5 minute read
A OBRA PÓSTUMA DE GEDLEY BRAGA
“Psico-grafado” por “SHARK-SPIRIT”
“Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. [...] O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar todo o processo que empreguei na composição dessas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.”
Advertisement
Machado de Assis in: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
Gedley Braga preparou “cá no outro mundo” a sua próxima individual, “OBRA PÓSTUMA”, para o Gabinete de Arte Raquel Arnaud. O título revela mais uma proposta provocativa para encerrar a discussão de uma tese de doutorado [a ser] defendida no “mundo da ECA/USP”, no primeiro semestre de 2008. O título da tese já apresenta um indício do assunto: “A TESE NA [DA] CAIXA PRETA”. A discussão começa no próprio título, nas partículas “na” “[da]” que revelam a presença de um “nada” ou exatamente a presença de uma ausência. Não se sabe se é apenas uma tese “na” caixa preta (pois está dentro de uma caixa preta) ou se é referencial como algo “da” [“ser” da] caixa preta, uma “caixa-preta” metafórica. Uma inscrição de um “nada” amplia a possibilidade suplementar de uma metáfora de caixa preta como algo que se analisa ou passa a ter importância após, geralmente, uma catástrofe. Esse dispositivo contém os últimos registros técnicos, as últimas gravações de voz da cabine de uma aeronave, as últimas palavras, aquelas que são últimas, acontecem em um “antes”, mas são reveladas apenas “depois”, durante uma ausência daquele ou daquilo que produziu o que ali está inscrito, o que demonstra uma das principais características de uma linguagem escritural: a possibilidade de o “depois” preceder o “antes”. Uma discussão que se baseia em conceitos de Derrida de “Escritura”, “origem”, “gênese”, “gênio”, “genealogia”, conceitos que são ambíguos por sua própria natureza, pois possuem um conteúdo perigoso e perverso da natureza artificial / ficcional da própria linguagem.
O título “OBRA PÓSTUMA” surge, a princípio, de uma “inscrição” que estava inserida na individual anterior de Gedley Braga, a instalação “Love & Hate” (Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo, 2005). Uma das partes daquela instalação intitulada “It’s my life”, trazia uma legenda inscrita em letras de metal aplicadas diretamente na parede da galeria, colocando um início e um fim naquela “re-presentação”: 1967 (ano de nascimento do autor) e 2005 (data de uma “morte virtual” que coincidia com a realização da exposição). Nessa legenda, também se inscrevia um preço de “seis milhões de dólares” como o valor de “It’s my life”, o que colocava teoricamente a obra como a mais cara no sistema das artes do Brasil. A ambigüidade [que é discutida amplamente na tese] era estabelecida logo de início: seis milhões de dólares seria um preço proposto para uma vida ou o preço de uma obra de arte inserida em um determinado sistema? Como Gedley Braga trabalhava inversões ou polaridades (“Love & Hate”, “Seen & Not Seen”, mostrar & ocultar, presença & ausência, qualidade & quantidade, luz & escuridão etc.), a morte estava também inscrita na própria apresentação alegórica de “sua vida”. A instalação Love & Hate era composta de seis partes; “It´s my life“ também era subdividida em seis partes e repetia o número seis tanto no valor da obra quanto no néon vermelho “Six Million Dollar Man”. Continuando o desenvolvimento desse princípio, OBRA PÓSTUMA se revela como uma instalação composta de três partes: 1 – ALL THAT JAZZ; 2 – VANISHING POINT; 3 – APOCALYPSE. Ela é póstuma em várias instâncias: a uma vida textualmente declarada morta; à finalização de uma tese de doutorado que discute a presença da escritura ou de um texto na arte contemporânea (e mostra, no próprio texto, como o “depois” pode vir “antes”); e a um processo de inversões, um ciclo dessa trajetória de três momentos documentados em um DVD [também inserido em uma “caixa preta”] lançado na ocasião da exposição [também uma das partes integrantes da “Tese na [da] caixa preta” com edições apenas sob encomenda]. Esse DVD apresenta como videoclipes [com trilha sonora cantada e executada pelo “finado autor”] os três momentos citados na tese: “Love & Hate”, “Mondo Bongo Mon Amour” e o próprio projeto da “Obra Póstuma”. A ambigüidade desse título mostra um presente póstumo, que desde o início se declara “ser-á” sempre posterior a tudo isso que um dia não deixará de ser um passado; o que não deixa de revelar a atualidade de um sentido “póstumo”, pois o autor trata de uma finitude da vida de um indivíduo, nesse caso, a morte do próprio autor (não é “apenas” uma coincidência com o texto de Roland Barthes).
Nesse movimento, a proposta de uma OBRA PÓSTUMA composta de três partes, continuará a reiterar um múltiplo especial do número três: o número “seis” como uma simbologia de uma circularidade em que algo sempre escapa (observe a forma do algarismo “6”) – o dobro, o “duplo” de “3”, algarismo que, ao ser girado, se transforma na representação de um algarismo “nove” (“9” – o “quadrado” de “3”). Muito teria o que se dizer sobre o número três, sobre um “dogma da Trindade”, sobre um número atribuído ao “espírito”. Propõem-se simbologias, ou melhor, metáforas confessadamente complexas como a presença literal da escritura na arte, ou, neste caso, uma referência direta às “Santas Escrituras”. Os algarismos seis e nove revelam o momento em que Cristo agonizou na cruz (entre as horas “sexta e nona” – são três horas de uma “duração” de uma agonia de morte). Momento de trevas sobre a face da Terra (Lucas 23: 44-49) um momento de solidão e abandono, momento desesperador em que Ele brada, antes de expirar, “DEUS MEU, DEUS MEU, POR QUE ME DESAMPARASTE?” (Marcos 15: 33-41). Um momento em que Deus se transforma em “Homem” e se sente abandonado por “Si mesmo” (um “Si mesmo” que deveria ser de uma “natureza divina”, que “necessita” passar pela dor e sofrimento de ser apenas um “humano”). Um momento em que o véu do Santuário se rasga de alto a baixo para estabelecer um desvelamento (um “desvirtuamento” – no sentido de desvirtuar o “ser virtual” da linguagem, um “desvirginamento” daquilo que “estava escrito” ou “inscrito”). Isso também não deixa de mostrar uma divisão entre tempos distintos, entre um “antes” e um “depois”, um “Novo” e um “Velho” Testamento. Testamento aqui como uma herança, um patrimônio, o “Novo” como “o comentário” alterando o sentido do “Velho”, recompondo-o, deslocando-o completamente para se confirmar, para se transformar no herdeiro de uma “gênese”, de uma “genealogia”. Não seria esse um movimento atual semelhante ao da dita “arte contemporânea”? Nesse sentido, o último livro, Apocalipse, traça um “fim dos tempos”, um momento de “Juízo Final”, de conclusão póstuma (após a “morte” de Cristo) de uma obra que anuncia um novo tempo, uma nova ordem, um retorno de um Messias. Escrevendo sobre Cristo, não se pode deixar de mencionar que foi Ele que disse que era necessário “nascer de novo” para poder alcançar o “reino dos céus”. “Nascer de novo” implica, antes, em saber morrer para que a operação de um “novo nascimento” possa ser “inscrita”.
A instalação circula entre essas três idéias de um ponto de desaparecimento, de um abismo / catástrofe, discussão de uma metafísica da presença literalmente colocada / descolocada [termo de Derrida] ou deslocada entre o chão e as paredes da galeria.