Ação PGE Ipe Saúde

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EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(ÍZA) DE DIREITO DA COMARCA DE PORTO ALEGRE - RS

URGENTE

O INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DOS

SERVIDORES PÚBLICOS DO RIO GRANDE DO SUL - IPE SAÚDE, autarquia do Estado do Rio Grande do Sul, com endereço em Porto Alegre, na Avenida Borges de Medeiros, nº 1.555/18º andar, Bairro Praia de Belas, CEP 90.110-130, endereço eletrônico presidencia@ipesaude.rs.gov.br, vem, com fundamento nos arts. 319 e seguintes do Código de Processo Civil, pelo Procurador-Geral do Estado e os Procuradores do Estado abaixo assinados, ex vi dos arts. 132 da Constituição Federal, 2º, I, da Lei Complementar Estadual n° 11.742/02 e 75, II, do Código de Processo Civil, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar

AÇÃO DECLARATÓRIA E COMINATÓRIA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER

COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA,

em face de (1) UNIÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA HOSPITAL SÃO LUCAS DA PUC/RS, inscrito no CNPJ sob o nº 88.630.413.0007-96, com sede na Avenida Ipiranga, nº 6690, Partenon, Porto Alegre - RS, 90610-000, Porto Alegre/ RS; (2) HOSPITAL ERNESTO DORNELLES, inscrito no CNPJ sob o nº 92.741.016/0002-54, estabelecido na Av. Ipiranga, 1801 - Azenha, CEP 90160-092, Porto Alegre/RS, endereço eletrônico: sac@hed.com.br; (3) SOCIEDADE SULINA DIVINA PROVIDÊNCIA, inscrito no CNPJ sob o nº 87.317.764/0001-93, estabelecido na R. da Gruta, 145 - Glória, CEP 91712-160, Porto Alegre/RS; (4) IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGREISCMPA, fundação de natureza privada, sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ sob o nº 92.815.000/0001-68, com sede na Rua Professor Annes Dias, Bairro Centro, CEP 90020-090, Porto Alegre/RS; (5) IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE - HOSPITAL DOM JOÃO BECKER, fundação de natureza privada, sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ sob o nº 92.815.000/0008-34, com sede na Avenida José Loureiro da Silva, 1561, Centro,

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Gravataí/RS, (6) HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PASSO FUNDO - HCPF, inscrito no CNPJ sob o nº 92.030.543/0001-70, estabelecido na R. Tiradentes, 295 - Centro, CEP 99010-260, Passo Fundo/RS, endereço eletrônico: contato@hcpf.com.br; (7) HOSPITAL SÃO VICENTE DE PAULO, inscrito no CNPJ sob o nº

92.021.062/0001-06, estabelecido na R. Teixeira Soares, n. 808, Bairro Centro, em Passo Fundo/RS, CEP 99010-080; (8) HOSPITAL DE CLÍNICAS DE IJUÍ - HCI, inscrito no CNPJ sob o nº 90.730.508/0001-38, estabelecido na Av David José Martins, 152 - Centro, CEP 98700-000, Ijuí/RS; (9) COMPLEXO HOSPITALAR

ASTROGILDO DE AZEVEDO, inscrito no CNPJ sob o nº 95.610.887/0001-46, estabelecido na Av Preso Vargas, 2291 - Centro, CEP 97015-513, Santa Maria/RS; (10) ASSOCIAÇÃO DR. BARTHOLOMEU TACCHINI - HOSPITAL TACCHINI, inscrito no CNPJ sob o nº 87.547.444/0001/20, estabelecido na R. Dr José Mário Mônaco, 358 - Centro, CEP 95700-068, Bento Gonçalves/RS; (11) ASSOCIAÇÃO

HOSPITALAR SANTA ROSA, inscrita no CNPJ sob o nº 95.815.668/0001-01, estabelecida na rua Dr. Francisco Timm, nº 656, Santa Rosa/RS; (12) SOCIEDADE

BENEFICENTE SAPIRANGUENSE, inscrita no CNPJ sob o nº 97.279.350/0001-70, estabelecida na R. Getúlio Vargas - Centro, CEP 93800-048, Sapiranga/RS; (13) HOSPITAL SANTA LÚCIA, inscrito no CNPJ sob o nº 89.121.230/0001-12, estabelecido na R Cel. Pilar, 748 - São Miguel, CEP 98025-220, Cruz Alta/RS, endereços eletrônicos: administracao@hospitalsantalucia.com.br e comunicacao@hospitalsantalucia.com.br; (14) ASSOCIAÇÃO

EDUCADORA SÃO

CARLOS - AESC - HOSPITAL MÃE DE DEUS, inscrita no CNPJ sob o nº 88.625.686/0024-43, estabelecida na Rua José de Alencar, 212, , Bairro Menino Deus, Porto Alegre/RS, (15) HOSPITAL DE CARIDADE E BENEFICÊNCIA DE CACHOEIRA DO SUL, inscrito no CNPJ nº 87.768.735/0001-48, estabelecido à Rua Saldanha Marinho, n. 48, em Cachoeira do Sul/RS, endereço eletrônico: contato@hcb.com.br; (16) FUNDAÇÃO IVAN GOULART (HOSPITAL IVAN GOULART), inscrito no CNPJ nº 96.488.598/0001-89, estabelecido à Avenida Presidente Vargas, 1440. Bairro Centro, São Borja/RS, (17) SOCIEDADE BENEFICÊNCIA E CARIDADE DE LAJEADO (HOSPITAL BRUNO BORN), inscrito no CNPJ nº 91.162.511/0001-65, estabelecido à Avenida Benjamin Constant, 881, Bairro Centro, Lajeado/RS, (18) HOSPITAL DE CARIDADE DE ERECHIM, inscrito no CNPJ nº 89.428.718/0001-97, estabelecido à Avenida Comandante Kraemer, 405, Bairro Centro, Erechim/RS, doravante denominados HOSPITAIS, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos.

I – DOS FATOS.

Os hospitais acima especificados subscreveram, em 29 de abril do ano corrente, notificação (cópia anexa) direcionada ao Presidente do IPE Saúde, informando a adoção das seguintes condutas:

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Que, diante do exposto, esgotadas todas as iniciativas que buscavam soluções para situação em tela, os HOSPITAIS ora NOTIFICANTES vêm declarar, expressa e definitivamente, a total falta de condições de sustentabilidade para continuar prestando os serviços assistenciais ao IPE Saúde nos moldes hoje vigentes e, por isso, NOTIFICAM a suspensão do processo assistencial eletivo à todos os beneficiários do IPE Saúde, com efeitos também de descredenciamento sequencial, na forma que segue:

(a) os NOTIFICANTES procederão a suspensão do processo assistencial eletivo a partir do dia 06/05/2024, cancelando todos os agendamentos já existentes a partir dessa data, totalizando 25 446 pacientes, cuja nominata integra a presente notificação, solicitando-se que esse Instituto proceda imediatamente informações aos mesmos, incluindo redirecionamentos. Inclui-se na suspensão exames diagnósticos, consultas, internações e procedimentos, todos eletivos, por óbvio.

(b) Os NOTIFICANTES asseguram a continuidade até a conclusão de todo processo assistencial em curso, incluindo internados e tratamentos continuados em geral, tais como os oncológicos, hemodiálise, entre outros, conforme segue:

- 690 pacientes internados

- 853 cirurgias agendadas até 05/05

- 3.120 exames agendados até 05/05

- 3 012 consultas agendadas até 05/05

- 68 pacientes em radioterapia

- 1 461pacientes em quimioterapia

- 188 pacientes em hemodiálise

(c) Os NOTIFICANTES manterão o processo de emergência exclusivamente para casos de risco de morte iminente, mediante processo técnico de triagem com adoção de protocolos de classificação de risco

(grifou-se)

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Em 1º de maio do ano corrente, conforme divulgado pela imprensa, os réus anunciaram a manutenção dos atendimentos aos segurados do IPE Saúde enquanto perdurar o período de enfrentamento dos eventos climáticos (chuvas intensas e enchentes) que se abateram sobre o Estado , mantendo, contudo, sua 1 intenção de prosseguir no movimento coletivo noticiado quando retomada a situação de normalidade.

Todos os dezoito hospitais incluídos no polo passivo possuem instrumentos vigentes de credenciamento junto ao IPE Saúde (cópias anexas) por meio dos quais prestam serviço público de assistência à saúde dos segurados, obtendo o devido ressarcimento pelos serviços prestados, integrando a rede de prestação dos serviços de assistência à saúde dos servidores públicos estaduais e seus dependentes, aos quais o direito é assegurado pelo art. 41-A da Constituição Estadual.

Dias antes da entrada em vigor de novas normas a regulamentar a relação com os hospitais credenciados, parte das instituições ora demandadas ajuizou a ação nº 5071961-14.2024.8.21.0001 perante o 2° Juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Porto Alegre, requerendo medida liminar para suspender o termo inicial de vigência das Instruções Normativas nº 01, 02, 03, 04 e 06 do IPE Saúde, que estava previsto para 1º de abril do corrente ano, “em relação apenas aos hospitais Autores, determinando-se que o Réu se abstenha de aplicar referidos normativos em face dos ora autores, até que apreciado e julgado o mérito” ou “até que o Réu apresente os pareceres técnicos e cálculos completos que embasam os instrumentos” ou ainda “até que seja finalizada a mediação entre as partes”.

A liminar na referida ação foi inicialmente deferida, sem a prévia oitiva do IPE Saúde, nos seguintes termos:

“Isto posto, tenho que estão presentes os requisitos ensejadores da tutela de urgência, motivo pelo qual DEFIRO a tutela para suspender o termo de início de vigência das Instruções Normativas nºs 1, 2, 3, 4, e 6 do IPE Saúde, previsto para a data de hoje (01ABR2024), em relação aos autores, determinando, ainda, que o réu se abstenha de aplicá-las aos autores até o mérito da presente decisão ”

1 https://gauchazh clicrbs com br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2024/05/hospitais-recuam-e-mante m-atendimento-a-segurados-do-ipe-saude-enquanto-durarem-os-problemas-climaticos-clvo8g7d001a0 011wvajrwfjn html

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Contra a liminar, o IPE Saúde interpôs o Agravo de Instrumento nº 5112391-60.2024.8.21.7000, no qual, ao analisar o pedido de efeito suspensivo, após minucioso exame dos argumentos colacionados pela autarquia, em conjunto com os elementos trazidos pelo Ministério Público Estadual, foi proferida decisão que deferiu “o pedido liminar recursal, para o efeito de afastar a suspensão das

Instruções Normativas n. 01/24, 02/24, 03/24, 04/24 e 06/24 do IPE SAÚDE, revogando-se a tutela antecipada deferida pelo juízo de origem, nos termos da fundamentação”

A ausência de contrariedade ao direito das Instruções Normativas, portanto, foi reconhecida em sede de Agravo de Instrumento pelo e. TJ/RS.

Inconformados com a insubsistência de suas teses jurídicas contra a validade das citadas Instruções Normativas, as entidades hospitalares orquestraram o movimento extraprocessual ora em voga.

Nesse contexto é que os demandados apresentaram, no dia 29 de abril de 2024, a referida notificação ao IPE Saúde, em movimento coletivo desencadeado com evidente abuso de direito, como mecanismo de pressão para a alteração do conteúdo das normativas contra as quais se insurgiram ou, quiçá, para a criação artificial de contexto fático mais favorável para o julgamento colegiado do recurso de Agravo de Instrumento acima mencionado.

A atitude adotada pelos demandados gera um cenário de insegurança por expor milhares de segurados do IPE Saúde, acaso mantida a suspensão dos serviços, a um estado de desassistência a partir do dia 06 de maio de 2024 (prazo aparentemente elastecido pelos réus para coincidir com o término da situação de emergência ou estado de calamidade decorrentes dos eventos climáticos havidos no final de abril e início de maio do ano corrente), onerando abruptamente o Sistema Único de Saúde (SUS), ante o desamparo a milhares de segurados, que necessitarão acorrer ao sistema público a todos acessível. Além disso, caracteriza conduta incompatível com os princípios constitucionais que protegem a saúde pública e com os princípios incidentes nas relações contratuais, tais como a boa-fé objetiva, a proteção da confiança e a função social dos contratos, potencializados pela longa duração do vínculo que mantêm com a Autarquia pública e pela relevância do direito à saúde, incorrendo os demandados em inequívoco abuso de direito e desvio de finalidade, como se verá oportunamente.

Considerando o cenário narrado, outra alternativa não resta ao IPE Saúde se não mover a presente ação, com o objetivo de condenar os réus a

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prestação de fazer, consistente na manutenção do regular atendimento a todos os beneficiários da assistência prestada pela Autarquia, sem exclusão dos procedimentos considerados eletivos, inclusive de forma liminar, inaudita altera parte

II – DO DIREITO.

Conforme se passa a demonstrar, o comportamento dos hospitais réus padece de ilegalidades insuperáveis, devendo ser obstado, nos termos ora postulados.

II.1 DO ATO COLETIVO ILEGAL DE AMEAÇA DE DESCREDENCIAMENTO SIMULTÂNEO DE DEZOITO ENTIDADES HOSPITALARES. ABUSO DE DIREITO. DESVIO DE FINALIDADE. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.

O tema ora trazido à apreciação do Poder Judiciário não atrai uma análise a partir da lógica estritamente privatista/contratual, mas essencialmente sob a ótica da política pública assistencial devida aos servidores públicos estaduais e a seus dependentes, nos termos do art. 41-A da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, verbatim:

Art 41-A O Estado manterá órgão ou entidade de assistência à saúde aos seus servidores e dependentes, mediante contribuição, na forma da lei (Incluído pela Emenda Constitucional n º 78, de 03/02/20) Parágrafo único O órgão ou a entidade de que trata o “caput” poderá, mediante a devida contrapartida, baseada em cálculo atuarial que assegure o equilíbrio financeiro, verificado anualmente mediante revisão dos termos contratuais, firmar contrato para a prestação de cobertura assistencial à saúde, na forma da lei, aos servidores, empregados ou filiados, e seus dependentes, das: (Incluído pela Emenda Constitucional n º 78, de 03/02/20)

I - entidades ou dos órgãos integrantes da Administração Direta ou Indireta da União, do Estado e dos municípios; e (Incluído pela Emenda Constitucional n º 78, de 03/02/20)

II - entidades de registro e fiscalização profissional, inclusive as de natureza autárquica “sui generis”. (Incluído pela Emenda Constitucional n.º 78, de 03/02/20)

Deve-se, por isso, na esteira do art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657/42, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, considerar a transcendência das consequências das medidas anunciadas pelos réus, que interferem na esfera jurídica de milhares de beneficiários do Sistema IPE Saúde, e, indiretamente, no Sistema Único de Saúde.

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Para concretizar a assistência à saúde devida nos termos do citado dispositivo constitucional, o IPE Saúde faz a gestão do Sistema de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul, seus dependentes e pensionistas (Sistema IPE Saúde), fundamentado nos princípios da coparticipação financeira dos usuários e da prestação de serviços de assistência médica, mediante credenciamento de profissionais e pessoas jurídicas da área da saúde, tudo nos termos da Lei Complementar Estadual nº 15.154/2018, verbis:

Art 1 º Fica reorganizado, na forma desta Lei Complementar, o Sistema de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, seus dependentes e pensionistas, denominado Sistema IPE Saúde, tendo como gestor o Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul – IPE Saúde –, segundo os ditames da presente Lei Complementar, resoluções e regulamentos próprios

Art 2 º É objetivo primordial do Sistema IPE Saúde a realização das operações de assistência à saúde aos servidores públicos dos Poderes de Estado, órgãos e entidades autônomas, previstas nas tabelas de cobertura do IPE Saúde, na forma prevista e autorizada nesta Lei Complementar, no respectivo Regulamento e nos atos normativos expedidos pelo Instituto.

§ 1.º O Sistema de que trata o “caput” deste artigo é fundamentado nos princípios da coparticipação financeira dos usuários e da prestação de serviços de assistência médica, mediante credenciamento de profissionais e pessoas jurídicas da área da saúde.

[ ]

Art 6 º Os serviços de assistência à saúde dos usuários do Sistema IPE Saúde serão oferecidos por intermédio da rede credenciada, mediante contrato com pessoas físicas e jurídicas, cujas regras complementares e penalidades serão estabelecidas no Regulamento Geral do Sistema de Credenciamento do Instituto.

Claro está que, embora a responsabilidade pela manutenção de entidade de assistência à saúde aos servidores seja do Estado, na forma do já citado art. 41-A da Constituição Estadual, sua materialização depende do credenciamento de pessoas físicas ou jurídicas habilitadas para a prestação de serviços médicos. A participação de entidades privadas na prestação de serviços de saúde, aliás, tem amparo no art. 197 da Lei Maior, segundo o qual as ações e serviços de saúde, que são de relevância pública, serão executados diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

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A rede credenciada, uma vez vinculada ao Sistema de Assistência à Saúde dos Servidores do Estado e seus dependentes, assume as responsabilidades que decorrem desse vínculo jurídico, inclusive as emergentes da função social dos contratos (art. 421 do Código Civil), especialmente diante dos destinatários finais do serviço público em voga. Por isso, é antijurídico o movimento coletivo orquestrado de suspensão de atendimentos e de ameaça de descredenciamento, sem qualquer proporcionalidade entre os prazos unilateralmente fixados pelos réus e aqueles minimamente necessários para a adoção de medidas emergenciais de reorganização do Sistema por seu gestor.

Aqui, faz-se necessária a seguinte indagação: quem pretende se aproveitar da surpresa apresentada pelos hospitais demandados em deixar de atender os pacientes segurados da Autarquia autora?

Mais do que isso: a quem se aproveita o caos e a apreensão gerados nesses segurados, senão a um ilegítimo movimento de pressão em decorrência de frívola inconformidade contra instruções normativas que apenas e tão somente impedem o superfaturamento nos atendimentos?

É fundamental sublinhar o aspecto coletivo do movimento e suas consequências sobre todo o Sistema de Assistência à Saúde, situação que em muito se distancia e, por isso, não pode ser equiparada, a pedidos individuais de descredenciamento fundamentados nas cláusulas dos instrumentos contratuais firmados com cada uma das entidades hospitalares (vide documentos anexos).

O ato de descredenciamento conjunto, com claro caráter de movimento reivindicatório, ainda que pudesse vir a ser, sob a perspectiva interna de cada instrumento, formalmente justificado nas aludidas cláusulas, configura inequívoco desvio de finalidade e abuso de direito.

A partir do momento em que o descredenciamento, ou mesmo a suspensão temporária de atendimentos, não é postulado por um integrante da rede, mas, de forma concertada, pelos principais hospitais que dão operatividade ao Sistema Assistencial, na forma do art. 6º da Lei Complementar Estadual nº 15.154/2018, a análise da juridicidade dessa conduta sobeja os lindes dos instrumentos contratuais individualmente firmados, atraindo o olhar do intérprete para a coletividade que será atingida caso concretizadas as medidas anunciadas.

Além disso, atentando-se para o trato continuado e histórico das relações jurídicas cuja intenção de desfazimento é propalada pelos nosocômios

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demandados, muitas delas mantidas desde a década de 1970, resta clara a quebra do dever implícito de lealdade e, ao mesmo tempo, a violação ao princípio da boa-fé objetiva, ao adotarem medidas abruptas que prejudicam as justas expectativas geradas pelas características da relação mantida desde longa data.

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, “[n]as relações contratuais, a boa-fé objetiva, além de servir de norte interpretativo e de norma de criação de deveres jurídicos anexos, exerce destacada função de limitar o exercício de direitos subjetivos, no caso de se manifestarem como expressão de verdadeiro abuso de direito. Nesse viés, não se coaduna com a boa-fé objetiva e, portanto, não tem respaldo do ordenamento jurídico, o comportamento contratual incoerente, capaz de frustrar a legítima expectativa do outro contratante, gerada pela postura adotada anteriormente.” (REsp n. 1.993.499/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 9/8/2022).

Em caso relativo ao descredenciamento de Clínica Médica de Plano de Saúde, aplicável, mutatis mutantis, à situação concreta - na medida em que as consequências diretas do descredenciamento serão sentidas pelos usuários do IPE Saúde - assim se pronunciou a Corte Cidadã:

RECURSO ESPECIAL CIVIL PLANO DE SAÚDE DESCREDENCIAMENTO DE CLÍNICA MÉDICA COMUNICAÇÃO PRÉVIA AO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA. VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. PREJUÍZO AO USUÁRIO SUSPENSÃO DE TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO

2 Cinge-se a controvérsia a saber se a obrigação das operadoras de plano de saúde de comunicar aos seus beneficiários o descredenciamento de entidades hospitalares também envolve as clínicas médicas, ainda que a iniciativa pela rescisão do contrato tenha partido da própria clínica

4 Os instrumentos normativos (CDC e Lei nº 9 656/1998) incidem conjuntamente, sobretudo porque esses contratos, de longa duração, lidam com bens sensíveis, como a manutenção da vida. São essenciais, assim, tanto na formação quanto na execução da avença, a boa-fé entre as partes e o cumprimento dos deveres de informação, de cooperação e de lealdade (arts. 6º, III, e 46 do CDC)

5 O legislador, atento às inter-relações que existem entre as fontes do direito, incluiu, dentre os dispositivos da Lei de Planos de Saúde, norma específica acerca do dever da operadora de informar o consumidor quanto ao descredenciamento de entidades hospitalares (art 17, § 1º, da Lei nº 9 656/1998)

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(STJ, RECURSO ESPECIAL nº 1561445/SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe: 13/08/2019)

Embora inaplicáveis ao Sistema IPE Saúde as disposições do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da Lei nº 9.656/1998, as obrigações decorrentes do boa-fé objetiva, incidentes sobre todas as relações contratuais, autorizam aproximar os deveres acima anunciados da situação concreta, a qual, a exemplo daquela enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, também envolve contratos de longa duração que lidam com bens sensíveis, como a manutenção da vida, ou seja, que auxiliam os beneficiários do Sistema de Assistência à Saúde a suportar os riscos futuros envolvendo sua higidez física e mental, assegurando o devido tratamento médico.

Em situação na qual um hospital conveniado suspendeu o atendimento dos pacientes da operadora de plano de saúde ré como forma de pressão para adimplemento de outras dívidas, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a existência de responsabilidade solidária do nosocômio:

DIREITO DO CONSUMIDOR RECURSO ESPECIAL AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER PLANOS DE SAÚDE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO IMPUGNADO SÚMULA 283/STF PRESTADORES DE SERVIÇO OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE DESCREDENCIAMENTO INTERRUPÇÃO DE TRATAMENTO ONCOLÓGICO RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA CONFIGURADA

2 Ação de obrigação de fazer que busca a garantia de continuidade de tratamento de quimioterapia em hospital descredenciado pelo plano de saúde

3 O propósito dos recursos especiais interpostos é definir o alcance da responsabilidade do hospital e da operadora de plano de saúde pela negativa e embaraço do atendimento médico do consumidor.

7 O CDC estabelece a responsabilidade solidária daqueles que participam da introdução do serviço no mercado por eventuais prejuízos causados ao consumidor (art 7º, parágrafo único e art 14)

8. Os princípios da boa-fé, cooperação, transparência e informação, devem ser observados pelos fornecedores, diretos ou indiretos, principais ou auxiliares, enfim todos aqueles que, para o consumidor, participem da cadeia de fornecimento

9 O entendimento exarado pelo Tribunal de origem encontra-se em consonância com o do STJ, no sentido que existe responsabilidade solidária entre a operadora de plano de saúde e o hospital conveniado,

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pela reparação dos prejuízos sofridos pela beneficiária do plano decorrente da má prestação dos serviços; configurada, na espécie, pela negativa e embaraço no atendimento médico-hospitalar contratado

(REsp 1.725.092/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/3/2018, DJe 23/3/2018 - grifou-se).

Embora o caso tenha se amparado no CDC, a responsabilidade dos hospitais perante os beneficiários do Sistema IPE Saúde existe independentemente da incidência dessa lei especial, decorrendo dos deveres contratuais acessórios adrede destacados.

Aliás, muito não se precisa dizer acerca da evidente inexistência de um direito potestativo dos nosocômios de interpretarem os respectivos contratos e credenciamentos como lhes aprouvesse. Vale dizer: se as instruções normativas contra as quais se debateram alhures contivessem ilegalidades, discrepâncias ou desequilíbrios, isso seria objeto de declaração pelo Poder Judiciário, notadamente em razão do caráter sinalagmático que regem tais relações jurídicas.

Desse modo, a um, há de se considerar a inexistência de direito de os hospitais deixarem de atender pacientes segurados da Autarquia exclusivamente de acordo com as suas vontades individuais. Isso não decorre de nenhum dos termos de credenciamento ora acostados pelo autor e encontra óbice expresso no art. 421 do Código Civil, que prevê que “[a] liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”, e no art. 422 do mesmo diploma legal, segundo o qual “[o]s contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Nesse sentido, veja-se a seguinte lição doutrinária:

Afirma-se, assim, que a função social do contrato implica o condicionamento da tutela da liberdade de contratar a interesses da coletividade. Trata-se da proibição de contratos que repercutam negativamente sobre a comunidade e da conservação ou tratamento diferenciado de contratos que repercutam positivamente junto à sociedade Nesta terceira série de efeitos, já se enfatiza mais o caráter “social” da função que guia a normatização do contrato A função do contrato tem que estar de acordo com certos interesses que são independentes das partes, afirmando-se assim que “a liberdade de contratar está limitada não só pela supremacia da ordem pública, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais”

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(KONDER, Carlos Nelson Para além da "principialização" da função social do contrato Revista Brasileira de Direito Civil, [S l ], v 13, n 03, p 39–60, 2018 Disponível em: https://rbdcivil ibdcivil org br/rbdc/article/view/151 Acesso em: 30 abr 2024, p 55)

De toda sorte, a dois, ainda que houvesse esse direito, o que se admite apenas para exaurir o argumento, a ilegítima pretensão dos demandados esbarraria na dicção contida no artigo 187 do Código Civil, segundo a qual “[t]ambém comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, bem como no postulado do art. 113 do mesmo diploma legislativo, de acordo com o qual “[o]s negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

Ora, consoante exaustivamente demonstrado, a medida contra a qual se dirige esta ação não decorre de outra razão, senão da inconformidade dos réus contra a série de instruções normativas declaradas legais por esse mesmo Poder Judiciário.

O tema, conforme já assinalado, encontra-se judicializado e será definido no âmbito do processo nº 5071961-14.2024.8.21.0001, havendo, no momento do movimento desencadeado pelos réus, pronunciamento favorável, exarado em segunda instância, à autarquia estadual que, ao fim e ao cabo, acatará a palavra final do Poder Judiciário. Trata-se do comportamento esperado dos sujeitos de direito cujos litígios estão sob o crivo do Judiciário, vedado-se às partes, a propósito, “praticarem inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso” (CPC, art. 77, VI).

É pertinente destacar, para bem caracterizar o desvio de finalidade do movimento de descredenciamento anunciado pelos demandados, que a validade das Instruções Normativas contra as quais se insurgem foi afirmada com contundência na decisão que suspendeu os efeitos da liminar deferida no processo nº 5071961-14.2024.8.21.0001, destacando-se os seguintes excertos do voto da e. Relatora do Agravo de Instrumento nº 5112391-60.2024.8.21.7000 (íntegra da decisão em anexo):

Veja-se que a legislação estadual outorga ao IPE-SAÚDE o poder normativo de instituir as Tabelas Próprias para servir de base à remuneração dos prestadores de serviços do Sistema IPE Saúde, havendo a determinação legal de revisão dos valores em período não superior a dois anos

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Nessa esteira, a instituição de Tabelas Próprias pelo IPE-SAÚDE é autorizada pela própria legislação estadual, de tal modo que, por si, não constitui qualquer violação ao poder regulamentar.

E no que interessa ao presente, a princípio, as Instruções Normativas impugnadas não se mostram contra legem, é dizer, não ofendem as previsões legais; ao contrário, encontram seu fundamento de validade na lei

Demais, conforme previsto também em lei, mister que os valores revisados observem um equilíbrio econômico-financeiro entre o IPE-SAÚDE e os prestadores de serviços

Por sua vez, o equilíbrio econômico-financeiro reclama a busca de proporção na relação entre as partes, donde não se pode admitir, por exemplo, a aplicação de sobrepreços conduta indiciariamente demonstrada pelos agravantes.

Com efeito, extrai-se da legislação em vigor a proibição de os hospitais cobrarem de paciente ou de plano de saúde valor superior àquele pelo qual o medicamento foi adquirido.

Por conseguinte, não é possível concluir que os hospitais possam cobrar do IPESAÚDE valor diverso do pago pela aquisição dos medicamentos e dietas (farmaconutrientes) - situação que buscou a autarquia regulamentar e moralizar ora com suas instruções normativas

In casu, em 2020, o Tesouro do Estado do Rio Grande do Sul, órgão integrante da Secretaria da Fazenda Estadual (SEFAZ-RS), com base em estudo elaborado pela sua Divisão de Estudos Econômicos e Fiscais e Qualidade do Gasto (DEQG), identificou a existência de significativo sobrepreço pago pelo IPE-SAÚDE aos hospitais credenciados, consistente na "diferença positiva entre o preço tabelado pelo IPE e o preço de referência (valor de mercado) dos produtos e serviços com cobertura assistencial do IPE - Saúde, ou seja, e o valor que o IPE - Saúde paga aos prestadores acima do valor de mercado" (evento 120, OUT6, p

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26)[sublinhei]

No referido estudo, o Tesouro do Estado também registrou que em 2015 restou apurado que o IPE-SAÚDE pagou aos prestadores de serviços um sobrepreço médio de cerca de 123,3% relativamente a medicamentos, dietas, soluções, materiais hospitalares, órteses e próteses, resultando em um sobrecusto de cerca de 448 milhões de reais

Ademais, já em 2020, igualmente foi encontrado sobrepreço relativamente aos medicamentos e dietas pagas pelo IPE-SAÚDE aos hospitais, configurando sobrecusto desses itens em 228 milhões de reais em medicamentos e em 116 milhões de reais em dietas, conforme tabela abaixo:

Em consequência, adveio o Novo Modelo de Remuneração de Prestadores de Serviços (evento 117, OUT13), levando em consideração as diferenciações nos pagamentos entre, de um lado, as diárias e taxas e, de outro, os medicamentos, dietas e materiais indenizáveis

No que tange aos medicamentos, convém destacar que os valores constantes na Revista Brasíndice, antes adotados, foram identificados como superfaturados (sobrepreço), conforme se verifica da tabela exemplificativa abaixo (evento 117, OUT13 , p. 17): …

Assim, tendo em conta a vedação de os hospitais cobrarem valor superior ao que foi adquirido dos planos de saúde e pacientes, e com vistas a aferir adequadamente o valor de mercado dos medicamentos, dietas e materiais, o IPE-SAÚDE instituiu-se a Política da Lista de Preços de Mercado (LPM/IPE SAÚDE)

Diante desse contexto, ao menos em sede de cognição sumária, inexistem elementos de prova a indicar que os hospitais autores estejam assumindo os custos dos medicamentos e dietas (grifou-se)

Assim, se direito de suspensão de atendimentos houvesse, e ainda

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que o exercício desse direito dispensasse o devido processo legal, na espécie seria ele abusivo, porque decorrente de um conluio entre os prestadores com a finalidade escusa e absolutamente reprovável de se desviar da decisão judicial que considerou as instruções normativas questionadas válidas. O abuso de direito, o desvio de finalidade e a afronta aos princípios da lealdade e da boa-fé estão devidamente evidenciados.

Dessa forma, a interrupção abrupta da prestação de serviços, motivada pela insatisfação com normativas cuja validade tem respaldo do Poder Judiciário, importa inequívoca ilegalidade.

II.2 DA AUSÊNCIA DE BASE LEGAL E CONTRATUAL PARA A SUSPENSÃO DE ATENDIMENTOS.

Os argumentos acima expostos, relacionados à ilegalidade do ato de descredenciamento coletivo, aplicam-se do mesmo modo à suspensão de atendimentos aos beneficiários da assistência prestada pela Autarquia.

Quanto a esse aspecto, ainda, deve ser agregada a absoluta ausência de previsão contratual relacionada à possibilidade de suspensão dos atendimentos durante o período de vigência dos credenciamentos, o que reforça a antijuridicidade da conduta dos demandados que se auto concederam a prerrogativa de limitar os atendimentos aos beneficiários do Sistema IPE Saúde.

De fato, enquanto vigentes os instrumentos de credenciamento, a suspensão dos atendimentos aos beneficiários não pode ser admitida, configurando descumprimento contratual que, pelas características dos serviços contratados, demanda a imediata determinação de retomada da execução contratual em sua plenitude.

A suspensão de atendimentos anunciada é feita à revelia dos instrumentos contratuais porque possui nítido caráter de medida de pressão em face do gestor do IPE-Saúde, em total desconsideração às vidas que dependem da assistência, ante a legítima expectativa decorrente da relação jurídica. Trata-se de uma espécie anômala, ilícita e predatória de movimento paredista: anômala porque, em vez de veicular reivindicações de trabalhadores em face de empregadores, é praticada por entidades hospitalares em face do gestor do sistema de assistência à saúde; ilícita, por não estar amparada nas hipóteses restritas de direito a greve, regido pela Lei nº 7.783/1989; e predatória porque atinge pessoas em evidente situação de vulnerabilidade, representadas pelos segurados da Autarquia que necessitam de prestações relacionadas à sua saúde a desautorizar,

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portanto, a manutenção da prestação de serviço essencial apenas aos “casos de risco de morte iminente”.

Por tais motivos, deve ser repelida a juridicidade dos atos de suspensão de serviços praticado pelas demandadas.

II.3 DA INVALIDADE

DA NOTIFICAÇÃO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL PARA O DESCREDENCIAMENTO.

Além da ilegalidade do movimento coletivo dos hospitais cadastrados no IPE Saúde, feito em flagrante abuso de direito, deve ser reconhecida a invalidade da notificação por eles efetuada, já que viola o devido processo legal para o descredenciamento do sistema, que deve ser realizado individualmente pela respectiva entidade hospitalar, em razão da necessidade de analisar as disposições específicas da avença firmada junto ao IPE Saúde, e da situação particular do nosocômio.

Observa-se que, para esses casos, o descredenciamento está condicionado, dentre outros aspectos inerentes à Administração Pública e ao regramento de seu processo administrativo (Lei Estadual nº 15.612/21), à inexistência de apuração de irregularidades na prestação de serviços. Como é sabido, está em curso na 8ª Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre o Inquérito Civil n. 01623.000.642/2020, o que inviabiliza o descredenciamento das entidades hospitalares acima referidas.

Ademais, segundo dispõe a Lei nº 9.656/1998, que rege os planos e seguros privados de assistência à saúde, o descredenciamento de entidade hospitalar implica necessidade de sua substituição por outro equivalente e mediante comunicação aos consumidores e à ANS com trinta dias de antecedência, por parte do gestor do plano de saúde (art. 17, § 1º). Trata-se de regra que cria uma obrigação aos planos de saúde privados e que, ainda que não se aplique imediatamente à assistência prestada pelo IPE, produz um norte dogmático que não deve ser desconsiderado na inusitada situação em que dezoito nosocômios decidem, como instrumento de indisfarçada pressão, suspender os seus atendimentos com movimento de sucessivo descredenciamento.

Não há como se ignorar, neste sentido, que o descredenciamento deve ser precedido de devido processo legal, no qual o gestor toma conhecimento das razões que justificam o pedido e verifica a existência de algum impedimento para tanto, além de providenciar, em tempo hábil, sua substituição ou alternativa que vise evitar a desassistência aos segurados.

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Nessa senda, exemplificativamente, registra-se que, do contrato firmado entre o IPE Saúde e o Hospital de Câncer Mãe de Deus, nos autos do PROA nº 19244100073105, extrai-se o seguinte procedimento:

Art 12 - O credenciado poderá solicitar à Diretoria de Saúde do Instituto, formalmente, seu descredenciamento, observada a antecedência mínima de 30 (trinta) dias e desde que não prejudique a continuidade do tratamento que está sendo dispensado aos usuários do Plano IPE Saúde.

Art 13 - O credenciado que estiver em processo de apuração de irregularidade na prestação de serviços não poderá utilizar-se da faculdade prevista no artigo anterior, podendo, no entanto, solicitar a suspensão da prestação dos serviços.

Art 14 - O descredenciamento pelo IPE SAUDE não eximirá o prestador de serviço das garantias assumidas em relação aos serviços executados e de outras responsabilidades que legalmente lhe possam ser imputadas

Há previsão semelhante no contrato vigente entre o IPE Saúde e a Associação Hospitalar Beneficente São Vicente de Paulo, firmado no ano de 2016.

Salienta-se que o disposto no artigo acima prevê a possibilidade de solicitação formal de descredenciamento pela entidade hospitalar credenciada, o que, por óbvio, não ocorre mediante notificação coletiva de hospitais que atendem massiva demanda em âmbito estadual, mas, sim, por meio de devido processo legal, no âmbito da autarquia estadual, cuja deliberação cabe à Diretoria de Saúde do Instituto.

Conclui-se, portanto, pela invalidade da notificação empreendida: a) pela inexistência de respaldo contratual para descredenciamento coletivo via notificação; b) pela impossibilidade atual do descredenciamento, tendo em vista o procedimento em curso no Ministério Público, diante de possíveis irregularidades na prestação dos serviços pelos hospitais credenciados e; c) pela necessidade de apuração, em devido processo legal, das razões expostas pela entidade que postula o descredenciamento, e as medidas subsequentes a serem adotadas pelo gestor em tempo hábil a fim de evitar prejuízos aos assistidos.

III - DA TUTELA DE URGÊNCIA. RISCO DE DESASSISTÊNCIA. REFLEXOS NO SISTEMA ÚNICO

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DE SAÚDE.

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A atitude que os hospitais demandados ameaçam adotar em relação aos usuários do plano assistencial gerido pela Autarquia demandante é ilegal, em razão da ausência de respaldo nos instrumentos contratuais firmados entre as partes e nas disposições normativas que regem a relação entre o IPE Saúde e os hospitais credenciados, ficando evidente o abuso de direito no movimento organizado pelos requeridos.

Inconformados com a decisão judicial que não identificou a existência de qualquer irregularidade na série de instruções normativas editadas pela Autarquia com a finalidade de adequar os pagamentos realizados aos hospitais à realidade, fazendo cessar práticas vetustas de superfaturamentos, os demandados optaram por incutir o abuso que outrora praticavam contra o IPE diretamente aos seus segurados, isto é, contra todos aqueles que necessitam do atendimento médico que deveriam prestar

Essa é, precisamente, a pretensão contida na presente ação: proteger os segurados do instituto, os quais representam, inegavelmente, a parte mais fraca nessa relação jurídica, dos impiedosos abusos que ameaçam praticar os requeridos

Estão presentes, assim, os pressupostos do artigo 300 do Código de Processo Civil, uma vez que se afiguram evidentes a probabilidade do direito invocado pelo IPE Saúde (fumus boni iuris) e o risco de dano irreparável aos usuários do Sistema e à população em geral, bem como ao resultado útil do processo (periculum in mora).

Com efeito, o fumus boni iuris resta evidenciado nos fundamentos adrede delineados, dos quais se extrai a abusividade e a ausência de base legal e contratual para a suspensão dos atendimentos aos pacientes do plano assistencial gerido pelo IPE.

De outra parte, o periculum in mora decorre das consequências absolutamente imprevisíveis que serão suportadas pelos segurados do IPE, que se verão desassistidos por uma complexa rede de 18 (dezoito) nosocômios com os quais desde longa data tiveram a legítima expectativa de contar

Além disso, deve ser considerado o impacto da suspensão dos serviços ao Sistema Único de Saúde, pois a desassistência ensejará uma natural migração dos beneficiários ao sistema público.

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Ainda, devem ser considerados os reflexos na sobrecarga às demais entidades credenciadas à rede, que de algum modo serão chamadas a atender a demanda surgida pela abrupta ausência dos hospitais réus.

Em consideração ao exposto, requer o IPE SAÚDE a concessão de tutela de urgência, inaudita altera parte, para que seja determinado aos hospitais demandados que prossigam o regular atendimento dos beneficiários do IPE Saúde, sem excluir os procedimentos eletivos.

Ainda, considerando que se trata de medida que visa proteger a saúde dos segurados do Instituto, requer-se a fixação de astreintes para a hipótese de descumprimento da medida liminar ora postulada, sugerindo-se, desde logo, o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por beneficiário do Sistema IPE Saúde cuja assistência à saúde venha a ser total ou parcialmente negada.

IV - DOS PEDIDOS.

Ante o exposto, o INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO RIO GRANDE DO SUL requer:

(i) a concessão de tutela liminar de urgência, inaudita altera parte, para determinar que os hospitais demandados prossigam atendendo regularmente todos os beneficiários do IPE Saúde, inclusive no que se refere a procedimentos eletivos, proibindo-os de implementar as restrições de atendimento e os cancelamentos previstos na notificação anexa, de 29 de abril de 2024, sob pena de multa diária, nos termos do item III, supra;

(ii) após a concessão da liminar, sejam os Hospitais réus citados para, querendo, apresentar resposta à ação;

(iii) a integral procedência do pedido, tornando-se definitiva a prestação jurisdicional concedida liminarmente, para:

a) impor aos réus a obrigação de prosseguir os atendimentos aos beneficiários do Sistema IPE Saúde enquanto vigente os instrumentos de credenciamento, inclusive os procedimentos eletivos;

b) declarar a invalidade, por abuso de direito e desvio de finalidade,

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da notificação de descredenciamento coletivo das entidades hospitalares ao Sistema IPE Saúde;

c) interditar, com o intuito de impedir a desassistência dos beneficiários do Sistema IPE Saúde, qualquer pedido de descredenciamento, ainda que individual, que venha a ser formulado com o intuito de pressionar a Autarquia para alterar o sistema de remuneração previsto nas Instruções Normativas nº 01 a 06 do IPE Saúde, sem prejuízo da manutenção do diálogo a partir de meios admitidos em direito, em especial no âmbito do processo nº 5071961-14.2024.8.21.0001, impondo-se-lhes, por força dos princípios da lealdade, boa-fé e função social dos contratos, a continuidade da prestação dos serviços de assistência médica e hospitalar aos usuários do IPE Saúde até a reorganização do Sistema ou, no mínimo, pelo prazo de 270 (duzentos e setenta) dias a contar do deferimento da medida liminar

Protesta pela produção de todas as provas em Direito admitidas, e indica a opção pela realização da audiência de conciliação prevista no inciso VII do art. 319 do CPC.

Tendo em vista do caráter inestimável do objeto da tutela ora vindicada, atribui-se à causa o valor de alçada: R$ 12.932,50 (doze mil novecentos e trinta e dois reais e cinquenta centavos).

Pede deferimento.

Porto Alegre, 02 de maio de 2024.

Eduardo Cunha da Costa, Procurador-Geral do Estado.

Thiago Josué Ben, Procurador-Geral Adjunto para Assuntos Jurídicos.

Guilherme de Souza Fallavena, Procurador do Estado.

Luciano Juárez Rodrigues, Procurador do Estado.

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Tiago Bona, Procurador do Estado.

Morgana Sucolotti Panosso, Procuradora do Estado.

Cristina Elis Dillmann, Procuradora do Estado.

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