Universidade Metodista de Piracicaba Faculdade de Engenharia e Arquitetura e Urbanismo
ESPAÇO PARA RITOS DA MORTE
GABRIEL FERREIRA PASQUALIN
Trabalho Final de Graduação I do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Metodista de Piracicaba. Orientado pelo Professor Mestre Paulo Sérgio Teixeira.
Santa Bárbara D’oeste 2019
AGRADECIMENTOS Aos meus pais pelo cuidado e apoio em todas minhas decisões, pelas ricas oportunidades de correr atrás dos meus sonhos e por fazer possível o acontecimento desta graduação. À minha irmã, meu maior e mais precioso pedido na vida. Ao meu companheiro, de todos os momentos e sentimentos, pelo apoio e compartilhamento de conhecimento mútuo. Aos meus amigos da faculdade, com os quais compartilhamos experiências e aprendizados. Aos professores, técnicos e funcionários da universidade, fundamentais no processo do aprender e conviver. Por manterem e conservarem o espaço de aprendizado funcionando, mesmo em momentos delicados . Ao meu professor orientador, por acreditar neste trabalho.
A CIDADE E OS MORTOS 5 Laudômia, como todas as cidades, tem a seu lado outra cidade que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. Mas a característica particular de Laudômia é a de ser, mais do que dupla, tripla; isto é, de compreender uma terceira laudômia, que é a dos não-nascidos. As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a sequência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas. Muito justa Laudômia confere um domicílio igualmente vasto àqueles que ainda vão nascer; claro que o espaço não é proporcional ao seu número, que se supõe infinito, mas, sendo um lugar vazio, circundado por uma arquitetura repleta de nichos e reentrâncias e cavidades, e podendo-se atribuir aos não-nascidos a dimensão que se deseja, imaginá-los do tamanho de um rato ou de um bicho-da-seda, ou de uma formiga, ou de um ovo de formiga, nada impede de visualizá-los eretos ou agachados em cada um dos suportes ou estantes que ressaem das paredes, em cada um dos capitéis ou plintos, em fila ou esparralhados, atentos às incumbências de suas vidas futuras, e de contemplar numa veia do mármore Laudômia inteira daqui a cem ou mil anos, apinhada de multidões vestidas de modo jamais visto, todos, por exemplo, com barreganas
cor de berinjela, ou todos com plumas de peru nos turbantes, e de reconhecer os próprios descendentes e os das famílias aliadas ou inimigas, dos devedores e credores, que vão e vêm perpetuando os negócios, as vinganças, os matrimônios por amor ou por interesse. Os viventes de Laudômia frequentam a casa dos nãonascidos, interrogando-os; os passos ressoam sob os tetos vazios; as questões são formuladas em silêncio: e é sempre deles próprios que perguntam aos vivos, não daqueles que virão; alguns se preocupam em deixar uma ilustre memória de si, outros em encobrir as suas vergonhas; todos gostariam de seguir o fio das consequências dos próprios atos, mas, quanto mais aguçam o olhar, menos reconhecem um traço contínuos; os nascituros de Laudômia aparecem pontilhados como grãos de poeira, afastados do antes e do depois. A Laudômia dos não-nascidos não transmite, como a dos mortos, qualquer segurança aos habitantes da Laudômia viva, só apreensão. Nos pensamentos dos visitantes, acabam por se abrir dois caminhos e não se sabe qual reserva maior angústia: ou se pensa que o número de nascituros supera grandemente o de todos os vivos e de todos os mortos, e, nesse caso, em cada poro de pedra acumulam-se multidões invisíveis, amontoadas nas encostas do funil como nas arquibancadas de um estádio, e, uma vez que a cada geração a descendência de Laudômia se multiplica, em cada funil se abrem centenas de funis, cada qual com milhões de pessoas que devem nascer e esticam os pescoços e abrem a boca para não sufocar; ou então se pensa que Laudômia também desaparecerá, não se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecerão com ela, isto é, as gerações se sucederão até uma certa cifra e desta não passarão, e por isso a Laudômia dos mortos e a dos não-nascidos são como as duas ampolas de uma ampulheta que não se vira, cada passagem entre o renascimento e a morte é um grão de areia que atravessa o estreitamento, e nascerá um último habitante de Laudômia, um último grão a cair que, no momento, está aguardando no alto da pilha. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Companhia das letras, 1990. 1ªed.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS OBJETIVOS
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PARTE I CAPÍTULO I - O HOMEM E A MORTE CAPÍTULO II - A MORTE E A CIDADE
PARTE II
CAPÍTULO III - SIMBOLOS E ATMOSFERAS
PARTE III
CAPÍTULO IV - REFERÊNCIAS PROJETUAIS CAPÍTULO V - O LUGAR CAPÍTULO VI - MÉTODOS E RITOS CAPÍTULO VII - PROJETO - PROPOSTA INICIAL
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS A ideia de desenvolver neste trabalho um estudo e o projeto de um espaço relacionados a um tema relativamente temido para a maioria das pessoas pode gerar dúvidas e estranhamentos. Percebeu-se interessante tratar de um tema e um programa de necessidades pouco falado e pensado quando se trata de um projeto arquitetônico, pela curiosidade de como desenvolver um espaço complexo por se relacionar com um assunto tão sensível para as pessoas, e o interessante resultado arquitetônico que pode surgir a partir deste estudo. A morte, na atualidade, é tratada como um tabu. As pessoas se distanciam do tema, e consequentemente os espaços existentes não dotam de qualidades para propor experiencias diferentes, que marquem um rito tão importante. Projetar um espaço de ritos funerários demanda estudo e entendimento de conceitos filosóficos, antropológicos, históricos e até mesmo técnicos. De partida, é importante estudar as relações do homem com a morte, que segundo Morin (1970), desde os tempos arcaicos, não há nenhum grupo que abandone ou despreze os mortos sem nenhum tipo de rito que marque esta passagem e que com o desenvolvimento das sociedades, o espaço e a relação com a morte foi mudando de sentido e de lugar. Focando mais em como a sociedade contemporânea ocidental trata e pensa sobre a morte. Para isso, entende-se a necessidade de estudar as mudanças no destino final dos cadáveres dentro do desenvolvimento das sociedades. Onde tem sido o lugar do morto? Quais tem sido as necessidades de ocupação do espaço e a ritualização? E para que o espaço projetado atenda a necessidade de ser confortante àqueles que sofrem com a situação, calmante e que cause reflexão, pretende-se estudar conceitos da área da psicologia que se relacionam com o espaço e com o sentimento humano a partir do simbolismo da arquitetura e da conexão com a natureza. Outro caráter muito importante para se estudar afim de garantir um espaço de qualidade, são as necessidades técnicas, como dimensionamentos específicos, plano e programa de necessidades e a relação urbana com o entorno na cidade.
10 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
OBJETIVOS Pretende-se com este trabalho, realizar o projeto de um conjunto de edifícios que permitam a realização de ritos funerários contemporâneos, em uma experiência diferenciada. Um espaço ecumênico que conforte as pessoas no momento de contato com a morte, que proporcione reflexão e apoie no momento da despedida. Uma vez que a sensibilidade e qualidade arquitetônica são pouco vistas em edifícios deste tipo no Brasil, este projeto entende a necessidade de que o edifício seja ícone na cidade por ser um símbolo que divide dois mundos. Local de memória àqueles que neste mundo se tornaram cinzas a partir do método da cremação ou que se tornaram adubo para jardins pelo método da compostagem. Uma arquitetura que além de sediar ritos funerários, que por si só, emocione e reconforte as pessoas em luto e também favoreça e estimule a ação de refletir. Os eixos estruturantes formadores do estudo teórico neste trabalho são: os conceitos e reflexões sobres às relações do homem com a morte, da sociedade e os seus ritos funerários, os seus espaços na cidade, além do estudo da simbologia como forma de representação para o homem e para os espaços sagrados e funerários. O momento em que nos encontramos hoje na relação com a morte, caracteriza um tabu, distanciamento com os rituais que são cada vez mais neutros e descarregados de cargas simbólicas. Os novos espaços para os ritos funerários acabam sendo imparciais, desprovidos de qualidade sensível em sua forma e excluem partes importantes dos ritos da morte. Cemitérios verticais e crematórios tornam em muitas vezes inexistente o cortejo. Este trabalho vem com a proposta de proporcionar uma experiência dramática e reconfortante para as pessoas. Uma das características principais, é trazer de volta o cortejo, que acontece nos enterros convencionais em cemitérios, onde as pessoas caminham junto ao caixão com o falecido até o local de sepultura. Em segundo lugar, pretende-se que os edifícios do projeto tenham características monumentais e simbólicas, a fim de criar uma referência arquitetônica que se diferencie de edifícios comuns do dia a dia na cidade. Além disso, trabalhar com a relação entre os edifícios, os seus usos e o terreno em que estão implantados, afim de criar relações de simbolismos sagrados com a natureza. OBJETIVOS 11
PARTE I Capítulo I: O HOMEM E A MORTE Capítulo II: A MORTE E A CIDADE A parte I deste trabalho trata sobre como aconteceu o desenvolvimento das relações do homem e da sociedade perante à morte e os seus ritos. Consequentemente, se estuda a relação dos ritos da morte e os seus lugares e espaços em relação à cidade.
O HOMEM E A MORTE
CAPÍTULO I
O HOMEM E A MORTE Ao longo da história, à medida que a espécie humana foi evoluindo, aconteceram mudanças em diversos sentidos. Sejam novas descobertas da ciência ou diferentes organizações sociais e políticas. A postura do homem em face da morte também mudou com o passar dos tempos. Este capítulo do trabalho visa estudar essas mudanças tendo como principal referência os estudos do historiador francês Philippe Ariès, em seu livro “A história da morte no ocidente”, que ficou conhecido pelos seus trabalhos e discussões sobre a vida comum e principalmente sobre a morte. O autor denomina os diferentes momentos: A morte domada; A morte de si mesmo; A morte do outro; A morte interdita. No capítulo seguinte, são analisados como os ritos da morte foram mudando e transformando a relação com a cidade em diferentes períodos Na Terra, a morte está presente na vida, para a espécie humana, através dos ritos fúnebres, marcados pela crença da sobrevivência ou do renascimento dos mortos. “Não existe praticamente qualquer grupo arcaico, por muito primitivo que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos.” (MORIN. 1970, p.25). Entende-se a partir do pensamento do sociólogo Edgar Morin, que o funeral, rito da espécie humana, marca o momento entre a morte e aquisição de imortalidade, a partir de um conjunto de práticas que ao mesmo tempo em que consagram, definem uma mudança de estado do corpo morto e institucionaliza um complexo de emoções aos vivos, que sentem os reflexos provocados pela morte, como o estágio do luto, mais sentido principalmente às pessoas próximas do círculo familiar ou íntimo do defunto.
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Figura 1 - Danse Macabre, Totentanz. DisponĂvel em: < https://www.caoscultural.com.br/single-post/2016/11/26/Totentanz-a-Dan%C3%A7a-Macabra>
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A MORTE DOMADA No período da Idade Média, onde a perspectiva de vida era muito baixa por ocasião de surtos de doenças e batalhas, a morte se encontrava muito frequente e presente. A morte domada, estudada por Philippe Ariès, demonstra a proximidade com a morte e o fato de que morrer neste período, não era um medo. Segundo Godelier (2017), na antiguidade, as pessoas acreditavam que a morte era um estado natural, que faz parte do processo da vida. Neste momento da história, as pessoas não morriam sem saber que iriam morrer, pois a morte era anunciada, advertida. As guerras e as doenças muito frequentes faziam com que o moribundo de alguma forma, soubesse que o seu fim estava próximo. Segundo o autor, as pessoas eram avisadas de sua morte próxima através de signos naturais, ou idéias íntimas. “Em SaintMartim de Tours, no século X, após quatro anos de reclusão, um venerável eremita “sentiu”, nos diz Raoul Glaber, “que logo ia deixar este mundo” (ARIÈS, 2012, p. 33). Os ritos funerários deste momento eram realizados de maneira muito simples, e organizados pelo próprio moribundo. Ariès cita Lancelot no Romance da Távola Redonda.
Quando Lancelot, ferido e perdido na floresta deserta, percebe que “perdeu até o poder sobre seu corpo”, pensa que vai morrer. Que faz ele então? Gestos que lhe são ditados pelos antigos costumes, gestos rituais que devem ser feitos quando se vai morrer. Despoja-se de suas armas, deita-se sabiamente no chão; deveria estar no leito (“jazendo no leito, enfermo”, repetirão por muitos séculos os testamentos). Estende seus braços em cruz – o que não é habitual. Era de costume estender-se de modo que a cabeça estivesse voltada para o Oriente, em direção a Jerusalém. (ARIÈS, 2012, p. 36)
Apesar de serem muito simples, os ritos da morte eram uma cerimônia pública, sem muita dramaticidade nem emoção excessiva. Qualquer um que estivesse de passagem e se deparasse com ela, poderia entrar ao quarto do morto para se despedir. As crianças sempre estavam presentes, de maneira natural e até aparecem nas representações artísticas do período, participando e presentes. Diferentemente de hoje, em que se evita levar crianças à funerais. Entende-se a partir do pensamento de Ariès, que a morte era familiar e próxima, ao mesmo tempo atenuada e indiferente, opondo-se ao nosso período, em que é tratada como tabu e amedrontada. O HOMEM E A MORTE 17
Figura 2 - Mestre E.S. Ars moriendi. Ca. 1450 FONTE: <https://tendimag.com/2017/10/13/ogalo-e-a-morte-revisto/05-mestre-e-s-ca-1450/> 18 O HOMEM E A MORTE
A MORTE DE SI MESMO Ainda se tratando do período da Idade Média, mais precisamente nos séculos XI e XII, a relação do homem com a morte sofreu mudanças, mas não bruscas. Que afetaram as preocupações individualizadas de cada indivíduo. Pode-se dizer que continuam as atitudes de proximidade com o fato de morrer e a simplicidade dos ritos funerários, organizados pelo próprio moribundo, sempre de caráter público. Tal familiaridade com a morte segundo Ariès (2012), refletia uma aceitação da natureza, e os seus ciclos de nascer e morrer. Desta forma, o homem não evita e nem exalta a morte, mas utiliza de uma solenidade para marcar a sua aceitação e importância de uma grande etapa do ciclo da natureza. [...] os mortos que pertenciam à Igreja e lhe haviam confiado seus corpos (ou seja, o que haviam confiado aos santos) adormeciam como os sete adormecidos de Éfeso (pausantes, in somno pacis) e descansavam (requiescant) até o dia do segundo advento, do grande retorno, quando despertariam na Jerusalém celeste, ou seja, no Paraíso. (ARIÈS, 2012, p. 51)
A partir da citação mencionada acima, entende-se a ideia do aparecimento do Juízo Final, como ato coletivo, em que todos aqueles que durante a vida foram boas pessoas, ao momento do final dos tempos, seguiriam para o Céu, já aqueles que foram pessoas más, iriam ao inferno. A partir do século XIII, segundo Ariès, o
momento apocalíptico do fim dos tempos some quase por completo. Prevalecendo o juízo, que seria representado por uma espécie de tribunal individual para cada homem, balanceando entre suas boas e más ações. A partir do século XV, o acontecimento do juízo final passa do momento do final dos tempos para o quarto do enfermo. “O moribundo está deitado, cercado por seus amigos e familiares. Está prestes a executar os ritos que bem conhecemos. Mas sucede algo que perturba a simplicidade da cerimônia e que os assistentes não veem, um espetáculo reservado unicamente ao moribundo” (ARIÈS, 2012, p. 53). Seria ali, pouco tempo depois de sua morte que se passaria pelo tribunal de Deus para saber se o destino final seria o céu ou o inferno.
A MORTE DO OUTRO Uma grande mudança no sentido que o homem dá a morte ocorre, segundo Ariès (2012), a partir do século XVIII. Enquanto nas seções anteriores a morte era tratada de maneira mais simplista, neste período, as relações do homem com a morte são carregadas de dramaticidade e exaltação, sendo impressionista e arrebatadora. O sentido romântico trata da passagem da ocupação com a morte de si mesmo para a morte do outro, que o luto expressando a saudade inspira um novo culto aos túmulos e cemitérios nos séculos XIX e XX. Percebe-se a partir do século XVI que as representações de temas da morte são carregadas de um sentido erótico, em que a morte busca o O HOMEM E A MORTE 19
Figura 3 - A morte de Sardanapalo. Autor: Eugène Delacroix Fonte: http://warburg. chaa-unicamp.com.br/obras/view/9412
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vivo como desejo ou designação. Até o século XVIII em que as cenas e representações mostram a morte associada ao amor. Cada vez mais acentuada e considerada como transgressão que tira o homem da vida cotidiana, racional e monótona, para um mundo irracional, violento e cruel (ARIÈS, 2012, p. 67). As relações do homem com o luto, são muito aparentes quando se fala na morte do outro. No período entre o final da Idade Média até o século XVIII, as famílias tinham que expressar o sentimento de dor, que nem sempre se experimentava, manifestando o luto quando alguém falecia, além disso, o luto defendia o sobrevivente, para que não sofresse só, pois nestes momentos, se recebia muita visita de parentes e vizinhos, desta maneira, a dor da perda era expressada dentro de um limite fixado na sociedade como conveniente. Porém, este limite passa a não ser mais respeitado no século XIX, segundo Ariès, neste período é chamado pelos psicólogos de luto histérico. “chora-se, desmaiase, desfalece-se, jejua-se”. (ARIÈS, 2012, p. 73). O luto no século XIX é exagerado segundo Ariès (2012) pois as pessoas passam a não mais aceitar tão facilmente a morte do outro e temem perder alguém próximo, mais do que a própria morte. A dor e a saudade trazem a necessidade de um local para se visitar, para marcar a memória do falecido, por isso, no período moderno, cultua-se os túmulos e os cemitérios.
O testamento foi algo que sofreu mudanças neste período, segundo Ariès (2012). Do século XIII ao XVIII, era um meio do moribundo expressar de maneira muito pessoal e individual a sua relação com a fé, Deus, seu apego às coisas, as pessoas e decisões como o seu local de sepultura, como meio de garantir segurança à sua alma. Porém, a partir da segunda metade do século XVIII, o testamento foi reduzido à um ato de divisão de bens e fortunas, mais conhecido como é no período atual.
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A MORTE INTERDITA Nos períodos anteriores, desde a alta idade média até o começo do século XIX, as mudanças nas relações do homem com a morte ocorreram de maneira muito lenta e gradual, quase que imperceptível. Porém, a partir de meados de um terço do século XIX, as mudanças são bruscas. A partir de então, o ato da morte passa de presente e familiar, para vergonhosa e objeto de interdição. Aqueles que cercam o moribundo em seus tempos finais tendem a poupar e ocultar ao próprio o seu real estado grave e final. As verdades em relação com a morte passam a ser problemáticas (Ariès, 2012). Segundo o historiador Philippe Ariès, evitar a morte da sociedade e aos que cercam o moribundo passa a ser uma característica da modernidade. Afasta-se a verdade da morte, carregada de suas perturbações e fortes emoções em uma vida feliz (ou aparentemente feliz). Os ritos funerários acontecem, e muitas vezes muito próximos de como sempre aconteceram, porém vazios de dramaticidade e emoção excessiva. Ainda segundo o autor, no período entre os anos de 1930 e 1950, percebe-se uma acelerada mudança no que diz respeito ao local da morte. Antes, se morria em casa, no quarto, com a família e pessoas próximas ao seu redor, e neste período, a morte passa a acontecer no hospital. Onde os médicos e enfermeiros se encarregaram de tomar os últimos cuidados até o momento final e realizar os ritos preparatórios para os velórios e funerais, que antes eram realizados pelos familiares em 22 HOMEM E A MORTE
casa. Tais ritos funerários de preparação passam de ritualísticos para técnicos e ocultos (ARIÈS, 2012, pp. 85,86). Quando se fala dos ritos funerários, é fato de que houve alterações relacionadas a diminuir as operações inevitáveis, afim de fazer desaparecer o corpo. As pessoas próximas à família, principalmente as crianças, tendem a perceber a morte o mínimo possível, suprimindo as manifestações de luto para os momentos finais dos velórios e enterros. Percebe-se que poucas pessoas ainda utilizam de roupas pretas para manifestação do luto, ato muito presente na antiguidade, quando as pessoas eram muito próximas à morte e os ritos eram muito marcados.
Os filhos caminhavam com a cabeça coberta, enquanto as mulheres exibiam o rosto descoberto. Elas deixavam o ricinium e vestiam uma palla preta (um mantô que se usava sobre as roupas). (...) Vestir essa cor significava que essas mulheres iriam se afastar da sociedade e permanecer momentaneamente ligadas ao reino das sombras e da morte. (VOISIN, 2017, p. 77)
O historiador Phillippe Ariès apresenta a cremação como forma dominante de sepultamento, principalmente em países onde as mudanças nas relações do homem com a morte se mostraram mais fortes, como na Inglaterra. Cremar um corpo é visto como um ato radical e mais eficiente de fazer desaparecer um cadáver. Porém, percebe-se que as urnas são menos visitadas do que túmulos de cemitérios comuns, isso porque a cremação acaba excluindo partes dos ritos funerários, como a peregrinação ou cortejo – do velório ao enterro. Enquanto na antiguidade as manifestações de luto muito fortes se dissimulavam rapidamente e os “viúvos casavam novamente alguns meses após a morte de sua mulher” (ARIÈS, 2012), nos tempos atuais, em que o luto é interdito e diminuído à individualidade, “ a mortalidade dos viúvos ou viúvas no ano seguinte à morte do cônjuge era muito maior” (ARIÈS, 2012). Ao
mesmo tempo em que para a sociedade, a morte é oculta e quase não aparece, para a pessoa mais próxima, é fortemente sentida, como nos tempos em que a morte se caracterizava romântica. Ariès cita o sociólogo Geoffrey Gorer, que entende que o sexo foi substituído pela morte como tabu no século XX. Enquanto em um período, se ocultava o ato sexual e dizia às crianças que um bebê nascia de um repolho, ao mesmo tempo em que participavam dos rituais da morte ao lado da cama do defunto, na maior naturalidade, hoje as situações se invertem, dizendo às crianças que o avô descansa feliz em um jardim repleto de flores e a educação sexual é apresentada desde cedo. (ARIÈS, 2012)
Figura 4 - Nichos no cemitério da Ilha do Governador. Fonte: https://ipaxapp.com/br/index.php/novidades-do-mercado/178-prefeitura-libera-venda-de-nichos-e-jazigos-ecologicos-no-caju O HOMEM E A MORTE 23
A MORTE E A CIDADE
CAPÍTULO II
A MORTE E A CIDADE No capítulo anterior, tratou-se de como a relação do homem com a morte foi se alterando, durante o passar dos anos. Porém, ao mesmo tempo, enquanto a sociedade muda os seus conceitos e entendimentos, muda também o lugar do morto na cidade. Seja em meio à cidade, e próximo aos espaços santos. Ou longe dela, para proteger os vivos da volta das almas maléficas e doenças provindas da putrificação dos corpos. Quando a pessoa morria, as sociedades se confrontavam com uma dupla necessidade: a de se livrar do cadáver e a de separar o morto do mundo dos vivos, pois sua alma, ou almas, subsistiam após seu falecimento. Esse duplo objetivo era realizado por meio de ritos denominados funerários. Eles precediam, acompanhavam e sucediam os funerais, momento em que os vivos se separam (ou separavam a sociedade como um todo) de seus mortos. (VOISIN, 2017, p.21).
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ANTIGUIDADE Como se entende a partir do que foi estudado na obra do historiador Philippe Ariès (2012), que ao mesmo tempo em que expressa familiaridade, na antiguidade, temiase a proximidade com os mortos, mantendo distância. Honrava-se as sepulturas e tumbas pois junto aos rituais funerários, visavam impedir que o morto voltasse para o mundo dos vivos, para infernizá-los. “Quando os funerais não ocorriam segundo as regras e os ritos, a morte representava um perigo para todos, para a família e a cidade”
(VOISIN, 2017, p. 63). Este distanciamento pode ser exemplificado na Roma Antiga, onde a Lei das Doze Tábuas proibia o enterro no interior da cidade, que era então situado na Via Appia, na beira das estradas (ARIÈS, 2012, p. 42). Como observado por Ariès, durante a antiguidade, a construção do túmulo era mais importante do que o local onde se instalava. Tal mentalidade muda durante o período medieval, em que o espaço fechado onde as sepulturas se encontram é mais importante do que o próprio túmulo (ARIÈS, 2012, p. 45).
Figura 5 - Mausoléu de Cecilia Metella, Localizado na Via Appia Antica, Roma. Fonte: http://museoguide.it/museo/roma-mausoleo-di-cecilia-metella/ A MORTE A CIDADE 27
Figura 6 - Igreja de Tynemouth, Inglaterra. Autor: Craig Richardson. Fonte: <https://br.pinterest.com/pin/512003051372853782/?lp=true> 28 A MORTE E A CIDADE
IDADE MÉDIA Os locais venerados por mártires, ou seja, onde estavam sepultados os santos, e suas relíquias, atraiam a partir do século V, segundo Ariès (2012) o interesse da população como um local a serem enterrados. Onde surgem então, os enterros ad sanctos, que se tratava do interesse em ser enterrado próximo aos santos e suas relíquias, que se localizavam nas igrejas. Este ato representa o desejo de se beneficiar da proteção dos santos. O desenvolvimento dessa prática se organizou fundamentando-se na crença da ressurreição dos corpos no dia do julgamento final, pois se acreditava que a proximidade física entre o cadáver e as imagens divinas, contidas no interior das igrejas, representava um modelo de continuidade espiritual que se desejava obter na relação mágica existente entre o ser humano e Deus (PETRUSKI, 2006, p. 97)
O local de sepultamento normalmente era indicado pelas pessoas no seu testamento. Geralmente dentro das igrejas, na terra sob as lajes do piso para os mais ricos e importantes, ou em seu arredor, até os seus limites no terreno, onde eram enterrados os mais pobres, amontoados, em fossas comuns. De tempos em tempos, afim de abrir espaço, os ossos eram retirados e empilhados nas galerias e sótãos das igrejas, revestindo abóbodas, paredes e pilares, formando no século XVIII, um exemplo da criação de arte barroca e macabra nas igrejas. Enterrar os mortos do lado de fora das igrejas, como em seus pátios, foi uma prática que segundo
Petruski (2006) além do espaço no interior se tornar escasso na segunda metade do século XIV, quando o território europeu foi assolado pela Peste Negra e os enterros se tornaram cada vez mais religiosos. Neste momento, Igreja e cemitério passaram a se confundir quando “os mortos, já misturados com os habitantes dos bairros populares da periferia, que se haviam desenvolvido em torno das abadias, penetravam também no coração histórico das cidades.” (ARIÈS, 2012, p. 43). A palavra cemitério, representa mais a área externa da igreja, onde os corpos eram enterrados. É possível perceber alguns atos que começam a limitar práticas em locais sagrados de coexistência entre os vivos e os mortos, ou seja, nas igrejas e cemitérios. No ano de 1231, segundo Ariès, se proíbe dançar e praticar jogos nos cemitérios, como marcado no concílio de Rouen. Além disso, em 1657 surge um texto que revela o início de um sentimento de constrangimento em estar no mesmo lugar onde estão as sepulturas. Quando Philippe Ariès fala sobre a morte de si mesmo, pode-se entender que enquanto na antiguidade, as sepulturas eram individualizadas e possuíam inscrições, pelo desejo de conservar a identidade e memória daquele que estava ali, no período medieval, com o enterro ad sanctos, os corpos eram abandonados à Igreja e os túmulos eram marcados somente por uma pedra, mantendo o anonimato dos corpos, até que a partir do século XII as inscrições voltam a aparecer, quebrado o anonimato, primeiramente das pessoas mais importantes. A MORTE E A CIDADE 29
SÉCULO XVIII Enquanto no período da Idade Média o local de sepultura não era contemplado com nenhuma escritura ou monumento que marcasse a sua importância, a partir do século XVII, começa a observar-se uma maior preocupação em marcar a localização das sepulturas. Visitar um túmulo, era até então um ato desconhecido e sem importância (ARIÈS, 2012, p. 75). Uma redefinição da noção de ritual e desejo por individualização da sepultura compuseram segundo Petruski (2006) uma mudança significativa a partir da primeira metade do século XVIII. Os mortos passaram a ser enterrados mais próximos às suas famílias. A identificação de sepulturas antes se dava somente aos mais ricos e importantes.
Grandes mudanças aconteceram a partir da segunda metade do século XVIII, quando se trata ao local destinado aos mortos na cidade. Segundo Ariès (2012) surgiu uma problemática relacionada ao acúmulo de defuntos no interior das igrejas e em seus pátios. Os corpos em decomposição começam a comprometer a saúde pública, devido a emanação de odores e doenças vindas das fossas, tão próximas as pessoas. Além disso, o fato da Igreja “ter feito tudo pela alma e nada pelo corpo” (ARIÈS, 2012, p. 76) passou a ser algo criticado pela sociedade. Pois a terra saturada de cadáveres e a exibição dos ossos como revestimento passaram a ser atos que violavam a dignidade dos mortos.
Figura 7 - Catacumbas de Paris. Foto: Airbnb/divulgaçãoFonte: http://viagemempauta.com.br/2017/03/06/catacumbas-de-paris/ 30 A MORTE E A CIDADE
SÉCULO XIX Segundo Petruski (2006), a preocupação da população com o fato da higiene e as questões sentimentais pelos corpos amontoados sem identificação gerou manifestações por volta de 1780, onde a partir daí apareceram os caixões individuais e sepulturas familiares que fizeram com que o individual substituísse o coletivo, incorporando novo ritual funerário, que passa a acontecer em um cemitério a muros fechados, com quadras e sepulturas numeradas que contam com nome e data de nascimento e falecimento. Os túmulos passam a representar como signo, a presença do morto para além da morte. O ato de recordar-se de um morto, junto com a visita aos cemitérios, passa a caracterizar uma espécie de imortalidade. Philippe Ariès destaca
que os projetos de cemitérios neste período passam a ser pensados pelos seus autores como espaços que permitem visitas familiares e veneração aos homens ilustres. A catedral de Saint-Paul em Londres é exemplificada pelo autor, por possuir em seu interior, túmulos de heróis venerados. Divergindo do pensamento na Idade média e reocupando novamente uma postura da Antiguidade, o cemitério, no século XIX volta a tomar o seu lugar na cidade, com meio físico e moral, a partir do entendimento que a sociedade é composta por vivos e mortos, não desvalorizando a importância dos mortos perante aos vivos. Ficou evidente nas terras inglesas e francesas o surgimento da arte barroca nos túmulos de seus cemitérios. Os cemitérios parques, aparecem também, como locais agradáveis, em meio a natureza e jardins.
Figura 8 - Cemitério Père-Lachaise, Paris. Fonte: https://triciaannemitchell.com/2011/09/09/if-headstones-could-talk-pondering-at-paris-pere-lachaise-cemetery/ A MORTE E A CIDADE 31
Figura 9 - CemitĂŠrio Jardim da Saudade, Curitiba. Fonte: http://blogdopaulofarina.blogspot.com/2012/01/o-futuro-cemiterio-jardim.html 32 A MORTE E A CIDADE
ATUALIDADE Os cemitérios são locais que se parecem com uma pequena cidade, dentro de uma cidade maior. Segundo uma organização de ruas e lotes onde além de túmulos de tijolo de cerâmica, exibem-se estátuas de anjos e santos para guardar os corpos que se encontram mais abaixo, em processo de decomposição. “[...] Uma sensibilidade refletida, em materialidade, no espaço construído para retratar o real e o imaginário do ser humano, frente ao que ele sabe e desconhece da vida. (PETRUSKI,2006, p.94).
O aumento na relação dos vivos com os mortos acaba sendo representada quando se passa de um rito onde os mortos eram colocados nos cemitérios das igrejas em locais impessoais e muitas vezes sem identificação, para os cemitérios extramuros, onde existem covas que mesmo de simples construção ou grandes túmulos com anjos, cruzes e santos, produzem referências visuais e simbólicas para o suporte às crenças, aos desejos e questionamentos. A arquitetura funerária, com suas novas proposições de espaço e elementos acaba abrindo espaço para novas maneiras de ritualizar a morte. (CASTRO, 2012, p. 140).
Após o último beijo no defunto, dado no exato momento do falecimento por um parente próximo, quando isso era possível, seus olhos eram cerrados e seu nome chamado em voz alta diversas vezes (conclamatio); em seguida, o corpo era retirado do leito e colocado de joelhos em contato com a terra. Depois disso, era lavado com água quente, perfumado e vestido com a grande toga branca (signo distintivo do cidadão romano) (VOISIN In: GODELIER. 2017, p.72).
Diferentemente do tempo da Roma Antiga, onde a proximidade do morto com as pessoas próximas em seu momento final era muito grande e tida como essencial pela Igreja, quando passamos para o período moderno, um dos primeiros fatos que marcam a distância entre vivos e mortos é o fato de que a primeira morada dos mortos geralmente é o hospital, onde a morte é ocultada em seu momento, afastando o contato direto com a família, como os ritos do tempo da Roma Antiga. Como citado por Castro (2012), Valadares (1970) afirma que os cemitérios verticais são anunciados como solução para os problemas de densidade de sepultamento em meio metropolitano, assim como os apartamentos. E os cemitérios-jardins, que possuem projetos paisagísticos e lembram parques, com vias de trânsito e placas de concreto espalhadas ordenadamente pelo gramado. Ainda mais do que os cemitérios verticais, os crematórios surgem na atualidade como uma solução que pode colocar fim, ao menos espacial, de tudo o que pode restar de objeto material da morte. Sem necessidade de um local para guardar os corpos por um período muito longo. Pois os A MORTE E A CIDADE 33
corpos são reduzidos às cinzas, que então poderão ocupar o espaço em uma estante na casa de família, ser despejada na água ou em um jardim, e em alguns casos guardadas em um nicho de cemitério – columbários ou cinzários. O crematório sofre por resistências. Que estão ligadas a práticas e ritos referentes aos costumes de certo modo religiosos. A necessidade de um local para que o morto descanse enquanto aguarda o momento da ressurreição, por exemplo, no caso do cristianismo. O crematório hoje acaba excluindo ou se desfazendo do espaço para eternização do morto e perpetuação da memória, como os túmulos dos cemitérios convencionais. Aqui, o velório será procedido pela incineração ou cremação, e então “acabou”. O destino final das cinzas não é definido e padronizado, dependendo da vontade da família ou do próprio morto, manifestada em vida. Partindo para o lado apreciado do crematório, este é um espaço que se sustenta por uma prática mais higiênica e ecológica. Por excluir a possível proximidade dos vivos com os corpos em decomposição, que pode causar doenças, e até mesmo contaminar o solo, o ar e possíveis lençóis freáticos.
Figura 10 - Cemitério Jardim João XXIII, Porto Alegre. Fonte: https://twitter.com/nao_muito/status/1035894565188841472 34 A MORTE E A CIDADE
AFASTAMENTO COM A MORTE Ritualizar e sepultar os mortos é um rito que faz parte de praticamente todos os grupos humanos, desde que se conhece a história dos povos mais primitivos até o momento contemporâneo, onde se percebe um caminho de distanciamento dos vivos em relação a este assunto pois a presença nesses rituais e o pensamento sobre a morte acabam incomodando à muitas pessoas. Nos tempos da Roma Antiga por exemplo, onde os rituais funerários costumavam acontecer nas casas das famílias, até os momentos atuais em que segundo Castro (2012, p. 137) os velórios passam a acontecer mais “colocava-se uma moeda ou um pedaço de moeda na boca do falecido: era o “óbolo a Caronte”, o preço da passagem exigido pelo barqueiro dos Infernos. O corpo era então retirado do quarto e, com os pés virados para a porta de entrada, levado para o átrio da casa (a parte pública), onde ficava exposto sobre um leito cerimonial, cercado de tochas e lamparinas, rodeado de flores e essências perfumadas” (GODELIER; VOISIN, 2017, p. 73)
frequentemente em casas velatórias de igrejas ou de cemitérios onde vão só os que querem ou que se sentem realmente confortáveis para presenciar estes momentos. Ainda segundo castro, percebese o distanciamento ao assunto até mesmo nos noticiários de televisão, em que se fala muito sobre mortes em catástrofes e por violência, como na notícia do atentado de 11 de setembro em Nova
Iorque, que se relembra todos os anos, falando do número de mortos, mas não se fala sobre a morte de fato e como lidar com a situação. Enquanto em um tempo era muito comum que se enterrasse cadáveres dentro de igrejas, locais de intenso e constante contato e aproximação dos mortos com as pessoas vivas, como visto nos tópicos anteriores, quando as pessoas passaram a distanciar-se da morte, os mortos segundo Castro (2013) acabam sendo colocados em locais que se perdem na paisagem, em meio a jardins ou no interior de um edifício com aparência comercial. Mesmo com a existência de antigos cemitérios e necrópoles com cruzes anjos e túmulos, ainda existe forte tendência de tornar o morto e sua casa, algo neutro que pode passar despercebido em meio ao cotidiano dos vivos. A partir de então, ainda segundo Castro (2012, p. 138) começam a aparecer lugares com diferentes concepções de sepultamento como os crematórios e os cemitérios jardins que afastam a lembrança do tradicional sepultamento com seus jardins repletos de flores e árvores, lembrando um parque. Se a ideia é fazer desaparecer por completo, segundo Ariès (2012) a cremação pode ser interpretada como a maneira mais eficaz e radical de fazer com que tudo o que existe do corpo desapareça em meio às cinzas, além de não necessitar utilizar do espaço na terra para abrigar um corpo.
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PARTE II Capítulo III: SÍMBOLOS E ATMOSFERAS A parte II deste trabalho estuda o simbolo como métrodo de representação e relação da natureza com o sagrado. Afim de desenvolver um projeto que integre o espaço natural com o profano, para garantir uma arquitetura monumental e simbólica, que seja coerente e sensível com o tema da morte.
SÍMBOLOS E ATMOSFERAS
CAPÍTULO III
SÍMBOLOS E ATMOSFERAS Os símbolos estão presentes na vida cotidiana, como formas de representação. A partir de estudo dos conceitos do psiquiatra Carl Jung, entende-se que os símbolos podem ser nomes, termos ou imagens que possuem geralmente um conteúdo que ultrapassa os limites do seu significado convencional. Provoca algo vago, fora do conhecimento geral e que esteja fora do seu significado imediato, isso porque a nossa própria mente ao entrar em contato com um símbolo, conduz às ideias que podem estar fora do alcance da razão. Pelo fato de que existem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana, Jung (2008, p. 19) afirma que se utiliza dos símbolos justamente para representar os conceitos não entendidos ou entendidos parcialmente pelas pessoas. Podendo-se utilizar como exemplo, as religiões, que utilizam da imagem como linguagem simbólica para contar suas histórias. Para Eliade (2002, p.8), a realidade é revelada por aspectos profundos através dos símbolos. Afim de preencher uma função e responder a uma necessidade. Eles visam revelar as mais secretas modalidades do ser. A morte, que apesar de como fato em si ser uma das únicas certezas na vida, fazendo parte do ciclo natural de viver, crescer e morrer, gera nos humanos muitas incertezas, e desejo de descobrir o que acontece após a morte. Seria ela o fim de toda uma existência? Ou a passagem para uma outra forma de vida? Por isso, entende-se que os símbolos são usados no caso da morte, como uma tentativa de narrar e representar o que se entende, imagina ou deseja que aconteça após a morte.
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A NATUREZA E O SAGRADO A beleza da natureza toca-nos com algo grande que nos transcende. O homem vem da natureza e a ela torna. (ZUMTHOR, 1999. P,58)
Pretende-se na primeira parte deste capítulo, com base nas obras de Mircea Eliade, apresentar algumas das imagens carregadas de cargas simbólicas que são utilizados nos espaços sagrados, exemplificando a partir da utilização por povos e grupos de diversas partes do planeta e períodos do tempo. Tais elementos se veem como importantes para o estudo de caráter simbólico do local escolhido para o projeto e do desenvolvimento de elementos e espaços arquitetônicos que possam garantir uma carga de simbolismo necessária para um uso sensível do espaço, como o dos ritos funerários. Propõe-se no estudo de Mircea, a utilização do termo “hierofania” para indicar o ato de manifestação do sagrado. Que é a maneira que o homem toma para tomar conhecimento do que é sagrado, porque ele se manifesta em algo. Para alguns grupos, o sagrado se manifesta em objetos naturais, como pedras e árvores. Ato que acaba causando estranhamento para o homem ocidental moderno. Porém, segundo Eliade (1992, p.13), como são hierofanias, não se trata de uma veneração ou um culto da pedra como pedra ou da árvore como árvore, estes elementos “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado.
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Figura 11 - Haida House – Pilar sagrado e casa cultual dos Kwakiutl. Fonte: <http://ssjocelinr.blogspot.com/2014/11/thenorthwest-coast.html> 42 SÍMBOLOS E ATMOSFERAS
PILAR SAGRADO [...] Do tronco de uma árvore da goma, Numbakula moldou o poste sagrado (kauwa auwa) e, depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. (ELIADE, 1992, p. 23)
Para determinados povos, o estabelecimento em um território depende da criação de um “mundo” seguro, e para isso, a definição de um espaço sagrado, muitas vezes acompanhados pela instalação de um pilar sagrado. Como citado por Eliade (1992), o poste “kuauwa auwa” moldado por Numbakula, dos povos achilpa (aborígenes australianos), representa um eixo cósmico que criou à sua volta, um território habitável, que representa o “mundo” deste povo. Como estão sempre em peregrinações, o poste era transportado junto, para que eles sempre estivessem em segurança, em seu “mundo”. A direção a se seguir era definida pela inclinação do poste. A comunicação com o Céu era sempre possível, pois permitia uma via aberta para o mundo dos deuses, além de ser elemento que sustenta o mundo deles. Portanto, caso o poste se quebrasse, seria uma catástrofe, de certo modo, o “fim do mundo”. Outro povo que também utiliza do elemento de um pilar como centro do “mundo”, exemplificado por Eliade (1992), são os Kwakiutl (povo indígena da Colúmbia Britânica). Para eles,
um poste de cobre é responsável por atravessar e fazer a conexão entre os três níveis cósmicos (o mundo de baixo, a Terra e o Céu), representado por um poste de cedro de cerca de 10 a 12 m de altura, que faz parte do edifício da casa de cultos e orações. Fincado no solo, representando abertura ao mundo de baixo, dos mortos, o poste garante a sustentação do céu e sua abertura com a terra. O pilar é importante por desempenhar e garantir uma estrutura cósmica à casa e às cerimônias nela realizadas.
Figura 12 - Kuauwa Auwa – Pilar sagrado do povo achilpa. Fonte: https://cristianaserra.wordpress.com/2014/08/15/ axis-mundi-o-eixo-cosmico/ [autor desconhecido] SÍMBOLOS E ATMOSFERAS 43
Figura 13 - Templo de Barabudur, em Java. Fonte: <http:// hoteltentrem.com/places/candi-borobudur/>
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MONTANHA CÓSMICA A montanha cósmica, devido a sua verticalidade e de estabelecer um local mais elevado, também se caracteriza como um elemento considerado por alguns grupos como “centro do mundo” e que proporciona ligação da Terra com o Céu, sendo um Axis mundi. Algumas dessas montanhas são reais ou míticas, naturais ou construídas pelo homem. Como exemplo, são citados pelo cientista das religiões Mircea Eliade, o monte Gerizim, chamado “umbigo da terra” na região da Palestina, a montanha “Monte dos Países” na Mesopotâmia, para a religião cristã, a Gólata – local onde Jesus foi crucificado. dentre outros. Esses locais, por serem a região mais alta, se considera que de certa forma tocam o Céu. Na arquitetura, a construção de templos que buscam a ligação do céu com a terra, são elementos inspirados no símbolo da montanha cósmica. Apresentados por Eliade, temos o templo budista Barabudur, localizado em Java
na Indonésia, onde a escalada equivale a uma viagem ao Centro do Mundo e ao chegar ao terraço superior, o peregrino penetra em uma “região pura” e sagrada, que fica acima do mundo profano. O Zigurate, que também é um templo construído considerado como montanha cósmica, fica localizado na região da Babilônia, possui sete andares, que representam os sete céus planetários e ao subir as suas escadas, os sacerdotes ascendiam ao topo do Universo. As pirâmides no antigo Egito, segundo Coutinho (2012) construídas como abrigo para o corpo do rei após a morte, teriam a função de conexão dos deuses com a vida na terra. O faraó sepultado no seu interior subterrâneo, estaria protegido contra os saqueadores de tumbas, além de representar o controle sobre tudo o que não se poderia controlar na natureza, sob uma montanha artificial. O seu cume apontado para o céu representa a passagem do faraó que está na terra, para o mundo do além, e a relação com a vida celestial.
Figura 14 - Templo Zigurat, Iraque. Fonte: Veja [autor: Thaer Jebur/iStock/Getty Images] SIMBOLOS E ATMOSFERAS 45
ÁGUA CÓSMICA O simbolismo aquático é apresentado antes da Terra Mater na obra “O sagrado e o Profano” pois segundo o autor Mircea Eliade, em termos religiosos, a Água existiu antes da Terra, tendo o meio aquático como maior estruturador à função do símbolo. As águas representam universalmente a soma do potencial de tudo que existe. “o reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e sustentam toda a criação” (ELIADE, 1992, p. 65). Na obra se faz uma análise de o que a imersão e emersão de algo em um meio aquático pode significar em relação a criação das formas. A imersão na água por um lado simboliza a regressão da forma, ou
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seja, volta a um estado anterior de existencia, como se houvesse uma dissolução da forma. Por outro lado, a emersão na água simboliza a criação, “repete o gesto cosmogênico da manifestação formal.” (ELIADE, 1992, p. 65). De certa maneira, pode-se entender nesta relação de imersão e emersão na água como um processo de criação e destruição, morte e renascimento. Uma vez que o contato com a água causa regeneração. Por um lado pela dissolução da matéria, cria-se outra, e por outro, a imersão fertiliza o meio aquático, criando novas possibilidades e multiplicando o potencial de vida (ELIADE, 1992, p. 66). Figura 15 - Rituais Hindus no Rio Ganges, Índia. Fonte: https://tvi24.iol.pt/internacional/tvi24/hindus-celebram-ritual-de-banhos-no-rio-ganges
TERRA MATER O profeta indiano Smohalla, da tribo Unatilla, recusava se a trabalhar a terra. “É um pecado”, dizia, “ferir ou cortar, rasgar ou arranhar nossa mãe comum com trabalhos agrícolas.” E acrescentava: “Vós pedis me que trabalhe o solo? Iria eu pegar uma faca e cravá-la no seio de minha mãe? Mas então já não poderei entrar em seu corpo para nascer de novo. Pedis me que corte a erva e o feno, e que o venda, e que enriqueça como os brancos? Mas como ousaria eu cortar a cabeleira de minha mãe?” (ELIADE, 1992, p. 69)
A terra aparece no estudo de Mircea Eliade, como uma imagem de “Terra mãe”, como um elemento natural que trás o nascimento e vida a todos os seres. Segundo crenças mediterrâneas citadas pelo autor em que se crê no ato do homem ser parido pela terra. Crianças nascem do fundo da terra, das cavernas, das grutas, das fendas, ou até mesmo da água, pelos mares, fontes ou rios. O sentimento de pertencimento a um lugar é ressaltado pela ideia muito forte dos povos europeus que sobrevive até os dias atuais. Um sentimento de solidariedade mística com a Terra natal (ELIADE, 1992, p. 70). A ligação de terra e morte, apresentada por Eliade como o reencontro com a Terra mãe, vem do ato de ser enterrado em solo natal. Ou seja, os restos físicos de uma pessoa ficam no mesmo território de sua cidade de nascimento, ou que se considera sua cidade de crescimento. Como exemplo, Eliade cita as inscrições sepulcrais
romanas, que retratam o anseio de ter as cinzas deixadas em outros lugares, ou o pronunciamento dado em cerimônias funerárias chinesas, “Que a carne e os ossos voltem à Terra” (ELIADE, 1992, p. 70). Manifestando a relação de que o corpo surgiu da terra e deve voltar a ela.
Figura 16 - Pedreira do Morato, Piracicaba-SP. Foto: Wanderdrone. Fonte: Acervo Pessoal. SÍMBOLOS E ATMOSFERAS 47
Figura 17 - Fotografia de um Carvalho. Fonte: https://orixaessenciadivina.wordpress.com/2015/09/21/conheca-10-arvores-sagradas/ 48 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
ÁRVORE CÓSMICA A simbologia da árvore está relacionada com a representação do cosmos, de seus ritmos e ciclos, como a capacidade da natureza de se regenerar e se renovar periodicamente. Trazidos por Eliade (1992), temos como exemplos de árvores que representam o símbolo da regeneração cósmica, a Yggdrasff na mitologia germânica, a Árvore da Vida e a da Juventude, na Mesopotâmia, da Imortalidade na Ásia e no Antigo Testamento e a da Sabedoria no Antigo testamento. O mistério da vida é revelado a partir dos ritmos da vegetação para o homem religioso, assim como também da criação, renovação, juventude e imortalidade. O culto à vegetação em uma experiência religiosa não depende diretamente à ideia profana da natureza como primavera e outono em ciclos de renovação, mas se justifica pela valorização da primavera como ressurreição (ELIADE, 1992, p. 74).
TRAJETOS E PASSAGENS Os conceitos dos símbolos existentes por trás de portas e pontes estão relacionados, segundo Eliade (1992), com a ideia de passagem. A porta, caracteriza uma abertura que permite a passagem de um local a outro. Pode simbolizar a passagem de uma forma a outra, ou de uma situação existencial a outra. O homem, está predestinado pela passagem vida-morte, em que se passa de um momento a outro, de um estado físico e de existência, a outro. Quando
se tratando de uma abertura zenital, ou seja, superior, simboliza-se a passagem para o céu, ou a Ascenção ao céu. “Em certas culturas (por exemplo, China protohistórica, Etrúria etc.) as urnas funerárias têm a forma de casa: apresentam uma abertura superior que permite à alma do morto entrar e sair” (ELIADE, 1992, p. 86). Neste caso, a passagem por uma abertura, pode simbolizar a passagem de um plano cósmico a outro, saindo do mundo profano e entrando no mundo sagrado. Existe a ideia de uma passagem perigosa, associada as imagens de pontes ou aberturas estreitas. Muito presentes nos rituais iniciáticos ou funerários. Como exemplo, se apresenta a ponte Cinvat da mitologia iraniana. Os defuntos atravessam ao seu destino nesta ponte de nove comprimentos de lança em sua largura que se entende sobre um vasto buraco que dá acesso ao Inferno (ELIADE, 1992, p. 87). Ainda trazido por Eliade, outro exemplo, uma ponte que atravessa o Inferno na tradição finlandesa, que é coberta de elementos cortantes como agulhas, pregos e lâminas. Utilizada pelos mortos para ir ao outro mundo.
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DESSACRALIZAÇÃO DA NATUREZA Para Mircea Eliade, não existe homem no mundo, por menos religioso que seja, que não se encante com a natureza. Além dos valores estéticos, desportivos e higienistas, existe um sentimento de dúvida com certa dificuldade de se definir em que se é possível reconhecer uma recordação degradada da experiencia religiosa. Um conjunto de água, árvores, montanha e gruta desenvolve uma ideia de local perfeito, completo. Representação de um mundo em miniatura. “[...] Nos tempos mais antigos, era um espaço privilegiado, mundo fechado, santificado, onde rapazes e moças se reuniam periodicamente para participar dos mistérios da Vida e da fecundidade cósmica” (ELIADE, 1992, p. 76). A ideia deste conjunto (montanha, lago, gruta e arvores) se caracteriza um espaço sagrado para os taoístas, por representar uma espécie de um miniuniverso paradisíaco que emite forças místicas. Entende-se a partir do que é apresentado pelo autor em relação a este espaço, uma junção dos outros elementos estudados anteriormente. A água como meio para dissolver-se e voltar a um estado anterior da matéria a partir da imersão, ou de criar-se o novo a partir da emersão; a terra considerada como “terra mãe”, terra natal, carregada com o sentimento de pertencimento à um local e também como matéria natural que dá o surgimento da vida; A montanha como representação do centro do mundo e de meio de acesso ao mundo sagrado; o pilar sagrado como ponto de referência que carrega o significado de 50 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
conexão entre os meios cósmicos e de sentimento do seu entorno como sendo o mundo. Levando o significado do pilar cósmico como ponto de referência para objetos, por exemplo, um terço ou um escapulário de um cristão, que o carrega sempre para sentir-se seguro, em meio a uma força protetora. O complexo (montanha, água, gruta, árvore) poderia ser um pilar cósmico. Um local, repleto de forças e símbolos que permitem conexão aos diversos universos, com o mundo sagrado. Pretende-se na decisão de escolha do terreno para o exercício deste projeto, um local como este. Uma vez que a morte é carregada de incertezas e inquietudes, forças e sentimento, e a necessidade de um tratamento sensível para pessoas em momentos débeis de consciência, o estudo das obras de Mircea Eliade tem sido essencial para encontrar respostas e caminhos, guiando na busca e na análise do local ideal.
ARQUITETURA E ATMOSFERA A atmosfera em arquitetura trata-se da sensação de perfeita concordância com o espaço construído que se comunica diretamente àqueles que o contemplam e utilizam o seu entorno. Está ligada à uma característica estética de qualidade arquitetônica que de alguma maneira possa comover as pessoas, que faça olhar e sentir (ZUMTHOR, 2006). Afim de buscar referências para o desenvolvimento de um projeto para ritos funerários que seja sensível com o tema e para as pessoas, e crie uma experiência forte e diferenciada das tradicionais, buscou-se o entendimento do conceito da atmosfera em arquitetura. Toma-se como base para a discussão neste capítulo, alguns dos pontos discutidos por Peter Zumthor em seus livros. Para ele, tais pontos são fundamentais na formação de qualidade no espaço arquitetônico. Os aspectos tratam tanto de características físicas estruturais, layout, materiais e relações com o entorno. O corpo da arquitetura é um dos pontos tratados. Zumthor (2006) faz uma comparação com o corpo humano e sua anatomia, as coisas que não vemos, que estão dentro da estrutura. A estrutura de uma arquitetura seria equiparada com a massa corpórea de um ser humano. Os acabamentos dos espaços e da envoltória de um edifício, equivalem à pele e as roupas usadas pelas pessoas.
A arquitetura pode ser ouvida? A maioria das pessoas diria provavelmente que, como a arquitetura não produz sons, não pode ser ouvida. Mas ela tampouco irradia luz e, no entanto, podemos vê-la. Vemos a luz que ela reflete e desse modo adquirimos uma impressão da forma e do material. Recintos de formatos e materiais diferentes reverberam de modo diverso (RASMUSSEM, 1998, P.233).
Som e temperatura são aspectos captados pelos sentidos humanos. Segundo Zumthor (2006), os espaços misturam, amplificam e transmitem os diversos sons produzidos em seu uso, como por exemplo: conversações, portas batendo, teclados de computador, televisões, vento pela janela. Porém, a arquitetura também emite o seu próprio som característico. O autor afirma que mesmo cessando tudo o que produza ruído em um edifício, poderemos ouvir o seu som. Que sem ruídos adicionais, é algo diferente e charmoso. Se tratando da temperatura no espaço arquitetônico, Zumthor (2006) exemplifica com um projeto em que utilizou da madeira como principal material. Neste edifício, enquanto no exterior o sol era escaldante e fazia muito calor, o interior se parecia com o frescor de um bosque. E inversamente enquanto no exterior fazia frio, o interior estava sempre mais quente. Portanto, se deve utilizar dos melhores materiais para garantir um espaço equilibrado fisicamente e psiquicamente. A maneira como ouvimos ou SIMBOLOS E ATMOSFERAS 51
como nos sentimos na arquitetura, vai depender da forma dos espaços, dos materiais e a maneira como estão sendo utilizados. Segundo Zumthor (1999, p.10), os materiais, ou a pele dos edifícios, quando em contexto com um objeto arquitetônico, podem criar qualidades poéticas. Porém, como os materiais por si só não são elementos poéticos, existe a necessidade de criar uma coerência da forma e sentido no objeto arquitetônico. “O sentido nasce quando se consegue criar no objeto arquitetônico significados específicos de certos materiais que só neste singular objeto se podem sentir desta maneira” (ZUMTHOR, 1999. P.10). Quando se trata de materiais, também tratamos da cor. Segundo Rasmussem (1998, p.226), o caráter de um edifício e o espírito que pretende transmitir está diretamente ligado à cor utilizada, da maneira correta. Espaços claros podem trazer a sensação de alegria e festividades. Enquanto, em outro pode ter um ar austero e eficiente, ideal para trabalho e concentração. Neste trabalho, se tratando de edifícios para momentos tristes, em que as pessoas se sentem desamparadas, deve-se tomar o cuidado na utilização das cores e materiais, para que o espaço possa acolher e tornar a situação mais aconchegante, principalmente em salas de velórios e de cerimônia de cremação. Outro aspecto importante apresentado por Zumthor (2006) trata-se das dimensões e distâncias da arquitetura relacionada com o corpo humano, ou seja, da escala. Quando temos uma grande passagem intimidadora de um edifício, 52 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
temos uma relação de massa arquitetônica versus corpo humano muito grande. Os edifícios podem ser maiores que eu ou muito maiores que eu. Em uma catedral, em que os vãos alongados se juntam da maneira correta, se obtém a sensação emocionante, que muitas vezes deixa os visitantes sem folego. Diferentemente de uma situação em que a mesma dimensão é aplicada a uma única seção de parede. Nesta, provavelmente, as sensações não seriam as mesmas. (RASMUSSEM, 1998, p. 129)
Figura 18 - Interior da Igreja da Sagrada Família, Barcelona. Fonte: Acervo pessoal.
O fato de que nos movemos e como nos movemos na arquitetura é tratado, apresentando a ideia de sossego e sedução. Peter Zumthor (2006) compara a arquitetura com a música, no sentido de serem ambas artes temporárias, que não se pode desfrutar e conhecer somente no primeiro contato nem nos primeiros segundos. É importante pensar em como nos movemos dentro de um edifício e da importância no papel de quem o projeta, de induzir as pessoas a se moverem livremente. Quando temos um espaço que cria uma atmosfera de sedução ao invés de condução, temos um espaço de qualidade. O autor traz um hospital para exemplificar que ao mesmo tempo em que nos seus corredores as pessoas são conduzidas, elas também podem se deixar seduzir e descobrir o local pausadamente. No projeto de arquitetura, se deve tomar o cuidado de não criar labirintos. Introduzindo sinais que ajudem na orientação, que conduzam as pessoas, mas que ao mesmo tempo, as deixem livres para explorar. As relações de espaço interno e externo são apresentadas por Zumthor (2006) com a ideia de que pegamos uma parcela da terra, cortamos um pedaço para colocar a nossa construção, e criar o espaço de dentro e o espaço de fora. E essa arquitetura tem uma fachada que passa informações para quem à observa, mas muitas vezes não revela de imediato o que existe no interior. O espaço e seus componentes imateriais como a luz, os odores e os sons são elementos que envolvem a partir da percepção, a interação de um indivíduo com a arquitetura. A luz natural
pode ser um parâmetro de concepção para um projeto. Enquanto para alguns arquitetos ela é somente uma circunstância, para outros se trata de um material construtivo equiparado ao tijolo ou concreto (BARNABÉ, 2007). A luz é elemento fundamental no processo do conhecimento do mundo físico. Com ela, é possível dar forma e sentido a entidades materiais confinadas em meio à sombra do universo. Além de construir as relações de espaço e dimensão na mente de um usuário. O uso da luz natural como diretriz em um projeto de arquitetura demanda a valorização não somente de aspectos técnicos, mas também dos aspectos poéticos (BARNABÉ, 2007). Quando falamos de luz, também deve-se lembrar que a sombra existe e que ela vem antes da luz. Louis Khan é um arquiteto de referência quando se trata do pensar um espaço tendo a sombra como elemento compositivo e que dá forma a lugares de silêncio. “Uma planta de um edifício deve ser lida como uma harmonia de espaços na luz. Mesmo um espaço que busca ser escuro deve receber um pouco de luz através de alguma abertura misteriosa, apenas para nos dizer o quão escuro ele realmente é. Cada espaço deve ser definido por sua estrutura e pelo caráter de sua luz natural” (Louis Khan, citado por SCHIELKE, 2013).
Clarear um ambiente é diferente de iluminar. Ao iluminar um ambiente se da expressão à valores de um projeto, através do controle e forma de uso da luz natural que SIMBOLOS E ATMOSFERAS 53
entra. Segundo Barnabé (2007), a luz funciona como elemento facilitador para percepção de fenômenos. O arquiteto Peter Zumthor (2006) propõe uma observação do espaço, identificando lugares onde a luz destaca, e outros que ficam mais apagados, entendendo as relações de profundidade. E reforça a importância de colocar os materiais desejados para revestir os ambientes sob a luz, para entender como funcionam as reflexões. Tais reflexões, segundo Barnabé (2007), somente são percebidas por conta da nossa visão. O sentido responsável por captar mais de 80% das informações e sensações. Os elementos e materiais somente são revelados por conta da luz. E a complexidade visual de um ambiente são distinguidas pelas variações de locais mais iluminados, penumbras e sombras. A valorização da mutabilidade dos lugares acontece quando as gradações de luz concebem os diferentes espaços e efeitos. Como a diferenciação entre cheios e vazios, claro e escuro, reentrâncias e saliências, massificações e rarefações, densidades e transparências, pesos e levezas (BARNABÉ, 2007). A Catedral Metropolitana de Brasília, projetada por Oscar Niemeyer, serve como exemplo para a importância das gradações de luz ao percorrer de um caminho, marcando uma transição. Do lado de fora, na esplanada, estamos em um local aberto e com grande luminosidade direta do céu. Ao dirigir-se à entrada da catedral, que se dá a partir de uma rampa em sentido ao subterrâneo, encontra-se em um ambiente que 54 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
em determinado momento do dia é praticamente tomado pela escuridão. Passando por este corredor escuro, começa-se a perceber uma luz no seu fim, proveniente da catedral. Quando entramos de fato na nave principal, depara-se com um ambiente de iluminação heterogênea, por resultado dos grandes vitrais. Este trajeto de diferentes condições de iluminação marcam e trazem a simbologia de passagem de um espaço profano ao sagrado.
Figura 19 - Indian Institute of Management. FOTO: Alessandro Vassela, 1978. FONTE: https://www.archdaily.com.br/br/01112181/light-matters-louis-kahn-e-o-poder-da-sombra
Figura 20 - Entrada da Catedral Metropolitana de Brasília. Fonte: Google Street View
Figura 21 - Interior da Catedral Metropolitana de Brasília. Fonte: https://br.pinterest.com/ pin/481744491381264775/?lp=true SIMBOLOS E ATMOSFERAS 55
A MORTE PAULISTA ESPAÇOS E REPRESENTAÇÕES A obra “Cidade dos Vivos” de Renato Cymbalista , estuda as formas de representação simbólica e apropriação dos cemitérios em cidades do estado de São Paulo. Dentre as características, podemos destacar a existência da religiosidade, monumentalidade, domesticidade e humildade em que se tratando das morfologias de representações simbólicas, trazemos os altares, torres e obeliscos, cruzes, capelas e casas, flores e jardins. Religião e ritos funerários andam juntos desde longos períodos de tempo e os cemitérios não deixam de ser espaços secularizados, se caracterizam como local de alta sacralização em uma cidade. As referências cristãs, segundo Cymbalista (2002), estão presentes em maior parte como expressão de religiosidade nos cemitérios paulistas, sendo a maioria católicos, mas não a única. Os cemitérios, não fazendo mais parte do território da igreja e, portanto, com veto eclesiástico à monumentalização dos túmulos, permite que as famílias se encontrem na vontade de representar a monumentalidade sem mediação religiosa. Aparecem como fatores que motivam o desejo de monumentalidade: o sentimento republicano, mentalidade burguesa – representada por meio de alegorias, a laicização da sociedade – que produz referencias 56 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
questionadoras ao poder da Igreja, o consumismo das elites – tomadas como referência as modas europeias. (CYMBALISTA, 2002, pp. 77,78). Renato destaca que o modelo funerário monumental surge como criação do cemitério de caráter permanente, que persiste no tempo e se apropria de diferentes níveis da sociedade. Podemos observar que ao longo do século XX, o poder público tende a reforçar a monumentalidade, tendo como exemplo a cidade de Piracicaba, que planeja uma avenida radial (Avenida Independência) que passa em frente ao cemitério da Saudade, dando visibilidade ao seu novo grande portal. A domesticidade está relacionada, segundo Cymbalista, com uma nova afetividade das pessoas com os familiares, baseada no reconhecimento de família como núcleo, em uma delimitação de um espaço íntimo em meio a sociedade. Enquanto na Europa, esta passagem durou séculos, no Brasil foi muito rápido, as famílias passaram a se escandalizar com a falta de identidade e mistura de cadáveres em uma mesma cova. Desta forma, passou-se a venerar os mortos e criou-se apego ao local de enterro. (CYMBALISTA, 2002, p. 80). Conforme avançamos no século XX, em que a relação do homem com a morte entra em estágio de tabu, silenciada pelo terror provocado ao
pensar nela, percebe-se segundo Cymbalista o surgimento de túmulos mais horizontais e silenciosos, com detalhes simplificados que caracterizam a humildade com a morte e seus signos. Ao entrar em um cemitério, nos deparamos com tentativas de encontrar a representação da morte, que tomaram forma antes da mudança do pensamento da morte como tabu. Os altares, dedicados a algum santo, são uma das principais representações trazidas do interior das igrejas. Devido aos registros de sepultamentos junto à altares em diversos momentos na história, este ato é tomado como prestígio e podemos encontrar diversos altares com homenagens espalhados pelos cemitérios. Segundo Cymbalista, além da religiosidade, é possível perceber na forma, uma busca por monumentalidade. No final do século XIX, aparecem túmulos que buscam os céus – é a tendência à verticalidade. Com a forma de torres e obeliscos, que caracterizam monumentalidade mais elevada do que nos períodos anteriores. Porém, estes acabam se distanciando das tradições religiosas, por não prescindir a referencias sacras, de certa forma, querendo diferenciar de elementos trazidos do interior das igrejas e com o caminho de se dirigir à certa individualidade e heroicidade do morto. (CYMBALISTA, 2002, pp. 86,87) A sacralização cristã nos cemitérios é evidenciada pelo aparecimento da cruz, em praticamente todos os túmulos e em todas as modalidades possíveis. Além disso, todos os cemitérios contam com uma cruz em posicionamento privilegiado
onde se cultuam os mortos, de maneira geral, um cruzeiro chamado de “cruz das almas”. (CYMBALISTA, 2002, pp. 87,58) Além da cruz, as capelas começaram a ocupar os cemitérios brasileiros algumas décadas depois da ocupação na Europa. Apesar do fato de saída dos mortos das igrejas não ter causado grandes revoltas, algumas famílias sentiram em ver o espaço de culto religioso sem a presença dos mortos e por isso, incorporaram estes espaços em meio aos cemitérios. Além de mostrarem ligação entre o mundo da morte com a religião, as capelas trazem forte representação da família. Enquanto os monumentos comemorativos marcam a lembrança de uma pessoa, as capelas marcam um edifício “privado” familiar dentro do espaço público do cemitério, onde são sepultados diversos membros de uma mesma família. Os jardins são elementos utilizados na plasticidade das representações funerárias dos cemitérios. Seja como monumentalidade ou ornamento vivo para os túmulos, a vegetação mostra a chegada de diferentes maneiras de tratar a morte. Cymbalista traz o exemplo do Cemitério do Campo, na cidade de Americana -SP. Construído pelos imigrantes americanos no século XIX. Por serem protestantes, não poderiam ser enterrados nos cemitérios existentes, por isso criaram o seu próprio, longe da cidade e que toma a vegetação como elemento principal, que não está presente somente em alguns túmulos ou formando alamedas centrais, mas está por toda parte, compondo a paisagem. SIMBOLOS E ATMOSFERAS 57
Por volta de 1960 os cemitérios jardins começam a aparecer em São Paulo. São ecumênicos e, portanto, permitem que pessoas de qualquer religião sejam sepultadas ali. Toda a figuração e simbolismo trazidos pelas formas como a monumentalidade, religiosidade e domesticidade não fazem parte da configuração destes cemitérios. Em Piracicaba, temos o Parque da Ressurreição, como um dos exemplares. (CYMBALISTA, 2002). Não só os cemitérios jardins, mas o aparecimento de túmulos horizontais e mais simples trazem a percepção da chegada do silenciamento nas representações funerárias. Como um contraponto formal, o silêncio arquitetônico deixa de lado as ideias de monumentalidade da arquitetura, pelo fato da morte ser considerada um fenômeno obsceno, um grande tabu, nas novas relações com o homem.
58 SIMBOLOS E ATMOSFERAS
Figura 22 - CemitĂŠrio da Saudade de Piracicaba-SP. Fonte: http://www.camarapiracicaba.sp.gov.br/apos-denuncia-pedro-kawai-visita-cemiterio-da-saudade-18860
SIMBOLOS E ATMOSFERAS 59
PARTE III
Capítulo IV: REFERÊNCIAS PROJETUAIS Capítulo V: O LUGAR Capítulo VI: MÉTODOS E RITOS Capítulo VII: PROJETO - PROPOSTA INICIAL A parte III deste trabalho trata dos assuntos mais diretos e técnicos para o desenvolvimento do projeto. Como referências projetuais e conceituais, características e levantamentos da cidade, entorno e local escolhido como terreno, características técnicas para o desenvolviemnto de espaços funerários, apresentação do programa de necessidades e propostas iniciais.
REFERÊNCIAS PROJETUAIS
CAPÍTULO IV
FIG. 23 62
CAPELA DE CAMPO BRUDER KLAUS
Figura 24 - Imagem de satélite. FONTE: Google Earth
FICHA TÉCNICA Por: Peter Zumthor; Ano: 2007; Localização: Mechernich, Alemanha
Figura 25 - Planta da Capela de campo Bruder Klaus. Foto: Samuel Ludwig. Figura 23 - Capela de campo Bruder Klaus. Foto: Samuel Ludwig. Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/01-55975/ capela-de-campo-bruder-klaus-peter-zumthor
Esta capela, possui algumas características interessantes para se considerar nas análises de referências projetuais deste trabalho. A começar pela sua inserção no espaço, o pequeno edifício construído por agricultores se insere em meio ao campo de uma área rural, longe das interferências da cidade e aqueles que desejam visita-la devem ir a sua busca. O segundo ponto a se observar se trata do contraste das formas, pelo lado de fora a geometria dura e rígida do concreto esconde a forma orgânica, mística e íntima do seu interior, que convida o visitante à reflexão. O terceiro ponto a se observar é sobre a sua forma de construção para chegar ao resultado que vemos. Primeiramente foram colocados 120 troncos de árvores de cerca de 12 metros de altura formando a volumetria interna da capela, com sua entrada e uma abertura na parte mais alta, então vieram as formas de concreto, concretadas uma a uma até encobrir toda a estrutura, enfim, queimouse lentamente os troncos no interior, para que pudessem ser retirados. Por fora, temos a estrutura lisa e por dentro toda texturizada, com a forma que os troncos deixaram no concreto. Ao olhar este projeto em planta, percebe-se que sua forma interior se parece como um ventre, ou o interior humano, e em corte, percebe-se que ao entrar no edifício, o olhar é redirecionado imediatamente para cima, onde a abertura traz luz. REFERÊNCIAS PROJETUAIS 63
Figura 26 - Corte da capela de campo Bruder Klaus. Foto: Samuel Ludwig. Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/0155975/capela-de-campo-bruder-klaus-peter-zumthor
Figura 27 - Etapa de construção da capela de campo Bruder Klaus. Foto: Samuel Ludwig. Fonte: https://www.archdaily. com.br/br/01-55975/capela-de-campo-bruder-klaus-peter-zumthor
“...Para mim, os edifícios podem ter um charmoso silêncio que associo com atributos como compostura, durabilidade, presença e integridade, e também com o calor e sensualidade; um edifício que está sendo ele mesmo, sendo um edifício, que não representa nada, somente é...” (Peter Zumthor)
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REFERêNCIAS PROJETUAIS
Figura 28 - Abertura para o céu - Capela de campo Bruder Klaus. Foto: Samuel Ludwig. Fonte: https://www.archdaily. com.br/br/01-55975/capela-de-campo-bruder-klaus-peter-zumthor
Figura 29 - Capela de campo Bruder Klaus - portal de entrada. Foto: Samuel Ludwig. Fonte: https://www.archdaily. com.br/br/01-55975/capela-de-campo-bruder-klaus-peter-zumthor
A temática da luz neste projeto também é muito importante. Completamente de fonte natural, a luz entra pela porta, pela abertura no teto e por pequenos orifícios feitos nas paredes de concreto. A primeira a se perceber é a que vem do teto, que chama a atenção quando se entra no edifício, a partir do corte é possível perceber que a curva direciona para o foco de luz. O espaço de oração que além de iluminado de cima, tem os pontos de luz vindos das paredes. Ao se direcionar para a porta, percebe-se que a luz indica a saída.
Estudar este edifício de Peter Zumthor é essencial quando se tem como objetivo o desenvolvimento de um projeto de tema sensível e que deve ser dotado de simbolismos e relações com os elementos da natureza. A atmosfera criada na capela de campo Bruder Klaus é única. Trata de contrastes entre formas. Ao mesmo tempo em que é liso e reto por fora, o seu interior se diverge, com sua forma irregular e texturizada. Além de termos a luz se impondo sobre as paredes escuras.
REFERÊNCIAS PROJETUAIS 65
FIG. 30 66 REFERÃ&#x160;NCIAS PROJETUAIS
CREMATÓRIO STATIE STUIFDUIN
Figura 31 - Imagem aérea do crematório Statie Stuifduin. FONTE: Google Earth
FICHA TÉCNICA Arquitetura: a2o-architecten; Ano: 2018; Localização: Norbert Neeckxlaan, Bélgica.
Figura 32 - Crematório Statie Stuifduin. Foto: Stijn BolaerFonte: https://www.archdaily.com.br/br/899393/crematorio-statie-stuifduin-a2o-architecten
Este crematório na Bélgica também se localiza junto a um parque cemitério público e faz parte integrante da paisagem. Utiliza-se do equilíbrio com a natureza como potencialização do sagrado. Os arquitetos incorporaram um projeto de paisagismo que recriasse as condições naturais da região, com o propósito de garantir uma “paisagem intocada”. A morte como um ritual de passagem é expressa na arquitetura deste edifício pelos caminhos e trajetos a serem percorridos. A utilização de elementos que se repetem (os pilares) cria uma sequência que guia as pessoas entre os diversos momentos. O complexo é dividido em três edifícios que se conectam com corredores e um pátio central aberto que integra e aproxima ainda mais a paisagem. No primeiro edifício acontecem as cerimônias, o segundo é o crematório, e no terceiro existem salões de reuniões.
Figura 30 - Crematório Statie Stuifduin. Foto: Stijn BolaerFonte: https://www.archdaily.com.br/br/899393/crematorio-statie-stuifduin-a2o-architecten REFERÊNCIAS PROJETUAIS 67
Figura 33 - Planta do crematรณrio Satatie Stuifduin modificada pelo autor.
68 REFERร NCIAS PROJETUAIS
Na planta baixa à esquerda, podese observar a separação dos três “blocos”. Observando da esquerda para a direita, o primeiro é o local onde se localizam os fornos de cremação. Percebe-se a existência de uma précâmara, denominada como “sala de acesso aos fornos”, a imagem abaixo demostra o local. O segundo edifício, abriga os salões de cerimônias, denominados como auditórios, demonstrados na segunda imagem abaixo. Sendo dois salões, um deles é maior, com 200m² e outro menor, com 142m². Cada salão conta com um espaço de acesso destinado à dar as condolências à família, salas de apoio , sanitários e depósitos. Estes ssalões são locais onde de costume, as pessoas expressam os seus sentimentos e relembram bons momentos da pessoa falecida. As cerimônias podem ser religiosas ou não.
O terceiro edifício, à direita do complexo, é o maior e contempla a maior parte de salas de apoio que dão suporte aos três salões de reuniões. Nstas reuniões, que costumam acontecer após o enterro ou cremação. , família e convidados tomam café, comem bolos e salgados, em uma espécie de confraternização. Se observa que os três espaços mencionados possuem conexão com o exterior a partir de paredes, portas e janelas envidraçadas. Porém a altura destas aberturas é baixa, o que limita o campo de visão para a natureza e entorno que rodeia o edifício. O material utilizado, tijolos em tons de areia e vigas de madeira aproximam ainda mais a aparência do edifício com a natureza do entorno.
Figura 34 - Crematório Statie Stuifduin. Foto: Stijn BolaerFonte: https://www.archdaily.com.br/br/899393/crematorio-statie-stuifduin-a2o-architecten
Figura 35 - Crematório Statie Stuifduin. Foto: Stijn BolaerFonte: https://www.archdaily.com.br/br/899393/crematorio-statie-stuifduin-a2o-architecten REFERÊNCIAS PROJETUAIS 69
FIG. 36
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TEMPLO DAS CINZAS E CREMATÓRIO
Figura 37 - Imagem aérea do Templo das cinzas e crematório. FONTE: Google Earth
FICHA TÉCNICA Arquitetura: Juan Felipe Uribe de Bedout, Mauricio Gaviria, Hector Mejía; Ano: 1998; Áera: 3474m²;
Este edifício se localiza junto a um parque cemitério e cria caminhos e acessos que permeiam o entorno para o seu acesso. Contemplado por duas áreas principais, a Unidade de Cremação e o Templo das Cinzas são ligadas por um átrio circular com abertura zenital que permite a entrada de luz e ventilação além de proporcionar a vista para as chaminés de cremação. Entende-se que apesar de o elemento principal para a cremação, o fogo, ser oculto em projetos da mesma tipologia, ainda existe a exposição de características técnicas, neste caso o enfoque que se dá por esta abertura para as chaminés. O grande templo das cinzas é um edifício longitudinal que dispõe de nichos em dois pavimentos em forma de mezanino que recebem iluminação zenital, que muda ao passar das horas do dia, pela sua posição no terreno e das disposições das aberturas.
Figura 38- Fachada do Templo das cinzas e crematório. FOTO: Federico Cairoli. FONTE: https://www.archdaily.com.br/ br/881104/tempo-das-cinzas-e-crematorio-juan-felipe-uribe-de-bedout-plus-mauricio-gaviria-plus-hector-mejia REFERÊNCIAS PROJEATUAIS 71
Figura 39 - Planta do Templo das cinzas e crematรณrio modificada pelo autor. 72 REFERร NCIAS PROJETUAIS
A utilização da luz do sol, um dos principais fatores de existência da vida na terra, como elemento arquitetônico neste projeto é surpreendente por fazer uma contradição entre a morte como um submundo, sombrio e sem vida. As linhas de luz vindas da cobertura, estabelecem uma virtualidade espacial em que se constitui neste templo, uma metáfora em que os mortos se encontram mais próximos do paraíso do que do inferno. (SEGRE.Arcoweb).
Pareceram interessantes principalmente dois pontos do Templo das Cinzas e Crematório de Medelín para serem utilizados neste trabalho. Primeiro, a visão estratégica das torres de chaminé do crematório, que podem ser vistas pela abertura no pátio. Pois ao mesmo tempo em que se “esconde” o processo da cremação, ainda se sabe que ela existe ali. O segundo ponto, é a disposição do templo das cinzas. Um grande salão longitudinal, que tem as fileiras de lóculos dispostas em dois níveis.
Figura 40 - Pátio do Templo das cinzas e crematório. FOTO: Federico Cairoli. FONTE: https://www.archdaily.com.br/br/881104/ tempo-das-cinzas-e-crematorio-juan-felipe-uribe-de-bedout-plus-mauricio-gaviria-plus-hector-mejia
Figura 41 - Corte do templo das cinzas e crematório modificado pelo autor. REFERÊNCIAS PROJETUAIS 73
FIG. 42 74
CREMATÓRIO BAUMSCHULENWEG
Figura 43 - Imagem aérea do crematório Baumshculenweg. FONTE: Google Earth
FICHA TÉCNICA Por: Shultes Frank Architeckten; Ano: 2007; Localização: Berlim Alemanha.
Figura 44 - Salão contemplativo. Crematório Baumschulenweg. FOTO: Mattias Hamrén. FONTE: https://www. archdaily.com.br/br/01-95579/crematorium-baumschulenweg-slash-shultes-frank-architeckten
Este projeto se insere em meio à um parque urbano, substituindo o antigo crematório que sofreu com ações da segunda guerra. Com a proposta de trazer um lugar de silêncio e descanso (ArchDaily), espaços como o grande hall e suas 29 colunas com capitéis de iluminação zenital, permitindo conexões cosmológicas e um espaço sensível. Além da entrada de luz pelos pilares, os rasgos de luz guiam o caminho até as salas de cerimônias e nelas, até o caixão onde se encontra o defunto. Além da luz como elemento simbólico utilizado neste projeto, existe a água, colocada no centro do salão contemplativo. Percebe-se que o átrio de contemplação, no centro do projeto, é responsável por fazer a ligação e acesso para os salões de cerimônias e as salas administrativas e escritórios. Na planta baixa do pavimento térreo, temos uma área não pintada à esquerda. Ali estão os fornos de cremação, mas no nível do subsolo. Não existe contato direto dos visitantes com a ala de cremação, ou seja, vivos e mortos estão segregados neste projeto. Ao ver as paredes das fachadas laterais por fora, parece que tem 2 metros de espessura, mas na verdade, tem um espaço vazio em seu meio, como se pode ver nas plantas, ao lado das entradas.
REFERÊNCIAS PROJETUAIS 75
Figura 45 - Planta do pavimento térreo do crematório Baumschulenweg modificada pelo autor. 76 REFERÊNCIAS PROJETUAIS
Figura 46 - Planta do pavimento subsolo do crematรณrio Baumschulenweg modificada pelo autor. REFERร NCIAS PROJETUAIS 77
Figura 47 - Corte do crematรณrio Baumschulenweg modificada pelo autor.
78 REFERร NCIAS PROJETUAIS
Figura 48 - Salão do Crematório Baumshchulenweg. FOTO: Mattias Hamrén. FONTE: https://www. archdaily.com.br/br/01-95579/ crematorium-baumschulenweg-slash-shultes-frank-architeckten
Figura 49 - Fachada do crematório Baumshchulenweg. FOTO: Mattias Hamrén. FONTE: https://www.archdaily.com.br/ br/01-95579/crematorium-baumschulenweg-slash-shultes-frank-architeckten REFERÊNCIAS PROJETUAIS 79
TORRES DE OBSERVAÇÃO
Estes dois projetos de torres de observação são trazidos no trabalho como referência projetual com dois objetivos. O primeiro, de proporcionar um elemento arquitetônico que permita contemplação da paisagem e do horizonte. Em segundo lugar, mais uma possibilidade de destino das cinzas funerárias. A aspersão ao vento. A torre em Lommel, na Bélgica, é construída com estrutura metálica de seção circular. Os pilares formam triângulos, que por sua forma ajudam na questão estrutural e proporcionam diversidade FICHA TÉCNICA PROJETO: Ateliereen Architecten LOCAL: Lommel, Bélgica ANO: 2015 ALTURA: 30m
Figura 51 - Planta da torre de observação em LomFigura 50 - Torre de observação em Lommel. FONTE: https://www. mel. FONTE: https://www.archdaily.com.br/br/771246/ archdaily.com.br/br/771246/torre-de-observacao-lommel-ate- torre-de-observacao-lommel-ateliereen-archiliereen-architecten/553076d2e58eceb8770000a4-viewing-tow- tecten/5530781fe58ecee0080000a6-viewing-tower-lommel-ateliereen-architecten-floor-plan er-lommel-ateliereen-architecten-image 80 REFERÊNCIAS PROJETUAIS
em sua volumetria dependendo do ângulo de visão. Além do metal, outros materiais usados são a madeira, nos guarda-corpos das escadas e plataformas, e cordas, que revestem a fachada. O segundo projeto, na Lituânia, tem 25 metros de altura e é construído com estrutura metálica. Porém, ao invés de triângulos, a disposição dos pilares lembra um bosque de pinheiros. Sendo grandes pilares com pequenas derivações no topo, que sustentam as plataformas de observação.
FICHA TÉCNICA PROJETO: Arvydas Gudelis LOCAL: Merkinė, Lituânia ANO: 2014 ALTURA: 25m
Figura 52 - Planta de torre de observação na Lituânia. FONTE: https://www.archdaily.com.br/br/787431/ torre-de-observacao-arvydas-gudelis?ad_medium=widget&ad_name=recommendation
Figura 53 - Torre de observação na Lituânia. FONTE: https:// www.archdaily.com.br/br/787431/torre-de-observacao-arvydas-gudelis REFERÊNCIAS PROJETUAIS 81
FIG. 54
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ARQUITETURA E ÁGUA A água, além de ser um elemento natural presente no terreno escolhido para este projeto, é carregada de significados simbólicos que enriquecem os conceitos trazidos para o projeto. Além de compor a paisagem e servir como local de conexão entre mundos espirituais, pode fazer parte de espaços na arquitetura. Optou-se por apresentar esta instalação chamada Luce Tempo Luogo, realizada pelo escritório DGT Architects em parceria com a Toshiba na cidade de Milão em 2011. A intenção era induzir uma resposta emocional ao espaço, com a ajuda da água e tecnologias do século XXI. Na sala, forma-se um corredor com cortinas feitas de milhares de linhas de gotículas de água caindo do teto ao piso. A luz estroboscópica de cor fria faz parecer que as gotas estão congeladas, enquanto se ouve o intenso ruído do gotejar no piso. De fato, ao se imaginar em um espaço como este, percebe-se que a carga emocional que pode ser induzida nas pessoas, é alta. Pretende-se realizar uma releitura desta instalação no projeto deste trabalho, tomando como base três visões. A primeira, se trata do símbolo da água em si, como elemento primordial da vida. Em segundo ponto de vista, da relação de luz e sombra que se cria neste ambiente. Os fundos escuros tomados
pela escuridão e a água, iluminada que a princípio parece congelada, mas ao toque se descobre que flui continuamente, poderiam gerar uma sensação de mistério e incertezas, totalmente ligado com as questões de dúvida e curiosidade, sobre o que vem depois da morte. O último ponto, se trada do som. Assim como a questão da luz, o ruído revela água pingando enquanto a luz diz estar congelada. Um contraste de fatos, que juntos causam sensações e emoções que podem enriquecer a experiência do rito funerário.
Figura 54 - Luce Tempo Luogo. FOTO: Daici Ano FONTE: https:// www.archdaily.com.br/br/796383/quando-gotas-criam-espacos-um-olhar-sobre-arquitetura-liquida 83
O LUGAR
CAPÍTULO V
FIG. 55
O LUGAR
A fim de desenvolver um espaço destinado à ritos funerários, se entende como essencial que a leitura crítica do local de implantação deste projeto deva contemplar, mais do que uma análise intra-urbana, com dados e fatos, mas uma análise macro-urbana, que leva em consideração o estudo da comunicação sem palavras, a partir de códigos, signos e símbolos. O estudo do livro “Leitura sem palavras” de Lucrécia D’Aléssio Ferrara foi fundamental para entender que uma análise para este caso, trata de uma leitura do texto não-verbal, que está diluído no quotidiano do espaço urbano. Os aspectos e características a se encontrar neste terreno não se encontram escritos e nem óbvios, mas são imperceptíveis e dependem da necessidade de “tornar heterogêneos os ambientes através de uma operação da mente capaz de provocar um valor, um predicado, um juízo que atraia nossa atenção para fragmentos, a fim de que possam valer pelo ambiente como um todo e atuem como um prolongamento, um índice dele” (FERRARA, 2001, p. 23). Para ler o não verbal, é necessário utilizar de uma “espécie de olhar tátil, multissensível, sinestésico” (FERRARA, 2001, p. 31). A partir do que é apresentado por Lucrécia (2001, p. 31) como métodos e estratégias para realizar uma leitura do não verbal, utiliza-se como
forma de estruturar a análise do terreno para este projeto, os seguintes aspectos: a necessidade de estabelecer um modo de ler; o próprio objeto sugere como deve ser visto, uma vez que o modo de leitura se refaz ou se completa; a leitura deste objeto jamais será correta ou total, tendo em conta que a leitura será uma operação singular entre o que está no objeto e a memória das nossas informações e experiencias emocionais e culturais, individuais e coletivas; necessidade de ousar nas associações, a fim de obter uma ideia nova, imprevista, explicativa e inusitada. Por se tratar de uma análise em escala macro de uma cidade, propõe-se por Lucrécia, as seguintes segmentações para a análise: recorte seletivo de um fragmento do espaço entre espaços; flagrar imagens instantâneas para amostragem de um espaço que sugerem o próprio modo de percepção; leitura e interpretação do fragmento a partir da “dominante” estrutural escolhida. Afinal, a combinação da interpretação do local junto ao recorte do fragmento urbano, permite enxergar as intimidades, forças, fraquezas que transformam este macrosepaço em local orgânico, dotado de força vital (FERRARA, 2001, pp. 38,39).
Figura 55 - Pedreira do morato. FOTO: Wanderdrone FONTE: Arquivo pessoal
O LUGAR 87
Figura 56 - Mapa de Piracicaba. Produzido pelo autor. 88
PIRACICABA A cidade de Piracicaba foi escolhida para a realização deste projeto. A pesquisa de um local levou em consideração algumas características específicas como: terreno amplo, elementos naturais marcantes (água, vegetação, pedras) e modificação humana da paisagem. Após pesquisa em cidades da região, encontrou-se em Piracicaba uma antiga pedreira de brita que hoje se encontra desativada. Uma vez que se propõe um espaço que abrigue ritos funerários para uma sociedade contemporânea, que seja capaz de aproximar as pessoas com a morte no sentido de se distanciar de uma relação de tabu, o terreno em conjunto
com a arquitetura deve proporcionar conforto e atmosfera sensível ao tema. Portanto, o terreno deve ser dotado de qualidades que tornem possível uma relação de natureza como espaço sagrado e que motive a reflexão. De certo modo, a proposta do trabalho traz uma experiência diferenciada para os ritos da morte. Por conta disto, o projeto obtém caráter regional, que pode acabar atraindo pessoas de cidades próximas, que não dotam de espaços como este. Piracicaba é uma cidade de médio porte do interior paulista, que segundo estimativa do IBGE de 2017, possui cerca de 400.489 habitantes. Conforme o gráfico abaixo, a média de óbitos por ano, entre 2010 e 2017 foi sempre na casa dos cinco mil.
Figura 57 - Gráfico de óbitos em Piracicaba. Fonte dos dados: IBGE. Elaborado pelo autor. O LUGAR 89
PIRACICABA E SEUS ESPAÇOS PARA A MORTE Em Piracicaba existem 3 cemitérios, sendo dois públicos, administrados pela Secretaria de Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba (SEDEMA), e um privado. Além de um crematório privado. Todos contam com espaço próprios para velório. O mais antigo deles, Cemitério da Saudade, é público e se localiza na Avenida Independência, em frente ao estádio Barão de Serra Negra. Segundo informações do SEDEMA, funciona desde 1860, e teve o seu portal de entrada construído em 1906. Possui cerca de 20.000 túmulos organizados em ruas, quadras e lotes, distribuídos em uma área de 145.000m². Seu espaço para velórios possui 8 salas com banheiro, minicopa e sala íntima, além de uma pequena cafeteria e sala de administração. Outro cemitério público da cidade é o Cemitério da Vila Rezende, se localiza mais distante do centro, no bairro Jardim Primavera, ao lado do Zoológico Municipal. Fundado em 1974, atualmente possui cerca de 9.000 sepulturas perpétuas registradas, além de 1.000 gavetas sociais de sepultamento por tempo determinado, destinadas a pessoas de baixa renda. O local possui um edifício com 3 salas de velório, com sanitários compartilhados e mini copas individuais. O cemitério Parque da Ressurreição, de administração privada, foi fundado em 1971, sendo um dos primeiros do tipo a ser implantado no Brasil. O cemitério tipo parque, é caracterizado por grande extensão de gramado 90 O LUGAR
com jazigos enterrados. Se localiza no bairro Jardim Caxambu e ocupa uma área de 56.320m². Segundo o site do cemitério, o local conta com 4 salas de velório dotadas de minicopa, salas de descanso, floricultura, lanchonete com salas de leitura, administração e capela para cerimônias e celebrações religiosas. Além disso, na área central do cemitério existe uma área de convivência formada por jardins, lago ornamental, música ambiente, obras de arte e mensagens de apoio espalhadas. O Crematório Unidas, de administração privada, é o único da cidade. Mais distante do centro, se localiza em uma estrada com entrada pela Rodovia Cornélio Pires, de principal acesso à cidade de Saltinho - SP. As salas de cremação humana e para animais, escritório administrativo e sala de cerimônia foram inaugurados em julho de 2018, porém, segue em construção um edifício com salas para velório, lanchonete, floricultura, apartamentos e cinzário. A partir de uma visita técnica realizada durante o desenvolvimento deste trabalho, tomou-se o conhecimento de características do espaço que abriga os fornos de cremação, instalados em salas de cerca de 10m x 10m, dotadas de câmara fria, que abriga os corpos por um período de no mínimo 24h, antes da cremação. No total, a cidade de Piracicaba possui 15 salas de velório. Se considerarmos o número de 5765 óbitos no ano de 2017 na cidade, em uma conta para análise básica, são em média 15 ou 16 mortes por dia. Porém, nem todos são velados em cemitérios, alguns ocorrem em igrejas e outros
na casa da família. De qualquer maneira, podese analisar que a cidade possui déficit de espaços de velório, portanto, pretende-se implantar ao menos 5 unidades neste projeto, para que diminua a chance de haver a necessidade de espera de desocupação de alguma sala em algum dia com maior número de mortes.
Figura 58 - Cemitério da vila rezende de Piracicaba. Foto: Gabriel Pasqualin. Fonte: Acervo Pessoal
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Figura 59 - Mapa da รกrea de projeto. Produzido pelo autor.
LOCAL DE PROJETO A PEDREIRA DO MORATO O local escolhido para o desenvolvimento deste trabalho é uma antiga pedreira localizada no bairro Morato em Piracicaba - SP. O local funcionava como sítio de extração de brita para construção e reforma de rodovias e produção de concreto. Segundo dados extraídos da revista Fator Brasil (2011), a unidade funcionou por cerca de 50 anos (1961-2011) e no ano de encerramento, a empresa responsável pelo local transferiu o trabalho para uma outra área, mais distante da cidade. Dentre os motivos para a desativação da unidade no bairro do Morato, o principal se deu pelo fato de que as detonações causavam muito ruído no entorno e as casas próximas, na grande maioria de condomínios fechados, sofriam com trincas. A pedreira pode ser conhecida pelos ruídos das detonações, mas a sua aparência e paisagem são desconhecidas da maior parte da população. Cercada por três condomínios fechados e por um extenso canavial, de certo modo se esconde da cidade. As antigas pedreiras desativadas são uma extensa área de paisagem modificada pelo homem. Detonações e remanejo de solo acabam criando algumas características muito comuns para antigas pedreiras desativadas. Dentre estas características, como o terreno acidentado, temos um lago, que pode ser formado pelo acúmulo de água das chuvas, uma vez que os trabalhos foram paralisados e a água para de ser drenada, como o solo é de pedra a água não penetra e com o tempo se acumula, formando grandes lagos. O LUGAR 93
Figura 60- Imagem de satélite de Piracicaba. FONTE: Google earth
A partir de imagens do Google Earth, pode-se observar como a pedreira do Morato teve sua paisagem modificada ao passar dos anos. Nos períodos entre os anos de 2005 e 2007 as atividades se viam intensas, com modificações no terreno. Em 2007 começam os trabalhos de pavimentação do condomínio Reserva do Engenho. Em 2011 o condomínio já conta com suas primeiras casas e a pedreira cessa seus trabalhos no local, podendo-se observar o aparecimento de mais maciços vegetais, por consequência do plano de recuperação ambiental do terreno, realizado pela 94 O LUGAR
Figura 61 - Imagem de satélite de Piracicaba. FONTE: Google earth
empresa que cuidava das atividades. Em 2013, depois de acabadas as atividades, percebe-se o surgimento de um lago na área onde a topografia criada é mais acidentada e forma um paredão de pedra, de cerca de 45 metros de atura, acima do nível da água. Foram encontrados vídeos no YouTube e antigas notícias na internet que permitiram o conhecimento de que em determinados anos, após o encerramento das atividades, o local foi frequentado por grandes grupos da população que buscavam o lago para se refrescar e de divertir.
Figura 62 - Imagem de satélite de Piracicaba. FONTE: Google earth
Por ser uma propriedade privada, o acesso não é permitido e essas pessoas acabavam invadindo para poder usá-lo. O corpo de bombeiros e a polícia foram acionados para impedir o acesso das pessoas, pois muito se arriscavam se jogando do alto da pedreira para cair no lago, o que poderia ser muito perigoso, levando em consideração que podem existir pedras afiadas sob a água e não se sabe a profundidade do lago. O local atualmente se encontra fechado e aparentemente não mais frequentado por grupos que buscam lazer. Realizou-se durante
Figura 63 - Imagem de satélite de Piracicaba. FONTE: Google earth
o desenvolvimento deste trabalho algumas tentativas de contato com a empresa proprietária do local, afim de juntar maiores informações e permissão para visitar e fotografar o local, mas não se obteve sucesso. As imagens foram tiradas com o auxilio de um drone fotográfico.
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Figura 64 - Mapa de Piracicaba. Eixos e acessos Produzido pelo autor. 96
Figura 65 - Mapa de Piracicaba - Pontos de referĂŞncia. Produzido pelo autor. 97
Figura 66 - Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
Como se pode perceber nestas duas primeiras imagens, o terreno parece se esconder da cidade. Além de estar cercado por muros de condomínios, a vegetação circundante e a topografia acidentada parecem proteger o local. Ao mesmo tempo, temos um espaço de tensão e de proteção. Duas características opostas muito importantes em se tratando do projeto de um espaço para ritos funerários, uma vez que momentos como estes costumam juntar e aguçar sensações, como proteção e insegurança, morte e vida, luz e escuridão, o conhecido e o desconhecido. Observando as duas primeiras imagens, encontra-se 98 O LUGAR
Figura 67- Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
oposição na percepção da paisagem. O paredão de pedra ao fundo do lago, parece que se ergue na paisagem, ao mesmo tempo em que dependendo do ponto de visão, parece estar descendo e formando uma cratera. Este paredão tem a característica da verticalidade, ou da ascensão, que podemos comparar aos conceitos de montanha cósmica de Miercea Eliade, estudados anteriormente neste trabalho. Um símbolo de passagem do mundo profano ao sagrado. Juntamente à montanha, temos a água. Entendese pelo histórico deste terreno, que ambos elementos não estiveram desde sempre onde estão. O trabalho do O LUGAR 99
Figura 68- Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
homem foi capaz de modificar a natureza e a paisagem, à transformando no que é hoje. Fazendo a relação do elemento da água com os conceitos de Eliade (2002) de água cósmica, como elemento primordial da existencia da vida, de onde ela vem e para onde ela vai, como elemento que permite o funcionamento dos ciclos da natureza. Este lago, como elemento do terreno é importante para o projeto de um espaço para ritos funerários. Uma vez que se busca criar experiencias diferenciadas e diversidade para realização de desejos. Existem pessoas que gostariam que suas cinzas fossem aspergidas ao mar, lagos, rios, 100 O LUGAR
Figura 69- Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
simbolizando a matéria humana voltando para o elemento de onde veio. Neste terreno, existe a possibilidade de garantir tal diversidade e conexões com símbolos sagrados. Outro símbolo estudado por Mircea Eliade que foi apresentado anteriormente neste trabalho e que se relaciona no terreno escolhido é o da Terra Mater. Em diversos sentidos. Primeiramente, a ideia de terra natal, de pertencimento a um local, que pode ser relacionado neste trabalho com a vista que se tem da cidade de Piracicaba. Para os piracicabanos, estar em um local de onde se possa ter uma vista panorâmica da cidade, pode ser confortante O LUGAR 101
Figura 70- Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
e trazer sensações boas. E talvez, um local agradável para ter como última morada. Em segunda perspectiva de Terra Mater, encontra-se lugares no terreno, como por exemplo a última imagem, em que se parece que a natureza e a topografia criam um espaço protegido. Temos uma área aberta cercada de maciços vegetais em uma espécie de vale. A última característica, trata da terra também como elemento primordial para a existência da vida, assim como a Água Cósmica. Algumas pessoas podem preferir ter as suas cinzas aspergidas na terra, em pés de árvores ou até mesmo enterradas em urnas biodegradáveis com uma 102 O LUGAR
Figura 71- Pedreira do Morato. FOTO: Wanderdrone. FONTE: Acervo pessoal
semente, para formar em conjunto com a terra, uma nova espécie de vida. A junção de todos os elementos que vimos presentes no terreno e que se relacionam com simbolismos cria neste espaço um pilar sagrado. Uma espécie de “paraíso”, capaz de conduzir as pessoas a conexões, sagradas ou pessoais.
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Figura 72 - Mapa topogrรกfico do terreno. Produzido pelo autor.
As características de tensão no terreno são evidenciadas pela topografia. Como podese observar no mapa, em que as curvas de nível estão colocadas de 10 em 10 metros, temos um grande paredão de cerca de 50 metros de altura,
quedas fatais. Ao mesmo tempo, a topografia acaba formando uma espécie de proteção, abraçando o lago. Pelo esquema de caminho do sol, podemos analisar que a área do lago pode ficar em sombra na parte da manhã e no restante
formado pelas detonações da antiga pedreira que funcionava no local. A tensão está no fato do possível perigo relacionado a alturas e possíveis
do dia com sol direto, voltando a estar em sombra no final da tarde.
Figura 73 - Perfil topográfico da área. Produzido pelo autor. 105
MÉTODOS E RITOS
CAPÍTULO VI
O MÉTODO DA CREMAÇÃO A cremação, ritual que ao mesmo tempo que é muito antigo, atualmente tem sido mais aceita pelas sociedades de diversos países e ultrapassado o número de enterros. (MORAES & GOIABEIRA, 2014, p. 77). O método foi escolhido para este projeto por permitir a criação de uma composição simbólica e conceitual de contrastes junto ao terreno. A cremação, com a sua linha tênue do fogo e destruição, contrastando com a água em um espaço de paisagem construída. Além de ser um método que agride muito menos o meio ambiente e ocupa pouco espaço na cidade, se comparado ao enterro.
O PROCESSO DA CREMAÇÃO Em vida, a pessoa que deseja deve manifestar em cartório o “Termo de vontade” de ter o corpo cremado quando falecer; Depois do velório, o cadáver segue para a câmara fria, onde fica por pelo menos 24h aguardando documentações e possível solicitação da polícia ou família. Após 24h na câmara fria, o corpo junto com o caixão são inseridos no forno de cremação. Somente a alça metálica do caixão é retirada. No forno, a cerca de 1.200ºC, as células do corpo começam a evaporar e o cadáver a sumir. 108 MÉTODOS E RITOS
Ao final da cremação, sobram as cinzas . Que são partículas inorgânicas, em maior parte, óxido de cálcio. O material é colocado em um triurador para uniformizar o tamanho das particulas. As cinazs são colocadas em uma urna e entregues à família, que decide qual será o destino final dos restos, conforme vontade do falecido.
O FORNO DE CREMAÇÃO Buscou-se características técnicas de um forno de cremação para que se possa projetar adequadamente um espaço que recebe este equipamento. Como se pode observar nas imagens abaixo, o forno tem grandes dimensões. Sendo 2,34 metros de largura, 4,95 metros de comprimento e 3,15 metros de altura. Em visita técnica ao Crematório Unidas de Piracicaba – SP, conheceu-se de perto o forno, que é semelhante ao da imagem, e obteve-se a informação de que o equipamento deve ser colocado sob uma base de concreto que suporte pelo menos 12 toneladas. Além disso, a fabricante aconselha que o edifício tenha no mínimo 100m² e que os tanques que estocam o gás para cremação estejam a pelo menos 7 metros de distância, em local externo.
Figura 74 - Vista frontal de um forno crematório. FONTE: Brucker
Figura 75 - Vista lateral de um forno crematório. FONTE: Brucker
Figura 77 - Reservatório de gás de crematório. Foto: Gabriel Pasqualin. Fonte: Acervo Pessoal Figura 76 - Perspectiva de um forno crematório. FONTE: Brucker. Modificado pelo autor. MÉTODOS E RITOS 109
MEIO AMBIENTE Uma das vantagens mais importantes no fato escolha da cremação como método funerário para este trabalho estão ligadas a relações com o meio ambiente. Primeiramente, se falando do espaço de ocupação. Para se enterrar uma pessoa, existe a necessidade da construção de uma sepultura, que mede cerca de 2 metros de comprimento por 1,15 metros de largura e altura variável dependendo da quantidade de caixões. Já quando o falecido é cremado, o seu espaço de ocupação pode ser zero, quando tem as suas cinzas espalhadas, ou o espaço mínimo de um lóculo em uma sala de columbário. O segundo fator, está relacionado com os restos mortais. Quando enterrada, o corpo de uma pessoa entra em decomposição e pode contaminar o solo. Dependendo da localização do cemitério, em épocas de chuva, a água entra em contato com o solo e escorre para partes da cidade e até mesmo em lençóis freáticos. Já com a cremação, segundo Moraes e Goiabeira (2014) todos os microrganismos são eliminados com o fogo e ao mesmo tempo, os gases tóxicos também são queimados. Desta maneira, nem o solo e nem o ar são poluídos.
ECONOMIA Um dos fatores que fazem com que a cremação seja um rito que tem aumentado com o passar dos anos no Brasil, segundo o Cemitério Vila Alpina de São Paulo, é o fato de ser mais econômico em relação ao enterro comum. Uma vez que a família precisa arcar com os gastos 110 MÉTODOS E RITOS
de compra de terreno em cemitério (caso não possua), reforma ou construção do túmulo e exumação da ossada após alguns anos. Além dos gastos com cerimônias, velório, traslado e documentações. Com a cremação, não existem gastos com cemitério e túmulos. Em visita técnica ao Crematório Unidas de Piracicaba realizada durante o desenvolvimento deste trabalho, se obteve informações de que o valor do pacote de cremação com cerimônia simples de despedida que dura cerca de 20 minutos, pode custar a partir de R$2.340,00. Porém as cinzas são entregues em um saco plástico. Estão disponíveis, uma variedade de urnas estilizadas que a família pode comprar. Os preços podem variar de R$180,00 à R$1.290,00, ou até mais. Estes valores não incluem o velório, transporte, nem os serviços funerários como preparação do corpo, e as documentações. Estes preços podem variar muito, dependendo das necessidades e desejos de cada família. Os serviços funerários incluem desde decorações com flores e coroas, homenagens, serviço de buffet nos velórios. O crematório Primaveras de Guarulhos-SP, por exemplo, oferece serviço de transmissão da cerimônia de cremação em tempo real pela internet, para pessoas que por ventura não puderam chegar a tempo. As famílias que desejarem manter a urna funerária, podem tanto guardar em casa, como em um nicho de columbários de cemitérios ou
crematórios. Segundo Martins (2018), o valor para manter a urna no Primaveras em GuarulhosSP custa R$150,00 por mês. Neste local, os nichos com fechamento em vidro são preenchidos com a urna acompanhada de objetos pessoais do falecido, escolhidos pela família para homenagear. Já para aqueles que optam pelo enterro em cemitérios tradicionais, os gastos são mais elevados. Além dos valores de serviços funerários, preparação do corpo, traslado, documentações, entre outros. Supondo a situação em que uma família não possui jazigo em cemitério e precisa comprar um, o jazigo simples de uma gaveta custa em torno de R$4.500,00 no cemitério da Saudade em Piracicaba-SP, que é administrado pela prefeitura. Já no cemitério Parque da Ressurreição, que é particular, um jazigo pode custar em torno de R$15.000,00. Mesmo que a família já possua um jazigo, pode haver chance da necessidade de contratar uma reforma para preparar o local para o novo cadáver. E, em alguns cemitérios, paga-se uma taxa anual ou mensal, para que os túmulos sejam conservados e mantidos.
Um dos fatores que pode complicar para a implantação de um crematório, se trata principalmente da aceitação pela população e vizinhança. Após visita técnica realizada no Crematório Unidas de Piracicaba - SP, entendeuse que como este tipo de projeto não é comum e a população pouco conhece sobre como funciona a cremação, o crematório pode ficar embargado na justiça por pressão popular para melhores esclarecimentos e discussões.
LEGISLAÇÃO
O projeto de um crematório não possui quantidade considerável de leis e determinantes legais para a sua construção. A principal documentação que deve ser realizada, se trata da aprovação em órgãos de autoridade sanitária como Conama e Cetesb. Os proprietários e projetistas devem submeter o projeto a uma série de testes e estudos que provem a não interferência e impacto ao meio ambiente e entorno próximo.
Figura 78 - Nicho de cinzas no columbário do Primaveras, de Guarulhos. Foto: Francio Holanda / Agência O Globo. Fonte: Época Online MÉTODOS E RITOS 111
O MÉTODO DA COMPSTAGEM Como uma segunda proposta para método funerário, que se diferencie totalmente dos tradicionais, buscou-se referências em ritos alternativos, com o pensamento de preservação do meio ambiente. Então, como fruto desta pesquisa, apresenta-se a compostagem humana. O método foi pensado por Katrina Spade em 2012, quando estudava arquitetura. Katrina iniciou uma pesquisa sobre a indústria funerária e se sentiu desapontada com as questões éticas ambientais que envolvem os processos de cremação e enterro convencional. Então iniciou seu projeto para um método funerário ambientalmente sustentável e focado na cidade. Depois de muito estudo, conscientização e arrecadação de fundos,
Katrina se juntou com um grupo de pessoas e abriram uma empresa chamada “Recompose”, que fornecerá em um futuro próximo, o serviço de compostagem do corpo humano. No estado de Washington, nos Estados Unidos, o processo já foi aprovado pelo governo. O processo de compostagem humana, com base em informações obtidas no site da empresa Recompose de Katrina Spade, acontece da seguinte maneira: o corpo é colocado em uma capsula, coberto com lascas de madeira e palha. A cápsula tem os níveis de carbono, nitrogênio, oxigênio e umidade controlados para que se mantenha um clima propício para os micróbios e bactérias, que são responsáveis pela aceleração
Figura 79 - Visão de um futuro Recompose Facility. Renderização por: MOLT Studios. Fonte: https://www.recompose.life/faq 112 MÉTODOS E RITOS
do processo de decomposição. A temperatura interior deste recipiente pode chegar a cerca de 70ºc durante o processo. E todo o corpo é decomposto, inclusive os ossos e dentes. Após cerca de 30 dias, técnicos verificam se o processo foi concluído e preparam a matéria para o seu destino. O que resta da compostagem é cerca de 1 metro cúbico de solo orgânico, para ser usado como adubo de vegetação. Se comparado com o método da cremação, a compostagem é mais sustentável. Uma vez que ao cremar um corpo, uma quantidade muito grande de gases estufa são emitidos na atmosfera. Os gases emitidos pelo processo da compostagem, em proporções muito menores, poderiam ser transformados em energia elétrica, aumentando ainda mais a sua eficiência ambiental. Se entende que este método, além de ser importante para a preservação do meio ambiente, como forma de devolver à natureza o que roubamos dela em vida, também se relaciona com a ideia de fazer girar o ciclo da vida. Nascemos, morremos e então podemos contribuir com novos tipos de vida, servindo de adubo para árvores. É importante mencionar que o processo de compostagem ainda está passando por estágios de estudo e desenvolvimento. Até então, algumas pessoas já tiveram os seus corpos decompostos, porque concordaram em se doar para a pesquisa. Contudo, ainda não existem edifícios para se tomar como referência espacial, arquitetônica e de especificações técnicas no processo de desenvolvimento deste trabalho. Pretende-se trabalhar com a ideia da compostagem e no
próximo semestre, com mais pesquisa, utilizar do que se conhece em relação ao método para o projeto do seu espaço.
MÉTODOS E RITOS 113
CAIXÕES E URNAS
Uma problemática que surge neste trabalho em relação a um método mais sustentável, se dá pela ideia de substituir o caixão de madeira tradicional que tem ciclo de vida curto e necessita de uma árvore para ser construído, por um caixão sustentável, feiro com material que agregue ao meio ambiente A ideia surgiu a partir de uma outra referência que traz conceitos de métodos funerários sustentáveis. A “Capsula Mundi” é um projeto de urnas em formato de ovo produzidas com materiais biodegradáveis, nelas o corpo é colocado em posição fetal e enterrados. Acima da urna, se coloca uma semente ou muda de árvore, e enquanto o corpo se decompõe, pode servir de adubo para a vegetação. Neste projeto também são produzidas urnas menores para que se coloque as cinzas da pessoa, ao invés do corpo. Segundo informações obtidas no próprio site do “Capsula Mundi”, o projeto desenvolvido pelos designers italianos Raoul Bretzel e Anna Citelli, busca enfatizar o fato de que as pessoas são parte do ciclo de transformação da natureza. Ao invés de cemitérios com túmulos, podemos ter uma floresta com árvores que monumentalizam a memória da pessoa falecida, fazem a ligação simbólica do céu com a terra e ajudam o meio ambiente. A ideia de enterrar o corpo junto a uma capsula sustentável é interessante, porém, é importante considerar o fato de que o processo 114 MÉTODOS E RITOS
de decomposição gera um líquido chamado de “necrochorume”, responsável muitas vezes pode contaminar o solo e os lençóis freáticos abaixo dos cemitérios tradicionais. Se formos considerar este enterro como um caso isolado, a vegetação poderia absorver este líquido, porém, em uma realidade onde são enterradas centenas de pessoas, é possível que a vegetação não de conta de absorver, e o solo se contamine. A partir deste ponto de vista, decide-se que neste projeto nenhum corpo será diretamente enterrado no solo, para continuar com a ideia de um espaço sem contaminações. Pretendese utilizar esta referência para o desenho de um caixão sustentável, que será cremado ou passará pela compostagem controlado e de uma urna biodegradável que receberá as cinzas ou matéria orgânica e será plantada, formando o jardim das memórias.
Figura 80 - Capsula mundi. FONTE: https://www.capsulamundi.it/en/project/
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RITOS E SIGNIFICADOS
116 MÃ&#x2030;TODOS E RITOS
MÃ&#x2030;TODOS E RITOS 117
PROJETO - PROPOSTA INCIAL
CAPÍTULO VII
120 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
A PROPOSTA DO PROJETO O projeto será formado por 5 pilares essenciais que farão parte da proposta de divisão para os diferentes momentos dos ritos da morte. Os pilares são: Despedida, Transformação, Destino das cinzas, Memória e Trajetos. Os quatro primeiros podem ser entendidos como as etapas para o rito propostos neste trabalho, já os trajetos são todas as caminhadas e conexões físicas entre um momento e outro, ou entre um edifício e outro. A primeira etapa proposta para o rito da morte neste trabalho é o velório, momento de despedida do ente falecido. A segunda etapa é o processo de transformação do corpo, que neste projeto se propõe dois métodos, o da cremação que transforma o corpo em cinzas ou o da compostagem que transforma o corpo em matéria orgânica. A terceira etapa é o destino final destas matérias. As cinzas poderão ser aspergidas na água, ao vento ou em jardins. A matéria será colocada em uma urna, enterrada e servirá de adubo para um pé de árvore, formando o jardim da memória. Uma vez que vimos anteriormente conceitos de simbologias sagradas na natureza, como água cósmica e terra mater, e os relacionamos com a percepção e escolha do terreno, pretende-se correlacionar os diferentes espaços e etapas do rito funerário proposto com os quatro elementos da natureza – água, ar, fogo e terra. A cremação está ligada ao fogo, mesmo
que o elemento não seja visível para as pessoas, ele existe como fato e pode ser demonstrado na arquitetura com a ajuda de elementos espaciais e fenomenológicos, como uma fumaça branca simbólica saindo das chaminés. A aspersão de cinzas está ligada à água, ao ar e à terra, uma vez que na água ela se dissolve, ao ar se espalha e na terra se penetra. O plantio da urna com a matéria orgânica gerada pela compostagem está ligada com a terra, uma vez que servirá como adubo para nutrir a natureza. Além das ligações com as matérias da natureza, existem as relações simbólicas, que tratam tais elementos como pilares sagrados que representam segurança e portais para conexão interior com o mundo sagrado. Nos itens a seguir, apresentam-se com mais detalhes cada um dos pilares, momentos e conceitos propostos neste trabalho. Os croquis são parte de um processo de criação e reflexão que continua no próximo semestre, onde se chegará no projeto completo e detalhado do complexo como um todo e de cada edifício individualmente.
PROJETO - PROPOSTA INICIAL 121
Figura 81 - Plano conceitual. Produzido pelo autor
TRAJETOS
Os trajetos são os elementos de conexão entre os distintos edifícios do projeto. Como forma de trazer uma importante etapa que esteve presente nos ritos funerários desde os tempos antigos, o cortejo marca um momento de tensão, caracterizando a última caminhada de um corpo para o seu destino final, acompanhado de familiares, amigos e conhecidos. Portanto, para este projeto, pensa-se primeiramente em dividir as atividades em diversos edifícios, gerando consequentemente, a necessidade de locomoção e travessia de um ponto ao outro. Além de conectar o espaço, estes caminhos devem proporcionar contemplação para o entorno. Para que ao momento em que as pessoas sigam o cortejo, possam sentir a partir dos elementos naturais ao redor a conexão com a natureza, além da relação dos volumes no espaço.
Figura 82 - Croqui de projeto - passagens. Produzido pelo autor.
Durante a passagem de um ambiente externo para o interno de um edifício, pode parecer que se está passando de um mundo ao outro. Neste trabalho, se tratando de edifícios para ritos da morte, tomando como exemplo específico, o edifício do crematório. Nele, acontecerá o ritual mais transformador. Corpo será reduzido a pó. Assim como existe a transformação da matéria, de um estado a outro, pode-se trabalhar na arquitetura, a sensação de que enquanto se entra no edifício, se atravessa uma passagem para outro mundo. Pensa-se também, que os trajetos são elementos que podem ser usados pelas pessoas em situação de emoção sensível como lugar para caminhar e pensar, refletir e se sentir melhor. Por isso, pretende-se a implantação de trilhas com
Figura 83 - Croqui de projeto - passagens. Produzido pelo autor. PROJETO - PROPOSTA INICIAL 123
espaços para descanso e contemplação, em meio a jardins e áreas com vegetação, lembrando a parques.
DESPEDIDA
O primeiro contato com o rito funerário será o momento de velório dos corpos. Constituído por um conjunto de edifícios individuais. Pretende-se neste local dotar de materiais de revestimento que proporcionem aconchego e aberturas que possam relacionar o interior com o exterior, a natureza e a luz natural. Que os salões de velório sejam planejados para criar diferentes níveis de proximidade e contato com o morto, uma vez que cada pessoa tem o seu nível individual de conforto em momentos como esse. Pretende-se também que os espaços de velório tenham a sua individualidade e privacidade. Uma vez que na maioria dos edifícios para este uso, as salas são
pequenas e ficam uma ao lado da outra e muitas vezes as pessoas acabam se confundindo ou se misturando com o velório de outro indivíduo. Se vê importante dotar o espaço para despedida de caracteristicas e formas que propiciem e respeitem as diversas configurações de rituais, que variam dependendo da religião do falecido ou se não tem religião. Para que o espaço seja democrático e permita que qualquer um possa ser velado ali. Uma vez que todos os povos e culturas, de alguma maneira ritualizam a morte e acreditam em existência após a morte. Enquanto para alguns grupos acontece a expressão de cantos e orações em grupo durante o funeral ou o cortejo, para outros o silêncio pode ser absoluto, para representar o luto. Existem grupos em que se discursa sobre a importância da pessoa falecida em vida ou se relembra as suas boas memórias. Dependendo da religião, pode haver a existencia
Figura 84 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor. 124 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
Figura 85 - Croqui de projeto - implantação. Produzido pelo autor. PROJETO - PROPOSTA INICIAL 125
Figura 86 - Croqui de projeto - interior de salão de cerimônias. Produzido pelo autor
Figura 87 - Croqui de projeto - crematório em corte. Produzido pelo autor. 126 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
Figura 88 - Croqui de projeto - crematório. Produzido pelo autor.
de flores, velas e símbolos sagrados, ou então não haver nada. Tendo em conta as diferenças, se vê importante que os espaços sejam flexíveis para incluir ou não símbolos de determinadas religiões, apoio para discursos e orações.
TRANSFORMAÇÃO
Ao final do velório, a família e os visitantes seguem em cortejo sentido ao crematório, onde ocorrerá a cerimônia de cremação. Ou ao centro de compostagem. Em ambos, a família terá os últimos momentos de despedida do corpo do falecido em sua forma natural, em um momento que antecederá o da destruição. No crematório, de maneira quase cênica, ao final da cerimônia, o caixão entrará em uma abertura na parede e passará para a ala técnica, onde se localiza a câmara fria, em que o corpo permanecerá por pelo menos 24 horas, caso seja solicitado pela família ou polícia. O processo de queima do corpo não gera fumaça visível, porém,
Figura 89 - Croqui de projeto - salão de cerimônias. Produzido pelo autor.
da antessala a família poderá observar através de uma abertura, uma chaminé emanando fumaça branca, que simbolizará o corpo sendo cremado e marcará o momento de transformação da forma. Como o processo da cremação pode tardar mais de um dia, devido ao tempo necessário de espera e disponibilidade dos fornos, família e convidados voltariam em um segundo dia para a cerimônia de recebimento das cinzas, e então decidir quais os seguintes ritos. No centro de compostagem, a família, junto à uma equipe técnica, insere o corpo do ente em uma das cápsulas de compostagem. Em seguida, a família pode espalhar lascas de madeira e palha sob o corpo, finalizando a cerimônia. Durante as próximas semanas, a capsula terá a atmosfera controlada, para que o processo de compostagem aconteça. Ao final, a família retorna ao local para receber a matéria, colocada em uma urna biodegradável junto com sementes de árvores. Pretende-se dotar os espaços de cerimônias de despedida final com uma releitura
Figura 90 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
PROJETO - PROPOSTA INICIAL 127
da instalação “Luce Tempo Luogo ” apresentada no capítulo de referências projetuais. Utilizando do elemento da água, luz e seu ruído para criar uma atmosfera sensível e provocadora de sensações, tendo o objetivo de intensificar a experiência do rito funerário.
Para os que passaram pelo processo de cremação, em um segundo dia a família e convidados participarão da cerimônia de recebimento de cinzas, no crematório. Então, poderão decidir por despejá-las na água. Neste caso, o terreno escolhido para o projeto possui um grande lago formado pela ação do homem no terreno natural. Seguindo por uma caminhada até
o deck de contemplação e despedidas, a família poderá despejar as cinzas no lago de um local alto ou próximo da água. Espalhar as cinzas de uma pessoa na água, simboliza o retorno de um corpo para o elemento primordial da vida, a própria água, ambiente onde a vida nasce e se desenvolve. Momento de continuação ou fechamento de um ciclo natural, em que da natureza viemos e para ela voltaremos. Se vê importante mencionar aspergir as cinzas na água ou na natureza não são atos que causam impacto ambiental, pois segundo São Paulo (2014), são um material inerte e constituídas de material mineral (ossos), ou seja, não sofre com alterações químicas. Com a proposta de um elemento arquitetônico vertical, trazida pelas referências de torres de observação, além de proporcionar
Figura 91 - Croqui de projeto - torre. Produzido pelo autor.
Figura 92 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
ASPERSÃO NA ÁGUA, AO VENTO E EM JARDINS
128 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
Figura 93 - Croqui de projeto - deck. Produzido pelo autor.
contemplação da paisagem, o espaço permite que as famílias possam utilizar da altura para espalhar as cinzas ao vento, consequentemente, à natureza. Este espaço, pela sua localização e inserção no terreno, propõe uma carga adicional de adrenalina e emoção. Ao mesmo tempo em que se percebe o perigo da altura, contempla-se a paisagem, os paredões de pedra e da cidade ao fundo. As pessoas que desejarem, também podem espalhar as cinzas pelos jardins, nos pés das árvores e até mesmo plantar na terra com uma urna biodegradável junto com uma semente ou muda de árvore. O contato com a terra e a natureza simboliza a continuidade de um ciclo, a volta para um dos elementos primordiais da vida e a transformação em novos tipos de vida.
Figura 94 - Croqui de projeto - jardim da memória. Produzido pelo autor.
MEMÓRIA
A terceira proposta para o destino das cinzas, é o cinzário ou columbário. Um local de perpetuação e memória da uma pessoa falecida. Neste local, propõe-se um espaço repleto de nichos, onde as famílias poderão depositar uma urna com cinzas, junto a um objeto de muita importância para a pessoa. O espaço deve ser pensado para transparecer proteção e perpetuação, um local seguro e eterno, onde os parentes podem um dia voltar para fazer orações ou homenagens para os falecidos. Pensa-se que este edifício deve estar em meio à natureza e jardins. A proposta para o destino da matéria gerada pela compostagem, é o “Jardim da Memória”. Quando a família for buscar a urna biodegradável, contendo o adubo orgânico, poderá escolher um PROJETO - PROPOSTA INICIAL 129
local para enterrar e em cima, plantar uma muda de árvore escolhida ou sementes. Neste espaço, as pessoas podem devolver ao meio ambiente, o que dele retiraram enquanto viviam em forma de sequestro de CO², proporcionados pelas árvores. O local funcionará como um cemitério, porém de clima mais agradável, onde a memória das pessoas que faleceram é preservada e monumentalizada em forma de natureza. As pessoas podem visitar este jardim e ir de encontro à respectiva árvore adubada ou plantada com o ente querido. Pensase em incorporar ao local da árvore, uma peça de design, como um totem que indique informações sobre a pessoa, além de mobiliário que permita uma breve permanência agradável, como bancos. Este jardim da memória estaria em volta ao edifício do columbário e de um grande salão contemplativo que sugira oração, reflexão e conexão do mundo profano com o sagrado. Para que se crie, um local que pode ser sagrado, para aqueles que são de religião católica por exemplo,
Figura 95 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
130 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
que sentem a necessidade de guardar os restos mortais em um local sagrado. Pretende-se ainda, que o jardim da memória seja dotado de pontos de parada, que podem ser locais de oração, contemplação da paisagem ou de descanso. A vegetação pode ser composta por árvores frutíferas que atiram pássaros, trazendo vida. Pensa-se em desenvolver o desenho de uma urna funerária que seja construída por materiais naturais como a palha, para que se insira a massa orgânica gerada pela compostagem junto com uma semente de tipo de árvore escolhida pela pessoa, para então fazer parte do jardim da memória. Além disso, pensa-se em desenhar uma espécie de totem ou marcador para identificar a pessoa que ali forma a árvore.
Figura 96 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
Figura 97 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
Figura 98 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
Figura 99 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor.
Figura 100 - Croqui de projeto. Produzido pelo autor. PROJETO - PROPOSTA INICIAL 131
Figura 101 - Fluxograma conceitual de projeto. Produzido pelo autor. 132 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
FLUXOGRAMA
O fluxograma deste trabalho foi desenvolvido para expressar o fluxo entre os ritos propostos e a conceituação de passagem que se deseja obter no projeto. Divide-se o caminho entre os visitantes e os cadáveres, uma vez que existem locais e usos específicos para cada um. Os visitantes ao iniciarem o seu trajeto serão recepcionados pela ala administrativa, atendimento e recepção antes de seguirem para o velório, onde se encontraram com o cadáver, que antes foi recepcionado na ala técnica onde foi preparado. Após o velório, acontece o cortejo, ou a caminhada até o método funerário escolhido. No crematório ou no centro de compostagem acontece a cerimônia de última despedida do corpo. No centro de compostagem, durante a cerimônia, o corpo já é inserido em sua capsula por onde passará pelo processo. No crematório, o corpo será armazenado em uma câmara fria por pelo menos 24 horas, antes de ser cremado. Em um segundo dia, os visitantes voltam ao complexo para a cerimônia de recebimento da urna contendo as cinzas (produto da cremação) ou matéria orgânica (produto da compostagem). Então, segundo decisão anteriormente realizada pelo falecido ou pela família, segue-se para o destino, que pode ser aspersão das cinzas na água, ar, terra ou no jardim. Ou plantio da urna biodegradável com matéria orgânica no jardim das memórias.
PROGRAMA DE NECESSIDADES INICIAL
PROJETO - PROPOSTA INICIAL 133
A presente tabela de áreas faz parte da composição da proposta inicial para o projeto deste trabalho. Tomou-se como base, os edifícios estudados como referências projetuais e informações obtidas através de pesquisa e visita técnica, para espaços específicos como por exemplo, a área do local onde se instalam os fornos de cremação, que tem proporção de dimensões grandes e demanda determinadas características técnicas. Tendo em vista que um projeto como este tem uma quantidade de visitantes que pode variar muito, dependendo do número de óbitos por dia na cidade. Porém, não se trata de um local de intenso fluxo de visitantes, uma vez que as pessoas costumam ir com pouquíssima frequência, em geral, datas específicas de acontecimentos de morte, datas comemorativas ou de celebração, como o dia de finados e esporádicas visitas para relembrar a memória da pessoa falecida. A tabela foi fundamental para o processo de desenvolvimento do programa de necessidades, primeiramente definindo as principais áreas, como: velório, crematório, centro de compostagem, columbário, área técnica e administrativa, área de convívio e apoio, jardim da memória, torre e deck. E depois, entendendo quais são os espaços necessários para que estas funções aconteçam. Pretende-se na próxima etapa deste trabalho, refinar e desenvolver mais detalhadamente este programa de necessidades, junto ao projeto.
134 PROJETO - PROPOSTA INICIAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao decorrer do trabalho, percebeu-se que tratar do tema de um edifício para ritos da morte, que seja sensível para as pessoas enlutadas e que proporcione uma experiência diferenciada do espaço e dos ritos, é uma tarefa muito complexa. Pois quanto mais se pensa e se pesquisa sobre o tema, a vontade de ir mais afundo e buscar diversas referências de edifícios, conceitos e ideias é ainda maior. Como por exemplo, estudar e entender as grandes referências que trabalham iluminação natural, sombra e até mesmo luz artificial sobre o espaço, para criar a atmosfera sensível desejada. Relacionar as características da luz com o som e ruído gerado no espaço e até mesmo a sua escala comparada com o corpo humano e a natureza ao redor. Um conceito acaba levando a outro. Ao início, pretendia-se utilizar somente do método da cremação como estrutura principal de pesquisa e projeto, mas durante o processo, encontrou-se a necessidade de agregar metodologias ainda mais diferentes, como é o caso da compostagem humana. Para que se tenha a possibilidade de criar um projeto que seja plural, que possa acolher a diversos grupos de pessoas e que proponha uma experiência diferente, que não é encontrada dos atuais espaços funerários. Além disso, que vise a preservação do meio ambiente e que seja flexível para um futuro que muda cada vez mais rápido. Pretende-se na próxima etapa deste Trabalho Final de Graduação, realizar uma síntese
de todos os conceitos históricos, antropológicos, filosóficos e técnicos estudados, bem como buscar mais referências de espaços e conceitos, e desenvolver o projeto de um espaço para ritos da morte. Este espaço deve por si só propor e sediar as diferentes etapas do rito, que basicamente se dividem entre: despedida, cortejo, transformação e memória. Este espaço, que será disposto sobre um terreno de cerca de 230.000m², deve ser capaz de reverter a situação de tabu em que os humanos se encontram em relação com a morte, em um sentido de fazer entender se fazer entender como um processo da natureza e também espiritual, para as pessoas religiosas. Além de compor um local agradável e repleto de significados para que as pessoas voltem a visitar e relembrar a memória de seus entes falecidos.
“...Laudômia também desaparecerá, não se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecerão com ela, isto é, as gerações se sucederão até uma certa cifra e desta não passarão, e por isso a Laudômia dos mortos e a dos não-nascidos são como as duas ampolas de uma ampulheta que não se vira, cada passagem entre o renascimento e a morte é um grão de areia que atravessa o estreitamento, e nascerá um último habitante de Laudômia, um último grão a cair que, no momento, está aguardando no alto da pilha. (CALVINO, Ítalo. 1990) PROJETO - PROPOSTA INICIAL 135
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