Cidade encantada – Memórias da Vila Amaury em Brasília

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Uma cidade encantada Memórias da Vila Amaury em Brasília Ivany Câmara Neiva


Coordenação do projeto e texto Ivany Câmara Neiva Imagens Ane Molina (páginas 74 e 86) Bruna Neiva (páginas 54, 60, 80, 92) Ivany Neiva (página 12 e verso da capa) Acervo do Arquivo Público do DF Acervo do Instituto Moreira Salles Fotografia de capa (e página 10) Paulo Manhães Programação visual Gabriel Menezes Agradecimentos Agradeço aos narradores da Vila Amaury (que entraram ou não neste livro), à equipe de trabalho, ao Leo Arruda (pelas fotos e pelo contato com D. Eunice), à Ana (pelo apoio e pelas conversas sobre Transmídia), ao pessoal do Fundo de Apoio à Cultura. Apoio Fundo de Apoio à Cultura – FAC

N417u Neiva, Ivany Câmara Uma cidade encantada: memórias da Vila Amaury, em Brasília / Ivany Câmara Neiva.- Brasília : Ed. da Autora, 2017. 112 p.: il. ISBN: 978-85- 912614-1-3 1. Vila Amaury. 2. Brasília. 3. águas. 4. Lago Paranoá. 5. narradores. I. Título. CDU 981.74


Uma cidade encantada Memórias da Vila Amaury em Brasília Ivany Câmara Neiva

Edição da Autora Brasília 2017



Sumário

17 19 27 33

Narradores da “cidade encantada” A Vila Amaury O Lago Paranoá As águas do Lago chegaram: narradores da Vila Amaury

55 61 71 75 81 87 93

Narradores Argemiro Gomes de Andrade Junior (Andrade Junior) Eunice Pereira dos Santos Joselina dos Santos Lima (Dona Di) Espedito Ferreira da Silva (Pernambuco) Antônio Alves de Souza (Toninho de Souza) Elizabeth Fernandes Nunes Amélia Andrade Albuquerque

101 Bibliografia e referências 105 Notas 109 Texto de Maria Osanette de Medeiros



“A água é só superfície? Debaixo da superfície é água também?” Em julho de 2016, o professor Hilan Bensusan contava, na banca de Mestrado de Gabriel Menezes, que essa era uma questão que o ocupava desde os tempos de infância. Ainda na banca, falava-se sobre mergulhos, sobre ilhas, sobre retiros... Mergulhando no Lago Paranoá podem ser encontrados outros mundos, além da água... Pode até se encontrar uma vila submersa – uma vila operária que existiu entre 1959 e 1960, a Vila Amaury, conhecida de muitas pessoas, e onde muitos moraram...

"[...] Apenas certos da constância da impermanência: dos ventos, das chuvas, das marés imprevistas e do sol a pino." [Yana Tamayo. Mapas errantes, pegadas na areia: notas sobre Poema 193. Exposição Poema 193, de Diego de Santos. Curadora: Iana Tamayo. Brasília: Funarte, 2017.] Acrescentamos: Apenas certos da constância da impermanência: dos ventos, das chuvas, das marés imprevistas e do sol a pino. Das águas, das vilas sob as águas.



Quarenta clics em curitiba

Velhas questões

Quem me dera

Você já percorreu

um mapa de tesouro

No meio da noite clara

que me leve a um velho baú

Uma cidade antiga?

cheio de mapas do tesouro

Já sentiu a presença Dessa ausência do que já foi?

Nomes a menos

Os habitantes antigos

[...]

Que já se foram?

Cidades passam. Só os nomes vão ficar.

Os sonhos que sonharam

Que coisa dói dentro do nome

Nos tempos perdidos?

que não tem nome que conte

Acho que tudo está

nem coisa pra se contar?

Fixado na lenta destruição Das moradas

Winterverno lá embaixo vai ter o que eu acho Paulo Leminski

Climério Ferreira






Pรกginas anteriores: Vila Amaury em 1959 (foto de Paulo Manhรฃes) e submersa pelo Lago Paranoรก, em 2010 (foto de Ivany Neiva).


Há uma vila submersa no lago artificial construído em Brasília. Ainda há vestígios da Vila Amaury no fundo do Lago Paranoá, 56 ou 57 anos depois de ela ter existido. E há antigos moradores e pessoas que frequentavam a Vila, que vivenciaram a experiência da barragem que fechou suas comportas, das águas que chegavam e cobriam as casas e tudo que estava dentro, das perdas, das mudanças de vida, das boas mudanças. Quando se olha o Lago desde o que resta do Clube da Imprensa, ou do Bay Park, ou da orla do Lago na altura do que seria prolongamento da Vila Planalto, não se vê mais que as águas do Lago. Mas, sob elas, está submersa a Vila Amaury. É uma “cidade encantada”, como pela primeira vez ouvimos da neta de um pioneiro – “encantada” porque a Vila existe e ninguém vê, porque existe nas histórias contadas... As memórias se espalham por Sobradinho, Taguatinga, Gama e por outros lugares para onde se mudaram os antigos moradores e visitantes, neste mais de meio século. Muitas pessoas procuraram quem viveu lá, muitas pessoas estudaram a existência da Vila Amaury. Este é mais um trabalho sobre esse lugar. Sete narradores contam sua passagem pela Vila. Nossos respeitos e homenagens a elas e eles, e a quem se interessou e se interessa por essas histórias. 15


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Narradores da “cidade encantada”

Se Javé tem algo de bom são as histórias da origem, [...] lá do começo, que vocês vivem contando e recontando... A maneira de saber é ouvindo de nossa gente as tais histórias... e escrevendo. Ouvindo e escrevendo! [Zaqueu, personagem do filme Narradores de Javé, 2003.] Aqui no Lago Paranoá tem uma Vila submersa, uma “cidade encantada”... É mesmo? Aqui pertinho? Então o Lago tem histórias deste e do século passado... [José Dumont, ator que representou o personagem Antônio Biá em Narradores de Javé. Conversa durante o 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2004.]

Em 2003 foi feito o filme brasileiro Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé. O filme conquistou vários prêmios em festivais de cinema brasileiros e internacionais. A trama, a temática e o produto o foram consolidando, também, como referência de discussão para quem se interessa por questões como usos da história oral, da memória, do imaginário, de histórias de impactos sociais de construção de barragens. O filme trata da história de Javé, povoado fictício que está sob a ameaça de desaparecer sob o poder econômico, a modernização e as 17


águas de uma represa. A resistência de seus habitantes se expressa na tentativa de comprovar a importância de Javé – o que julgam possível a partir do registro escrito de sua “grande história”. As histórias narradas revelam as diferentes e peculiares visões dos narradores sobre as origens do povoado e seus heróis fundadores. Ao mesmo tempo em que a memória dos moradores de Javé vai aparecendo, as águas vão fazendo o povoado desaparecer. Mas os narradores sobrevivem, constroem-se histórias diferentes entre si, os tempos e as redes de memória se renovam. Sob inspiração de Narradores de Javé e elegendo como conduta de pesquisa a história oral, trazemos a voz de narradores de outro povoado, que viveu pouco tempo – 1959, 1960, e era/é localizado na capital do Brasil. São os Narradores da Vila Amaury – a “cidade encantada” submersa no Lago Paranoá. A “grande história” da Vila Amaury é construída, aqui, a partir das narrativas de sete antigos moradores ou visitantes, que em 2016 residem em diferentes localidades do Distrito Federal1. Foram também ouvidos, anteriormente, pescadores, mergulhadores e fotógrafos que localizaram a Vila submersa, onde encontraram vestígios das casas, objetos de uso doméstico, instrumentos de trabalho, marcas do cotidiano e da memória2. Entrelaçando-se com as histórias contadas no nosso presente, foram lidas cartas escritas à época do início da construção da capital, bem como notícias veiculadas pela imprensa sobre a formação do Lago e as condições de vida na Vila Amaury. Nosso sujeito é o narrador, que neste nosso presente vem partilhar a memória de um tempo passado. O eixo é a narrativa - “num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação [...] que não está interessada em transmitir o ‘puro em-si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório”, como dizia Walter Benjamin em O Narrador. E nossa fonte, como diz Benjamin, é a “experiência que passa de pessoa a pessoa” - “a fonte a que recorreram todos os narradores3”. As imagens visuais, acompanhando todo o livro, também atualizam o presente, trazendo fotografias desde o início da construção do Lago, até nossos narradores atuais. 18


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A Vila Amaury

Naquele 21 de abril, como em muitos outros dias que o antecederam, moradores da Vila Amaury repetiram o percurso que os levava de casa às águas do Lago Paranoá. Àquela altura, 14 das 23 ruas da vila já tinham sido engolidas pelo lago e dali a dois meses toda a Vila Amaury estaria submersa [...] A Vila Amaury não estava feliz naquele 21 de abril de 1960. [Conceição Freitas, 20044.]

Em abril de 2016 completaram-se 56 anos da inauguração de Brasília, capital do Brasil desde 21 de abril de 1960, no governo do Presidente Juscelino Kubitschek. Ao longo do tempo, as histórias contadas por antigos moradores nos revelam faces por vezes esquecidas nas diferentes versões dessa história. É o caso da Vila Amaury. Na Vila Amaury moravam operários que trabalhavam em obras da construção civil da nova capital, como o Palácio da Alvorada, o Palácio do Planalto, o Congresso. (Inicialmente, houve a construção da Barragem do Rio Paranoá e de outros rios, riachos e nascentes próximos). Quando a barragem teve suas comportas fechadas, criou-se o lago artificial construído com o objetivo de abastecer a cidade de 19


Palácio da Alvorada. Rio Paranoá. 1957. Acervo depha / sc / gdf. [fonseca, p. 24]

água e energia, e de amenizar o clima seco dominante na região. Passava a existir o Lago Paranoá – “Um lago em pleno cerrado, cercado de canteiros de obras por todos os lados5”. A data em que isso ocorreu aparece em vários documentos e histórias: 12 de setembro de 1959, aniversário do Presidente JK. Os operários vinham de uma trajetória de buscas por emprego e qualidade de vida, e vislumbravam possibilidades promissoras na capital em construção. A maioria deles vinha do Nordeste do país, muitos com “pouca familiaridade com o próprio processo de trabalho6”, sem trabalho contratado nem perspectivas definidas de moradia naquele imenso canteiro de obras que era a Brasília daquela época. Tentavam ser fichados nas empresas de construção civil e, quando contratados e solteiros, conseguiam acomodação nos alojamentos das companhias. Segundo os critérios das firmas, só os solteiros podiam ficar nesses locais, como confirmam os narradores de 2016. Aqueles que vinham com suas famílias, ou as constituíam aqui, precisavam solucionar de outra forma a questão da moradia. Surgiam as vilas pioneiras, e são essas famílias, especialmente, os personagens desta saga. 20


Cachoeira do Rio Paranoá. 1958. Acervo depha / sc / gdf. Foto: Mário Fontenele. [fonseca, p.28]

A primeira alternativa para esses migrantes sem-teto era montar moradias nas proximidades dos acampamentos das construtoras. Era das buscas de local de moradia, das remoções e das “invasões” que surgiam as vilas. Comentava Alcy Pereira de Carvalho - antigo presidente da Associação dos Moradores do Paranoá, em 1983: O governo fala invasão, como se a gente estivesse clandestino. Mas era tudo trabalhador, e trabalhador tem direito a morar com dignidade. Ainda mais quando está construindo as obras da cidade que está começando, que é pra ser nossa cidade. A gente era removido e mesmo no local novo ainda tinha quem falava invasão. A Vila Amaury, por exemplo, não é invasão nem favela, é Vila7.

Assim tiveram origem espaços pioneiros como a Vila do Parafuso, a Vila do Sapo, a Vila dos Mineiros, a Vila Piauí, a Vila Planalto, a Vila Paranoá, a Vila Amaury. O vento em redemoinho, o coaxar dos sapos, a predominância de mineiros ou de piauienses estão na origem dos nomes das Vilas. 21


O fotógrafo e jornalista Paulo Manhães8, fotógrafo do jornal Diário Carioca – Brasília (DC-Brasília), que conheceu a futura capital em 1958 e no mesmo ano “veio para ficar”, conta que o nome da Vila Amaury remete ao funcionário da Novacap responsável pela remoção dos barracos “provisórios”. Há desconhecimento por parte de alguns e variam as histórias sobre a origem do nome da Vila; esse assunto está presente nas histórias contadas em 2016. No jornal DC-Brasília de 27 de novembro de 1959, a manchete “Vila Amaury: não se pode mais ali construir casas” é acompanhada de uma foto de Amaury de Almeida, “membro da Comissão de Mudança da Vila Amaury, em grande atividade na ‘Operação Mudança’ ”. Foi registrado nesse jornal que ele fez “importantes declarações sobre o assunto”, na sede da Associação Pró-Melhoria da Vila Amaury9. As histórias têm variantes sobre vários acontecimentos. É o caso da origem da popularidade do Amaury que teria até dado nome à Vila. O antigo pescador Pedro Venzi contava que “o nome pegou porque tinha um homem muito conhecido no local, o Seu Amaury, que tinha um botequim... Foi chegando gente, foi montando os barracos, falava: vamo lá no Amaury, Amaury – e aí ficou o nome da Vila...”. Em comum, todos se lembravam da chegada ao novo local de moradia: “Separamos umas madeiras de resto de construção e fomos pra lá, pra vila do Amaury...”, contava Antônio Sousa, antigo morador da Vila10. “Tudo tinha vindo pra construir a Brasília, os prédios, o Lago...”. As obras de construção da cidade e da barragem tiveram início em 195611. Para a formação do Lago, as águas foram ocupando as terras, os contornos do Lago saíram do papel para as margens vivas. As terras planas onde se localizava a Vila se transformam em fundo do Lago... Ruas e casas foram aos poucos (rapidamente, segundo os antigos moradores) inundadas, deixando submersa a Vila Amaury. Quem morava na parte alta da Vila continuou até o Lago chegar lá - até 1960.

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São muitas as histórias dos moradores: houve os que foram deslocados para outros locais, a tempo de não serem atingidos pelas águas e conseguiram guardar o pouco que tinham e seguir adiante; há os que perderam endereço e pertences; há os que perderam tudo no fundo das águas. Mas a memória, a história, as lembranças daquele tempo e daquele lugar continuaram com eles – e com quem se inquieta com as histórias deles e com as histórias do Distrito Federal. Voltando aos tempos de início da construção de Brasília, observamos que, certamente, o Lago Paranoá foi um projeto de proporções mais modestas que os das grandes hidroelétricas como Itaipu, Itaparica, Tucuruí ou Corumbá IV, e das barragens de Sobradinho e as de Minas Gerais. Mas as perdas, as mudanças, a memória, não se medem apenas em metros cúbicos de água nem em hectares inundados, e não diferenciam povoados antigos ou vilas de barracos provisórios: os moradores, os narradores, sabem disso.

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• Vila Amaury

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Página anterior: Acréscimo da localização da Vila Amaury sobre fotografia aérea. [facó, foto 14]

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O Lago Paranoá

Aconteceu aqui, em Brasília? Tem uma vila submersa? Quem vem aqui, às vezes nem se lembra que esse Lago é artificial, foi construído... [José Dumont, ator que representou o personagem Antônio Biá em Narradores de Javé. Conversa durante o 37º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2004.]

Para muitos brasilienses, os 37,5 km² do Lago Paranoá12 significam, como proposto na sua origem, lazer, esporte, turismo, contemplação. Para outros, importam o equilíbrio ambiental e a geração de energia, também argumentos para sua criação. Segundo informações de Fernando Fonseca (da CEB – Companhia Energética de Brasília), a Usina Hidroelétrica do Paranoá é pequena e teve importância no início de Brasília, quando a cidade era pequena também. Para brasilienses e brasileiros, o Lago Paranoá é uma das marcas de Brasília, como componente da paisagem da capital e da região. Sua história geológica remete ao período terciário, cerca de dois ou três milhões de anos atrás. As especulações mais conhecidas sobre a criação de um lago artificial nessa região, na bacia do Rio Paranoá, datam do final do século XIX, pela Missão Cruls – Comissão de Estudos da Nova Capital da União, designada em 27


1892 para explorar o Planalto Central do Brasil e apontar o local para a futura capital. O botânico e naturalista Glaziou observava a região e deduzia que ali existira um lago que, ao longo dos séculos, havia desaparecido, e que deveria ser reativado: Entre os dois grandes chapadões conhecidos na localidade pelos nomes de Gama e Paranoá, existe imensa planície em parte sujeita a ser coberta pelas águas da estação chuvosa; outrora era um lago devido à junção de diferentes cursos de água formando o rio Parnauá13; o excedente desse lago [...] acabou por abrir nesse ponto uma brecha funda, de paredes quase verticais pela qual se precipitam hoje todas as águas dessas alturas. É fácil compreender que, fechando essa brecha com uma obra de arte [...], forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos... 14”.

O pesquisador Paulo Bertran15 acreditava que o botânico deveria estar certo: “as rochas logo depois da Barragem do Lago Paranoá são rachadas de uma forma especial, o que talvez indique a existência do lago extinto”. Entre os elementos que vão compondo o imaginário sobre o Lago, tem destaque o relato feito pelo sacerdote italiano Dom Bosco, mais tarde canonizado pela Igreja Católica como São Dom Bosco, sobre o sonho que tivera no ano de 1883, em que se anunciava “um ponto onde se formava um lago” e de onde surgiria “a terra prometida, vertendo leite e mel”. A localização desse lago imaginário coincide, em graus de latitude, com o local escolhido para a construção de Brasília: “entre os paralelos 15 e 2016”. A questão dos recursos hídricos e, especificamente, da criação de um lago artificial no futuro Distrito Federal, é recorrente nos estudos para a mudança da capital. Assim ocorreu com a Comissão Polli Coelho – Comissão de Estudos para Localização da Nova Capital do Brasil (1947-1948) e com as recomendações do Relatório Belcher (1950), em que se 28


Construção da Barragem do Paranoá. 1958-1960. Acervo depha / sc / gdf. Foto: Mário Fontenele. [fonseca, p. 34]

Vista aérea da Barragem do Paranoá em construção. 1958-1960. Arquivo Público do DF, 2014.

indicava o Rio Paranoá como o mais adequado para a instalação de uma barragem e de uma usina hidroelétrica. Essas indicações subsidiaram as definições da Comissão de Localização da Nova Capital Federal, criada em 1953, que propunha o represamento do Rio Paranoá para a formação do Lago na área escolhida para abrigar a nova capital. Em 1956, quando foi lançado o Edital para escolha do projeto urbanístico de Brasília, já era estabelecido o traçado do lago a ser construído. No projeto vencedor e em documentos posteriores, o urbanista Lucio Costa incluía o Lago como componente do que indicava como escala bucólica da nova capital, conferindo a Brasília 29


Inauguração da Barragem do Paranoá. 1960. Arquivo Público do DF. 2014.

“o caráter de cidade-parque, configurada em todas as áreas livres, contíguas e terrenos atualmente edificados ou institucionalmente previstos para edificação e destinados à preservação paisagística e ao lazer17”. Já nesse ano foram iniciadas as obras de construção da Barragem do Paranoá. Mas não se encontram registros oficiais precisos sobre datas de conclusão de cada etapa da construção18. No dia da criação do Lago, em 1959, começou a circular em Brasília a Edição Brasiliense do Diário Carioca, conhecida como DC-Brasília – primeiro jornal diário com noticiário local, que circulou de setembro daquele ano a dezembro de 1965, quando foi fechado19. José Freire, o Zé da Kombi que nos guiou na Vila Planalto, confirmou que o DC-Brasília “foi o primeiro jornal que chegou por aqui”. A construção da cidade e o avanço das águas do Lago eram acompanhados dia a dia pelo jornal. Em 29 de outubro de 195920, abaixo da manchete “Descontentes com mudança para Sobradinhos”, uma foto de Paulo Manhães, tirada “a bordo de um barco improvisado”, mostrava uma vista do lago que, naquele momento, ainda não era 30


chamado de Paranoá. As referências variavam de Lago Artificial de Brasília a Lago do Alvorada e Lago Israel Pinheiro21. Na edição do dia 9 de dezembro, havia destaque para a inquietação dos moradores da Vila Amaury, e eram registradas iniciativas tanto da população quanto das instâncias de governo: “Intranquilizados com o andamento contínuo das águas do Lago Artificial de Brasília, os moradores da Vila Amaury, por intermédio de uma comissão especial, procuraram os elementos integrantes da comissão de mudança da população da Vila para as cidades de Taguatinga e Sobradinho, a fim de solicitar sejam ultimados os trabalhos de transferência, o mais rápido possível22”. Em 12 de dezembro, informava-se que a mudança tinha sido marcada para janeiro de 1960, mas que “O Lago não esperou. A mudança será apressada, segundo declarações dos seus responsáveis, em consequência das águas do Lago Artificial estarem subindo mais rapidamente do que o previsto nos cálculos primários, tanto que existem residências da Vila Amaury que já foram atingidas pelas águas do Lago23”. Três dias depois, o DC-Brasília falava da “apreensão na Vila Amaury” e relatava que “sobressaltados com a rápida ascensão das águas do Lago Israel Pinheiro, quatro famílias residentes em Vila Amaury, num total de vinte pessoas, anteciparam para hoje sua mudança para Taguatinga, que estava prevista para janeiro24”. As notícias de que dispomos, pela cobertura jornalística, pelas cartas remanescentes e, em especial, pela memória dos antigos moradores, nos mostram que a incerteza e a apreensão cresciam, à medida que as águas chegavam25.

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As águas do Lago chegaram: narradores da Vila Amaury

E a Vila do Bananal, que o povo chamava Amaury, afogou-se antes do tempo... [Clemente Luz, 1967.] Bananal? Nunca teve banana lá... Nunca ouvi isso não. Sacolândia? Também ninguém nunca ninguém me contou, mas pode ser, porque tinha muito barraco feito de saco de cimento. Era Amaury...[Eunice Pereira dos Santos, 2016.]

Brasília tem seus narradores, como em Narradores de Javé. Com o Lago também é assim: sua história está nas lembranças e no cotidiano da Vila Planalto, da Vila Paranoá, da orla, dos locais para onde foram os moradores da Vila Amaury e de outras vilas. Era sabido e previsto, principalmente por quem trabalhava nas obras da barragem, que a região onde estava localizada a Vila Amaury seria inundada. “Quase todo mundo sabia, mas não deu tempo de tirarem suas coisas, a água chegou rápido e inundou toda a história daquelas pessoas. A gente não queria acreditar que tudo ia desaparecer”, contava Domingas França Noiar, moradora da Vila Planalto, em 2005. 33


Havia moradores que não sabiam da futura vinda das águas. É o caso de Andrade Junior e de Dona Di, como contam em 2016: Nós nem sabíamos o que era Lago... Eu tinha 13 anos, nem reparava se um dia ia chegar água de Lago lá... Mas se tivesse aviso, a gente ia saber... [Andrade Junior, 2016.] Nada... Não se sabia de nada não, de águas que vinham.. [Di, 2016.]

Pedro Venzi, o pescador, observava que as memórias dos antigos moradores e as histórias dos remanejamentos não eram (não são ainda) contadas nas escolas, e associava isso à “exigência” de documento escrito: Muita gente não acredita, porque não está nos livros. Eu mesmo nem comento que cheguei aqui em 1958, porque não tenho documento provando. Muitos daquele tempo, e lá da Amaury, sentem isso. Estavam lá, viram e viveram tudo, mas é a palavra deles, sem comprovação. Quando as águas vieram, as pessoas corriam primeiro para salvar seus documentos, para adiante provar que existiam.

Esse comentário nos aproxima da ficção de Javé, em que o registro escrito era esperado como redentor, pelos moradores. Pedro não escreveu a história, mas, a partir de seus percursos de memória, em 2002 guiou o instrutor de mergulho José Ricardo Silva dos Santos até a Vila submersa, onde estavam fragmentos materiais da antiga ocupação. Contava o mergulhador, em 2005: Essa Vila, esses barracos submersos são do conhecimento de diversas pessoas, há bastante tempo, mas ninguém sabia da sua localização. Vários mergulhadores tentaram achá-la e finalmente o Pedro nos mostrou o local, próximo ao atual Bay Parque. Pelo que vimos, a Vila era bem linear: as casas, possi34


velmente, seguiam as margens do Rio Paranoá. Era estreita e comprida, devia ter 60 metros de largura, por um quilômetro de comprimento.

No fundo do Lago, Ricardo encontrou vestígios das casas e também garrafas, sapatos, bonecas, utensílios domésticos e achados inesperados, como um isqueiro de bronze, um capacete usado na época da construção de Brasília, uma espada... O mergulhador contava que, ao visitar o que restava da Vila Amaury, tinha a sensação de voltar ao passado: “quando vejo uma casa, um objeto, fico imaginando quem usou aquilo, de onde a pessoa pode ter vindo, o que fazia na construção de Brasília. Cada botão, cada detalhe, me faz viver uma história, uma emoção, uma adrenalina”. Na margem oposta à Vila Planalto, Pedro Venzi avistava o local onde ficava a Vila Amaury e recordava sua chegada a Brasília; brincava com seu sobrenome Venzi (venci...): [Depois morei no Guará, mas] cheguei quando a capital estava começando. Vim pra cá tentar a vida. Vim para chegar, ver e vencer... Eu morava num acampamento que ficava do ladinho da Vila Amaury, que é uma das mais antigas, mas pouco falada, porque ali só moravam peões.

Pedro contou que, com o tempo, a futura capital foi abrigando cada vez mais pessoas. Começou a construção da barragem e o represamento dos rios, para a formação do Lago. O que era terra firme, ia virar fundo de lago. Pedro explicava que antes da atual barragem foi começada outra, “que quebrou”26: “a água foi subindo, os cálculos da barragem foram mal feitos, e a força e o peso das águas a derrubou”. Depois, uma nova barragem (a atual) foi feita, para um dia se formar o Lago. “Daí a água foi subindo, subindo, subindo e ninguém acreditava. Olhava, mas não acreditava. Diziam: ‘não é possível que essa água vai chegar aqui’ ”, contava Pedro. E a água 35


Candidatas do concurso “Broto do Ano”, em lancha no Lago Paranoá, onde, submersa, está a Vila Amaury. Foto: Paulo Manhães, 1960.

chegou: “as pessoas deixavam tudo para trás no dia em que a água chegou. Reparei vizinho correndo, acordando os outros: vem cá, a água está subindo...”. Os moradores e suas histórias se espalharam. Alguns foram para casas de parentes, outros foram levados para Taguatinga, Gama e Sobradinho – opções que eram apresentadas pelo GDF aos “deslocados”. A Operação Mudança destinava-se a levá-los para esses recém-criados núcleos urbanos. “As pessoas saem de Minas, Goiás, da Bahia, do Nordeste para vir tentar a vida aqui. E depois, de uma hora para a outra, ver a água chegando e invadindo e levando tudo o que elas construíram - casas, móveis, memórias, histórias, a vida... É triste, viu...”, comentava Pedro. Seu Zé da Kombi, antigo mascate, com sua kombi azul, foi nosso guia na Vila Planalto, em 2004. Lá, outros pioneiros nos aguardavam. A notícia dos mergulhos e das descobertas, e as fotos dos objetos encontrados, emocionaram e reavivaram lembranças: “Viu, eu contava que minha casa estava lá no fundo do Lago e as pessoas não levavam a sério...”. 36


Houve relatos apaixonados e histórias de saudade e desencanto. Zé Ramalho, Pai Velho, Domingas, Albaniza, Margarida, José Freire... Durante as conversas na Associação de Idosas Pioneiras da Vila Planalto, foram descobertas histórias submersas nas águas do Lago. Em meio a lembranças, cada um relatou sua vivência. Na tentativa de formar esse mosaico de memórias, fomos desvendando o passado daquelas pessoas, até chegarmos à Vila Amaury. Domingas, então aos cinquenta e seis anos, pediu a palavra e relembrou sua adolescência, no acampamento Tamboril: Cheguei aqui com dezessete anos e sempre morei na Vila Planalto, mas tinha amigos que moravam na Vila Amaury, vindos da Bahia. Lembro bem da Valentina – os pais dela eram baianos. Era tudo muito animado, tinha muita festa, muito forró e muitos rapazes bonitos... Foi muito triste quando a Vila se foi, são lembranças que nunca vou esquecer: a beleza do Lago, que é uma obra de arte, e a tristeza de lembrar de tudo aquilo que ele inundou.

“O Lago vem vindo, o Lago vem vindo!”, relembrava Domingas: Ninguém acreditava que as águas iam, mesmo, inundar a Vila. Só deu tempo de pegar as roupas, e as casas ficaram debaixo do Lago. Ali tem televisão, rádio, geladeira, barraco, ali tem tudo. Só não perderam a família, porque correram.

Ao ver o Lago “lindo e maravilhoso como está aí”, a pioneira falava da dor que sentia ao lembrar-se daquelas pessoas que perderam não só os seus únicos bens, mas, também, parte da sua história. “O pessoal da Vila Amaury ficou sem nada”, recordava. Conta-se que não houve reação. “Reagir como? Cê vai brigar com a água?” Domingas acreditava que se não fosse o Lago Paranoá, ainda estariam lá seus amigos, as pessoas, as casas. “O Lago veio pra baixar o calor do concreto, do asfalto e só”. 37


A instabilidade da moradia, o misto de expectativa de apoio e de receio da remoção, eram questões constantes no cotidiano desses trabalhadores. Por estarem ligados à construção da capital, as reivindicações e pedidos de providências eram dirigidos à administração da Novacap – Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - e, muitas vezes, diretamente ao Presidente da República. É o caso do telegrama encaminhado ao Presidente em 16 de fevereiro de 1958. Era endereçado ao Palácio do Catete27, por representantes do Sindicato da Construção e Mobiliário de Brasília: ”Trabalhadores Brasília desesperados falta habitações acomodarem suas famílias vêm recurso extremo apelar Vossência para sustar ordens despejo emanadas polícia local ao mesmo tempo pedem sejam localizadas cidades satélites pt saudações28”. Consultado, o General Chefe de Polícia informava ao Presidente da Novacap que “se trata de uma ‘favela’ construída indevidamente em terreno contíguo ao Hospital ‘Juscelino Kubitschek de Oliveira’, pertencente ao I.A.P.I., cujos habitantes tiveram ordem para se mudarem para local previamente escolhido, em Taguatinga”. A propósito de telegramas, em 1961 o presidente JK enviou um telegrama a Gustavo Corção, que tinha posição contrária (ou de dúvida) sobre a construção de Brasília e do Lago. O telegrama dizia apenas: “Encheu, viu?”29 Em dezembro de 1959, Roque Matias dos Santos, que trabalhava “na margem direita do Rio Torto”, revelava ao Presidente da Novacap a apreensão existente quanto à formação do Lago: requeria que “lhe seja concedida licença para funcionamento de sua olaria num outro local, em vista de o local atual estar sendo inundado pela barragem do Paranoá [...]”. Três meses antes, o presidente da Associação Pró Melhoramentos da Vila Amaury dirigia uma carta, datada da Vila, ao Vice-Presidente do Brasil, João Goulart, em que se referia aos “16.000 habitantes que aqui residem” e solicitava que lhes fosse facultado “um aviso prévio de seis meses, para a transladação ao local definitivo, [...]”, meios de transporte para os moradores e 38


seus pertences e instalação prévia de infraestrutura, “enfim o que é mais necessário para a acomodação de uma massa trabalhadora e operosa, que se debate, sobretudo, nas construções que em Brasília se verificam”. “O pessoal da Assistência falava que iam dar casa fora ali da Vila. Nós mesmo, mandaram nós pra Sobradinho. Mas as condições foram de muita tristeza de largar tudo pra trás, por causa das águas...30”, contava Antônio Sousa há mais de quarenta anos. Esse sentimento se reflete na carta enviada ao Presidente Juscelino por um morador, em março de 1960: “Senhor Presidente, tenho a impressão de que os operários que construíram Brasília estão sendo injustiçados”. Nessa carta era anexado o “Plano de Transferência da População de Vila Amaury para as Cidades Satélites”, encaminhado pela Comissão de Transferência de Vila Amaury ao Diretor da Novacap, em outubro de 1959, e divulgado pelo Conselho de Bem-Estar Social de Brasília em novembro. O Plano tratava das condições de deslocamento de “aproximadamente 4.000 famílias” para as cidades de Sobradinho e Taguatinga, “tendo em vista as observações feitas e as sugestões recebidas de diferentes setores interessados no problema” e detalhando aspectos relativos a terreno, serviços, etapas da mudança e critérios para a prioridade na mudança. A carta do morador, por sua vez, confronta “tudo quanto foi planejado” com as medidas efetivamente tomadas para a remoção31. Nas lembranças não só dos antigos moradores, mas de pessoas que viveram esses tempos em outros locais do Distrito Federal, a Vila era populosa e animada, apesar da precariedade das construções e da permanente possibilidade de remoção. O paraibano Luiz Rufino Freitas32, morador de Sobradinho, contava em 2004 que morou na Cidade Livre e na Vila Planalto, mas que frequentava a Vila Amaury:

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Fotografia aérea do Plano Piloto, Lago Sul e Lago Norte. [facó, foto 10]

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Lá era o melhor lugar para passar os finais de semana e para comer. Eu comia no restaurante da Dona Osana. A Vila Amaury era o point dos finais de semana nossos. Lá tinha uma avenida principal, bem grande, com botecos dos dois lados. Essa avenida era quase toda de comércio, tinha poucas residências. As residências ficavam mais nas ruas pequenas. O comércio da Vila Amaury tinha de tudo, fruta, verdura, fazenda... O que mais tinha era boteco... Lá na Vila tinha também muito serviço de som, tipo forró, sertaneja. Os botecos tinham aquela vitrola de ficha, que você colocava moeda e pedia música...

Seu Luizinho, como era conhecido, continuava a descrever a Vila Amaury: A Vila ia do fim da Vila Planalto, uns 500 metros, em direção ao Minas33. Eu vi o Lago chegando nas casas, cobrindo tudo. Se deixasse a Vila Amaury lá, como estava, hoje ela seria como o Paranoá é hoje, com aquela avenida comercial bem grande. A Vila Amaury deixou saudade para nós, era muito boa. Nós tínhamos muitos amigos lá. Nós encontrávamos as pessoas que vieram do Nordeste com a gente, mas que tinham arrumado emprego em construtoras. Encontrava os conhecidos da Cidade Livre e de outros acampamentos...

Segundo sua avaliação, a inundação foi gradual, avisada, e “quem perdeu suas coisas foi porque demorou a sair ou nem saiu...”: Quando começou a subir o Lago, muitos tiraram suas coisas. A Novacap ofereceu lotes em Taguatinga. Outros insistiram em ficar, falando que o Lago não ia chegar. Quando o Lago ia enchendo, nós íamos tomar banho, pescar. Ele foi enchendo aos poucos, não foi da noite para o dia. O pessoal viu chegando aos poucos, todo mundo sabia que ali seria um lago... Muitos, inclusive, trabalhavam nas obras do próprio lago. Ele não pegou ninguém de surpresa. Houve vários avisos para o pessoal sair. 42


Muitos comerciantes se instalaram numa ruazinha que ligava a Vila Amaury à Vila Planalto, pois sabiam que a água não chegaria lá. Essa ruazinha ficou cheia de botecos e comércio de frutas, doces, comidas”.

Seu Luizinho arrematava: Tive saudade da Vila Amaury, mas como não tinha um vínculo com ela, a não ser farra e também por saber que o Lago ia encher, não tive muito trauma quando a Vila se foi. O Lago chegou para o lazer, nós nadávamos muito, atravessando de margem a margem. O Lago estava cheio, não tinha mais nada, não tinha mais Vila Amaury, só a lembrança34.

Nas lembranças dos habitantes de Brasília da época do início da construção, a imagem da Vila Amaury é de um lugar movimentado, com muitos bares e estabelecimentos comerciais. Notícias esparsas ilustram esse movimento, inclusive político. Em clima de campanha presidencial para as eleições de 196035, em outubro de 1959 instalou-se na Vila o Comitê Pró Marechal Lott e Jango Goulart36. Na edição do DC-Brasília do dia de Natal de 1959, noticiava-se o prejuízo causado por um incêndio na Vila, e são listadas doze casas comerciais atingidas – bares, lojas de roupas, relojoaria, gabinete dentário, barbearia37. Nos primeiros tempos, antes da inundação, o movimento na Vila aumentava nos fins de semana, e sua população crescia não só pela instalação de novos moradores, como pelo nascimento de novos candangos38. Inês Martins Folha, residente na Ceilândia em 2005, contava que seu registro é de Sobradinho, mas sua mãe lhe disse que ela nasceu na Vila Amaury. Inês contava uma das histórias de “salvamento material”: “deu tempo de sair antes das águas”, mas “o sonho de morar em Brasília acabou”. Seus pais, baianos de Barreiras, vieram para Brasília tentar uma vida melhor. O pai fazia de tudo, a mãe era cozinheira e lavadeira. Inês passou seis meses com o pai em Salvador, mas 43


quando já tinha um ano de idade, sua mãe a trouxe de volta para a Vila. Com a chegada do Lago, a mãe ganhou um lote em Sobradinho: Não tenho lembrança da Vila Amaury. Só sei que nasci lá, de parteira. Minha mãe me contou. Ela também meu contou coisas sobre a Vila – que era muito animada, principalmente nos finais de semana. Os peões que trabalhavam nos Ministérios, na construção do Palácio da Alvorada, iam namorar na Vila, iam ao cinema. Segundo minha mãe, era muito bom. Minha mãe lavava roupa nas margens do Paranoá, e conta que era uma cantoria só. As mulheres, lavadeiras, se juntavam e enquanto lavavam as roupas ficavam cantando. Depois iam buscar lenha, em latas de tinta, para esquentar água, banhar as crianças e fazer brasa para o ferro de passar roupa. Toda a minha família veio para trabalhar na construção de Brasília e morava na Vila Amaury. Minha tia, rindo, me contou que conheceu meu tio na Vila. Ela também disse que lá era muito animado. Mas com a inundação, muitos da minha família não conseguiram lotes e, desmotivados, voltaram para a Bahia.

Já Maria de Lurdes Batista dos Santos, costureira que morou no Paranoá, e sua mãe, Maria Batista dos Santos, tinham suas melhores lembranças da Vila Planalto, para onde foram, e não da Vila Amaury, de onde precisaram sair. Maria de Lurdes contava que chegou à Vila Amaury com três anos de idade, e que sua família se mudou para a Vila Planalto: Ficamos na Vila Amaury até a água chegar, até eles passarem avisando que era pra sair todo mundo, que a água ia cobrir toda a cidade. Eu não me lembro muito desse dia quando a gente saiu da Vila Amaury. Eu era criança e não me lembro muito. Mas via meu pai contando que o povo não acreditava que a água ia chegar. Sei que nós saímos logo e meu pai fez um barraco na Vila Planalto... Minha mãe conta muita coisa, ela sabe mais...

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Maria, então aos oitenta e um anos, contava que comprou a casa na Vila Amaury “por Cr$12,00” (como referência, o preço de capa do jornal DC-Brasília, nessa época, era Cr$8,0039) mas morou ali por apenas 15 dias, durante o mês de maio de 1960: Eles passaram avisando pela manhã que a gente tinha que sair, porque a água ia chegar. Quando o meu marido chegou pra almoçar, não voltou mais pro trabalho. Ficou em casa e mudamos logo. Eu e meus vizinhos tratamos de sair, mas outros continuaram por lá mesmo, esperando.

Durante os meses de janeiro a março de 1960, foram frequentes as notícias sobre a Vila Amaury, no jornal DC-Brasília. Em janeiro, as fortes chuvas aumentaram a subida das águas, e apressaram as remoções e mudanças dos moradores: no dia 7, “vinte famílias, por dia, escapam à inundação – perigo aumentou com as últimas chuvas40”. Três dias depois, a manchete mencionava o número de “quinze famílias que deixam todos os dias a Favela da Amaury41”. No dia 9, comentava-se a ocorrência de afogamentos no Lago e a falta de serviços de prevenção de acidentes, e a “tragédia [que] enfrentam os moradores da Vila Amaury, cujas casas estão sendo invadidas pelas águas do lago e pelo lamaçal provocado pelas chuvas42”. Noticiava-se que o processo de mudança estava sendo acelerado, já que o “nível do Lago [está] prestes a atingir a cota mil43”, ou seja, os 1000m acima do mar, definidos como limite para as águas do Lago44. Comentava-se novamente que a instalação da Vila não deveria ter sido consentida originalmente, pois a administração já sabia que aquele local estava abaixo da cota mil e que, por isso, ia ser inundado. Era o tema da reportagem “Problemas sacodem o povo da Vila que está condenada45”. Essa questão voltou a ser abordada em junho46, quando se informava que a “mudança da Vila Amaury vem se processando normalmente”. Essa matéria fazia uma retrospectiva da trajetória da Vila, observando que “os milhares de barracos de madeira (onde 45


Cadeira, sandĂĄlias, bonecas quebradas e outros objetos encontrados no fundo do Lago, onde estava a Vila Amaury. Acervo do mergulhador JosĂŠ Ricardo. Fotos em Revista Miragens, 2004.

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moraram mais de 20 mil habitantes) eram construídos dentro da faixa denominada ‘cota mil’, que as águas represadas cobririam com o fechamento da barragem.” Relatava-se que estava previsto que “o lago levaria cerca de dois anos para atingir o atual volume d’água e os moradores não se preocupavam com a submersão da vila”. E era utilizada a mesma expressão encontrada em matéria do dia 12 de dezembro de 1959: “o Lago não esperou”. No dia 21 de abril de 1960, quando se inaugurava a nova capital, uma foto do “Lago Artificial” ilustrava a matéria que trazia o Presidente da Novacap, Israel Pinheiro, declarando que “o compromisso que tínhamos com o Governo, de entregar Brasília pronta até o dia 21 de abril, foi cumprido à risca, dispondo desde já a cidade de todas as condições mínimas de conforto e urbanização para ser convertida em capital do país47”. Nem todos os moradores da Vila Amaury, remanescentes ou deslocados para outros locais, assistiram aos festejos da inauguração. “A [minha filha] Lucimar assistiu, mas foi na minha barriga, que eu estava grávida dela, de sete meses...”, conta Dona Di, em 2016. Outros, foram até a Praça dos Três Poderes, viram o Presidente e as autoridades, encontraram–se e festejaram com seus companheiros operários, candangos. Contavam, muitos anos depois, sobre os fogos de artifício e a emoção daquele momento marcante – é o caso de Osanette e de Amélia, em 2016. Contavam também sobre a poeira, a seca e a água, os encontros e desencontros no dia da inauguração, sobre o trabalho que continuava e sobre os desafios cotidianos de uma vida e de uma cidade em construção. Assim, ao escutarmos e registrarmos por escrito as histórias contadas por esses narradores da Vila Amaury em 2004/2005 e em 2015/2016, buscamos entrelaçar a escrita e a oralidade, o passado e o presente, a história oral e a memória. Lembramos do personagem Antônio Biá, de Narradores de Javé, que não chega a escrever a grande história de Javé, explicando que “quanto às histórias tais, melhor ficar na boca do povo, porque no papel não há mão que lhes dê razão...”. 47


Voltamos também a Walter Benjamin, quando nos lembra de que “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê, partilha dessa companhia48”. E entrelaçando nosso olhar, nossa trajetória de vida e a voz desses antigos narradores, podemos partilhar a história da Vila Amaury com quem nos vai ouvir, e também com quem vai ler este texto - em qualquer canto onde se contem histórias.

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Narradores

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De homens se continuará a falar, mas também cada vez mais de mulheres [...]. [José Saramago. 1989. p.183.]

Foi desafiante encontrar pessoas que tivessem morado na Vila Amaury, ou que a conhecessem de perto, mais de meio século depois da existência da Vila. Escolhemos sete narradores para contar suas histórias: três homens, quatro mulheres. Todos viveram na Vila, ou a conheceram, quando eram crianças ou adolescentes. A ligeira maioria de mulheres – mas maioria – é proposital e se deve ao fato de frequentemente se verem referências a que eram poucas as mulheres no início da construção, e se atribuir a elas menor importância que aos homens. Os relatos confirmam que havia mulheres, e que sua participação e seu olhar são valiosos para a construção da história da capital. Todos eram migrantes e pessoas comuns, à época de suas vidas na Vila Amaury: Andrade Junior, Eunice Pereira dos Santos, Toninho de Souza, Espedito Ferreira da Silva, Di, Amélia Andrade Albuquerque, Elizabeth Fernandes Nunes. A esses narradores foram se somando outros, como Maria Osanette de Medeiros, professora universitária em Planaltina. Chegou à Vila Amaury com 11 anos, em 1959, vindo de Goiás, com os pais e cinco irmãos. Tinham saído da seca do Rio Grande do Norte de 1958. Seu Pai trabalhava na construção civil (era marceneiro) e a Mãe era dona de casa – fazia marmita para vender nas obras. Osanette 51


e o irmão mais velho vendiam. Brincavam na rua, rodavam tudo de bicicleta, andavam descalços. Tinha lama, chuva, poeira, esgoto. “Eu vi o Lago nascer”, diz ela. De lá foram para o acampamento do R1, Reservatório 1, Estação de Tratamento de Água 1, perto do DETRAN. E depois, de acampamento em acampamento... Osanette enviou um documento, que vem depois das conversas com os demais narradores que aqui aparecem, em que relata e “autoriza” a publicação de sua história. Esses narradores de 2016 contam histórias de sua vinda para onde seria inaugurada a nova capital do Brasil; contam sobre a Vila Amaury e suas origens, seus nomes, córregos, ruas e casas de madeira; falam de experiências que vão da liberdade ao medo; das brincadeiras, da vida fora de casa, às proibições de sair; do desconforto, das lembranças boas, da violência, da não violência, dos desafios; da chegada das águas, da criação do Lago Paranoá; do fim da Vila Amaury; dos deslocamentos para outros locais, como Sobradinho, Taguatinga, Gama; das mudanças de vida, dos novos locais de moradia.

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Argemiro Gomes de Andrade Junior “Andrade Junior” Fortaleza, no Ceará. 1945. Conversa na beira do Lago Paranoá, perto do antigo Clube da Imprensa.

— Eu morei na Vila Amaury. A Vila Amaury durou mais ou menos um ano. De 59 a 60. — Agora é Lago, mas eu reconheço os lugares. — Eu subia por ali de bicicleta pra vender coisas nos botecos da Vila Planalto. Vendia pacote de café, manteiga, queijo... — Na Vila Planalto tinha acampamento – da Pacheco, da Rabelo. E tinha as construções, fora de lá. Eu vendia também nas construções. — Era uma bicicleta de três rodas. Eu vinha subindo pedalando e meus dois irmãos empurrando. — Isso aqui era um buraco, era muito fundo. — Na volta subiam os dois na frente e a bicicleta descia embalada... Tinha dia que dava queda que era gente pra todo lado... 55


— Cheguei no Núcleo Bandeirante em primeiro de maio de 1959. — Vendia revistas no aeroporto, que era perto. Entrava nos aviões. O aeroporto não era fechado não. As aeromoças davam lanche pra gente... Bimotor da Douglas, aviãozão da Real, Lloyd Aéreo... — Depois meu pai resolveu ir para a Vila Amaury, em 59 mesmo. Ele era amigo do Amaury, que era engenheiro. — Fui trabalhar na construção do Palácio do Planalto. Morava na Vila Amaury e ia trabalhar na construção do Palácio do Planalto. Tinha 13 pra 14 anos. — Mas eu sabia ler, sabia escrever bem – e aqui quase ninguém sabia. Então um engenheiro me viu num boteco, me chamou pra trabalhar no almoxarifado de uma empresa, de apontador... — Meu pai tinha um boteco e eu tinha também, na Vila Amaury. O armazém do meu pai progrediu rapidamente, vendia bastante. Aí meu pai tomou o meu... Ele era motorista de caminhão pra fazer asfalto. — Eu ganhava bem, ganhava mais que ele, lá no almoxarifado da empresa. Era uma empresa que vendia peça para a construção do Palácio do Planalto. — Eu vinha ali pelo Congresso, Câmara – estava tudo construindo – ia ali por baixo... — Juscelino parou várias vezes, vinha de helicóptero. — A empresa tinha transporte – era a Salim Badra, de São Paulo, que a Pacheco contratava. Era para colocar espelho, vidro, tapete. Ritmo alucinante. E eu ficava dia e noite. Dormia às vezes nuns caixotes. Fechava para os ratos não me pegarem. — Eu ganhava 100 horas. O engenheiro mandava fazer anotações 56


para São Paulo (não tinha email não, tinha que escrever e mandar pra São Paulo por carta, malote...). — Nós viemos do Ceará de avião – não foi de pau-de-arara não. Saímos 5 da manhã de Fortaleza, chegamos 5 da tarde aqui. Veio minha mãe, 4 irmãs, 3 irmãos (capaz de eu esquecer algum nome) – eu sou o mais velho (tinha 13 anos); o Abinoem (é de 50 – tinha 9 anos), o Raimundo (de 49 – tinha 10), a Sheila, a Beta, a Kedma (que nasceu em 58). Depois nasceu aqui a Eda (em 61), e um menino que nasceu já em Sobradinho, em 60, mas não viveu... Meu pai deu o nome de Amaury. — Em 60 o Lago estava quase cheio. Foi chegando a água, o pessoal foi indo embora. E o Governo dava madeira, caminhão, para o pessoal ir pra Taguatinga ou Sobradinho, conforme o lugar que a pessoa escolhia... Meu pai escolheu um lote comercial em Sobradinho, fez um armazém. — Na Vila Amaury eu trabalhava... A adolescência minha foi trabalhando no Congresso... — Nós passamos cinco anos sem estudar. Que eu me lembre, na Vila Amaury não tinha escola. — Os solteiros ficavam nos alojamentos. — Mas quem vinha com família (como era o caso do meu pai)... — Inventaram a Vila Amaury. Era perto das construções. Era mais perto que o Bandeirante, que a Candangolândia. Mais central, perto das construções dos ministérios. — E as águas foram chegando... foram chegando... e as cobras subindo (cobra não gosta muito de água, então subia...). Às vezes eu acordava de manhã tinha 4, 5 cobras debaixo da cama... (e a cobra não é ofensiva; a gente acha que é, mas não é; você via que elas estavam fugindo da água...).

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— A água foi chegando... A barragem foi chegando... Foi lento. — Em 60 eu ainda estava na Vila Amaury. Tínhamos um armazém em Sobradinho; eu e a Sheila minha irmã ficávamos lá. Eu ficava lá e cá... E todos os outros na Vila Amaury; meu pai ficava na Vila a trabalho. — A inauguração de Brasília foi em abril de 1960. Já tinha quase o Lago; ainda tinha gente morando no Lago, na parte mais alta. Meu pai continuou aqui com minha mãe e os irmãos. Morávamos na parte mais alta. — A Vila tinha vários rios, riachos. Cidade grande. — Lei seca, não se podia beber. Mas tinha garrafa de “café” que era de cachaça...

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Eunice Pereira dos Santos Gilbués, no Piauí. 1949. Conversa na casa de Eunice, no Guará II.

Chamada de Soberana pelos filhos e por alguns amigos; começou a ser chamada assim por causa da novela da Globo “Amor à Vida”, escrita por Walcyr Carrasco e exibida em 2013, em que o filho Felix chamava o pai de “papi poderoso” e a mãe de “mami soberana” (ou vice-versa).

— Foi uma vida difícil... Agora, aqui no Guará, sou soberana... — Tinha muita gente sem dinheiro, mas muita gente ganhou dinheiro... Eu mesma, se tivesse chegado com uns 15 anos, era dona do Guará II... — Tem gente da família que tem vergonha de contar as histórias... — Foi pouco tempo que a Vila existiu. 59, 60. Saímos de lá em 61, porque a água chegou depois, era na parte de cima onde a gente morava... 61


— Eu não tive uma infância muito infantil não... Ajudava minha mãe na criação dos irmãos menores, ajudava a lavar roupa... Eu me lembro de lavar roupa dentro do Lago... E tinha as cobrinhas (acho que quando fizeram essas represas botaram veneno, as cobras pareciam meio bêbadas...)... — Quando chegamos já tinha represa. A gente usava as águas do córrego, água limpinha... A gente descia só um pouquinho já dava no córrego. Não tinha tanta água assim, o córrego. Porque esse Lago foi formado por pequenos córregos, pequenas nascentes... E de repente a gente teve que parar de se divertir com aquele córrego, onde a gente tomava banho, fazia tudo, para ver aquela quantidade imensa de água... — Saímos da Vila Amaury depois da minha Avó, que também tinha casa lá. Uns 15 dias depois. — Morei na Vila Amaury quando tinha 9 anos – quase 9, cheguei com 8 anos. — Duas tias casadas, um tio solteiro vieram antes. O tio foi casar e buscar família. Ele foi, quem não era casado casou, filho foi registrado... — A família veio em busca de melhoria; a região no Piauí era garimpo que já estava muito garimpado... — Meu pai trabalhava no garimpo e na roça. Ele não queria trabalhar de empregado... Aqui ele foi trabalhar em comércio. Eu tinha um tio que saiu de lá, analfabeto... foi para Mato Grosso, e de lá veio para Brasília; veio um da família, vieram mais... “Foi pra São Paulo, tá bem... Foi pra Brasília, tá bem... Então vamos para Brasília”. — E a chuva que tinha naquela Vila Amaury? Chuva de granizo... — O pessoal nunca tinha visto gelo... Carregava balde, depois o gelo derretia, bebia a água... 62


— Como morreu gente naquela obra do 28 (o prédio alto do Congresso, que tem 28 andares)... (hoje é que tem muita preocupação com segurança do trabalho, mas naquela época...). — Saímos do Piauí em 1958. Eu não ligava muito para datas... Chegamos em Brasília no mesmo ano. — Viemos a pé – meu avô e turma toda dele (tios solteiros; minha mãe já casada, com 4 filhos; as duas irmãs dela). Muita gente casou, registraram os filhos... O tio que era solteiro casou... — A caravana era de umas 25 a 30 pessoas. — A gente andava muito. Nos primeiros dias foi bom. Era programado parar em fazenda de gente conhecida. Quando a gente chegava tinha festa... E quando não tinha mais fazenda, era no meio do mato que a gente ficava... — Além dos mirrados trocados que a gente tinha, só tinha para negociar dois jumentos. Eram o Cafuringa e o Bolota. Eles acompanhavam, carregando alimentos – porque as outras coisas a gente carregava. Depois meu Avô precisou trocar os jumentinhos por passagem, em Barreiras. Não esqueço da cena: o caminhão lotou, saímos, e depois no caminhão passamos por um cercado e vimos os dois jumentinhos lá; e um deles chegou perto da cerca e ficou zurrando; acho que eles sabiam que a gente estava no caminhão... — O caminhão tinha aquela estrutura de ferro com uma lona em cima... O combustível do caminhão ficava lá em cima, junto com os passageiros... Quando o caminhão balançava, balançava também aquele tambor, e ficava um cheiro... — De lá onde morávamos fomos até Barreiras – a pé. — Demoramos em Barreiras uma semana, porque o caminhão (o pau de arara) tinha que completar a lotação. Ficamos numa hospedaria que era na beira de um rio... Ficou todo mundo lá. Eu 63


era criança. Tinha um irmão mais velho, eu, um outro irmão que faleceu aqui em Brasília e uma mais nova. — De Barreiras até Brasília eram uns 5 dias de caminhão. Tinha trechos que não dava pro caminhão passar... Todo mundo descia do caminhão e os homens ajudavam a empurrar... — Ninguém tinha emprego em Brasília. Meu pai não foi direto pra construção civil, mas deu um apoio... Quem já tinha idade pra trabalhar foi para a construção civil. Quem não tinha foi trabalhar de outra forma: vendendo docinho, vendendo laranja, vendendo sabão (que meu pai fazia). As mulheres faziam bolo, lavavam roupa pra piãozada... Minha mãe lavava roupa e ajudava meu pai a fazer as coisas pra vender. — Quando viemos, fomos morar em um acampamento de trabalhadores de duas empresas: a Kosmos Engenharia e a Pederneiras. A Pederneiras era responsável pela produção de asfalto. Tinha muita gente. E tinha uns 3 ou 4 barracos, e como a minha tia já morava em um desses barracos, foi acrescentando para alojar a turma que chegou. Aí emendou e morava todo mundo... Vendia-se marmita... Lembro direitinho de lavar marmita, para no dia seguinte minha tia preparar tudo e vender de novo. — Ficar com a família que já tinha vindo pra Brasília era um porto seguro. Depois da viagem não tínhamos mais nada... Imagina chegar e encontrar as tias que já moravam aqui, que deram os primeiros apoios... Duas casas de pessoas do mesmo sangue, já instaladas, já com emprego, e que davam comida e dormida, era tudo o que a gente queria... — Desses meus tios que já tinham idade para trabalhar em obra (todos começaram na construção civil), uns depois foram ser funcionários públicos (um deles foi trabalhar no Jardim Zoológico, outro começou na Kosmos e depois foi para a administração); 64


mas voltaram para a construção civil, por causa do período de pagamento... Os outros continuaram na construção civil. — Não tinha nada em torno do Zoológico. Não tinha nada em lugar nenhum... — Eu sei que ia para o Zoológico para comer... Era um passeio, ir ao Zoológico. Eu um tempo morei com a minha tia (depois da Vila Amaury – em Sobradinho, eu ficava de lá prá cá), e o meu tio trabalhava na cozinha do Zoológico – preparava comida para os animais. Eu comia a banana dos macacos... — Esse primeiro acampamento em que nós fomos “jogados” deve ser ali perto da atual usina de lixo, perto da primeira ponte. Foi pouco tempo lá. Logo veio a notícia da Vila Amaury, e fomos prá lá. — Quem era sozinho morava nos alojamentos das empresas. Quem tinha família morava nos acampamentos, nas vilas. Tinha já a Vila Planalto – que eu não conheci na época. Já com a represa, quando começou o Lago Paranoá, eles foram pegando esses mini acampamentos (porque tinha só umas 3 ou 4 famílias ali, em vários) e foram formando a Vila Amaury. Foram juntando esses acampamentos e mais o pessoal que ia chegando. — A Vila Amaury foi sendo formada de acampamentos. Eu acho que na época a ideia era deixar os trabalhadores mais próximos das construções. Tinha muita gente que trabalhava na barragem. — A Vila Amaury era grande. Talvez tenha sido a maior vila da época. Era muita gente, muita gente. — E o lago foi crescendo, crescendo... — Faltava 1 metro mais ou menos para a água entrar na nossa porta quando nós saímos da Vila Amaury. Aí fomos para Sobradinho (porque não tinha mais vaga para Taguatinga...) Podia 65


escolher Taguatinga, Sobradinho, Gama. Gama estava começando. Todos estavam começando. —Como a minha avó tinha ido primeiro e tinha ido para Taguatinga, então minha mãe queria ir também. Nunca ninguém tinha se separado. No Piauí morava tudo perto, no primeiro acampamento morava tudo colado, na Vila Amaury um morava na parte de baixo, outro na parte de cima (corria, pegava lá um pouquinho de sal, um pouquinho de açúcar...) e de repente ia separar... — Aí fomos para Sobradinho. E ficamos em cima do mato... Meu pai separou uma barraca para a família dormir, um foguinho... — Levamos tudo. Inclusive os docinhos, o que o meu pai vendia lá na bodeguinha. (Ô peãozada folgada. Comeram os docinhos, tomaram os guaranás... Quase não ficou estoque na mudança) — Porque você podia escolher: ou ficava num alojamento, misturado com um monte de gente que você não conhecia, ou ia pra lá pro meio do capim, tinha que limpar o terreno e construir alguma coisa. — O governo não dava nada. A maioria das casas era feita e coberta com aqueles tambores de óleo, umas latas, de um metal muito quente. Fazia as paredes e a cobertura (já tinha sauna e não sabia...). Os tambores eram abertos, sem o fundo, e viravam placas, e eram pregados nas madeiras... E as revistas, lindas, viravam paredes. — Tiraram tudo daquele primeiro acampamento. Levamos umas madeiras. Na Vila também foi assim. — É difícil achar foto daquele tempo... Ninguém tirava foto não... Era muita pobreza, a gente só se preocupava em trabalhar... Foto era só os adultos que tiravam pra carteira de trabalho... Nem os meus tios, que eram adultos, têm foto... Nem na escola tinha foto...

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— Aquela foto da Vila que aquele jornalista tirou... Eu me vi naquela foto... Gente, eu estive aí, eu morei aí... Eu era aquela menininha de sainha de prega... — Tinha escola lá. E tinha um detalhe: lá no Piauí a gente aprendia o alfabeto lê mê nê... Aqui diziam na escola que era ele, eme, ene... E na escola aqui era assim, quando a gente “errava” o alfabeto: “tá fora, vai procurar outra escola”... — Na festa de inauguração (eu não fui...), o cantor convidado foi o Luiz Gonzaga. Fizeram um palanque tão bom que o palanque caiu... Aí foi aquele corre-corre. O Juscelino cumprimentou todos os peões que estavam lá. — Meu tio foi. Mas ele trabalhou mesmo na construção. Primeiro ele trabalhou com pixe. Ele contava que nos primeiros apartamentos os tacos eram colados com pixe: derretia o pixe, colocava prego... Mas como meu tio era um pouco letrado, logo logo ele foi ser apontador... Anotava as horas trabalhadas, era quase uma autoridade... E ele ficava a semana toda no canteiro de obra. Depois ele voltou ao Piauí e casou e trouxe a esposa. Faleceu no ano passado. Outro trabalhou no pesado mesmo, era servente de obra. Outro era cobrador de jardineira, transporte da Cidade Livre para os acampamentos e outros lugares... — O trabalho da mulher nesse tempo ou era ser secretária lá dos homens, ou trabalhava pro povão, lavando roupa, fazendo comida, vendendo bolo e tudo que você pode imaginar que servia de alimento. Meu pai tinha uma bodeguinha que vendia de tudo (guaraná caçula - que a gente às vezes roubava -, doce de leite, queijo, rapadura, sabão que ele fazia...). Todo mundo trabalhava. Os meninos até uns 10 anos, antes de poder trabalhar em obra, vendiam tudo. O que botava no tabuleiro e que era de comer (café, bolo, pedaço de melancia...), o povo da obra comprava. O povo comprava até promessa, não tinha nada... 67


— Era fácil vender, era fácil casar. Mulher que era encalhada lá na minha terra, e que veio nessa caravana, chegava aqui e casava, porque não tinha mulher... Quer dizer: não é que tivesse pouca mulher, é que tinha homem demais... — Conheci meu marido, que é do Ceará, na casa da minha Mãe; ele era amigo do meu irmão. — Quando morava em Taguatinga, trabalhava na 414 Sul e estudava. Fui babá, cozinheira... — Na Vila Amaury o chão era batido. Quando nós fomos para Taguatinga já tinha chão de cimento... — Morei em muito lugar, trabalhei em muito lugar. — Trabalhei na Benecap... Depois fui pra CEB, até aposentar... E aí já tinha casado, tinha meus 3 filhos e o marido. — Hoje viajo para Goiás, para Minas. Nem voltei à minha terra... No Piauí não tem orquídea, e eu tenho esse orquidário aqui em casa... Acabou o garimpo, o pessoal saiu tudo...

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Lavadeiras na orla. Moradoras da Vila Amaury. Foto disponível no Arquivo Público do DF. Fotógrafo não referido. [KIM e WESELY, p. 188]

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Joselina dos Santos Lima “Dona Di” Barreiras, na Bahia. 1940. Conversa na casa dela, no Sudoeste.

— Não gosto de ser fotografada não. — Esse apelido Di foi meu pai quem deu... E todo mundo me conhece por Di... — Viemos para cá em julho de 1959, para a Vila Planalto. Saímos de lá em maio de 1960, para Taguatinga. — Vim porque o meu marido (Irineu de Souza Lima, que morreu em 1994) já estava aqui, trabalhando na Rabello, na construção civil. Já vim casada. Ele primeiro veio de Barreiras para o Goiás – para Jataí. Veio a pé... De Jataí veio para Brasília, aí voltou para Barreiras, casamos e viemos para cá. 71


— Eu não morei na Vila Amaury não... Só convivia com o povo de lá. Morávamos na Vila Planalto... — Era difícil conseguir água naquele tempo. Então eu ia buscar água na nascente do Rio Paranoá, e via a Vila Amaury. Ia eu e mais outras mulheres que também moravam na Vila Planalto, mas lá tinha mulher que morava na Vila Amaury. — A Vila Amaury era muito grande, muita gente morava lá... — Lembro mais dos vizinhos da Vila Planalto... E das chuvas, que eram muito fortes... — Irineu saiu da Rabello e ficou como civil na Aeronáutica. Recebemos uma casa no Cruzeiro, morei muito tempo lá. Só vim para o Sudoeste depois que o Irineu morreu. D. Joselina – D. Di - tem quatro filhas, entre elas Lucimar, a primeira delas. Lucimar Rodrigues nasceu em Brasília, dois meses depois da inauguração. Escreve poemas e contos. Publicou, em 2009, “O livro na Rua”, pela Thesaurus. Em 2011 publicou “Eu e Meus Nós”. Valoriza a experiência dos “verdadeiros pioneiros”, entre eles sua Mãe e seu Pai:

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Brasília, Capital da Esperança [...] Quem pôs a mão na massa, na argamassa, no cimento e na areia foi o peão meu pai que passava três dias longe de casa porque não havia meio de transporte e nem bicicleta ainda possuía. Foi minha mãe que nas noites frias, nem barraco frágil na Vila Planalto tremia de medo e solidão [...] A eles, verdadeiros pioneiros, a alegria por terem acreditado nesse sonho e tornado realidade essa cidade.

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Espedito Ferreira da Silva “Pernambuco” Triunfo, em Pernambuco. 1929. Conversa em Taguatinga Norte.

— É Espedito com s. Sou analfabeto, criatura... Não posso mentir pra ninguém... Eu não tenho leitura... Minha mãe dizia “quem não sabe ler também passa; vamos pra roça, vamos trabalhar”. Eu chorava quando via aqueles meninos com a roupinha bonita, azul e branco, e eu trabalhava trabalhava... Espedito é uma síntese de histórias. Nasceu em Triunfo, Pernambuco, veio como pedreiro para o Distrito Federal que se formava, aqui morou na Vila Amaury. Seu neto estudou na Universidade Católica de Brasília, que em 2007 Espedito conheceu. E então disse, para que todos ouvissem: “Sou pernambucano, de Triunfo, moro em Taguatinga e vivi na Vila Amaury!”. Triunfo foi citado pelo designer Aloísio Magalhães, que nasceu no Recife em 5 de novembro de 1927. Aloísio Magalhães pensava em 75


políticas de bens culturais, defendia a preservação do patrimônio histórico. Pensava em bens culturais de regiões esquecidas. 5 de novembro: em homenagem a ele, foram criados no Brasil o Dia do Designer e o Dia da Cultura. Em seu livro “E Triunfo? a questão dos bens culturais no Brasil”, Aloísio Magalhães conta que em 1980 participava de uma reunião em São Paulo, em que se discutiam políticas culturais em escala grande. Ele dizia, então: “[...] A nossa realidade é riquíssima, a nossa realidade é inclusive desconhecida. E é essa realidade que precisa ser conhecida. É essa realidade que precisa ser levantada”. Aloísio vinha de uma viagem pelo Nordeste, e questionava: “[...] E Triunfo? E quantos Triunfos existem por aí? É preciso proteger, é preciso estimular situações como a de Triunfo.”. Espedito depois viveu em outro “Triunfo”: a Vila Amaury, que guarda histórias no fundo do Lago Paranoá. — Saí de Triunfo em 1954. — Cheguei de Triunfo e fui primeiro para um acampamento no Zoológico. Mas lá não pagavam direito... — Fui para a Praça 21 de Abril. Depois desmancharam e levaram nosso barraco para a Vila Amaury. — Em 1959 fui para a Vila Amaury. Tinha as firmas Ecisa, Ipase, Tinha alojamento, lá no Paranoá... — Depois, fui para a Cidade Livre, que é agora o Núcleo Bandeirante. — Depois, para a Ceilândia. — (O sofrimento de pobre andando pelo meio do mundo... Sofremos muito por aqui.) — E depois vim para Taguatinga, que eu escolhi pra morar e comprei. (Quando Juscelino passou para Jânio Quadros, eles queriam por fina força que fôssemos morar no Gama; mas eu não quis. Fui lá, não tinha nem estrada... Vim pra cá. Lá na QNG tinha um rapaz vendendo um barraco. Comprei isso aqui por 25 mil. 51.350,00, com a escritura. Viemos praqui).

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— Passei 43 anos sem ir lá no Triunfo. Voltei mas não gostei, ninguém me conhecia. Só tinha aquela rapaziada nova... — Lembro que saímos de Triunfo, fomos para Paulo Afonso, Bahia. Viemos para Brasília. Minha mulher adoeceu, voltamos pra lá, pra minha mulher se tratar de saúde. — Minha mulher ficou boa na Vila Amaury, e nunca mais sentiu nada. — Já sofri demais aqui... — Fiquei pouco tempo na Vila Amaury – uns oito meses. A Vila existiu pouco tempo. — Quando o Lago encheu, disseram: “Vocês vão escolher ir para Sobradinho, Taguatinga, Planaltina”. Gama ainda não falavam não. Fui ao Gama, mas queria morar num canto que fosse adiantado... — Quando saí de lá da Vila, que vim pro Bandeirante, não demorou nem uma semana pras águas chegarem... Quem não tirou os barracos, perdeu tudo na água... — A barragem encheu do dia pra noite. Quem saiu saiu; quem não saiu, não tirou os barracos, perdeu tudo. — Todo domingo eu atravessava pra beber na Vila. — Eu andava muito, mas tinha 24, 25 anos... — Casei novo, com 19 anos. — Quando a coisa apertou no meu Triunfo, deixei a mulher lá. Eu já tinha casa lá em Triunfo. — Quando cheguei cá (Deus é maior que tudo, né?), arranjei vaga e fichei no Quartel do Exército. — Saudade da mulher... Voltei lá pra buscar ela e os meus filhos. — Na Vila Amaury escola era paga. Tinha uma mulher lá, uma cearense, que ensinava às crianças. Mas era pago, os pais tinham que pagar. Não tinha escola não... Veio a ter escola aqui em Taguatinga, em 60. Escola particular. 77


— Naquele tempo o governador que mandava aqui era o Israel Pinheiro. Pra que ele fazia aquela malvadeza de por o povo na barragem, se já sabia que ia inundar? Maldade, era pra judiar com o povo... — Aí pensei: sabe de uma coisa? Eu vou é sair daqui. E fui lá pro Bandeirante. Era invasão também. Cheguei lá, comprei umas tábuas, fiz depressinha um barraco... Tinha uns formigueiros desse tamanho... Não era brincadeira não... Eu, a mulher e três filhos... — Aí vim para Taguatinga, estou aqui até hoje. — Trabalhava de pedreiro. Sou construtor de obra. Mas não trabalhei na Barragem. Lá só ia beber cachaça. — Era muito bom... Era? O pessoal falava que era bom, mas não era bom, porque a gente trabalhava o dia e a noite para viver. Hoje você trabalha só o dia e ainda sobra dinheiro. Quer dizer que hoje tá muito melhor que naquele tempo, não tá? Tá? — Olha, quando eu cheguei aqui passei a ser encarregado de obra, com quinze dias eu era encarregado de obra. Ali na 308 tem a Escola Parque e a Escola Classe. Eu fui encarregado de obra ali na Escola Classe. Dali eu fui como encarregado pro Ipase. — Taguatinga cresceu de um dia pro outro. Foi um relâmpago. — Depois daquele Israel Pinheiro teve o Wadjô Gomide, goiano. Depois o Valmir Campelo. Administrador de Taguatinga, abriu a mão pra construir prédios de 3 andares. Antes era proibido. Eu construí essa casinha de cachorro porque não podia fazer uma casa boa, porque não tinha dinheiro para comprar material. Saber fazer eu sabia, mas cadê dinheiro? — Trabalhava de noite e de dia... Era duro...

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Antônio Alves de Souza “Toninho de Souza” Riachão das Neves, na Bahia. 1951. Conversa no Espaço Chatô, Correio Brasiliense. Exposição “Arte pós-contemporânea de Toninho de Souza”.

— Sou filho único. Meu Pai era pedreiro, minha Mãe costureira (ela tem 85 anos, mora em Sobradinho, como eu).

— Nós morávamos em Uruaçu, na Bahia. (Eu tinha 10 meses

e meu pai saiu de Riachão das Neves e foi para Uruaçu – Fazenda Cafeeira – já em busca de trabalho). Lá, em 1956, meu pai soube da construção de Brasília. E viemos para cá, no final de 1957. — Pegamos uma jardineira49 e passamos mais ou menos um mês em Anápolis, em Goiás. Dali viemos para a nova capital. Ficamos na Cidade Livre, morando num barraco enquanto meu Pai procurava emprego. — O primeiro emprego dele foi na Novacap. Mas meu Pai não 81


gostava de ficar num mesmo lugar... Saiu da Novacap e começou a procurar emprego de novo, em firmas privadas (de construção). Meu Pai trabalhava nos canteiros de obra, minha mãe cozinhava bem e montou em cantina no canteiro de obra, lá na 507 Sul. A cantina era feita com sacos de cimento vazios; não tinha madeira; eram só as telhas de chapa asfalto, de papelão e os sacos de cimento vazios, dobrados como escama de peixe. Quando eu ficava na cantina, brincava muito naquela terra vermelha. Comecei a riscar com carvão, argila, sacos de cimento vazio... Era o começo da minha trajetória artística. — Começa a formar a Vila Amaury. Meu Pai mudou pra lá e fez um barraco de madeira. Tínhamos uma venda na rua, que vendia balinha, bolo. Naquela época comecei a estudar o abc, com professora particular – foi meu primeiro contato com a leitura quando aprendi a escrever. Naquele período eu ficava brincando com os sacos de cimento na cantina e sábado e domingo ficávamos na Vila Amaury. Depois acabou a cantina e ficamos mais tempo na Vila Amaury. — Pela minha visão, cheguei com 7 anos em Brasília. Ficamos na Vila Amaury em torno de 2 anos. — A Vila Amauri existiu antes da inauguração de Brasília. — Era o início das obras. Quem era solteiro ficava morando nos alojamentos das firmas. Quem tinha família, ia para as vilas. Era o caso do meu Pai, que já tinha filho... — Depois, quando o lago encheu, a Vila ficou totalmente submersa. — A maioria foi para Sobradinho, Taguatinga, Gama. A Vila Amaury é origem de 3 cidades... — Eu, por exemplo, cheguei em Sobradinho em fevereiro de 1960, quando foi a mudança. 82


— Teve pessoas que procuraram outros lugares. Por exemplo, no Lago Norte davam lotes de graça. Ou se não davam, vendiam bem baratinho. — Eu acredito que algumas pessoas que tinham mais visão podem ter escolhido o início do Lago Norte, aquelas primeiras quadras. Só que ainda era muito cerrado, e as pessoas não acreditavam que a cidade ia crescer... Meu Pai tinha aquela visão: só preciso de uma casa. Ele podia ter vários lotes, que eles davam para quem pudesse construir... Eles queriam é que construísse. — O que eu lembro mais da Vila Amaury... Comparando com um lugar de agora, era como a Vila Buritis, em Planaltina. Muita gente circulando pela cidade, armazém, tudo misturado, não existia nada organizado. Eram barracos de madeira. Em frente à casa da minha Mãe tinha uma empresa que vendia bananas; faziam um buraco no chão, enorme, guardavam as folhas de bananeira, tampavam com terra, as bananas amadureciam em menos de dois dias. E um dia teve um temporal grande, com pedras de gelo, inundou tudo, e foi banana pra todo lado, pelas ruas... Era pior que essas enchentes que andam noticiando por aí. O comentário na época era que caíram pedras de até 1kg, nas construções. Praticamente todos os telhados das casas ficaram furados. Quem não tinha dinheiro comprava telha mais barata... — Tinha muito quintal na Vila. Naquela época a gente brincava na rua... Se você já foi no Buritis, vê que as pessoas andam pela rua. Cachorro, galinha, tudo solto. Lá na Vila Amaury também: não tinha cerca, era uma casa do lado da outra, sem cerca. ­— As brincadeiras eram pião, bolinha de gude, carrinhos feitos de caixa de leite, lata de óleo, toco dos canteiros de obras, jardineiras de lata... — Eu tinha acesso, descia, ia até a beira do córrego Paranoá, esse córrego que foi enchendo. 83


— Lá tinha muita cacimba. A gente ia, curtia a água, pegava água, brincava... — O córrego Paranoá era muito estreito. Por causa da barragem foi aumentando. As águas subiam, a barragem veio subindo, a água ia descendo, não tinha pra onde a água sair, ela veio subindo, entupindo tudo. Então tinha que tirar as pessoas... — As vilas daquela época? Tinha a Sacolândia, Vila do IAPI, Morro do Urubu... E Vila Telebrasília, Vila Planalto, que ficaram. Mas a Vila Amaury foi a maior vila que existiu no Distrito Federal. — As pessoas tinham direito de escolher para onde iam: Sobradinho, Taguatinga, Gama. Meu pai escolheu Sobradinho. Se a gente tivesse escolhido Taguatinga, ia morar ali na primeira quadra central, ali onde tem o relógio. Quando a gente chegou a Sobradinho, ficou no cerradão, porque era um número muito grande de pessoas que tinham escolhido Sobradinho. — Quando o lago estava enchendo, tinha que ir embora mesmo ou então ficava naquelas residências flutuantes como as que tem no litoral brasileiro... — Tem umas ruínas da Vila Amauri embaixo do Lago... Cheguei a ver umas, mas eu era muito fraco. A cidade não tinha esgoto, tinha muita cacimba. A gente pegava água de cacimba. Inclusive, a água aflorava a 1metro. — Registro fotográfico era raro... Eu só via pessoas fotografando na Rodoviária, que era aquele lambe lambe – aquelas máquinas Kodak quadradas, que você colocava o pano em cima do pescoço... — O Arquivo Público só tem bastantes fotos da construção de Brasília porque teve o Fontenelle... Se não fosse o Fontenelle, eu acho que Brasília não ia ser registrada desde o início não... — Hoje, se eu tenho fotos de Sobradinho, é por causa daquelas 84


fotos oficiais, do Fontenelle. Ele era o fotógrafo oficial, trabalhava na Novacap. — As pessoas não tem aquele cuidado de guardar fotos. — Quem fez a planta de Sobradinho foram arquitetos da Novacap. O mesmo arquiteto que bolou as quadras aqui das 700, foi quem bolou as quadras de Sobradinho. Os lotes são parecidos, são iguais. Tem área verde... Sobradinho é uma cidade que seria de característica rural-urbana. Tem muita natureza, muita árvore. O Gama teve quase a mesma filosofia. Já Taguatinga não é uma a mesma coisa: é casa frente com frente. Não existe área verde.

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Elizabeth Fernandes Nunes Goiatuba, em Goiás. 1952. Conversa no apartamento de Elizabeth, em Águas Claras.

— Morei na Vila Amaury em 1959. Foi pouco tempo lá. Mas a Vila Amaury durou pouco tempo mesmo... — Viemos para Brasília antes da inauguração - meu Pai, minha Mãe, eu, dois irmãos. — Viemos de Goiânia, primeiro para a Candangolândia. Fomos morar com minha Avó e meu Avô, na Candangolândia – veio um tio também. — Depois (tinha gente demais na casa dos meus Avós) surgiu a história da Vila Amaury, e nos mudamos para lá. — Na Candangolândia as casas eram de lona. — Lembro que tinha muito índio. Muito índio mesmo. Não sei se eles eram de lá, ou se tinham vindo... Eu tinha medo deles – as crianças tinham medo deles. Fico pensando de onde eles eram, se tinham ido para lá por causa da construção, se eram de lá... 87


— Meu Pai trabalhou na Novacap. Mas depois saiu de lá e passou a viver de comércio. — Esses restaurantes populares, baratos, que o Roriz diz que criou, já tinha lá na Candangolândia. Nós almoçávamos no saps50. O Presidente de vez em quando ia até o restaurante. Lembro que eles serviam um leite gelado. (Eu nunca tinha tomado leite com almoço...) — Na Vila Amaury, lembro que tinha muita muriçoca; acho que por causa daquele brejo, daquela areia branca; — Lembro da liberdade... Eu era criança e brincava muito. Não sabíamos de violência por lá. — Tinha a capelinha redonda, perto de onde morava. A capelinha parece que pertencia ao Palácio da Alvorada... Era muito perto. Devia ser ela, aquela capela do Alvorada. — Lembro muito do barro branco com as flores branquinhas que tinha na Vila. Era tão fino... a gente afundava nesse mar branco... As flores eram branquinhas, como essas flores do cerrado que se vende na Catedral e na Torre. — Era na parte baixa da Vila que tinha aquela areia branca... — Tenho lembrança boa da Vila Amaury... Era criança, tudo era bom. — Era uma casa de madeira. As casas lá eram de madeira. — Meu Pai construiu um mercadinho em frente à casa. Mas não deu certo, o lugar era ruim... — Não havia escola. — Sabe aquelas fotos de escola, que todo mundo tem? A minha era da escola em Goiânia... — Tenho poucas fotos de quando era criança. Só algumas, mas nenhuma na Vila Amaury. — Era difícil alguém tirar fotos. Máquina fotográfica não era acessível... 88


Ônibus urbano, 1960. Foto: Peter Scheier. Nos destinos, aparece “Vila Mauri”. [ims, p.150]

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— Tinha mulheres, na Vila os trabalhadores eram casados; e tinha muita criança lá. — As mulheres ficavam mais em casa, nos serviços de casa: tirando poeira, lavando roupa, cozinhando... — A parte baixa é que ia ser inundada primeiro. Aí juntou: eles diziam que aquela parte ia ser inundada, e a minha Mãe queria ir embora. Então saímos da Vila Amaury. — Da Vila Amaury fomos para Goiânia, depois voltamos para Brasília em 1963. Tinha um tio que morava no Gama, e fomos para o Gama. Moramos no Gama 22 anos – de 1963 a 1985. — Depois moramos na Asa Sul, no Guará, e agora em Águas Claras. — Não sei se a ideia era o Lago ser menor, que não atingisse as pessoas que moravam lá... Não sei. — Não tinha por que fazer aquela Vila lá, botar aquelas pessoas... — 20 mil pessoas? Deve ter variado a quantidade de pessoas. Eu não imaginava que chegou a ter tanta gente assim – mas era muita gente... — E para onde foram essas pessoas todas? — Era Vila Amaury ou Vila Mauri? Tinha gente que dizia Vila Mauri... Nos ônibus tinha Vila Mauri...

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Amélia Andrade Albuquerque Bahia, 1948. Conversa na casa de Amélia, em Taguatinga Norte.

Amélia é evangélica, batista, cursou Direito, é viúva, tem 3 filhos. — Moramos na Vila Amaury de dezembro de 1959 a maio de 1960. Eu tinha 10 anos. Tenho uma memória muito forte desses tempos. — Fomos para a Vila Amaury porque era o início da construção... Moravam só trabalhadores. — Papai veio morar na Vila Amaury para evangelizar. Construiu a Igreja Batista do Planalto, que depois foi transferida para Sobradinho. — Um dia você acordava e o Lago estava mais ou menos longe. No outro dia você encontrava o Lago praticamente a uns 10 metros da sua casa... Era rápida a subida da água... — Quando nós chegamos, ainda estava a uma distância que dava para vermos o Lago... Mas Mamãe não queria que a gente 93


chegasse perto do Lago, porque podia ter cobra, jacaré... Era um proibitivo para a gente. Então a gente não chegava perto da água. Mas a água chegou tão rápido... — Antes de vir para Brasília, morávamos numa cidade chamada Firminópolis, em Goiás, perto de Trindade. — Da Bahia fomos para Ceres, Firminópolis, Belém, Parintins, voltamos para Firminópolis, e depois Brasília. — Foi muito grande a diferença de viver em Firminópolis e na Vila Amaury. Era como sair de mundo para outro. A Vila Amaury era um mundo estranho, a gente não estava acostumado... — Lembro que era muito barulho, das obras. Era barulho de bater, de lixar, de serrote... Nosso barraco era perto das construções - Palácio do Planalto, Palácio do Jaburu, da Alvorada... — Lembro dos barracos que eram construídos. Todos os dias apareciam barracos novos, construídos nas redondezas. — Lembro que nunca vi tanto homem... Era uma quantidade imensa de homens... — E lembro que tínhamos que ficar em casa: “Não saia de casa sozinha, não brinque na porta da rua, não vá à casa do vizinho”, minha Mãe orientava. — Os recursos financeiros eram poucos... Papai nunca recebeu salário de igreja nenhuma, a exemplo do apóstolo Paulo. — Para Papai devia ser uma experiência muito boa, conhecer tanta gente, levar a palavra de Deus para os trabalhadores... — Mas para nós era muito medo... Tinha muito estupro, assassinatos...

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— Não tinha escola. — Minha Mãe era professora, mas lá na Vila Amaury ela se dedicou a costurar. As máquinas de costura não tinham esses equipamentos de hoje, então ela me pedia para fazer os acabamentos na mão, na agulha. Eu nunca tive muita vocação para isso... — Papai era pastor batista e fazia também serviços de marcenaria, doces, sabão... E era professor. — As mulheres se ocupavam mais era dos serviços domésticos... Algumas faziam salgadinhos, docinhos, para serem vendidos nas obras. — Meus irmãos mais velhos vendiam maçãs... Meu pai comprava caixas de maçãs, colocava num carrinho de mão, e eles vendiam na obra... — A obra era pertinho... Palácio da Alvorada, Palácio do Planalto, Palácio Jaburu... — Mamãe não deixava a gente ver as obras. — Quando muito, Papai nos levava domingo à tarde... Mas eram lugares perigosos... Não era lugar para criança. Papai era muito curioso e eu era muito apegada a ele. Então eu ia com ele, e ele mostrava o que estava sendo feito: aqui vai ser o Palácio do Presidente da República (que era o JK – e eu já tinha uma paixão alucinada por ele...) — Todo mundo na Vila Amaury adorava JK. Ele era ídolo. — Falava com os trabalhadores, apertava a mão... — No dia da inauguração ele me pegou no colo.... — Fomos todos. Foi a família toda. — Fui passando pelas pernas dos guardas, para ver Juscelino de perto. Juscelino perguntou quem era aquela menininha. Mas era muito barulho, então não dava para ouvir Papai dizendo: “É minha! Essa menina é minha!”. Só muito mais tarde Papai me encontrou, na guarita, com JK... Fui muito bem tratada lá. Mas 95


Papai já estava desesperado. — Eu era franzininha, pequenina para a idade... Tinha uns cabelos louros longos, era muito faladeira... — JK e o pessoal ficaram encantados comigo. — Eram poucas, as mulheres. Não tinha tanta mulher. Vinham muitos trabalhadores que deixavam as mulheres no lugar de onde vinham. — Na nossa Igreja é que nós notávamos. Era uma média de uns 20 homens para duas, três mulheres. Poucas crianças... — Casos de estupro eram muito frequentes. Tanto de adultos como de crianças. Porque os homens vinham sem os familiares. E quando dava o cio, quando eles ficavam loucos, atacavam... — Era muito perigosa, a Vila Amaury, nesse aspecto. Volta e meia a própria população tomava as dores... Linchavam... Eu mesma, apesar de ser muito criança, assisti a um linchamento. Não vi até o fim, porque meus pais me retiraram. Mas vi espancamentos. Um homem atacou um criança de 6 anos. A população se revoltou. — Papai era pastor evangélico, batista - José Leitão de Albuquerque. Viemos justamente para trabalhar na divulgação da palavra de Deus... Papai veio em 1957 e depois em 1959 foi nos buscar, porque ele já tinha feito um barraquinho de madeira... Lá na Vila Amaury eram barraquinhos de madeira de construção, de andaimes, cheios de cimento. Arranhava. Era um quarto de casal (um pouquinho maior) e mais quatro quartos, porque era muito menino... Eram 7 filhos e eles criaram mais 4. Éramos 11. E Papai recebia visitas... — Conheci muitas novidades naquele tampo: água gelada, com os blocos de granizo que caíam e que Papai dizia para nós e as crianças da vizinhança recolhermos nas nossas canequinhas de ágata, como brincadeira para desviar nosso medo daquelas chuvas de granizo, os blocos caindo no telhado de zinco; refrigerante 96


e sanduíche, na inauguração de Brasília, lá na guarita onde eu fiquei; tecidos grossos como jeans, com que se faziam as roupas resistentes dos trabalhadores... — O nome da Vila Amaury era por causa de um engenheiro que havia por lá, o Amaury. Nunca soube dos nomes Bananal e Sacolândia. — Sacolândia até podia ser, porque não existia sacola de plástico e o que se vendia era carregado em sacos... — Não era saco de cimento vazio que cobria as casas – quase todas tinham telhado de zinco. — Praticamente não havia fotos daquele tempo. Era muito cara, a máquina fotográfica. Nem eu no colo de JK, nem disso tem foto... Já procuramos no Arquivo Público e outros lugares, e não tem... — Eram três lugares para se escolher ir, quando o Lago chegou: Taguatinga, Sobradinho, Gama. — Papai foi conhecer, para escolher. — Mas enquanto ele foi, nem tinha escolhido ainda, e veio um caminhão da Novacap, e os homens desmancharam nosso barraco, jogaram as tábuas encima do caminhão, arrancaram as madeiras e os poucos móveis, amontoaram tudo e nós encima do caminhão. Despejaram nós em Sobradinho, no meio do mato, no escuro. E os homens foram embora... Nós em pânico, pensando: como Papai vai nos achar? — Nós em pânico, pensando: Papai não vai nos achar nunca! — Um frio cortante! — Minha Mãe cantava conosco, para diminuir nosso medo. — Fizemos uma fogueirinha, Mamãe nos agasalhou e dizia que não ia nos acontecer nada de mal... — Papai insistiu e ficou sabendo para onde a família tinha sido levada. E foi para Sobradinho. Chegou lá tarde da noite, com o lampião a querosene chamado Petromax, que faz um barulho 97


característico... Na Igreja tinha um lampião desses... Sabíamos que era ele chegando por causa do barulho do lampião... Papai, Papai... — Foi forte demais o trauma... — Era um frio... Quem havia de pensar que hoje íamos ter 33 graus em Brasília? — Fomos dos primeiros trinta moradores de Sobradinho. Deixa tua terra, tua parentela, e vai para uma terra que eu te darei. (Atos dos Apóstolos, 7.3). [Isaac Ribeiro51. Depoimento em MENDES, Filipe Sousa. Missão Cruz. 2007.]

Mas o Pai de Amélia trouxe a família toda para a Vila Amaury... — Estava aqui o pastor Elias Brito, no Núcleo Bandeirante. Ele tinha sido colega de seminário do Papai, e o convidou para vir para cá. Papai veio em 1957 – comecinho da construção – e em 1959 foi nos buscar em Firminópolis. Aí ele já tinha feito um barraquinho de madeira. Os barracos da Vila Amaury eram feitos de madeira de construção, telhado de zinco. — Depois que eu me casei, em 1972, fomos morar no Guará. Mas todo o pessoal continuou em Sobradinho. Estou querendo voltar para lá... — O Lago cheirava mal... Não tinha esgoto, eram fossas negras. E vinha a água, espalhava... Eram buracos com umas madeiras em cima...

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Bibliografia e referências

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103



Notas

1  Depois de terminadas as sete entrevistas

8  O jornalista e fotógrafo Paulo Manhães

previstas, encontramos outros narradores,

participou de várias pesquisas sobre a Vila

como a professora Maria Ozanette de

Amaury. É dele a foto tirada da marina

Medeiros. Lembramos de conversas e de

do Iate Clube de Brasília, em 1959, tendo

e-mails do pesquisador Juremir Machado

como tema a Vila, ainda não submersa.

da Silva, em 2004, quando ele, falando de

Um dos trabalhos em que Paulo Manhães

procedimentos de pesquisa, comentava:

foi personagem é o de Leonardo Arruda,

“[...] e se vai somando tudo, pedindo mais,

em 2013.

arriscando aqui e ali, encontrando coisas e pessoas inesperadas ...” .

9  DC-Brasília, Ano I, n° 65. 27/11/1959. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

2  Alguns depoimentos iniciais,

de Brasília.

reproduzidos neste livro, constam da Revista Miragens, produzida em 2004 por

10  Antônio Sousa, antigo morador da Vila

Danielle Freire e Fabiane Lopes.

Amaury. Depoimento em Sobradinho, 1974.

3  Walter Benjamin. O Narrador. 1996. pp.

11  ”Não há referências sobre a data precisa

205 e 198.

da inauguração da barragem. Alguns trabalhadores indicam que a inauguração

4  Crônica Notas de uma inauguração

da usina só veio a acontecer no governo

inesquecível. Correio Braziliense,

João Goulart”. FONSECA, op. cit. p.36.

10.04.2004. Cidades, p. 24. 12  Também variam as informações sobre 5  FONSECA, Fernando (org.) Olhares

a dimensão do Lago Paranoá. Adotamos,

sobre o Lago Paranoá. Brasília: Secretaria

aqui, a dimensão mencionada em

de Meio Ambiente e Recursos Hídricos/

FONSECA, 2001.

GDF, 2001. p.193. 13  No Relatório Cruls o Rio Paranoá consta 6  Idem, p.36.

como Paranauá. O artigo “A Missão Cruls” (em Fonseca, 2001, p.25) esclarece: “Várias

7  Alcy Pereira de Carvalho, presidente

denominações são registradas para o Rio

da Associação dos Moradores do Paranoá,

Paranoá. Os bandeirantes paulistas que

1983. Anotações durante a gravação

primeiro visitaram a região do Planalto

do episódio VIII da série televisiva “Os

Central, no século XVII, chamavam-

Pioneiros”, dirigido por Tânia Quaresma.

no em nhengatú (língua falada pelos bandeirantes, resultante do português caipira, de uso geral no sertão, e do tupi

105


paulista) de Parnaguá. Em Tupi-Guarani,

23  DC-Brasília, Ano I, n° 78. 12/12/1959.

Paranoá é o mesmo que Paranaguá, que

Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

quer dizer rio largo, rio espraiado”.

de Brasília.

14  A. Glaziou. Relatório da Comissão

24  DC-Brasília, Ano I, n° 80. 15/12/1959.

Cruls, 1892 / 1894.

Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília.

15  Entrevista em outubro de 2004, no .Museu das Idades da Terra. O Museu

25  Na trama do romance No fundo das

localiza-se próximo ao Lago Paranoá, e

águas, de Oswaldo França Junior, à medida

dali se tem uma vista privilegiada de suas

que a represa vai inundando a cidade e

margens e da cidade. Paulo Bertran viveu

ficando mais funda, mais se detalha e

de 1948 a 2005.

aprofunda o perfil dos personagens.

16  Há depoimentos que questionam a

26  Há referências a esse fato em Fonseca,

“veracidade” e a importância dessa história

2001. p.36.

e a localização dessa “terra prometida”. Por exemplo, TAMANINI, Lourenço Fernando.

27  Palácio do Governo no Rio de Janeiro,

Memória da Construção. Brasília: Royal

antiga capital, até 1960.

Court, 1994. p.101. Mas João Bosco continua sendo padroeiro da cidade de Brasília.

28  Arquivo Público do Distrito Federal, Fundo Novacap, caixa 20.

17  SANTOS, M.A., 2008. 29  Esse telegrama aparece em vários 18  “Não há referências sobre a data precisa

documentos, inclusive em depoimento

da inauguração da barragem. Alguns

do cineasta Pedro Jorge de Castro no

trabalhadores indicam que a inauguração

documentário “Paranoá, espelho do céu”,

da usina só veio a acontecer no governo

dirigido em 2015 por Marieta Cazarré.

João Goulart”. Fonseca, 2001. p.36. 30  Antônio Sousa, cit. Depoimento em 19  Celso de Martin Serqueira. Um

1974.

conservador de vanguarda. Diário Carioca.com.br. Site < http://www.

31  Arquivo Público do Distrito Federal,

serqueira.com.br/dc/>. Acesso em

Fundo Novacap, caixa 21.

19.09.2016. 32  Depoimento em Miragens, 2004. 20  DC-Brasília, Ano I, n° 41. 29/10/1959. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

33  Minas Tênis Clube, situado na orla

de Brasília.

norte do Lago Paranoá.

21  Primeiro Presidente da Companhia

34  Entrevista em junho de 2006.

Urbanizadora da Nova Capital / NOVACAP, 1956.

35  Trata-se da eleição do sucessor do Presidente Juscelino Kubitschek. Venceu

22  DC-Brasília, Ano I, n° 75. 09/12/1959. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília.

106

Jânio Quadros.


36  DC-Brasília, Ano I, n° 37. 24/10/1959.

44  O nome do Clube Cota Mil, localizado

Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

na orla do Lago, deve-se a isso.

de Brasília. 45  DC-Brasília, 08/01/1960. Centro de 37  DC-Brasília, Ano I, n° 89. 25/12/1959.

Documentação e Informação. Câmara dos

Acervo do Instituto Histórico e Geográfico

Deputados.

de Brasília. 46  DC-Brasília, 01/06/1960. Centro de 38  “nome que designa [ ...] os operários

Documentação e Informação. Câmara dos

que trabalharam nas grandes construções

Deputados.

da cidade de Brasília (DF); extensivo a quem nasce em Brasília.. Disponível

47  DC-Brasília, 25/04/1960. Centro de

em <http://houaiss.uol.com.br/

Documentação e Informação. Câmara dos

busca?palavra=candango>. Acesso em

Deputados.

31.08.2016. 48  Walter Benjamin. O Narrador. 1996. 39  Preços de capa do jornal em maio de

p. 213.

1960. A propósito de valores dessa época, em cruzeiros, no dia 30 de setembro de

49  Jardineira, no Brasil, é um meio de

1960 o DC-Brasília se refere a que o salário

transporte (parecido com o “lotação” –

mínimo naquele mês era de Cr$9.600,00.

ônibus pequeno), usado principalmente no Nordeste. Eunice faz referência a seu tio

40  DC-Brasília, 07/01/1960. Centro de

ter sido cobrador de jardineira em Brasília

Documentação e Informação. Câmara dos

(p.67), e Toninho de Souza conta que uma

Deputados.

das brincadeiras na Vila Amaury era fazer jardineira de lata (p.83).

41  DC-Brasília, 10/01/1960. Centro de Documentação e Informação. Câmara dos

50  SAPS: Serviço de Alimentação da

Deputados.

Previdência Social.

42  DC-Brasília, 09/01/1960. Centro de

51  Isaac Ribeiro era médico e

Documentação e Informação. Câmara dos

evangelizador batista na Cidade Livre,

Deputados.

atual Núcleo Bandeirante.

43  DC-Brasília, 09/01/1960. Centro de Documentação e Informação. Câmara dos Deputados.

107



Osanette enviou um documento em que relata e “autoriza” a publicação de sua história.

Maria Osanette de Medeiros

Expulsos da seca de 1958 que assolou o Nordeste, meu pai, Godofredo, pegou um pau de arara e veio para o Sul, como se dizia no Nordeste, em busca de sobrevivência. Vários conterrâneos já estavam em Goiás. Uns vinham e se instalavam e logo depois o pau de arara voltava para buscar mais gente, que já ficava esperando o sonhado dia. Triste partida e sonhado dia. Logo que meu pai arranjou trabalho mandou buscar a família – a mulher e os filhos. Mamãe com os seis filhos, o caçula recém nascido, pegamos o pau de arara e rumamos ao Sul – exatamente Goiás, 1958, uma viagem que durou oito dias. Em 1959 meu pai vem para Brasília com a promessa de mandar buscar a família assim que arranjasse emprego e tivesse condições de acomodação. Foi assim que em 1959, final do ano, chegamos a Brasília e fomos morar na Vila Amaury. Ao chegar nos instalamos na casa de um conhecido dos colegas do meu pai, enquanto faziam o barraco. Logo fizeram o barraco em mutirão, com sobras de material de construção, alguns comprados, como telhas (Eternit de papelão). O chão era batido. Quem podia cimentava, que não era o nosso caso. Não tinha instalação elétrica. Era luz de lamparina. Na época da chuva dava muita tempestade e era comum destelhar os barracos. Lá iam os mutirões cobri-los. Naquela época chovia muito em Brasília. As chuvas eram fortes e perigosas, como diziam os adultos. Muita tempestade. 109


Tinha comércio: padaria, restaurante, loja de roupas, mercearia. Lembro-me que certa vez minha mãe estava sem dinheiro e empenhou uma toalha de mesa, linda, em troca de alimentos, mas o dono da mercearia não aceitou e disse que ela poderia levar o que precisasse porque era pessoa de confiança. Ela ficou muito sem jeito, mas levou assim mesmo. (Essa era uma prática comum da época, pelo menos no interior). Frequentemente fazíamos compra na Cidade Livre. Meu irmão mais velho e eu pegávamos o expresso e íamos com uma lista que minha mãe nos dava. Lembro-me bem das galinhas vivas, principal motivo de irmos à Cidade Livre. Não havia escola. Minha mãe nas horas livres reunia a gente para ler alguma coisa, relembrar a tabuada, comigo e meu irmão mais velho, que já havíamos frequentado escola antes. Ela dizia que era para a gente não esquecer. Mandava também a gente escrever, copiar textos de livros. Para os mais novos ela ensinava o alfabeto e os números. Eu trabalhei como balconista na padaria, mas minha mãe me tirou do trabalho porque eu frequentemente tinha dor de cabeça, que só na idade adulta descobri tratar-se de sinusite e rinite. Depois fui trabalhar num restaurante, como garçonete, mas também ela me tirou porque eu estava ficando mocinha e ela achava que aquele não era um local adequado para mim. Eu era uma garçonete exemplar, todos queriam ser atendidos por mim porque era ágil, simpática e educada, assim diziam os fregueses. (Isso certamente desagradou a minha mãe, que algumas vezes ficava por perto observando). Também quando eu chegava em casa tinha que dar o relatório de tudo. 110


Eu vi o lago nascer. Surge o lago. Muitos comentários que a Vila seria invadida por um lago, o “Lago Paranoá”. A palavra era essa mesma: invadida. Avistava-se longe uma mata, um córrego (acho que era um córrego). Aos poucos essa água foi chegando, depois veio aos muitos. A gente lavava roupa na beira do lago. Banho somente ali na beirinha e acompanhada da mãe. A ordem era não nadar no lago porque tinha muita cisterna e era perigoso, poderia causar afogamento. Além das cisternas, os barracos. Os mais afoitos nadavam. Às vezes não acontecia nada; às vezes, muitas vezes aconteceram mortes. Eu vi o corpo de um rapaz que se afogou. A cada corpo retirado era um choque, mas os afoitos não se continham. À medida que as comportas do lago iam se abrindo, a Vila ia sendo removida. Uma vez começada a remoção, as famílias já se preparavam, ou seja, sabiam que chegaria a sua vez, não tinha opção. Não me lembro de como chegou o aviso, mas as famílias eram notificadas do dia da remoção. No dia marcado chegavam os caminhões, levavam o que dava para levar, botavam a família em cima junto com a mudança e seguiam para Sobradinho. Lá existia um loteamento destinado aos moradores da Vila. Meus pais não quiseram ir para Sobradinho e fomos, então, para um acampamento (R1 Estação de Tratamento de Água). Como conseguiram isso não me lembro. Provavelmente o caminhão nos levou até ao acampamento do R1. Ano de 1960 – inauguração de Brasília Muitos caminhões foram até a Vila buscar os candangos e seus familiares para a tão esperada inauguração de Brasília. Era noite 111


e lá estávamos naquela Praça - aquela quantidade de caminhões, muita gente na praça, nós ficamos em cima do caminhão assistindo. Só me lembro dos fogos. Lindos! Até hoje na minha memória. Depois voltamos para o escuro da Vila e da casa. Da inauguração não soubemos mais nada. Nossa remoção me lembro quando ocorreu. Fomos para o acampamento R1 deixando para trás o barraco e as lembranças de um tempo da infância de que não me lembro, se um ano ou mais ou menos. Só me lembro que foi um tempo de infância início da adolescência, mas fortemente com sabor e marcas de infância. Autorizo publicação deste texto. Maria Osanette de Medeiros rg 133.269 ssp-df

112




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