Catálogo da Mostra de Cinema sobre os cineeastas franceses Elisabeth Perceval e Nicolas Klotz

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O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos Ferreira, Leonardo Luiz (org.) 2ª edição Julho de 2015 ISBN 978-85-65564-07-6 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do organizador.





AS MARGENS NO CINEMA Há muitas maneiras de ser e estar no mundo. Nesse sentido, a existência de abismos culturais, sociais, políticos e econômicos sugere que este mundo em que vivemos é múltiplo e composto por vários mundos – alguns deles mais visíveis do que outros. Aos cineastas, cabe a escolha: que mundo filmar? Nos trabalhos do diretor francês Nicolas Klotz, realizados em parceria com sua esposa, a roteirista Elisabeth Perceval, a opção foi a de dar visibilidade àquilo que ninguém quer ver: sem-tetos, imigrantes ilegais e outros tipos marginalizados são personagens de muitos de seus filmes, que compõem um retrato das relações socioculturais da França no início do século XXI. Qualificar como invisíveis cidadãos do submundo, entretanto, talvez não seja suficiente para dar conta da complexidade dessas relações. Se passassem despercebidos, não haveria quem atravessasse a rua a passos largos diante da iminência do encontro indesejável; ou quem fechasse a janela do veículo estacionado nos cruzamentos da cidade, evitando, assim,

qualquer possibilidade de contato com o estranho. Por isso, talvez seja preciso chamar a atenção para uma visibilidade de outra ordem, em que o outro é, sim, percebido, mas a partir de lentes míopes, distorcidas por estereótipos e preconceitos. Se a ignorância constitui um dos motores que alimenta o desprezo ao outro, a construção de zonas de intimidade com essas vítimas da injustiça social pode ser um bom antídoto. Essa é uma das premissas de filmes que compõem a tetralogia formada por Paria (2000), A Ferida (2004), A Questão Humana (2007) e Low Life (2011). Para o público do Sesc, a realização da retrospectiva “O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos” representa a oportunidade de assistir à filmografia de um dos mais importantes cineastas franceses da atualidade. Filmes que, à luz da realidade brasileira, soam profundamente familiares.

Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo


foto: Alvaro Riveros

CURADORIA

CENA1 A participação em festivais de cinema pelo mundo tanto como crítico quanto cineasta é recheada de expectativa e tensão. No primeiro caso, há uma vontade enorme de assistir ao máximo de produções possíveis e tentar em pouco tempo digerir e processar as imagens. Já os diretores buscam contatos de distribuição e formas de con-

tinuarem a filmar. Em meio a tantas ofertas no cardápio, normalmente as escolhas recaem sobre cineastas renomados e temas que lhe agradem. Com relação aos outros títulos, eles podem preencher lacunas de programação. Porém, é nesse momento que podemos descobrir pérolas cinematográficas. Esse relato inicial vai


ao encontro da iluminação que foi assistir A Ferida, no ano de 2005, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Confesso que nunca tinha ouvido falar no nome de Nicolas Klotz, mesmo atuando naquele momento há seis anos como crítico de cinema. Uma experiência radical de quase três horas de duração que não faz nenhum espectador sair incólume da sessão. E o cinema realmente deveria ser sempre assim: deixar marcas no corpo e na mente, que nos acompanham e assombram por anos a fio. O casal Klotz e Elisabeth Perceval realiza um documento contundente sobre a exclusão e o preconceito na contemporaneidade. Dotado de caráter documental, com um estilo seco, formado por longos planos fixos e estruturado a partir de sete monólogos, A Ferida é uma obra-prima que merece ser vista, revista e debatida. Movido por esse espírito nascia ali, logo após aquela exibição, a vontade de conhecer todos os filmes de Klotz e de tentar realizar uma retrospectiva para o público brasileiro.

CENA2 Os festivais de cinema não servem apenas para ver filmes, mas também para fazer amigos. Durante a celebração do aniversário de um deles, também crítico, em um bar eis que me deparo frente a frente com o cineasta Nicolas Klotz sentado ao meu lado. Ele estava lançando na Mostra de São Paulo seu mais recente longa-metra-

gem, Low Life (2011), e vinha de um debate com o público. Uma feliz coincidência na qual pude revelar a minha admiração por seu trabalho e a vontade de realizar uma retrospectiva de sua carreira no Brasil. E qual não foi a minha surpresa em saber que ele tinha um grande desejo de apresentar seus filmes no meu país, pois percebia uma afinidade de temas de suas obras com a realidade do Brasil. Nos encontramos mais algumas vezes e mantivemos contato por correio eletrônico. Dois anos depois do encontro, o sonho estava prestes a ser concretizado.

CENA3 Fevereiro de 2014: a mostra, com minha curadoria e a presença de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, esposa e roteirista de todos os filmes, é exibida no Rio de Janeiro.

CENA4 Julho de 2015: o ciclo se completa e a retrospectiva chega a São Paulo, na tradicional sala de cinema Cinesesc, novamente com a presença de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Dessa vez, com filmes em première mundial, como a nova versão de Zombies (2008-2015) e Coragem, curta-metragem que os incentivei a rodar quando estiveram no Rio de Janeiro. Além de exibir meu segundo longa-metragem, NK + EP (2015), no qual documento a passagem do casal Klotz e Perceval pela favela do Vidigal (RJ) e o método de trabalho dos dois.

Leonardo Luiz Ferreira é curador da mostra O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos, jornalista, crítico de cinema e cineasta. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), já trabalha há 16 anos no campo da crítica cinematográfica, com passagens por diversos veículos. Coorganizador do livro John Carpenter: O Medo é só o Começo (Ed. Bookmakers). Codiretor do longa-metragem Chantal Akerman, de cá, exibido em mais de 35 festivais nacionais e internacionais, entre eles FIDMARSEILLE, BAFICI e VIENNALE e da série Cinema de Bordas (Canal Brasil, 2013); e realizador e roteirista do curta Paisagem Interior (2014) e do longa NK + EP (2015).


SUMÁRIO

AS NOITES DE BENGALI E LA NUIT SAABCRBAÉEDE por MARIO

PARIA

por

FILIPE fuRTADO

A FERIDA

por

RUY GARDNIER

A A QUESTÃporO HUOMTOAN LEDO JOÃ

LOW LIFE

por

FILIPE fURTADO

OISELLE JULIE MADEM por IANA MONASSA TAT

NS LE VENT SOUFFLE DA UR NE ON H LA COUR D’ EIRA por

CALAC NOGU

LA CONSOLATION E AMLET JEUNESSEO LUD’IZHFER REIRA

por

LEONARD

11 17 21 27 35 43 49 53


DOCS DE JAZZ: BRAD ER MEHLDAU E JAMESNDOCAGART LLEGO por

LUIZ FERNA

57 60 68 78 89 120 131 138

DIÁLOGOS CLANDENSTCUINTLOS ER por

AARO

e MARIANA SHELLARD

ENSAIOS SOBRE O PRÓPRIO CIO ORNEIENMTEA por

FERNAND

SINOPSES AGRADECIMENTOS

CEREMONY BRAZZAMAE CINÉ LES AMANTS IVEIRA JUNIOR

FICHA TÉCNICA

ENTREVISTA KLOTZ+PERCEVAL

APOIO

por LUIZ CARLOS OL

IRA por LEONARDO LUIZ FERRE

ENTREVISTA HÉLÉNA E ULYSSE KLOTZ

IRA

por LEONARDO LUIZ FERRE

O MUNDOpor-MNICOVOLIMASENKLOTTOZ S) REVOLUÇÃO(ÕE KLOTZ por NICOLAS

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E D S E T I O N S A BENGALI E LA NUIT SACRÉE Talvez não seja a melhor opção iniciar o contato com a obra do cineasta francês Nicolas Klotz por meio de seus dois primeiros filmes, As Noites de Bengali (1988) e La Nuit Sacrée (1993). O próprio cineasta não gosta desses longas. Mas, ao mesmo tempo, renegar filmes é uma prática constante entre os diretores que alimentam a autocrítica. Na carreira de diretor, esse comportamento contribui para a relevância da obra de um realizador em relação à linguagem cinematográfica. A capacidade de autoquestionamento e a percepção do próprio erro alargam a visão para os projetos seguintes. Para ilustrar essa conduta típica do ofício, é possível citar o mitológico Stanley Kubrick, que disse que O Iluminado (1980), para muitos o maior estudo cinematográfico sobre a loucura e a desintegração humana em um ambiente claustrofóbico, era seu roteiro mais fraco. Para analisar o caso de Klotz, nem dá para usar termos de comparação como Duna (1984), de David Lynch, que renega o

EXERCÍCIOS DE PRÉ-CINEMA por

MARIO ABBADE

filme por não ter tido o corte final. Pelo contrário: Nicolas Klotz assume que teve os recursos necessários e que participou de todas as etapas da produção de ambos os filmes com sua assinatura que o desagradam. Em La Nuit Bengali (no original), é possível dizer em sua defesa, no entanto, que sua versão ideal teria quase 150 minutos de duração, bem diferente dos atuais 108 minutos. Não que uma metragem maior necessariamente garantisse um resultado mais satisfatório. Só é certo que as duas versões têm como objetivo traçar um painel de contrastes entre as culturas ocidental e oriental. O cenário é a Índia pós-Segunda Guerra Mundial, na qual o romance entre duas pessoas egressas de tradições completamente diferentes estaria condenado a dar errado. A trama conta a história de um engenheiro britânico (Hugh Grant) que vai construir estradas e pontes na Índia. Depois de contrair uma doença, ele é convi-

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dado a se recuperar na casa de Narendra Sen (Soumitra Chatterjee), seu empregador. Lá, acaba conhecendo a filha adolescente de Narendra, a exótica Gayatri (Supriya Pathak). Os dois embarcam em um tórrido romance que vai colocar o engenheiro em conflito com a família de sua amada. Mas Klotz assume que faltou paixão e fogo entre os protagonistas e que suas raízes de teatro acabaram atrapalhando o ritmo do longa, que demora muito para retratar o casal — e, quando isso acontece, as cenas tornam-se muito rápidas e com fechamentos abruptos. Talvez tenha faltado a introspecção do famoso livro escrito por Mircea Eliade que inspirou o filme. O texto de Eliade conta sua experiência real na Índia, quando esteve no país a fim de tomar conhecimento de uma nova cultura. Lá, o célebre filósofo romeno (“A história das religiões”) conheceu Maitreyi, o amor de sua vida, mas a distância cultural entre os dois e a não aprovação do pai da moça atrapalharam o romance, que terminou de modo muito sofrido para ambos. Maitreyi, que também se tornou uma escritora famosa, escreveu um livro com a sua versão da história.

Polêmicas à parte, o filme tem o seu séquito de seguidores, que conseguiram captar a epopeia do estrangeiro à procura de amor em uma terra desconhecida — e que é obrigado a encarar uma dura realidade, apesar de ser correspondido em seu sentimento. Tudo isso é registrado com a valorização da paisagem da Índia, com locações rústicas e encantadoras. A câmera de Emmanuel Machuel (de Um Filme Falado, dirigido por Manoel de Oliveira em 2003) captura o lugar de maneira carinhosa e honesta, sem cair no lugar-comum e nos clichês que costumam dar o tom desse tipo de abordagem. A rejeição de Klotz por La Nuit Sacrée também é grande. Ele chega a pedir que nem ele, nem seu filme de estreia sejam exibidos em mostras em homenagem ao seu trabalho, mesmo o longa tendo sido indicado ao Grand Prix no Festival Internacional de Tóquio de 1993. A trama é baseada no livro homônimo, o segundo da trilogia do escritor Tahar Ben Jelloun. Esse segundo capítulo rendeu a Ben Jelloun o Goncourt, tornando-o o primeiro autor árabe a receber o prestigiado prêmio

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da literatura francesa. A obra retrata o tratamento que as mulheres recebem no Marrocos e a relação delas com os homens em uma sociedade muçulmana. Ben Jelloun combina a rica tradição dos contos árabes com questões contemporâneas como justiça, humanidade e igualdade. O autor traça seu painel por meio de personagens femininas envolvidas em opressão e sordidez, jogando-as então abruptamente em uma estrutura de mitos e lendas. Os leitores embarcam em uma jornada de emoções, sonhos e reflexões instigantes. A trama de La Nuit Sacrée acontece entre 1920 e 1950 no Marrocos, onde um pai sem filhos homens está convencido de que foi atingido por uma maldição. Para enganar o destino e evitar que seu irmão herde sua fortuna, ele resolve educar sua oitava filha como se fosse um menino, chamado Ahmed, que será criado segundo a tradição masculina e assumirá sua casa e os negócios após sua morte. Ahmed, autoritário e enigmático, passa 21 anos se submetendo à vontade do pai, escondendo dolorosamente sua verdadeira identidade, sem que ninguém descubra. Mas tudo muda quando ela se apaixona

pelo primo e diz ao pai que pretende se casar. Durante um momento sagrado do Ramadã, o pai pede que ela assuma a verdadeira identidade e lhe dá o nome de Zahra. Ele morre logo depois, e Zahra enterra os objetos de Ahmed em sua tumba e parte para a descoberta do próprio corpo e de sua verdadeira identidade. Klotz até conseguiu mergulhar nas ambiguidades desse mundo empregando como força motriz a questão entre a masculinidade e a feminilidade. Esse contraste de comportamento é usado para destrinchar a repressão e os conceitos típicos da sociedade marroquina. Ao mesmo tempo, há o tema da busca pela identidade própria, diferente da que se vive obrigatoriamente em nome de uma tradição. Talvez o grande problema de ambos os filmes seja terem sido inspirados por livros famosos e premiados. O resultado acabou sendo prejudicado pela expectativa gerada. Parece que até Klotz foi vítima dessa armadilha. Mario Abbade é jornalista, crítico de cinema de “O Globo” e membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).

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PARIA

PARIS NÃO LHES PERTENCE por

FILIPE FURTADO

A sequência inicial de Paria (2000) mostra um jovem no metrô de Paris, visivelmente alterado — talvez bêbado, talvez chapado —, a tentar se equilibrar sobre o encanamento do local. Um número burlesco de coreografia destrambelhada se desenvolve. É uma sequência sem qualquer função narrativa, mas que serve como um prólogo que assombra a ação e nos introduz seus dois elementos essenciais: a autenticidade do corpo como forma de resistência e as margens da cidade como um espaço invisível. Paria, primeiro longa da chamada Trilogia dos Tempos Modernos de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, vai se mover com fluência entre esses dois temas. Após o prólogo, algumas cenas seguintes estabelecem a ação e trazem a mente filmes posteriores da dupla: um grupo de assistentes sociais busca mendigos nas ruas e os arrasta a força para um ônibus que os levará para um abrigo, incluindo os dois protagonistas resgatados por engano enquanto brigavam na rua, lá em meio aos sem-teto (a maioria interpretados por atores não profissionais selecionados nas ruas) passam a virada do milênio. Um cartão anuncia um flashback para 36 horas atrás

para explicar como aqueles dois jovens terminaram ali, mas o que importa é menos se tratar do clímax narrativo, mas de toda a carga simbólica que aquele ônibus carrega consigo, como ele torna visível o invisível num filme todo dedicado a olhar para o que a cidade não vê. Paria se constrói a partir de Victor (Cyril Troley) e Momo (Gérald Thomassin), os sentidos e a expressividade do filme permanecem atrelados as suas presenças. Ambos são jovens sem lar e à deriva, Victor acaba de perder o emprego e por consequência é expulso do quarto que alugava. Já Momo é um pequeno trambiqueiro, se movendo de golpe em golpe, que recebe a oportunidade de fazer uns trocados a mais com um casamento arranjado. Ao contrário de todos os outros protagonistas de Klotz, Victor e Momo tem pouca noção do seu lugar e das forças que conspiram contra eles. Se o cinema de Klotz é de resistência, Paria é especialmente tocante porque Victor e Momo são eternos otimistas sem consciência de tomarem parte do lado errado de uma narrativa determinista. Troley e Thomassin fazem uma dupla que se complementa bem com os olhos de Troley

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sempre a sugerir que as coisas irão melhorar na próxima sequência, enquanto a linguagem corporal de Thomassin é pura energia. Paria é, sem dúvida, um filme mais otimista que os trabalhos posteriores do casal Klotz (de um modo geral o cinema deles se moveu progressivamente ao longo da década passada para um pessimismo cada vez maior), muito por conta da presença de Thomassin, mais conhecido pelo papel principal em O Jovem Assassino (1990), de Jacques Doillon, que tem não só a melhor atuação individual de um dos filmes do casal como apresenta a melhor saída para ideia de autenticidade do corpo como escape político tão presente na filmografia dos franceses, em especial nas sequências em que divide a cena com a família de sua “noiva” nas quais precisa se desdobrar como um ator e convencê-los do seu valor. A encenação de Klotz aqui é menos fria do que em filmes posteriores, buscando sempre uma grande fluidez e se movendo com muita naturalidade entre a dramaturgia e um desejo de não ficção. Boa parte da ação de Paria transcorre ao ar livre ou em espaços públicos, como o metrô e o ônibus, como pede uma história sobre figuras sem teto. É um filme sobre Paris, o que a cidade vê e o que ela ignora. Uma espécie de filme-sinfonia de cidade às avessas, ocupada como é pelos corpos há muito esquecidos. A cidade é dura e sem misericórdia pronta para se voltar contra os seus habitantes, sobretudo aqueles que residem às margens, mas a forma como Klotz capta a sua noite — e deve-se dizer que o uso de escuridão no longa é sempre muito marcante — também lhe garante um mistério e um sentimento acolhedor, uma certeza generosa de que existem ali outras possibilidades

prontas a serem exploradas quando se tem imaginação para enxergá-las. Há uma sequência notável em meio à viagem do ônibus em que um número musical se inicia suspenso, entre melancolia e resistência, que ilustra este desejo muito bem. Ao contrário de outros trabalhos do casal Klotz, Paria é marcado pela certeza de que existe luz nas trevas. Os filmes de Klotz podem por vezes (em particular Low Life e A Ferida) soar um tanto punitivos no seu desejo de dramatizar o sofrimento, como é frequente em cineastas neobressonianos, mas Paria com sua combinação de uma câmera fluida e as presenças otimistas de Thomassin e Troley não somente evita o miserabilismo como no seu longo entrecho do encontro com os mendigos localiza naqueles corpos recusados pela sociedade uma grande potência política. A lógica dramatúrgica do roteiro de Perceval não se altera (há um atropelamento próximo ao fim do filme que ilustra tal tendência perfeitamente), mas os seus planos a permitem respirar mais que o habitual. A pergunta no centro de Paria já está exposta no seu título, o que difere a multiplicidade de corpos que cortam os seus planos, o que distancia os sem-teto dos seus atores profissionais por mais que os personagens destes flertem com a dissolução e completa marginalidade. O que torna alguém um pária afinal? A cidade fria não os vê, mas os combates de Klotz seguem buscando um escape, uma saída para tal dualidade. Um gesto que os redima. Filipe Furtado é redator da “Revista Cinética”. É ex-editor da “Revista Paisà” e colaborou com publicações como “Contracampo”, “Filme Cultura”, “Teorema”, “Cine Imperfeito”, “The Film Journal”, “Rouge” e “Lumière”. Mantém o blog Anotações de um Cinéfilo (http://anotacoescinefilo.com).

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A FERIDA Os primeiros minutos de A Ferida (2004) nos deixam em estado de suspensão. Suspensão do julgamento, suspensão dos sentidos. Qual é o estatuto daquilo a que estamos assistindo? Espaços fechados em planos também fechados, o filme nos apresenta aos personagens descolados um do outro: primeiro o homem, que habita um quarto precário e sujo (mais tarde ao longo da projeção saberemos que se trata de um squat, prédio sem água, luz ou eletricidade que os sem-teto usam para morar), e recebe o telefonema de sua esposa (em celular, naturalmente); em seguida, a mulher está na seção de imigração do aeroporto, numa sala exígua e trancada a chave onde estão diversos imigrantes, africanos, asiáticos, quase empilhados uns em cima dos outros, sem condições de higiene (não há banheiros). Ambos, marido e mulher, são refugiados políticos do Congo. Ele conseguira seu asilo político alguns meses antes, ela tenta conseguir o seu agora. Mas quem atende a eles não são os funcionários de relações exteriores, e sim a polícia, e da maneira costumeira: atendendo a ordens, obedecendo a procedimentos protocolares que não dão conta da complexidade dos problemas humanos que passam diariamente por aqueles corredores. A saída é a pancada, a intimidação pela humilhação e a injúria. A regra é não deixar nenhum imigrante passar. Esse é basicamente o entrecho da primeira hora de A Ferida. Mas isso não conta da missa a metade. Porque o que se perde na simples narração dos eventos é a maneira como se filma, e é aí que o filme ganha toda sua majestade. Nicolas Klotz

A CICATRIZ DO PRECONCEITO por

RUY GARDNIER

tem o parti-pris de respeitar a duração dos acontecimentos, e isso significa filmar a viagem de metrô de Papi, o marido, indo até o aeroporto, ou a viagem do mini-ônibus que transporta os passageiros até o avião. Mas não estamos aqui diante de um fetiche pelo verismo das situações — como em Domingo Sangrento (2002), de Paul Greengrass, por exemplo —, mas pela complexa gama de sentimentos humanos que um acontecimento destes pode despertar. Estamos diante de um material humano já muito bem trabalhado no documentário por Frederick Wiseman: a estupidez suprema da burocracia que só consegue ver o ser humano como um item de formulário, que é tanto mais desagradável quando não está subsumido às regras-padrão de ação. A referência feita aqui ao documentário não é inocente: diversas vezes nos perguntamos se tal monólogo de personagem faz parte de um roteiro ou se apenas restitui para a câmera momentos já vividos anteriormente, fora a forte impressão de realidade que as imagens de choques com policiais destila. A proposição de cinema de A Ferida é radical: longa duração de filme (2h45min), grande duração dos planos, diversos planos longos de situações, algumas prosaicas e outras “narrativas”. Poderia cair facilmente no maneirismo do cinema de arte de deixar o plano se estender ao máximo possível, mas é nesse momento que Klotz se revela um verdadeiro cineasta: até os detalhes mais ínfimos das cenas em que se filma “o nada” (os trajetos, as esperas, os átimos) revelam não um cacoete de “cinema sério”, mas uma série de micro sensações

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que jorram na tela com uma delicadeza suprema, sem chamar muita atenção para si mesmas, mas absolutamente importantes para tudo que o filme deseja captar. A ferida à qual o filme se refere no título, na verdade, são duas. A primeira é a ferida física. Quando a polícia não consegue colocar todos os imigrantes de volta no avião — voltar para o país natal significa um atestado de óbito certo —, os chefes do setor mandam que os africanos que ainda estão na pista de decolagem sejam recolocados de volta no mini-ônibus, para que não sejam vistos pelos passageiros do voo, que transitam num transporte de clima muito diferente, com música ambiente e esperança de voltar ao lar para visitar familiares (não pode haver testemunhas: a ação policial deve ser invisível para os cidadãos). Blandine, cheia de escoriações, é a última a ser colocada no veículo, que fecha suas portas às pressas e prende a perna dela entre as portas automáticas. A segunda ferida, e a mais importante, é a emocional. Reconduzida ao setor de imigração — afinal, a polícia não pode deixar que nenhuma prova de maus tratos transpareça às outras autoridades —, ela é entrevistada por um funcionário do ministério de relações exteriores que, mesmo indicado por seus superiores a nada fazer, envia faxes para que ela consiga seu asilo político (pela lei, conforme diz Papi no filme, a mulher de um asilado político deve receber asilo automático). Ela passa do setor de imigração ao hospital, e de lá a um hotel, e por fim ao inóspito squat onde Papi, junto com uma série de outros africanos, habita. Quando lá chega, Blandine não consegue deixar a cama. Imaginamos que pela ferida física, mas ao longo da duração vemos que a ferida que mais a incomoda é a moral: como puderam as autoridades tolerar tantos maus tratos, como um país livre permite que seus órgãos democráticos fechem os olhos para tamanhas humilhações e atos ilegais?

Por todo o período no qual Blandine está de cama, o filme passeia pelo cotidiano daquele squat, pela penúria dos personagens daquele microuniverso em conseguir trabalho, tomar banho e também em tentar achar outras alternativas de habitação (eles devem deixar o squat, pois ele será demolido em breve). Nesse momento, o longa assume o autismo de Blandine e perde um pouco o foco narrativo, dando vazão a algumas cenas muito boas (a prostituição, os banhos diante de todos, a música) e poucas desiguais. Por fim, quando Blandine finalmente consegue externar toda sua incompreensão sobre como ela foi tratada como se ainda estivesse em seu próprio país, sem direitos, o filme reabre sua grandeza. As feridas são curadas, Papi consegue emprego (subemprego, naturalmente), mas a vida dos dois finalmente parece que vai funcionar. Se no primeiro trajeto de metrô do hotel a casa ela se recusava a olhar para os lados e escondia seu rosto com um véu (para o olhar pasmo de seu marido Papi), da segunda vez ela pode olhar para as novidades, se admirar com a vida das pessoas num novo país, e finalmente sorrir. O texto até agora pouco falou da expressão corporal de seus dois atores principais, das brilhantes trocas de olhares entre os personagens e das falas em off das histórias de imigração legal ou ilegal que aparecem no filme. Basta, no entanto, ver como Blandine e Papi, ao final, vendem frutas na praça ou se entreolham para perceber como A Ferida é um filme que dá corpo a seus atores e ampara com raro rigor e fragilidade os seus sentimentos. Uma grande descoberta. *Edição atualizada de texto originalmente publicado na revista eletrônica “Contracampo”. Ruy Gardnier é pesquisador e crítico. Fundou as revistas eletrônicas “Contracampo” e “Camarilha dos Quatro”, trabalha como crítico de cinema para o jornal “O Globo” e editou livros-catálogos de retrospectivas dos cineastas John Ford, Samuel Fuller, Rogério Sganzerla, Abel Ferrara e Julio Bressane.

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“ESCREVER UM POEMA APÓS AUSCHWITZ É UM ATO BÁRBARO” Theodor W. Adorno 28


A QUESTÃO HUMANA Um travelling lateral percorre a longa extensão de um muro numerado sequencialmente. Não temos acesso nem ao que há por detrás do muro nem ao significado da sequência numérica. Esse é o início do filme: não adentramos nada, nem nada se abre diante de nós — sequer nos afastamos de algo —, apenas tangenciamos uma barreira inerte, indiferente a qualquer urgência racional do espectador em busca (ou em demanda) de uma linguagem totalitarista de imediata tradução de sentido. Em A Questão Humana (2007), a linguagem — oral, visual ou sonora — não trabalha sob a égide de um funcionalismo técnico, não atende a uma lógica de metas de um discurso. Ela atua de forma muito mais provocativa do que pragmática. Aos poucos, nos é permitido montar uma imagem de Simon, personagem principal, — não necessariamente

A POESIA DA DOR por

JOÃO TOLEDO

a imagem de um homem de sentimentos, preferências, gostos, mas de um homem como se visto essencialmente por um prisma empresarial. O que ele é, objetivamente: um psicólogo industrial encarregado de admitir e demitir funcionários, obedecendo ordens de superiores e dando a elas razão de ser a partir de suas ferramentas de avaliação psíquica — numa terrível subversão dos princípios da psicanálise. Simon narra, ao longo do filme, seu desordenado encontro com seu próprio reflexo, com a face oculta de um sistema autômato alienante. Ele narra, com certa calma, que já levou diversos candidatos ao limite com seus métodos. Enquanto isso, nos são mostrados, uniformizados e uniformes, diversos jovens empresários que pleiteiam vagas e se sujeitam, sem problema algum, ao cruel sistema de competição. Eles são todos parte de um mesmo jogo cego, dentro e fora do trabalho.

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Os jovens competidores — asseados amantes — disputam e festejam com semelhante ferocidade, entregues a um ritual que torna a diversão um prolongamento do trabalho, como já apontava Adorno em sua “Dialética do Esclarecimento”. Nesse sentido, a rendição daquelas pessoas ao liberalismo (econômico, moral, sexual) é tão mecanizada quanto à rendição ao sistema de escrutínio psicológico. Essa dupla entrega denota uma interessante questão, pois retira de foco os problemas sociais mais óbvios, iluminando uma discussão muito mais sombria. A questão não é necessariamente a recessão, baixa salarial, desemprego e competitividade feroz, mas toda a lógica perversa da máquina corporativa. O conflito não está nos excluídos, mas no sistema que os exclui — um sistema que opera os homens como peças em um motor. No entanto, ao mesmo tempo em que o filme leva a esse tipo de reflexão crítica, não se manifesta por um viés denuncista de discurso político, mas via política de imagens, de sons, de movimentos do corpo humano. O foco do filme é a vida, é o homem que se percebe vivo, ainda que anestesiado. E nesse sentido o longa-metragem se traduz da única maneira possível: através do corpo, da voz. Não lhe caberia ser discursista, ser um manifesto sobre qualquer coisa. Isso reduziria as proposições investigativas da obra — afinal, trata-se de um filme de investigação —, pois resumiria seus esforços a operações normatizadas, codificadas e pré-formatadas com intenções pré-estabelecidas, ou seja, a um instrumento técnico-funcional. Seria como adotar métodos sistêmicos para combatê-los, preencher formulários para protestar. O filme se sustenta lindamente em sua escolha: é preciso ser íntimo para ser político.

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A Simon — essa peça reificada indistinta, responsável pelo corte de mais da metade dos empregados da indústria — é solicitada uma investigação sigilosa acerca do estado mental de um dos diretores da companhia. Essa investigação, no entanto, é um processo de sombras, de fantasmas. O filme é soturno, noturno, de clima nuvioso e lúgubre, que não distingue alvorada de crepúsculo.


vê angustiado e impossibilitado de resolver um caso, no fundo, insolúvel. À medida que ele colhe essas pistas, colhemos também, em cada imagem, em cada música e cada lacuna, as pistas que irrompem em meio à frieza dos ambientes. As pistas do filme, que nos acrescentam dados às imagens dos personagens, estão justamente nos erros, nos desvios, nos olhares tortos, choques de corpo, nos gritos e choros silenciosos. Estes são os movimentos-chave, que fogem ao padrão racional sempre dominante no espaço cênico. Os homens que seguimos estão quase sempre a sós no plano. E, quando acompanhados, estão ou distantes e perdidos em um horizonte que os prende em sua geometria, ou hierarquizados, distanciados de qualquer possibilidade de contato afetivo. Filmados com impassível fixidez, esses espaços são caixas cênicas que encerram seus personagens e constroem uma noção do que seus ambientes representam. Não há necessariamente uma tentativa de outorgar às imagens um estatuto de realidade, mas, antes, de recriar imageticamente os ideais que o esquema corporativo representa, ou os ideais sustentados pelo diretor aristocrata, transformando os espaços em blocos funcionalistas — numa transfiguração perversa do mesmo funcionalismo criticado por Jacques Tati. No trajeto, ele se depara com uma série de pistas que lhe servem menos para compreender, justificar ou concluir qualquer coisa sobre o sujeito de sua investigação e mais para demover suas atitudes do plano da racionalidade, da objetividade corporativa que codifica na linguagem técnica suas atrocidades. Cada vez mais desperto para suas próprias atitudes e decisões, Simon se

E esses blocos cenográficos, vagando entre o realismo e o expressionismo, admitem o devaneio onírico, permitem o encontro do presente com os fantasmas que Simon acolhe. Na rave, quem aparece para Simon é o fantasma de sua namorada. Na casa da secretária, é o fantasma do diretor, seu ex-amante. No sonho com o quarteto Farb, os fantasmas são os cães, o nazismo,

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a perseguição. E quanto mais Simon foge, tanto das obrigações profissionais (quando, por exemplo, não atende ao telefone de seu escritório) quanto de seus sentimentos (quando, por exemplo, ele foge de um encontro no meio do show), mais ele se vê às voltas com esse passado tão presente. O passado, afinal, é sempre presente. O presente é o acúmulo da história, e vivemos sob a influência de tudo o que o mundo já construiu. Nesse sentido, o filme de Klotz é especialmente adorniano, pois trabalha sob uma mesma premissa (que o autor alemão ressalta principalmente em “Educação Após Auschwitz”) de que não interessa apenas lembrar Auschwitz como se lembra de um aniversário. Acima de tudo, é preciso impedir que volte a acontecer, e para isso

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é necessário reconhecermos os mecanismos que nos tornam capazes de tais atos, é preciso que esse passado seja sempre presente. Esse retorno no flagrante à obra de Adorno é especialmente doloroso perante a constatação de que, diante da regência heteronômica da consciência maquínica, o pensamento é reificado e a língua mortificada de tal maneira que não é possível ver — por detrás do véu das atribuições técnicas de cada função da máquina corporativa — a lógica reproduzida do nazismo. À indústria foi outorgado um controle ideológico que simula o mesmo poder do estado nacionalista — porque a ela é permitida a autarquia, ao governo autoritário é permitido o controle das liberdades


individuais. Repetimos, inconscientes, um sistema que nos distancia cada vez mais de um ideal de autorreflexão crítica; o homem é engolido pela máquina. A língua é engolida por um sistema manipulador, ela é inventariada, mortificada, tornada um instrumento meramente técnico, apoético. E não estamos diante de culpados, mas diante de pessoas automatizadas perpetuando um estado de barbárie em chave suavizada, algo que passa despercebido, pois tornou-se um enigma obscuro em uma língua que não mais se opera através de processos racionais. Mas, ainda assim, há instâncias de resistência, há um resíduo de humanidade em tudo aquilo que foge ou se sobrepõe de alguma forma ao rigor tecnicista. E a música

tem um papel fundamental no filme, pois é nela que se encerram todas as contradições daqueles seres: nela está prescrita toda a obsessão técnica do diretor e, ao mesmo tempo, o romantismo poético de Schubert; a mecanizada violência da música eletrônica e a profusão amorosa dos corpos dançantes; o canto flamenco ou o fado, cheios de melancolia e repletos de uma beleza que está justamente nessa dor, no ruído que transcende objetivos técnicos e se firma enquanto expressão humana, expressão do erro. Simon se perde por completo nesse desesperado encontro com o passado, se perde nos ruídos da linguagem técnica, nos barulhos da festa, na voz da namorada. E é um abismo — apesar de seu caráter assombroso e aflito — essencialmente humano e humanizador.

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A Questão Humana traz para o centro do quadro, ainda que isso se configure como uma operação dolorosa, o homem. Klotz desconstrói a linguagem como forma de reencontrar, nos espaços onde o homem é vertido em melodia ou em movimento desconexo, alguma possível poesia. Mas o que pode ser essa poesia após Auschwitz, ou melhor, diante do tão presente fantasma de Auschwitz? O filme termina depois do sonho de Simon, com o resgate da palavra, de sua potência poética — cujo dever é grave, pois a beleza pode ser alienante. Mas Klotz — e a roteirista Elisabeth Perceval —, diante da escuridão ou do luto de uma tela preta, nos surpreendem com a simplicidade de uma poesia que tem, no fator humano, sua maior força. Uma mesma história nos é recontada, mas agora estão misturadas em uma mesma frase, tanto as palavras técnicas, com toda sua aridez, quanto às vítimas, seus nomes, seus laços de família. Não é poesia sublime, pois ela é mundana, ferida, é poesia de dor — e não obstante é bela como poucas.

*Edição atualizada de texto originalmente publicado para a revista eletrônica “Filmes Polvo”. João Toledo é crítico de cinema, curador e cineasta. Atuou como montador de diversos curtas e atualmente monta a série de TV BR14 – A Rota dos Imigrantes, é redator da revista “Filmes Polvo” desde 2007, e codiretor e corroteirista do longa-metragem Aliança (2014).

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“Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro” Theodor W. Adorno 36


LOW LIFE NÓS, ZUMBIS

por

FILIPE FURTADO

O jovem imigrante narra sua história: médicos e uma máquina estranha cientificamente buscam comprovar que seu corpo não é o que ele sempre acreditou ser. Aquilo que sempre teve como privado é exposto em alguns exames. O jovem se sente por demais violado para desejar muito mais do que uma existência sonâmbula, como uma espécie de zumbi vivo. Sua confissão é a sequência mais potente do novo filme de horror político do casal Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, que parte de algumas questões sobre autenticidade do corpo e espaço político (que faziam parte da sua Trilogia dos Tempos Modernos), e as extrapolam dentro da lógica perversa da Europa contemporânea, com resultados diversos e perturbadores. Low Life é um filme peculiar. A aproximação com Robert Bresson (O Diabo, Provavelmente, 1977) e Philippe Garrel (Amantes Constantes, 2005) que suas sequências iniciais sugerem é pouco frutífera: tratá-lo como um filme romântico e/ou cínico sobre o envolvimento do jovem contemporâneo com política não nos levará muito mais longe; vê-lo como uma polêmica sobre a estupidez da política imigratória do governo Sarkozy ainda é limita-

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dor. Antes de qualquer outra coisa, Low Life é um filme de terror. Não no sentido que os filmes de George A. Romero são longas de horror ou na chave “Pedro Costa conhece muito bem Jacques Tourneur e I Walked with a Zombie”, mas na maneira como seu sentido político não pode ser diferenciado da sua associação com o sobrenatural. A única forma possível para Low Life lidar com as questões que propõe é mergulhando no conceito de horror. Dentro de um universo de precisão e certezas científicas da eficiência a qualquer custo, nada mais justo do que o artista buscar o sobrenatural para equilibrar as coisas. É como se, ao chegar à conclusão lúcida de que apontavam suas câmeras para uma sociedade de mortos-vivos, o casal Klotz e Perceval não enxergasse nenhuma outra saída que não fosse aceitar que a Europa contemporânea vive num tipo próprio de filme de horror. Não surpreende que a grande peça de resistência política proposta por Low Life traga justamente um grupo de imigrantes envolvidos em cerimônias de vodu contra autoridades. Se somos todos zumbis, logo não há forma mais própria de insurgir, como o filme parece nos sugerir. A única maneira de driblar a lógica do Estado policial que a obra descreve é chegar até ele pelo viés do macabro. Para dar conta deste estado de coisas, é preciso desestabilizar a própria lógica deste cinema. Não é acidente que Klotz e Perceval tenham escolhido nomear Low Life a partir de uma música do primeiro disco do grupo Public Image Limited. O PiL, afinal, nasceu como reação à ideia do punk inglês como algo regressivo, fazendo sobretudo uma música que frequentemente buscava limpar o rock da influência de música negra — e fez isso imbuindo seu som com forte influência de música

jamaicana (em particular o dub). Diante da questão de como tratar de uma sociedade cada vez mais controlada e doentia no seu desejo de negar o outro, busca-se uma série de elementos muito caros ao cinema de arte francês das ultimas décadas (as citações godardianas, a cena de rave, a política centrada no casal à la Garrel, até mesmo o clímax com as câmeras de segurança) para configurá-las com uma embalagem agressiva de tintas sobrenaturais. Assim como será impossível para o jovem poeta afegão se livrar da sua carta de expulsão — uma marca que sobrenaturalmente vai retornar às suas mãos, independente do que fizer para se livrar dela — estes elementos todos são reconhecíveis na sua familiaridade, mas existem num universo próprio por demais dissonante para simplesmente cumprirem suas funções pré-determinadas. Vale aqui retomar duas observações sobre o cinema do fim da década de 1970: a de Olivier Assayas de que cineastas como Carpenter, Romero e Cronenberg representaram para a sua geração de cinefilia francesa um contraponto cinematográfico ao punk e a do outro lado do Atlântico a de Richard Hell de que O Diabo, Provavelmente seria o filme mais punk rock já feito; os extremos dos interesses do casal Klotz/Perceval se aproximam sobre a lógica da abrasividade. O corpo suprimido do imigrante africano é a peça política por excelência do cinema europeu contemporâneo, na mesma temporada de Low Life houve ao menos dois outros grandes filmes construídos sobre eles: Il Villaggio de Cartone (2011), alegoria final de Ermanno Olmi sobre o colapso da Europa e Que Eles Descansem em Revolta (2010), documentário de Sylvain George que funciona como uma espécie de contraponto materialista

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a metafísica de Low Life. Neste cenário o remix agressivo de um imaginário do cinema intelectual europeu proposto por Klotz e Perceval, assim como o inevitável reconhecimento dos limites do mesmo para lidar com tal universo, é uma saída política das mais válidas e interessantes do cinema recente. Quando observamos a distância entre Momo depondo de forma esfuziante diante da justiça francesa no clímax de Paria — primeiro filme da trilogia anterior do casal — e a caminhada rumo ao desaparecimento de Carmem ao fim de Low Life, vemos neste intervalo de dez anos todo um processo da Europa contemporânea indo de mal a muito pior. Já não é possível para o cinema de Klotz e Perceval simplesmente confiar na presença de cena contagiante do seu ator central como sua principal peça política. O esgotamento final que tanto A Ferida como A Questão Humana buscavam chega aqui num outro estado, em que o desaparecimento ganha uma consciência nova. Low Life resiste ali e à sua observação amarga contrapõe-se o próprio filme. Klotz e Perceval são por demais materialistas para buscar algo diferente. *Edição atualizada de texto originalmente publicado na revista eletrônica Cinética.

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ILS SONT COMME DES IMAGES DE GUERRE. 43


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E L L E S I O M E D MA JULIE Entre dois planos que transcendem a quarta parede da cena e coincidem com o olhar de um espectador sentado no fundo da sala de teatro, Mademoiselle Julie, o filme, pouco tem a ver com a teatralidade inerente a seus elementos constitutivos. Esquivando-se das armadilhas do “filme de encomenda”, Nicolas Klotz confronta-se com uma realidade teatral — a montagem da peça “Senhorita Júlia” (do dramaturgo sueco August Strindberg) por Frédéric Fisbach — como com uma realidade pró-fílmica. Assim, se o figurino, o cenário, os diálogos e a interpretação dos atores escapam efetivamente ao cineasta enquanto elaboração artística primeira, eles se revelam o material bruto que a sua câmera esculpirá. Nesse sentido, é quase impossível pensar Mademoiselle Julie sem refletir a dinâmica entre essa realidade artística que preexiste à realização e o trabalho próprio ao filme, que está longe de ser um “teatro filmado”. A partir do momento em que “atravessamos” o anteparo que separa o palco da plateia, formado por uma série de venezianas de vidro (que se encontram fechadas no começo da peça), e somos transportados para o interior

por

TATIANA MONASSA

do “cubo” teatral concebido por Fisbach, a percepção do palco como suporte de representação tridimensional desaparece e resta a platitude de uma imagem que tende a uma abstração de outra natureza. Partindo de uma mise en scène que não lhe pertence em termos de criação de mundo, Klotz elabora, assim, uma mise en scène cinematográfica que põe em evidência o universo próprio à tela. A narrativa desenvolve-se em uma mansão aristocrática, reduzida a um huis clos formado pela cozinha dos fundos e pelo jardim adjacente, que se pode ver através da janela. O proprietário viajou, mas sua filha Julie permanece na casa. Sob o pretexto de se divertir com os empregados durante a festa pagã de São João, ela “invade” esse espaço subalterno, perturbando a ordem moral e hierárquica estabelecida e rompendo a tênue linha que separa a cozinha, ambiente asséptico marcado por linhas geométricas, do jardim logo atrás, espaço “selvagem” no qual dançam desordenadamente os empregados da mansão. A meio caminho entre a agressividade da expiação descontrolada dos jovens

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executivos na festa em uma fábrica desativada em A Questão Humana e o transe poético dos corpos “possuídos” na floresta misteriosa de De La Guerre (2008), de Bertrand Bonello, essa folia no jardim é o que desperta a volúpia da jovem Julie. Transfigurada pela experiência e impregnada da energia sensual da dança, ela “transborda” do jardim para a cozinha, onde se encontram Jean (o criado de seu pai) e Christine (cozinheira-chefe e noiva de Jean). Ali, pelo poder do corpo e das palavras, Julie terminará seduzindo Jean. No labirinto dialógico interminável que os dois percorrem, desenha-se uma dinâmica instável entre desejos físicos autênticos, impulsos de dominação e de servidão e discursos argumentativos que buscam apreender de forma lógica o desenrolar dos acontecimentos. As posições de vítima e algoz invertem-se incessantemente entre Julie e Jean, num baile feito de palavras. Se esse longo vai-evem termina por diluir parte da força inicial do filme — a movimentação dos personagens em relação ao espaço e seus ecos simbólicos —, ele também consolida a narrativa como um fluxo no qual os jogos de poder e paixão mostram-se tão complexos e nuançados que se tornam impossíveis de serem circunscritos, embaçando definitivamente as fronteiras entre os papeis sociais, em suas hierarquias e funções. No esforço de transcender a presença maciça e incontornável do texto teatral – cujo peso difere fundamentalmente da leveza do diálogo habitual do cinema, baseado na fala ordinária —, a realidade cinematográfica que emerge evidencia alguns dos traços estilísticos mais marcantes do cinema de Klotz: o trajeto dos corpos no interior do quadro e a organização plástica da superfície.

O filme tira, portanto, sua força do modo como efeitos de luz, cor e contraste conferem uma forma bidimensional à captura das expressões faciais e dos gestos dos atores em cima do palco. Do modo como o cineasta converte uma série de convenções de representação teatrais, como o espaço ficcional unificado e a estilização absoluta de um ambiente externo (o jardim), em jogo de formas plásticas, sem se preocupar necessariamente com a unidade e a coerência da cena. Mas, tematicamente, Mademoiselle Julie traz igualmente à tona uma série de tópicos que atravessam a obra do cineasta: o homem como ser social e pulsional em igual medida, as relações de poder e suas interferências na libido, os inúmeros tons de cinza que colorem o universo das lutas de classe, as estruturas político-econômicas invisíveis que conformam os homens e a possibilidade/impossibilidade da revolta. Portanto, se não há dúvida de que Mademoiselle Julie só existe enquanto filme por meio de operações expressivas estrangeiras ao teatro, seu sentido pleno se afirma na articulação entre o trabalho visual e a base textual que o precede, com todas as flutuações que esta comporta.

Tatiana Monassa é crítica de cinema e pesquisadora. Colabora com diversas publicações e mostras de cinema. Editou a revista eletrônica “Contracampo” de 2007 a 2011.

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E L F F U O S T N LE VE R U O C A L S DAN D’HONNEUR

O TEATRO COMO UTOPIA por

A cour d’honneur, ou pátio de honra, era o espaço reservado à passagem ou à espera para todos os visitantes admitidos no Palácio dos Papas de Avignon, cidade que no século XIV serviu de sede oficial para a Igreja Católica por um período de seis papados. É também nesse mesmo espaço que, em 1947, o diretor teatral Jean Vilar encenou, de maneira inédita, as três peças que inauguraram o Festival de Avignon: “Ricardo II”, de Shakespeare; “Tobie et Sara”, de Paul Claudel; e “La Terrasse de midi”, de Maurice Clavel. Com seus 900 m² a céu aberto, a cour d’honneur se tornou, desde então, um lugar mítico para o teatro, recebendo anualmente algumas das propostas artísticas mais audaciosas do teatro europeu recente. Le Vent Souffle dans la Cour d’Honneur (2013) foi concebido como um telefilme para o canal ARTE. O que é curioso, já que é nítido no filme uma insubmissão,

CALAC NOGUEIRA

bastante incisiva até, à reportagem ou ao documentário mais informativo. Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval evitaram ao máximo realizar um institucional comemorativo do Festival de Avignon. O acesso, para o espectador familiarizado ou não com o festival, se dá através do contato direto com aquilo que o “ocupa”: as obras, os artistas, alguns espectadores, eventualmente uma ou outra personalidade política. Se há um mérito aqui, portanto, é a tentativa de fazer um filme pura e simplesmente sobre arte. Seja no tête-à-tête com diretores que encenaram peças no local, seja com os registros desses espetáculos, é apenas aos poucos, em pleno discurso sobre o próprio fazer artístico, que somos apresentados ao espaço mítico da cour. Espaço esse que, tanto por sua história como por sua arquitetura ampla e flexível, ideal às aspirações de um certo teatro contemporâneo, se tornou por excelência um palco de reflexão sobre o próprio teatro e seu lugar no mundo.

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Ibsen, Tchekov... Em 1967, Godard é convidado por Jean Vilar para apresentar a pré-estreia mundial de A Chinesa na cour, ao ar livre. É esse o vento-que-soprano-pátio. São as maneiras de ocupar aquele espaço, de repensar os limites do teatro e seu lugar no mundo. As relações entre teatro e política. Ou do festival com a população local — repensar o que significa um “teatro para o povo”, um teatro não-elitista. Todas essas questões atravessam os depoimentos do filme. Mas elas vêm sempre acompanhadas por um debate sobre a própria linguagem do teatro. Em Le Vent Souffle dans la Cour d’Honneur, fala-se de teatro, mais do que qualquer outra coisa. Ao casal Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval interessa, sobretudo, aquilo que está vivo e em movimento, isto é, as ideias que circulam naquele espaço. O tom é sempre de homenagem, mas jamais oficioso. O tema, a ideia do teatro e da cour como uma espécie de lugar de utopia. Mas o que temos, em boa parte do tempo, são pessoas bastante à vontade diante da câmera, seja encenando ou simplesmente falando sobre teatro. É esse contato mais próximo, mais despojado, com uma realidade mais “quente” e mais fluida que dá ao filme alguma vida, apesar de suas evidentes limitações. As datas, os números do Festival, sua história, bem como aquela da cidade de Avignon, tudo isso contemplamos apenas indiretamente, de longe. Calac Nogueira é crítico de cinema e cineasta. Escreveu para a revista “Contracampo” entre 2008 e 2013 e dirigiu o curta-metragem Os Invasores (2013).

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JENEUSSE D’HAMLET E ION LA CONSOLAT

E D U T N E V JU A A R PA O IM T ÍN R OLHA A por

A realização de curtas-metragens é considerada tanto por críticos e professores quanto milhares de cineastas como um aprendizado. Uma bitola na qual um diretor pode exercitar e desenvolver um projeto cinematográfico para sua carreira. Grosso modo, seria uma aula prática da cadeira universitária de cinema. E muitos realizadores, depois de passarem para o longa-metragem, jamais retornam para a seara do curta. Mas para o casal Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, esse formato sempre representou muito mais do que uma simples lição. Ele é uma extensão do trabalho, fonte de pesquisa, experimentação e também parte vital da gestação de um corpo da filmografia.

LEONARDO LUIZ FERREIR

Ao aceitarem, em 2007, o convite do Festival de Cannes para realização de dois curtas no projeto Talents, que teve como objetivo revelar jovens atores promissores da França, o casal percebeu que seria o momento ideal para começarem a focar os esforços para o próximo longa, Low Life (2011). Portanto, La Consolation e Jeunesse D´Hamlet integram os Diálogos Clandestinos, que tiveram início durante a preparação de Paria. É nesse momento que eles fundam um método, uma declaração de princípios que vai reger o trabalho a partir de então: rodar pequenos filmes com equipe reduzida em busca de aproximação com os atores e temas elegidos para o próximo longa-metragem. Realizados de maneira arte-

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J’AIMERAIS QUE MON PÈRE AIT ÉTÉ UN REQUIN QUI EÛT DÉCHIRÉ QUARANTE BELEINEIERS (ET DANS LEUR SANG J’AURAIS APPRIS À NAGER) MA MÈRE UNE BALEINE BLEUE MON NOM LAUTRÉAMONT MORT À PARIS 1871 INCONNU. HEINER MÜLLER

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sanal e de baixo orçamento, os Diálogos Clandestinos revelam o quanto os curtas podem contribuir para o produto final, não somente como uma sala de ensaio, mas obras independentes que têm força por si só. La Consolation e Jeunesse D´Hamlet foram concebidos para dialogarem entre si, por mais difícil que pareça compreender isso à primeira vista. Ambos são ambientados em uma mesma noite de Paris, porém com focos distintos. De um lado, a juventude rebelde e contestatória francesa recitando monólogos do dramaturgo Heiner Müller para a polícia em meio a confrontos em um subúrbio e de outro a classe média alta com preocupações completamente distintas: festa de aniversário regada à bebidas, música e romance. Dois lados aparentes da mesma moeda, entretanto separados por objetivos e estados de espírito. O roteiro de La Consolation, escrito por Perceval, não aborda a superficialidade de uma juventude burguesa. O centro está na desestabilização gerada pela notícia, no dia de seu aniversário, de que uma jovem não pode engravidar, como se a partir desse fato, de não poder gerar uma vida, ela estivesse morta por dentro. A miseen-scène de Klotz está ali, bem vívida, nos mínimos detalhes: planos fixos de composição de quadro em que é tão importante acompanhar o diálogo de um personagem quanto perceber a reação dos outros em volta; a opção de trabalhar o corpo do ator em conjunto com o significado da cena, como olhares perdidos e danças desajeitadas; e transmitir uma forte sensação de atmosfera no extracampo para perceber todo o entorno. E texto (Perceval) e imagens (Klotz) encontram aqui mais um instante de sinergia, em especial na metáfora

de que as flores também nascem fora de época e que a germinação artificial é possível para a felicidade. Já Jeunesse D´Hamlet é uma das obras mais godardianas de Klotz. Lembrando que o cineasta Jean-Luc Godard é uma das principais influências de seu trabalho. O roteiro está estruturado em monólogos, como no caso de A Ferida, provenientes da peça teatral Hamlet Machine, de Heiner Müller. Através de um dispositivo simples, os planos fixos variam entre abertos e fechados com um jovem recitando e um policial em quadro ou fora dele. Cada personagem tem uma representatividade forte, seja Hamlet, Ofélia e Electra; há muito mais em cena e em jogo do que um interrogatório de polícia. É um curta-metragem de choque que dialoga diretamente com a política dos autores dos anos 1960. O trabalho de desenho sonoro é sutil para interferir na ação e fazer com que o público sinta a insurreição nas ruas, ainda que não a veja. Há apenas um plano externo da fachada de um prédio, ao som de sirenes e com uma cadeira atirada pela janela. Em La Consolation todos os personagens estão enclausurados no mesmo ambiente, uma casa da burguesia. O “lá fora” é representado pela abertura de uma janela para a observação de uma cerejeira. Nesses dois breves momentos, Klotz e Perceval declaram sobre o olhar íntimo e para dentro, uma das marcas indeléveis do cinema deles. O contracampo é o espectador, livre para pensar e refletir sobre a ação.

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S O I R Á T N E M U DOC ÃO Ç C FI E D S E M L FI S O D O Ã Ç A R O CO

Em uma entrevista a respeito dos documentários sobre os músicos Brad Mehldau e James Carter, o diretor Nicolas Klotz disse que procurou encontrar forma e estilo cinematográficos que se parecessem com a música de cada um deles, tal como ele sentia aquelas manifestações musicais tão diferentes. Vendo os filmes constatamos que o objetivo pretendido foi plenamente alcançado. O pianista Brad Mehldau é americano, assim como o saxofonista e clarinetista James Carter, sendo que Brad, menos de dois anos mais novo do que Carter, tinha 28 anos quando Klotz registrou suas performances e declarações em torno de 1999. Carter devia ter quase a mesma idade quando foi filmado algum tempo antes. Conhecer os dois filmes permite ao amante de jazz e ao cinéfilo observar como o mesmo diretor elaborou um olhar particular para cada músico. Escutando o que cada um deles menciona sobre outras formas musicais, ouvimos Brad falar de Schubert e Brahms, enquanto Carter cita Varèse, Stravinsky e Hindemith. Escutar Brad tocando solos no filme de Klotz é ouvir um pianista de jazz com fortes raízes na

por

LUIZ FERNANDO GALLEGO

música clássica do século XIX, e o início de “Exit music (for a film)”, do Radiohead, parece que vai desaguar no “Prelúdio nº 4” em mi menor de Chopin — que Tom Jobim disse estar na raiz de sua “Insensatez” e de outras melodias da Bossa Nova, como em “Apelo”, de Baden, e “De onde Vens”, de Dori Caymmi. Essa fusão entre melancolia romântica e liberdade de improvisação jazzística impressiona não só na escuta musical, como também nas escolhas feitas por Klotz quanto às filmagens. Embora Brad diga que “tira o som da ponta de seus dedos”, sentindo cada nota, o diretor privilegia tomadas do rosto tenso do músico em grandes planos em vez das mãos sobre as teclas, especialmente nos solos. Tal opção é mais compreensível quando ficamos sabendo, pela entrevista com Klotz, que Brad estava tentando, com enorme dificuldade, largar a heroína — e o cineasta achava que todo o seu trabalho solo “era especificamente uma luta interna para ficar limpo”. Brad faz alusões a essa questão quando diz que era autodestrutivo e quando fala em livrar-se de “partes da vida que não funcionam mais”. Mas também menciona que precisa “fazer um luto” por essa parte de sua vida

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“...A VIDA REAL PASSA AO MESMO TEMPO EM QUE A ARTE SENDO CRIADA” 60


perdida, pois “era bela e excitante”: “Não é a mesma coisa que lidar com a perda de outra pessoa, mas de partes de si mesmo que não podem ser varridas para debaixo do tapete, pois isso não é renunciar”.

técnica ou genialidade interpretativa. Mais radical é a definição de Charles Mingus citada: “O jazz é a música do instante”. “Cada dia tem a sua vibração e a música ecoa isso”, explicita outro entrevistado.

Enquanto o filme sobre o pianista é praticamente centrado no músico como personagem (com exceção para poucas cenas com os companheiros de seu trio, baixista e baterista), o filme sobre James Carter traz uma concepção diversa. A fotografia é, na maior parte do tempo, granulada, menos intimista, e cenas coloridas se alternam com tomadas em preto e branco. Outras pessoas são entrevistadas, especialmente o professor de saxofone de Carter que relembra o que de mais importante lhe teria ensinado: “Você não vai aprender tudo de mim”. Coerente com essa ideia, Klotz faz um rápido passeio por outros grandes nomes da história do saxofone, e até mesmo usa imagens de arquivo para mostrar Coleman Hawkins e Lester Young, quando Carter comenta o estilo diverso entre os dois que, no entanto, aparecem tocando juntos. Charlie Parker e John Coltrane também são reverenciados. Ao referir-se a compositores mais antigos da chamada música “clássica”, Carter cita Beethoven e Mozart apenas para estabelecer analogias com jazzistas do século XX, e se Brad menciona os Beatles, Carter fala de Jimi Hendrix.

Brad diz de outro modo: “A música é tocada no tempo, através do tempo: nossa vida está passando, a vida real passa ao mesmo tempo em que a arte está sendo criada”. Essa vivência fusional entre a vida, o tempo que passa e a música enquanto vai sendo executada (e no caso das variações do jazz, sendo criada) também pode ser percebida nos comentários de Brad sobre como se sente depois dos recitais solo: “Eu me sinto vazio. Emocionalmente. Não quero que as pessoas se aproximem. Mas elas vêm e após alguns minutos eu me sinto de volta à Terra”. A música e a vida para Brad e para Carter não podem ser separadas.

Entretanto, apesar das diferenças entre os dois filmes — e os dois músicos — uma convergência curiosa merece destaque. “A música e a vida não são coisas separadas” é dito na abordagem sobre Carter. Servem de exemplo “Strange Fruit”, de Billie Holiday, e os solos de Coltrane cujo “caminho espiritual” expresso em música seria muito mais importante do que os solos em si mesmos, como

Tal como a música que se desenvolve ao longo de um tempo real, o cinema também é uma arte temporal que vai fluir ao longo de uma fatia de tempo. E depois de conhecer esses dois documentários podemos compreender porque seu diretor afirmou: “Eu gostei bastante de fazer esses dois filmes. Eu aprendi bastante tentando encontrar a forma e o estilo que se parecessem com a música deles para mim. Com esses dois filmes, descobri o quanto os documentários são o coração dos chamados filmes de ficção. Desde então, eu não vejo uma diferença real entre documentário e ficção”.

Luiz Fernando Gallego é critico de cinema e psicanalista. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) e escreve para o site www.criticos.com.br.

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S O N I T S E D N ID ÁLOGOS CLA por

AARON CUTLER ELLARD e MARIANA SH

OS ZUMBIS NOS INTERESSAM BASTANTE. ELES TÊM A VER COM A COLONIZAÇÃO E O VODU. NAS ANTILHAS, VODU ERA O MEIO PARA EXORCIZAR A COLONIZAÇÃO, UMA INSURREIÇÃO INVISÍVEL COM EFEITOS BEM VISÍVEIS. ELES NÃO SÃO UMA ESPÉCIE DE MORTOSVIVOS, MAS SIM FIGURAS PRÉREVOLUCIONÁRIAS.

foto: Alvaro Riveros

Nicolas Klotz, em entrevista publicada neste catálogo.

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No final de 2008, mais de um ano após a estreia de A Questão Humana (2007) e durante o período de preparação de Low Life (2011), Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval conduziram um workshop de quatro semanas em Toulouse sobre as intersecções entre o teatro e o cinema com um grupo de teatro local chamado Les Chantiers Nomades. Os atores foram filmados por Klotz em diferentes locações da cidade, durante as últimas cinco noites do workshop, resultando no filme Zombies (2008-2015). Este – estruturado como uma colagem entre textos com temáticas revolucionárias de Perceval, de cineastas, e de escritores de prosa e poesia do Século XX – foi terminado em 2010, porém, a dupla decidiu reeditá-lo, concluindo neste ano uma nova versão, 34 minutos mais curta do que a original. O novo “corte dos diretores” é um dos poucos filmes no qual ambos, Klotz e Perceval, são creditados como coautores.

se reestabelecer. Na mesma entrevista Perceval afirmou que “um teatro, assim como um cenário de cinema podem ser montados em qualquer lugar”, declaração para a qual Zombies é uma prova.

Estes três filmes pertencem a um conjunto de trabalhos realizados com baixo orçamento e em curtos períodos de tempo denominados por seus autores como “diálogos clandestinos”. Os roteiros foram desenvolvidos durante períodos de pesquisa e estudo de referências cinematográficas e literárias com os atores. Estes, em geral, inexperientes no meio cinematográfico estavam abertos a um método mais flexível de trabalho, cujo foco residiu nas expressões corporais e nas tonalidades da fala. Durante uma entrevista publicada no website MUBI, Klotz comentou que “cada cineasta interessante possui uma maneira diferente de filmar a fala”. Klotz e Perceval apresentam a fala como expressão de uma perspectiva política pessoal: seus filmes frequentemente contam histórias sobre pessoas espoliadas que reivindicam seus direitos através da palavra, a qual gera a força para

Textos de John Giorno, Robert Walser, e Subcomandante Marcos, entre outros, são recitados por diferentes narradores implícitos e pelos atores em cena, enquanto a música ocasionalmente retorna para elevar as palavras a outro plano. Os textos (praticamente todos traduções para o francês de línguas diversas como alemão, árabe, inglês e italiano) expressam muitas das atrocidades cometidas ao longo da história recente e seus respectivos movimentos de resistência. Coletivamente os atores encenam a alegoria de um jovem revolucionário morto por um soldado arrependido e o drama de sua amante cuja dor da perda, eventualmente, se transforma em luta e sobrevivência.

A estrutura do filme é simples. A primeira cena apresenta uma jovem mulher sentada na calçada de um beco pouco iluminado que, ao som de um narrador implícito, se desloca como se estivesse atendendo a um chamado. As palavras são do poema Uivo (1955), de Allen Ginsberg – hino da contracultura. A declamação continua nas cenas seguintes, onde outros jovens aos poucos parecem ter suas consciências impregnadas pelo poema, culminando em um interlúdio musical (criado pelo compositor Ulysse Klotz). Este é acompanhado por imagens noturnas do fluxo das águas do rio Garonne e de pessoas caminhando nas ruas de Toulouse.

Uma sequência em infravermelho (efeito incluído na nova versão) onde uma mulher dança com um machado

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– simbolicamente representando um assassinato – é seguida por um discurso sobre a condição e sobrevivência do ser revolucionário. O infravermelho cria uma aparência sombria nas figuras humanas e realça a relação entre presa e caçador, complementando o discurso verbal que conclui com uma sessão do poema Estado de Sítio, do escritor palestino Mahmud Darwich sobre a ocupação israelense. Neste trecho do poema, o escritor propõe a um agente penitenciário uma reflexão sobre a espera. Os movimentos de uma jovem mulher se arrumando no banheiro público de um bar são acompanhados pela narração em off de diálogos do filme S21 – A máquina da morte do Khmer Vermelho (2003), do diretor cambojano Rithy Panh, no qual ex-presidiários e guardas penitenciários se juntam para relembrar um passado traumático, criando assim, um processo de cura mútua. Na cena seguinte, outra mulher recita um texto de Pier Paolo Pasolini sobre o encontro entre dois compatriotas em meio à multidão de estranhos. O filme se encerra com um texto do escritor italiano Elio Vittorini, que traz à tona a batalha contra o fascismo, ao descrever a dor da perda de um ente querido. Em alguns casos, os atores recitam textos diante da câmera e, em outros, os textos são recitados por locutores implícitos enquanto observamos a presença silenciosa dos personagens. O filme rompe com a distinção entre o pensamento e a verbalização, propondo um universo no qual o ato de pensar é suficiente para a comunicação entre pessoas. A insistência em personagens deste gênero é fundamental para a concepção de cinema de Klotz e Perce-

val, a qual estabelece um campo de representação onde forças distintas podem se encontrar em segurança com a esperança de estimular uma transformação social. No documentário observacional realizado pela cineasta e filha do casal Héléna Klotz, Les Amants Cinéma (2008), Nicolas declara que seu objetivo no cinema não é igualar períodos históricos diferentes, mas ao invés, mostrar a porosidade entre eles. Para ele, filmes podem e devem retratar como tendências do pensamento resultam em tendências do comportamento humano e, desta forma, despertar a consciência do espectador através do despertar de consciência dos personagens. Consequentemente, Heiner Müller provou ser um importante autor para a dupla. O mais famoso dramaturgo alemão pós-Brecht passou a maior parte de sua vida no lado oriental da Alemanha antes da reunificação, onde dramatizou a situação dos intelectuais do país dividido, através de reconstruções teatrais pós-modernas de obras literárias antigas, nas quais personagens refletem abertamente sobre a aceitação ou rejeição de seus papéis. Müller oferece enorme liberdade àqueles que encenam suas peças, que são, em geral, curtas e acompanham instruções para diretores apagarem, repetirem e reordenarem trechos de diálogos conforme suas vontades. Klotz e Perceval usaram trechos da peça de Müller Hamlet Machine (1977) – na qual o príncipe dinamarquês resiste ao aprisionamento de um estado moderno autoritário – em diversos de seus filmes, incluindo Low Life e ao menos dois curtas. Eles também se voltaram duas vezes para Quarteto, uma discussão libidinosa sobre as relações de poderes entre homens e mulheres. O romance epistolar de Choderlos de Laclos retrata a com-

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petição entre o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil – dois ex-amantes aristocratas – para corromper jovens e assim lidar com seus próprios sentimentos de atração, ciúmes e auto repúdio. A adaptação para o teatro de Müller acontece simultaneamente em um salão pré-Revolução Francesa e em um abrigo antibombas após a Terceira Guerra Mundial. Mesmo que Valmont e Merteuil sejam os únicos personagens identificados na peça, Müller oferece espaço aos atores para incorporarem outros personagens do romance. O diálogo no filme de Klotz Il faut que l’homme s’élance au-devant de la vie hostile consiste em trechos de Quarteto e em poemas de Müller. A trama se desenvolve em um conservatório de música abandonado, onde os atores, vestidos com figurinos anacrônicos que representam diferentes períodos da história, interagem em pares, enquanto outros membros do grupo observam a ação como testemunhas ou juízes. As cenas, em geral, desfecham com uma sensação de crescente violência que, salvo alguns curtos momentos, permanecem mais verbais que físicas, abrindo espaço para a imaginação. Em uma das decisões mais criativas de Klotz - e inspirada em Müller -, Valmont recita diálogos de Merteuil e vice-versa. O espectador é encorajado a projetar mutualmente o corpo feminino no masculino (uma Merteuil barbuda e um Valmont de seios fartos), e ainda considerar como ambos, homens e mulheres, podem ser suas vítimas e seus agressores. Ao longo do filme, os personagens se esforçam para deixar o local, quando no momento da saída, um corte seco os traz de volta para a sala onde o drama continua.

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Klotz aponta para a origem teatral do filme ao concentrar a ação em um mesmo espaço e tempo que projetam outros, e ao fazê-lo, transmite uma sensação de sufocamento e alívio. A tensão entre estes sentimentos contraditórios, que são características do desejo, se apresentam como metáforas. Em diferentes momentos, a ação pertence ao domínio do exercício teatral: quando cadeiras são arremessadas, uma atriz se despe enquanto um grupo de pessoas a circunda, um véu sobre a face de uma mulher ondula com a respiração. O filme de Perceval Le tourment de vivre et de ne pas être Dieu (fotografado por Klotz) é um dos poucos da dupla no qual ela recebe crédito de diretora. Nele são usados diferentes trechos da peça de Müller, assim como a ação é conduzida de forma diferente. Os cinco atores são introduzidos por letreiros no início, apresentando seus personagens: um Valmont para quatro Merteuil. Três mulheres de diferentes faixa-etárias entram em cena, uma de cada vez, caminhando solitárias por escadas, adentrando um edifício antigo, andando por quarteirões obscuros, enquanto a quarta as aguarda ao redor de uma mesa. Todas vestem figurino de época (século XVIII), com o rosto coberto de pó branco e os lábios de batom vermelho, e podem ser ouvidas (voz em off) refletindo sobre o envelhecimento.

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Juntas observam a mesma cena sendo interpretada três vezes, cada uma com uma atriz diferente em oposição a Valmont. Em cada caso, a cena inicia com a marquesa diante do espelho se virando para Valmont, fingindo surpresa em vê-lo, ao que ele responde em tom de deboche, e ela replica com um ataque afiado direcionado a seu coração. Diferentemente das atrizes – todas com a maquiagem borrada, sendo possível enxergar a pele por de baixo – a face de Valmont está coberta de forma homogênea e mais delicada. Ele tem a aparência de um fantoche e conforme flutua no espaço de uma mulher para a outra, se torna, cada vez mais, o brinquedo delas. Enquanto no filme de Klotz, existe um equilíbrio e dispersão dos papéis de gênero, Perceval estabelece uma rígida separação entre masculino e feminino. Valmont (interpretado por Antoine Brugière, com um senso de crescente desamparo) aparece aprisionado em si mesmo, sem a porosidade pertencente a seu contraponto feminino. Ele é sempre apenas um homem e, como diz uma das Merteuils: “Você sabe que para uma mulher, um homem é sempre um homem que está faltando.” Perceval, ao colocar diversas mulheres em contraponto a Valmont, honra o romance de Choderlos de Laclos, no qual existem três personagens femininos centrais – Merteuil e duas mulheres mais jovens, uma delas, a que Valmont tenta seduzir e a outra, trabalho da própria marquesa. Em Le tourment, Merteuil é incorporada por todas as mulheres e se vê refletida em todas elas, inclusive na quarta atriz que exerce o papel de teste-

munha-participante e retrata a condição do próprio espectador que as observa, compartilhando e exorcizando suas dores. O filme, assim como outros de Klotz e Perceval, oferece uma experiência fantasmagórica e ressuscita o passado com o interesse de representar o retorno do oprimido. Zombies e as duas adaptações de Müller abordam temas e práticas que são encontradas em todo o trabalho da dupla e que refletem a maneira como a contínua solidão da existência é combatida através de presentes erupções da fala. A partir da fala, convergem as diferentes etapas do filme (roteiro, direção e edição) construindo um método dialógico e, até mesmo, interativo de abordagem de recorrentes questões humanas.

Aaron Cutler publicou textos críticos nas revistas internacionais Cineaste, Cinema Scope, Film Comment, Sight & Sound, e The Village Voice, entre outros, e podem ser lidos em seu site pessoal The Moviegoer (http://aaroncutler. tumblr.com). Trabalhou para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo como assistente de programação por três anos (2012-2014). Idealizou e curou a retrospectiva Arquitetura como Autobiografia: Filmes de Heinz Emigholz (Centro Cultural São Paulo/Instituto Moreira Salles – RJ, agosto de 2015) junto com Mariana Shellard e Anamauê Artes Visuais. Mariana Shellard publicou artigos sobre cinema em parceria com Aaron Cutler em periódicos internacionais como The Village Voice, Cinema Scope e Moving Image Source. Idealizou e curou a retrospectiva Arquitetura como Autobiografia: Filmes de Heinz Emigholz (Centro Cultural São Paulo/Instituto Moreira Salles – RJ, agosto de 2015) junto com Cutler e Anamauê Artes Visuais. Realizou trabalhos de arte sonora, performance teatral e cinema, os quais podem ser vistos nos sites www.repartitura.com e www.igrejasemcristo.org.

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E R B O S S O I A S EN O PRÓPRIO CINEMA

POR

FERNANDO ORIENTE

foto: Alvaro Riveros

Os curtas e o média de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval que são analisados nesse texto, mais do qualquer outra coisa, podem ser lidos como estudos, alegorias, ensaios e experiências visuais e sonoras sobre o próprio cinema, seus mecanismos, seus dispositivos e sua própria história como arte e linguagem (todos extremamente cinematográficos, cinema puro e visceral). Bem como filmes em que, apesar da desconstrução estético-narrativa, Klotz/Perceval não deixam de elaborar e desenvolver como parte de seus discursos políticos no cinema.

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POUR SE FRAYER UN CHEMIN DANS LA JUNGLE, IL EST BON DE FRAPPER AVEC UN BATON POUR ÉCARTER LES DANGERS INVISIBLES (2014) Um repórter da Cahiers du Cinéma entrevista um diretor sobre seu próximo filme. Ao falar sobre seu trabalho, seu projeto, o cineasta começa a discorrer sobre o ato de fazer cinema e nessa divagação afirma que faz filmes para sobreviver, sobreviver a si mesmo e a historia de vida que carrega, já que todas as suas obras acabam sendo sobre ele, mesmo aquelas baseadas em peças e livros clássicos. Transformar um enunciado, uma história, uma narrativa em um filme, em linguagem cinematográfica será sempre um gesto autoral e subjetivo no qual a mediação presente no ato do fazer cinema, do transformar um texto em imagens e sons será sempre o processo de construção de um discurso pessoal, de um ponto de vista, de uma narração de vida por parte do realizador.

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O diretor afirma ao repórter: o gesto de filmar é um ato de sobrevivência, o fazer cinema como resistência transforma o cinema em uma ação política. Todo filme é político porque ele relaciona qualquer história, qualquer narrativa com experiências subjetivas de vida do realizador e como essas histórias se relacionam com o outro, o espectador, no processo de absorção do filme acaba sendo sempre um processo de conflito, de choque, que promovem as diferentes interpretações que cada um faz de um filme, de uma visão pessoal de um diretor, de uma história de vida transformada em obra de arte. Esse processo dialético é sempre uma ação política e Klotz transforma seu curta, essa entrevista entre repórter e cineasta, em uma analogia da relação que o especta- dor tem quando se confronta com um filme. O conflito que se dá entre o jornalista que tenta por


meio de uma conversa, de uma entrevista, entender um filme, uma obra, uma visão de cinema e de mundo pelas palavras de um autor é o mesmo conflito que se promove quando um espectador assiste a um filme e tenta entender, captar e traduzi-lo, ou seja, um discurso subjetivo de um cineasta. O diálogo entre repórter e cineasta é penetrado por digressões, em que a discussão sobre o cinema passa a ser uma discussão sobre visões de mundo, História e as relações entre o cotidiano e o peso do passado. A evolução ágil do curta acompanha a velocidade das falas com a contraposição entre as imagens dos dois conversando captadas como um documentário em cinema direto, com fotos em preto e branco de possíveis locações, imagens em que os espaços registrados, as pessoas presentes nelas trazem histórias incapazes de serem traduzidas por palavras, elas se abrem como possibilidades de interpretação do mundo, dos fatos que ocorreram e como ocorreram. Tanto o diretor quanto o repórter, traduzem e interpretam o que são essas

imagens, quem são as pessoas e o que são, e o que aconteceu naqueles lugares que estão registrados em imagens estáticas, em instantes congelados no tempo e no quadro das fotografias. Como a experiência de vida de cada um deles se relaciona e tenta traduzir imagens. Esse processo de tradução de imagens e ideias é a própria visão de Klotz de como os mecanismos do fazer cinema é sempre uma ação que busca uma tradução do mundo, da História, das subjetividades e de como essa tradução é transformada em processo de diálogo entre filme e espectador. Para Klotz, o cinema é sempre um processo subjetivo de busca pelo outro, seja por parte do cineasta, seja por parte do espectador. É uma busca e uma tentativa de se compreender subjetividades, aceitá-las ou renegá-las. Um jogo, um diálogo, uma caça e uma rendição. Tudo mediado pelo conflito entre o eu e o outro, entre subjetividades. Pour se frayer.. é um belo exercício dialético, posto como um processo criativo em aberto, sujeito a intervenções; um diálogo, uma busca de síntese.

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MOMIES ET MUTANTS (2015) Mesclando imagens de filmes, performances, instalações com o plano fechado de um homem discursando (o encenador e intelectual italiano Romeo Castellucci) sobre as funções da estética, as possibilidades de absorção da imagem e de como o olhar é condicionado e transformado pelo ato de ver imagens, cenas, situações encenadas. Um discurso sobre como cada estética, cada processo estético forma e produz um espectador, condiciona o seu olhar. Na vida cotidiana, somos apenas observadores passivos de tudo o que acontece a nossa volta, das imagens e ações que nos cercam. A arte, o cinema, a pintura permitem, formam uma possibilidade de ver as coisas de outra forma, mediada por aquilo que outro calculou, pensou e produziu como possibilidade de espetáculo, bem como discurso político visual do mundo.

A arte tira o homem da passividade e o transforma em espectador pelo direcionamento do olhar, por meio daquilo que ela produz. Um discurso sobre como a arte nos permite outra visão do mundo, uma visão de fora, emancipada do meio cotidiano e banal a que estamos acostumados a processar e que vemos de maneira passiva. A arte nos permite perceber as pulsões contidas no ato de olhar, de observar algo de maneira mais complexa, de ler as imagens, de promover analogias e interpretações diante daquilo que estamos vendo ao invés de meramente observarmos imagens de forma passiva sem poder ou senso crítico, a arte produz um olhar que leva a transformação mental do que é visto em discurso, num processo de como um discurso pode ser lido, a promoção do pensamento, do senso crítico de se julgar o que se vê, de romper a passividade do olhar banal, que pela arte é transformado em um olhar estético; um olhar que permite escolhas aquele que vê. Em relação ao cinema, Momies et Mutants propõe um discurso em que uma das maiores potências da sétima arte é eternizar corpos, ações, dramas no tempo. O discurso de Castellucci faz uma analogia com o processo de mumificação que o cinema exerce sobre as imagens que compõem um filme. Elas ficarão eternizadas na tela, no quadro, no plano cinematográfico, permitindo sempre a volta do olhar para elas como algo que não irá sofrer um processo de mutação, o cinema congela seus processos estáticos na eternização permanente de suas imagens.

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LUCILE (2013) As possibilidades de um rosto. Por meio do processo de filmar uma atriz lendo um roteiro para um teste de elenco, Klotz e Perceval, com a câmera fechada no rosto da jovem, analisam todas as expressões e possibilidades de um rosto diante de um texto lido, interpretado. É como um texto ganha vida não só ao ser lido e ouvido, mas por meio da pessoa que o lê. Pelos gestos e expressões faciais da jovem atriz o texto ganha materialidade e significados. O rosto, a voz como mediação de uma narrativa, do contar uma história, do interpretar o mundo. Depois a jovem é filmada respondendo perguntas dos realizadores, explicando qual o papel de uma atriz, o que o ato de atuar significa para ela. O curta procura, por meio do teste da jovem, por meio das imagens de seu rosto, seja lendo o texto, respondendo perguntas ou simplesmente parada, olhando com olhar perdido algo que está fora do quadro, qual é o papel fundamental do ator, da atriz no processo de construção dramática. O filme busca traduzir o que é o princípio do interpretar no cinema. O grande salto de Lucile é quando Klotz e Perceval introduzem no curta uma longa cena do filme mudo Sétimo Céu (Seventh Heaven, 1927), de Frank Borzage. Nessa sequência, vemos um filme pronto, encenado, decupado, montado. E nela, o centro da força dos dramas está na atuação da atriz principal, nas suas variações de intensidade dramática que acompanham os eventos em cena. A personagem do filme vai do desespero à alegria.

Por ser um longa mudo, são os gestos, as expressões do rosto e os movimentos e a própria presença física da atriz e dos demais personagens que determinam a força dramática da cena. Essa montagem paralela, entre as sequências do teste da atriz no tempo presente, em que ela lê o texto, responde sobre sua visão do ato de interpretar ou simplesmente é filmada em silêncio pelos diretores, contraposta com a sequência de alta carga melodramática de um filme pronto, servem para Klotz e Perceval tecerem um discurso poético sobre as potências do ato de interpretação como uma das bases estruturais do fazer cinema. É a transformação de uma simples jovem que pretende ser atriz em elemento dramático central de um filme. Uma ode ao ator e ao cinema.

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NAJGO! (2014) Esse curta será exibido em uma única tela dividida em quatro janelas distintas. Cada uma dessas janelas exibe trechos de diferentes filmes. São quatro telas projetando diferentes obras cada uma e ao mesmo tempo. O espectador é colocado diante de uma experiência sensorial e estética de alta voltagem, sendo incapaz de captar tudo o que acontece dentro dos quatro quadros que alternam entre eles (e dentro dos próprios quadros individualmente) trechos de obras marcantes do cinema dirigidas por nomes como Jean-Luc Godard, John Ford, Fritz Lang, Robert Bresson, Samuel Fuller, Joseph Losey, Jean Renoir, Charles Chaplin, John Carpenter, Apichatpong Weerasethakul, entre muitos outros cineastas fundamentais na história do cinema. Vários dos filmes projetados têm suas cenas interrompidas e voltam a preencher uma das quatro janelas em diferentes momentos da curta duração do filme. Descrever Najgo! é uma tarefa muito limitada perto da força visual que se tem ao assistir ao filme. É impossível por em palavras a explosão de movimentos, closes, cortes, tiroteios, ações, perseguições, diálogos, assassinatos, revoltas, abraços, brigas, beijos, conflitos, tumultos, violências e mais uma infinita quantidade de ações que acontecem como um jorro visual em quatro telas ao mesmo tempo diante do espectador. O filme é uma exaltação da força do cinema enquanto poder das imagens em movimento, em que frases, ruídos, diegéticos, músicas incidentais, diálogos, gritos e todas as possibilidades de associação de tudo isso entre as quatro telas, uma negando a outra e depois uma completando a outra, tornam o curta em uma experiência dialética bruta.

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No início do filme, temos frases que dizem que Najgo! é sobre a perseguição ao homem, caçadas e sobre o horror no cinema, algo que sempre existiu e sempre existirá. Esse texto introdutório força o caráter político das escolhas dos trechos e dos filmes feitas por Klotz e Perceval. Basicamente, os recortes de cada um dos trechos projetados nas quatro telas remetem sempre a esses temas, e o movimento, a tensão da ação dentro dos quadros, o suspense são a força-motora do filme. Najgo! é uma experiência visual e sonora deslumbrante, que pede sempre para ser revista. Uma análise do cinema e sua História, um inventário sobre sua existência como arte do movimento e da emoção bruta, e um discurso sobre a própria materialidade cinematográfica e a transversalidade que diferentes obras e diferentes períodos do cinema exercem sobre o imaginário do espectador, fazendo do cinema uma arte ilimitada em suas possibilidades de leitura e exploração enquanto linguagem.

JE SAIS COURIR MAIS JE NE SAIS PAS M’ENFUIR (2014) Aqui estamos diante de uma pequena obra-prima do casal Klotz/Perceval. Novamente com a tela dividida em quatro janelas que projetam imagens isoladas. Só que em Je Sais Courir Mais Je ne Sais Pas M’enfuir todas as sequências e imagens foram encenadas, fil-

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madas, decupadas e montadas pelos diretores. Se o filme também é um estudo sobre o conflito dialético de quatro sequências distintas exibidas ao mesmo tempo, essas sequências fazem parte de uma mesma obra, de um mesmo filme-ensaio. Os realizadores exploram ao usar as quatro janelas as possibilidades da montagem, já que quase sempre cada uma das janelas se relaciona diretamente com a outra. Por vezes uma é o contracampo da outra, por outras vezes, Klotz monta duas sequências distintas que acontecem ao mesmo tempo em uma montagem paralela que se explicita pelos planos independentes serem colocados na tela ao mesmo tempo, só que em janelas separadas. Em outros momentos, o plano é dividido em dois e uma ação que começa numa das janelas termina na outra. Muitas vezes vemos a mesma cena filmada por ângulos diferentes projetadas ao mesmo tempo, cada uma em uma janela, outras vezes a mesma imagem se reproduz idêntica em outro quadro, em outras situações uma sequência acontece simultaneamente em dois quadros, só que em cada um a velocidade do plano é uma (velocidade normal numa janela, slow-motion na outra). Esses são apenas alguns dos elementos dessa montagem ousada que usa quatro janelas, quatro campos simultaneamente. O que vemos em Je Sais Courir Mais Je ne Sais Pas M’enfuir são personagens distintos: prostitutas, imigrantes negros, um velho com ar de empoderamento burguês, uma criança negra filha de imigrantes e uma mulher mascarada, a própria diretora e roteirista Elisabeth Perceval, que se relaciona com quase todos esses personagens dentro de uma alegoria narrativa criada por Klotz/Perceval.

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É notável no filme como o diretor registra a presença dos corpos de seus personagens organicamente inseridos no espaço urbano, seja em ruelas desertas, becos degradados, em avenidas movimentadas, ônibus, pontes, ambientes fechados ou praças. Eles estão quase sempre se deslocando ou esperando alguém ou algo que eles nem mesmo sabem o que é. É um sentido de se perder no espaço urbano, no corpo orgânico da cidade que os realizadores inserem em seus personagens. Imagens belíssimas, com um trabalho de luz primoroso, enquadramentos de um rigor impressionante, muitos ângulos fechados que retiram o máximo de expressão e carga dramática dos rostos de seus personagens, um uso preciso das músicas ao longo do filme e um discurso político que tem seu centro na questão dos marginalizados na sociedade, sejam negros imigrantes, sejam prostitutas ou loucos de rua. Je Sais Courir Mais Je ne Sais Pas M’enfuir pode ser visto com uma obra que se debruça sobre os mecanismos do cinema, sobre o filmar, cortar, compor quadros, desenvolver a mise-en-scène para cada sequência, produzir imagens e relacioná-las com sons e músicas. Mas é, no aspecto da forma estética, um filme sobre as possibilidades de se construir situações dramáticas ancoradas no escancaramento da relação que a montagem exerce na elaboração e na composição de relação entre planos e sequências. Ao mesmo tempo, o filme é um ensaio melancólico sobre a precariedade de homens e mulheres dentro de um corpo urbano inóspito. Fernando Oriente é crítico, professor e pesquisador de cinema, além de jornalista formado pela PUC SP. É editor do site de cinema Tudo Vai Bem (www. tudovaibem.com) e também trabalha como colaborador das revistas Interlúdio e Teorema. Foi um dos editores do Site Cinequanon entre os anos de 2007 e 2012.


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CEREMONY BRAZZA E S T N A M A S LE CINÉMA O cinema de Nicolas Klotz sempre coloca em questão a noção de comunidade, ou o que quer que possa ter restado dela no mundo de hoje. O próprio ato de fabricar um filme se apresenta, para ele, como um gesto coletivo que desemboca na formação de uma comunidade possível: fazer um filme é juntar um grupo de pessoas. Um grupo de trabalho, em primeiro lugar, mas também, e mais profundamente, um grupo de convivência, colaboração, amizade, encontro. Montar uma equipe de cinema, nessa perspectiva, é unir forças para propor um contra discurso, uma forma alternativa de poder. Não por acaso, Klotz se interessa por pessoas em situação de exílio, de exclusão, pessoas sem documentos, sem legalidade, sem cidadania. Os párias da sociedade, para aludir ao título de um de seus longas-metragens (Paria,

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POR

LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR.

2000). Essas pessoas se unem e formam uma comunidade à margem do sistema, fazendo circular suas histórias pelo modo da oralidade, da transmissão pela palavra falada ou cantada. Em A Ferida (La Blessure, 2004), esses seres marginalizados são imigrantes congoleses que pedem asilo político na França e, enquanto aguardam pelos desenlaces da burocracia estatal, habitam espaços no limiar do inabitável, sofrem discriminações, adaptam-se como podem a uma experiência radical de desterritorialização. A Ferida é um filme inteiramente pensado em cima dos corpos – corpos debilitados, constipados, feridos. A miseen-scène rigorosa do filme, pautada em planos fixos de longa duração, cria uma espécie de imobilidade, uma re-


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tenção do olhar, um exercício de atenção que nos ajuda a ver os corpos, a vê-los como o que são, e não como o que significam para nós. Trata-se de um verdadeiro esforço de aproximação do olhar em direção ao outro. O tipo genérico (o imigrante africano que sofre ao entrar num país europeu) cede lugar ao ser singular (a pessoa que vive naquele corpo, naquele espaço, naquele quadro existencial). O filme não busca denunciar uma realidade desconhecida, mas dar a perceber de maneira diferente uma realidade de cuja existência todos os espectadores do filme já sabem, embora, em sua maioria, não percam muito tempo tentando compreendê-la. Em Ceremony Brazza (2013) vemos novamente personagens que poderiam estar vivendo nos “squats” (prédios abandonados ocupados por imigrantes e grupos de sem teto) de A Ferida. Desta vez, porém, Klotz inverte o caminho: ele vai ao Congo para filmá-los. Uma longa sequência mostra, bem no começo do filme, um homem executando ágeis movimentos diante de uma parede na qual sua sombra é projetada com total nitidez. A princípio, ele parece lutar com a própria sombra, boxear com ela, golpear e se esquivar, brigar com aquela figura que insiste em imitar seus movimentos. No decorrer da cena, contudo, o número se transforma pouco a pouco em dança, em ritual de autocelebração do corpo, em demonstração de encantamento com a própria destreza e agilidade, com a capacidade de se expressar pelo corpo – um corpo que se opõe diametralmente aos corpos constrangidos, acuados, desmobilizados, machucados, enfim, aqueles corpos recém-transplantados da África para a Europa (e ainda convalescendo desse transplante traumático) vistos no começo de A Ferida. Aqui, em Ceremony Brazza, o corpo do dançarino do-

mina o espaço e lhe impõe suas próprias leis de movimento. O homem dança com sua sombra, ou seja, dança consigo próprio e com outro ao mesmo tempo. Pois a sombra tem essa dupla característica: reforça seu pertencimento ao corpo, repetindo exatamente o que ele faz e garantindo uma contiguidade física entre ambos, mas, por outro lado, insere uma alteridade no jogo da projeção, impede que a veja como puro prolongamento do corpo que a projeta. De certa forma, a sombra é o “outro” do corpo, seu duplo, o elemento que acusa a existência de uma segunda personalidade dentro do sujeito (com grande frequência, é precisamente essa sua função na história da representação artística). Tal ideia vem a calhar no cinema de Nicolas Klotz, cineasta sempre atento à existência do outro, ao choque da alteridade, sempre disposto a filmar o diferente como diferente, ao contrário de tantos realizadores ditos humanistas que, no fim das contas, só aceitam filmar o outro desde que despido de sua diferença. Essa sequência inicial de Ceremony Brazza nos coloca num registro entre a vídeo-dança experimental e o documentário etnográfico, sem que se possa escolher um rótulo preciso para catalogar o filme. A precariedade de recursos, ou o formato “pequeno” do filme, reforça não apenas seu aspecto experimental, mas, sobretudo, seu lado “guerrilheiro” (as aspas vêm ao socorro de uma palavra que sofreu muito com o uso abundante e pouco criterioso a que foi submetida nos últimos tempos, que teve por corolário anestesiar sua eficácia mesmo nas ocasiões em que a ideia de filme de guerrilha se aplica genuinamente, como é o caso aqui). Além da dança, da performance, do corpo em êxtase, outro elemento fundamental em Ceremony Brazza é a conversa, o canto, a oralidade, a “imagem vocal”

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criada nas situações em que as vivências ganham uma forma de expressão ligada à palavra (falada, cantada, teatralizada, recitada). Em A Ferida, já havia essa presença crucial da palavra, do monólogo, da narrativa oral que tem a capacidade de inserir uma história pessoal no motor da história coletiva. As personagens de Klotz são ciosas dessa tradição oral, dessas narrações que inventam o imaginário e a história de uma comunidade, como outrora os homens se reuniam ao redor da fogueira para conversas em que se partilhavam experiências e se mantinham vivos a memória e o passado. Klotz dá enorme importância a essas cerimônias que funcionam como cimento de ligação das subjetividades disjuntas que formam um corpo social. Daí seu gosto por algumas manifestações culturais que, de maneira nem sempre lógica ou racionalizável, podem desempenhar tal função no mundo contemporâneo: o rock, a música eletrônica, o cinema – experiências que têm o potencial de produzir comunidades de espírito, de aglutinar as pessoas em torno de um mesmo sentimento ou de uma mesma radiação sonora ou luminosa, podendo instilar, nos mais sensíveis a certas emanações de energia, uma vontade de insubmissão ou de transgressão, de descoberta, de confrontação do mundo social estabelecido. É o que ele tenta injetar nas veias paralisadas de uma Europa sombria, dark, como aquela representada em Low Life (2011). Alguns anos antes, em A Questão Humana (2007), esse mundo entrevado já era configurado pelo paralelismo que o filme traçava entre as tecnologias linguísticas do nazismo, a forma com que ele mascarava suas práticas de extermínio através de uma linguagem neutra, técnica (é preciso se lembrar do aterrador depoimento da personagem de Lou Castel na parte final do filme), com as estratégias empregadas pelo setor jurídi-

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co e pela gestão de recursos humanos das grandes corporações contemporâneas. Na época da realização de A Questão Humana, Héléna Klotz, filha de Nicolas com Elisabeth Perceval (sua esposa, roteirista e coautora dos filmes), dirigiu o documentário Les Amants Cinéma, que é a poética formativa do cinema do casal Klotz/Perceval, da mesma forma que Onde Jaz o Teu Sorriso? (Où gît votre sourire enfoui?, Pedro Costa e Thierry Lounas, 2001) é a poética do casal Straub/Huillet. O documentário de Héléna Klotz revela a forma como seus pais pensam o cinema e o realizam. O filme poderia muito bem fazer parte da série “Cinéastes de notre temps”, de André S. Labarthe, já que o princípio é o mesmo de muitos dos episódios da série: depoimentos do cineasta, cenas dele trabalhando, cenas domésticas, discussões de montagem etc. O que se tem ao final é um retrato de Klotz e Perceval e uma tentativa de entrar em seu processo de criação, de entender sua metodologia de trabalho. Um retrato extremamente afetivo, já que feito pela filha do casal. Klotz e Perceval encarnam a figura do artista moderno por excelência, aquele que possui, para cada uma de suas opções estéticas, um conceito explicativo, uma reflexão teórica de base. Desde a escrita do roteiro até a montagem final, o que vemos em Les Amants Cinéma é a gestação de um cinema em que absolutamente todos os elementos formais e dramatúrgicos foram cuidadosamente pensados e, mais ainda, filtrados pela grelha de um conceito muito rigoroso. O documentário começa e termina com uma divagação de Klotz sobre a duração, sobre a dilatação temporal e a importância que ela tem para a experiência do cinema tal como ele a


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concebe. No começo, ele fala de música: “os primeiros discos que ouvíamos tinham faixas de dois minutos, dois minutos e meio. Aí começaram a surgir bandas que faziam músicas de dezoito, vinte minutos, e isso me faz pensar no cinema”. No monólogo final, Klotz volta a confessar seu gosto pelas experiências estéticas que duram, que tomam certo tempo: “Um filme é algo que pode realmente, ao longo de uma duração precisa, rivalizar com o mundo, e é isso que me interessa”. Por ser uma arte que propõe uma forma de ocupação do tempo, ou de preenchimento estético da experiência da temporalidade (o que um filme faz, em certa medida, é colocar uma moldura, estabelecer uma unidade perceptiva, destacar do fluxo temporal-existencial um bloco de duração pelo qual, de outro modo, passaríamos praticamente sem perceber), o cinema realmente rivaliza com o mundo, porquanto implica que, em vez de gastar duas horas (ou quinze minutos, ou quatro horas...) fazendo isso ou aquilo, você gaste esse tempo assistindo a um filme que vai proporcionar algo de diferente na sua vivência diária, que vai operar um corte, uma mudança, uma ferida. Se outras pessoas também veem esse filme e sentem coisas parecidas, a criação de uma comunidade – de um mundo não à parte, mas rival do atual – começa a se provar possível. É essa talvez a utopia comunitária que, em tempos tão difíceis, mantém atuantes artistas como Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Luiz Carlos Oliveira Jr. é crítico e pesquisador de cinema. Autor do livro A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema de fluxo (Papirus, 2013). Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), sob orientação do Prof. Dr. Ismail Xavier. Ex-editor da revista eletrônica Contracampo. Já colaborou para as revistas Bravo!, Cult, Interlúdio, Paisà e Foco e para o Guia Folha – Livros, Discos e Filmes. Ministrou cursos e oficinas em espaços como Centro Cultural Banco do Brasil, CineSESC, Cine Humberto Mauro e Fundação Getúlio Vargas.

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ENTREVISTA

L VA E C R E P H T E B A IS L E & Z T LO NICOLAS K

COM

por

LEONARDO LUIZ FERREIRA

O casal Klotz e Perceval forma uma entidade única, como no caso dos irmãos Coen. O pensamento de cinema e vida são tão próximos que não surpreende que a autoria das obras se confunda entre um e outro nas mais diversas funções do ofício cinematográfico. Esta é uma entrevista exclusiva e inédita na qual eles abordam sobre todos os filmes da carreira, inspirações e fracassos. Um diálogo tão franco, cru e direto despido, como no cinema deles, de qualquer artificialismo. Eles demonstram um pensamento vivo que por si só já vale a impressão do catálogo para a posteridade.

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O QUE É O CINEMA PARA VOCÊ? ELE PODE SER UTILIZADO AINDA HOJE COMO FERRAMENTA POLÍTICA? Elisabeth Perceval: Os filmes são a matéria, o discurso também é a matéria. O cinema é acima de tudo a criação de novas formas com sons, imagens, cores, presenças...que despertam a sensibilidade e intensificam as emoções. Não faço filmes para explicar ou informar, mas para extrair o real de toda a matéria. Para restituir qualquer coisa a realidade. E sempre nos pareceu indispensável ligar a aventura do cinema aos nossos tempos — para interrogar o contemporâneo. Escolher falar de um mundo ao invés de outro, é demarcar uma posição, não? A política é um modo de percepção da realidade. O cinema é sim uma ferramenta política no sentido de que tudo é uma questão de escolha: atores, planos, diálogos, ética e estética. Nicolas Klotz: Cinema é, principalmente, muito trabalho. Como a pintura, fotografia, música, literatura e arte em geral. Cinema é encontrar pessoas, atmosferas, lugares, dinheiro, escrever, filmar, gravar o som, montar e projetar. Os gestos contam mais e cada vez mais para nós. O modo como desenvolvemos e fazemos coisas. O cinema sempre será político, até mesmo quando é charmoso dizer hoje que a política está morta (o que é em si uma declaração política). Cinema será sempre político como todo tipo de arte, filosofia, modos de vida. O cinema é político por causa da história do cinema e da História. Cinema é político por causa da forma como os filmes são feitos, produzidos e mostrados ao público. Cinema é político pela forma como são assistidos e o que eles fazem com as pessoas que o assistem. Nosso

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trabalho é assombrado pela ideia do Godard da morte do cinema. E isso é altamente uma declaração política e de princípios. Nós não acreditamos em filmes contemporâneos que não confrontem a si mesmo a respeito da morte do cinema. Morte do cinema não significa o fim do cinema, não tem nada haver com nostalgia, mas sim com maneiras de fazer e assistir a filmes que não funcionam mais. Nada é mais triste hoje do que glorificar filmes porque eles criam um largo consenso de opinião. O cinema é muito jovem e tem que inventar meios de romper com aquilo que o mundo capitalista está destruindo e influenciando na maneira de pensar, sentir e desejar das pessoas. Mundo capitalista não é apenas o mundo exterior emudecendo através da tecnologia e alta frequência, é uma guerra bastante íntima, como drogas e medicina. Afeta tudo. Se o cinema não pode mudar o mundo como o fez no século passado, ele pode mudar a si mesmo e as pessoas, organizando zonas de intimidade, padrões, sons, cores, ritmos, palavras, maneiras de falar, amar e pensar, que não servem como nenhum tipo de programa de economia de massa. Se a política dos autores é agora um velho souvenir daquilo que o cinema já foi há 60 anos, as políticas do cinema deveriam hoje estar se reinventando inteiramente as suas economias, o que não pode ser feito sem que as pessoas façam, vejam e escrevam filmes de todas as formas. Com a morte do cinema, veio também a morte da crítica cinematográfica e da cinefilia herdada por novas gerações. É um grande momento para o cinema se abrir em direção a novos horizontes para gerações por vir.


QUAL A SUA RELAÇÃO COM CINEMA NA INFÂNCIA? LEMBRA-SE DO PRIMEIRO FILME QUE ASSISTIU? filmes. Eu passei mais tempo em salas de montagem EP: As primeiras projeções eu assisti na escola. Um grande pano branco foi instalado no pátio. As crianças de todas as classes estavam sentadas nos bancos. Havia qualquer coisa de mágico e solene no ar... Esperamos em silêncio, olhando para aquela folha imensa branca a balançar com as correntes de ar, depois ouvimos o som de arranque do projetor, o tremor do feixe de luz sobre nossas cabeças e, em seguida, as imagens que fizeram todos começarem a gritar. Os filmes eram em preto e branco e mudos. O primeiro filme foi O Garoto (1921), de Charles Chaplin. Esta experiência com o cinema era muito forte, eu tinha apenas 10 anos, mas já gostaria de aprender o ofício. Dois anos mais tarde, nosso professor de História projetou Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais. Era impossível compreender a violência das imagens, eu não conseguia acompanhar a voz em off que narrava. Eu queria desaparecer. Sentia uma tristeza terrível e vergonha. Apesar das explicações do professor, toda a classe permanecia em silêncio, petrificada. Uma memória gravada para sempre. Nesses momentos, as crianças querem morrer... NK: Quando eu era jovem, não conseguia diferenciar entre realidade e cinema, porque o meu pai é montador de cinema e nós vivíamos mudando da França para Alemanha para os Estados Unidos para a França... seguindo o seu trabalho. De alguma forma, o cinema era mais forte do que a realidade, porque nossa vida dependia dos filmes serem feitos ou não. Escola, amigos, paisagens, cidades, línguas, comida, tudo dependia dos

na infância do que em salas de cinema, e aquilo me dava pesadelos — toda aquela película sendo cortada, esquartejada, sendo colocada em pedaços, indo e voltando, positivo, negativo... Eu não poderia imaginar que tipo de movimento sairia desses cortes de som e filme. Eu geralmente sonhava com uma película sangrando pendurada na sala de edição. Eu não tenho uma predileção particular em ver esse ou aquele tipo de filme em um cinema. Eu assisti e descobri a muitos filmes sozinho na televisão e me lembro especialmente de faroestes e filmes do Hitchcock, porque eles me davam muito medo. Desde muito jovem, cinema sempre teve a ver com medo para mim. Eu lembro de assistir a Amor, Sublime Amor (West Side Story, 1961), de Robert Wise e Jerome Robbins, nos Estados Unidos e Playtime — Tempo de Diversão (1967), de Jacques Tati, em Paris — porque fui com meu pai. Fiquei totalmente fascinado com West Side Story, as gangues, a dança, a música. Era uma experiência física, que deixou muitos traços em mim. Não como cinéfilo, mas como um garoto descobrindo o tamanho e o som do cinema em uma sala. Playtime foi mais como uma experiência mental. Eu era um pouco mais velho, talvez 13 anos. Nós acabamos de sair da América e eu não falava uma palavra em francês para que eu pudesse acompanhar facilmente esse filme. Meu pai me contou que Jacques Tati era russo, e que ele tinha perdido todo seu dinheiro para realizar esse filme. Então, cinema era também uma coisa perigosa: as pessoas perdiam o seu dinheiro fazendo filmes, outras tinham que deixar seus países...

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COMO FOI O INÍCIO DE CARREIRA NO UNIVERSO ARTÍSTICO? EP: Meus pais decidiram se mudar para Quebec em busca de uma vida melhor. Aos 15 anos, eu desembarquei em Montreal e entrei para a Escola Nacional de Teatro. Essa é a minha primeira experiência teatral, um lugar incrível de revelação e aprendizado. Local de trabalho sobre o corpo, a presença. Apenas uma pessoa está no palco e é um mundo que começa a existir, uma história contada antes mesmo da palavra falada. A crença na presença permaneceu fundamental em nosso cinema. Cinema é ritmo, respiração do texto e interioridade dos atores. NK: Minha formação principal são os filmes que assisti desde a infância até os dias de hoje. Filmando, editando, dirigindo peças e fotografando. Eu nunca estive em uma escola de cinema. No colégio eu organizava um cinema e programava todo filme que gostaria de ver, de clássicos a novos filmes. Nessa época, era ótimo ver filmes, ir ao cinema, dirigir peças na escola, ouvir pop, rock e punk. Muito mais excitante do que discutir economia e sonhar em entrar no mundo empresarial. De fato nós abominávamos qualquer coisa que se aproximasse disso, e escolhíamos nossas bandeiras na juventude. Não é que nesse tempo a vida fosse mais fácil para que as pessoas pudessem pensar mais a respeito de arte, política, sociedade, vida, amor e amizade. O que é algo congelado hoje na França, onde tem cada vez menos espaço vital para a cultura. Nós estávamos vivos e fortes com nossas ideias. Quando você programa

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filmes num cineclube, você descobre que a ordem na qual exibe filmes coloca o foco em diretores que considera mais importantes. Descobrir Godard depois de Jean Rouch não é o mesmo que Godard depois de Truffaut, ou Rossellini. Bresson depois de Eustache. Straub e Huillet depois de John Ford. Douglas Sirk depois de Fassbinder. É sempre uma experimentação. Eu faltei várias vezes a escola para ver muitas retrospectivas em cinemas que não existem mais em Paris. Quando Pasolini tinha um filme novo, você poderia ver todos os seus filmes em um pequeno cinema o dia inteiro, por dois ou três meses. O mesmo acontecia com Bergman, Fellini, Antonioni, Ferreri. O cinema italiano era extremamente forte em Paris nos anos 70. Nós ficávamos dia e noite na Cinemateca. Descobrindo muitos filmes. Descobrir é uma boa palavra em cinema. Você não vê apenas um filme. Cada autor em que você confia, você descobre algo que nunca experimentou antes. Algo que muda dentro de você. Sem regras, nunca, apenas experiência e a memória que esta experiência deixou dentro de você. Isso é o que eu estava procurando e ainda estou no cinema, seja em clássicos, contemporâneos, ou em filmes que eu e Elisabeth fazemos. Estes últimos meses eu estava pensando bastante sobre um filme que eu vi na Cinemateca nos anos 70. Está bem claro na minha mente. Foi há muito tempo, mas parece que foi hoje. Les Hautes Solitudes (1974)i , de Philippe Garrel. Hoje, ele é um ícone do cinema. Mas naquela época, seus filmes eram pedras atiradas na janela para uma geração nova


que não buscava o cinema acadêmico. Eu me lembro do que eu senti apenas ao estar na Cinemateca com o público antes mesmo do filme começar. Você podia sentir no ar que algo estava para acontecer. As pessoas eram diferentes, o ar estava ligeiramente explosivo. Nesses anos, Garrel e Godard iniciaram um período fantástico no cinema. O suicídio de Eustache marcou o fim de algo que nunca mais foi retomado no cinema francês. O Diabo, Provavelmente (1977), de Robert Bresson, também em sua maneira. Quando ele foi lançado, foi odiado por quase todo mundo porque mostrava que o maio de 68 estava morto. Descobrir todos esses filmes na época em que foram feitos e exibidos não tem nada

a ver com descobri-los 20 ou 30 anos depois. Naquela época nós realmente brigávamos com as pessoas por causa dos filmes. As pessoas eram muito reacionárias com cinema. Como hoje. Mas nós éramos mais fortes e não tínhamos vergonha de acreditar no cinema. Alguma coisa estava sempre acontecendo, se movendo, virando nossas mentes, críticos estavam inventando novas formas de escrever sobre cinema, eles eram corajosos. Não porque eles eram críticos melhores do que os de hoje, eles eram apenas subversivos, defendendo novas ideias. Novas ideias estavam em todo lugar, enterrando as antigas. Hoje na França, eu tenho o sentimento oposto — velhas ideias estão renascendo das cinzas.

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O QUANTO À EXPERIÊNCIA NO TEATRO CONTRIBUIU PARA A FORMAÇÃO DE VOCÊS COMO CINEASTAS? EP: Eu mantive do teatro o prazer do trabalho coletivo. O trabalho com os atores que é feito durante os tempos. Nós temos o tempo certo para encontrar, repetir, trocar olhares em volta, seis meses, um ano, antes do primeiro dia de filmagem. A filmagem é para mim um prolongamento de um percurso e não o último momento. NK: Comecei a fazer teatro no colégio porque era bem mais barato do que fazer filmes. Meus amigos eram mais de teatro do que de cinema, então eu mostrei a eles vários filmes. Cinema é muito aditivo, especialmente na faixa entre 16 e 25 anos. Nós começamos a fazer conexões entre as duas artes. Trabalhamos muito com Strindberg por causa do Bergman, Shakespeare e Kafka, por causa de Orson Welles. Beckett por causa de Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 1966), de Roman Polanski. Quando eu saí da escola, eu comecei a dirigir peças e trabalhar como assistente de direção. Mas a minha meta real era fazer filmes. Meu interesse pelo teatro me salvou de me tornar um cinéfilo inveterado. Cinéfilos normalmente amam odiar teatro, o que não é estranho quando você vê o que eles chamam de teatro.

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A experiência deles com teatro era ver as aborrecidas peças acadêmicas. Eles não tinham ideia daquilo que estava acontecendo. Se eles tomam grandes riscos com o cinema, eles não tomam riscos fora de cinema e literatura. O que não é o mesmo pensamento de Rivette, Godard ou Fassbinder para quem o teatro era muito importante. Eu conheci Elisabeth no teatro. Ela era uma jovem atriz extraordinária, muito aberta ao cinema, e a vida. Ela era como um jovem ícone para todas essas pessoas, trabalhando em peças de Buxhner, Brecht, Wedekind, Goethe. A primeira vez que a vi, ela estava nua numa peça. Ela já tinha escrito uma peça que foi exibida em Avignon, aos 23 anos de idade. Heiner Müller foi tão importante para mim e Elisabeth quanto Godard e Bresson. Se Godard se inspirou em Brecht, nós nos inspiramos em Müller. E, particularmente, a forma que sua liberdade tem em contaminar a poesia com política e vice-versa, através da linguagem. Por anos, tanto eu quanto Elisabeth continuamos a fazer teatro enquanto dirigíamos filmes. Depois de A Ferida, nós decidimos parar porque tudo estava ficando complicado demais.


EM VÁRIAS ENTREVISTAS, VOCÊ CITA PASOLINI COMO UM DIVISOR DE ÁGUAS EM SUA VIDA. O QUE ESPECIFICAMENTE LHE ATRAI NO CINEMA DELE? NK: A primeira coisa importante em Pasolini é que ele não era um cinéfilo. O seu cinema era extremamente direto, como alguém que nunca viu um filme na vida. As pessoas que ele filmava, os pobres e ricos, citadinos ou ruralistas, o século XX, XVI ou antes de Cristo, eram tão incrivelmente reais, vivos, totalmente ali em frente de nós na tela. Não imitando a vida como um filme naturalista ou realista, a vida como ela mesma. Documentário e ficção ao mesmo tempo, inteiramente inspirado nos pintores do período Quattrocentoii. O seu trabalho é tão importante quanto de pintores como Masaccio, Giotto, Caravaggio, e escritores como Dante. Misturando poesia, política, religião, história da arte e filosofia. E o mais incrível a respeito de Pasolini, algo que sentia de maneira forte, é que seus filmes são populares. Não em termos de populares comercialmente. O seu amor pelo

proletariado era enorme, tanto quanto seu ódio pela burguesia e sociedade de consumo. Para Pasolini, o proletariado é a sobrevivência da humanidade, modos de falar, gestos, cultura, totalmente ameaçados pelo mundo neoliberal que nasceu nos anos 70. Ele viu o mundo de hoje chegando. Pasolini foi como um professor que lhe ensina intimamente, através da experiência sensitiva que você passa ao ver os seus filmes. Eu tinha 17, 18 anos, e meio que descobri o mundo através dos filmes: sexo, poesia, beleza, tragédia, alegria, cultura proletária, o oriente, a África, pinturas...Eu também ficava bastante intrigado pela forma como as pessoas falavam em seus filmes. Eu normalmente não conseguia entender tudo e tinha a sensação de que precisava ler, viver e aprender mais, e que aquele cinema estava dialogando com outras artes e épocas.

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Edith Piaf

ALÉM DO CINEASTA ITALIANO, QUAIS SÃO SUAS OUTRAS INFLUÊNCIAS TANTO EM CINEMA QUANTO TEATRO E LITERATURA? Robert Walser

Robert Bresson

Jean-Luc Godard

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EP: Bresson é o mestre absoluto do ritmo e da montagem. Com cada um de seus filmes, eu tive uma experiência, como se estivesse descobrindo as coisas pela primeira vez. É uma experiência da ordem de estar apaixonado. A história, os eventos são trabalhados de maneira fragmentada, sensível, jamais linear, deixando o espectador livre... Alguns autores se aproximam do homem como ele é. Temos a sensação de conhecê-los pessoalmente, afinal é com eles que passamos a maior parte do tempo: Robert Walser, Pessoa, Faulkner, Rimbaud, Baudelaire, Hölderlin, Kafka, Marguerite Duras. Mas também gostaria de lembrar de cantores populares: Ferret, Piaf, Brassens, Charles Trenet, Brel, Gainsbourg, Françoise Hardy, The Doors...E agora eu escuto Elliot Smith, Nick Cave, Robert Wyatt, Bob Dylan, Neil Young. E aquele que permanece insuperável, Christophe. NK: Elisabeth e eu dividimos muitas referências. Nós temos uma coleção de DVDs e vemos filmes todo o tempo. Eu diria que Godard é a influência mais importante para nós. Todos os seus períodos, suas transições, seus ensaios e sua relação com a técnica. Filme Socialismo (2010) é o fim da morte do cinema. É um filme punk. Godard abriu tantos novos horizontes no cinema. Ele nunca abandonou a história do cinema, da arte e da indústria. Para mim, ele é o mais jovem diretor de cinema em atividade. Mas a inspiração realmente flui através de nosso trabalho com outros cineastas: Bresson, Eustache, Ford, Lang, Jacques Tourneur...Varia para cada filme que fazemos.


VOCÊS CLASSIFICARIAM COMO FRACASSADAS AS EXPERIÊNCIAS COM SEUS DOIS PRIMEIROS LONGAS (LA NUIT BENGALI E LA NUIT SACRÉE)? FALEM UM POUCO SOBRE OS DOIS FILMES E COMO EM RETROSPECTIVA AVALIAM OS MOTIVOS QUE DERAM ERRADO. EP: Querer fazer um filme e filmar de fato não são a mesma coisa. Durante anos, fui ao cinema com Nicolas quase todos os dias. Falamos muito sobre os filmes e líamos as críticas. Às vezes retornávamos para ver novamente o mesmo filme, pois divergíamos de opinião. Éramos verdadeiros cinéfilos. Mas isso não é o suficiente para fazer filmes. Nicolas tinha ido à Índia para filmar um documentário sobre Ravi Shankar. Em seu regresso, ele literalmente caiu de amor com o país, as pessoas e a música. Ele queria fazer um filme de ficção lá. Então, descobrimos o romance de Mircea Eliade, “La Nuit Bengali”. Jean-Claude Carrière nos ajudou em uma adaptação para o roteiro. O produtor Philippe Diaz imediatamente se interessou pelo projeto, assim como Hugh Grant, John Hurt, Anne Brochet...não tivemos dificuldade assim para conseguir o financiamento. Mas isso ainda não é o suficiente para fazer um filme pessoal. Tínhamos uma equipe de profissionais e tudo parecia funcionar, mas, em última análise, a vida e a realidade não. De minha parte, eu estava com dois filhos e tinha deixado o teatro... o cinema explodiu em minha vida. O filme foi até bem recebido e conseguimos vendas internacionais expressivas. Ele chegou a ser selecionado para a mostra “Um Certo Olhar” do Festival de Cannes, mas o produtor se recusou a exibi-lo lá. O fracasso é algo bem mais profundo. Nesse caso, é quando o artista tem a sensação de que não conseguiu criar algo pes-

soal. La Nuit Sacrée (1993) foi um projeto de encomenda e mais uma vez para ser rodado no exterior. Nesse segundo longa, a máquina do cinema nos esmagou. Para o filme que queríamos fazer deveríamos ter recusado muitas coisas. Chegamos ao set e realmente não tínhamos escolhido nada. Tivemos que nos reinventar do começo ao fim para continuar. NK: É apenas que levou tempo para eu explodir coisas que herdei de meu pai, e tinha que passar por certas experiências para isso. O que eu aprendi, sobretudo, ao fazer esses dois filmes é que as pessoas com quem você trabalha são mais importantes do que o orçamento que você tem para fazer o filme. Você sempre pode reduzir muitas coisas tecnicamente, mas você não deve nunca reduzir a alma que você coloca dentro de uma obra. E a alma do filme são sempre as pessoas que você está filmando e aquelas que fazem o filme contigo. Locações, luzes, atores, diálogos expressam coisas íntimas e radicais que podem ser facilmente destruídas se você nunca trabalhou com filmes sem orçamento. Este é o motivo pelo qual a forma como você faz o filme é muito importante. Especialmente hoje, onde tudo é formatado pelo controle totalitário de bancos que ingerem sobre o dinheiro do cinema e das salas. Esses dois trabalhos me ensinaram a lutar pelos filmes em tempo integral, conseguir dinheiro, trazer nosso trabalho, pessoas e

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ideias para Calcutá e Marrocos. Mas no geral, eu nunca tive a impressão que estava filmando pessoas, apenas atores com figurino nos sets, com diálogos, luzes e ma-

quiagem, com movimentos complicados de câmera, gruas...Para muitos diretores, isso é chamado de cinema. Para mim, era apenas teatro filmado.

DE ONDE PARTEM AS IDEIAS PARA OS ARGUMENTOS DOS FILMES? A PARTIR DE IMAGENS OU TEXTOS? EP: Temos que começar a falar sobre o que conhecemos. As ideias vêm de coisas pessoais. Reuniões, seja com pessoas, livros, lugares...nossa percepção da realidade. Reunimos um monte de coisas, colocamos tudo junto e vemos o que acontece. Como podemos inserir os elementos reais, o documentário na ficção. NK: Eu não sei mais. Do futuro, eu acho. Uma dimensão onde não há diferença entre imagens e textos. Onde fazer um filme é mais como pintar um filme, do que imaginá-lo. Tudo começa com os primeiros gestos, continua a crescer, fica mudo e muda diversas vezes, e não estará terminado até que seja exibido. O filme é esse

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movimento inteiro. Algumas vezes um filme pode nos inspirar por anos e nós queremos dialogar com ele. Por exemplo, O Diabo, Provavelmente e Low Life. Elisabeth queria trazer o personagem Charles de volta a vida, 35 anos depois de seu suicídio. No momento, estamos trabalhando em Ceremony, que se inicia em uma noite em Barcelona, quando eu fotografei um amigo e sua irmã lá pelas 3 da manhã em uma fonte. Três sem-teto e seus cachorros estavam dormindo contra um muro de uma igreja cravejada de buracos de bala. Eu estava usando uma câmera Holga com filme preto e branco. Estou trabalhando em outro filme, Red Heels, que se passa durante a revolução francesa.


ELIZABETH ESCREVE TODOS OS ROTEIROS. COMO SE ESTABELECEU ESSA PARCERIA? EP: Você deve pensar que o Nicolas sabe melhor de como eu escrevo do que eu. Então se eu tivesse que falar, eu diria que ele está trabalhando “dentro” do filme, e que ela pensa o tempo todo. E tudo que ela conhece, vê, lê ou sonha, em algum momento retorna ao filme para modificá-lo, reinventá-lo. Com Nicolas, não é fácil de entender. Não brigamos tanto, na verdade rimos muito. Ele sempre diz: “eu não sei escrever”. Mas ele está enganado. NK: Elisabeth escreve nossos filmes, não somente os roteiros. Ela nunca pensa em termos de roteiros. Quando ela escreve, encontra pessoas, lugares, lê muito e vê muitos filmes. Então desenvolve, prepara e filma o filme pela primeira vez. Eu observo e a escuto todos os dias durante esse período. Eu vejo sua face e voz se modificarem. É

como se ela estivesse concebendo o filme através de seu corpo. Eu tiro diversas fotos dela. O filme vem dentro dela. Parece estranho, mas não é. Escrever é algo muito físico e de atividade interior. Queima-lhe a alma. Em algum momento começamos a falar sobre atores ou pessoas que encontramos que podem ser os atores do filme. Nós damos um pequeno esboço, ou apenas falamos sobre o filme. Nós trabalhamos algumas semanas juntos, ensaiamos cenas, improvisamos, passamos noites em cafés, tirando fotos e começamos a filmar pequenas coisas com eles. Então, Elisabeth continua o processo de escrita com coisas que ela sentiu durante os ensaios. Na verdade, a escrita acontece por todo o tempo. Meu trabalho é próximo da pintura, eu não escrevo nada. E esse movimento pode levar três ou quatro anos.

PARIA, A FERIDA E A QUESTÃO HUMANA FORMAM A TRILOGIA DOS TEMPOS MODERNOS. O QUE ISSO SIGNIFICA? NK: Nesse momento, nós pensamos que esses três filmes eram uma trilogia. E eles são. Mas Low Life pode também formar uma trilogia com A Ferida e A Questão Humana. Ou talvez uma tetralogia com todos juntos. Tempos modernos por causa do filme do Chaplin. Eisenstein escreveu para Chaplin que Tempos Modernos (1936) era seu primeiro filme comunista! Era um bom título sob a influência de Sarkozy na França. Os quatro filmes são como um raio-x da França entre 2000 e 2011.

A questão é: quando os tempos modernos começam e quando terminam? Eles terminam? Tempos modernos têm a ver com a industrialização, as pessoas invisíveis abandonadas, controle tecnológico policial, novas formas de guerra com estranhos efeitos em certos tipos de pessoa, resistência contra a destruição. Tem também algo a ver com magias e história. Como a história joga magia sobre o passado, presente e futuro. E como o cinema tenta jogar luz sobre tudo isso.

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EM PARIA, VOCÊS INICIAM UM PROJETO CLARO DE CINEMA, UMA PROPOSTA AUTORAL BEM PARTICULAR COM UM OLHAR PARA PERSONAGENS INVISÍVEIS NA FRANÇA. COMO VOCÊS CHEGARAM AO FORMATO E ESTÉTICA DO FILME? EP: Em nossas histórias, o sentimento de ser estrangeiro, de estar à margem é uma situação que nós conhecemos bem e isso faz você se sentir próximo dos personagens de Paria. Nós queríamos fazer um filme de ficção, não um documentário, sabendo que a ficção é de interesse somente se ela ressoa no documentário. Uma forma de conciliar a experiência real da imaginária. Então, não é um filme para informar ou explicar. Mas para passar algo de pessoal como a experiência de um namoro, compartilhar o tempo com os personagens, de modo sensível. Este filme vem de coisas como raiva, morte e vida. Havia um desejo muito forte de fazer um longa que refletisse a transição para o ano 2000, e é com eles, pessoas comuns, que resolvemos fazer isso... NK: Nós queríamos rodar Paria em Mini-DV, principalmente, porque nós passamos muito tempo com as pessoas que iríamos filmar, e não queríamos complicar as coisas com uma câmera 35mm que significaria iluminação, tempo, e uma equipe maior. Com a Mini-DV, nós poderíamos filmar bastante, com uma equipe pequena.

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E nós gostávamos do aspecto granulado da fotografia. Não era uma ideia de fazer um documentário sobre os sem-teto de Paris, mas sobre pessoas que conhecíamos e sobre nossas histórias de família. Talvez sobre como cinema e teatro são tão importantes para nós. Eu não sei se a ideia era propor um claro projeto de cinema, como você colocou. Nós estávamos mais interessados em filmar pessoas invisíveis para dar-lhes visiblidade. Levar a câmera para onde o cinema não leva usualmente. Filmando coisas que dificilmente existem nas cabeças das pessoas, mas que existem verdadeiramente no mundo real. A forma do filme foi inspirada pelos corpos dos atores e John Coltrane, a energia forte do filme e também a baixa. A câmera ficava na mão mesmo em tomadas longas. Eu gosto de sentir a câmera. Não por causa de movimentos estranhos, apenas o peso da presença. Acontece o mesmo com as fotografias de Anders Petersen ou Michael Ackerman. E Paria foi também um desafio fotográfico. Filmar em vídeo com quase nenhuma luz disponível à noite.


ENTRE OS PROJETOS DE FICÇÃO, VOCÊS DESENVOLVEM LABORATÓRIOS. EXPLIQUE COMO FUNCIONA OS DIÁLOGOS CLANDESTINOS. poucos técnicos e sem produtor. Apenas nós fazendo o filme e mostrando de mão em mão. Eu acredito cada vez menos em lançar filmes como é feito hoje, eles são expostos muito rapidamente. Vai até o ponto onde não há mais filmes, apenas produtos consensuais. Você precisa de tempo para cinema. Cinema deveria ir para o underground para encontrar novas formas e razões para expor a si mesmo às pessoas. Se é apenas comprando e vendendo, afogando filmes e pessoas em larga escala, esse tipo de cinema vai terminar como uma rede de televisão.

foto: Alvaro Riveros

NK: Diálogos clandestinos são uma série de filmes que rodamos rapidamente, sem orçamento, produção, apenas Elisabeth e eu (às vezes um operador de som), enquanto Elisabeth está escrevendo o novo projeto. De fato, nós estamos sempre filmando, montando, e tirando várias fotos. Eles são experimentais de fato porque estamos experimentando coisas. Eles são mais como desenhos, notas e esboços. Eu estou cada vez mais interessado em fazer esse tipo de filme. Deve chegar o dia em que vão existir cada vez menos diferenças entre esses e nossos outros filmes. Eu adoraria fazer um filme dessa forma: somente atores, pequeno orçamento,

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foto: Alvaro Riveros


A MÚSICA É UMA PARTE BASTANTE IMPORTANTE NOS FILMES. E NO CASO DE VOCÊS ELA É ESSENCIAL: EM TODOS OS LONGAS HÁ UMA TRILHA MARCANTE E CANÇÕES DE DIFERENTES ESTILOS. FALE UM POUCO SOBRE ESSA RELAÇÃO. NK: Nosso cinema é muito físico, como música, pensamento e desejo. Durante a montagem, nós tentamos usar vibrações como narração mais do que a história. Existem muitos espaços na história para situações inesperadas. Música é uma delas. Quando estávamos emperrados na sala de montagem de Low Life, eu perguntei a Ulysse para nos trazer algo e cada vez que ele compunha alguma coisa isso abria completamente a narração. Como eu digo, um filme é uma experiência. Cores, sons, música, ritmo, tempo, sombras são narração tanto quanto faces, corpos, presença, lugares, vozes e palavras. Eu escuto música todo tempo, nossa casa é repleta de música e filmes. Eu sinto cada vez menos diferença entre eles. Ambos fazem você dançar, não fazem? Até mesmo Straub e Huillet. Joy Division é uma banda especial para mim. Talvez porque tenhamos a mesma idade. Quando eu era jovem, nós ouvíamos pessoas 10 anos mais velhas do que nós: The Velvet

Underground, Soft Machine, Wire, Hendrix. Joy Division foi a primeira banda de minha idade. Eu ouvia seus discos obsessivamente. E amigos que vêm à nossa casa ainda hoje sabem que provavelmente ouvirão algum disco depois da meia-noite. Eu tenho eps e vinis raros deles de gravadoras como Anonymous. O som é maravilhoso e as estéticas da capa do disco sempre me fascinaram. É impossível não dançar ou meditar com Joy Division depois da meia-noite. Eu me sinto imediatamente conectado ao som deles. No momento que você ouve um álbum, você sabe o que é e se sente exatamente lá naquele mesmo instante. Rápido, mas lentamente... disse uma vez Martin Hannett, produtor da banda. O grupo inspirou muito da estética de A Questão Humana. Eu gosto de New Order bastante também. O título de nosso novo filme, Ceremony, é mais uma homenagem ao Joy Divisioniii .

Joy Division

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COMO SURGIRAM OS PROJETOS DOCUMENTAIS SOBRE OS MÚSICOS DE JAZZ BRAD MEHLDAU E JAMES CARTER? NK: O produtor que começamos a trabalhar em Paria me propôs fazer um filme para a série de jazz do canal ARTE. Eu falei para eles a respeito de Brad, que tinha 28 anos na época. Eu o tinha visto alguns meses atrás em um clube em Paris e fiquei bastante impressionado, nós conversamos um pouco e nos tornamos amigos. Mas ninguém tinha ouvido falar sobre ele na ARTE, então disseram não. Então propuseram algo sobre James Carter, que já era uma estrela. Quando eu terminei o filme sobre o Carter, alguém na ARTE leu uma crítica importante sobre o trabalho do Brad, então me pediram para realizar o filme. Eu gostei bastante de fazer esses dois filmes. Eu aprendi bastante tentando encontrar a forma e o estilo que se parecesse com a música deles para mim. Com esses dois filmes, descobri o quanto os documentários são o coração dos chamados filmes de ficção. Desde então, eu não vejo uma diferença real entre documentário e ficção. Eu trouxe Brad para Paria, por causa de uma cena em Nova York quando filmei um mendigo dançando nas ruas às duas da manhã. Nesse meio tempo, nosso produtor interrompeu nossa parceJames Carter

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ria em Paria e tivemos que procurar outra pessoa. Ele explicou isso por dois motivos: eu não obedeci a sua demanda de cortar a entrevista de Brad sobre sua dificuldade em largar a heroína. E isso era impossível para mim porque todo seu trabalho solo era especificamente uma luta interna para ficar limpo. O outro motivo era que quando o convidamos para nos acompanhar em um ônibus que retira sem-teto das ruas de Paris, ele percebeu que não conseguiria produzir o filme, pois não havia como pagar essas pessoas. Eu achei que era uma questão boa e inspiradora para um produtor. Nós devemos tê-lo assustado! Enquanto está no papel, é apenas imaginação. Quando ele estava lá, em frente da coisa real, é uma história completamente diferente. Depois de filmar e durante a edição, nós fomos para Los Angeles com um copião e Brad Mehldau improvisou três vezes no filme inteiro, como se fosse uma obra de cinema mudo.

Brad Mehldau


foto: Alvaro Riveros

O FILHO DE VOCÊS, ULYSSE, É COMPOSITOR DE TRILHA. COMO SE INICIOU A PARCERIA? NK: Nossa colaboração com Ulysse é muito natural e orgânica. Ele sabe tudo sobre nossa relação com o cinema e escutou todos os discos que temos em casa. Quando ele e sua irmã ainda estavam em nossa casa, você poderia me ouvir tocando um disco na sala e cada um fazendo o mesmo em seu respectivo quarto. Ele já trabalha conosco há 10 anos. A sua cultura musical é um milhão de vezes maior que a minha. Ele me iniciou em música contemporânea (Nono, Feldman, Scelsi), screw, gaber, grupos como Spacemen3, John Maus, Turzi, Tarwater, Salem. Ele sabe o que eu gosto e gosta de experimentar tanto quanto eu. Ele improvisa bastante. Quando mais novo, ele começava as músicas na guitarra, como em um projeto dos Diálogos Clandestinos de Low Life. Mas desde Low Life, ele trabalha diretamente com samples, loops e suas estranhas máquinas. Ele imedia-

tamente sente música quando vê um fotograma, copião ou estágio de edição de um filme. Quando eu digo que ele “sente a música”, quero dizer é que ele ouve experimentações. Não uma melodia terminada, apenas coloca coisas juntas e vê o que acontece. Ele vai para a sala de edição, volta para a casa e retorna três ou quatro dias depois com músicas interessantes ou uma longa trilha de 40 minutos de duração para nós cortarmos. A sua música está tão presente como qualquer outra dimensão em nossos filmes. Ela não acompanha a cena, ela é a cena tanto quanto a câmera, atores, luz, palavras e sons. Ele mescla muitas épocas e técnicas. Eu tenho confiança plena em suas ideias. Héléna usou parte da música que não aproveitamos em Low Life em seu longa L´âge Atomique (2012). E a trilha trabalha da mesma forma que nos nossos filmes.

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ALÉM DA MÚSICA, A DANÇA DESEMPENHA UMA FUNÇÃO NARRATIVA FORTE EM ALGUNS TÍTULOS, COMO PARIA, A QUESTÃO HUMANA E MADEMOISELLE JULIE. NK: Desde Paria, existem sempre cenas de canto e dança nos nossos filmes. Isso vem dos filmes de John Ford, onde você tem uma praça com pessoas dançando e cenas nostálgicas com cowboys cantando à noite. Eu realmente amo filmar pessoas dançando. É uma vibração total do corpo que irriga o filme com uma natureza sexual íntima. Faces, movimentos, corpos, olhares, olhos se tornam muito magnéticos, contaminam os atores bem como os personagens, e o público. Em Low Life, nós rodamos a cena de dança três horas depois do horário que devería-

mos ter parado de filmar. Essas cenas expressam certas energias que não podem ser demonstradas de outra forma, como o dançarino de flamenco no início de Low Life ou a sequência da rave em A Questão Humana. Todas elas têm um significado preciso, que Elisabeth desenvolve enquanto está escrevendo. Elas têm que agregar tanto quanto a forma e a mise-en-scène. Em Mademoiselle Julie foi diferente, eu levei a nossa forma de dançar para o filme. Aquele sentimento não estava na peça ou na direção de Frédéric.

EM PARIA EXISTE UM ELEMENTO DE COMICIDADE QUE NÃO SE VÊ NOS TRABALHOS POSTERIORES. O QUANTO EXISTE DE IMPROVISO NESSE TRABALHO? E O QUANTO EXISTE DE IMPROVISO NO TRABALHO DE VOCÊS COMO UM TODO? NK: Sim, eu entendo perfeitamente essa questão do humor. É por isso que o nosso próximo longa, Ceremony, estará repleto de humor negro. Elisabeth sempre me diz que nossos filmes devem ter mais humor. E ela está certa. Nós sempre rimos muito e fazemos outras pessoas sorrirem na vida. Pessoas pensam que nós somos muito sérios e nebulosos na vida, o que nem de longe é verdade. Nós recebemos vários textos agressivos na imprensa que falam a respeito da escuridão de nossos filmes de uma forma bem séria. Eles dizem que nós somos niilistas e intelectuais depressivos! Como quando na crítica da Cahiers du Cinéma Stephane Delorme disse que Béla Tarr não tem humor algum. É algo ridículo vindo de alguém como Delorme, que é uma das pessoas mais

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tristes e depressivas que conheci na vida. Para qualquer um que já tenha passado uma noite com Béla sabe que ele tem ótimo humor. Ele não poderia fazer os filmes que faz se ele não tivesse humor em sua vida real. Humor é como álcool para ele, totalmente vital para suportar o que está acontecendo na extrema-direita húngara e no pós-comunismo em geral. Mas para entender isso você tem que ser artista e lutar por seus valores. Pessoas que têm forte senso de humor na vida não precisam rir o tempo todo no cinema. Não existe nenhuma improvisação em Paria, tudo foi escrito e ensaiado com os atores. Quando eu digo ensaiado, não quero dizer que foi determinado e fixado. É que Elisabeth trabalhou bastante com eles, então eles sabiam as suas falas e podiam fi-


car livres para se moverem em frente à câmera. Apenas uma cena foi meio que improvisada porque queríamos que o ator usasse as suas próprias palavras. Eu nunca filmei como em Paria novamente, porque as atmosferas, energias e os personagens de nossos próximos filmes são bem diferentes. O

tipo de filmagem que desenvolvo em Paria pode facilmente se tornar um sistema que evita a mise-en-scène. O que não é o caso de Paria, porque a segunda metade é filmada em planos estáticos radicais que trazem a composição do tempo. O que de alguma forma prenuncia A Ferida.

A FERIDA É O TRABALHO MAIS RADICAL: PLANOS DE LONGA DURAÇÃO, MOVIMENTOS ESTÁTICOS, CARÁTER DOCUMENTAL E DE DISTANCIAMENTO DA AÇÃO. FALE SOBRE A GÊNESE DO PROJETO E A MISE-EN-SCÈNE. NK: Novamente, a forma de A Ferida cresceu durante os três anos de trabalho antes de rodar o filme. Para A Ferida, Elisabeth encontrou diversos africanos que tinham acabado de sair do centro de detenção de Roissy, outros que viviam sem visto em centros administrativos, hotéis, squats e na rua. Ela os entrevistou em diferentes locais. Eu filmei as entrevistas por cerca de um ano, mas nunca filmava os seus rostos, apenas os corpos sentados na cadeira. A primeira coisa que percebemos foi que para conhecê-los, você tinha que adentrar a sua relação com tempo e segredo. Levou muito tempo até que começasse a filmar seus rostos. Isso foi uma experiência bem forte, porque você sente o desafio que é filmar um rosto. Quando o filme já estava escrito, nós começamos a fazer testes com muitos africanos. Toda pessoa que filmamos em A Ferida vivia da mesma forma que seus personagens, com os mesmos problemas para sair da África e tentar entrar na França. Nós pedimos para eles desenharem como eram as suas celas de detenção porque não havia nenhuma fotografia ou vídeo. Eu filmei um squat no qual passamos um tempo com pessoas que inspiraram os personagens do filme.

Já sabendo que ele seria destruído antes das filmagens, nós encontramos uma fábrica abandonada onde pudemos construir um squat e um centro de detenção. Usando paredes reais e falsas. Nós fazemos isso em todos os filmes. Eu não consigo trabalhar em salas de produção. Nós filmamos muito com atores naquele espaço antes mesmo da filmagem programada começar. Como o filme é totalmente estruturado a partir de sete monólogos, eles tinham que saber seus textos inteiramente e, ao mesmo tempo, se sentirem livres para mover no quadro. É por isso que filmamos tomadas longas e planos estáticos. Cada plano era uma forma de proteção para seus corpos e mentes. Enquanto editava, eu pensei bastante em uma declaração de Deleuze de que um filme é feito de blocos de tempo. É uma boa definição para A Ferida. Blocos de tempo que podem matá-lo ou curá-lo. A maneira como você filma tem a ver com as pessoas que você filma, como as vê, e como quer colocar os planos juntos. Não é uma coisa finalizada querer que o filme apareça assim ou assado. Nunca se parece com aquilo que você imagina que seja. Ele se revela através das pessoas que você filma e como você as vê ou quer que vejam.

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JÁ A QUESTÃO HUMANA É O FILME MAIS CONHECIDO, INCLUSIVE COM DISTRIBUIÇÃO NOS CINEMAS BRASILEIROS. É O TRABALHO QUE VOCÊS TIVERAM MAIS ESTRUTURA DE PRODUÇÃO? NK: O orçamento de A Questão Humana, 1,3 milhões de euros, é bem próximo dos orçamentos de A Ferida (1 milhão), Low Life (1,3 milhões) e Paria (900 mil). Todos os quatro filmes foram rodados em 32 dias. O orçamento médio de um filme francês gira em torno de 4 milhões de euros. Então, você pode perceber a diferença. Até agora, com exceção de La Nuit Bengali e La Nuit Sacrée, nós fizemos filmes de baixo orçamento. A principal

diferença em A Questão Humana é que nós trabalhamos com atores conhecidos, que aceitaram seus papeis por um salário bem reduzido. Mas nós trabalhamos exatamente da mesma forma. O único conforto que tivemos foi que os produtores eram também os distribuidores do filme. E nós tínhamos boas relações com eles e um ótimo vendedor internacional.

ALGUNS CRÍTICOS E CINÉFILOS ENXERGAM UM PARALELO DIRETO DAS CONSEQUÊNCIAS DO NAZISMO E DO LIBERALISMO NA NARRATIVA. QUAL É AFINAL A QUESTÃO HUMANA? NK: A questão humana é apenas o título do livro que adaptamos. Nós tentamos encontrar outro título durante a realização e montagem do filme. Nós gostamos bastante do título em inglês, Heartbeat Detector (detector de batimento cardíaco), mas a distribuidora não queria um título em inglês. Ficou uma brincadeira de palavras mesclando “L´Espèce Humaine”, de Robert Antelme, e “La Question Juive”, de Jean-Paul Sartre. Não existe um paralelo entre nazismo e liberalismo no filme. Durante um programa de rádio em Cannes, um sujeito resumiu o filme em 10 segundos dizendo que nós mostramos o mundo empresarial como um campo de concentração, no qual os chefes são nazistas e os trabalhadores são

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judeus. O filme tem quase duas horas e meia e trabalha com sons, imagens, cores, ritmos e tempo... Paralelos diretos não existem em lugar algum exceto quando pessoas decidem simplificar coisas complexas. A questão é muito maior do que liberalismo ou o mundo empresarial: Auschwitz encerrou ou começou um período na história da humanidade? Para nós, como para muitas pessoas, fundou o mundo como vivemos hoje e viveremos amanhã. Não como um caminho reto, mas sim de uma maneira mais sutil e perturbadora. A Questão Humana assim como A Noite do Demônio (Night of the Demon, 1957), de Jacques Tourneur, é uma história sobre papéis contaminados e sinais, bruxaria e medo.


DURANTE A PRODUÇÃO DE A QUESTÃO HUMANA, O MAKING-OF FICOU A CARGO DA FILHA DE VOCÊS, HÉLÉNA. É FASCINANTE PERCEBER QUE ELA NÃO SIMPLESMENTE REGISTROU AS FILMAGENS, COMO DESENVOLVE UM TRABALHO AUTORAL ENTRE A INTIMIDADE E A OBSERVAÇÃO. O PROJETO GANHOU VIDA E TÍTULO PRÓPRIO, LES AMANTS CINÉMA. GOSTARIA QUE FALASSE UM POUCO A RESPEITO DO FILME E, EM ESPECIAL, DA SEQUÊNCIA NA QUAL DISCUTE COM ELISABETH NA SALA DE MONTAGEM. NK: Quando começamos a preparar A Questão Humana, Héléna tinha acabado de deixar nossa casa para morar com o namorado. Ela já havia trabalhado em Paria e A Ferida. Esta seria a primeira vez que ela não trabalharia no filme, mas dentro dele. Ela não foi escalada para fazer um making-of. Nós não gostamos de pessoas registrando o nosso trabalho se eles não têm um projeto específico. Eu consegui algum dinheiro para o filme dela e vendi a ideia de Héléna filmando nosso trabalho de dentro. O que eu particularmente aprecio nesse filme é que somente uma pessoa tão próxima quanto ela poderia me filmar ao lado de Elisabeth daquela forma. E realmente o filme é inteiramente dela. Quando ela filmava, era algo bem simples, vida e trabalho estavam acontecendo. Algo importante estava faltan-

do na sala de montagem onde eu fico nervoso. A razão que eu estava tão nervoso é que Elisabeth veio aquele dia apenas para ver algumas legendas e comentá-las. Rose Marie e eu estávamos até o pescoço preparando uma projeção para a produção e o agente internacional de vendas para o dia seguinte. Eu lhes tinha prometido um filme com menos de duas horas e ele já estava com três. Então, estava muito nervoso. E Elisabeth estava apenas interessada em trabalhar em uma cena específica que eu não tinha tempo para mudá-la para o próximo dia. Eu só vi duas vezes Les Amants Cinéma, mas me lembro de estar ridículo ao fazer uma cena como aquela. E Elisabeth, como sempre, mantém sua calma e dignidade. Ela é uma ótima editora e passamos a editar juntos a partir de Low Life.

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ATÉ LOW LIFE VOCÊS NÃO ASSINAVAM EM CONJUNTO A DIREÇÃO DO FILME. APESAR DA ELISABETH ESCREVER TODOS OS ROTEIROS E PARTICIPAR INTEIRAMENTE DO PROCESSO, ELA NÃO RECEBIA CRÉDITO DE CODIREÇÃO. O QUE MUDOU NESSE SENTIDO? NK: Elisabeth e eu fazemos nossos filmes juntos desde o princípio. Nós somos autores de nossos filmes. Não significa que nós codirigimos. Eu não poderia codirigir com ninguém simplesmente porque eu não acredito mais em direção e em mise-en-scène. Nós fazemos nosso trabalho como sentimos. Nós estamos buscando novos gestos e formas de se fazer filmes. Low Life nos permitiu entender isso. Eu trabalho mais com a câmera e a cenografia. Ela passa mais tempo com o figurino e o

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som. Nós dois trabalhamos com os atores, de maneira distinta, e temos diferentes relações com eles. Ela ensaia com eles antes das filmagens, e eu durante a rodagem. Eles não estão em frente a dois diretores dizendo as mesmas coisas, de fato, nós dizemos coisas opostas. Até agora eu era mais editor, em Ceremony ela vai começar a montagem. Eu talvez faça outro filme antes ou depois de Ceremony e ela vai me assessorar artisticamente durante o processo, e também atuar no filme.


QUEM É O AUTOR DE UMA OBRA CINEMATOGRÁFICA? APENAS O CINEASTA? NK: Sim e não. Sim, porque eu preciso de certo tipo de luz no filme e necessito de tempo para encontrá-la. Luz nunca vem imediatamente, depende de muitas coisas e não só do diretor de fotografia. A escolha dos atores e, particularmente, atmosferas. Eu preciso encontrar a luz que eu quero e encontrar a forma que a câmera se move antes de começar a falar com Helene Louvart (Paria, A Ferida, Low Life, Mademoiselle Julie) ou Josée Deshaies (A Questão Humana, La Consolation, Jeunesse D´Hamlet). Desde A Ferida, eu estou atrás da câmera. Quando eu filmo, não estou apenas

olhando o que acontece, eu vejo mais intimidade, outros planos e movimentos, novas ideias, outras posições para os atores. É cada vez mais essencial para mim, trabalhando diretamente através da câmera. A luz e o trabalho de câmera começam entre Elisabeth e eu. Então, com Helene ou Josée que se torna mais concreta à medida que visitamos os sets. Luz e a forma como filmamos são bastante materialísticos. Cada filme tem uma forma de impor a sua luz por intermédio de cada estágio de trabalho.

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OS CURTAS JEUNESSE D´HAMLET E LA CONSOLATION LIDAM COM TEMAS CAROS A JUVENTUDE:

REBELDIA, GRAVIDEZ E FALTA DE PERSPECTIVA. JEUNESSE D´HAMLET REMETE AOS PRIMEIROS TRABALHOS DE GODARD, COM VÁRIOS PERSONAGENS, DIÁLOGOS LITERÁRIOS E O TRABALHO DE DESENHO DE SOM CRIANDO UM CHOQUE EM CENA. FALE SOBRE AS PROPOSTAS DOS CURTAS E O QUANTO CONTRIBUÍRAM PARA LOW LIFE.

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NK: Os curtas foram feitos para o Festival de Cannes. Eles pertencem a uma série de curtas realizados por nós, Mathieu Amalric, os irmãos Larrieux, Marylin Canto e Patrice Leconte. A razão principal era para revelar jovens atores talentosos. Nós estávamos começando a pensar sobre Low Life e queríamos trabalhar com jovens, tanto de classe alta quanto baixa. Cada filme tinha que ser rodado em uma noite. Ou seja, duas noites para dois curtas. Alguns meses antes, dois jovens africanos morreram eletrocutados enquanto corriam da polícia. O resultado foram dois meses de carros queimados e vários jovens lutando contra a polícia. Nossa ideia foi que os dois filmes pudessem acontecer ao mesmo tempo em duas diferentes partes de Paris. Em Jeunesse D´Hamlet, a polícia estaria interrogando jovens em um flat onde pelas janelas se poderia ouvir insurreições em ruas, carros sendo queimados, o exército atirando em pessoas. Enquanto em La Consolation, numa parte bem mais rica de Paris, uma jovem acabou de saber pelo seu médico particular, no dia da festa de seu aniversário, que ela não poderia dar à luz sem uma assistência artificial.

Elisabeth escreveu La Consolation misturando a ideia de que naquele ano poderíamos ver a primavera chegando ao fim de janeiro. Nós conhecemos Lea Seydoux, que não havia atuado ainda, e demos a ela o seu primeiro papel em La Consolation. Eu gosto bastante da atmosfera, tentando tirar algo forte de certa artificialidade dos sets, a luz, a estranha aparência da primavera no meio do inverno e o erotismo na presença dos atores. Para Jeunesse D´Hamlet, nós queríamos um texto radical e decidimos usar fragmentos da peça “Hamlet Machine”, de Heiner Müller. Experimentando no cinema através de material teatral. Não é uma coisa nova, Godard e Fassbinder já fizeram também. A situação era forte o suficiente para aqueles monólogos, e gostávamos da ideia de que jovens poderiam falar daquela forma com a polícia. Quando você trabalha com planos estáticos e tempo, tudo que você ouve fora de quadro vai diretamente para o cérebro e cria todos os tipos de ritmos. E como nós tínhamos que filmar em apenas uma noite, a trilha sonora tinha que sugerir aquilo que não poderíamos filmar.

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LOW LIFE EXPLICITA A RELAÇÃO DOS PERSONAGENS COMO MORTOS-VIVOS, ZUMBIS. NÃO HÁ ESPERANÇA DE MUDANÇA PARA A JUVENTUDE FRANCESA? NK: Os zumbis nos interessam bastante. Eles têm a ver com a colonização e o vodu. Nas Antilhas, vodu era o meio para exorcizar a colonização, uma insurreição invisível com efeitos bem visíveis. Eles não são uma espécie de mortos-vivos, mas sim figuras pré-revolucionárias. Low Life dialoga diretamente com O Diabo, Provavelmente, de Robert Bresson. Quando Elisabeth traz Charles de volta à vida, ela convida para uma diferente visão da juventude de como ela é representada hoje do ponto de vista sociológico. Em Low Life queríamos filmar a juventude como uma força antiga. Jovem não é novo, apenas não nasceu hoje. Vem do passado, e tem uma experiência forte em quebrar figuras antigas e antigas formas de pensar. E isso não é geralmente o que a juventude francesa de hoje está buscando. Até mesmo jovens, jornalistas e intelectuais não imaginam

que poderia haver o interesse de uma garota da burguesia em um rapaz sem visto! As barreiras sociais estão mais fortes do que nunca. Você pode contar uma história com pobres, mas é suspeito ao mesclar pobres com ricos. Eu prefiro dizer pobre e ainda mais pobre. Porque é esse o momento na França. Existem dois tipos de estrangeiros, o rico e o pobre. Os ricos são considerados vips e os pobres, criminosos. E como o governo francês não consegue proteger as pessoas contra a agressividade da economia neoliberal, ele entope as ruas com a onipresença de forças policiais equipadas com alta tecnologia para proteger os franceses dos pobres, especialmente os africanos e do leste europeu. Como a personagem de Carmen diz no início do filme: “é como uma guerra! Uma guerra que todo mundo sabe, mas só se preocupa se for pego por ela”.

“É COMO UMA GUERRA! UMA GUERRA QUE TODO MUNDO SABE, 116


O FILME EVOCA TEMAS POLÍTICOS, AMOROSOS E DE EXCLUSÃO SOCIAL. MAS AO MESMO TEMPO LIDA COM O FANTÁSTICO, COMO ALGUNS FILMES DE F. W. MURNAU, FRITZ LANG E DO CINEMA MUDO. QUAL É O CERNE DA QUESTÃO EM LOW LIFE? NK: O filme não tem um cerne preciso, o seu centro está em todo lugar durante o filme. Como uma pintura feita com uma Canon 1D. Política, amor, exclusão, vodu, controle são materiais concretos, como as cores de alguma forma. Para nós, não é possível filmar mais uma França contemporânea pelo viés sociológico. Você pode filmar a sua aparência, superfície, como jornalistas costumam fazer quando escrevem sobre juventude, ala direita, esquerda e imigração..., mas nós sentimos que para atingir zonas profundas, a dimensão sobrenatural é essencial, como se a realidade nos colocasse um feitiço. Eu não consigo compreender porque as pessoas se tornaram tão dóceis, como se elas apenas quisessem se tornar aquele ser humano que o capitalismo necessita

para sobreviver. É como um hipnotismo. Um sistema à la Mabuse onde Mabuse não é mais uma pessoa, mas todo o sistema. Eu gosto do que você diz sobre cinema mudo e Low Life, o rosto de Carmen vem desse cinema, mas também de hoje. A sua face inspirou o jeito como filmamos porque eu sou obcecado em expressões fílmicas, silêncios e gestos. Eu vi isso em seu rosto e corpo na vida real. Existe também uma relação de vampiro entre Charles e Hussain. Nós exibimos Sangue de Pantera (Cat People, 1942) e A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943), de Jacques Tourneur, para a atriz durante a filmagem. E Vive-se só uma Vez (You Only Live Once, 1937), de Fritz Lang. Ela se conectou com essas atrizes.

MAS SÓ SE PREOCUPA SE FOR PEGO POR ELA”. 117


MADEMOISELLE JULIE É UMA EXPERIÊNCIA OUSADA QUE ENVOLVE TEATRO, DANÇA, MÚSICA E CINEMA. COMO SURGIU O PROJETO? COMO FOI O TRABALHO COM FRÉDÉRIC FISBASCH? NK: Eu recebi uma ligação de Frédéric, que eu já conhecia desde que Elisabeth trabalhou com ele em um grupo de estudo de Berenice, de Racine. Ele me disse que iria dirigir Juliette Binoche em Mademoiselle Julie para o Festival de Avignon naquele verão e me perguntou se não estava interessado em filmar a peça. Ele conhecia o meu trabalho, Juliette também, e os diretores do festival idem, então foi fácil organizar. O que me interessava era que Binoche queria um diretor de cinema para filmar a peça, como se fosse um filme. Não para televisão, ainda que fosse exibido em TV durante o festival. E claro, eu estava bastante excitado em filmar Juliette. Para a preparação do filme, eu gastei todo o período de ensaio fotografando os atores em preto e branco com minha câmera Leica e lentes de 50mm. Eles sempre me tinham

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por perto. E Frédéric me viu os fotografando todo o tempo no palco. Eu tenho bastante admiração pela cabeça aberta dele. Eu não imaginaria nenhum outro diretor que permitisse que eu fotografasse Binoche durante todo o período de ensaios. Eu não posso filmar atores até que me sinta bem próximo deles e necessito desse tempo para ver como irei filmá-los. Não existia nenhum sentido em trabalhar vendo a peça das cadeiras do teatro. Eu tentei, mas não via nada. Juliette ficou muito feliz que eu estava lá porque ela não está acostumada com teatro e precisava da câmera. Nós nos demos muito bem. Nós rodamos o filme em um palco toda a manhã durante os últimos dez dias antes da estreia em Avignon. Eu estava livre para fazer o que quisesse. Frédéric me pediu se ele podia assistir porque assim enxergaria coisas que


pudessem interessar na realização da peça. Eu não gostava da iluminação ou do cenário da peça, então decidi trabalhar com close-ups e nunca mostrando o set inteiramente. Nós passamos por toda a peça quebrando

cada cena em planos. Frédéric ficou contente com o resultado. Eu tive o corte final e pude discutir com Juliette, que foi extremamente participativa e trabalhadora, e Elisabeth.

O TEATRO TAMBÉM MARCA PRESENÇA EM SEU NOVO DOCUMENTÁRIO LE VENT SOUFFLE DANS LA COUR D´HONOUR SOBRE O FESTIVAL DE AVIGNON. ESTE É UM EVENTO ABERTO PARA EXPERIMENTAÇÃO QUE LIDA EXATAMENTE COM TUDO AQUILO QUE O CINEMA DE VOCÊS TRABALHA. COMO SURGIU O CONVITE? NK: Hortense Archambault e Vincent Baudriller, diretores do festival, nos perguntaram se estaríamos interessados em fazer um filme logo depois que viram o resultado de Mademoiselle Julie. Era uma proposta bem excitante por causa da natureza do festival, muitos artistas, e os próprios diretores, que são ótimas pessoas. Nós pegamos vantagem dessa proposta para continuar

experimentando, apenas Elisabeth, eu e o engenheiro de som. Eu filmei tudo com uma câmera pequena, meu iPhone com um aplicativo de Super 8 e uma Lomokino. Misturando formatos. Novamente a ideia de afresco. Tudo com câmera na mão e editamos nós mesmos em nossa casa. Sim, nós só trabalhamos naquilo que nos interessa e entre documentário e ficção não há diferença.

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NO MOMENTO, VOCÊS ACABARAM DE FINALIZAR DOIS FILMES QUE COMPÕEM OS DIÁLOGOS CLANDESTINOS DO PRÓXIMO LONGA DE FICÇÃO, CEREMONY. FALE UM POUCO A RESPEITO DE CEREMONY BRAZZA E POUR SE FRAYER UM CHEMIN DANS LA JUNGLE, IL EST BON DE FRAPPER AVEC UM BATON POUR ÉCARTER LES DANGERS INVISIBLES. NK: Elisabeth está trabalhando duro nesse momento no novo filme, que é ambientado, sobretudo, em Barcelona, nos dias atuais. É a história de um jovem cineasta realizando um longa chamado Ceremony, que se passa em 1792. É um pequeno conto que ele ouviu quando era criança e tem a ver com a aristocracia e escravos. O diretor é de uma família aristocrática e quer exorcizar esse conto que o atemoriza por anos. O conto vem de uma história de William Faulkner. O seu filme é como um vampiro que contamina totalmente a todos os personagens durante a rodagem. Nesse momento, Elisabeth imagina Vincent Macaigne como Santiago, o personagem principal. Nós conhecemos Vincent desde os 10 anos e vimos todas as suas peças. Ele é um grande ator e muito divertido. Trágico e divertido. Vincent leu o primeiro esboço, então pedimos a Luc, que interpretou Charles em Low Life, para se juntar a nós em um curta-metragem. Luc interpreta um crítico

de cinema da Cahiers du Cinéma entrevistando Santiago sobre Ceremony, seu novo filme. É uma mistura completa entre ficção e documentário, e reflete bem como trabalhamos num filme. Já Ceremony Brazza nós rodamos na África. Nós fizemos um workshop em Brazzaville em dezembro de 2013 com pessoas que tínhamos filmado em 2012 em Le Vent Souffle dans la Cour D´Honneur. Nós trouxemos alguns fragmentos do segundo tratamento de roteiro e trabalhamos por dez dias com eles nisso. O filme representa três dias de filmagem com não atores. Novamente a mistura entre ficção e documentário que nos inspira cada vez mais. Eu estou tentando convencer há um ano Elisabeth para colocarmos duas ou três cenas de dança como em West Side Story em Ceremony. Ainda não consegui, mas você pode perceber que há muita dança em Ceremony Brazza...

COMO DEFINIRIA O CINEMA DE NICOLAS KLOTZ E ELISABETH PERCEVAL EM POUCAS PALAVRAS? NK: Isso é você quem vai me dizer (risos). Espécie de biografia da atriz Jean Seberg livremente inspirada no livro “O Anticristo”, de Nietzsche. O Quatrocento, ou Quattrocento, são os eventos culturais e artísticos do século XV na Itália, analisados em conjunto. Engloba tanto o final da Idade Média, arte gótica, quanto o começo do Renascimento. Os artistas voltaram-se mais às formas clássicas da Grécia e Roma. iii “Ceremony” é o título de uma das últimas canções do Joy Division, escrita por Ian Curtis um pouco antes de seu suicídio. A música foi lançada em um álbum de raridades do grupo, “Heart and Soul”, e também foi o primeiro single do New Order, banda formada com os membros originais do Joy Division logo após o falecimento do vocalista. i

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A T S I V E R T N E COM

HÉLÉNA E ULYSSE KLOTZ

por

LEONARDO LUIZ FERREIRA

A família Klotz é uma família de cinema. Não só porque todos trabalham na área, mas por respirarem a sétima arte e se complementarem através de expressões artísticas. Se no caso de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval há uma simbiose, uma conexão de pensamento e alma, por outro lado, existe em Héléna e Ulysse, os dois únicos filhos do casal, uma vontade de alçar outros voos. Ao mesmo tempo em que são influenciados pelos pais, ambos construíram até aqui vozes particulares em suas carreiras. Apesar de trabalhar também como diretora de arte, Héléna se lançou na realização cinematográfica e com apenas dois longas (Les Amants Cinéma e L´âge Atomique) e dois curtas (Le Léopard ne se Deplace Jamais Sans ses Taches e Bethlehem) já constrói uma carreira sólida distante da sombra dos pais. Já Ulysse é hoje um dos mais respeitados músicos no mercado francês de trilhas sonoras de cinema. Ouvir uma música de Ulysse é sentir a pulsação viva dos planos de Klotz/ Perceval. Cinema, enfim.

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TRADUÇÃO DO FRANCÊS por DENISE PALMA


HÉLÉNA KLOTZ

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QUANDO E COMO DESCOBRIRAM QUE QUERIAM TRABALHAR COM CINEMA, ASSIM COMO SEUS PAIS? Ulysse Klotz: Eu cresci com o cinema, meu pai é cineasta, minha mãe é roteirista, meu avô é montador, minha irmã cineasta, então mesmo se no começo eu não estava de fato preparado para fazer música para filmes, minhas músicas foram naturalmente colocadas sobre as imagens e se encontraram intimamente ligadas ao cinema. Héléna Klotz: Quando adolescente, após ter passado no Inem científico, eu tive que escolher uma orientação para entrar na faculdade. Eu não sabia realmente o que fazer. Eu gostava muito de tudo! A pintura, o teatro, a fotografia, a música, o cinema e a ciência também. Eu não me via realmente em condição para escolher um mais do que o outro. Era tudo de uma só vez. E foi meu pai em uma noite que me disse: “Sabe Héléna a encenação é um pouco de tudo isso de uma vez só.” E de repente, fazer filmes me pareceu uma evidência. O cruzamento possível de todas estas escritas que eu tanto gostava. Isto hoje em dia me parece uma loucura quando eu penso...

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ULYSSE KLOTZ EM POUCOS TRABALHOS, VOCÊ, ULYSSE, DEMONSTROU UMA VOZ PARTICULAR EM SUA ABORDAGEM DE CINEMA. PARA MIM A SUA MÚSICA COMPLEMENTA O TRABALHO DE SEUS PAIS. FALE UM POUCO SOBRE SUAS INFLUÊNCIAS MUSICAIS E CINEMATOGRÁFICAS. U.K.: Durante muito tempo eu escutei música assistindo à televisão sem som, seja publicidades ou o jornal das 8 horas, eu penso que foi assim que aprendi a colocar música sobre as imagens. Em seguida, meus gostos foram se afinando e me interessei por discos estranhos como “I Hear a New World”, de Joe Meek ou “Chill Out”, de KLF. Meus estudos no conservatório de música me permitiram apreciar tanto as sinfonias de Mahler como “My Heart Will go on”, de Céline Dion. Eu tento trazer todas as influências no meu trabalho, uma mixagem entre Justin Bieber e Luigi Nono. Meus pais me influenciaram muito nas minhas preferências e gostos cinematográficos. Eles me deram uma cultura imensa do cinema, meus primeiros amores foram Tarkovski e Pasolini. Atualmente, eu sou fã de Mel Gibson e de Walt Disney, eu amadureci muito...

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HÉLÉNA, O SEU PRIMEIRO LONGA-METRAGEM, LES AMANTS CINÉMA, É MUITO MAIS QUE UM SIMPLES MAKING-OF DE A QUESTÃO HUMANA, É UM DOCUMENTÁRIO OBSERVACIONAL SOBRE O TRABALHO DE SEUS PAIS QUE, AO MESMO TEMPO, MOSTRA INTIMIDADE E DISTANCIAMENTO. COMO FOI ESSE PROCESSO? VOCÊ QUESTIONOU A SI MESMA DURANTE A FILMAGEM? H.K.: No momento em que meus pais realizaram A Questão Humana, eu acabava de fazer meu primeiro filme, um curta-metragem. Surgiu naturalmente a vontade de fazer um filme sobre e com eles, mas principalmente de estar imersa no interior da construção. Foi ao mesmo tempo para mim uma forma de aprender sobre o ato do cinema, a possibilidade de tomar distância em relação ao trabalho deles. O que é engraçado, é que com frequência, os cineastas filmam seus pais para se aproximarem deles. Eu creio que eu estava em um movimento inverso a este. Fazer este filme foi uma forma de tomar distância, uma tomada de decisão, um adeus carinhoso... Alguns meses mais tarde, eu saí de casa para morar em Paris. Eu me fiz grandes perguntas durante a filmagem de Les Amants Cinéma. Isto foi bem difícil. Filmar com seus pais, com pessoas que gostamos penso que seja uma das coisas mais difíceis do cinema. Porque temos que estar à mesma altura (valor)

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da relação. Uma relação forte de mais de 20 anos. Esta dúvida provocada pela distância é fundamental. Encontrar a boa distância para entrar de uma só vez em uma intimidade sem que o filme seja uma pequena história de família sobre si mesma. Eu queria realmente que este documentário estivesse trabalhando no coração do cinema que eles estavam fazendo. Eu revi recentemente Les Amants Cinéma e fiquei emocionada com a forma cujo qual eles, por sua vez, vinham até mim, posicionada atrás da câmera. Eles me fazem confidências, a câmera quase não existe entre nós. Ninguém nunca me escuta, é o olhar deles sobre mim... Há também neste filme, a primeira colaboração musical com meu irmão Ulysse. Eu o deixei completamente livre para fazer o que ele quisesse. Ele compôs uma melodia simples no violino com uma respiração calma e contínua a qual contribui de uma grande forma a esta sensação de confidência e de intimidade que sentimos assistindo ao filme.


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LOW LIFE É UMA TRILHA SONORA BASTANTE INTENSA E EMOCIONAL. CONSEGUE DESCREVER O PROCESSO DE REALIZAÇÃO DE UMA TRILHA PARA UM FILME DE NICOLAS KLOTZ E ELISABETH PERCEVAL? U.K.: Low Life é a minha primeira versão séria de trilha sonora e isto foi realmente para mim um verdadeiro terreno a ser explorado. Eu trabalhei com Romain Turzi nesta trilha e gravávamos em seu estúdio de manhã e eu a ajustava em minha casa à noite. Eu tinha carta branca e, de repente, a gente tentava de tudo na imagem com Nicolas e Elisabeth, e aí a gente reservava o

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que funcionava e jogava fora o que não convinha. Eu tenho um universo artístico muito próximo daquele dos meus pais, isto foi muito simples para tomar decisões, fazer escolhas. A trilha sonora de Low Life foi-se convergindo naturalmente para uma vibração gótica, uma bruxaria emocional e, quando vimos que aquilo funcionava, a gente falou: “Tá bom, vamos fazer assim!”


VOCÊ TRABALHOU REALIZANDO O CASTING DE PARIA E LOW LIFE, E COMO ASSISTENTE DE DIREÇÃO EM A FERIDA. FALE UM POUCO SOBRE ESSAS EXPERIÊNCIAS E O QUANTO ELAS CONTRIBUÍRAM PARA O SEU TRABALHO COMO CINEASTA? H.K.: Eu acho que trabalhando no casting dos filmes de meus pais, eu aprendi a olhar os atores. É um grande aprendizado. Saber olhar um ator, descobrir o que queremos filmar neles, tem muito a ver com o ímpeto de querer fazer filmes. É uma sensação fundamental de desejo para um cineasta. E, além do mais, eu tive muita sorte, pois meu pai tinha muita confiança em mim. Ele me deixava dirigir os ensaios do casting. Eu podia então experimentar minha relação com a direção de atores e o meu desejo. Na época de Paria, eu tinha 19 anos, e me lembro de que eu rondava as ruas de Paris para encon-

trar Victor (a personagem principal do filme) e para mim que vivia no subúrbio, ir à Paris, era uma grande aventura, eu descobria a capital além de abordar os meninos nas ruas... E, ao mesmo tempo, em que eu entrava em contato com meu desejo pelo cinema, aprendia a procurar um herói para o filme, fisicamente, quero dizer. Desde então, sempre faço os castings de meus filmes sozinha. É um lugar importante de trabalho para mim. Procurar por si própria seus atores, seus heróis, é entrar na encenação do filme que está por vir.

VOCÊ TAMBÉM TRABALHA COM OUTROS CINEASTAS REALIZANDO TRILHAS SONORAS, ENTRE ELES A DA SUA IRMÃ HÉLÉNA (L´ÂGE ATOMIQUE). PODE FALAR A RESPEITO DAS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE ESSES TRABALHOS E COM SEUS PAIS? U.K.: O mais difícil quando fazemos música para um cineasta é de se entender, falar sobre as mesmas coisas. Tem sempre que entender o que o cineasta quer dizer, e com Nicolas a gente se entende instantaneamente. Com Héléna, eu acho que aprendi a fazer música com a

imagem. Cada um dos sons, cada uma das notas deve corresponder a um acontecimento visual: eu faço música sobre as imagens. Para Nicolas, a música é um material de partida que inspira a montagem. São duas formas muito diferentes de se trabalhar.

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O SEU SEGUNDO LONGA-METRAGEM, A ERA ATÔMICA (L´ÂGE ATOMIQUE, 2012), QUE O SEU IRMÃO, ULYSSE, REALIZOU A TRILHA SONORA, TEM A POESIA E A CRISE EXISTENCIAL DOS HOMENS, QUE SÃO TEMAS TAMBÉM PRESENTES NOS FILMES DE KLOTZ E PERCEVAL. PORÉM, AO MESMO TEMPO, O FILME É ÚNICO E BASTANTE PODEROSO. FALE SOBRE A ERA ATÔMICA E SUAS INFLUÊNCIAS PESSOAIS. H.K.: Há uma transmissão natural de meus pais para mim que cria uma forma de influência. Há outra transmissão que vem da história do cinema, que a gente constrói sozinha e que dá o nascimento a outro tipo de influência. Então, há a da música também, da literatura, da vida no presente, do amor, do penar, dos encontros, dos amigos que nos trazem outras coisas. Tudo isto entrou na carne de L´âge Atomique. Mas, mais precisamente, a minha influência cinematográfica foi Pasolini. Eu fiquei, quando jovem, completamente transtornada pelos seus filmes. Seu cinema teve um grande efeito para mim. Eu falo sobre o efeito como o amor à primeira

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vista. E eu creio que tenha sido este efeito o que me fez querer trabalhar com cinema. Esta ideia de amor à primeira vista. Foi uma linha diretriz do filme para a encenação. Quando L´âge Atomique entrou em cartaz, é engraçado, me falaram muito sobre outros cineastas, (Carax, Gus Van Sant…), mas nunca sobre Pasolini! Todos os artistas estão sob influência, eles conscientemente copiam mais ou menos aqueles que eles gostam. Mas para mim, um bom artista, é aquele que vai copiar mal, muito mal mesmo e, que de um momento a outro reinventa uma forma, sem mesmo saber. É à margem do acaso nesta transformação que é sublime!


NICOLAS KLOTZ ME FALOU QUE A TRILHA DE ZOMBIES É A SUA PRIMEIRA COLABORAÇÃO COM ELES. COMO ISSO ACONTECEU? U.K.: De fato Zombies não foi a minha primeira colaboração com Nicolas, nosso primeiro trabalho junto foi para um documentário sobre o produtor Paulo Branco (Dans la Peau de...Paulo Branco, 2005). Para Zombies, eu compus a música durante a permanência deles no 104,

eu trouxe todo o material para uma sala de montagem e compunha no local mesmo. Era um período onde eu realmente queria compor canções, eu gostava muito da ideia de fazer uma trilha sonora a partir de canções nas quais podíamos escutar minha voz.

COMO VOCÊS DEFINIRIAM O CINEMA DE NICOLAS KLOTZ E ELISABETH PERCEVAL? U.K.: Meus pais fazem filmes como os punks faziam música: com a mesma energia e eu poderia até dizer com a mesma imprudência. Eles têm uma forma muito adolescente de fazer filmes, o adolescente que nos permite criar sem se preocupar com os códigos impostos do mercado, dos formatos de sucesso. Os punks que fazem canções de amor, eis aqui como eu descreveria seus filmes. Cada filme que realizam é uma declaração de amor que eles fazem um ao outro.

H.K.: Há, às vezes, alguma coisa em ambos de muito radical e, ao mesmo tempo, de extremamente suave. Se a gente se basear sobre cada um de seus filmes, há sempre uma história de amor bem forte no coração. O que me faz pensar que fazer filmes tem a ver para eles com suas histórias de amor na vida. Eu acho que o cinema deles é profundamente ligado a alguma coisa de sentimental, da ordem do estado de estar em amor, tanto em nível de narrativa como no espírito mesmo de realizar um filme. O gesto nele mesmo é sentimental, se você entender o que quero dizer.

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TER METTLER, ARTISTE MULTIDISCIPLINAIRE

Le monde-mouvement

par Nicolas Klotz* CARMEN — NÓS, OS QUE CHEGAMOS TARDE, POR QUE VIEMOS?

Carmen – Nous, les tard venus, pourquoi sommes-nous venus ?

Hussain – Peut-être pour nous débarrasser de tout l’encombrant cadeau des existences qui nous ont précédés et accompagnés depuis si longtemps. Extrait de Low Life

HUSSAIN — TALVEZ PARA NOS LIVRARMOS DE TODA A INCÔMODA DÁDIVA DAS EXISTÊNCIAS QUE NOS PRECEDERAM E QUE NOS ACOMPANHAM HÁ TANTO TEMPO. ertes un monde est sur-présent dans ce cinéma. Le monde se passe comme si le monde se travaillait et se traversait d’une

ns quel monDe vivons-nous ? Cette question paraît assez lointaine Des préoCCupations D’un ain cinéma contemporain. en tout cas, du cinéma dit de fiction tel que nous le considérons habituellement.

C

TRECHO DE LOW LIFE

comme mondialisation. Comme cimetière de territoires, d’écrans, de multiplication de copies qui se comptent 132 en France par milliers pour une seule sortie nationale. urd’hui

pulsion de mort qui n’aurait bientôt rien d’autre à détruire que le monde lui-même. » Pour moi qui ne peux pas imaginer le cinéma sans filmer le


O O T N E M I V O MUNDO-M por

NICOLAS KLOTZ

TRADUÇÃO DO FRANCÊS

por TATIANA MONASSA

EM QUE MUNDO VIVEMOS? Essa pergunta parece um tanto distante das preocupações de um certo cinema contemporâneo. Em todo caso, do cinema dito de ficção, tal como o consideramos habitualmente. Certamente um mundo está sobrepresente nesse cinema. O mundo como globalização. Como cemitério de territórios e de telas, com a multiplicação de cópias que se contam aos milhares para um único lançamento nacional hoje em dia na França. O mundo como taxa de ocupação das telas, conversíveis em número de espectadores, conversíveis em corpos humanos, conversíveis em número de cérebros captados, conversíveis em logorreia de imagens, conversíveis em eurodólares... Mas eu falava do mundo como mundo, como tecido vivo no qual se espalham os povos, os animais, as multidões das cidades e as cidades elas mesmas, que se ampliam até perderem suas propriedades de cidade (que nos permitiam distinguir o campo): o tornar-se mundo dos seres humanos presos nos estratos da história-movimento. O mundo como criação, como espírito. O mundo espectro do qual o cinema seria o irmão de sangue.

Em “La création du monde ou la mondialisation” [A criação do mundo ou a globalização], Jean-Luc Nancy escreve, em 2007: “O mundo perdeu sua capacidade de fazer mundo: ele parece ter ganhado somente a de multiplicar, na medida do poder de seus recursos, uma proliferação do imundo que, até aqui, não importa o que pensemos das ilusões retrospectivas, nunca na história havia marcado desta forma a totalidade da órbita. Para terminar, é como se o mundo estivesse sendo trabalhado e atravessado por uma pulsão de morte que, em breve, não terá mais nada para destruir além do próprio mundo.” Para mim, que não posso imaginar o cinema sem filmar o mundo, se ainda há política no cinema, é essa questão. Que mundo filmar? Mas, também, para quais espectadores? Pois o lugar do espectador está no coração de tudo o que acontece (ou não acontece mais) no cinema. Como também está naquilo que acontece ao mundo. E não vejo como poderíamos nos questionar sobre o que ainda permanece vivo do cinema sem questionar intensamente o lugar do espectador, este buraco negro em torno do qual tudo gira massivamente hoje, ao ponto de se organizarem as próprias condições de seu desaparecimento.

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A POLÍTICA (DE EXTREMO-CENTRO) DOS AUTORES Pode-se chamar de político um filme sobre o exercício do Estado que seria um jornalismo de centro-direita, ou de extremo-centro, como chamamos? Com Olivier Gourmet no papel de um ministro? Um filme que veríamos como lemos um artigo da “Télérama” ou da “Nouvel Observateur”. E que confortaria os espectadores com a ideia soporífica de que os homens políticos são homens como os outros, que exercem uma profissão muito difícil, com seus sofrimentos muito humanos, suas pequenas ambições, seus casos de consciência que os impedem de dormir... Certamente que não. Esse deslizamento do político para o jornalismo audiovisual de grande público é a própria dissolução do político, que já não é mais nada além de um cenário, um carro ministerial, paletós chiques, gravatas, celulares, efeitos de ator imitando homens políticos, eles próprios transformados em atores da vida televisual. O político como pitch, como título do telejornal das 20h ou de um artigo em um semanário. Mas nunca a forma, nunca a capacidade de dividir, de tomar posição sobre questões de cinema. Arriscado demais, autor demais. Face a essa derrota, como um grande sol que nasce, aparece Filme socialismo (Film socialisme, 2011), de Jean-Luc Godard, grande filme de cinema. Político enquanto popular, popular enquanto povo. Solar como a

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civilização mediterrânea. Épico como a Odisseia. Um filme que está vinte anos à frente do cinema e dos espectadores, porque é preciso de no mínimo vinte anos para aceitar ver o que já está aí. Os grandes sucessos comerciais franceses de 2011 são todos celebrações do estado das coisas, tanto do Estado quanto do estado da situação. A guerra está declarada (La guerre est declarée, 2010), de Valérie Donzelli, à glória dos hospitais públicos em um país formidável. Políssia (Polisse, 2011), de Maïwenn, à glória da polícia francesa que salva crianças ciganas das garras de seus bárbaros pais. Intocáveis (Intouchables, 2011), de Olivier Nakache e Eric Toledano, à glória dos ricos que, por fim, bem que precisam, apesar de tudo, dos pobres e dos negros gratos. O Artista (The Artist, 2011), de Michel Hazanavicius, à glória da América como triunfo do Indivíduo. Até um filme como L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância (L’Apollonide, 2011), de Bertrand Bonello, que se arrisca um pouco formalmente, celebra a casa de tolerância do fim do século XIX como modelo de cinema. O cinema como casa de tolerância, no oposto do bordel cinema de Jean Eustache em Le Père Noël a les yeux bleus (1969). Com esse culto da onipotência do autor, para quem as atrizes se despem de bom grado e se deixam explorar gentilmente, sem sombra de


uma palavra, de um gesto ou de uma faísca de revolta. Apenas seus seios belamente maquiados para a luz, suas cabeleiras, o ópio, o Moody Blues, suas lágrimas de glicose, a mutilação de um rosto que confundimos com os outros, a champanhe que se sonha esperma... Celebração do cinema como clube privado onde se expõe uma bela coleção de bonecas que brincam de ser prostituídas para a câmera. E por que não? Se para Hitchcock os atores eram gado, para Bonello... “Cindy: The Doll is Mine”. Mas o filme de Bonello é, sem dúvida alguma, um verdadeiro filme político, um dos poucos (franceses) de 2011, pois afirma sem dissimulação os valores que fundam o seu cinema. E, nisso, Bonello é um autor que desafia os espectadores a entrarem ou não em seu clube privado tendência, concebido a partir de sua fantasia 2007-2012 da Factory de Andy Warhol. A força de L’Apollonide é obrigar o espectador a tomar posição em relação a esse convite que cheira a enxofre. Mas de que natureza é esse enxofre? Erótico? Não, o filme é frio como a ausência de desejo. A prostituição? Não, não é um filme sobre a prostituição, mas sobre o cinema de Bonello. Político? Sim, de preferência. E com esse pacto que ele propõe aos espectadores: não há gozo, apenas o dos ricos (dândis herdeiros ou dândis deserdados), e esse gozo, fundamentalmente fetichista, não pode abrir mão do luxo. Foi esse pacto que fez o sucesso do filme, um pacto finalmente de tendência sob a era Sarkozy.

Alhures, as coisas são quase sempre insossas. Insossas como o extremo-centro que propõe uma visão insossa do mundo. Insossas como um sonífero ou um antidepressivo para espectadores que não se pode, sobretudo, desorientar, perturbar ou inquietar, sob o risco que ele fique em casa. Esse espectador está morto tanto para o cinema quanto para o mundo, prisioneiro dos pensamentos regressivos que tomaram posse do seu cérebro e confiscaram seu olhar. Espectador que só se desloca para se deslocar em milhões.

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POLÍTICA (RADICAL) DA TERRA QUEIMADA A beleza radical dos primeiros filmes do cinema vinha de uma experiência inédita. A experiência dos cineastas e dos espectadores que se descobriam, tanto uns (cineastas) quanto os outros (espectadores) pela primeira vez. Durante meio século, essa experiência do cinema mudou o mundo. O cinema entrou na história e a história no cinema. E se o cinema soube em seguida afirmar um conceito tão forte quanto à política dos autores, é porque ele soube inventar igualmente uma política dos espectadores, sem a qual nada teria sido feito. Os dois, magneticamente conectados, como amantes que nada pode parar. A política dos autores está morta hoje. Ela não faz mais os espectadores entrarem nas salas. Uma galáxia mórbida se interpôs entre os cineastas e os espectadores

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e a transformou em uma política da terra queimada. E essa terra que queima não são apenas as salas de cinema que fecham; os cineastas, os distribuidores e os produtores que desaparecem; as revistas de cinema que falem ou que se viram contra seus amigos de ontem para simular uma dita linha “dura” (ver o espantoso número masoquista do mês de abril de 2012 dos mais-do-que-nunca-anoréxicos Phaidon-“Cahiers du cinéma”). Essa terra queimada é também o mundo. O mundo como experiência da destruição. O mundo como destruição da experiência. O extremo-centro não gosta de ser confrontado com isso. Nem com o mundo, nem com a destruição do mundo. Ele prefere o comedimento, o bom senso bem educado de um mundo que não existe mais há muito tempo.


A sincronização da destruição do mundo com a do espectador de cinema é tão nítida que ela coloca a questão do olhar // o do espectador sobre o mundo e o do cinema sobre o espectador // no coração da iniciativa cinematográfica que Élisabeth Perceval e eu desenvolvemos juntos há uns dez anos. E nos obriga a procurar formas de narração que permitam experimentar o que isso provoca nos planos, na luz, nos rostos, nas falas e na montagem. O espectador vê nossos filmes, mas nossos filmes também veem o espectador. O cinema nunca é tão forte quanto quando o espectador está, ele próprio, no plano. Estar no plano assim como estão o olhar de um ator ou um movimento de câmera, o corpo de uma atriz ou as palavras que ela pronuncia. Isso não tem nada a ver com identificação. O cinema é uma experiência interior, não um objeto programado para ser exposto ao consumo. Ele não tem nenhuma existência própria fora dessa experiência muito íntima, esse coletivo perturbador dos cineastas e dos espectadores do mundo inteiro. Trata-se, então, realmente de fazer com que o maior número possível de pessoas entre nas salas ou de fazer com que o mundo entre nos filmes?1 Apenas o mundo poderia reerguer o cinema do grande cemitério onde ele foi enterrado. O mundo livrado dos números que o vampirizam. A política do número é o grande coveiro do cinema. O coveiro do seu olhar. Um combustível a verter sobre o cinema antes de acender o fósforo?

Se formos ouvir a maioria dos comentadores, é de bom tom afirmar que hoje seria possível de fazer ambas as coisas. Muito público e o mundo. Mas pode-se ainda acreditar nisso um só segundo? O mundo tornou-se poderoso demais, loucamente mutante demais e fundamentalmente subversivo demais para suportar a estreiteza de espírito e a rigidez dessas pequenas tumbas programadas para “emocionar” e que se impõem como bulldozers ao olhar do espectador. Um cineasta francês como Jacques Audiard vai fundo nessa linha: a do mundo sem o mundo, barrado pelo próprio filme. Para Audiard, os atores são corpos e não rostos, com o que isso acarreta em termos de músculos (para fazer um filme), em termos de virilidade (para impressionar com algo pesado) e em termos de orgulho (negar um rosto que lhe escapasse). Podemos ter prazer com um corpo sem rosto, mesmo mutilado, com a condição de que esse corpo seja enterrado no filme, que se torna seu túmulo. Para muitos, o mundo, nosso mundo, aquele que o cinema soube filmar com paixão desde Murnau, Dreyer, Griffith, Chaplin, Ford, Ozu, Lang, Renoir, Vigo, Ray, Bresson, Sirk, Bergman, Pasolini, Rossellini, Godard, Fassbinder, Straub e Huillet... nada mais seria além de um mundo cínico, violento e factício, no qual tudo o que vivia se tornará pago daqui em diante. Assim como esses poderosos grupos industriais que reconfiguraram o mundo (o homem, pois?) à imagem de seus interesses financeiros. A golpes de milhares e de cirurgia virtual. N.d.T.: No original a frase é construída em cima de um jogo de palavras, com a repetição da palavra monde, que em francês tanto pode significar “pessoas” quanto “mundo”. 1

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A HIPNOSE Se é possível que o mundo inteiro assista, impotente, à ruína de um país como a Grécia, ao desmoronamento de todo um povo, ao mesmo tempo em que investe centenas de milhares para salvar os bancos, pode-se ver nisso outra coisa além do presságio de uma dupla catástrofe iminente? O desmoronamento de um povo em tempo real, com o que isso acarreta, como dezenas de milhões de vidas partidas, e a impotência de uma humanidade reduzida a ser apenas uma massa de espectadores passivos diante dos horrores do mundo. Uma massa cujo número exponencial de espectadores não saberia propagar mais nada além da impotência. Não é esse um exato reflexo dos milhões de espectadores sentados diante de um filme, a quem o cosmos midiático faz acreditar que estão realmente assistindo e rindo, ou chorando, ou tendo medo, ou mesmo pensando e aplaudindo? Enquanto, na verdade, eles estão apenas dormindo. Uma Indústria nasceu, a da hipnose cerebral, que investe fortunas na cirurgia virtual do cérebro. Uma tecnologia que consiste a fazer com que todos esses corpos de espectadores (sem rostos), bem arrumados e obedientes, apesar de sua pretensa liberdade ha ha ha, nos complexos de salas a carteirinhas assim como diante de sua tela de televisão plana, acreditem que, mesmo adormecidos, poderiam ainda estar acordados.

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Política da hipnose, cuja emoção programada seria ao mesmo tempo a seringa, o sonífero e o sono. Marion Cotillard, tão bela, tão emocionante, com suas pernas cortadas, sem nenhuma dissimulação (graças a horas de maquiagem e de luz), ou Amor (Amour), 2012, de Michael Haneke, como o AVC de uma velha humanidade no limiar da morte. Cannes 2012 / Grécia 2012. É finalmente chegado o tempo do espectador tardio, o espectador crepuscular. Um espectador hipnotizado em fase terminal, concebido como o produto máximo de um mundo crepuscular. Espectador para o qual é escrito um jornalismo crepuscular e circulam produtos farmacêuticos crepusculares, e ao qual destina-se uma política crepuscular. Espectador regressivo, mimético, que rende rápido e muito, pois só existe por milhões; e que, sobretudo, não deve ser incomodado ou desorientado, sob o risco de que acorde. E que um outro mundo possa advir. Pois um outro mundo representaria, com toda a certeza, o fim desse imenso império hipnótico que expõe ícones e fetiches que se proliferam, destruindo qualquer futuro para os nossos olhares. Império financeiro que só pode sobreviver exercendo um controle mais ou menos total sobre os Estados e os homens, portanto sobre os nossos corpos (ainda com rosto).


O CÉREBRO É A TELA Pode-se apostar fortemente que é aí que estamos hoje, exatamente aí. O cinema e o mundo, juntos, têm destinos que residem tanto nos nossos olhares quanto na mutação hipnótica da utopia capitalista, que se tornou um pesadelo mundial. Pois o mundo que virá, do qual nada sabemos, além do fato que ele não se parecerá com nada do que antes foi, começa, começará, a aparecer na intimidade coletiva de nossos olhares. Nessa intimidade resistente, molecular e biológica que é o cinema. Trecho de uma entrevista de Gilles Deleuze dada aos “Cahiers du Cinéma” em 1986: “O cérebro é a tela. Eu não acredito que a psicanálise ou a linguística seja de grande ajuda para o cinema. Em contrapartida, a biologia do cérebro, a biologia molecular, sim. O pensamento é molecular, há velocidades moleculares que compõem os seres lentos que somos. Nas palavras de Michaux: ‘O homem é um ser lento, que só é possível graças a velocidades fantásticas’. Os circuitos, os encadeamentos cerebrais não preexistem aos estímulos, corpúsculos ou grãos que os traçam. O cinema não é

um teatro, ele compõe os corpos com grãos. Os encadeamentos são frequentemente paradoxais e transbordam por todos os lados as simples associações de imagens. O cinema, precisamente porque coloca a imagem em movimento, ou melhor, dota a imagem de um auto-movimento, não cessa de traçar e retraçar circuitos cerebrais. E, nisso, novamente para o melhor e para o pior. A tela, quer dizer, nós mesmos, pode tanto ser o cerebelo deficiente de um idiota quanto um cérebro criativo... O mau cinema passa sempre por circuitos já prontos do baixo-cérebro, com violência e sexualidade no que é representado, uma mistura de crueldade gratuita e de debilidade organizada. O verdadeiro cinema atinge uma outra violência e uma outra sexualidade, moleculares, não localizáveis... Essas histórias de velocidades do pensamento, precipitações ou petrificações são inseparáveis da imagem-movimento”... e do mundo-movimento.”

*Texto originalmente publicado na revista “24 Images”, número 158, setembro 2012, pp. 10-13.

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) S E Õ ( O Ã Ç U L O REV IONI) (PARA MICHELANGELO ANTON

por

NICOLAS KLOTZ

TRADUÇÃO DO FRANCÊS por DENISE PALMA

Le désert rouge Michelangelo Antonioni

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1. Impossível falar sobre cinema sem falar de Revolução. Aquelas que não existem mais, aquelas que aconteceram sob os nossos olhos, aquelas que chegam até nós. É o coração de fato do cinema. A forma na qual o cinema acompanha o mundo de uma época a outra, de um mundo ao outro. A natureza revolucionária do cinema é incontornável. Revolucionária como a arte e a indústria. O cinema não se mantém nunca no lugar. Ele não se mantém porque ele esgota sua existência na técnica e, principalmente, nas revoluções da técnica, aquelas que aconteceram do cinema mudo ao download, a transmissão pela Internet, e já para o além. O cinema é um rastro vivo de todas as revoluções que têm a cada vez produzido uma nova forma de experiência cinematográfica. Uma nova geração de público se ofuscando mediante ao surgimento de uma outra e, então, de uma outra. Desde as origens do cinema, o público e o cinema são os principais mutantes. Contendo tudo aquilo que ele produz como a renovação das formas de narração, de fabricação, de produção, de transmissão e, também, de conflitos estéticos, críticas. Inovações, resistências e lutos forçados. Adeus à língua, adeus, que também quer dizer, olá.

Para observar, pensar, formular como estas mutações agem sobre o cinema e o cinema sobre suas próprias transformações, não é o bastante sermos dois, tem que ter um terceiro ladrão. A crítica. Sem ela, o cinema e o público teriam a tendência a se dissolverem no que potencialmente poderia destruí-los. Podemos chamar esta dissolução por um nome qualquer. Cada um de nós chamará de uma forma diversa, sem importância, será sempre de uma forma correta quase que de traverso. O cinema em uma vez só é um mutante e um sobrevivente. A crítica pertence a tudo o que faz movimentar o cinema, ela faz parte de suas revoluções. Ela é também indispensável ao cinema como as diferentes distâncias de focos de uma câmera. Ela está no olho do cinema e, olha o público como ele assiste a um filme. É um diálogo infinito. Profundamente generoso. Ela é o irmão e irmã gêmea do cinema, como também, incestuosa, mortal, mutante. O desaparecimento de uma geração de público corresponde também a de uma geração de críticos e de cineastas. São as Eras do cinema. O que aparece chega com frequência pela surpresa. O que desaparece, desaparece, e pode ser para sempre. Como em qualquer lugar.

Inland Tariq Téguia

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2. Impossível é também pensar que as Revoluções são sempre esquerdistas ou inspiradas pelas ¨Lumières¨ (luzes). Que elas sejam progressistas ou reacionárias, elas enunciam uma definição de modernidade: progressista ou reacionária. Há 30 anos, nós estamos na passagem suspensa entre dois? Três? Mil? Épocas a cada vez. Tudo está em movimento, tudo é inacessível, paradoxal, atrás e diante de nós ao mesmo tempo. O novo livro de George Didi-Huberman dedicado a Jean-Luc Godard, “Passés cités” de JLG, abre com uma citação de Godard, cujo o qual, cita Willian Faulkner: o passado nunca esteve morto, ele nem mesmo passou. Eu gosto muito desta frase de um romancista reprisada por um cineasta. Os belos filmes chegam até nós exatamente assim. Os belos filmes são absolutamente solitários e coletivos. Eles nascem um do outro, uns dos outros. E se JeanLuc Godard exaltou o cinema mais do que qualquer outro cineasta, é porque ele nunca desertou a ficção e nem a história do cinema, a técnica e sua própria indústria.

Le Tempestaire Jean Epstein.

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A obra de Godard, construída ao longo de mais de 60 anos, nos mostra a nós mesmos, cineastas e público, que não se deve temer ao passar por múltiplos mortos para continuar a existir e inventar formas. O cinema como a pintura ou como toda a forma de arte, contaria por si próprio esta história, aquela de uma travessia coletiva pelas épocas. Impossível entrar em uma nova Era sem deixar coisas para trás, sem inventar um próximo filme. E se a obra de Antonioni, também construída ao longo de 60 anos, nos permanece também secreta, embora tudo o que ela inspire no nosso contemporâneo é que ela também permaneceu magnificamente atemporal, irradiando desde seus primeiros documentários e continuamente sua luz solitária. O público cinéfilo, por exemplo. Permanece somente para nós uma vaga lembrança? Um rastro em série ocupando as revistas de cinema, os ¨velhos filmes¨? Nossas mémorias, nossas discussões amorosas, os livros de


cinema do último século, os museus? Foram transformados como foram inseridos nos espaços disponíveis do cérebro, em estatísticas, porcentagens, categorias, cifras? Somos ainda tão pouco seus descendentes? Somos ainda um pouco? Muito? Nada? Conectados a ele? Nós, cujo os olhares são organizados, conduzidos, ocupados por todo o tipo de estratégia de captações midiáticas e industriais? Enquanto que aquele público cinéfilo descobria, décadas após décadas, em dezenas de milhões de filmes, a imensidade deslumbrante de sua liberdade de ver e de pensar no mundo - só e com outros - como pela primeira vez.

Jean-Luc Godard

Esta guerra lá - ver o mundo e o cinema com um olhar novo, apesar da história, apesar da época, o cinismo, apesar de tudo o que nós conhecemos, é tudo o que não queremos esquecer, é aquela do cinema. Ainda Godard, mas não sozinho. O cinema, porque antes tanto outros, com e depois dele. 3. A força pura da mais recente mutação do cinema, o último grito da modernidade, apareceu entre os anos 80 e 90, quebrando tudo. Nenhum furo midiático. Somente uma constatação honesta e visível a todos. Sejamos cineastas, produtores, distribuidores, donos de salas de cinema, televisões, críticos, público. Sem causar problemas. Ela (esta mutação? Claro.) até apareceu aos olhos de muitos, como altamente desejável, como um grande passo democrático em direção ao que ela (ao que a gente? Não, ela, a propaganda mutante) chamada por verdadeira democracia: um mundo enfim libertado da história, inteiramente dominado pelo mercado. Estranha conexão.

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A l’est du paradis Lech Kowalski

O cinema poderia continuar a viver em um mundo onde a história teria acabado de existir? O que dizer então aos povos que desde Chaplin, Eisenstein, Ford, Pasolini foram sempre os maiores heróis do cinema. Ainda olhamos para eles como os autores da história ou somente como público. Público do quê? Alguns dirão sobre todos os produtos planetários que circulam 24hs, 7 dias, doutros, sobre sua própria impotência de espectador e de seu desaparecimento tal qual povo. Este último modelo da modernidade é aquele do cinema neoliberal. Concebido sob a influência (de? Não se pode eliminar o ¨de¨, sob a influência de Reagan e Thatcher, como se fosse de uma droga) Reagan e Thatcher, no desmoronamento do mundo comunista, ele se baleou, dormindo com os jovens hollywoodianos extremamente

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ambiciosos. Após ter financiado uma geração de público à sua imagem, a tecnologia digital teria permitido reconfigurar o rosto do mundo. Hollywood is the place to be (Hollywood é o lugar para se estar) - mesmo nos subúrbios franceses, mesmo no fim do mundo, até nos sonhos adolescentes de toda a juventude mundial. O cinema neoliberal americano digital é acessível em todas as línguas, culturas, mídias, gerando ao mesmo tempo bilhões de produtos derivados. Ele é o exato oposto do cinema neorrealista italiano. Um, reflete a pós-modernidade de um mundo saturado de informações que parece estar atraído exclusivamente por todos os tipos de novas guerras mundias; o outro, a vida que recomeça das ruínas após as catástrofes provocadas pela Segunda Guerra mundial - os facismos europeus, Auschwitz, Hiroshima.


4. Em um tal contexto é impossível falar sobre o público de cinema de forma abstrata. O público é um produto de sua época o qual muta com ela. Sempre em direção à modernidade, que ela seja: reacionária, acadêmica ou revolucionária. Não há então público dos sonhos ou ideal, somente as Eras do cinema. Como nós dizemos, Eras geológicas, religiosas, industriais. Se o cinema neorrealista era um cinema de libertação onde o público participava da sua própria libertação de um pesadelo mundial, o cinema neoliberal é um cinema de captividade onde o público participa de sua própria captividade. Um cinema que produz tudo em uma só vez, um mundo e seu próprio espectador. Evacuando toda experiência cinematográfica a qual não se reinvindica nem de um, como de outros. A força industrial é tanta que ela provoca um amplo efeito deslumbrante mimético, hipnótico, que o torna quase que totalitário.

Totalitário, não por razões ideológicas mas porque ele não pode existir de outra forma. Ainda nenhum furo midiático, nenhum escândalo. A velocidade das conexões numéricas, capazes de transformar em alguns cliques não importa qual adolescente no mundo em um bilhão de outros adolescentes, reduz qualquer coisa daquilo que era o cinema. Ou pelo menos aquilo do que nós acreditávamos que fosse o cinema. Mas o que ainda resta intacto, magnificamente intacto, diante da beleza do cinema de Flaherty ou de Rossellini ou de Antonioni ou de Minnelli ou de Nicholas Ray e de tantos outros cineastas mortos e vivos. Jean-Luc Godard, Apitchapong Weerasethakul, Tariq Téguia, Lav Diaz, Claire Denis, Tsaï Ming-liang, Aki Kaurismäki, Wang Bing. Basta ver e escutar.

Nanouk l’Esquimau Robert Flaherty

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5. Talvez fosse suficiente, há um século a Robert Flaherty, apenas fazer algumas perguntas de cinema para filmar Nanouk e mostrar ao mundo inteiro a alma deste povo esquimó, cuja a vida se passava, principalmente, por não morrer de fome e, por isso, experimentar, explorar, ainda mais e mais com sua câmera. Trazer o necessário para revelar a película que está no gelo, projetar trechos aos seus personagens. Montar e filmar dia a dia com eles. Talvez fosse suficiente à Monica Vitti ser tão bela para que Antonioni imaginasse Le Désert Rouge (O Deserto Vermelho). Talvez acreditemos na causa extrema do deslumbramento provocada pela presença massiva industrial em todos estes produtos injetados por força em nossos olhares e cérebros, que isto não seja mais possível. Mas não é verdade. O tempo se acelerou tanto que a história também se acelera. O que ontem tomava vários séculos, hoje poderia emergir daqui a pouco (em breve??

Death in the Land of Encantos Lav Diaz

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Eu gosto da conexão temporal: até daqui a pouco = alguns anos) em alguns anos. Nós estamos, sem dúvida, às vésperas de uma nova Revolução que o cinema deve explorar. Filmar os horizontes, as perspectivas, os personagens, os modos narrativos. Dar a ele um nome de cinema. Como Flaherty em 1922, mas também como Godard, em 2014. Quase um século separa Nanouk de Adieu au Language (Adeus à Linguagem). Flaherty estava organizando um laboratório de cinema no polo Norte; Godard explora o 3D, “Le Vjing¨ e os programas de montagem associando planos e sons de forma aleatória. Flaherty estava filmando um mundo desaparecendo; Godard, um mundo aparecendo no desaparecimento de outro. O cinema, desde sempre, filma o que chega (diante da câmera) e o que desaparece.


Adieu au langage Jean-Luc Godard

6. A tecnologia numérica, Internet, programas tais quais Isadora, Arkaos e Módulo 8, os formatos Pro Ress 422 HD, RAW,desempenham atualmente o mesmo papel que a câmera, a película e o laboratório de Flaherty. Tecnicamente, esta nova Revolução reconfigura inteiramente a fabricação e o acesso aos filmes. Não é mais um desafio técnico. Talvez nem seja um desafio econômico, pois nunca houve tanto dinheiro no cinema mundial. O desafio parece especialmente crítico. Falta atualmente um nova base crítica. Talvez por causa da velocidade, da onipresença e da juventude destas tecnologias.Talvez também porque a crítica foi um monumento quase que religioso com seus bispos, hereges, jihads, sacerdotes campesinos com sua dominação intelectual, política, estética, em meio século de cinema. Talvez também porque seria mais humilde, mais inofensivo, mais reconfortante falar sobre um jornalismo de cinema.

Um jornalista que apenas se esforça a descrever os filmes, a se condecorar com estrelas, se juntar ao consenso para vender mais. Mas sem esta nova base, sem uma mutação da crítica, quem iria se libertar do jornalismo - uma mutação de seu papel, de seu significado, de sua posição política - nós teremos dificuldades para saber onde estamos. Não se trata de críticas, mas da crítica. De um novo mapeamento do cinema libertado dos DRH e do cinema midiático e pós-industrial. Este é um canteiro de obras também importante e talvez mais vasto do que o cinema neorrealista. Uma nova sensibilidade cinematográfica.

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7. Escutamos os comerciantes das salas de cinema valorizar mais do que nunca a experiência das salas. Atualmente este assunto dá no que pensar. O que era óbvio há 15 anos com a chegada na França de uma forte geração de jovens empreendedores às salas não é tão óbvio em 2015. Claro que tecnicamente, assistir a um filme em uma sala continua sendo uma experiência soberana, magnífica. Falta saber de quais filmes. Falta saber qual é a política de programação que eles implementam. Sonhar com a sala de cinema, tal como se fosse ontem, como ela poderia ser, deveria ser, não leva a lugar nenhum. A realidade é que atualmente muitos cineastas (e público) são demais excluídos. Pelo menos, as salas destinadas exclusivamente aos filmes produzidos pelo mercado: os filmes DRH, os filmes Trades, os filmes da Disney, filmes pop, os filmes like, os filmes NASA, os filmes para adolescentes, filmes de série... A cada ano o mercado declina a qualidade de produtos estre-

Zabriskie Point Michelangelo Antonioni

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lados, derivados, vintage. Os algoritmos substituem ao mesmo tempo, roteiristas, diretores, chefes-operadores e produtores, escola esta, muito velha para ser legal. Lento demais para ser sensível aos cânones da estética Neo-Hollywoodiana digital. Lento demais para captar a atenção entorpetizada dos produtos ao público. O objetivo final é fundir o público com o próprio produto. Um produto robótico que seria ao mesmo tempo um filme, sua promoção midiática e seu público. Diante de tal onda de poderes tecnológicos e financeiros e, das mutações que elas produzem em nossos cérebros, em nossas estruturas nervosas, em nossas sensibilidades, como pretendemos ainda continuar a ser um espectador? Como não achar muito triste que um jovem de 15 anos não possa suportar fisicamente a lentidão de It´s a Wonderful Life (A Felicidade não se Compra), de Frank Capra?


8- Essa revolução levará toda sua amplitude quando o público dela se apropriar. A prática de um outro prazer cinematográfico que não seja a sala de cinema. O fim da massiva campanha publicitária. A exploração de novas maneiras de encontrar filmes, de acessá- los, vê-los, de compartilhá-los, de falar sobre eles. Uma revolução que acontecerá tanto na Internet como nas plataformas digitais, nos computadores, nos home– theaters, nas instalações temporárias nas cidades, nos campos, nos desertos. Um movimento espontâneo cuja a natureza por ela mesma ignoraria as salas de cinema e cuja a força poderia quebrar o cativeiro da atualidade cinematográfica, o redefinindo completamente. Esta revolução que ainda não é consciente de si mesma, nem de seu potencial, já vive no cinema. Ela já vive, porque ela está concretamente inscrita nas novas tecnologias de cinema. Em suas redes de gestos primitivos e bem sofisticados que permitem àqueles de se apropriarem para reinventar o cinema, fazendo as coisas de novo pela primeira vez. Gestos compartilhados entre os filmes e aqueles que os assistem, rompendo as fronteiras artificiais entre os dois. Abrindo-se sobre as novas formas de salas de cinema temporárias ou não - que podem mostrar de tudo, ver tudo, colocar tudo em jogo. Convidando o cinema a se conectar a qualquer coisa que ele queira: artes, épocas, formatos, durações, línguas, notícias. Mas desta vez, não mais como produto, mas como olhar, como montagem, como inteligência, como sensibilidade.

A expressão do público, onipresente atualmente, era quase inexistente antes dos anos 90. Na realidade, o aparecimento desta expressão anunciava ao mesmo tempo o seu falecimento. A gente falava do público, deixando a cada um, a experiência secreta de que ele estava fazendo cinema. Não somente um filme. Este público lá era parte do plano. Nunca de frente. Nunca em posição de avanço no vácuo, nem de dominado. Ele não precisava de nenhum consenso, de nenhuma prótese midiática. Sua percepção íntima, seus afetos, suas dúvidas, seus questionamentos, suas rejeições faziam parte da experiência do filme. Ele fazia filme com os cineastas. Ele também era um cineasta. Cada um escolhia seu campo. Esta é a origem de fato da existência de cinema. Difícil de ir mais longe. Principalmente a de não sonhar, imaginar, delirar. Ser público-mutante é experimentar com o cinema tanto quanto os cineastas. Tanto sobre o plano técnico como no plano crítico. Este público também terá de se reconectar com a História. Inevitavelmente. O maior desafio pode ser encontrado então. Porque a História sempre volta e não somente como espectro. Vivemos em tempos como estes. Alguns acontecimentos parecem vir do futuro. Seu esplendor do futuro é de tal poder que produz efeitos mesmo em nosso presente. O que desaparece, já desapareceu no futuro. E nós até mesmo decompostos, desesperados, estamos bem lá.

*Texto originalmente publicado na revista “24 Images”, Junho de 2015.

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SINOPSES

BRAD MEHLDAU LDAU) (JAZZ COLLECTION: BRAD MEH França, 1999. Direção e roteiro: Nicolas Klotz. Duração: 56 minutos. Sinopse: Retrato de um jovem pianista de 29 anos, Brad Mehldau, romântico, roqueiro, líder de banda e solitário. Ele fez uma grande estreia no contexto restrito do jazz. O documentário acompanha o músico em sua turnê europeia e americana, com apresentações na íntegra de canções próprias e clássicos, além de entrevistas. Produção realizada para a série “Jazz Collection” do canal francês ARTE. Classificação indicativa: Livre. Formato de exibição: DVD.

PARIA JAMES CARTER RTER) (JAZZ COLLECTION: JAMES CA França, 1998. Direção e roteiro: Nicolas Klotz. Duração: 57 minutos. Sinopse: O documentário segue o músico James Carter em Nova York na tentativa de acompanhar um pianista japonês espantado. Na Europa, o quarteto se tornou um dos mais consistentes e conhecidos grupos de jazz. O jovem negro norte-americano chama a atenção para si em plena década de 90, sobretudo por não ter escolhido o caminho fácil do rap para o sucesso. Produção realizada para a série “Jazz Collection” do canal francês ARTE. Classificação indicativa: Livre. Formato de exibição: DVD.

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França, 2000. Direção: Nicolas Klotz. Roteiro: Elisabeth Perceval. Elenco: Cyrill Troley, Gérald Thomassin, Didier Berestestky. Duração: 125 minutos. Sinopse: Dois sem-teto são reunidos nesse drama neorrealista contemporâneo. Depois de brigar com a sua família, jovem decide se mudar para um apartamento próprio. Sem condições financeiras para se manter, ele acaba despejado de um cortiço. Passa então a dormir nas ruas e roubar para sobreviver. Numa noite enquanto dorme, o rapaz é assaltado por outro sem-teto o que inicia uma grande busca e amizade pelo acaso do destino. Prêmio Especial do Júri no Festival de San Sebastian. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: 35mm.


A FERIDA (LA BLESSURE) Bélgica/França, 2004. Direção: Nicolas Klotz. Roteiro: Elisabeth Perceval. Elenco: Noëla Mossaba, Adama Doumbia, Matty Jambo. Duração: 163 minutos. Sinopse: Moça chega ao Aeroporto Charles de Gaulle, em busca de um reencontro com seu marido em Paris. Apesar das alegações articuladas de asilo, ela é mantida em uma cela apertada, juntamente com uma série de outros africanos, que são humilhados e maltratados. Além de ameaçados de deportação imediata. O marido pergunta de seu paradeiro à chegada, e é recebido com respostas enganosas. Quando ela é ferida em uma batalha na pista com as autoridades, um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros a salva da expulsão. Com o trabalho, dinheiro e comida escassa, e sua confiança abalada, a jovem não consegue encontrar o entusiasmo para deixar seu colchão úmido e recomeçar a vida na França. Uma obra-prima do cinema contemporâneo fruto de três anos de pesquisa do casal Klotz e Perceval. Um dos mais pungentes retratos sobre imigrantes já realizados no cinema. Seleção oficial de Cannes — Quinzena dos Realizadores. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: 35mm.

A QUESTÃO HUMANA NE) (LA QUESTION HUMAI França, 2007. Direção: Nicolas Klotz Roteiro: Elisabeth Perceval e François Emmanuel (argumento). Elenco: Mathieu Amalric, Michael Londsdale, Edith Scob. Duração: 143 minutos. Sinopse: Simon trabalha como psicólogo no departamento de recursos humanos da filial francesa de uma corporação petroquímica de origem alemã. Quando o vice-presidente lhe pede que investigue a vida do presidente, suspeito de insanidade mental, a percepção de Simon torna-se caótica. O passado volta à tona durante o inquérito, revelando ligações indeléveis da empresa com o regime nazista. Melhor ator e direção de arte no Festival de Gijón e Prêmio da Crítica na Mostra de São Paulo. Único filme de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval a estrear comercialmente no Brasil. Ele entrou em cartaz no dia 19 de junho de 2008 em uma distribuição da Imovision, que depois lançou a obra em DVD nas locadoras nacionais. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: 35mm.

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JEUNESSE D´HAMLET LA CONSOLATION França, 2007. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Elenco: Léa Seydoux, Elise Bertero, Pierre Niney. Duração: 9 minutos. Sinopse: Durante uma festa, Camille fala sobre seu corpo amoroso atravessado pela ciência, o tempo que dá errado, e olha para o futuro. Produção de curta-metragem realizada para o projeto Talents Cannes. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: 35mm.

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França, 2007. Direção: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Roteiro: Monólogos extraídos do livro “Hamlet Machine”, de Heiner Müller. Elenco: Selym Clayssem, Anastasia Tarassova, Laurent Charpentier. Duração: 9 minutos. Sinopse: Enquanto motins estouram em conjuntos habitacionais e o exército tenta restaurar a paz nas ruas, quatro jovens são interrogados pela polícia por suspeita de terrorismo. Produção de curta-metragem realizada para o projeto Talents Cannes. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: 35mm.


LES AMANTS CINÉMA França, 2008. Direção e roteiro: Héléna Klotz. Duração: 65 minutos. Sinopse: A filha do casal Klotz e Perceval documenta o diaa-dia da filmagem de A Questão Humana. Dos ensaios com atores a cenas filmadas e discussões na sala de montagem. Um registro íntimo e observacional dos pensamentos e da forma de trabalho dos cineastas. Através de uma aparente simplicidade documental, Héléna constrói um retrato perfeito das personalidades distintas de Klotz e Perceval que se completam cinematograficamente. Classificação indicativa: Livre. Formato de exibição: DVD.

ZOMBIES França, 2008-15. Direção: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Roteiro: Textos de Allen Ginsberg, Didier-Georges Gabily, WG Sebald, Elisabeth Perceval, John Giorno, Robert Walser, Le Sous Commandant Marcos, Auguste Blanqui, Maurice Blanchot, Yehuda Lerner, Marguerite Duras, Mahmoud Darwich, Pier Paolo Pasolini e Elio Vittorini. Elenco: Frédérique Duchêne, Emmanuelle Hiron, Sandrine Roche. Duração: 70 minutos. Sinopse: Filme de zumbis experimental rodado em quatro noites durante um ateliê cinematográfico. A pesquisa do trabalho gira em torno de figuras de revolta. Estreia Mundial. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

LOW LIFE França, 2011. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Elenco: Camille Rutherford, ArashNaimian, Luc Chessel. Duração: 123 minutos. Sinopse: Recém-separados, Charles e Carmen fazem parte de um grupo de amigos de vinte e poucos anos que levam uma vida comunitária. Este grupo de românticos vive entre o limite do idealismo da adolescência e a realidade da vida adulta: um dia, eles varam a noite em festas; no outro, correm para tentar impedir a polícia de evacuar um prédio de imigrantes. Neste protesto, Carmen conhece Hussain, um poeta afegão que estuda ilegalmente na França, e os dois começam uma intensa relação. Mas com o risco de deportação que ameaça separá-los, Charles, ainda emocionalmente apegado, tenta se manter próximo. Seleção oficial do Festival de Locarno. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: DCP.

MADEMOISELLE JULIE França, 2011. Direção: Nicolas Klotz e Frédéric Frisbach. Roteiro: Terje Sinding, a partir da peça teatral homônima de Auguste Strindberg. Elenco: Juliette Binoche, Nicolas Bouchaud, Bénédict Cerruti. Duração: 101 minutos. Sinopse: Mademoiselle Julie não é uma simples adaptação da peça de Auguste Strindberg para o cinema, mas sim um documentário sobre os ensaios e as inúmeras repetições e apresentações de cenas do espetáculo dirigido por Frédéric Frisbach. Uma visão pessoal e particular de Nicolas Klotz sobre o teatro, o público e o cinema. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: DVD.

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S’ÉLANCE AUIL FAUT QUE L’HOMME ST DEVANT DE LA VIE HO ILE França, 2012. Direção: Nicolas Klotz. Roteiro: adaptação da peça Quarteto, de Heiner Müller. Elenco: Margaret Zenou, Caroline Bertin, Olivier Martinaud. Duração: 56 minutos. Sinopse: Grupo de jovens atores realizam um teste de elenco para a peça Quarteto, de Heiner Müller, em um prédio abandonado anteriormente ocupado pelos nazistas durante a guerra. Inédito no Brasil. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

NE PAS LE TOURMENT DE VIVRE ET DE ÊTRE DIEU França, 2012. Direção: Elisabeth Perceval. Roteiro: Elisabeth Perceval, a partir da peça teatral Quarteto de Heiner Müller. Elenco: Catherine Tartarin, Maelys Ricordeau, Antoine Brugière. Duração: 28 minutos. Sinopse: À noite, duas criaturas partem na cidade adormecida. Elas carregam um idioma que arde o coração e desperta os sentidos. Esses seres apaixonados vão a um encontro secreto. Inédito no Brasil. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

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LE VENT SOUFFLE DANS LA COUR D´HONNEUR França, 2013. Direção: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Roteiro: Antoine de Baecque, Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Duração: 101 minutos. Sinopse: Entre 2011 e 2013, o Festival de Avignon abriu as portas para Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. E como eles são cineastas, é acima de tudo a vida que interessa. Ou seja, os artistas e seus trabalhos em andamento para Avignon. Londres, Berlim, em seguida, Cesena, Avignon e Brazzaville, o documentário mostra como essas obras são habitadas, assombradas e inspiradas por todos os tipos de fantasmas. O Festival de Avignon está cheia de fantasmas, os de história, política, teatro, cinema e espectadores. A película se propõe a trazer para o cinema as questões no coração da tempestade criativa que representa o Festival d’Avignon hoje. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: DVD.


NAJGO! LUCILE França, 2013. Direção: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Roteiro: Elisabeth Perceval. Elenco: Silvia Costa. Duração: 14 minutos. Sinopse: Teste de elenco em Paris com a atriz e performer Silvia Costa para o papel principal de um projeto de longa-metragem, Ceremony. Inédito no Brasil. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

França, 2013. Direção: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Duração: 12 minutos. Sinopse: Uma centena de fragmentos de sequências cinematográficas de caça ao homem que perpassam toda a História do cinema de Fritz Lang a Apichatpong Weerasethakul, passando por Jesus Franco, Dario Argento, Robert Bresson, Raoul Walsh, John Ford, Béla Tarr, Straub e Huillet. Exibição simultânea em quatro telas divididas. Inédito no Brasil. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

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EMIN DANS LA POUR SE FRAYER UNDECHFR R AVEC JUNGLE, IL EST BON TERAPLÊPÉS DANGERS UM BATON POUR ÉCAR INVISIBLES França, 2013. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Elenco: Vincent Macaigne, Luc Chessel, Silvia Costa. Duração: 25 minutos. Sinopse: Um crítico da revista Cahiers du Cinéma entrevista um diretor de cinema a respeito de sua nova produção. Parte integrante dos Diálogos Clandestinos de um próximo longa da dupla, Ceremony, a ser rodado. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

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CEREMONY BRAZZA África do Sul/França, 2014. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Duração: 52 minutos. Sinopse: Durante o mês de dezembro, Klotz e Perceval foram convidados para ministrar aulas de cinema na África. A partir da experiência decidiram rodar um documentário que envolve a cultura, dança e o encontro com os habitantes locais. Parte integrante dos Diálogos Clandestinos de um próximo longa da dupla, Ceremony. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.


IS PAS JE SAIS COURIR MAIS2 JE NE SA M’ENFUIR PARTE 1 E Espanha/França, 2014. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Duração: 34 minutos. Sinopse: A caça ao homem continua em Barcelona, nos dias atuais. Fantasmas da colonização, imigração contemporânea, prostitutas vindas da África, um cão que fala, canções e danças. Exibição simultânea em quatro telas divididas. Inédito no Brasil. Classificação indicativa: 14 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

CORAGEM Brasil/França, 2015. Direção e roteiro: Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval. Elenco: Juliana Melo. Duração: 20 minutos Sinopse: Filme-irmão de Lucile rodado no Rio de Janeiro com uma jovem atriz, do Grupo Nós do Morro, da Favela do Vidigal. Estreia mundial. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

MOMIES ET MUTANTS França, 2015. Direção e roteiro: Nicolas Klotz. Duração: 11 minutos. Sinopse: Encontro em um café com o diretor teatral Romeo Castellucci tendo como tema o espectador (mutante). Estreia mundial. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: Blu-ray.

NK + EP Brasil, 2015. Direção e roteiro: Leonardo Luiz Ferreira Produção: Buendía Filmes e Cavídeo Produtores: Cavi Borges, Fernanda Teixeira, Leonardo Luiz Ferreira e Yves Moura. Duração: 70 minutos. Sinopse: Registro documental da passagem dos cineastas Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval na Favela do Vidigal, Rio de Janeiro, em busca de uma atriz para um teste de elenco. Estreia mundial. Classificação indicativa: 12 anos. Formato de exibição: DCP.

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S O T N E M I C E D A AGR

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Alexandre Perrier Angélique Oussedik Arthur Sherman Bernardo Uzeda Breno Lira Gomes Brigitte Veyne Carlos Henrique Vasconcelos Carlos Majdalany Cavi Borges Cavídeo Cecilia Fernandes Ferreira Claudia Lima Fernandes

Luiz Sergio Ferreira Marcelo Miranda Marcio Graffitti Marcus Mello Marie-Claude Loiselle Marine Goulois Marlice Fernandes Maud Deschambres Michelle Pistolesi Nicolas Juin Paradise Video Paula Niklison

Eliane Meire da Silva Ferreira Fabrice Marquat Fernando José Cruz Fernando Oriente Frédéric Hugot Gislene Moura Gustavo Luiz Ferreira Héléna Klotz Jocimar Fernandes Lourdes Mendonça (in memoriam) Luana Valente Lucia Teixeira Luis Carlos Teixeira Mendes

Paulo Vasconcelos Paulle Maillet Pierre Lagardère Raquel Rocha Rebecca Berg Robin Gobert Stéphanie Andriot Thomas Sparfel Ugo Moulet Ulysse Klotz Vinicius Brum Violeta Bava


Agradecimento especial para Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval pelo suporte incondicional para realização da Mostra. Sem vocês nada seria possível.

foto: Alvaro Riveros

Un merci spécial à Nicolas Klotz et Elisabeth Perceval pour le soutien inconditionnel pour la réalisation de la retrospective. Sans vous rien de tout cela ne serait possible.

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SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda Superintendências TÉCNICO-SOCIAL Joel Naimayer Padula COMUNICAÇÃO SOCIAL Ivan Paulo Giannini ADMINISTRAÇÃO Luiz Deoclécio Massaro Galina ASSESSORIA TÉCNICA E DE PLANEJAMENTO Sérgio José Battistelli Gerências AÇÃO CULTURAL Rosana Paulo da Cunha ADJUNTA Kelly Adriano de Oliveira ASSISTENTES Rodrigo Gerace e Talita Rebizzi ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta Colabone ADJUNTO Iã Paulo Ribeiro ARTES GRÁFICAS Hélcio Magalhães ADJUNTA Karina C. L. Musumeci ASSISTENTES Rogério Ianelli e Gabriela Borsoi DIFUSÃO E PROMOÇÃO Marcos Carvalho ADJUNTO Fernando Fialho ASSISTENTES Aline Ribenboim e Daniel Tonus RELAÇÕES COM O PÚBLICO Milton Soares de Sousa ADJUNTO Carlos Rodolpho T. Cabral CineSesc GERENTE Gilson Packer ADJUNTA Simone Yunes COORDENADORES Ivan da Hora, Maria Ap. O. Tavares Leopoldo e Solange Nascimento EQUIPE Amanda Zacarkim, Cecília Nichile, Graziela Marcheti, José Gonçalves Jr e Moara Zahra

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CURADORIA Leonardo Luiz Ferreira PRODUTORA Buendía Filmes PRODUÇÃO EXECUTIVA Fernanda Teixeira e Yves Moura COORDENAÇÃO GERAL Fernanda Teixeira e Leonardo Luiz Ferreira COORDENAÇÃO EDITORIAL E EDIÇÃO DE TEXTOS Leonardo Luiz Ferreira REVISÃO DE TEXTOS Leonardo Luiz Ferreira Rogério Durst PROJETO GRÁFICO Gaya Correia e Mila Rabello LEGENDAGEM ELETRÔNICA Casarini Produções





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