imagem oposta ao que vem de fora no espelho. Antes que o acaso me aniquile.

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Eu me faço fosforescente, todo holofotes. Olha. O que te digo é em letras de gás néon que se acendem e apagam: Que seja simplesmente intuição na razão.

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A mulher toca violoncelo no deserto. O azul é o som do instrumento a se perder nas dunas. A música azul. ... Teia para envolver o mundo. Para me envolver ao mundo. Para capturar, quando o outro voar perto. ... Músculos-cordas estendidos ao máximo. O outro: arco. O corpo pede: toca!

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Eu, monstro-boca-garganta-dentes-devoradores; o outro, fruto-vermelho-carnoso-alaranjado. ... Beijo, mordida, polpa, pele, cuspe, lĂ­ngua, carne doce. ... Eu parado, atento, olhando. O outro alheio, sendo. ... Frutos apodrecidos no chĂŁo. Chuva. Besouros. Moscas. Mariposas. Vermes. ... Os caquis no quase-explode.

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Só. Sombra solene a olhar, da janela, a criação. ... Escuto e não entendo. Nem agora. Também não. Agora mais próximo. Mais. Quase. Pronto. Ouço até o coração pulsando. ... O outro: Eu era mais feliz com mentiras. ... Antes eu não sei. ... Ainda a despedida nas pontas dos dedos. No silêncio do espaço exterior. Para além de Saturno e seus anéis gasosos. Amanhece na metade ocidental do planeta.

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cuidávamos do fogo, fervíamos o óleo, conversávamos sobre aleitamento, sangramento, fertilidade, até os homens voltarem, guerreiros de barba e cabelos enlameados, a distribuírem a caça, a pesca, a beberem o vinho, a se apoderarem dos mitos, a fecundarem as fêmeas, e o leite, o mênstruo, os óvulos, a lua, os meus despojos, as minhas oferendas? eu, sem barriga parideira, sêmen, peito a amamentar, escalpo no embornal, zero, inútil, único, nulo, intersecção, contato, canal, fonte, verbo, imagem, tão longe e tão preciso e tão essencial quanto aquilo tudo.

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Eu me lanço impreciso ao outro. Tateio. Prossigo. Hesito. Vou. Paro. Interditado. Imobilizado. Volto. ... O agora é difuso. ... Como em um fado: A mão direita a trucidar. A esquerda, a redimir. ... Cavalo no campo de girassóis. O escrito aquém da verdade. Amorosamente.

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Olhos cegos. Ouvidos obstruídos. Tudo está envolto em hipersensibilidade. Insetos pululam. Amebas e protozoários nos pântanos. Anfíbios e répteis nas profundezas. No céu o sobrevoo dos pterodátilos. Vulcões no horizonte. O primeiro homem antes do amanhecer no jardim do éden. ... Procuro nas entrelinhas. Sinuosidades. Vertigem. Abismo. Queda. ... Palavras-armadilhas cobrem o fosso com estacas fincadas no fundo. ... Manada, multidão, rebanho-um. ... O outro me cria. Eu destruo. O outro é luz. Eu, escuridão. O outro morre e me renasce. Moto-perpétuo.

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Aquele que não tem pele. Aquele das bolhas de sangue, das supurações, das secreções que escorrem pelas escadarias do prédio, até a rua, e que contamina, de si, a cidade inteira. Aquele das madrugadas insones. ... Livros e restos de comida no porão. Baratas nos cantos do quarto. O menino mudo. O menino morto. ... Espero. Espero. Espero. Espero. Espero. Espero. Espero.

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A dissonância arranha o ouvido. O mais agudo do violoncelo e o som gravíssimo do órgão. ... A antepenúltima coisa a dizer é batiscafo. O som da palavra chega com vento de deserto. ... A penúltima coisa é: isto é uma sinfonia; escuta: ... Luz branca. Zumbido ininterrupto em si-bemol. ... 3 metros cúbicos de matéria sustentada por fios de aço, ao mundo, ao real. Corpo. 3 metros cúbicos de existência dentro do nada. ... Fora, o fogo dos vulcões do inferno. Dentro, vácuo, neutro, o nada do purgatório. O paraíso não existe. ... A envergadura das asas. O arco do voo. Subida e queda. ...

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A deusa-deus vagueia. Sonâmbulo-sonâmbula. Nunca-agora. O nome, eco, abismos. Tremor. Trovão. Treva. ... Retorno ao começo.

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B 9 poemas petulantes


I minha boca na tua sol cravando dentes vadios na pele invisĂ­vel do dia

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II o olhar fortuito que te deito ĂŠ sombra de miragem fogo de martĂ­rio espuma de miasma poeira de arquivo

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III a deusa pousou em mim olhar de pedra porĂŠm eu me fiei na tua imagem e degelou-se o pĂŠtreo do olhar da deusa

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IV verte silĂŞncio nos oĂĄsis dos clamores

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V sobrou o fogo da tua voz o fio do teu sorriso o espinho do teu olhar e pus das minhas feridas

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VI a linha fina que te traça impressa a fundo na pele imaginada aderida à minha quadril e coxas e jorros impudentes

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VII a aurora rompe o tecido da noite na torre ressona a princesa nua que o cavaleiro vela a princesa nĂŁo sabe os rumos que o destino costura nem o cavaleiro a morte nos lĂĄbios dela

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VIII dedos รกgeis aracne trama a malha dos dias em sangue e amarelo

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IX a aranha tece a lua olha a tecedura emaranhada da aranha entre rabiscos de galho branca brilha longe lâmpada fluorescente anoitece

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impressões de tarde clara em são luís (ode assimétrica)



tempo acumulado nas dobras sรณrdidas do corpo, linguagem Ferreira Gullar



1 Cal viva recobre o reboco das paredes do poema. As fundações, os versos-vigas, as pilastras, os contrafortes envergados que o constroem não se sustentam e poderão ruir a qualquer momento. Ruínas arranhando a paisagem. Os escombros do poema devem ser interditados. As palavras resvalam na matéria grumosa que foi ou poderá ser um dia um poema. O poema é um esboço. Projeto que nunca virá a ser.

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2 Da cidade-ilha, entre o céu e a água, hoje nada ou quase nada existe. A cidade-ilha emerge da memória em círculos largos e lentos. Como a vista aérea fotografada da janela de um avião, em outro tempo, em outro poema. A cidade-ilha singra o mar desbotado das épocas. Navega acima do que os olhos podem ver.

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3 A cidade-ilha navega nas sacolas das donas-de-casa voltando da feira a tempo de preparar o almoço. Nas roupas a secar dependuradas nos varais. No pátio que uma velha varre, sob o jirau, o quaradouro, onde brotou a flor amarela. Navega no mato e no lixo acumulado que se espalha no fundo dos quintais. Nos galinheiros onde as galinhas se espojam na terra e o galo rufla as asas sobre o monturo. Nas ratazanas à espreita. Navega nos beirais das venezianas onde o gato dorme. Nos festões e nas cornijas, nos padrões de azulejos corroídos pela maresia dos séculos. Nas fachadas dos casarões devastados pela horda de flagelados. Navega nas ruínas dos muros banguelas, cobertos de musgo e reclames. Nos frutos e nas folhas apodrecidos sob os mangueirais. No sono dos garis sob as jaqueiras. Navega no terno empapado de suor, no colarinho encardido, no vento que desfolha a bíblia debaixo do braço do pastor, que espera o ônibus sob a nesga de sombra entre um portal e outro, domingo, às duas horas da tarde. 75


Navega entre os camelôs interrompendo o fluxo dos pedestres no calçamento da Rua Grande, esteira estreita onde os rostos se perdem. Onde se anda e anda e anda sem se chegar a lugar nenhum. Navega no ar noturno perfumado pelos jasmineiros. No vômito dos mendigos bêbados escornados nas soleiras. No suor e no esperma dos turistas, das prostitutas, dos travestis, dos marinheiros fodendo nos becos e nos vãos escuros. A cidade-ilha navega acima do que os olhos podem ver.

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4 O poema serve para resgatar fragmentos de paisagens, em fotogramas amarelados de um filme antigo, em super-8, projetado na parede do alpendre, na noite de verão perdida no rascunho da memória: bicicletas dos operários acorrentadas na grade enferrujada carroceiros entre os automóveis na avenida mocinhas magras, de saias curtas, saídas da escola, que riem para a câmera cariátides nas cornijas, asas de pedra dos anjos tumulares vitrais da catedral lavando em fel as pústulas dos santos fiéis ajoelhados, à espera da ressurreição, no juízo final bilhas de água encostadas nas pedras da Fonte do Ribeirão trouxa de roupa sobre a cabeça da lavadeira riso, peitos, olhos, bunda grande da preta do beiju de tapioca varejeiras pousadas no chorume da carne ao sol olhos esgazeados do porco preto morto, estendido no balcão de azulejos brancos do açougue, no Mercado Velho

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peixes boiando entre os catamarãs ancorados no cais canhões do forte da Ponta d’Areia apontados para a baía, que nada defendem ou a mancha de sangue preto contornando a carcaça do cavalo branco atropelado à margem do asfalto preto, na estrada quase deserta (hoje avenida larga) por onde se chegava ao Calhau. As palavras, as imagens rápidas e tremidas e desfocadas que constroem o poema somente não resgatam o inevitável.

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5 Nós nos hospedamos no quarto do hotel com camas king-size, banheira de hidromassagem, frigobar, ar condicionado, vista para o mar, e uma flor amarela no jarro de louça sobre a mesa. Enquanto desfazíamos as malas, engraxávamos os sapatos, penteávamos os cabelos, revíamos as fotografias nos aparelhos celulares ou (anacronicamente) sobrescrevíamos postais aos amigos, primos ou pais distantes –, eu contava a passagem das horas na tarde em banho-maria. Para depois, durante décadas, reescrever o poema. Inconclusa, insuficiente e indefinidamente.

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6 Os ladrilhos do banheiro eram vermelhos. As paredes eram amarelas e encardidas. O basculante estava emperrado, por camadas de tinta sobrepostas. A água do chuveiro era pouca e quente demais. Subia do ralo um cheiro de esgoto. Foi onde estivemos mais próximos. A ponto de nos tocarmos. as omoplatas, as coxas, as nádegas, a boca, o pelo, o dorso, a obscenidade do sexo (flama, archote, tocha) os olhos azuis-verdes os olhos azuis-verdes os olhos azuis-verdes corroídos pelos vermes do tempo que engole tudo Sobre isso nada será escrito.

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7 Esquecido sobre uma estante, em um casarão do Centro Histórico (hoje museu, arquivo público ou biblioteca), um busto do jovem Schiller (lânguido, irônico, anômalo) esculpido em madeira, provavelmente no século XIX, me observa. Ele analisa. Julga. Quase sorri. E nada diz.

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8 Descerão dos altares os anjos folheados de ouropel. Os beatos padroeiros dos tabernáculos. Os mártires leprosos ou epiléticos. Os aleijados possessos. Os profetas, os apóstolos ressuscitados. As virgens estuporadas. Os nascituros ungidos. As prostitutas de coração sangrando.

Virão a cavalo as famílias dos voduns do Querebentan. As velhas Tobossi das Minas. O séquito das ciganas e das princesas do Oriente. Virão do sertão os boiadeiros e os capangueiros. Do mato, os caboclos de pena e as iaras das cachoeiras. Do mar, as sereias, os marujos, os marinheiros. Os zés-pelintras e as falanges de exus e pombas-gira da casa de Fanti-Ashanti. Montarão centauros, a Górgona e as Erínias. Dançarão os sátiros de pés bifurcados, as bacantes coroadas de pevides, arrastando filhos mortos pelos cabelos. Rebentarão furacões da placidez centrípeta dos dervixes e das danças circulares dos druidas. Prorromperão pelos quadrantes as valquírias de capacetes alados, montadas em mamutes e vacas sagradas. 82


Espalharão pelos ares os flagelos dos xamãs das estepes. Descerá o harém das mil huris, das viragos e das feiticeiras. Se moverão os treze budas das mandalas. Virão a horda dos asmodeus, dos baais e dos beliais. Os íncubos e os súcubos, os vampiros bebedores de sangue, os licantropos, a multidão de mortos-vivos. Para esmagar as cabeças dos corrompidos com pés e cascos sacros. Para lanhar as carnes dos covardes com cilícios e azorragues e látegos de couro cru. Para rasgar os ventres dos omissos com cimitarras incandescentes. Para empalar os medíocres com chuços de ferro em brasa. Para flechar os fígados, os baços ou os flancos dos degenerados com setas envenenadas. Para nos contaminar as carnes, nos petrificar de medo e depois nos devorar. Para nos empurrar no abismo. Para nos julgar e condenar por todos os males e culpas. Para nos reduzir à escória, poeira, cinza, a nada.

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9 incoerdentremente coisa nebrácea brota das profundezas ignívomas em clambores trovões vins clarividentes o negronegro da coisa prancta e sagã

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10 Prótons e nêutrons do átomo original atraíam-se, desintegravam-se e combinavam-se no movimento caótico da grande explosão. Nuvens de poeira radioativa carregadas de hidrogênio e gases nobres se formaram. A matéria expandiu-se sobre a antimatéria estrelas, galáxias, nebulosas, universos sobrepostos uma fagulha elétrica, um relâmpago nas dunas do Calhau (um fio em um poste torto da iluminação pública) faiscava (em curto-circuito) sobre a poça d’água salobra raios elétricos tecidos na cabeleira de [z]deus Gás carbônico, amônia, nitrogênio, metano e oxigênio, nos vapores da atmosfera reagiram com os minerais do solo, originando as cadeias helicoidais do caldo primordial

no mar fecundado eucariontes amebas protozoa plâncton

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moneras trilobites anêmonas polvos enguias arraias batráquios anfíbios cetáceos mamíferos nós devorados pela paisagem das dunas encerrados em imaturidade em intenções de gestos e palavras abortadas (mar de soda cáustica, sabão em pó, inseticida, cacos de vidro, atiro-me bêbado espumejando palavras vãs) tentando resgatar a s imagens as palavras para construir o poema no quarto do hotel na cidade-ilha acima do que os olhos podem ver.

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11 entre intra entranha falovulva (grelo gema ventre ninho) mar interior adentro abrem-se cavernas de muco e carne nacaradas obscuros vaus peludos galĂĄxias viscosas explodidas pelos orifĂ­cios derramadas nas coxas nos olhos noturnos

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verdes cĂĄlcidos vĂ­treos os olhos verdes em minha boca

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12 Depois da grande explosão. Depois das galáxias, nebulosas, sistemas planetários. Depois da noite sem lua, estrelas cadentes, chuva de meteoros no céu. Depois do primeiro amanhecer sobre os nossos corpos estendidos na areia. Depois da lombra da djamba, do reggae distorcido nas caixas de som, do gosto de caranguejo e das últimas cervejas bebidas sobre as tábuas que serviam de mesa, pregos enferrujados, na barraca mais distante da praia. Depois do vento entre as pedras até a noite quase a nos engolir no mar poluído do Calhau. Havia silêncio pejado de culpa. Miasma de carne apodrecida. Nossos olhares se esbarravam, refletidos pelos vidros, na luz amarelada do interior do ônibus em alta velocidade. O universo era garrafas vazias, sacos plásticos, lixo queimando, ciclistas, mesa de bilhar passando rápido, diluídos pelo escuro, pela janela embaçada do ônibus. Não enxergamos a carcaça branca do cavalo atropelado, na escuridão das margens da rodovia. 89


... Sozinho, tomando uísque com água-de-coco à beira da piscina do jardim do hotel, em outro tempo, em outra dimensão, em outra praia extensa, branca e deserta, em outro amanhecer, reescrevo a luz cor-de-cobre da aurora do primeiro dia refletida nos olhos dele. Sobre a minha mão na mão dele. Sobre os nossos corpos. Para nunca mais.

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13 Donana Jansen era comerciante, amante e senhora de barcos, paixões e ouro na São Luís do século XIX. Mandava mais que o bispo e o presidente da província. Era respeitada até pelo Imperador. não devia ser fácil ser mulher naquela época O maior prazer da atroz Donana Jansen era açoitar até a quase morte os escravos. Depois os empalava. Ou os queimava, ainda vivos. A alma de Donana Jansen foi condenada a vagar pelas madrugadas, em um coche negro puxado por uma parelha de mulas sem cabeça, e seguido por um cortejo de escravos estropiados. Ao chegar na Rua Grande, o coche estaca. Donana Jansen desce. Distribui velas acesas aos incautos que vagam pela rua àquelas horas. Velas que se transformam em ossos de defuntos. Enquanto nós ressonamos nas camas macias, sob os lençóis brancos do quarto do hotel, tão próximos do fantasma de Donana Jansen. 91


... Sob a luz fraca, em uma espreguiçadeira à beira da piscina, o poeta insone lê: o folheto turístico encontrado na gaveta do criado-mudo, onde também havia uma bíblia de capa plástica cinza, um catálogo telefônico com cheiro de naftalina e, ao fundo, talvez, ovos de barata ressecados, e escreve o poema.

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14 vendo uma crioula de roça, parida e três mulatinhas para o serviço de casa muito bem aparentadas e com todos os dentes da boca com todos os dentes da boca com todos os dentes da boca mastigo

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15 Será que a saudade – essa mulher viperina – me contagiou com o olhar? Ou foi a galinha pedrês do quintal da casa da avó que botou um ovo de duas gemas?

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16 Sublime terra de belezas pétreas Pútridas, frágeis, rotas, terra excelsa! Versos decassílabos regulares deveriam compor o décimo sexto canto. Atitude e vigor dos verbos, substantivos sólidos, superfície volátil dos adjetivos e dos advérbios. Derivações, sempre em ordem inversa. Ênclises, próclises, anacolutos. O décimo sexto canto deveria ser exultante. Enaltecer e exaltar o folclore, as belezas naturais e arquitetônicas, o patrimônio histórico e cultural, as riquezas materiais e imateriais depauperadas da capital maranhense, a Atenas brasileira, Cidade dos Azulejos, Ilha do Amor. O décimo sexto canto deveria ser composto em linotipos de chumbo. Ser impresso em papel áspero, grosseiro e quebradiço. Mal diagramado, pontuado de gralhas, borrões, viúvas, paginação desencontrada, cadernos colados e costuras se desfazendo. Por que o décimo sexto canto foi escrito para adormecer definitivamente os fantasmas que habitam os vãos. Os fantasmas que vagam pelas avenidas, pelos conjuntos habitacionais do poema-cidade. 95


Por que o décimo sexto canto foi escrito para celebrar o esquecimento a ausência o desprezo a morte. O décimo sexto canto não serve para nada. Não deveria existir. Nem ter sido lido. Ou sequer escrito.

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17 A flor negra e rosada da morte ronda. Espero. Desespero do corpo ao se flagrar ausente de si. Pasto de vermes. Adubo. Houve um tempo que nós quase nos entregamos. Qual românticos tuberculosos, banhistas afogados estendidos na areia, amantes flagrados no leito de adultério, apunhalados no último ato, heróis agonizantes da tragédia: Flor indelével, Ah, flor do mal! Flor negra e rosada da morte, flor de carne e ossos negros apodrecendo no mangue cotidiano, flor medíocre que cresce e se multiplica, carregada de sentidos surreais. Flor-pústula repetida no canto da boca ou dissimulada entre os pelos da virilha. (O beijo, amigo, é a véspera do escarro).

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Flor-borrão, de pétalas i mpessoais desfocadas desconexas ocas esvaziadas Flor que entope os ouvidos e entorpece a língua e anuvia os olhos e paralisa as mãos e amolece a carne e consome tudo e contamina o vivido – ­­ areia vento mar cerração noite estrelas discos voadores.

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18 Da rede, na sala, eu ouvia, misturado com a música, o som chiado da eletrostática do rádio mal sintonizado, vindo da cozinha de paredes amarelas e ladrilhos vermelhos, onde a Mirtes preparava o almoço. A música que a Mirtes ouvia falava de telhados, coqueiros e mar. Da rede da sala, na casa do Caminho da Boiada, eu via, também, enquadradas pela janela, andorinhas pousadas nos fios, contra o céu azul sem nuvens. Fora do alcance do olhar, mais abaixo, na rua, o avô subia, devagar, a ladeira, degrau por degrau. A boca murcha, branca e seca do avô. A cada passo, o avô levava a mão ao peito. Ofegava ao bater à porta. Misturado ao barulho da rua, ao sono e à música do rádio, um sino badalou às 11 horas. Os transeuntes continuavam a passar. 99


O tempo passou. A música do rádio da Mirtes acabou. As andorinhas voaram. E o avô deve ter morrido, faz tempo.

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19 O poeta velho dorme a sesta na rede. O poeta velho ronca. Os cabelos do poeta velho estão empapados de suor e lhe escondem o rosto. Quase nada mais caberá no sonho do poeta velho durante a sesta.

Não caberão as verminoses dos meninos barrigudos, as dentaduras das velhas, as hemorragias das putas raquíticas, a aids dos michês, a peroração do pastor, o transe do cavalo do vodum, o sobrevoo dos helicópteros da Alcoa, os vendedores de djamba no mangue, a mancha do sangue do cavalo atropelado na beira da rodovia. O sonho do poeta velho são formas douradas, nacaradas e cor-de-rosa flutuando na superfície do mar azul-verde, ou encalhadas no banco de areia quase branca, faiscando ao pôr ou ao nascer do sol. O sonho do poeta velho foi interrompido pela sirene da escola. Pela campainha do telefone sobre o aparador. Pelo trinado do aparelho celular. Pelas palmas à porta. Pela buzina, na rua, para o carro mal estacionado. Pelo anúncio do candidato a vereador, a todo volume, nos autofalantes do carro de som. 101


Ao acordar, o poeta velho não se lembrará do sonhado. O poeta velho não sonhará mais. A esperança intrínseca do poema estará, para sempre, esquecida na varanda da casa do poeta velho, à margem da modorra da tarde.

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20 Em Brasília, anoitece. As plantas do jardim foram regadas. As luzes da casa foram acesas. As janelas foram fechadas por causa dos insetos. O arco contínuo do esquecimento projetado, a romper as épocas, sem resvalar ou ferir de raspão o presente. Ah!, o arrebatamento... (tempo em que a tristeza se aderia a tudo, e se estendia, e contaminava os dias futuros) Risco. Apago. Rasgo. Agora, do lado de fora, o tempo e os morcegos esvoaçam no pé de jambo. O som abafado dos frutos maduros que se esborracham no escuro. O vento zune sobre a carcaça branca do cavalo e espalha o cheiro de carniça por entre as pedras pretas do Calhau. No resguardo das esquadrias, do concreto e dos vidros que emolduram a noite na casa 103


(há quase 2 mil quilômetros de distância da cidade-ilha) navego acima do que os olhos podem ver e concluo aquilo que nunca será um poema. Definitivamente.

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hebdomadรกrio

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Desde as últimas horas do sábado, espero o domingo acontecer. Minutos após a meia-noite, arrasto do sótão o baú das fantasias e me visto de palhaço, de deus ou de odalisca, dependendo da posição dos astros ou de meu estado de humor. Disfarçado, percorro a rua distribuindo confetes, purpurina e milagres pelas caixas de correio, antes que a vizinhança acorde. Eu me afasto quando os cães ladram por detrás das grades ou quando o gato grande e branco surge, de repente, equilibrando-se sobre o muro. Espero o galo cantar três vezes para me recolher e dormir até o sol raiar. Quando acordo, o sol já alto, passou da hora da missa. Penso em ligar a televisão ou aspirar o pó dos tapetes. Abro e fecho o livro de cabeceira, levanto-me para urinar e volto a dormir. Confirmando o previsível e, completados os seis dias da criação, dedico o sétimo ao descanso. Fico no quarto, entre a cama e a poltrona, sob as cobertas quando faz frio, ou pelado, coberto com a colcha de chenile no verão, olhando pela janela as lagartixas riscando rápidas o áspero do muro, os faisões e os pavões de mil olhos ciscando a grama, o revoo dos abutres no céu sem nuvens, ouvindo o grasnado dos gansos no viveiro. Sentindo esvairem-se entre os dedos as gotas cada vez mais escassas da gosma espessa da existência. Até o anoitecer e até vir a próxima segunda-feira. 107


Segunda-feira eu guardo as fantasias, despejo naftalina nos baús e os carrego de volta para o sótão. Depois do desjejum, leio artigos sobre morte e transformação e vida alienígena inteligente; também sobre novos gêneros, novos sexos, novos parâmetros, novas orientações; sobre ética e estética contemporâneas e política do mundo antigo. Gosto de folhear imagens exóticas: animais das profundezas oceânicas, anatomia das vísceras, paisagens sublunares, retratos de homens ilustres, desenhos de orquídeas, insetos e ursos polares. Enquanto leio, ouço música de vários gêneros. Descongelo algo para o almoço, durmo quinze minutos de sesta e, quando acordo, assisto, pelo canal pago, algum filme cult ou trash que esteja fora do circuito.

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Terça-feira é dia de jardinagem. Espalho adubo orgânico aos pés das árvores frutíferas e fertilizantes químicos nos arbustos e touceiras ornamentais. Arranco ervas daninhas entre os canteiros. Podo as roseiras quando é lua nova. Pulverizo inseticida nos formigueiros, nos ralos e no armário sob a pia da cozinha. Retiro as folhas e as flores secas das angélicas. Umedeço as orquídeas com o borrifador. Replanto as bromélias e as suculentas próximas ao mandacaru, no fundo do quintal. De quinze em quinze dias, aparo a grama com o cortador elétrico. Redireciono os brotos das trepadeiras boas e arranco as espinhentas da cerca-viva, com cuidado para não atingir os ninhos escondidos nem perfurar os olhos ou as pontas dos dedos.

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Quarta-feira é dia de me atualizar na internet. Pesquiso notícias sobre a sucessão papal, a morte próxima do último caudilho, o avanço da ala conservadora nos países desenvolvidos e em desenvolvimento e o aumento das ilhas de lixo não reciclável em alto mar. Parabenizo os aniversariantes do dia nas redes sociais, divulgo shows, eventos, campanhas e, mais raramente, piadas de gosto duvidoso. Busco amigos incomunicáveis e desaparecidos desde o tempo da escola primária. Adquiro bens de consumo supérfluos via cartão de crédito. Faço download de artigos sobre morte e transformação, vida alienígena inteligente e imagens de corpos de puro desejo, luxúria e êxtase, para satisfazer a minha perversão.

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Quinta-feira é o dia de me redimir. Tomo um copo d’água em jejum e como apenas uma fruta amarela no desjejum. Troco a água açucarada dos bebedouros dos beija-flores antes de limpar as cinzas de incenso do templo dos antepassados. Lavo as contas e me banho com sal grosso e água de pétalas de rosas. Leio versículos dos livros sagrados em geral e pronuncio mantras em voz baixa. Evito carne vermelha no almoço e faço voto de silêncio até o entardecer. Assisto ao sol se pôr ou ao nascer da lua sentado em posição de lótus, meditando diante da claraboia do sótão.

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Sexta-feira eu não estou para ninguém. Não atendo telefone, não respondo mensagens, não abro a porta para o carteiro ou para o funcionário da companhia de eletricidade. Não leio o jornal nem assisto televisão. Passo o dia ocupado em aplicar rodelas de pepino nas olheiras, lixar as unhas, escovar a língua, clarear as gengivas com limão e gengibre, alisar os cabelos com ferro quente, fazer a barba, depilar as axilas e aparar o excesso de pelos do nariz e das sobrancelhas e, quando vejo, já é hora de preparar o jantar. Lavo e enxugo as folhas e as pétalas da salada, fatio e tempero a carne fria e refogo o arroz negro. Retiro da cristaleira a louça e as taças que pertenceram a vovó, e os talheres de prata comprados na Sears Roebuck. Resfrio o vinho moscatel e pingo gotas de água de rosas na jarra de água gelada. Para esperar o grande amor que ainda não veio, mas, tenho certeza, tocará a campainha qualquer hora dessas.

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Sábado eu acordo cedo. Frustrado por ontem não ter vindo o grande amor. A cabeça estourando por causa do vinho doce e dos cigarros de cravo fumados depois do jantar. Ávido para colocar a conversa em dia. Telefono para a amiga com nome de flor e para a amiga com nome de erva aromática, mas nenhuma atende àquela hora da manhã. Vou ao mercado com chapéu e óculos escuros. Preencho o carrinho com sorvete e bobagenzinhas para passar o tempo. Guardo tudo na geladeira e me espicho na espreguiçadeira da piscina do condomínio, lendo Katherine Mansfield, ouvindo música barroca pelos fones de ouvido e observando, de rabo-de-olho, a perfeição dos traços do rosto e do corpo bronzeado do limpador da piscina. Durmo em meio a pesadelos lúbricos e acordo lá pelas duas da tarde, morto de fome e com os ombros em carne viva pelo excesso de sol.

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Desde as Ăşltimas horas do sĂĄbado, espero o domingo acontecer.

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diário de férias do velho sátiro

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Dia 1 A sede de Sísifo me exaspera. A festa dos titãs prossegue na praia, manhã adentro e no oco das minhas têmporas. ... Distribuí carne fresca às harpias empoleiradas na varanda. Iscas de fígado à águia que insiste em me bicar o ventre. Só falta jogar os farelos da farra de ontem aos pombos. ... Pelo jeito, hoje não vai dar praia. Se parar de chover, eu caminharei pela areia. Levarei os fones de ouvido e os óculos escuros. Na volta, comprarei pente e espelho no quiosque para presentear a mulher de cabeleira de serpentes que vigia a entrada da minha solidão.

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Dia 2 Monólitos subaquáticos amanheceram encalhados na praia. Contorno escombros. Busco ilhas de conforto. ... Vasculho a areia. À procura de seixos corroídos pela maresia, conchas de formato excêntrico, garrafas com mensagens de náufragos, bilhetes apaixonados e, quem sabe, um pedaço de pente de ouro das sereias. Só encontro recipientes pet, sacolas plásticas, canudos coloridos enfiados em carcaças de cocos, preservativos – as amostras grátis do lixo de todas as eras. ... Garotos para todos os gostos e orçamentos disputam um lugar ao sol ou uma espreguiçadeira desocupada. Flecho o ar nas direções do desejo e da expectativa. Encubro o olhar nas franjas do chapéu e nos vidros escuros dos óculos, meus adereços do anonimato. Atinjo o inusitado. Chego a ouvir o barulho fofo da presa se esborrachando na areia.

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Dia 3 Percorro a pele do garoto-presa como se raspasse a crosta de cracas do casco, as escamas. Como se extirpasse os forcados dos tritões, os anzóis enferrujados, os arpões, os esporões fincados no flanco. ... Espio pela fenda do sono e do torpor. Ele não está ao meu lado. A quem se destinam as tantas mensagens que ele dedilha no aparelho celular? ... Ah, ele voltaria e se deitaria, se imaginasse o frio que faz a madrugada no meu lado vazio, na cama...

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Dia 4 Jantei frutos do mar. As Náiades desastradas respingaram néctar no meu bloco de anotações. Na saída, encontrei o velho Poseidon. Conversamos sobre literatura anglo-americana e música eletroacústica, dentre outros assuntos. Recomendou filmes pornôs para passar o tempo, até a tempestade dos séculos amainar. O garoto-dos-pés-bi-ungulados deixou recado. Reconsideraria a possibilidade de voltar se eu sacrificasse aos deuses. Onde encontrarei 12 touros pretos e 12 brancos imaculados a essa hora da madrugada? ... Tomo eau d’Estige com gás e arroto os límulos e cetáceos do jantar. ... Sobrevivo potencializando anti-epifanias.

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Dia 5 Espiei pelos buracos das fechaduras dos quartos vazios. Desenhei falos na porta do lavabo. Escandi ditirambos pornográficos pelos corredores, até o elevador. Visitei mictórios públicos. Apalpei vultos sob a chuva, no escuro do jardim, e voltei lambuzado para o quarto. Engoli todas as pílulas com um gole de conhaque, mas o tesão da febre não cedeu. ... Agora dei para responder em voz alta às perguntas a mim mesmo formuladas. A recitar, nu, o poema da viagem de São Brandão: então eu vi o mar se expandir / como o tempo incontável e as ondas imensuráveis / ora com as marcas de maré na areia sulcada / ora com a linha de túmulos de alga. Minha voz soa cava, como se saída do búzio de um tritão, e escorre, fria e viscosa, pelo mármore do piso.

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Dia 6 A chuva e o vento arrancam as árvores do jardim. O risco prateado dos relâmpagos no céu preto entrecorta os trovões. O rugir das ondas engole os arrecifes, destrói o calçamento, emborca os pedalinhos, desbarranca os muros das casas, derruba as pilastras dos templos, as fortificações, as muralhas. E atiça o apetite da matilha de cães de três cabeças. ... Quebrei o abajur, as garrafas de uísque e os copos. Saí para a varanda. Espalhei ao vento o papel picado das fotos e dos bilhetes para o garoto. Invoquei raios fulminantes. Gritei. Amaldiçoei. Chorei. Gargalhei. Uivei. Gemi. Tossi. Gozei. Estrebuchei, exausto, sobre os cacos de vidro no piso de granito. Os deuses zombaram dos meus chavões histriônicos e indolentes e abjetos e adiposos e frouxos e flácidos e repugnantes. ...

O vento e a chuva e o granizo revolveram o quarto. Desfolharam os livros. Encharcaram as roupas nas malas. Molharam os mapas rodoviários, o guia turístico, as revistas e os jornais velhos, a bíblia de capa cor-de-cinza na gaveta do criado-mudo. Lavaram a mancha do meu desespero que maculava o piso da varanda. 122


Dia 7 Dormi embebido em fel e súlfur. O garoto aninhou-se em meu peito antes do sonho esvanecer. Acordei de madrugada com a voz dos mortos a me chamar do outro lado da persiana. Fechei novamente os olhos e o invoquei com todas as minhas forças, em vão. Os últimos sinais de sua presença eram a foto de nós dois, picada em mil pedaços no cinzeiro, o ramalhete de jacintos murchos no copo d’água sobre a pia e a palavra θάνατος† gravada com batom vermelho no espelho. Pena eu não entender patavina de grego. ... Por falar em augúrios, assisti à revoada dos pterodátilos. Sobrevoaram as ruínas do vilarejo em círculos largos e espiralados e depois desapareceram na bruma entre os rasgos dos relâmpagos. Impossível precisar a hora: aqui a eternidade não se deixa medir.

†  Tanatos

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Dia 8 Recorto olhos das páginas das revistas. Separo os ases e os coringas, para embaralhar em seguida. Subo e desço escadas carregando rochedos. Bebo toda a vodca e arroto bilhetes nas garrafas vazias. Gozo sobre os falos e os corações flechados rabiscados na porta do banheiro. Enfio a cara no travesseiro e rogo aos deuses alcançar as graças do recepcionista de olhos cor-de-violeta. Tento dormir com as harpas da música ambiente e o sinal do telefone ocupado. ... Cochilar no leito de Procusto é fatal para quem tem pernas compridas ou curtas demais. / Ninguém deve roubar as ovelhas do Ciclope. / Pense duas vezes antes de vestir casaco tricotado por Dejanira. / Espelho meu, existe alguém mais Narciso do que eu? / Ganimedes, Jacinto e Calisto confirmaram presença na rave do monte Olimpo? / Só não convide a chata da Eco. / por mais linda que seja, não é de bom tom comparar-se com Afrodite. / Cuidado para não cair na cantada da chuva de ouro. / Abaixe os olhos ao conversar com a Górgona. / Melhor evitar a rodinha das Mênades. / Se dormir em Creta, é bom levar um novelo. Perco o sono. Aliás, a insônia, aqui, dura mais que a eternidade. 124


Dia 9 Durmo. Acordo. Durmo. Sem alguém para compartilhar o desespero do sono e amenizar o pesadelo de permanecer desperto. ... Fungos nas reentrâncias. Escoriações na pele das costas. Parasitas nos pelos púbicos. Detritos e carcinomas nos cascos. Galáxias de furúnculos no céu da boca. A alma lambuzada de pus e sangue e bile e suor e urina e lava e chumbo derretido.

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Dia 10 Veranistas retardatários tentaram partir ao amanhecer. Antes que a matilha dos cães de três cabeças os estraçalhassem. Antes que a febre os cozinhasse por dentro. Antes que as pústulas da peste negra os cobrissem. Antes que as ratazanas roessem suas orelhas. Antes que eu cuspisse neles o visgo do meu desprezo. ... Perco a conta dos dias chuvosos e a esperança do estio. Desperdiço a eternidade esperando impossibilidades. Enquanto o extraordinário não chega, eu converso, sem olhar nos olhos, com a mulher dos cabelos de serpentes. ... Fosse crível o oráculo de Cassandra, eu teria declinado as férias no Tártaro com passagem só de ida, tudo pago e sem direito a acompanhante.

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