ANAIS
Universidade Federal de São Carlos–UFSCar
ANAIS
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
cinemidiaufscar.wordpress.com
Sumário Entre imagens: fotografia e cinema 7
Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção
Entre escutas: sons, espaços e reverberações 65 Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
11 Fotografia: essência e hibridismo 16 Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme
Entre afetos: imaginários e fronteiras do horror 23 A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
Entre atos: palcos, telas e escrituras 72 A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo: Um olhar quantitativo-descritivo para o processo de transmidialidade 78 O Ano Passado em Marienbad – Alain RobbeGrillet cineasta segundo Roland Barthes 83 Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia
Entre espaços: documentário, fronteiras e mediações
Entre conceitos: historiografia e teorias intermidiais
30 Frontier Zones: documentários para ler a cidade
89 A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto
Entre tecnologias e imagens expandidas 36 Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo 41 Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema 46 Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games
Entre memórias, poéticas e afetos 52 Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles 57 Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo 59 Memória afetiva na obra de Wenders
Entre mídias, redes e plataformas 95 Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel 100 O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva
Entre melodias: jazz, samba e vanguardas sonoras 106 Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)
Apresentação I Encontro Internacional do Cinemídia – Grupo de Estudos sobre História e Teoria das Mídias Audiovisuais O Cinemídia iniciou suas atividades em 2013, con-
características das mídias em seus discursos audio-
tando com a participação de professores e alunos
visuais, em suas perspectivas intertextuais, interar-
relacionados tanto ao Programa de Pós-Graduação
tísticas e interculturais.
em Imagem e Som (PPGIS) quanto ao Curso de Graduação em Imagem e Som, da Universidade Federal
Além das conferências, várias comunicações serão
de São Carlos (UFSCar). Desde então, mantém vín-
apresentadas por pesquisadores diversos oriundos
culos com outras relevantes instâncias desta Uni-
de instituições distintas, reunidos em mesas a partir
versidade, tais como o Departamento de Artes e Co-
de temáticas e abordagens afins, como uma cons-
municação (DAC), o Centro de Educação e Ciências e
telação representativa das pesquisas em curso, em
Humanas (CECH), a Pró-Reitoria de Pós-Graduação
sintonia com as questões de intermidialidade.
(ProPG) e a Pró-Reitoria de Pesquisa (ProPq), que muito contribuíram para a concretização de várias
Além disso, reiterando a parceria do PPGIS com o
atividades até a realização deste Primeiro Encontro
Centro de Investigação em Artes e Comunicação
Internacional.
da Universidade do Algarve (CIAC – Portugal), este Encontro realiza o minicurso Interdisciplinaridade
O interesse do grupo diz respeito fundamentalmen-
e Intermidialidades Além-mar: o Caso do Cinema
te à investigação das mídias audiovisuais a partir de
Português, que parte de uma perspectiva histórica e
uma compreensão da história e da teoria como fato-
teórica para investigar traços do cinema de Portugal,
res dinâmicos e conjugados a produtos, processos e
com ênfase nas relações entre cinema, literatura e
suas mediações, partindo de três eixos de pesquisa,
outras artes.
a saber: os regimes do discurso audiovisual; as intermidialidades; o som e a música no audiovisual. Tal
Para a concretização deste Primeiro Encontro Inter-
objetivo geral vem pautando as pesquisas específi-
nacional do Cinemídia, vale destacar, com ênfase,
cas, as frequentes reuniões, estudos, participações
que tem sido imprescindível, além da participação
em congressos, produção de textos, entre outras
dos conferencistas e pesquisadores, o suporte do
atividades dos integrantes da equipe em suas várias
PPGIS, da ProPG e ProPq da UFSCar, e especialmen-
instâncias, que agora chegam ao momento especial
te o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Es-
de realização deste Primeiro Encontro Internacional.
tado de São Paulo (FAPESP), e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do
A proposta é reunir pesquisadores tanto do Brasil
Ministério de Educação (CAPES). A todos, os nossos
quanto de outros países para o debate sobre as in-
mais sinceros agradecimentos, com a boa expectati-
termidialidades, com a investigação sobre modos de
va pela realização não só deste mas também de mui-
interação entre mídias/meios e a ativação de suas
tos outros Encontros!
zonas fronteiriças. Assim, as conferências de professores de destaque na área abordam as potencialidades das intermidialidades enquanto lugar epistemológico e métodos de pesquisa, questionando desde gêneros até as presenças do som e da música e as
CINEMÍDIA Coordenação do Grupo de Pesquisa Comitê Organizador do I Encontro Internacional Equipe de Produção
Entre imagens: fotografia e cinema Coord. Cristiano F. Burmester (PUC-SP)
Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção Sancler Ebert (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som) sanclerebert@yahoo.com.br RESUMO: Neste trabalho analisaremos como o filme Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004), usa a fotografia still para instruir leituras documentarizantes (Odin, 2012). Utilizaremos a intermidialidade como metodologia, para pensarmos a relação entre fotografia e cinema. Nosso foco será refletir sobre as referências ao trabalho de fotógrafos como Walker Evans, Robert Frank e Martín Chambi. PALAVRAS-CHAVE: leitura documentarizante, intermidialidade, fotografia, Diários de motocicleta. As referências à fotografia documental: de
(2010), Marcos Strecker aponta a influência de Evans
Walker Evans a Martín Chambi
e Frank nas escolhas visuais do diretor brasileiro. “Um grande seguidor de Evans, Frank compartilha
Neste artigo vamos analisar como o filme Diários de
com ele uma característica fundamental: o huma-
motocicleta (2004), de Walter Salles, referencia o tra-
nismo. E esse atributo resume, em larga medida, a
balho de fotógrafos documentais para instruir leitu-
opção de Walter” (p. 59).
ras documentarizantes (Odin, 2012). O filme conta com três sequências em preto e branco (diferen-
Walker Evans ficou conhecido como o grande fotó-
temente do restante da obra que é em cores), nas
grafo da Depressão americano, nos anos 1930, ao
quais figurantes e pessoas comuns posam para a câ-
retratar trabalhadores do sul dos Estados Unidos.
mera como fossem ser fotografados, olhando dire-
Sua obra Let us now praise famous men (Elogiemos
tamente para a lente na espera do seu retrato. Tais
os homens ilustres, 1941), publicada com textos
sequências emulam a fotografia still, embora não
do jornalista James Agee, é referência da fotografia
sejam propriamente imagens sem movimento. Além
documental até os dias de hoje. Nas fotos vemos
1
disso, levando em consideração os fenômenos
crianças e adultos castigados pela crise econômica
propostos por Rajewsky (2012), podemos perceber
que assolava o país. Como em Diários de motocicleta,
referências ao trabalho de fotógrafos documentais.
os retratos em preto e branco continham um olhar
Nossa intenção aqui é entender quais são essas re-
frontal, com os personagens posando em frente a
ferências e como elas operam.
suas casas ou locais de trabalho. Assim como no filme, há uma predileção por pessoas comuns.
Autor de Na estrada – O cinema de Walter Salles 1 - Rajewsky (2012) propõe três fenômenos intermidiáticos: a transposição intermidiática, quando temos, por exemplo, a transposição de um livro para filme; a combinação de mídias, quando mais de uma mídia é visível em outra, como em Diários de motocicleta no qual a fotografia still apresenta suas características, para além daquelas já associadas a fotografia cinematográfica; e as referências intermidiáticas, quando temos a citação de uma mídia em outra, algo que também percebemos no filme de Salles, que referencia o trabalho de fotógrafos documentais.
Já o trabalho do fotógrafo suíço Robert Frank, autor de The Americans (1958), um dos livros fundadores da imagem norte-americana do pós-guerra, teria influenciado o diretor brasileiro a incorporar o inesperado. Frank defende que seus registros reproduzam uma experiência de conhecimento pessoal, efêmera
6
Sancler Ebert
Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção
e transcendental. (...) Essa ideia de produção rea-
companhia aquela que seria sua profissão por toda
lista, documental, aberta, que expressa a jornada
vida. Iniciou com um pequeno estúdio no qual aten-
individual do próprio realizador, é uma das chaves
dia a burguesia da cidade, até que aos poucos pôde
para o sucesso do cinema de Walter, desde Terra
começar a retratar pessoas comuns que encontrava
Estrangeira. Teve seu melhor resultado em Diários
na rua e convidava ao seu estúdio. Sua busca por re-
de motocicleta (STRECKER, 2010, p. 56-57).
gistrar os seus pares o aproximou da Alianza Popular Revolucionaria Americana (Apra), movimento políti-
Embora Strecker (2010) aponte aproximações en-
co indígena e nacionalista, que teve grande influência
tre os trabalhos de Evans e Frank com o de Salles, é
em Cuzco no início do século XX. O estúdio de Cham-
preciso observar que, enquanto os dois retrataram
bi era o ponto de encontro de pintores, escritores e
a sociedade americana, em Diários de motocicleta o
jornalistas que defendiam uma cultura radicalmente
brasileiro ressalta nas sequências que emula a fo-
indígena. Esquecida durante quase cinquenta anos, a
tografia a identidade latino-americana. Salles indica
obra do peruano formada por mais de 30 mil negati-
que sua inspiração foi na verdade o trabalho do fo-
vos foi redescoberta em 1988 (SALLES, 2002).
tógrafo peruano Martín Chambi, sobre o qual o diretor escreveu em sua coluna no jornal Folha de S. 2
Paulo em 03 de agosto de 2002 . A confirmação da 3
Para quem não conhecia sua obra, como eu, cada imagem é uma revelação. E um choque. Chambi
referência aparece no site do filme , assim como na
talvez seja o primeiro fotógrafo latino-americano a
obra de Williams (2007):
retratar o mundo em que vive e os rostos a sua volta de forma rigorosamente includente e original. O
Salles explica que ele foi influenciado pelo trabalho
que está em jogo é a criação de um olhar próprio,
de Martín Chambi, um fotógrafo peruano dos anos
através de uma certa descolonização do olhar (Ibi-
1920, “que foi o primeiro a levar a câmera para foto
dem, 2002).
do estúdio e fotografar as pessoas nas ruas. Ele retratou pessoas que nunca havíamos visto antes
Para Salles (2002), a obra5 do fotógrafo peruano su-
como cidadãos, antecipando o que os neorrealis-
geriu a possibilidade de estabelecer um olhar pró-
4
prio. Sendo assim, ao retratar as pessoas encontra-
tas italianos fizeram nos anos 1940 e 1950” (p. 24) .
das ao longo da jornada, o diretor procurou registrar O diretor brasileiro descobriu Chambi durante a
a identidade latino-americana por meio de um olhar
viagem de pesquisa realizada antes das filmagens
singular, que não fosse um olhar estrangeiro sobre
de Diários de motocicleta. De origem humilde, o fo-
as peculiaridades do continente, mas um olhar lati-
tógrafo trabalhou ainda criança numa empresa de
no-americano sobre o povo da América Latina.
mineração, na qual aprendeu com o fotógrafo da A escolha em referenciar a fotografia documental 2 - Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ ilustrad/fq0308200223.htm>, acessado em 22 de janeiro de 2016. 3 - Disponível em: <http://www.motorcyclediariesmovie. com/>, acessado em 22 de janeiro de 2016. 4 - Tradução de “Salles explains that he was influenced by the work of Martín Chambi, a Peruvian photographer of the 1920s, “who was the first to take the camera out of the studio and photograph people in the streets. He treated people you would never have seen before as citizens, anticipating what the Italian neorealist did in 1940s and ‘50s”. (p. 24)
está ligada ao fato de que a fotografia possui uma credibilidade em relação ao que retrata, como aponta Dubois (1994), ao dizer que existe uma espécie de consenso de que o documento fotográfico prestaria 5 - Uma mostra com obras do fotógrafo foi organizada pelo Instituto Moreira Salles, da família de Walter. Face andina – Fotografias de Martín Chambi trouxe 88 fotografias e 23 postais ao Acervo do Instituto. A mostra esteve aberta à visitação de 2 de outubro de 2014 a 29 de março de 2015.
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Sancler Ebert
Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção
contas do mundo com fidelidade, isso devido ao seu
atesta a realidade.
processo mecânico de produção da imagem, no qual a mecanicidade da câmera juntamente à química do
Se admitimos muitas vezes com bastante facilidade
filme (quando pensamos nas câmeras analógicas)
que o explorador pode relativamente fabular quan-
6
registram o que está em frente à lente .
do volta de suas viagens e elaborar, portanto, por exemplo para impressionar seu ouvinte, narrativas
Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu
mais ou menos hiperbólicas (...), ao contrário, a fo-
referente, ambos atingidos pela mesma imobilida-
tografia, pelo menos aos olhos da doxa e do senso
de amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em
comum, não pode mentir. Nela a necessidade de
movimento: estão colados um ao outro, membro
“ver para crer” é satisfeita. A foto é percebida como
por membro, como o condenado acorrentado
uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessá-
a um cadáver em certos suplícios (...) (BARTHES,
ria e suficiente, que atesta indubitavelmente a exis-
1984, p. 15).
tência daquilo que mostra (BARTHES, 1984, p. 25).
A fotografia se diferencia das outras artes pela sua
O cinema, por ser composto de fotografias em mo-
constituição como índice, uma vez que, diferente-
vimento, possui também esse poder de documen-
mente dos ícones, que são definidos por uma rela-
tação, principalmente quando caracterizado como
ção de semelhança, e dos símbolos, que são deter-
filme documentário, no entanto, como assinala Son-
minados por uma convenção geral, o índice mantem
tag (2007), “fotos podem ser mais memoráveis do
com seu referente uma conexão física (DUBOIS,
que imagens em movimento porque são uma nítida
1994).
fatia do tempo, e não um fluxo” (p. 28). Ou seja, por mais que as imagens em movimento tenham esse
Essa característica vai levar Barthes (1984) a contra-
poder de serem documentais, não possuem como
riar aqueles que acreditavam que os pintores ha-
a foto a qualidade de registrar um único momento
viam inventado a fotografia devido ao uso por estes
privilegiado e nem “podem ser convertidas em um
do enquadramento e da ótica da câmera obscura
objeto diminuto que as pessoas podem guardar e
e afirmar que os verdadeiros inventores foram os
olhar outras vezes” (Idem, p. 28). Podemos pensar
químicos, pois graças a eles descobriu-se a sensibi-
que o frame de um filme pode ser impresso, ser uti-
lidade dos sais de prata à luz e com isso foi possível
lizado em camisetas e banners, mas ao serem conge-
captar e fixar a imagem. “A foto é literalmente uma
lados deixam de ser imagem em movimento, cine-
emanação do referente” (Ibid, p. 120-121). Embora
ma, e passam a ser então outra coisa.
o cinema também tenha um referente fotográfico, “(...) esse referente desliza, não reivindica em favor
A partir desses conceitos podemos então perceber
de sua realidade, não declara sua antiga existência;
que as sequências aqui analisadas possuem uma
não se agarra a mim: não é um espectro” (Idem, p.
forte instrução documentarizante7 (ODIN, 2012),
133-134). E essa questão do referente estará liga-
7 - Odin (2012) sugere que o grau de referência à realidade do filme pode ser considerado como uma das possíveis oposições entre ficção e documentário. O que os distinguiria seria o tipo de leitura realizada pelo espectador: caso a imagem construída considere a origem do enunciador como inexistente ou fictícia, se constitui uma “leitura fictivizante”; por outro lado, se o espectador construir uma imagem do enunciador como sendo real, há uma “leitura documentarizante”. Odin propõe que além da leitura empreendida pelo espectador, o filme pode instruir leituras documentarizantes e fictivizantes,
da ao uso da fotografia como prova, como algo que 6 - Claro que essas reflexões foram feitas antes da ascensão dos programas de correções de imagem disponíveis nos computadores. Hoje, uma imagem, por mais crível que seja, pode ter sido alterada, o que afeta de alguma forma esse ideário da fotografia como 100% fiel à realidade, no entanto, a crença na fotografia permanece existindo.
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Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção
Sancler Ebert
pois, ao usarem da referência à fotografia documen-
Podemos refletir que o espectador que sabe da refe-
tal em sua estética, indicam aos espectadores que
rência ao trabalho de Martín Chambi vai ter um tipo
aquelas pessoas retratadas são enunciadores reais,
de leitura do filme, mais próxima daquela pensada
pois a fotografia tem esse poder de atestar, de servir
pelo diretor. No entanto, mesmo o espectador não
da prova de existência de certas realidades. A utiliza-
sabendo dessa referência, uma maior será por ele
ção da fotografia como referência produz tal efeito
percebida: a referência à fotografia documental. As
que passamos a encarar até mesmos os figurantes
sequências têm em comum uma estética já asso-
como atores naturais. Porque entre as feirantes, os
ciada a tal tipo de fotografia (a imagem em preto e
trabalhadores do campo e os indígenas de Cuzco se
branco, o retrato com olhar frontal, a predileção por
encontram os atores do leprosário e o intérprete do
pessoas simples e pobres, a utilização dos locais de
mineiro encontrado no deserto.
trabalho e vivência como cenário). Dessa forma, tais aspectos por si só dão uma instrução documentari-
por meio de certos elementos, como no caso de Diários de motocicleta, pelo uso da fotografia.
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zante ao espectador, que está acostumado a ler tais registros como reais. RAJEWSKY, Irina. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no
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ODIN,
Roger.
Filme
documentário,
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Fotografia: essência e hibridismo Cristiano Franco Burmester (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, professor doutor ) cristiano.burmester@gmail.com - www.crisburmester.com.br RESUMO: Esta pesquisa investiga as transformações do campo midiático da fotografia em função das intensas transformações decorrentes das inovações tecnológicas provocadas pela digitalização dos meios. A questão central de pesquisa assim se coloca: o que essas transformações podem significar e possibilitar nos termos da renovação das narrativas fotográficas? O processo de hibridização a que estão submetidos os meios de comunicação pode gerar uma forma coerente? Como base metodológica foram utilizados os trabalhos: A Imagem-Tempo de Gilles Deleuze, a análise das mídias, em Entre-Imagens e L’entreImages 2 de Raymond Bellour, o estudo de Edmond Couchot sobre a presença da tecnologia na arte, na obra de mesmo nome, e a pesquisa de François Soulages em A Estética da Fotografia. PALAVRAS-CHAVE: fotografia, cinema, vídeo, tecnologia, convergência, linguagem. Introdução
encontrou na experimentação com a imagem em movimento um espaço para a criação ficcional e o
O diálogo realizado entre a fotografia e o cinema se
entretenimento.
desenvolve desde a origem do cinema, posterior a da fotografia, quando da ocasião da invenção do ci-
De certa maneira, a linguagem fotográfica se afir-
nematógrafo pelos irmãos Lumiére (CAMPANY, 2008.
mou como uma linguagem documental, onde o re-
p.10).
gistro da realidade visível, em formato estático, se tornou o principal motivo da linguagem fotográfica.
A fotografia, aprimorou-se ao longo do tempo na
A imagem em movimento proporcionou ao cinema
busca pelo registro do instante, aquele momento
uma abordagem diferente, onde as sequências de
ínfimo de tempo que não sucederá mais e que as-
imagem em movimento, criaram um espaço para a
sim congela em imagem um traço de realidade em
ficção, construída a partir da atuação do cineasta.
tempo passado. Já o cinema, buscou a imagem movimento, o registro do visível em imagens em forma-
Será decorrente das suas diferenças que ambos os
to dinâmico, em movimento contínuo.
meios irão criar uma relação de diálogo, por vezes de aproximação, por outras de distanciamento. Este
O aprimoramento das linguagens fotográfica e au-
trabalho de pesquisa busca olhar mais atentamen-
diovisual ao longo da história, estabeleceu as identi-
te esta interação, especificamente a partir da digi-
dades de ambos os meios, porém suas construções
talização dos meios, e se apoia no surgimento de
são resultado de um intenso processo de embate,
aparatos fotográficos digitais capazes de fotografar
através de aproximações e distanciamentos que pu-
e filmar a partir de um mesmo equipamento como
deram adquirir contornos mais profundos na medi-
ponto de inflexão.
da em que ocorreu o processo de digitalização dos meios. Ainda no século XIX, enquanto o fotógrafo
Fotografia e Cinema
Edward Muybridge, demonstrou através de fotografias, congelando em instantes distintos, a configura-
Inicialmente, será o desejo por imprimir o movimen-
ção do ciclo de passadas do galope de um cavalo.
to nas imagens que empurrará a fotografia em dire-
Contemporaneamente, o cineasta Georges Méliès
ção ao cinema, e neste sentido, diversas experiências 10
Cristiano Franco Burmester
Fotografia: essência e hibridismo
serão realizadas por fotógrafos que buscam se desprender da rigidez do congelamento da imagem fotográfica. O francês Jacques Henri Lartigue irá produzir no início do século XX, registros fotográficos que incorporam o “borrão” ou o “tremido” como forma de exaltar o movimento na imagem estática.
The Americans. Robert Frank. EUA, 1952-1954.
Ao se aproximar do cinema, a fotografia buscou o A ruptura com a rigidez do congelamento da foto-
movimento. Nos exemplos anteriores, expressos
grafia estará no centro de muitas experimentações
pelo “borrão” e pelo conflito provocado pela edição,
realizadas ao longo da história da linguagem foto-
a imagem congelada busca uma atualização tempo-
gráfica e será realizada com a utilização de vários
ral, tentando escapar do passado e se colocar nova-
métodos. A edição fotográfica também é uma forma
mente no presente, ao menos em sua intenção de
de construção narrativa, primeiramente tendo sido
revelar que algo a sucederá e assim repetidamente
operada com o objetivo da máxima síntese possível,
(DELEUZE; 1990. p.102).
ou seja, a expressão em uma única imagem, um conjunto de informações e significados. Sob um ponto
O cineasta japonês Akira Kurosawa se apropriou da
de vista, podemos entender que este resultado tam-
linguagem fotográfica em muitas das suas produ-
bém representa uma concepção rígida da linguagem
ções cinematográficas. Agora, ao contrário da busca
fotográfica.
pelo dinamismo, foi o efeito da pausa, do estático ou “still” que o cineasta perseguiu. O sentido natural de continuidade provocado no espectador pela imagem em movimento sofre uma ruptura através da operação da pausa, propondo um atitude mais reflexiva para o público (BELLOUR, 1993. p.10).
RAN. Akira Kurosawa. Story-board e still. 1985. Papai a quase 80 quilômetros por hora. Jacques Henri Lartigue. Paris, 1913.
Em suas obras, muitas delas com temática de conflitos e guerras em diferentes períodos da história
O suíço Robert Frank realizou um belo trabalho de
do Japão, o cineasta apresentou personagens fortes
documentação da sociedade norte-americana no
em momentos de confronto e intimidação através
início da década de 1950 e provocou uma ruptura
da parada do movimento da câmera, produzindo as-
com o excesso de controle exercido pelos conceitos
sim um reforço da tensão quando personagens cru-
de edição ao propor um formato de apresentação
zavam olhares em posição estática, à semelhança de
do seu trabalho onde fotografias conflitantes foram
um registro fotográfico.
dispostas lado a lado, provocando uma leitura não linear das imagens pelo público.
De certa maneira, a busca pelo movimento operado pela fotografia propõe um olhar de dentro para fora da imagem, ocorre uma busca para aquilo que 11
Cristiano Franco Burmester
Fotografia: essência e hibridismo
está fora do quadro, ou seja, a continuidade em seu
trazendo não somente agilidade, fluidez e flexibili-
potencial. Em sentido oposto, a pausa provocada
dade, mas também possibilidades de aproximações
pelo “still” no cinema estimula o espectador a entrar
e apropriações de linguagem mais profundas. Gra-
na imagem, atentar para a tensão do momento ali
dualmente, a hibridização vai se intensificando no
representado.
campo audiovisual.
La Jetée, é um filme construído a partir de fotos do-
A revolução que ocorre no campo da comunicação
cumentais, imagens de arquivo, breves sequências
é a constatação de um certo grau de dificuldade de
de fotogramas extraídas de filmes e algumas fotos
se pensar esteticamente um meio sem considerar a
encenadas para complementar a narrativa do filme,
sua pluralidade interna (COUCHOT, 2003. p.265). Em
sendo todo este material montado individualmen-
certa medida, o hibridismo vai ganhando uma pre-
te na mesa de edição. Seu autor, o cineasta francês
sença mais expressiva no campo do audiovisual, tra-
Chris Marker, articulou todo este material visual atra-
zendo a tona a necessidade de compreensão mais
vés de uma série de recursos executados na etapa
ampla sobre como operam os mecanismos de hibri-
de pós-produção, tais como movimentos panorâmi-
dização dos meios.
cos, zoom, dissolve, fusões, além de música e narração em off. Sua temática de ficção científica que se
A convergência tecnológica é o termo que ficou co-
passa entre um tempo passado e a possibilidade do
nhecido para este processo de aproximação dos
futuro permitiu que através da linguagem audiovi-
meios em sua faceta técnica. No campo da fotogra-
sual, a fotografia adquirisse a percepção do tempo
fia, um desdobramento contemporâneo da conver-
presente (BELLOUR, 1999. p.10).
gência tecnológica é o surgimento de câmeras fotográficas capazes de fotografar e filmar a partir de um
Este filme, produzido em película na década de 1960,
mesmo equipamento.
tornou-se uma referência no campo da produção audiovisual, pois conseguiu revelar a pluralidade inter-
Esta transformação tecnológica amplia o escopo da
na dos meios, revelando assim a porosidade natural
hibridização dos meios audiovisuais, pois agora é
presentes na fotografia, no cinema e nos meios au-
possível trabalhar ainda mais intensamente a apro-
diovisuais como um todo. Em que medida então os
priação de linguagem, porém existe um limite para
processos de ressignificação dos meios transformam
este processo? Qual seria o ponto em que fotografia
as narrativas visuais? E deste processo de transfor-
e cinema deixariam de representar suas identidades
mação, o que permanece como essência dos meios?
essenciais?
Imagem e Tecnologia A tecnologia da informação aplicada aos meios de comunicação provocou um profundo processo de digitalização das mídias, ampliando largamente as possibilidades de aproximação das linguagens audiovisuais decorrente da sua configuração em base numérica, ou seja, digital. Inicialmente, a tecnologia digital no campo das imagens facilitou os processos de edição e pós-produção,
Paris. Stephen Wilkes. 2015
12
Cristiano Franco Burmester
Fotografia: essência e hibridismo
O fotógrafo norte-americano Stephen Wilkes cria
podendo ser explícita ou implícita. Sua concepção fi-
imagens que em sua concepção visual final revelam
nal permite uma abertura ou um fechamento, como
a passagem do tempo em um período extenso, reve-
por exemplo, Akira Kurosawa executou em seu filme
lando o transcorrer do dia até o cair da noite sobre
Ran. Durante o filme há diferentes momentos de
uma mesma paisagem. Aqui, ao contrário da foto-
parada, onde cavaleiros ou exércitos permanecem
grafia do francês Jacques Henri Lartigue que suscitava
imóveis, quase congelados como em uma fotogra-
o transcorrer do tempo para fora do quadro, o olhar
fia, forçando ali uma pausa para a reflexão antes do
se volta para o interior, provocando a imaginação e
avançar do pensamento, da história e do filme.
o entendimento do observador pela ruptura com a linguagem fotográfica até então. A imagem final é
Já a co-criação é o mecanismo do trabalho realiza-
uma montagem de mais de 1000 fotos capturadas
do em conjunto com outro meio. Podemos observar
em intervalos regulares durante um período de
este processo em diferentes produções multimidiá-
aproximadamente 12 horas. A concepção estática
ticas, onde uma peça audiovisual é composta por fo-
da fotografia se vê subvertida pela nítida percepção
tografias, trechos de vídeos, narração, áudio e texto.
da extensa duração do tempo de registro.
La Jetée também é um bom exemplo de produção em co-criação.
Mecanismos de Ressignificação Narrativas Visuais Para entendermos melhor os processos de hibridização dos meios, particularmente da fotografia, é
Em meio à efervescência das transformações, qual é
importante compreendermos alguns dos mecanis-
o espaço a ser ocupado pela fotografia contemporâ-
mos de tradução em operação nas aproximações e
nea? O campo entre a narrativa e o estático parece
distanciamentos da fotografia com os demais meios
delimitar uma área ampla o suficiente para que a fo-
audiovisuais.
tografia possa se colocar, mantendo suas características essenciais, ao mesmo tempo em que acolhe e
Provavelmente o mecanismo mais próximo da ori-
expressa o seu potencial de hibridismo.
gem fotográfica é o registro, que se coloca não apenas como um meio, mas como um fim, ou seja,
Os processos de hibridização dos meios acontecem
permite que uma fotografia represente a realidade
pela operação de mecanismos de tradução que ao
visível, à semelhança ou não de qualquer outra for-
se colocarem em ação reforçam as características
ma de expressão.
essenciais dos meios, ou seja, uma imagem híbrida somente adquire esta condição na medida em que
O mecanismo da transferência é o deslocamento de
se torna mais evidente a essência do meio em ques-
um meio para o outro, a exemplo, do que realizou
tão, seja ele a fotografia, o cinema, o vídeo ou outra
o diretor francês Chris Marker em seu filme La Jetée.
forma de expressão do campo audiovisual.
Ali, as fotografias foram deslocadas para o audiovisual, na medida em que foram editadas e montadas
De qualquer maneira, o processo de hibridismo tam-
como uma película cinematográfica, proporcionan-
bém ocorre por purificação, criando assim zonas on-
do uma passagem das imagens do tempo passado
tológicas distintas, e não somente por mecanismos
para o tempo presente, característica inerente da
de tradução (LATOUR, 1994. p.16).
linguagem cinematográfica (SOULAGES, 2010; p.279) Ao mesmo tempo em que pensamos a convergênA referência é outro mecanismo em operação,
cia tecnológica e os mecanismos de tradução e suas 13
Cristiano Franco Burmester
Fotografia: essência e hibridismo
reelaborações de linguagem, podemos perceber
ambos, a análise constante dos percursos das trans-
que as traduções entre os meios acontecem mais
formações é provavelmente o método mais eficaz
intensamente nos indivíduos do que na tecnologia.
tanto para o olhar crítico quanto para a reelabora-
Em sua origem, é o humano que catalisa os proces-
ção criativa.
sos de transformação. A aceitação de que o contexto cultural atual é híbrido Como resultado deste processo de reflexão sobre
em sua essência pode colaborar para as proposições
as transformações das narrativas fotográficas, al-
metodológicas, na medida em que o entendimento
gumas observações apontam para caminhos tanto
dos processos passa a ter igual relevância quando
para o pesquisador quanto para o realizador. Para
comparado à necessidade de nomeação dos signos.
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14
Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme* Eliane Vasconcelos Diógenes (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutoranda / UNIFOR, professora) elianevd@uol.com.br Raphaela Areias da Silveira Miquelete (UFU, graduada) raphaela_miquelete@hotmail.com RESUMO: Este trabalho se propõe a examinar os modos de apropriação da fotografia e vídeos domésticos em documentários, nos quais o diretor, sob efeito do impacto da morte ou da ausência de uma pessoa do seu complexo familiar, busca resgatar a própria história. Investigamos a intencionalidade e a forma de apoderamento destes recursos estilísticos midiáticos na construção da memória através da linguagem cinematográfica. Revisitamos a história do cinema documental para observar a emergência deste modo de narrativa e seus desdobramentos contemporâneos no cenário brasileiro. Verificamos que, ao inserir estes recursos na montagem, o documentarista procura resgatar suas histórias íntimas e trágicas na trama entre memória e estética, favorecendo identificações do receptor. Deste modo, estas histórias deixam de ser apenas particulares, passando, também, a públicas. PALAVRAS-CHAVE: documentário, fotografia, vídeo doméstico. Introdução
publicadas e fomentar memórias comuns? Propomos uma discussão sobre o deslocamento dessas
Este trabalho se propõe a examinar os modos de
imagens para a realização de filmes atraentes, não
apropriação da fotografia e vídeos domésticos em
ficando circunscritas ao universo dos indivíduos
documentários, nos quais o diretor, sob efeito do
envolvidos. Para este debate, destacamos algumas
impacto da morte ou da ausência de uma pessoa do
obras referenciais na história do cinema documental
seu complexo familiar (pai, mãe, irmão, tio), busca
a fim de observar a emergência deste modo de nar-
resgatar a própria história. Investigamos a forma de
rativa e seus desdobramentos contemporâneos no
se assenhorar destes recursos estilísticos midiáticos
cenário brasileiro: Diário de uma busca (Flávia Cas-
na construção da memória.
tro, 2010), Elena (Petra Costa, 2012) e Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013).
Nestes documentários assistimos a busca afetuosa do documentarista em recuperar, dignificar, inúme-
O uso do arquivo familiar na composição do
ros fragmentos da história de sua família, contando,
filme autobiográfico
como recurso fundamental, o arquivo familiar composto por fotografias, vídeos domésticos, cartas,
O gesto de apropriação de imagens de arquivo se
certidões, restos de objetos, lembranças. Rastros de
intensifica cada vez mais no cenário audiovisual con-
histórias íntimas.
temporâneo. Desde o final dos anos 80, expressar a vida íntima do documentarista aparece como uma
Uma questão nos coloca a pensar: como essas ima-
tendência forte do documentário, o que envolve o
gens particulares do documentarista podem ser
movimento de retomada de imagens domésticas.
*Esta pesquisa é beneficiada pela política de fomento da CAPES/PROSUP.
15
Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete
Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme
Os documentários costurados com narrativas au-
O vasto acervo deixado pelo pai e avô conta o coti-
tobiográficas são compostos também de imagens
diano comum e trivial da família. São horas de filme
extraídas de acervos privados. Os efeitos desse pro-
em 8mm e uma questão para o cineasta: que fim dar
cedimento são complexos, produzindo obras poten-
a essas imagens? Se, com um olhar descuidado, os
tes, o que chama atenção da crítica cinematográfica.
filmes domésticos parecem harmônicos e ingênuos,
(LINS; REZENDE; FRANÇA, 2011; LINS; BLANK, 2012).
com mais acuidade e atenção revelam as contradições, os conflitos incipientes. A intimidade não é
Fotografias e vídeos, vestígios de histórias e memó-
assim tão plácida e sorridente. Berliner enxerga na
rias, guardados em baús esquecidos e mofados de
representação idealizada da família, a farsa. (MON-
família, são trabalhados para entrar na composição
TEIRO, 2012).
fílmica. Imagens carregando uma certa fragilidade, inexatidão, revelam e confundem ao mesmo tempo,
Seus filmes são feitos de aparentes insignificâncias,
demonstrando suas insuficiências para recuperar
nas quais ele encontra sentido. Coisas pequenas,
o passado. Deste modo, faz-se necessário o docu-
acontecimentos menores, histórias banais. Os epi-
mentarista trabalhar estas imagens no compasso do
sódios cotidianos não têm nada de grandioso, são
desmontar e remontar, estabelecer relações, fazer
uma oposição ao heroísmo, aos reconhecidos vito-
séries, interpretar. (LINS; REZENDE; FRANÇA, 2011;
riosos. Narram uma série de conquistas ínfimas, os
LINS; BLANK, 2012).
mínimos comuns.
O processo de evocar nuances da sua própria tra-
Em 2003, Jonathan Cauette lança na cultura audiovi-
jetória requer tocar em camadas menos visíveis de
sual a obra Tarnacion, sobre a relação com sua mãe;
imagens e sentidos. Assim, imagens perdidas, dis-
os transtornos psicopatológicos dela são interliga-
persas, guardadas sem critério de organização ou,
dos à nuances da vida do filho, atando o nó entre
aparentemente, sem sentido são apropriadas, des-
eles. O diretor recupera vasto arquivo pessoal: fitas
locadas, contextualizadas, passando por um proces-
de VHS, filmes caseiros em Super-8, fotografias e fi-
so de ressignificação. A operação da montagem pro-
tas de áudio. Assistimos à abertura do baú de me-
move construções, invenções de novas memórias.
mórias da família, à explicitação da intimidade.
(LINS; BLANK, 2012). Tarnation é um documentário que, do ponto de vista Nos EUA, Alan Berliner realiza documentários mar-
da construção narrativa, vale-se de recursos ampla-
cados pela dimensão autobiográfica, memória, fa-
mente utilizados pelo gênero ficcional. Flagramos o
mília e inaugura uma forma específica de compo-
tratamento surpreendente da montagem no proces-
sição do filme, estruturada em fotografias e vídeos
so de construção da narrativa. Na obra, a instância
amadores. Destacamos os documentários: Intimate
temporal é completamente manipulada pela organi-
stranger (1991) e Nobody’s business (1996). A singula-
zação da montagem dos materiais arquivados por
ridade do cineasta está justamente na maneira de se
Jonathan. Se Tarnation é a história de uma trajetória
apropriar das imagens caseiras, em sua maioria pro-
de vida contada quase exclusivamente a partir de
duzidas por seu pai e avô, enxergando aí histórias
materiais de arquivo, é o modo como o diretor os
encobertas. Como em um trabalho de mineração,
articula que vai delimitar a estrutura temporal que
as histórias estão para serem extraídas e lapidadas,
tece a narrativa. (COELHO; ESTEVES, 2010).
criando narrativas que extrapolam o âmbito privado. (MONTEIRO, 2012).
16
Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete
Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme
Fluxo das imagens do arquivo particular para o
médio no receptor, um interesse nas imagens como
espaço público nos documentários brasileiros
testemunhos políticos, históricos; o olhar se susten-
recentes: Diário de uma busca, Elena e Os dias
ta pela via da busca de informações. Já o punctum
com ele
provoca um afeto pungente, um arrebatamento; a fotografia atinge o receptor de modo a causar-lhe
No Brasil, o documentário Diário de uma busca evoca
uma ferida, um incômodo, algo inominável. Assim, o
a militância de Celso de Castro, pai da diretora, na
studium está sempre codificado e o punctum, não. Na
ditadura militar. Ele morreu em circunstâncias mis-
composição do filme de Flávia, o uso das fotografias
teriosas na presença da polícia, em 1984. A cineasta
é permeado significativamente pela ordem do punc-
busca recuperar memórias e questionar a versão
tum, pela potência das imagens em nos sensibilizar.
oficial deste fato. O documentário começa mostrando as circunstâncias da morte de Celso. Flávia resga-
No documentário Elena, Petra Costa vasculha as in-
ta fotografias publicadas nos jornais da época, dos
terações entre sua vida e a história da sua irmã, que
laudos e arquivos públicos da polícia. Apresenta a
se matou quando ela tinha sete anos. Assistimos a
versão oficial da história para, em seguida, proble-
um mosaico que consiste na exposição de fotogra-
matizá-la, denunciando contradições e lacunas. As-
fias, filmes domésticos, gravações de fitas k7, cartas
sim, ela se empenha no questionamento da versão
e desenhos, através de um fluxo vertiginoso. As vá-
oficial, que indica suicídio. A diretora não logra êxito
rias mídias reproduzidas são amplamente explora-
na conquista de certezas para se contrapor, porém
das numa narrativa epistolar e bem sucedida, possi-
desmancha a exatidão da perícia policial. (DIÓGE-
bilitando íntima identificação do público.
NES; MOTA, 2014). A composição do filme se constitui de diferentes texFotografias, pertencentes à acervos pessoais e pú-
turas das imagens de fotografia e filmes de família.
blicos, são exibidas no filme demonstrando o forte
Este material flui no compasso da nostalgia, no ritmo
entrelaçamento entre memórias pública e privada.
da “memória inconsolável”. Inscreve-se o processo
A exibição de fotografias do arquivo particular é um
do luto para tocar na morte. Assim, diante da invia-
gesto recorrente da realizadora para narrar histórias
bilidade de significação desta perda, a narrativa as-
de fugas, desaparecimentos de pessoas queridas. A
sume um tom profundamente lírico, os enigmas são
narração no tom intimista e afetivo acompanha a se-
bordejados e o tom poético se sobressai na medida
quência das fotografias. O espectador é convocado
em que o discurso subjetivo e metafórico avança. Os
a olhá-las como se estivesse diante de um álbum de
vídeos caseiros são contaminados pela perspectiva
família. Este procedimento estilístico injeta na com-
performática. Um forte desejo de ficcionar ronda o
posição fílmica um certo tom doloroso da saudade.
processo de realização: a presença marcante da mú-
Flávia Castro pontua o quanto sua infância e adoles-
sica, a combinação da voz em off de tom melancóli-
cência foram marcadas pelos caminhos tortuosos
co e as imagens de arquivo de Elena, o tratamento
do pai, consequência dos rumos violentos da política
das imagens, as paradas das imagens, as fusões e
na América Latina.
colorizações.
Barthes (1984) aborda dois conceitos, studium e
O documentário Elena nos lança aos estudos sobre
punctum, que nos ajudam a compreender o fenô-
filme de família. Segundo Roger Odin (1995, 2010),
meno causado pela apresentação das fotografias ao
os filmes domésticos são marcados profundamen-
longo deste documentário. Há fotografias que ope-
te pelas cenas do cotidiano e por pessoas que não
ram pela ordem do studium, o que suscita um afeto
estão preocupadas com as regras cinematográficas, 17
Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete
Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme
portanto, não intencionam realizar um filme pro-
Na montagem do filme, há a inclusão de um curioso
priamente dito. O cineasta familiar funciona como
material de arquivo: imagens em Super-8, registros
um agente catalisador ao acionar encontros. O ma-
domésticos de outras famílias. Durante a exposição
terial é comumente uma miscelânea de imagens tre-
de algumas destas imagens, ela anuncia de manei-
midas, borradas e mal enquadradas, planos curtos
ra repetida em voz off a frase “este não é meu pai”;
ou longos demais. O filme de família tende a ser um
como se o estivesse procurando, ou evidenciando
filme incompleto, não contando uma história. São fil-
sua ausência no meio daquela sequência de ima-
mes abertos, fragmentados, dispersos.
gens sequestradas de arquivos alheios.
Para Odin (1995, 2010), a potência de um filme de
Jacques Rancière (2013) defende a tese de que o
família se baseia exatamente na sua falta de aca-
documentário nos possibilita problematizar a me-
bamento, na sua feitura considerada malfeita pelo
mória. A realização do documentário não se funda-
julgamento estético criterioso, o que deixa brechas
menta na perspectiva de conservá-la, mas de criá-la.
para as pessoas recriarem suas próprias narrativas
Afinal, memória é um certo arranjo de signos, ves-
e memórias, isto é, quanto menos perfeito o registro
tígios; o passado sai do terreno da certeza para se
audiovisual for, mais possibilidades de reinvenção
posicionar na ordem do duvidoso. A memória deve
da história familiar. Montar um filme de família as-
constituir-se tanto contra a superabundância das
segura o poder ao documentarista sobre a narrativa,
informações quanto contra sua falta. A memória se
causando muitas vezes um “mal-estar”, um descon-
constrói na montagem, na maneira de entrelaçar
forto geral. As discordâncias sobre as interpretações
série de imagens heterogêneas, fragmentos de fil-
das imagens criam tensões.
mes, depoimentos dos entrevistados, sobrepondo imagens e sons. No ritmo do ziguezague, a monta-
Àlvarez (2010) comenta que estes documentários ex-
gem restringe ou alarga a capacidade de sentido e
pressam conflitos. Os registros domésticos ganham
de expressão das fotografias e filmes domésticos.
inusitada carga de sentido, remetendo o espectador
Assim, memória rima com fabulação e, em alguma
às lacunas da existência humana. Neste filme, isso é
instância, o cinema documentário é um modo de se
flagrante quando são exibidas imagens alegres e, ao
ficcionar. No filme Os dias com ele, esta perspectiva
fundo, há o contraste de uma narração em tom de
de articulações entre memória e fabulação se revela
tristeza. Assim, a narrativa não ilude o espectador
na composição fílmica, onde, para dar conta destas
quanto à condição espetacular das imagens domés-
“imagens que faltam”, a diretora “cria” a sua própria
ticas. Muito pelo contrário, os registros domésticos
memória.
ganham significações muito mais complexas. Considerações finais No documentário Os dias com ele, Maria Clara Escobar coloca o espectador como testemunha da sua
Nestes documentários, assistimos ao modo perfor-
busca pelo pai, Carlos Henrique Escobar. Assistimos
mático de narrar, retomar rastros de histórias de
a filmagem do encontro marcado pelo seu desejo de
família, através da inserção de fotografias e vídeos
aproximações com o pai, quase um desconhecido
domésticos. O trabalho de montagem é fundamen-
para ela. Presenciamos a peleja pelo resgate das me-
tal para a posse fecunda deste acervo íntimo, re-
mórias dele, referentes à sua vida, à época da dita-
sultando numa narrativa envolvente. A memória é
dura militar e, também, à relação dos dois. Durante
construída no fluxo da narrativa, sendo afetada pe-
os diálogos sabemos, gradativamente, das rupturas,
las interferências das emoções. Assim, memória e
distâncias entre os dois no transcorrer da vida.
fabulação se entrelaçam, o documentário se realiza 18
Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete
Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme
na tensão entre memória e invenção imaginativa. As
autobiográfico extrapole as categorias estabeleci-
imagens são perturbadoras e têm efeito de espanto.
das, criando linguagem própria e narrativas híbridas. Deste modo, estas histórias deixam de ser apenas
Ao inserir estes recursos midiáticos na montagem,
íntimas e particulares, passando também a públicas
o documentarista expõe suas histórias íntimas e
e universais. A complexidade da vida está contem-
trágicas na trama entre memória e estética. A com-
plada quando exacerbados os limites da arte e suas
binação de mídias permite que o documentário
possibilidades criativas.
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Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete
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20
Entre afetos: imaginĂĄrios e fronteiras do horror Coord. Baldomero Ruiz Ortiz (UAM/MĂŠxico)
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce Thales Figueiredo da Silva (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestrando) thalesfig@gmail.com RESUMO: O que se pretende analisar aqui são as alterações do papel que o zumbi desempenha nos filmes de George Romero e Bruce LaBruce. O primeiro, criador do zumbi do cinema moderno e o segundo um cineasta queer que realizou dois filmes com morto-vivos. Aqui, porém, será tratado mais especificamente do primeiro: Otto; or Up with dead people (2008). Através de uma análise comparativa tentará revelar as convergências e as divergências em como se realiza a criação dessa personagem em tais narrativas, uma vez que ambas se utilizam do zumbi com a preocupação de realizar filmes com críticas sociais. Introdução
uma série de questões de um outro momento, em que uma série de lutas sociais estavam ocorrendo
Os filmes com zumbis começaram a aparecer na dé-
nos Estados Unidos. Noite dos Mortos Vivos (Geor-
cada de 1930. Assim como o cinema hollywoodiano
ge Romero, 1968) irá alterar os paradigmas do fil-
da década, os filmes de terror procuravam narrati-
me de zumbi, ressignificando tal personagem para
vas já conhecidas do público, como maneira de tor-
uma problematização da sociedade norte-america-
nar mais fácil com o público. Os filmes de terror com
na naquele momento. Quarenta anos depois, Bruce
o elemento do morto-vivo já estavam sendo produ-
LaBruce lança Otto; or Up With Dead People (2008).
zidos então com base em histórias já conhecidas,
No filme as posições dos elementos dos filmes de
como Drácula e Frankenstein.
zumbi são novamente alteradas, atualizando esses elementos para trabalhar questões do seu tempo e
Nesse momento uma série de livros e peças com
do seu meio, a comunidade LGBT.
zumbi, vinculado ao vodu haitiano são sucesso nos Estados Unidos. Nesse contexto é produzido White
O zumbi de George Romero
Zombie (Victor Halperin, 1931) baseado num livro e considerado o primeiro filme com zumbi. (GOMES;
Até George Romero realizar seu primeiro longa como
MASSAROLO, 2013, p.198) O filme é uma produção
diretor, Noite dos mortos vivos, o as características do
independente, o que revela a descrença dos grandes
filme de zumbi não tinham sido muito alteradas. Ro-
estúdios nessa temática, mesmo tendo Bela Lugosi
mero, que iniciou a carreira produzindo e dirigindo
no elenco. Nesse período, o zumbi é parte da amea-
comerciais e documentários esportivos, encontrou
ça representada pela alteridade, o estrangeiro, nes-
resistência em achar investidores para um filme que
se caso específico, as culturas caribenhas, em espe-
se passasse na sua cidade: Pittsburgh. Então veio a
cial o vodu haitiano e possibilitando a leitura como
ideia de fazer algo inspirado em I am a legend, livro
um questionamento sobre a miscigenação, num
de Richard Matheson, atraindo dinheiro mais facil-
momento que isso é importante para a sociedade
mente por se tratar com o filme de terror.
norte-americana, em que é posto no papel de vilão esse estrangeiro místico que ameaça a sociedade
Com um forte cunho político, o diretor queria tratar
branca hegemônica.
de temas que o incomodavam na sociedade da época, ele tinha a preocupação de realizar filmes que
Na década de 1960 os filmes de terror materializam
não fossem um filme de terror simples, mas obras 22
Thales Figueiredo da Silva
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
que “querem transmitir uma visão sobre um gênero
em filmes de terror da época. Wood escreve que a
que não é levado a sério no cinema norte-america-
fácil identificação do terror com o público parte de
no”, se tratando de um “ataque satírico a sociedade
sua forma simples: a normalidade é a ameaçada por
norte-americana” (WILLIAMS, 2003, p.5).
um monstro. (WOOD, 2003) Porém, o que Romero evidencia é que tal normalidade também é extrema-
A principal alteração do zumbi operada em A noite
mente opressiva. Na trilogia de Romero, os micro-
dos mortos vivos foi a retirada da posição de sub-
cosmos da sociedade confinados aos espaços fecha-
serviência em que o zumbi era colocado nos filmes
dos são tão ou mais ameaçadores que os zumbis.
desde a década 30. Agora, eles voltariam a vida sem
Portanto, os filmes retratam essa impossibilidade
estar sobre algum feitiço externo, e sim como uma
de voltar à normalidade, uma vez que ela também
condição biológica, com um objetivo natural, uma
não é interessante aos seus personagens no mundo
vontade de sobreviver através da alimentação de
pós-apocalíptico.
carne humana. Essa mudança tirou os zumbis do seu papel de acessório, posto que anteriormente
Para o presente trabalho, o segundo filme da trilo-
seguiam os comandos de um vilão maior, para se
gia, Despertar dos mortos, se torna mais relevante
transformar no elemento determinante autônomo
por ter personagens homossexuais e se utilizar mais
do terror do filme, conferindo-os o papel de anta-
do humor e do gore, o que o aproxima mais da obra
gonista e medo maior dos protagonistas do filme.
de Bruce LaBruce. No filme quatro sobreviventes –
(GOMES; MASSAROLO, 2013, p.201)
um casal heterossexual tradicional e dois policiais que se conhecem brevemente no começo do filme
Sua obra tem uma série de filmes de zumbi, mas a
- acabam por se refugiar num shopping (espaço me-
sua trilogia original dos mortos na qual se criou as
tonímico da sociedade de consumo neoliberal dos
bases desse zumbi moderno no cinema, nela ele co-
anos 80).
loca no papel de protagonistas (únicos que mantém um senso de humanidade e que conseguem enfren-
Assim que eles chegam nesse espaço a viagem para,
tar a situação sem se entregar a opressão dos outros
e eles começam a desfrutar do shopping, com a mu-
vivos) representantes de oprimidos pela sociedade
lher sendo a única personagem crítica a tal postura.
heteronormativa patriarcal: em Noite dos mortos
Eles então começam a matar os zumbis que estão
um negro; em O despertar dos mortos (1978) um ne-
no shopping para ficar com o espaço e o filme co-
gro e uma mulher; e, em Dia dos mortos (1985) uma
meça a trabalhar os paralelos entre os vivos e os
mulher.
mortos, ambos reduzidos aos seus instintos mais banais, que se comportam igualmente inertes frente
Esses três filmes são essenciais para a alteração do
as atrações do shopping.
gênero e muito representativos do potencial dos filmes de terror, eles “exigem uma redefinição parcial
As relações entre os casais também são bem mar-
dos princípios segundo os quais o gênero opera nor-
cadas e problematizadas no filme. Enquanto o casal
malmente, e eles são mais distintas umas das outras
mantém um relacionamento claro, em que o ho-
- em personagem, tom e significado”. (WOOD, 2003,
mem vai assumindo cada vez mais uma situação de
p.85)
domínio, com a mulher presa ao seu papel doméstico, os outros dois personagens não apresentam
Os filmes expõem a desintegração da sociedade que
tal definição, seja verbalmente seja visualmente, no
se encontra confinada a espaços fechados. Essa al-
que Wood chama de buddy relationship:
teração das forças revela a nova dinâmica proposta 23
Thales Figueiredo da Silva
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
Despertar dos Mortos explora (e explode) as duas
filme conta a trajetória de Otto, um jovem zumbi
relações de casais dominantes na nossa cultura e
gay, que anda a esmo solitário pelas ruas da Alema-
no seu cinema: o casal heterossexual (indo inevita-
nha, com pequenas lembranças do seu passado até
velmente rumo ao casamento e a suas tradicionais
ser escalado para participar de um filme gay político
regras homem/mulher) e a relação de “camarada-
da diretora Medea Yarn. Sobre os dois personagens
gem” com a sua negação evasiva da sexualidade
o diretor fala:
(WOOD, 2003, p.106). Eu decidi que Medea me representa pelo que sou
O zumbi de Bruce LaBruce
hoje, como cineasta [...] e Otto representa a mim quando eu era uma criança tentando lidar com mi-
Bruce LaBruce irá realizar em Otto;or Up with dead
nha homossexualidade e com o medo da toda a
people (2008) um raro exemplo de filme de zumbi
desaprovação e ódio e violência dirigida aos gays.
que não é de terror. O diretor utiliza-se desse perso-
(ABLEY, 2013, p.47)
nagem para retratar as crises da homossexualidade na sua sociedade. Em entrevista ele mostra como
O tempo de Medea Yarn e de seu filme é um futuro
identifica a vivencia gay ao zumbi, até por se trata-
próximo em que zumbis gays caminham pelo mun-
rem de personagens marginalizados da sociedade
do, mas, ao contrário dos filmes de Romero a socie-
com o personagem do monstro:
dade está funcionando como a nossa, já que não houve (ou está em andamento) um evento apoca-
Se você nunca cruzou um parque público ou ba-
líptico, como usualmente há em filmes de zumbi. Ou
nheiro a noite para sexo gay, é muito parecido com
seja, a sociedade do filme é um retrato da contem-
Noite dos Mortos – figuras sombrias sonambúlicas,
porânea, com zumbis sendo representação de gays,
partes do corpo aparente, gemidos. Então eu pen-
esses por sua vez metonímia de populações que não
so que eu representei esse zumbi de maneira real-
são percebidas pelo restante da sociedade.
mente literal. (ABLEY, 2013, p.46)
Mesmo sem ser um filme de terror Bruce LaBruce Essa postura provocativa, mas que nos filmes procu-
trabalha com uma série de elementos que remetem
ram refletir as vivencias do interior da comunidade
ao gênero, como o zumbi e sua sempre presente
LGBT fazem parte do movimento cinematográfico
possibilidade de praticar o canibalismo. Nesse caso,
ao qual LaBruce pertence: o New Queer Cinema. Esse
além do retrato do consumo literal de pessoas em
foi o nome cunhado pela crítica de cinema feminista
nossa sociedade, esse consumo se dá de maneira
B. Ruby Rich (2004), que em 1992 lançou artigo para
sexualizada. O cinema de terror tem o grande mé-
trabalhar o reconhecimento que filmes indepen-
rito de conseguir transmitir os medos e crises da
dentes de realizadores gays e lésbicas encontravam
sociedade em que é produzido, são “pesadelos co-
naquele ano nos festivais. Ela ressalta que há estilo
letivos” (WOOD, 2003, p.70), a partir daí LaBruce uti-
comum entre as obras com “traços de apropriação e
liza-se da homofobia da sociedade contemporânea
do pastiche, ironia” (RICH, 2004, p.16).
para criar um monstro gay. No entanto, ao colocá-lo como protagonistas em seus dois filmes e bus-
A utilização do zumbi em Otto; or, Up with the dead
car com esse personagem a identificação, revela-se
people é um exemplo dessas experimentações e re-
a impossibilidade dessa realização, uma vez que o
flexões. No filme Bruce LaBruce o zumbi é protago-
próprio personagem encontra dificuldade em se
nista, o que o tira da posição de monstro do filme
entender como indivíduo, vagando num estado de
(ou pelo menos retira um valor negativo desse). O
“não-morte” - como se intitula o estado dos zumbis 24
Thales Figueiredo da Silva
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
pelo próprio Otto - ou seja, os protagonistas nunca
Outra aproximação possível nos filmes são as per-
estão vivos, mas passivos, em estado de negação de
sonagens femininas fortes. Em Despertar dos Mortos,
um vazio, a morte.
Fran é a única personagem que mantém um comportamento ético frente ao apocalipse, Romero diz
Tanto na obra de Romero quanto no filme de La-
que ela “ela não é a mulher tradicional do filme de
Bruce os cineastas se utilizam do zumbi para criti-
terror […] afinal ela está sempre certa.” (WILLIAMS,
car a sociedade de consumo, eles sendo apenas
2011, p.63) Em Otto temos a cineasta Medea, que
mais uma faceta das características já presentes no
apesar de certo idealismo ingênuo também traba-
mundo dos vivos. LaBruce diz: “zumbis são normal-
lha de maneira progressista. O diretor comenta que
mente conformistas extremamente consumista, que
a personagem foi muito criticado pelo público, fato
comem todos as mesmas coisas, se encontram no
para o qual ele fornece uma explicação: “As pessoas
mesmo espaço, agem parecido”. (ABLEY, 2013, p.46)
não estão acostumadas a personagens fortes, independente, politizada lésbica-feminina, especial-
No caso dos filmes de Romero a representação do
mente no contexto do filme de terror” (ABLEY, 2013,
zumbi pode ser lida por dois pontos de vista. Pri-
p.47).
meiro, eles são os nossos próprios demônios, ou o “nosso próprio mal” (WILLIAMS, 2011, p.51). Isso
Ambos trabalharam para subverter como o gêne-
seria o que Wood classificou como “humanos re-
ro como estava estabelecido. Se Romero recolocou
duzidos para seu “instinto” mais básico” (WOOD,
o zumbi na trama para retratar os marginalizados
2003, p.289). Instintos esses que seriam “produtos
numa sociedade repressora, LaBruce eleva tal apos-
do nosso condicionamento, e esses instintos resi-
ta trabalhando o zumbi como individuo: “Eu quis in-
duais apresentados pelos zumbis são aqueles con-
verter o paradigma e fazer um zumbi que é um out-
dicionados pela sociedade capitalista patriarcal”
sider, um solitário e um desajustado que tem uma
(WOOD,2003, p.289).
aversão a comer carne humana pois ele era um vegetariano quando vivo.” (ABLEY, 2013, p.46)
Nesse ponto os zumbis gays de Labruce diferem dos de Romero, já que para esse os zumbis também são
Otto tem consciência, apesar de não se lembrar de
consumistas como os de Romero, porém não são
grande parte do seu passado, mas ele tem sabe da
tão presos aos condicionamentos da sociedade he-
sua condição. Porém, ao longo do filme ele só é per-
gemônica, uma vez que a continuam a transmitir o
cebido como zumbi quando o veem dentro de uma
vírus de maneira sexualizada, numa forma de elogio
narrativa - seja pela diretora, pela gang homofóbi-
a “anormalidade”.
ca ou pelos gays na festa a fantasia - o que revela certo fetiche da sociedade pelo monstro. A cena em
O segundo ponto é de que se trata de uma metáfora
que o protagonista vai a uma festa a fantasia com a
das populações marginalizadas. Isso começa com o
temática zumbi e desperta o interesse de outro ho-
retrato dos primeiros contaminados. Em Despertar
mem a partir da crença, de seu parceiro, de que ele
dos Mortos uma equipe da SWAT invade um prédio
é apenas uma simulação daquilo que ele realmente
bastante precário, onde habitam populações hispâ-
é deixa evidente a aproximação que LaBruce faz do
nicas e negras. Williams afirma que os “Zumbis se
um zumbi gay a um gay não-alienado. Isso concorda
tornam um novo proletariado que ameaça a orde-
com o significado original do termo queer, que não
nação hierarquia da “ordem das coisas” (WILLIAMS,
se refere apenas a quem tem atração pelo mesmo
2003, p.14)
sexo, mas a uma relação com elementos mais complexos, de questionamentos e não-reprodução da 25
Thales Figueiredo da Silva
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
sociedade heteronormativa (ARAUJO, 2013).
comunidade LGBT, num discurso que apenas quem faz parte desse panorama pode realizar.
Como a cena revela LaBruce é crítico não apenas com a sociedade heteronormativa, mas também
Essa busca por uma criação que refletisse o inte-
com a comunidade LGBT que busca se adequar den-
rior do grupo queer gerou uma busca por produção
tro dessa sociedade. Isso se revela na sua contrapo-
com linguagem diferente da praticada pelo cinema
sição ao GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against
mainstream. Os filmes de LaBruce carregam uma
Defameation), grupo que combate os estereótipos
forma experimental e problematizam sobre a defi-
LGBT produzidos por Hollywood. A provocação do
nição de gênero, e se utilizam dos elementos con-
diretor revela como ele se coloca como realizador
solidados no cinema de Hollywood como pastiche,
queer:
procurando questionar suas convenções. Enquanto que nos filmes de Romero os protagonistas são os Se Hollywood trata a homossexualidade como per-
vivos que se assustam com essa cena, em LaBruce
turbador e perigoso ou extravagante ou trágico ou
é o próprio zumbi, que já é protagonista do próprio
terrivelmente decadente e estético (o que soa mui-
filme diegético, então em Otto ele opera a identifica-
to preciso para mim até agora), isso deve ser consi-
ção com o monstro/protagonista.
derado como uma indicação do zeitgeist presente. (LABRUCE, 1996, p.27)
Essa posição parece confortável ao cineasta. Enquanto LaBruce aponta uma certa aceitação (e até
Conclusão
glamourização da posição), Romero buscava a construção de uma nova sociedade a partir da desinte-
Se George Romero e outros cineastas da década
gração da hierarquia social. Bruce LaBruce parece
de 1960 e 1970 alteraram o foco do filme de terror
se contentar com as margens, com a possibilidade
dos perigos externos que ameaçavam a sociedade
apresentada em Otto na qual não precisa se obe-
americana para questões internas da própria socie-
decer certas normas sociais, desde que existam es-
dade, Bruce LaBruce por sua vez irá questionar não
paços nas margens em que possam viver alternati-
apenas essa sociedade, mas a reprodução de ele-
vamente, mesmo que ainda tenha que se lutar por
mentos dessa sociedade estabelecida no interior da
esse (pequeno) espaço.
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representações das multidões nos filmes de zumbi.
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RICH, B. Ruby. New Queer Cinema in AARON, Michel-
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GOMES, Paula; MASSAROLO, João Carlos. Um estudo
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Thales Figueiredo da Silva
A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce
WILLIAMS, Tony. The Cinema of George A. Romero:
WOOD, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan...
Knight of the Living Dead. Wallflower Press. 2003.
and Beyond. Columbia University Press, 2003
27
Entre espaços: documentário, fronteiras e mediações Coord. Bráulio de Britto Neves (PUC-Minas)
Frontier Zones: documentários para ler a cidade Luciana Santos Roça, Maria Julia Stella Martins, Nayara Araujo Benatti, José Calijuri Hamra, Marcelo Tramontano (pesquisadores do Nomads.usp, no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) RESUMO: O artigo discute usos do audiovisual, especificamente produções relacionadas ao documentário, para fins de pesquisa e reflexão sobre a cidade contemporânea e os discursos que a constituem. Para tanto, a reflexão é baseada na experiência desenvolvida na Frontier Zones International Summer School, suas propostas iniciais, processos de trabalho e resultados obtidos. A Summer School teve como objetivo explorar fronteiras concretas e simbólicas presentes na cidade por meio da produção de documentários curtos, utilizando o audiovisual como ferramenta para analisar as diversas dinâmicas do espaço urbano. PALAVRAS-CHAVE: documentário, leituras urbanas, cidades. Introdução
do fazer quanto do assistir. Através do assistir, são percebidos estilos e modos de fazer documentário
Diversos autores afirmam, ainda que com diferen-
além do que a própria imagem e som nos fornece.
tes aproximações, que as cidades são compostas de
Enquanto fazer, o método do documentário direcio-
mais do que de seus espaços construídos (HARVEY,
na a atenção e o foco do realizador; além de refletir
2012; JACOBS, 2000; LYNCH, 1982; LEFEBVRE, 1991;
sobre o que grava, em imagem ou som, o realizador
SANTOS, 1996): tão importantes quanto os elemen-
também coloca-se ativamente sobre esse material,
tos físicos da cidade, são as ações, dinâmicas e com-
formando uma representação e construindo um
portamentos das pessoas, formando um todo atra-
discurso. Ambas esferas de fazer e assistir podem
vés da interação entre as diferentes partes que o
se configurar enquanto métodos para entender ci-
constituem. Dessa forma, toda cidade, de qualquer
dades. Estes dois aspectos foram tratados ao longo
porte, contém fronteiras, sejam elas físicas, cultu-
das atividades realizadas na Summer School.
rais, sociais, morais, simbólicas, legislativas, entre outras. Tais fronteiras são todos complexos, tecidos
Compreender as mais diversas camadas das cidades
como redes de relações complementares e confli-
e suas dinâmicas é tema recorrente no trabalho de
tantes (SANTOS, 1979), cujos limites raramente são
profissionais e pesquisadores de muitas áreas do
estanques.
conhecimento, como por exemplo Arquitetura e Urbanismo, Ciências Sociais, Geografia e Arte, e esse
Entende-se que o documentário, assim como argu-
desejo também é presente no Audiovisual e na tradi-
mentado por Bill Nichols (2010), é um conceito que
ção do documentário1. Assim, a prática do documen-
não é distinguido facilmente por não ser encaixado
tário enquanto método para ler cidades contribui
em categorias precisas e imutáveis, além de poder
propondo reflexões e construindo um locus de dis-
possuir estilos e linguagens distintos. Dessa forma,
cussão entre realizadores e público. Enquanto que
para fins de discussão, o presente artigo considera
realizadores obtém outros tipos de aproximação
o processo de produção do documentário enquanto
com a cidade através do “fazer” do documentário,
forma de observação, de enquadramento criativo e de representação sobre algo. É possível afirmar que o documentário enquanto método para ler cidades pode existir tanto na esfera
1 - A temática urbana pode ser exemplificada na tradição do documentário nos filmes de Walter Ruttmann como por exemplo “Berlin: Sinfonia de uma metrópole” (Berlin: Die Symphonie der Grosstadt), além de “O homem com a câmera” (Chelovek s kino-apparatom) de Dziga Vertov.
29
Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano
Frontier Zones: documentários para ler a cidade
devido a construção intensa de representações, a
de aproximadamente dez minutos, sem o uso de
presença da câmera e gravadores de som e as eta-
diálogos ou entrevistas, o que exerce um trabalho
pas de pós-produção, o público, ao assistir, se ali-
diferenciado sobre a linguagem audiovisual. Ao fi-
menta das reflexões que a leitura do documentário
nal, foi realizada uma exibição e discussão dentro do
traz consigo, além do próprio questionamento da
grupo e uma sessão pública em um espaço cultural
perspectiva apresentada, seja por sua temática ou
da cidade.
por sua estrutura cinematográfica. Com essa perspectiva, a Summer School teve como Contexto de pesquisa: Frontier Zones
proposta explorar e realizar leituras de cidades atra-
Internacional Summer School
vés do método de documentário, buscando identificar, entender e explorar fronteiras dos ambientes
A Summer School foi resultado de uma parceria en-
documentados. O uso do audiovisual incentivou os
tre o Instituto de Arquitetura e Urbanismo e o No-
participantes a tomarem diferentes decisões e pos-
mads.usp, ambos da Universidade de São Paulo,
turas perante às situações vivenciadas, promovendo
campus de São Carlos, com quatro universidades
outros olhares sobre o urbano.
alemãs: Leuphana University (Lüneburg), University of Arts and Media (Cologne), HafenCity University
Dentro do programa foram produzidos quatro cur-
(Hamburg), University of Fine Arts (Hamburg). O gru-
tas-documentários pelos participantes. As sinopses
po de tutores foi composto por oito professores de
são:
diferentes especialidades das universidades alemãs, além do palestrante e coordenador brasileiro e equi-
1. Escambo: Fronteiras estão em todo lugar. Sejam
pe de produção do IAU-USP, sendo estes últimos os
elas físicas, humanas, imateriais. Escambo é um
autores do presente artigo. A Summer School foi fi-
curta documentário sobre as trocas que permeiam
nanciada pelo DAAD, Serviço Alemão de Intercâmbio
essas fronteiras, buscando o questionamento so-
Acadêmico, e pelo Ministério Alemão de Educação
bre o que é afinal o espaço que tecemos a nossa
e Pesquisa. Foram selecionados 17 estudantes de
volta, as barreiras que impomos e constantemen-
graduação e pós-graduação de diversas regiões do
te quebramos em relação à cidade, ao outro e a
Brasil, de diferentes formações como Arquitetura,
nós mesmos. (Link: https://www.youtube.com/
Urbanismo, Artes Visuais, Jornalismo, Ciências So-
watch?v=ANmb3zWd5fc).
ciais e também Audiovisual. 2. Grey Light questiona o que acontece durante o
A Summer School foi um evento gratuito que ocorreu
nascer e pôr-do-sol nas cidades? O que essa luz traz
de 20 de julho ao dia 2 de agosto de 2015, nas de-
e revela? O sol brilha para todos nas cidades? O do-
pendências do Instituto de Arquitetura e Urbanismo
cumentário procura discutir o que acontece nessas
da Universidade de São Paulo, campus de São Car-
bordas e zonas de fronteiras que são construídas
los, nos primeiros quatro dias de atividades, deslo-
por muros, mas não somente. (Link: https://www.
cou-se para São Paulo durante cinco dias, quando
youtube.com/watch?v=IlPWJ4RvDUc)
as gravações foram realizadas em diferentes regiões ao longo da linha azul do metrô, após as grava-
3. Sampath: Como se comportam os indivíduos
ções, os participantes retornaram para São Carlos
no espaço urbano? Como diferentes caminhos
e tiveram outros quatro dias de edição de imagem
pessoais se cruzam no espaço comum? Como
e som. Enquanto produto, foi proposto aos partici-
indivíduos constroem territorialidades particula-
pantes realizar um documentário curta-metragem,
res no espaço compartilhado? A observação das
30
Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano
Frontier Zones: documentários para ler a cidade
interações no espaço urbano é capaz de eluci-
A riqueza de discussões e leituras se dá também pela
dar fronteiras sociais? Sampath é um exercício
diversidade de sentidos que o conceito de “fronteira”
do olhar sobre as fronteiras pessoais no espaço
possui. Para além de fronteiras entre cidades e Esta-
compartilhado. (Link: https://www.youtube.com/
dos, as fronteiras na cidade estão também nos im-
watch?v=x680AdGLoKA)
pedimentos físicos: proibição de transitar em determinado espaço demonstrada através de barragens e
4. Framed Freedom foi gravado no Parque da Ju-
placas, ou ordenação e designação da passagem de
ventude, próximo à estação de metrô Carandiru,
pessoas e do tráfego. São impedimentos que proí-
na Zona Norte da cidade. Com uma intensa movi-
bem e ordenam, não necessariamente estabilizando
mentação durante todos os dias, o parque é exem-
as ações, mas que de modo geral influenciam ritmos
plo de diversidade. Ao fundo, funciona até hoje a
e caminhos. Contudo, as diferenciações culturais, so-
Penitenciária Feminina da Capital e o Museu do
ciais, econômicas e simbólicas estão também muito
Carandiru, relembrando o massacre ocorrido na
presentes na cidade, mas não são explicitadas sob a
Penitenciaria do Carandiru em 1992, uma das mais
forma de objetos físicos que assinalam seus limites,
dramáticas violação dos direitos humanos da his-
mas fronteiras simbólicas, como ações e modos de
tória do Brasil. (Link: https://www.youtube.com/
organização.
watch?v=4943HEh8V44)
Assim como Milton Santos (1979, p. 12) assinala, Contexto de discussão: fronteiras como lugares
“nenhuma sociedade tem funções permanentes,
de existir
nem um nível de forças produtivas fixo, nenhuma é marcada por formas definitivas de propriedade, de
A Summer School teve como proposta de abordagem
relações sociais”. As fronteiras, considerando que
o tema “fronteira”. Para identificar as zonas de fron-
também são formadas pela sociedade, inclusive por
teiras na cidade foi feito um recorte espacial para
seus acordos implícitos, portanto, tampouco são
as locações que deveriam se concentrar ao longo
marcadas por formas e funções definitivas. O tran-
da linha azul do metrô. Esse recorte objetivou con-
çado da constituição da intersubjetividade das rela-
centrar os olhares para o eixo norte-sul da cidade
ções sociais, bem como o aspecto cultural por trás
de São Paulo, no qual se podem encontrar diver-
delas, estabelecem fronteiras que não são imutáveis
sos fragmentos da constituição e diferenciação da
ou claramente delineadas. Dessa maneira, é pos-
cidade.
sível afirmar que fronteiras são todos complexos, tecidos como redes de relações complementares e
O recorte espacial, produziu resultados diversos que
conflitantes (SANTOS, 1979), cujos limites raramente
enriqueceram a qualidade de discussões e leituras.
são estanques.
Ler a cidade, assim, significa também identificar os espaços onde a coexistência de diferenças acontece
Sob outra perspectiva, ao mesmo tempo as frontei-
e onde estão os obstáculos para esse intercâmbio.
ras são zonas de contato, sendo interpretadas como espaços de contaminação, atribuindo permeabilida-
Conceitualmente, o termo fronteira se apresenta
de ao invés de uma borda rígida e selada. Apesar
com várias faces, seja vinculado ao conceito de ter-
desta permeabilidade poder originar relações de do-
ritório formal e institucionalizado; de impedimento
minação e sobreposição, pode também originar um
ou obstáculo a ser transpassado; como uma área de
espaço onde há combinação de processos sociocul-
tensão; ou mesmo no sentido de ser contato entre
turais com práticas e estruturas distintas, gerando
diferenças.
outras estruturas, práticas e objetos. 31
Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano
Frontier Zones: documentários para ler a cidade
Como argumentado pelos professores e documen-
grupo se diferenciavam, o que permitiu um apro-
taristas Werner Ruzicka e Bernd Schoch durante a
fundamento do debate sobre as particularidades
Summer School, o uso do equipamento e da lingua-
do espaço por meio da análise do material grava-
gem audiovisual permitem enxergar aspectos e di-
do; tornaram-se instrumentos de diálogos por meio
nâmicas não tão notáveis do espaço, transformando
dos quais cada integrante do grupo conseguia co-
a percepção e, consequentemente, a leitura da cida-
municar de maneira mais palpável a essência da-
de. Isso também foi percebido e constatado pelos
quilo que havia sido desenvolvido na produção do
participantes ao longo do processo de realização
roteiro.
dos documentários. Ultrapassando as intensões prévias do material à A filmagem e o documentário enquanto método
ser captado, o material audiovisual gravado tam-
de leitura das cidades não trata da busca afoita por
bém foi de fundamental importância para que as
imagens únicas, pitorescas ou não usuais, mas sim
percepções individuais dos momentos de gravação
de observar o entorno e refletir, ver significados e
pudessem ser transmitidas no produto final. Neste
sentidos sobre pequenas ações. Assim como Werner
sentido, pode-se dizer que a somatória de perspec-
Ruzicka expôs poeticamente durante o workshop,
tivas do espaço comum, sobre o qual o grupo traba-
“todo o tempo acontece alguma coisa. Até o tempo
lhava, construiu, por meio da produção do material
acontece.”.
audiovisual, parte da complexidade que constitui o espaço real.
Processos: produção de documentários como prática para ler cidades
Deste modo, acredita-se que a produção de um “material audiovisual” torna-se um ponto de con-
É possível aferir que o processo audiovisual se com-
tato do observador com o espaço, um exercício do
porta como uma interface entre os realizadores e a
olhar estrangeiro e de busca por experienciar com
cidade; estabelece assim um locus de contato e co-
o corpo a presença em determinada espacialidade.
nexão, favorecendo relações entre as partes, colo-
Momento em que o observador exercita suas capa-
cando-as em diálogo e estranhamento. No contexto
cidades cognitivas percorrendo e habitando para
da Summer
compreender a complexidade que constitui o espaço em questão.
School, percebeu-se que o uso do audiovisual não apenas transforma dinâmicas e ações do entorno,
Conclusão
mas também propõe outras situações e formas de apreensão da cidade. O processo de produção do
Acredita-se que o processo de realização de docu-
material audiovisual durante a Summer School de-
mentários nessas condições constitua um locus de
monstrou como a complexidade das cidades impac-
comunicação e reflexão conjunta, envolvendo pes-
tou nas percepções individuais dos integrantes de
quisadores acadêmicos e comunidades extracam-
cada grupo.
pos. Trabalhos deste tipo pressupõem a comunicação e a permeabilidade entre áreas de conhecimento
Apesar das intenções de gravação serem previa-
engendrado na transdisciplinaridade.
mente estabelecidas em roteiros, quando os grupos saíram à campo com as câmeras em mãos as
No que tange especificamente a área de Arquite-
percepções individuais apareceram. As imagens e
tura e Urbanismo, constatou-se que o processo de
sons captados por cada integrante de um mesmo
produção de material audiovisual é um exercício 32
Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano
Frontier Zones: documentários para ler a cidade
de compreensão de contextos urbanos de extrema
possam acarretar em determinadas espacialidades.
importância para profissionais que desenvolvem
Indica-se, desta maneira, que a produção de mate-
propostas de alterações no espaço urbano. As refle-
rial audiovisual realizada conforme as práticas des-
xões despertadas não dizem respeito exclusivamen-
critas são exercícios à serem melhor explorados por
te aos contextos estabelecidos, mas também sobre
arquitetos e urbanistas, sugerindo uma aproxima-
o impacto que possíveis transformações urbanas
ção entre as áreas do conhecimento.
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LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução de
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SANTOS, Milton. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
33
Entre tecnologias e imagens expandidas Coord. Cristina Barreto de Menezes Lopes (Unicamp)
Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo Cristina Barretto de Menezes Lopes (Universidade Estadual Paulista - UNICAMP, doutoranda) kitmenezes@gmail.com RESUMO: O presente trabalho propõe analisar uma nova possibilidade narrativa que aparece no campo da produção audiovisual: o cinema locativo - ou locative cinema -, através do projeto “A machine to see with”, produzido pelo grupo inglês Blast Theory. Experimentadas por artistas que atuam no campo das novas tecnologias da comunicação e da informação, propostas desenvolvidas dentro desse contexto apontam como tendências no campo das artes. Muito próximas dos ARG (Alternate Reality Games), essas narrativas invertem a posição do espectador em sua relação clássica com o cinema: ao invés de assistir a um filme dentro de uma sala de projeção, ele agora pode interagir e além de escolher o trecho que quer ver (o que já vinha sendo experimentado em projetos que pensam a interatividade no audiovisual), deve também se posicionar geograficamente, o que permite incluir outras informações sensoriais à narrativa. Através desse processo, são potencializadas as possibilidades de exploração da obra e o espectador deixa sua posição passiva para contribuir na construção da história. Introdução
do mundo. A atração não durou muito tempo, mas deixou um legado importante que será retomado
Pouco conhecida quando se estuda o início da his-
neste texto para refletir sobre a posição do espec-
tória do cinema, a experiência registrada como Ha-
tador diante das novas possibilidades que surgem
les Tours vai ser utilizada aqui como referência para
quando se pensa o cinema aliado à mídias locativas.
o que hoje é conhecido como cinema locativo. De acordo com SANTOS (2007: 180-181), a ideia foi
Para entender esse legado e trazer essa referência
adaptada de uma invenção de Willian J. Keefe, que
para o contexto contemporâneo das novas tecnolo-
utilizou vagões de trem se movimentando em trilhos
gias, este trabalho está dividido em três partes: a pri-
circulares enquanto eram exibidas imagens de fil-
meira parte apresenta o conceito de mídia locativa,
mes de paisagens, simulando uma viagem. George
que será utilizado aqui, através da definição de LE-
C. Hale, um bombeiro de Kansas City, comprou a pa-
MOS (2007) e de projetos que envolvem arte e tecno-
tente dessa ideia em 1904 e a adaptou. Os Hales Tou-
logias de geolocalização; a segunda parte, retoma a
rs de George ainda eram exibidos dentro de vagões
obra A Machine To See With, desenvolvida pelo grupo
de trens, mas nessa versão, eles funcionavam como
Blast Theory - reconhecido internacionalmente por
salas temáticas e as projeções ocorriam em uma tela
trabalhos que exploram aspectos sociais e políticos
frontal, sem que o trem se movesse. Hale também
do uso da tecnologia – associado à mídia locativa e a
instalou mecanismos que reproduziam o áudio dos
terceira parte introduz a ideia de arte e interativida-
vagões em movimento e que simulavam os “sacole-
de, pensada por PLAZA (2003). O texto finaliza com
jos” desses veículos. A ideia fez sucesso nos Estados
um reflexão sobre a construção da narrativa, consi-
Unidos e foi disseminada através de parques de di-
derando a participação do interator1 no enredo e na
versão que atravessaram a fronteira, até o Canadá.
montagem da obra através de dispositivos móveis.
Os programas de cinema eram trocados semanalmente, oferecendo a ilusão de viagens ferroviárias que apresentavam paisagens de diferentes partes
1 - Segundo Murray, o espectador comum passa a ser um interator quando pode realizar ações significativas e ver os resultados de suas decisões e escolhas. (MURRAY, 2001: 127)
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Cristina Barretto de Menezes Lopes
Mídia Locativa
Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo
entre o ponto de referência do usuário e a estrada mais próxima.
Desenvolvidas para servirem como mecanismos de controle, as mídias locativas ou locative medias são
Outro projeto desenvolvido a partir de mídias loca-
definidas, de acordo com LEMOS (2007), como “um
tivas que também traz uma reflexão acerca do uso
conjunto de tecnologias e processos infocomuni-
das tecnologias disponíveis, foi o Set To Discovey, do
cacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a
Grupo LOCA, de 2006. Propondo um questionamen-
um lugar específico”. São processos de emissão e
to a respeito de temas próprios dos dispositivos de
recepção de informação a partir de um determina-
comunicação móveis (smartphones, GPS) como vi-
do local. Lemos separa as mídias locativas em duas
gilância e invasão da privacidade através de redes
categorias: analógicas - como as placas de trânsito e
sem fio, integrantes do grupo espalharam dispositi-
informativas - “uma placa informando que um deter-
vos eletrônicos em locais públicos que detectavam
minado lugar é uma pizzaria, um hotel ou uma loja
telefones celulares com bluetooth ativo e mandavam
de departamentos pode ser considerada uma mídia
mensagens específicas para essas pessoas, de modo
locativa” - e as digitais, compostas por dispositivos
que elas soubessem que estavam sendo vigiadas.
de comunicação sem fio como GPS, telefones celu-
Aqui, a obra também só se realiza com a participa-
lares, palms e laptops que funcionam através de re-
ção do público, que a partir dessa ação pode perce-
des Wi-Fi, Bluetooth e etiquetas de identificação por
ber a fragilidade da segurança de seus dados. Mas
rádio frequência, RFID.
a narrativa não evolui, já que não é essa a proposta da obra, ou seja, não se trata de um pervasive game
Projetos de arte e tecnologia envolvendo esses dis-
nem de cinema locativo porque não há resposta
positivos tem ganhando visibilidade, tanto pelas ino-
para qualquer reação do interator.
vações estéticas quanto pelas discussões políticas que trazem. O projeto Transborder Immigrant Tool
Mais ligados à produção audiovisual, os projetos
(2009), criado por integrantes do The Electronic Dis-
que envolvem cinema e dispositivos de geolocaliza-
turbance Theater (EDT), vinculado a UCSD (University
ção trabalham com propostas diferenciadas de nar-
of California, San Diego), nos Estados Unidos, cabe
rativa e interatividade. O projeto GPS cinema - Nive
nessa categoria. O grupo, formado por ativistas en-
lives, realizado pelo artista e cineasta Scott Hessels
gajados no desenvolvimento de teorias e práticas
com estudantes de arte e engenharia da Nanyang
voltadas a desobediência civil eletrônica, criou uma
Technological University de Cingapura - está inserido
ferramenta voltada para imigrantes mexicanos que
em um conceito mais amplo de arte interativa, que
atravessam diariamente a fronteira entre os dois
inclui games e not games2, entre outras tendências
países. A partir de um aplicativo desenvolvido por
com propostas relacionadas experiência estética3.
outro professor da UCSD – o Virtual Hiker Tool, um
O convite de Hessels é para que o telespectador
GPS de pulso para pedestres com a função de orientar passeios e caminhadas nos desertos da região de San Diego, o sistema foi modificado e implantado em um aparelho celular simples (um Motorola i455, que já vem com GPS e podia, na época em que o projeto foi desenvolvido, ser adquirido por menos de 30 dólares na internet). O trabalho do grupo foi adicionar informações ao sistema pré-concebido como onde encontrar água, centros de ajuda e distâncias
2 - Termo proposto por Michaël Samyn e Auriea Harvey, do estúdio belga “Tale of Tales”, para definir a produção de narrativas que não se enquadram na categoria de games mas utilizam algumas de suas características com o objetivo de explorar a experiência estética sem focar na concorrência. (<http://notgames.org/blog/2010/03/19/not-a-manifesto/> último acesso em 27/07/2015). 3 - Segundo Henry Jenkins, a experiência estética emerge quando todos os elementos constituintes de uma determinada mídia se unem de forma a criar algo novo (JENKINS, 2005:180).
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Cristina Barretto de Menezes Lopes
assista ao filme através de um dispositivo móvel
Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo impotence of citizens confronted by global capitalism.
4
com GPS, como um palm top (PDA) ou um smartphone. Dependendo do posicionamento geográfico na
O projeto combina elementos de jogos pervasivos,
cidade - neste caso Cingapura - o telespectador tem
teatro e caminhadas pela cidade. Smartphones são
acesso a cada uma das nove partes do filme.
utilizados para direcionar e controlar as etapas narrativas enquanto o interator é convidado a uma
A maneira como Nine Lives foi construída faz com
reflexão relacionada ao sistema de controle. Cada
que não seja necessário que o telespectador circule
usuário segue uma rota similar, mas ao interagir
por todos os locais para entender a história: mesmo
nessa trajetória, transforma a experiência em algo
assistindo a trechos isolados, a história mantem seu
único. O projeto estreou na 01SJ Biennial, Califórnia,
sentido. Por outro lado, a interatividade proposta é
em 2010 e foi apresentado no New Frontier Sundance
muito pequena - ao usuário é permitido apenas que
Film Festival no mesmo ano. Em 2011 participou do
escolha sua localização. Com um grau de participa-
Walker Art Center de Minneapolis e foi lançado no
ção maior que Nine Lives, A Machine to see with exige
Reino Unido no Fringe Festival de Edimburg, perma-
uma postura mais ativa da figura do interator na con-
necendo em temporada por um mês no Festival Digi-
tinuidade da história.
tal Brighton durante o mês de setembro.
A Machine to see with - Blast Theory
A interatividade no cinema locativo
A Machine To See With é um filme produzido para que
A questão da interatividade no cinema é antiga,
o interator assuma o papel principal. Quando o pro-
mas tem sido explorada mais recentemente como
jeto foi exibido, a inscrição podia ser feita via web.
um campo de possibilidades que incluem reflexões
Uma mensagem solicitava o número do celular do
sobre a poética e a estética contemporâneas. O de-
usuário que recebia uma chamada informando o en-
senvolvimento de uma arte interativa – que inclui
dereço para onde ele deveria se dirigir. Ao chegar ao
cinema, teatro, rádio e televisão – está diretamen-
local, o telefone tocava novamente e uma série de
te ligado às mídias e suportes da comunicação de
instruções guiava o indivíduo através da cidade, in-
massa. Antes mesmo de Nam June Paik e do grupo
cluindo a realização por parte deste de ações como
Fluxus apresentarem propostas que incluíam o tem-
esconder dinheiro dentro de um banheiro público e
po real no desenvolvimento da narrativa através de
encontrar-se com um parceiro para a realização de
inovações tecnológicas como a câmera portátil de
um assalto a banco. De acordo com o site do pro-
vídeo e os sintetizadores de imagem e som, a ideia
jeto, A Machine To See With é uma combinação que
de inserir ações ou intervenções em tempo real no
inclui características da linguagem audiovisual com
espaço não diegético como alavanca para o avanço
a realidade do ambiente urbano além de inserir uma
da narrativa já eram experimentadas. O início da
discussão sobre a crise econômica global.
história do cinema aponta para experiências nesse sentido, quando a distribuição dos filmes era reali-
With the attempted robbery of a bank at its heart,
zada através de rolos independentes e organizadas
money is a recurrent part of the work. It contrasts
segundo a escolha do operador do cinematógrafo. A
the agency of a film star, of a protagonist in a heist
ideia se aproxima, de certa forma, do que os Vjings
movie with the reality of the financial crisis. It plac-
fazem hoje, ao manipularem sets de imagens em
es the adrenaline rush of revenge against the steady
4 - Disponível em: <http://www.blasttheory.co.uk/wpcontent/uploads/2013/02/amtsw_tour_pack.pdf>. Acessado em 25/072015.
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Cristina Barretto de Menezes Lopes
tempo real.
Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo
artístico uma grande confusão conceitual caracterizada, ainda, pela mistura e hibridação de gêneros,
A maioria dos filmes da primeira década tinha ape-
poéticas e atitudes artísticas”.
nas um plano e, quando havia vários planos, eles não eram filmados de forma a se articularem. Os
Conclusão
planos eram vendidos separadamente como filmes individuais, em rolos diferentes. Era o exibidor
A participação do interator na construção da narra-
quem controlava a exibição final, decidindo quais
tiva do cinema locativo merece um reflexão mais
rolos e em que ordem seriam exibidos e até em
atenta. Na sua introdução à segunda edição do livro
que velocidade as cenas seriam mostradas. (...) os
“A Obra Aberta”, ECO (2003) defende que toda obra
primeiros filmes eram formas abertas de relato e
de arte é aberta: além de possibilitar várias interpre-
que a coerência narrativa não era inerente aos fil-
tações, a obra aberta apresenta-se de várias formas
mes, mas estava no ato de apresentação e recep-
e cada uma delas é submetida ao julgamento do
ção. (MASCARELLO, 2006:25).
público.
De acordo com Julio Plaza “o conceito de arte inte-
O Hales Tours proposto por Hale pode ser entendido
rativa expande-se no começo dos anos 80 com a
como precursor de projetos que envolvem mídias
aparição das tecnologias ligadas ao cabo telefônico,
locativas através da experiência individual do es-
que se tornam o suporte de eventos relacionados
pectador (memórias e sensações pessoais). Através
ao videotexto, fax, slow scan e outros meios” (PRA-
de dispositivos móveis de geolocalização, é possível
DO, 2003:15), mas é a partir dos anos 1990 que o
pensar na expansão dessas possibilidades ao trans-
conceito passa a ter umas relação mais próxima às
formar o espectador em interator: ao invés de levar
tecnologias digitais. Os papéis de autor e receptor
o espectador a uma sala temática, adaptada de um
– espectador, incluindo a relação que se estabelece
vagão de trem, simulando uma viagem, a narrativa
entre esses dois atores no cinema, são transforma-
pode se desenvolver através de um roteiro prévio,
dos: o espectador deixa de ter um papel passivo e
definido pelo usuário, promovendo sensações mais
assume a co-autoria da obra. Nesse sentido é impor-
próximas ao real.
tante lembrar que não basta apenas agir para contribuir na elaboração da obra.
O projeto A Machine To See With, mostra algumas possibilidades nesse sentido e apontam para um
O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez
universo amplo a ser explorado. A ideia pode agre-
de simplesmente submeter-se às determinações
gar outras propostas nesse campo: é possível trazer,
do aparato técnico, é subverter continuamente a
por exemplo, experiências mais próximas a ques-
função da máquina ou do programa de que ele se
tões específicas de lutas sociais e decisões políticas
utiliza, é manejá-los no sentido contrário de sua
como forma de conscientização ao aproximar o in-
produtividade programada. (MACHADO, 2004: 5).
terator da experiência real vivida por pessoas em zonas de conflito ou situações de vulnerabilidade
PLAZA (2003), pensa as novas tecnologias da comu-
social, por exemplo. Trabalhos realizados por ci-
nicação como uma nova categoria de arte, a partir
neastas que propõem discussões profundas envol-
do conceito de interatividade. Ele aponta para o des-
vendo questões políticas poderiam ganhar novos
locamento, no século XX, “das funções instaurado-
contornos e ampliar os desdobramentos discursivos
ras (a poética do artista) para as funções da sensi-
que já suscitam.
bilidade receptora (estética), o que produz no meio 38
Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo
Cristina Barretto de Menezes Lopes
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39
Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema* Marina Mapurunga (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, professora mestra do curso de Cinema e Audiovisual e Artes Visuais) marinanimula@gmail.com - www.sonatorio.org RESUMO: Com a revolução tecnológica surgem milhões de possibilidades para o audiovisual. Cada realizador pode criar seu modo de fazer audiovisual. O cinema já nasce como um experimento e se mantém assim até hoje, investigando novas ferramentas a partir das tecnologias de nosso tempo. Neste trabalho apresentamos uma das experiências que busca outras formas de pensar/fazer cinema realizadas no Laboratório de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora – Sonatório, projeto de extensão da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na cidade de Cachoeira-BA. O Sonatório vai propor um corpo-tela/corpo-sonoro. Nesses corpos são projetados samples visuais por meio da técnica de video mapping. O som é realizado em tempo real pelos corpos-telas a partir da linguagem de sinais soundpainting regida por um painter (compositor-regente). PALAVRAS-CHAVE: corpo-tela, corpo-sonoro, soundpainting. Outras formas cinema
convergem entre si: a sala escura de cinema, a projeção da imagem em movimento e o filme que con-
Com a revolução tecnológica surge uma série de
ta uma história. Na forma cinema, “a experiência do
possibilidades para o audiovisual. Cada realizador
cinema esteve confinada nos contornos da tela e na
pode criar seu modo de fazer audiovisual. O cinema
linearidade temporal.” (MACIEL, 2009, p. 15).
já nasce como um experimento e se mantém assim até hoje, investigando novas ferramentas a partir
Porém, o cinema não se confina a esta “forma cine-
das tecnologias de nosso tempo. O cinema sempre
ma”, pois esta é apenas uma das formas em que o
foi um campo de pesquisa. Arlindo Machado (1997,
cinema pode se encontrar. O cinema está para além
p. 211) disserta que se pensarmos em um sentido
de uma sala escura, de uma projeção e de uma his-
mais expandido do cinema, seguindo a etimologia
tória. O cinema se desvia, é múltiplo, variado, com
da palavra cinematográfico (do grego: kínema- éma-
ramificações e imbricações. Isso porque o cinema se
tos + gráphein, escrita do movimento), o cinema se-
reinventa de diversas maneiras. Um pós-cinema, ou
ria uma das formas de expressão mais antigas da
melhor, outra(s) forma(s) cinema(s), busca soluções
humanidade, surgida na pré-história, quando o ho-
inovadoras que rompe com formas e práticas já “fos-
mem projetava imagens em sombras, formadas por
silizadas” pelo excesso de repetição. O cinema pede
suas mãos, nas paredes das cavernas.
mais do que sua forma cinema, há mais camadas. Vários conceitos surgem para explanar este outro ci-
Durante o percurso vital do cinema, uma “forma
nema que vai surgindo. O cinema experimental abre
cinema” acaba por se constituir como dominan-
as portas para outros espaços, outras telas, outras
te, hegemônica, é o cinema convencional. Segun-
sensações e maneiras de perceber o cinema.
do Parente (2009, p.23), esta forma cinema envolve três elementos de três dimensões distintas que
Gene Youngblood lança seu livro Expanded Cinema
* Apoio institucional: Pibex (Programa Institucional de bolsas de Extensão Universitária)/ UFRB.
40
Marina Mapurunga
Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema
(Cinema Expandido) na década de 1970, em um mo-
hibridização entre diferentes mídias. [...] O cinema
mento de transição entre a Era Industrial e a Era
expandido é o cinema ampliado, o cinema ambien-
Cibernética. Esse Cinema Expandido o qual Youn-
tal, o cinema hibridizado.”. O cinema expandido se-
gblood aborda não seria filmes de computador, nem
ria mais voltado a um processo de radicalização do
projeções esféricas, não seria somente um filme, se-
cinema experimental, por meio dos happenings e de
ria “um processo de se tornar uma unidade histórica
performances com o uso de projeções múltiplas e/
contínua do homem para manifestar sua consciên-
ou em outros espaços além da sala de cinema, geral-
cia fora de sua mente, à frente de seus olhos” (YOU-
mente combinando a projeção com outras expres-
NGBLOOD, 1970, p.41, tradução nossa). Ou seja, o
sões artísticas. O cinema expandido tenta criar um
Cinema Expandido seria um processo de expansão,
processo de participação do espectador intensifi-
de externalização, das ideias do homem, como uma
cando os efeitos perceptivos visuais e sonoros sobre
forma de aprimorar a percepção humana. Esse cine-
seu corpo.
ma não estaria ligado apenas a uma disciplina, mas a várias relações no ambiente, especialmente à rede
Nos anos 2000, Katia Maciel nos traz o conceito de
intermídia do cinema e da televisão, que funcionaria
transcinema, o qual ela utiliza para
como o “sistema nervoso da humanidade”. Dentro de sua obra, Youngblood cria várias vertentes para
definir uma imagem que gera ou cria uma nova
esse Cinema Expandido. Entre elas está o cinema
construção de espaço-tempo cinematográfico, em
sinestésico (synaesthetic cinema) que sai da mente
que a presença do participador ativa a trama de-
e transforma-se em visualidade, gerando sentidos
senvolvida. Trata-se de imagens em metamorfose
além da visão que são estimulados pelo processo
que podem se atualizar em projeção múltipla, em
criativo. O cinema sinestésico é, para Youngblood
blocos de imagem e de som, e em ambientes inte-
(1970, p. 77, tradução nossa),
rativos e imersivos. (MACIEL, 2009, p. 17).
1
a única linguagem estética adequada ao ambiente
Os transcinemas seriam formas híbridas entre as ar-
feita pelo homem pós-industrial, pós-alfabetizado
tes visuais e o cinema que envolvem o espectador
com sua rede multi-dimensional simulsensorial de
sensorialmente em um espaço criado. Os transcine-
fontes de informação. É a única ferramenta estéti-
mas representariam o cinema como interface, “como
ca que se aproxima do continuum da realidade da
uma superfície em que podemos ir através” (MACIEL,
existência consciente na não-uniforme, não-linear,
2009, p. 17, itálico da autora). Maciel vai citar, como
não-conectada atmosfera eletrônica da Idade Pa-
exemplo de transcinema, instalações cinematográfi-
leocibernética. [...] o cinema sinestésico transcende
cas nas quais podemos, como participadores, atra-
as restrições de drama, história e enredo e, portan-
vessar o espaço da tela, não apenas mental e visual-
to, não pode ser chamado de um gênero.
mente como também fisicamente. O participador “experimenta sensorialmente as imagens espaciali-
Porém, antes mesmo de Gene Youngblood utilizar o
zadas, de múltiplos pontos de vista, bem como pode
termo Cinema Expandido, autores do cinema expe-
interromper, alterar e editar a narrativa em que se
rimental, como Jonas Mekkas, já se utilizava desse
encontra imerso” (MACIEL, 2009, p. 18).
termo. Segundo Parente (2009, p. 41), diferentemente do que pensa Youngblood, o cinema expandido se caracteriza “por duas vertentes: as instalações que reinventam a sala de cinema em outros espaços e as instalações que radicalizam processos de
1 - “Conceito criado pelo artista plástico brasileiro Hélio Oiticica para tornar o espectador parte da obra, que não existe sem a sua participação. Por exemplo, um Parangolé, sem que o participador o vista, é apenas uma capa pendurada num cabide.” (MACIEL, 2009, p. 17, nota da autora).
41
Marina Mapurunga
Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema
Outro cinema é o live cinema, como o próprio nome
composição sonora por meio de improvisação livre
já aponta é o cinema ao vivo. Este não é como o cine-
utilizando instrumentos musicais, objetos sonantes
ma do início do século passado, em que os músicos
e o corpo. Uma das técnicas de improvisação uti-
executavam a música ao vivo durante a projeção de
lizadas em nossos ateliês foi o Soundpainting. Esta
um filme silencioso. Esse live cinema de hoje iniciou
foi criada em 1974, por Walter Thompson, em Nova
no Brasil e no mundo nos anos 2000 com a figura
York e atualmente tem alcançado vários grupos no
do VJ.
Brasil. O Soundpainting é uma linguagem de sinais/ gestos, universal e multidisciplinar, utilizada para a
O live cinema é permeado por imagens visuais e so-
composição em tempo real para músicos, atores,
noras transformáveis, vivas, recombinantes e trans-
dançarinos e artistas visuais. Atualmente, a lingua-
mutáveis por meio de manipulações, reconstruções
gem é composta por 1200 gestos. Estes gestos são
e ressignificações em tempo real. O live cinema é
sinalizados por um soundpainter (compositor) que
uma apresentação de artista(s) que se utiliza(m) de
indica aos performers o tipo de material que deve
elementos visuais e sonoros que são manipulados
ser executado. Thompson (2006, p.4) apresenta uma
ao vivo (MOSTRA LIVE CINEMA, 2014).
sintaxe para a indicação dos gestos pelo soundpainter: Who (Quem?), What (O que?), How (Como?) e
Os softwares de edição, programação e mapeamen-
When (Quando?). Em primeiro lugar, o soundpainter
to visual e sonoro em tempo real, como Isadora,
indicaria o sinal de quem executaria o que está sen-
Processing, Modul8, Resolume, Video MadMapper,
do pedido: instrumentistas de cordas, sopro, percus-
Ableton Live, PureData, Max/MSP, entre outros, têm
são, cantores, atores, artistas visuais ou até mesmo
sido importantes ferramentas para os artistas de live
uma única pessoa para realizar a ação. Segundo,
cinema. Cineastas como Francis Ford Coppola e Pe-
viria o sinal do que seria executado, por exemplo:
ter Greenway e artistas multimídia como os japone-
nota longa e grave. Em terceiro lugar, como essa
ses Ryoji Ikeda e Daito Manabe estão agregados e
ação será realizada, por exemplo: se é com pouca ou
desenvolvendo pesquisas neste cinema que tem se
muita intensidade, lento ou rápido. Por último vem
tornado mais visível ao longo destes últimos anos.
o gesto de quando a ação será executada: se entra aos poucos ou imediatamente. Ou seja, o soundpain-
O lugar do cinema não é somente em uma sala es-
ter primeiro indica quem realizará, depois apresenta
cura com uma projeção em que há uma narrativa já
qual o conteúdo, as modificações do conteúdo e lan-
pronta, fechada, delimitada. O cinema é repensado,
ça o “vai” para os performers. Além, destes parâme-
re-formado, a “forma cinema” é colocada em ques-
tros há os “modos” e os “palettes”. Os modos são um
tão. Por meio desse pensamento, partirmos para
conjunto de variáveis que afetam gestos específicos
nossa experiência cinematográfica no Laboratório
e os palettes são seções de música, texto, coreografia
de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora – So-
ou design visual já escritos/ensaiados. Trabalhamos
natório, projeto de extensão da Universidade Fede-
no Sonatório com os gestos base do primeiro Wor-
ral do Recôncavo da Bahia – UFRB.
kbook de Soundpainting de Walter Thompson.
Corpo-tela, corpo-sonoro
O Sonatório é formado por alunos de Cinema e Audiovisual e Artes Visuais, pela professora coordena-
Em Julho de 2015, realizamos uma série de ate-
dora e um professor colaborador e, algumas vezes,
liês sonoros no Sonatório que visava a exploração
recebemos participantes externos a UFRB que par-
da experimentação de atividades sonoras, desde
ticipam de nossas oficinas. Nestes ateliês, tínha-
a composição sonora por meio de software até a
mos muitos alunos que não eram músicos ou não 42
Marina Mapurunga
Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema
tocavam instrumentos musicais, logo foi necessário
video mapping. Cada corpo que iria performar rece-
algumas aulas extras sobre teoria musical e um tra-
bia um mapeamento a partir de sua silhueta. Esse
balho de preparação vocal e corporal para que nos-
mapeamento acabava por fazer com que cada cor-
so instrumento principal fosse nossas vozes e nos-
po se tornasse estático, pois qualquer movimento, o
sos corpos. Junto a isso, aderimos objetos sonantes
mapeamento era desfeito. Para ter uma maior mo-
às performances de soundpainting. Estes objetos fo-
bilidade era preciso ter sensores que não tínhamos.
ram construídos no ateliê de criação de Objetos So-
Para a projeção ficar mais nítida, procurávamos usar
nantes, feitos a partir de materiais recicláveis. Estes
roupas mais claras, mas não cobríamos todo nosso
foram utilizados pelo grupo como percussão.
corpo. Cabeça, mãos e pés sempre estavam expostos. Nestas experiências iniciais, nos aproximamos
Algumas performances de soundpainting procuram
mais de um cinema de sensações, sinestésico, uti-
dividir grupos de músicos, atores, artistas visuais e
lizando formas geométricas e orgânicas e cores. As
dançarinos. Em nossas performances, todos podiam
formas visuais eram indicadas pelos gesto de palet-
cantar, tocar, atuar, dançar e iluminar (quando usá-
tes (formas já ensaiadas e combinadas antes da per-
vamos lanternas). Apenas o artista visual, que pro-
formance). As cores, do modo RGB, vermelho (Red),
jetava, ficava mais restrito a projeção e a improvisar
verde (Green) e azul (Blue) eram indicadas com os
poesias.
gestos de notas agudas (R), médias (G) e graves (B). Pensamos em como as formas poderiam se relacio-
Durante nossas experimentações com o soundpain-
nar aos sons, que cor teria um certo som ou qual
ting, percebemos que este teria uma relação muito
seria a forma de um respectivo som. Cores com me-
próxima com outras formas de cinema (cinema ex-
nos brilho teriam sons mais graves, com mais brilho
pandido, transcinemas, live cinema). O soundpainter
teriam sons mais agudos. Formas pequenas teriam
seria esse montador ao vivo, uma espécie de DJ/
sons curtos, formas grandes com sons graves. Nesse
VJ ou um diretor que monta seu filme ao vivo. Mas
processo, tivemos muitas influências das obras de
onde estaria o filme? Se voltarmos à pré-história, po-
Norman McLaren, Oskar Fischinger e John & James
demos dizer que o pré-cinema estava lá, nas caver-
Whitney.
nas, o “homo kínema” criando seu cinema por meio de seu corpo, com as sombras de suas mãos. Por
Considerações finais
que não pensar agora esse corpo com outras funções? Um corpo-sonoro e um corpo-tela? Essa ideia
As experiências realizadas com o soundpaiting e com
partiu de um ensaio o qual começamos a projetar
corpo-sonoro/corpo-tela foram uma tentativa de
formas geométricas nos performers, logo pensamos
realizar um cinema expandido ao vivo, com múlti-
em como poderíamos usar estes corpos como tela
plas telas não convencionais por meio de sensações,
além de já ser um corpo-sonoro. Esse corpo-sonoro
relacionando imagens visuais abstratas a seus possí-
é o corpo que vibra, que realiza sons através do can-
veis sons. Nos primeiros experimentos, ainda sentía-
to, da percussão corporal, da execução de um ins-
mos uma imersão mais voltada à performance que
trumento/objeto, da fala, do assobio. Além de sono-
uma imersão cinema, isso se deu ao utilizarmos as
ro, queríamos que este corpo fosse agora receptor
projeções como uma espécie de “roupa”, de um efei-
de imagens visuais.
to para o corpo do performance. Chegamos a nos apresentar no evento Quartas Experimentais realiza-
Os primeiros experimentos utilizando a projeção nos
do em Cachoeira em Agosto de 2015 e o que ocor-
corpos foi pensando em como esta projeção poderia
reu foi de a projeção servir somente como efeito. A
ser desenhada neles. Isso foi resolvido por meio do
partir disso, nas experiências seguintes, buscamos 43
Marina Mapurunga
Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema
dar mais atenção às imagens, não fazer delas mera-
apresentações com soundpainting e cinema. Acredi-
mente um efeito. Para alcançarmos uma imersão ci-
tamos que o processo de experimentação nos ajuda
nema, precisaríamos entender som e imagem como
a refletir sobre questões que vão surgindo durante
um bloco único, os dois com a mesma importância,
a prática. Às vezes, realizamos algo querendo che-
um complementando o outro.
gar em um ponto X, porém acabamos encontrando outros caminhos e nos deparamos com um ponto Y
Atualmente, ainda estamos em processo de ex-
o qual acaba por nos levar a uma rede para outros
perimentação,
pontos.
realizando
ensaios,
oficinas
e
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas.
_______. Cinemáticos: Tendências do Cinema de
Campinas, SP: Papirus, 1997
Artista no Brasil. Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013
MOSTRA LIVE CINEMA. CONCEITO: Live Cinema, o
THOMPSON, Walter. Soundpainting: the art of live
futuro é agora! Mostra Live Cinema. Disponível em:
composition, Workbook Volume 1. New York: W.
<http://www.livecinema.com.br/artigo/77>. Acesso
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em: 01 ago. 2015 YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. P. Dutton PARENTE, André. A forma cinema: variações e
& Co., Inc., New York, 1970
rupturas. In: MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009
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Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games Denner Mark Hall (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Pós Graduação) dennerhall@gmail.com RESUMO: O presente projeto visa analisar as estruturas narrativas, estéticas e produtivas na criação de jogos eletrônicos independentes ou como são conhecidos indie-games. Para isso serão discutidos os bem sucedidos jogos Fez (2012), Limbo (2012), Transistor (2014) para contextualizar e exemplificar o universo dos indie games. Os três jogos possuem distinção entre si dentro de suas temáticas, linhas artísticas, e mecânicas de jogo, ao mesmo tempo estes convergem paralelamente entre si dentro de uma classificação categórica no mercado de jogos eletrônicos. O outro ponto importante a ser discutido neste projeto será conceitualizar os indie games dentro de um gênero próprio, explorando assim um universo onde as facilidades dos meios produtivos e de distribuição ajudam a proporcionar uma liberdade artística e autoral deste tipo jogo digital. PALAVRAS-CHAVE: jogos digitais, produção independente, distribuição digital. Conceitualizando os Indie Games
atende uma demanda de mercado alternativo e por serem graficamente mais simples esses títulos
O movimento independente dos jogos digitais re-
podem ser reproduzidas em um maior número de
presenta uma ruptura nos parâmetros estéticos das
plataformas.
grande produções dentro dessa mídia. Esse formato de produção permite uma maior liberdade na con-
Parâmetros Narrativos e Estéticos
cepção das estruturas narrativas, estéticas e interativas desse jogos produzindo assim obras mais dis-
É importante compreender a natureza narrativa que
tintas entre si quebrando com as convenção já pré
a maioria dos games modernos apresentam junto
estabelecidas na indústria que tende em produzir
aos processos interativos que compreendem o seu
games cada vez mais foto-realistas que demandam
campo lúdico e qual a representação semiótica que
um alto valor de produção, além de requisitarem
essa fusão produz. Vale lembrar que a concepção de
um maior poder de processamento computacional
espaços diegéticos nos jogos eletrônicos contempo-
para serem reproduzidos. Estes jogos digitais de bai-
râneos está lado a lado com os espaços diegéticos
xo orçamento recorrem da originalidade dos auto-
do cinema e da televisão, e a construção de uma lin-
res para construírem suas mecânicas de jogo e seus
guagem que diferencia e delimita fronteiras entre os
arcos narrativos dentro de universos graficamente
games e outras mídias está em constante evolução.
mais simples, menos cinematográfico, e consequentemente, considerados menos realista dentro dos
Na coletânea de textos The medium of the videogame
parâmetros da indústria de games.
(Mark J. P. Wolf, 2001) o autor discorre:
Por serem produções de baixo orçamento a escolha
Quando os jogos eletrônicos surgiram o conceito
na distribuição digital permite dois pontos vanta-
de mundo diegético empregados em filmes e te-
josos: A diminuição nos custos de produção e um
levisão já havia se tornado familiar ao público. Os
maior alcance de público já que esse tipo de obra
video games utilizam muito da gramática visual
45
Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games
Denner Mark Hall
dessas mídias na construção de seus mundos, e
extremamente familiar para um jogador através da
foi possível serem construídos em cima de con-
releitura de mundos diegéticos criadas nos jogos
venções estabelecidas (WOLF, 2007 p. 94, tradução
eletrônicos das décadas de 80 e 90 uma celebração
1
nossa)
ao retro como no caso de Fez (Polytron Corporation, 2012) ou então eles podem ser compostos por ele-
Dessa forma foi possível que os jogos eletrônicos
mentos visuais totalmente abstratos. A liberdade
construíssem seus alicerces narrativos nas conven-
criativa nesse modelo de produção artística é extre-
ções já pré estabelecidas pelas mídias audiovisuais
mamente ampla e permite a criação de jogos mais
mais tradicionais. A própria tela dos jogos eletrôni-
destintos entre si. No caso de Fez é possível observar
cos, do cinema e da televisão representam estâncias
o uso de recursos transmidiático em sequências do
semelhantes e suas representações linguísticas tam-
jogo aonde há o uso de um leitor de códigos para
bém se assemelham.
smartphone que permite progredir no seu mundo diegético.
Ao jogarmos um jogo digital classificado como uma grande produção, triple A game2, e um indie-game
Muitos indie-games são graficamente “cartuniza-
notamos de imediato, do ponto de vista narrativo e
dos” criando pontes intermidiáticas com histórias
estético, que um é mais cinematográfico do que o
em quadrinhos, animações ou artes-plásticas. Suas
outro. Notamos também que as estrutura formais
composições narrativas podem dialogar com a lin-
que compõe seus mundos diegéticos se diferem, os
guagem de outras mídias, suas fronteiras intermi-
triple A games tendem representar mundos diegéti-
diáticas são mais livres e transparentes e em muitos
cos mais polidos construídos em cima de gráficos
momentos isso cria um grau de imersão maior pois
foto-realistas compondo mundos virtuais mais pró-
permite ao jogador agir de forma mais ativa nas es-
ximos da realidade, mais próximos do formato fílmi-
tâncias narrativas do jogo.
co, mesmo quando possuem temáticas fantasiosas. Já os indie-games tendem a ser menos realistas, seus
Para que haja narrativa é preciso haver texto dentro
universos diegéticos podem ser menos detalhados
do campo lúdico dos games, esse texto do qual me
utilizando de diferentes técnicas de representação
refiro é o processo de se contar uma história que
para se estruturarem textualmente.
dialogue com o jogador por assim dizer dentro do ponto de vista semiótico. O que resta saber é como
A maioria dos indie-games tendem a ser menos tri-
essa história será contada, que tipo de artifícios in-
dimensionais utilizando de efeitos de perspectiva
terativos essa mídia utilizara para uma narratividade
para criar a ilusão de profundidade; muitos jogos
coesa que engloba todos os elementos de seu mun-
eletrônicos independentes são bi- dimensionais e
do diegético, criando unidade.
os que são totalmente tridimensionais costumam ser jogos mais curtos ou jogos sem uma narrativa
Esse é o grande desafio dos games como produção
conduzida. Muitas vezes um indie-games pode ser
artística, a criação de uma linguagem que somente
1 - Trecho original: “By the time the video game appeared, the concept of the diegetic world was already familiar to most audiences through film and television. The video game used much of the visual grammar from these media in the construction of its worlds, and was able to build upon established conventions” 2 - Triple-A Game é a classificação que a indústria de jogos digitais usa para indicar títulos que possuem um alto orçamento em seu desenvolvimento e na sua divulgação promocional.
este veiculo midiático possa produzir, digo isso pois a estrutura dos jogos eletrônicos permite o jogador de ser interrompido das estâncias lúdicas do game pelas próprias intervenções narrativas do seu mundo diegético quebrando assim um pouco o estado de imersão do jogador. Essas intervenções muitas vezes ocorrem como “pausas” nos momentos lúdicos 46
Denner Mark Hall
Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games
do game através de sequência de vídeos conhecidos
da coesão dos diferentes elementos que compõe
como cutscenes. No entanto nos indie games essas
um dado espaço diegético. Um mundo virtual cons-
fronteiras entre o lúdico e o narrativo podem ser
tituído por problemas técnicos que causam quebras
mais tênues.
no progresso do jogador, falhas no comportamento da inteligência artificial e quebras na coesão diegé-
No indie-game Transistor (Supergiant Games, 2014)
tica podem destruir todo o delicado estado imersi-
o jogador é colocado dentro do universo da cidade
vo que o jogador busca. Construir mundos virtuais
futurista chamada Cloudbank, a própria exploração
abertos detalhados e realistas, que possibilitam ao
espacial revela inúmeras unidades narrativas que
jogador uma liberdade de exploração espacial e die-
compõe o grande arco na trama de Transistor trans-
gética exige um alto custo, centenas de horas de tra-
formando a cidade de Cloudbank em um importante
balho e inúmeras correções através de atualizações
personagem na sua complexa narrativa. As mecâni-
no código do jogo. Além disso criar inúmeros even-
cas de jogabilidade, história e cenário se fundem de
tos narrativos em jogos digitais é um processo que
forma coesa proporcionando uma experiência bas-
exige a produção de uma alta quantidade de con-
tante imersiva indo contra as convenções de jogos
teúdo, e essas histórias não podem ser reutilizadas
cinematográficos “hiper- realistas”.
ou usadas de forma genérica (BARTLE, 2009, p. 108). Para os desenvolvedores independentes isso se tor-
Até mesmo ao entrar nos menus do jogo é possível
na inviável.
desvendar vários mistérios sobre o que ocorreu com as pessoas dessa cidade futurística, enriquecendo a
Quanto mais bem resolvido o ambiente de imersão,
narrativa do jogo. As poucas sequências de vídeo
mais ativos desejamos ser dentro dele. Quando as
animado em Transistor passam no pano de fundo
coisas que fazemos trazem resultados tangíveis, ex-
enquanto estâncias interativas ocorrem. Muito da
perimentamos o segundo prazer característico dos
história é contada através da técnica de voz-over
ambientes eletrônicos – o sentimento de agência.
evitando “pausas” narrativas durante a navegação e
Agencia é a capacidade gratificante de realizar ações
o combate. O narrador no caso é a espada da perso-
significativas e ver o resultado de nossas decisões e
nagem principal que serve nas estâncias de comba-
escolhas (MURRAY, 2003, p. 127)
te e jogabilidade dentro dos momentos lúdicos do jogo. A mecânica de jogo é uma mistura de ação e
Dessa forma os desenvolvedores independentes
estratégia por turnos encaixando na proposta de gê-
buscam então trabalhar com diferentes sentimen-
nero de RPG de ação. Caso o game seja jogado na
tos de agencia e evocar outras reações emocionais
plataforma Playstation 4 é possível configurá-lo para
criando novas experiências de jogo. A liberdade cria-
que a narrativa em voz-over seja feita pelo auto-fa-
tiva desse tipo de produção possibilita um tipo de
lante do próprio joystick aumentando sua a imersão.
expressão artística que trabalha com outras semiologias. Segundo Henry Jenkings “Nem todos os ga-
O sentimento de Agencia e Imersão nos
mes contam histórias. Games podem ser abstratos,
Indie-Games
expressivos e de formas experimentais, são mais próximo da música ou da dança moderna do que o
Segundo Janet H. Murray a sensação de imersão é
cinema.” (JENKINGS, 2014 p. 2, tradução nossa)3
estar envolvido por uma realidade totalmente estranha que se apodera de toda nossa atenção, de todo nosso sistema sensorial (MURRAY, 2003, p. 102). O estado de imersão dos jogos digitais é obtido através
3 - Trecho original: “Not all games tell stories. Games may be an abstract, expressive, and experiential form, closer to music or modern dance than to cinema”
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Denner Mark Hall
Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games
A experiência de jogar o indie-game Limbo (Playdead,
errou para superá-las. Por se tratar de um jogo den-
2010) por exemplo tende a evocar padrões emocio-
tro do gênero puzzle os diversos quebra-cabeças são
nais cheios de simbolismo sem o uso de falas, tex-
resolvidos através desse método, morte e ressurrei-
tos, menus, cutscenes ou até mesmo uma história
ção do personagem jogável, lhe trazendo satisfação
propriamente dita. O raso fio narrativo passa então
momentânea por ter solucionado um desafio para
a ser tecido pela interpretação que cada jogador tem
em poucos passos matá-lo novamente.
dessa semiologia linguística. É difícil delimitar qual seria o objetivo do personaO universo de Limbo pode ser descrito como a frontei-
gem principal de Limbo, o que impulsiona suas ações
ra entre a percepção de duas realidades cognitivas.
como protagonista, é difícil observar um fio de even-
O jogador é colocado para experienciar sentimentos
tos narrativos conduzindo o jogador. Por se tratar
não muito convencionais que vão desde uma admi-
de um game em duas dimensões, a movimentação é
ração pelo estranho e não familiar, a compaixão, a
feita de forma linear com alguns raros momentos de
vulnerabilidade e a admiração pelo mórbido através
exploração, a disposição espacial passa a ser então
dos olhos de um frágil menino em um mundo hostil
um dos instrumentos de progressão na experiência,
e assustador porém totalmente envolvente.
no entanto não é o único. Os desenvolvedores de Limbo souberam utilizar de um fluxo de eventos de
Os desenvolvedores de Limbo buscaram trabalhar o
formas sutis, já que há uma ausência quase incomo-
sentimento de agencia na solução de quebra-cabe-
da de uma trilha sonora, um vazio na maior parte da
ças através do processo de tentativa e erro, por essa
experiência e qualquer sonoridade causa um efeito
razão o jogador está constantemente tendo que li-
dramático.
dar com o efeito dramático causado pela morte de seu personagem nas formas mais pavorosas pos-
“No computador, o contexto dramático de captura
síveis para logo depois ser ressuscitado através de
e fuga pode ser simulado pela manutenção do joga-
4
checkpoints estrategicamente colocados, são atra-
dor num espaço confinado até que um quebra-cabe-
vés desses momentos que o jogador se torna mais
ça seja solucionado. Tais quebra-cabeças são mais
consciente das armadilhas e assim aprende aonde
satisfatórios quando as ações possuem uma corres-
4 - Checkpoints são pontos que salvam automaticamente o progresso do jogador para serem retornados quando necessário.
pondência com o drama, quando elas servem para aumentar nossa crença na solidez e na consistência do mundo ilusório” (MURRAY, 2003, p. 138)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTLE, Richard. Alice and dorothy play together. In
MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da
HARRIGAN, Pat; WARDRIP-FRUIN, Noah (org). Third
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2007, p. 51 – 134.
JENKINGS,
Henry.
Game
design
as
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Denner Mark Hall
Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games
LUDOGRAFIA FEZ. Produtora: Polytron Corp, 2012. Plataformas:
TRANSISTOR. Produtor2a: Supergiant Games, 2014.
PC, PS Vita, PS3, Xbox 360, PS4.
Plataformas: PlayStation 4, Microsoft Windows, Mac, Linux, IOS.
LIMBO. Produtora: Playdead, 2010. Plataformas: Playstation 4, Xbox One, Playstation 3, Xbox 360 Microssoft Windows, Mac, Linux, SteamOS, IOS, Android, Playstation Vita, OnLive, Wii U
49
Entre memórias, poéticas e afetos Coord. Cyntia Gomes Calhado (PUC-SP/FIAM-FAAM)
Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles* Cyntia Gomes Calhado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutoranda / FIAM-FAAM, professora) cyntia.calhado@gmail.com RESUMO: Este artigo busca apresentar os pressupostos teóricos que sustentam uma aproximação entre a estética maneirista e a poética do cineasta brasileiro Walter Salles. Situaremos a obra de Salles na proposta de Gilles Deleuze do terceiro estado da imagem, trata-se de uma nova tipologia para o cinema no contexto da sociedade de controle. Propomos estudar o maneirismo como um gesto estético que tem origem nas artes plásticas, e é adotado por cineastas de diversas épocas. PALAVRAS-CHAVE: Walter Salles, maneirismo cinematográfico, poéticas do cinema contemporâneo. O diretor e produtor audiovisual Walter Salles faz
momentos do passado cinematográfico, coloca em
parte da renovação do ambiente cultural brasilei-
relação diferentes tempos e estéticas.
ro pós-redemocratização. Apesar de ser conhecido principalmente por sua atuação como cineasta, pela
Terceiro estado da imagem
qual alcançou repercussão internacional, sua trajetória de mais de 30 anos no audiovisual teve início
A proposta de análise que realizaremos da poética
na televisão. Realizou programas e documentários,
de Walter Salles está embasada no modo de ver a
sendo um dos pioneiros nas produtoras de vídeo in-
imagem contemporânea de Gilles Deleuze em “Car-
dependentes que surgiram nos anos 1980. Sua con-
ta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem”,
tribuição artística mais relevante encontra-se, contu-
texto de 1986. Deleuze relaciona as três funções da
do, no cinema. Até o momento, sua obra é composta
imagem cinematográfica definidas por Daney em A
1
por dez longas-metragens , sendo três deles codiri-
rampa (2007), a seus conceitos de “imagem-movi-
gidos por Daniela Thomas.
mento” e “imagem-tempo”. Se a imagem-movimento pode ser expressa na questão “o que há para ver
Neste artigo colocaremos em evidência o aspecto
por trás da imagem?” e a imagem-tempo em “o que
metalinguístico da poética do diretor que, sendo
há para ver na imagem?”, o teórico aponta para a in-
preponderante em sua autoria, será nomeado pela
suficiência desses conceitos para lidar com os filmes
teoria de cinema de estética maneirista. O manei-
que surgiam nos anos 1970 e 1980. Ele defende, em
rismo envolve um diálogo com formas estéticas do
diálogo com Daney, a existência de um terceiro esta-
passado por meio, por exemplo, de citação a cenas
do da imagem, nomeado Maneirismo.
de filmes que são objeto de culto de determinado cineasta. Este procedimento de citação reatualiza
(…) quando não há mais nada para ver por trás dela,
1 - Jia Zhangke, um homem de Fenyang (2014), Na estrada (2012), Linha de passe (2008), Água negra (2005), Diários de motocicleta (2004), Abril despedaçado (2002), O primeiro dia (1999, codireção Daniela Thomas), Central do Brasil (1998), Terra estrangeira (1995, codireção Daniela Thomas) e A grande arte (1991).
quando não há mais muita coisa para ver nela ou dentro dela, mas quando a sempre imagem desliza sobre uma imagem preexistente, pressuposta quando “o fundo da imagem é sempre já uma imagem”, indefinidamente, e que é isto que é preciso
* O presente estudo é um recorte da pesquisa de doutorado O gesto maneirista na poética de Walter Salles em desenvolvimento sob orientação da Profa. Dra. Christine Pires Nelson de Mello e com apoio do CNPq.
51
Cyntia Gomes Calhado
Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles
ver. (…) a tela não é mais uma porta-janela (por trás
do cinema contemporâneo que privilegiam a me-
da qual…), nem um quadro-plano (no qual…), mas
talinguagem, há o maneirismo, um estilo artístico
uma mesa de informação sobre a qual as imagens
meta-histórico, que surge nas artes visuais. O termo
deslizam como “dados” (DELEUZE, 2013, p. 101-
maneirismo designa um estilo da pintura na segun-
102, grifo nosso).
da metade do século XVI, que se apresenta na obra de Pontormo, Rosso, Parmigianino, entre outros ar-
Ler o cinema de Walter Salles à luz do terceiro está-
tistas que acentuavam os traços de Michelangelo e
gio da imagem nos parece esclarecedor, assim como
Rafael como uma forma de resposta possível ao fim
vincular sua poética ao maneirismo. Porém, diferen-
de um ciclo na história da arte, o Renascimento, em
temente de Deleuze e Daney, propomos o manei-
que um certo ideal de perfeição havia sido atingido.
rismo como uma opção formal adotada por alguns
Na estética maneirista, a forma prima sobre o con-
cineastas, a fim de não transformar o conceito em
teúdo; é uma arte do arabesco por vezes gratuito,
uma categoria totalizadora que abarque o cinema
da elegância, mas também das formas complexas,
contemporâneo em geral.
que favorece assimetrias, deformações. A busca do efeito, a distorção das formas, o privilégio do estilo
Além disso, optamos pela abordagem da sobrevivên-
sobre o realismo caracterizam diversos filmes a par-
cia das imagens do historiador da arte Aby Warburg,
tir dos anos 1970. Propôs-se, então, uma extensão
via leitura de Didi-Huberman (2013). Neste sentido,
da noção de maneirismo ao cinema.
entendemos maneirismo como um gesto estético que tem origem nas artes plásticas, e é incorporado
Se, recuperando a reflexão de Serge Daney, nos fil-
ao cinema. Essa forma estética é objeto de ressignifi-
mes maneiristas, “o fundo da imagem é sempre já
cações variadas realizadas por cineastas em diferen-
uma imagem. Uma imagem de cinema” (2007, p.
tes épocas e pode-se observar sua permanência na
233) e é precisamente a natureza dessas articulações
obra de diretores que produzem atualmente.
formais que deve ser investigada, podemos chegar a algumas conclusões a respeito deste cinema. Dizer
Gesto maneirista e seus procedimentos formais
que o “fundo” de inúmeros planos do longa de Brian De Palma Trágica obsessão (1976), para ficarmos com
Se é de caráter duvidoso afirmar que a realização ci-
um exemplo típico de maneirismo no cinema, con-
nematográfica pode ter sido, em algum momento,
siste em imagens de Um corpo que cai (1958) de Al-
inocente, sem dúvida, na contemporaneidade, é im-
fred Hitchcock, significa mais do que uma mera ho-
pensável conceber qualquer exercício de encenação
menagem ou citação de De Palma a Hitchcock, pois
que não leve em conta seu lugar na história das for-
este procedimento autorreferencial à história do ci-
mas. Com seu centenário, o cinema apresenta uma
nema não é apenas um dos aspectos do filme, mas
linguagem e circuito estruturados – com seus gêne-
sim seu gesto estético principal.
ros, técnicas, parque exibidor e festivais. Ao mesmo tempo em que busca espaço e a reinvenção de suas
Além disso, se a mise en scène dos filmes maneiristas
formas na relação com seus pares audiovisuais - a
necessariamente traz uma releitura de uma imagem
televisão e o vídeo.
cinematográfica precedente, pode-se afirmar que todo filme maneirista é metalinguístico, sem que ele
Nesse contexto, a centralidade do procedimento da
precise trazer a realização cinematográfica em sua
metalinguagem foi uma das vias encontradas por al-
narrativa. Trata-se de uma metalinguagem de outra
guns diretores ao redor do mundo para repotenciali-
ordem, que se realiza no plano formal.
zar e reafirmar o lugar do cinema. Entre as correntes 52
Cyntia Gomes Calhado
Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles
Corroborando esta linha de pensamento, o crítico de
JCA – É curioso que em nossa conversa estejamos
cinema Alain Bergala (1985) defende a hipótese de
todo o tempo falando de uma geografia real. Sinto
que, analogamente ao que ocorrera após o fim do
o filme um pouco mais ligado a uma geografia cine-
Renascimento, o cinema vivia um “momento manei-
matográfica. (…) O Sertão aqui é um pouco menos
rista”, entendido como uma tendência estética que
o Sertão mesmo e um pouco mais o Sertão repre-
se torna predominante com o fim do classicismo, a
sentação cinematográfica do Brasil (…).
partir dos anos 1960, e se intensifica na virada da
WS – Exatamente.
década de 1970 para a de 1980, quando o cinema
JCA – Na verdade não é entrar no Sertão, mas pe-
moderno também atinge um ponto de esgotamen-
gar do Sertão o que existe de imagem dele enquan-
to. Filmes identificados nessa tendência, como Pa-
to expressão cinematográfica. Eu penso no filme
ris-Texas (Wim Wenders, 1984), Estranhos no paraíso
como uma viagem ao Cinema Novo, mais do que
(Jim Jarmusch, 1984), O elemento do crime (Lars Von
uma viagem ao Sertão. (BENTES; MATTOS; AVEL-
Trier, 1984) e Boy meets girl (Leos Carax, 1984), te-
LAR, 1998, p. 7-40).
riam em comum a consciência de ter chegado tarde demais.
Em outro trecho da entrevista, Salles justifica uma sequência do filme - em que os personagens tiram
Traços maneiristas na obra de Walter Salles
uma fotografia que é colocada posteriormente em um monóculo, em uma barraca com a imagem de
Devido à profusão de citações ao Cinema Novo e ao
Padre Cícero - utilizando um argumento metalin-
diálogo com o cinema de Wim Wenders, além de re-
guístico, trata-se de uma vontade de homenagear o
ferências a outros cineastas, acreditamos que a obra
cineasta Wim Wenders.
de Walter Salles abarca características maneiristas. Na ocasião do lançamento de Central do Brasil, em
IV – Aliás pensando na cultura oral do nordes-
entrevista do diretor (WS) para os críticos Carlos Al-
te, no ter que ditar as cartas. Um registro fo-
berto Mattos (CAM), José Carlos Avellar (JCA) e Iva-
tográfico, no monóculo: não é estranho numa
na Bentes (IB), estas marcas metalinguísticas são
região em que os registros são precários?
explicitadas.
WS – Eu preciso confessar pra você, a questão do monóculo é uma questão mais wimwendersziana
CAM – O que você conhecia do Nordeste?
do que nordestina. (…) Os lugares onde a possibi-
WS – Eu tinha, evidentemente, uma memória
lidade da migração é muito presente suscitam a
visual…
necessidade de fixação pictórica das pessoas que
IB: Deus e o Diabo…
partiram. Se você entra numa casa nordestina, (…)
WS – Num primeiro momento uma memória
você encontra um número impressionante de re-
visual que nós todos temos, a herança cinemano-
tratos e imagens que permitem a lembrança da-
vista. (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 7-40).
queles que partiram. A questão da imagem não é decorativa (…). Constitui-se numa memória, numa
Se, como apontamos, nos filmes maneiristas, “o
necessidade intrínseca quase que de sobrevivên-
fundo da imagem é sempre já uma imagem. Uma
cia. Uma forma de resistir é lembrar a pessoa que
imagem de cinema.” (DANEY, 2007, p. 233), vejamos
se foi (ibid.).
como a colocação de José Carlos Avellar é elucidativa a respeito da apropriação da história do cinema bra-
Existe uma possibilidade de dupla leitura do tre-
sileiro realizada por Walter Salles.
cho acima citado. A explicação que o cineasta realiza da importância da imagem no Nordeste pode 53
Cyntia Gomes Calhado
Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles
ser expandida, tendo em vista o conteúdo de suas
Consideramos a metalinguagem o procedimento
demais falas durante a entrevista. Podemos recon-
formal preponderante dos filmes maneiristas, assim
textualizar seu discurso na problemática da imagem
como aponta Serge Daney, já que neles, “o fundo da
no período da crise do cinema dos anos 1980, con-
imagem é sempre já uma imagem. Uma imagem de
sequência dos impactos do vídeo e da televisão. As
cinema” (2007, p. 233) e é precisamente a natureza
diversas inserções na narrativa do filme de índices
dessas articulações formais que deve ser analisada.
metalinguísticos, como as citações ao Cinema Novo,
Este procedimento autorreferencial à história do ci-
a Wenders, além de fotografias, imagens da icono-
nema não é apenas um dos aspectos dos filmes ma-
grafia cristã, referências à história das artes visuais,
neiristas, mas sim seu gesto estético principal, aquele
quadros e do dispositivo ótico do monóculo, pode-
que norteará as demais escolhas fílmicas. Se a mise
riam ser interpretadas como um ato de resistência,
en scène dos filmes maneiristas necessariamente
de preservação da memória do cinema, de sua histó-
traz uma releitura de uma imagem cinematográfica
ria, de seus mestres: Uma forma de resistir é lembrar
precedente, pode-se afirmar que todo filme manei-
a pessoa que se foi.
rista é metalinguístico, sem que ele precise trazer a realização cinematográfica em sua narrativa. Trata-
Considerações finais
-se de uma metalinguagem que se realiza no plano formal.
A aproximação que propomos entre a estética maneirista e a poética do cineasta Walter Salles tem
Por meio de trechos de entrevistas concedidas por
como pressupostos teóricos a contextualização da
Walter Salles na ocasião do lançamento de Central
obra de Salles no terceiro estado da imagem, defi-
do Brasil, buscamos apontar as afinidades entre o
nido por Deleuze como uma nova tipologia para o
discurso reflexivo do realizador sobre o filme e o
cinema na sociedade de controle. Consideramos o
gesto maneirista. Além disso, ressaltamos que as
maneirismo como um gesto estético que tem ori-
diversas inserções na narrativa do filme de índices
gem nas artes plásticas, e é adotado por cineastas
metalinguísticos, como as citações ao Cinema Novo,
de diversas épocas, a partir da perspectiva da sobre-
a Wenders, além de fotografias, imagens da icono-
vivência das imagens de Aby Warburg, via leitura de
grafia cristã, referências à história das artes visuais,
Didi-Huberman (2013), que defende uma concepção
quadros e do dispositivo ótico do monóculo, pode-
anacrônica da história da arte como um jogo de pau-
riam ser interpretadas como um ato de resistência,
sas, crises, saltos e retornos periódicos de estraté-
de preservação da memória do cinema, de sua his-
gias formais.
tória, de seus mestres.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTES, I.; MATTOS, C. A.; AVELLAR, J. C. Conversa
Central do Brasil: Uma análise da reelaboração da
com Walter Salles - O documental como socorro
identidade nacional à luz das teorias pós-modernas.
nobre da ficção. In: Cinemais, Rio de Janeiro, n. 9,
São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado) - Programa
jan./fev. 1998.
de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São
BERGALA, A. D’une certaine manière. In: Cahiers du
Paulo.
Cinéma no. 370, abril de 1985. DANEY, S. A rampa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. CALHADO, C. G. O dualismo cidade e campo em 54
Cyntia Gomes Calhado
Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles
DELEUZE, G. Carta a Serge Daney: otimismo,
OLIVEIRA JR., L. C. G. de. O cinema de fluxo e a mise
pessimismo e viagem. In: Conversações. São Paulo:
en scène. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado)
Ed. 34, 2013.
– Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
DIDI-HUBERMAN,
G.
A
imagem
sobrevivente:
São Paulo.
história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS BOY MEETS GIRL. Leos Carax. França, 1984, filme 35
PARIS-TEXAS. Wim Wenders. Alemanha/Estados
mm.
Unidos/França/Reino Unido, 1984, filme 35 mm.
CENTRAL DO BRASIL. Walter Salles. Brasil/França,
STRANGER
1998, filme 35 mm.
Alemanha/Estados Unidos, 1984, filme 35 mm.
FORBRYDELSENS
ELEMENT.
Lars
Von
Trier.
Dinamarca, 1984, filme 35 mm.
THAN
PARADISE.
Jim
Jarmusch.
VERTIGO. Alfred Hitchcock. Estados Unidos, 1958, filme 35 mm.
OBSESSION. Brian De Palma. Estados Unidos, 1976, filme 35 mm.
55
Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo Renato Coelho Pannacci (Unicamp, doutorando / UAM, professor) RESUMO: Apontamentos acerca do longa-metragem Corpo Presente (2013), dirigido por Paolo Gregori e Marcelo Toledo, abordando o histórico dos realizadores, anteriormente membros da produtora independente Paraísos Artificiais, bem como questões relativas ao processo de produção da obra. Rodado ao longo de alguns anos e finalizado
picada e Riocorrente, Corpo presente se alinha a uma
em 2012, Corpo presente é o primeiro longa-metra-
vertente de cinema especialmente paulistano, isto é,
gem da dupla de cineastas Marcelo Toledo e Paolo
a de filmes que não apenas retratam ou se passam
Gregori, experientes curta-metragistas no cenário
na cidade de São Paulo, mas nos quais a metrópole
do cinema de São Paulo, tendo realizado diversos
desempenha papel fundamental e central para as
filmes desde o início dos anos 1990.
tramas, ou maior, para que os filmes possam mesmo existir.
Foi nessa época que Gregori e Toledo integraram a Paraísos Artificiais, junto com Christian Saghaard,
Na trama, acompanhamos um dia na vida de três
Debora Waldman e Paulo Sacramento; produtora
personagens: Alberto (Marat Descartes), um agente
que durou pouco tempo, mas que foi responsável
de funerária e frequentador de raves, em dívida com
por uma instigante produção de curtas, filmes ra-
agiotas; Cynthia (Simone Iliesco), manicure em um
dicais como Noite final menos cinco minutos (1993,
salão de beleza e dançarina num clube noturno, que
Waldman), Sinhá demência e outras histórias (1995,
se aventura no universo da prostituição; e Beatriz
Saghaard e Carlos Botosso) e Mariga (1995, Gregori),
(Raissa Gregori), operária em uma fábrica e admira-
entre outros.
dora de punk rock e tatuagens.
Amigos próximos e discípulos das ideias de Jairo Fer-
Diversamente de outros filmes na mesma vertente,
reira, legatários de um cinema de verve mais inventi-
em Corpo presente as trajetórias desses três persona-
va (ou do que JF nomeou de Cinema de Invenção), o
gens pouco se encontram, ou mesmo suas histórias
grupo da Paraísos Artificiais, após a curta e embrio-
se entrecruzam de forma aprofundada. Também
nária existência da produtora, vem agora no século
não temos certeza se o dia tratado na vida de cada
XXI se aventurando em interessantes incursões no
um dos personagens retratados seria o mesmo. Pela
formato de longa-metragem. E ainda, mesmo que
forma que o filme é estruturado, tudo indica que sim,
em diferentes doses, continuam bebendo na fonte
mas tampouco isso importa. O que de fato envolve
do Cinema Baudelairiano.
os três personagens é uma determinada atmosfera da cidade de São Paulo, pela qual parecem por vezes
Paulo Sacramento realizou, em 2003, o documen-
levados, ou melhor, sugados.
tário O prisioneiro da grade de ferro, e mais recentemente Riocorrente (2013). Já Christian Saghaard
Mas é fato que também estão lá referências a cer-
rodou, em 2008, o enigmático e pungente O fim da
tas tradições do cinema de São Paulo. Seja através
picada. Do grupo, apenas Debora Waldman, talvez a
de ecos do cinema de Carlão Reichenbach, ou mes-
mais talentosa, aparentemente abandou o cinema.
mo alusões ao cinema da Boca do Lixo e algumas de suas convenções. E isso sem contar a atuação –
Assim
como
ocorre
em
O
fim
da
e magnífico papel – de David Cardoso, a impagável 56
Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo
Renato Coelho Pannacci
participação de Alfredo Sternheim e a ponta de Dar-
Dessa maneira, o quarto personagem presente no
lene Glória.
roteiro original foi cortado (“Jonas, um taxista viciado em corridas de jockey”, como define Paolo Grego-
Corpo presente é um filme no mínimo estranho, no
ri), e através de uma nova montagem e articulação
qual o registro das atuações foge dos padrões mais
das cenas dos três personagens remanescentes foi
convencionais (pelo menos no âmbito do cinema
finalmente edificada a montagem final do longa-me-
brasileiro), mas que ao mesmo tempo dialoga com
tragem, com seus 75 minutos de duração, tendo es-
um cinema de cunho mais popular. É pena que não
treado no circuito comercial já em 2013.
exista mais público para o cinema por estas bandas. Ou pelo menos para o cinema que não atende aos
Mas, ao fim, o que realmente surpreende é a unida-
padrões e que, consequentemente, não embolsa as
de estética e narrativa que o filme demonstra, certa-
vantagens da máquina publicitária da Globo Filme$.
mente pautadas na firmeza de ideias e propostas da dupla de diretores, bem como na apurada e enxuta
Já em termos de produção, o processo de feitura
fotografia de Aloysio Raulino.
de Corpo presente é daqueles que expõe as dificuldades e percalços por vezes enfrentados por realizado-
Nas palavras de Gregori, Corpo presente “é um filme
res brasileiros, no sentido de conseguirem efetiva-
que foi feito para ser visto por um público que gos-
mente produzir seus filmes. Desde meados dos anos
ta de cinema, mas um filme que não encontrou o
2000, havia a ideia do longa-metragem para cinema,
seu espaço, pois este já não existe. Um tipo de cine-
na verdade não com três, mas com quatro persona-
ma diferente, mas autêntico, para um público não
gens cujas histórias se alternavam na narrativa.
elitizado.”
Primeiro Gregori e Toledo realizaram o curta Corpo
Fica a sensação de que em outros tempos, antes
presente: Beatriz, projeto contemplado pelo Prêmio
da massificação exercida pela televisão, quando o
Estímulo ao Curta-metragem e lançado em festivais
público brasileiro ainda efetivamente frequentava
em 2008, com 20 minutos de duração. Posterior-
as salas de cinema para assistir aos filmes brasilei-
mente realizaram o telefilme Corpo presente: Alberto
ros, Corpo presente e outros filmes com potencial
e Cynthia, com duração de 56 minutos e exibido na
popular – mas que fracassaram nas bilheterias -,
TV Cultura, na grade intitulada “Telefilmes Cultura”,
como Falsa Loura (2007, Carlos Reichenbach), certa-
no fim de 2009.
mente encontrariam seu lugar ao sol.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo:
RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro.
Limiar, 2000.
São Paulo: Art Editora, 1987.
GHIDETTI, Carolina. Paraísos Artificiais: Novos rumos em tempos de crise in Revista Aurora/PUCSP. São Paulo: 2009.
57
Memória afetiva na obra de Wenders Ricardo Tsutomu Matsuzawa (Universidade Anhembi Morumbi, doutorando em Comunicação Audiovisual) e-mail: ricado_matsuzawa@yahoo.com.br RESUMO: A pesquisa busca analisar as relações da cinefilia dos realizadores em suas obras. Os elementos fílmicos que são reapropriados de acordo com a memória afetiva em produções/reproduções que organizam um novo sentido ou uma outra perspectiva. Esta reflexão tem como objetivo apontar as convergências entre elementos formais estabelecidos, a apropriação de cenas emblemáticas, as releituras e a constituição da subjetividade dos modos autorais em uma nova configuração da referência apropriada. Como objeto inicial de análise destaco o realizador Wim Wenders e o seu filme Um filme para Nick (1980). O estudo pretende avaliar como e de que forma as apropriações aparecem na obra de Wenders e como estas metáforas audiovisuais se configuram como uma marca simbólica nas suas produções. PALAVRAS-CHAVE: Nicholas Ray, memória, Wim Wenders. Um filme para Nick nasceu do desejo de Wim Wen-
poucos” (WENDERS, 1986, p.167).
ders e Nicholas Ray de realizarem um filme juntos. Naquele momento, Ray estava à beira da morte e
Wenders de folga na realização de Hammett se en-
esquecido pela indústria cinematográfica americana
contra com Ray, que estava com câncer, fazendo
por não se curvar a ela. Wenders enfrentava os pro-
quimioterapia. Nick já tinha dito a Wenders o seu de-
blemas de tentar se inserir nela com os problemas
sejo de realizar um filme de baixo orçamento. Apro-
de produção em Hammett (1982). Wenders deseja-
veitando a oportunidade deste tempo livre, partiram
va que o filme fosse uma oportunidade de retorno
de uma ideia de Nick: resgatar o seu personagem de
para Ray: “Com Nick’s Movie [Um filme para Nick],
Um amigo Americano (1977), Derwatt, um pintor que
ele (Ray) tinha a oportunidade de trabalhar, de ma-
se fingia de morto e pintava novos quadros com se
nifestar-se de forma visível e pública e não apenas
tivessem sido feitos na época de quando estava vivo.
escrever anotações em um diário íntimo” (CIMENT, 1988, p. 310). Os dois buscam com o filme uma for-
No filme, Derwatt também seria um pintor, mas ago-
ma de se reconstituir.
ra em vez de fingir-se de morto, ele estava à beira da morte com câncer. Não conseguindo vender os
No filme há uma sequência em que o próprio Nicho-
seus quadros recentes, então começa a produzir fal-
las Ray, em uma conferência em Vassar, apresenta
sificações dos antigos quadros que lhe proporciona-
as intenções desse filme e de seu personagem como
ram fama e dinheiro no passado. Ele tem a intenção
protagonista: “O filme é sobre um homem que quer
de trocá-los das galerias onde elas estariam expos-
se recompor antes de morrer. Ele quer recuperar
tas, vendendo os quadros originais para conseguir
a autoestima. Já foi um homem de muito sucesso”.
dinheiro. Wenders propõe a mudança do persona-
Wenders registra a morte de Ray, como um testemu-
gem de um pintor para um diretor de cinema que
nho da sua enorme importância para o cinema e sua
tenta roubar os seus próprios negativos no labora-
própria obra. Essa importância é destacada em uma
tório, o que acontecia com Ray: seu filme We can’t
afirmação que Wenders faz retomando uma célebre
Go Home Again, o filme é um trabalho coletivo que
frase de Godard: “Se o cinema não existisse, Nicho-
mostra a relação professor e os seus alunos de cine-
las Ray o tê-lo-ia inventado, tem, no entanto algo de
ma (1972-1976), estava em um laboratório em Nova
errado: o condicional. Ray inventou o cinema. Como
York, pois não possuía os seus direitos. Nick agora 58
Ricardo Tsutomu Matsuzawa
Memória afetiva na obra de Wenders
desempenharia o seu próprio papel no filme, mas
no filme. A cada dia, contrariando nossos próprios
pede a Wenders que ele desempenhe o seu tam-
desejos, renovávamos o compromisso de continuar
bém: “Você precisa também se expor” (WENDERS,
por Nick (WENDERS, 2005, p. 237).
1990, p. 133). Desse modo, tanto Wenders como Ray são personagens e diretores do filme.
A primeira cena que Wenders filma é uma palestra que Nick apresenta em Vassar. Sem saber quais ca-
Realizado a quatro mãos, é um filme onde ficção e
minhos levariam as filmagens, grava apenas Nick e
documentário se confundem em um trabalho de di-
posteriormente as cenas onde ele próprio, Wenders
fícil classificação, como aponta Wenders, não conse-
aparece com a equipe. Na palestra é apresentado o
guindo classificá-lo: “nem sei sequer se ele é de todo
filme de Nick, Paixão de Bravo (1951), que possui uma
um filme” (WENDERS, 1990, p.78).
das cenas prediletas de Wenders, uma coincidência porque o filme já estava programado para o evento.
O primeiro plano de Um filme para Nick apresenta o
A cena em questão apresenta Jeff McCloud (Robert
mesmo espaço, uma rua em Nova York, e um plano
Mitchuam) procurando recordações escondidas em
muito parecido com o utilizado no começo do filme
um local debaixo da casa em que viveu a sua infân-
Um Amigo Americano (1977). Wenders emula a mes-
cia. Cena que Wenders se apropriou de forma expli-
ma cena de seu filme anterior, mas no lugar de Den-
cita em No decurso do tempo (1976). Bruno, um dos
nis Hopper (Tom Ripley), encontramos ele próprio,
protagonistas deste filme, assim como Jeff, ao voltar
Wenders, indo ao apartamento de Nicholas Ray, o
à casa da infância procura recordações escondidas
seu amigo americano. Podemos perceber uma ana-
debaixo da escada da casa. Wenders comenta esta
logia na reapropriação desta cena: em Um amigo
cena para Nicholas Ray em Um filme para Nick: “Nun-
americano, Tom Ripley ia ao encontro de Derwatt,
ca vi uma cena que represente tão bem a volta para
interpretado por Nicholas Ray a quem Wenders pro-
o lar”.
cura agora em Um filme para Nick, para trabalharem juntos de novo.
Reutilizando a cena, Wenders retoma algo que estava em sua lembrança na cena do filme Paixão de bra-
Além da tentativa de resgate de Derwatt/Nicholas
vo. Talvez na sua memória cinematográfica, “a volta
Ray, existem outros fatores que podem aproximar
para o lar” está na representação desta cena. Pen-
Um amigo Americano e Um filme para Nick. A trama
sando na memória para Bergson, retomemos o que
principal,Jonathan Zimmermann e convidado para
ele classifica como reconhecimento por movimento:
que cometa assassinatos já que sofre de uma doen-
“Este reconduziria à sensação de familiaridade que
ça terminal e não poderia ser ligado aos crimes; com
temos de um objeto visto ou evocado, que determi-
os assassinatos ele teria dinheiro para a sua famí-
na em nosso corpo os mesmos movimentos de rea-
lia depois da sua morte. Tom Ripley aproveita-se
ção que tivemos no momento em que anteriormente
da condição terminal de Jonathan para tirar provei-
o percebemos” (HALBWACHS, 2006, p.55). Wenders,
to próprio e tentar ajudá-lo. Se no personagem de
como se contasse de novo algo que se lembra, reto-
Tom Ripley não fica claro uma reflexão ética e moral,
ma esta cena não como uma cópia, mas para invocar
em Wenders podemos perceber como estas ques-
as sensações que tivera quando assistiu o filme de
tões o perturbaram a cada dia de gravação. Não é
Nicholas Ray. “Quando volto a imaginar esta cena, o
apenas uma questão de escrúpulos. A cada dia, em
fluxo da história também me agrada imediatamente,
cada plano, nos perguntávamos: podemos fazê-lo?
na minha memória: sem tensão e sem pressa, cada
Temos permissão para fazê-lo? Toda a filmagem foi
imagem transformando-se pouco a pouco numa es-
uma contínua reflexão ética e moral, e isso se nota
crita única, que se começa lentamente a olhar e a 59
Ricardo Tsutomu Matsuzawa
Memória afetiva na obra de Wenders
escutar” (WENDERS, 1989, p.166). Imagens que estão
e a sua relação de amizade com Nick. O confronto da
no território do cinema, não pertencem mais nem a
imagem de si mesmo gera em Tom uma reação mais
Nick e nem a Wenders, apenas querem significar a
forte à cena, em comparação aos outros que estão na
volta para o lar. Esta mesma cena inserida em Um
sala, inclusive o próprio Nick. Halbwachs (HALBWA-
filme para Nick aparece de forma diferente de No de-
CHS,2006) aponta que a impressão proporcionada
curso do tempo. Aparentemente ela tem uma função
por uma imagem que gera uma lembrança comum
ilustrativa na palestra de Nick em Vassar, mas a cena
a um grupo é condicionada também aos fatores que
pode ganhar outro contorno se lembrarmos que o
cada um dos participantes guarda para si daquele
filme Paixão de bravo foi realizado com um orçamen-
momento, confrontada com o que aquela lembran-
to pequeno, com poucas páginas de roteiro iniciais
ça tem de importância no momento em que ela é
(16 páginas), escrito à noite por Nick em um proces-
rememorada. Retomando esta imagem do passado
so não usual em produções de Hollywood. Esse mé-
pelas imagens do filme que participaram juntos, po-
todo de trabalho causou a sua desgraça na indústria
demos identificar em Tom a reconstituição daquele
americana, tornando-o um exilado dela, mas este
momento, cada pedaço daquela imagem se junta à
processo é muito próximo ao trabalho do próprio
sua lembrança, confrontada com a relação atual dos
Wenders, que assumiu publicamente uma grande
dois e a doença de Nick. Para Tom esta lembrança o
ligação com este filme. O próprio enredo de Paixão
une mais a Nick do que uma deficiência em comum.
de bravo também permite reconhecer uma identifi-
E ainda, na cena seguinte, Tom indaga a Wenders se
cação: Jeff, antes um grande cowboy com fama e di-
Nick não seria um como pai para os dois.
nheiro, é condenado a ficar a margem da profissão até a sua volta aos rodeios, o que causa a sua morte.
A filiação entre eles é ligada pelo cinema. Wenders
Outro ponto a se refletir seria o próprio tema como
foi influenciado por Ray e ambos eram sobreviven-
afirmado por Ray em Vassar: “Este filme não é um fa-
tes da estrutura de produção de Hollywood. Como
roeste. Na verdade é sobre pessoas que querem ter
um anti-édipo, Wenders tenta com Um filme para
o seu próprio lar”. Podemos apontar em Wenders a
Nick reconstituir a imagem do mestre, preservando
questão da busca de um próprio lar. Nascido de uma
a sua memória. O caminho para a morte seria o ci-
pátria com a identidade abalada e em seu exílio vo-
nema, ele estaria vivo pelos registros da câmera. No
luntário na América, vivendo o que Peixoto chama
meio da produção, Wenders foi chamado para conti-
de desterritorialização contemporânea, “que fez de
nuar o seu trabalho em Hammett. Antes de sua par-
cada indivíduo um estrangeiro no seu país de ori-
tida, Suzanne entrega o diário de Ray. Ele começou a
gem e o levou [Wenders] a tentar virar americano”
escrever o diário quando descobriu que estava com
(PEIXOTO, 1987, p. 203). Wenders em sua busca por
câncer, dois anos antes. No loft vazio, preparando-
um cinema próprio teve a ilusão que o encontraria
-se para partir para Los Angeles, Wenders observa
na America, mas a experiência e o exemplo de Ray
os objetos de Nick e a sua cadeira de diretor agora
mostraram-no o contrário.
abandonada. Wenders no táxi a caminho do aeroporto e dentro do avião lê os escritos de Ray, tenta
Em outra cena Wenders, Suzanne, Nick e Tom Farrell
se aproximar do diretor dos filmes que ajudaram a
assistem a projeção de We can’t go home again (1972-
construí-lo como cineasta. O diário de Ray funciona
1976) Em um trecho da exibição, Tom Farrell, mais
como um guardião de suas memórias e é tão pre-
jovem, explicando a Nick os motivos que ocasiona-
cioso como as anotações e objetos de Ozu que Wen-
ram a perda da visão do olho direito, algo que eles
ders encontra em Tokyo Ga (1985). Wenders destaca
têm em comum. Tom, comovido, relembra seu pas-
três palavras: curiosidade, imaginação, humildade.
sado com o filme, quando era estudante de cinema
Palavras que motivaram o cinema de Nick e também 60
Ricardo Tsutomu Matsuzawa
o seu. Ele retoma o plano da asa do avião observada
Memória afetiva na obra de Wenders Ray: Não corte Corta!!!
por uma de suas janelas. Este plano aparece em seu primeiro longa-metragem Summer in the city (1970)
Wenders no começo desta cena tinha antecipado
e é encontrado em grande parte dos seus filmes. Os
a impressão de realidade que elas possuíam: “Mas,
personagens de Wenders estão sempre em trânsito,
mais uma vez, a realidade foi mais forte que a fic-
viajando, quase sempre não por desejo e sim mo-
ção em que queríamos transformá-la. Seria a última
tivados por uma necessidade. Naquele momento
vez”. As cenas são prólogos da morte de Ray dentro
Wenders, como um de seus personagens, precisava
da montagem do filme. Não temos no filme a cena
encontrar um rumo para os dois filmes que estava
de seu enterro. Sua despedida é a sua última fala
produzindo.
no filme: “Corta!” Com esta fala como diretor que decide a duração dos planos, Nick definiu a sua últi-
Em uma cena apresentada em um hospital estilizado,
ma aparição no filme, e com a sua morte também o
uma adaptação de Rei Lear de Willian Shakespeare:
fim das filmagens. No epílogo a equipe está reunida
Ronee interpreta uma filha, Cordelia, reencontran-
dentro do junco chinês. Bebendo e fumando conver-
do o pai moribundo à beira da morte. Percebemos
sam sobre Nick e o filme. Na proa, um vaso com (tal-
na atuação de Nick uma mescla de Lear e de si pró-
vez) as cinzas de Nick. Tom Farrell comenta sobre a
prio, quando fala sobre sua própria doença. Wen-
doença de Nick: “Acho que você faz de tudo que pos-
ders comenta sobre esta cena para CIMENT (1988,
sa dar certo [cura para o câncer], que possa ajudar
p. 313): Talvez seja a mais artificial do filme. Mas
alguém”. Wenders responde: “Até fazer um filme”.
justamente nessa cena inteiramente funcional Nick fala do câncer, ou seja sua maior verdade. E foi este
Um filme para Nick é um filme sobre um filme que
o problema constante do filme. Era nas cenas intei-
não deu certo, se pensarmos na ideia original de
ramente documentais que tínhamos dificuldades de
Wenders e Nick. A doença de Nick impedia o anda-
nos aproximar da realidade. Quando inventávamos,
mento do filme, era o maior obstáculo e também o
podíamos por fim falar daquela realidade Wenders
maior motivo para Wenders realizá-lo. Um filme que
e Suzanne assistem a cena como espectadores, mas
se coloca como oposição aos padrões americanos
em um momento Wenders cochila. Temos uma pas-
da indústria. Padrões onde a narrativa é construída
sagem para outra cena de sonho. A imagem mostra
para reforçar uma impressão de realidade, eliminan-
Wenders deitado na cama de hospital e ao seu lado
do tudo que é desnecessário para a história. Onde o
Nick com um tapa-olho que o indaga: “De onde você
diretor tem que se ocultar, como um anônimo fun-
veio?” A sequência continua em um longo plano de
cionário obediente aos burocratas que administram
quase seis minutos, em que Nick emite grunhidos,
os estúdios. Em Um filme para Nick a prioridade não
grita, começa a cantarolar e questiona seu estado:
é a história de dois amigos que querem realizar um filme. Essa motivação é apenas o detonador inicial
Ray: Você está me deixando doente. Mas não por
para que reflitam sobre a realização fílmica, o pró-
sua causa. Não sei por quê. Não sei por quê. Pre-
prio cinema, o seu modo de fazer, a opressão que
ciso ir embora. Estou começando a babar. Merda
sofrem os que não se sujeitam às imposições da in-
(em alemão)! Merda Acabei Tudo bem O que você
dústria do cinema. Wenders deixa se expor, entrega-
vai fazer?
-se como personagem do filme e de sua própria his-
Wim: Dizer corta Corta
tória, experimenta co-dirigir, dirige e é dirigido por
Ray: Vá em frente Você deve dizer corta Vá em
Nick, um dos grandes realizadores do cinema clássi-
frente, corte Vamos corte Corte
co de Hollywood. Nicholas Ray faz parte da memória
Wim: Não corte
que retoma os filmes que Wenders assistiu, clássicos 61
Ricardo Tsutomu Matsuzawa
Memória afetiva na obra de Wenders
que o ajudaram a se constituir como cineasta. A par-
dessa mistura, que explicita uma fuga da tradição do
tir das lembranças dos filmes de Nick, Wenders ad-
naturalismo artificial dos filmes ficcionais. Wenders
mirou, aprendeu, copiou, homenageou.
e sua relação cinéfila resgata elementos fílmicos que são reapropriados de acordo com a memória afetiva.
Wenders finaliza o filme sem Nick, o que o livra do
Este não tem mais o objetivo de mostrar dois amigos
pudor que carregava quando filmavam juntos. Além
querendo realizar um filme e sim a sua lembrança
das cenas de campo e contra campo, apresenta o
destes dois amigos querendo produzi-lo. O próprio
fora do campo, o entorno das imagens que estavam
processo de montagem é uma junção de lembran-
sendo filmadas: making of, repetição de planos, en-
ças, um resgate das impressões da filmagem, um
saios. Sequências documentais e ficcionais são em-
rememorar, uma reconstrução. Um filme para Nick
baralhadas, sendo que as mais artificiais traduzem
mostra dois amigos em que o próprio filmar é viver.
uma verdade tão pungente quanto as gravadas sem
Dois amigos que conseguiram se reconstituir com
planejamento. A veracidade é construída através
este filme.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas:
PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas – A
Papirus, 1995.
realidade imagináriacontemporânea. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BERGSON, Henri. Memória e vida. São Paulo:Martins Fontes, 2006.
WENDERS, Wim. A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, 1990.
BUCHKA, Peter. Os olhos não se compram. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_______.El acto de ver. Barcelona: Paidós, 2005. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São
opacidade e a transparência. 3ed. Rio de Janeiro: Paz
Paulo: Centauro, 2006.
e Terra, 2000.
62
Entre escutas: sons, espaços e reverberações Coord. Damyler Ferreira Cunha (USP)
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho (Universidade Federal de Pernambuco, mestranda). RESUMO: Este artigo parte da análise do filme O moinho e a cruz para propor uma reflexão acerca das funções narrativas e estéticas do ruído. A problemática da pesquisa se desenvolve a partir da concepção de que este elemento sonoro é predominantemente explorado nas produções contemporâneas como um acessório figurativo da imagem o que acaba por subjugar sua potencialidade expressiva a um papel passivo na produção do sentido fílmico. Assim, por meio do diálogo com o conceito de hiper-realismo sonoro e do estudo analítico desta obra a qual subverte tal tendência dominante, procuramos compreender e problematizar as dimensões diegéticas que o ruído é capaz assumir em uma produção de cinema. PALAVRAS-CHAVE: estudos do som, ruído, análise fílmica. Introdução
no cinema busca trazer uma reflexão comparativa acerca do contexto da produção ficcional contem-
Na linguagem cinematográfica a dimensão visual se
porânea, que em seus múltiplos gêneros e varia-
consolidou como a instância produtora de sentido
das propostas criativas, continua a reproduzir esta
já que são seus elementos que convencionalmente
tendência do período clássico onde a produção da
dominam a construção diegética dos filmes. Aos ele-
significação audiovisual fica concentrada na instân-
mentos do som coube neste processo uma função
cia imagética e textual (diálogos). Neste contexto,
utilitária de servir às aspirações realistas das ima-
o ruído, apesar de sua latente potencialidade cine-
gens. Este quadro se delineou no início do cinema
matográfica, é um componente explorado quase
sonoro onde a intenção de se construir uma verossi-
que exclusivamente como um acessório da imagem,
milhança cada vez mais intensa entre o mundo real
sem encontrar espaços para contribuir ativamente
e o ficcional fez com que o áudio fosse introduzido
na construção da significação fílmica.
nas produções não como um componente autônomo e expressivo, mas sim como uma inovação técni-
A maioria dos outros filmes, incluindo os de autor,
ca cujo papel preponderante seria o de agregar valor
ainda não deu aos ruídos o estatuto global de um
figurativo às imagens.
elemento cinematográfico, ao qual, para além da sua função diretamente figurativa, seria reconheci-
Tal disparidade não ficou restrita a relação audiovi-
da a mesma capacidade expressiva que é atribuída
sual e também se refletiu no âmbito da própria ban-
à luz, ao quadro ou ao desempenho dos atores.
da sonora onde as vozes dos personagens, articula-
(CHION, 1991, p.117)
das em diálogos, são os elementos predominantes na construção diegética, seguidas pela música, e em
Em meio a este quadro de notório domínio do vi-
último lugar, subjugado a um papel passivo, localiza-
sual é possível encontrar obras onde o som atua em
mos o ruído, objeto de estudo deste artigo, entendi-
complementaridade com a imagem em detrimento
do aqui como todo som do filme que não é nem voz
de uma relação de subordinação. É o caso do filme
nem música (som ambiente, foley, efeitos sonoros).
O moinho e a cruz (The mill and the cross, Lech Majewski, 2011) o qual subverte diversas tendências do
Este breve panorama sobre a introdução do som
cinema clássico ao conferir aos ruídos da cena um 64
Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
papel fundamental no desenvolvimento da diege-
de procedimentos que caracteriza a análise fílmica
se. A trama é construída praticamente sem diálogos
(descrição, decupagem e estudo analítico-conceitual
e em alguns poucos momentos é pontuada pelos
da cena) é a metodologia escolhida como ferramen-
monólogos dos personagens o que quebra com a
ta para alcançarmos o objetivo delineado.
convenção clássica do domínio do texto na condução do enredo. Além disso, a música, componente
O hiper-realismo sonoro
massivamente utilizado como um guia sensorial do espectador, só está presente em poucos planos.
Em virtude de sua natureza ondulatória os elemen-
Nesse sentido, é o ruído que se destaca na condu-
tos sonoros são capazes de provocar um forte efeito
ção da trilha sonora ao exercer funções expressivas
sinestésico no público já que o atinge diretamente,
que vão muito além de seu papel figurativo–utilitário
ainda que sua atenção esteja focada no olhar sem-
convencional.
pre direcionado à projeção. “Por suas propriedades intrínsecas, o som, ao se propagar, vai de encon-
A narrativa traça um olhar sobre a ocupação espa-
tro ao espectador, enquanto a imagem está “pre-
nhola em Flanders, atual região da Bélgica, durante o
sa” à tela.” (COSTA, 2011, p.85). Na virada dos anos
século XVI, a partir do emblemático quadro Procissão
70-80, a padronização do sistema Dolby sound nas
para o calvário (Pieter Bruegel, 1564), o qual busca
instâncias da produção e exibição cinematográficas
metaforizar o sofrimento do povo dominado a partir
potencializou a força expressiva dos sons uma vez
do simbolismo fundamental da crucificação de Jesus
que o desenho do áudio, antes limitado pelo precá-
Cristo. A pintura apresenta diversas ações isoladas,
rio sistema monofônico (único canal de áudio para
repletas de códigos católicos e representações de
diálogos, música e ruídos), passou a ser composto
costumes, que exalam uma forte intenção narrativa.
por múltiplos canais, simulando assim a natureza
É a partir da desconstrução deste quadro, atribuindo
estereofônica da nossa percepção auditiva, ou seja,
movimento e sons as suas figuras, que o diretor do
aquela composta por dois ouvidos que captam sons
filme busca reconstruir audiovisualmente o proces-
emitidos em todas as direções e assim identificam
so de montagem deste painel imóvel.
sua origem e seus deslocamentos.
As peculiaridades sonoras do filme, em sintonia com
O aspecto sonoro da experiência cinematográfica
uma proposta imagética mais plástica do que natu-
passou a ser ainda mais valorizado a partir da déca-
ralista, envolvem o espectador em uma diegese in-
da de 90 com o desenvolvimento da tecnologia digi-
tensamente sensorial e sugestiva na qual o ruído se
tal, a qual complexificou o sistema estereofônico do
apresenta como uma chave para a compreensão dos
Dolby Sound permitindo que cada vez mais compo-
sentidos fílmicos ali codificados. A partir desta pers-
nentes audíveis pudessem participar da composição
pectiva, a problemática levantada por este artigo
das sequências, além de ter multiplicado os recursos
busca compreender de que maneira o ruído se apre-
de manipulação do áudio na fase de pós-produção.
senta como um elemento determinante na compo-
Nesse sentido, o ruído foi o elemento da banda so-
sição estética e narrativa da produção analisada. A
nora que mais se destacou nesta nova configuração
partir de quais recursos estilísticos este componente
sônica que caracteriza o cinema contemporâneo.
da banda sonora é explorado na construção do universo diegético proposto? Na tentativa de responder
[...] com a edição de som digital a aventura inicia-
a este questionamento propomos uma investigação
da no fim da década de 1970 de se construir uma
da(s) estratégia(s) sonora(s) trabalhada(s) no dese-
trilha sonora composta por mais de uma centena
nho de som da sequência inicial do filme. O conjunto
de pistas de som, para que se chegue a massa
65
Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
sonora capaz de reproduzir com suposta fidelida-
seria uma consequência direta do aprimoramento
de ambientes complexos, como, por exemplo, uma
técnico dessa propriedade do som. Dentro dessa
guerra em uma floresta, tornou-se corriqueira. Ne-
perspectiva, potencializar a definição de um áudio
nhum outro elemento sonoro ganhou mais espaço
significa amplificar sua pureza e a sua exatidão na
com essa forma de construir o som de um filme
reprodução de detalhes, por meio da manipulação
que os ruídos. (COSTA, 2010, p.100)
de sua potência (volume), frequência (agudo-grave) e deslocamento espacial, o que nos oferece mais in-
Nesse contexto, se em um primeiro momento esses
formações sobre um som do que a escuta natural,
sons diegéticos foram trabalhados primordialmente
ou seja, o ruído hiper-realista, efeito direto dessa al-
num propósito de alcançar uma “suposta” fidelida-
ta-definição, ultrapassa os limites da mimese já que
de aos sons reais, logo passaram a ser explorados
é, “[...] mais fiel à realidade do que a própria realida-
de forma mais criativa, a qual buscava proporcionar
de” (CAPELLER, 2008, p. 66). É na fase de pós-produ-
ao espectador uma experiência mais sensorial do
ção, sobretudo, na mixagem, que tais propriedades
que mimética. Isto porque a noção de alta fidelida-
do som são modificadas. Assim, é nesse momento
de sonora é tecnicamente questionável, pois busca
que a potência sonora é intensificada, os agudos
forçosamente equiparar o som original à sua cópia
(frequências direcionais, sensação de proximidade)
gravada.
e graves (frequências omnidirecionais, sensação de distância) são enfatizados dependendo da proposta Aquele que ouve uma orquestra na sua aparelha-
da cena, e onde ocorre a distribuição espacial dos
gem não tem, por certo, a possibilidade de a com-
sons pelos canais de áudio a qual é responsável por
parar com a orquestra real que tocaria em frente
envolver o espectador no ambiente sônico diegético.
à sua porta! De facto, é preciso saber que a noção de alta-fidelidade é puramente comercial e não
Dentro dessa perspectiva, a relação de complemen-
corresponde a nada de exato nem de verificável
taridade entre o ruído hiper-realista e a imagem po-
(CHION, 1991, p.81).
tencializa a percepção da cena, proporcionando ao espectador uma experiência mais sinestésica do que
Chion (1991) trabalha a noção de alta-definição em
naturalista-realista. O que se busca não é a reprodu-
detrimento da de alta-fidelidade para problemati-
ção mimética do som, mas sim as sensações e im-
zar a dimensão hiper-realista que o ruído alcançou
pressões que ele é capaz de causar. “O hiper-realis-
a partir dos desenvolvimentos técnicos fonográficos
mo está em andamento sempre que o som faz mais
da era digital.
do que simplesmente corresponder ao que se vê na tela, causando ao invés disso uma impressão para o
No cinema, a definição é para o som uma questão
espectador de que há, como diz Capeller, uma “hi-
múltipla e um meio de expressão importante: Um
peramplificação perceptiva do objeto” (COSTA, 2010,
som mais definido, que contém mais informações,
p.101). No filme em questão, o ruído hiper-realista
é suscetível de comportar mais índices materiali-
é explorado de uma forma distinta do seu uso con-
zantes; Favorece uma audição mais viva, espasmó-
vencional, e massivo, no cinema hollywoodiano.
dica, rápida, alertada, nomeadamente pelo segui-
Enquanto que as produções de gênero norte-ame-
mento das frequências agudas e dos fenómenos
ricanas, ainda que de maneira criativa e impactan-
ágeis que se passam nessas regiões [...] (CHION,
te, trabalham este recurso em favor de um reforço
2011, p.81).
a um sentido imagético dominante, nesta obra, ele assume uma autonomia que o torna capaz de com-
Para o autor, o fenômeno do hiper-realismo sonoro
plementar expressivamente e até de redimensionar 66
Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
a significação visual influenciando assim ativamente
de outros sons) vindo em nossa direção, o qual vai
a percepção do espectador.
ficando cada vez mais intenso e grave como uma massa sonora que vai preenchendo nossa percep-
A análise
ção auditiva, é quando a imagem até então nebulosa se torna nítida e revela um grupo de cavaleiros do
O conceito de hiper-realismo sonoro é a base para
exército espanhol se aproximando em velocidade
esta reflexão analítica sobre as funções fílmicas do
(figura 2). O quadro posterior mostra um camponês
ruído. Na análise da obra O moinho e a cruz partimos
deitado na cama com os olhos abertos e com uma
da hipótese de que a representação hiper-realista
expressão de quem acabara de despertar, talvez de
deste elemento é responsável por construir signi-
um sonho ruim (figura 3). Enquanto sua mulher o
ficados estéticos e narrativos fundamentais para o
beija vemos por meio da janela do quarto um corvo
processo de fruição do filme. Trata-se de uma confi-
cruzar o local do seu futuro sacrifício e escutamos o
guração impressionista-sugestiva, em detrimento de
som sinistro do pássaro amplificado (figura 4), o que
uma construção lógica-previsível, a qual é alcançada
faz com que ele se destaque em meio às sonorida-
por meio de uma construção diegética ancorada em
des emitidas pelo casal (respiração, carícias, ranger
uma relação dialógica entre os sentidos imagéticos
da cama). Eles continuam a se acariciar até o fim do
e sonoros.
plano.
Na sequência inicial, nosso objeto de estudo, a banda acústica é composta unicamente por ruídos uma vez que não há diálogo nem música, o que reforça o papel de destaque deste elemento na análise em questão. Tal cena funciona como uma espécie de presságio da morte de um personagem, morte esta que se concretiza em um momento posterior do enredo. Eis a descrição: Dois homens caminham por uma
Figura 1
floresta onde vemos um revezamento de quadros que mostram os dois, isoladamente, observando e tocando algumas árvores aleatoriamente como se quisessem escolher alguma para derrubar. Quando um dos personagens encontra a planta ideal ele risca seu tronco com uma faca formando o desenho de uma cruz (figura 1), o som emanado por este movimento soa com uma potência muito forte (“volume alto”) se sobrepondo às outras camadas sônicas ali presentes (sons da floresta). Em seguida, o ambien-
Figura 2
te muda, a câmera assume uma posição estática e nos oferece a imagem de uma forte neblina de tal modo que nossa visibilidade fica limitada. Depois de alguns segundos, começamos a ouvir um ruído (trata-se de uma camada única, não há a presença 67
Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
para ser derrubada. O som muito grave e crescente do trote dos cavalos explora a natureza vibratória e omnidirecional desta frequência alcançando gradativamente o corpo do espectador, e assim como a imagem dos cavaleiros, também invade o quadro, potencializando o sentido de dominação pela violência que marca a vida dos habitantes de Flanders. Além do ruído amplificado e agudo emitido pelo corFigura 3
vo, animal associado à morte, que ao cruzar a janela da futura vítima e emitir esse som específico parece anunciar que o seu fim está próximo. Se sua sonoridade não fosse hiper-realista talvez nem percebêssemos a sua presença na tela (enfatizada pelo sentido direcional que emana da frequência aguda) o que deixaria o sentido da ação no mínimo incompleto. O conjunto audiovisual analisado, ao estabelecer uma relação não de dependência, mas sim de com-
Figura 4
plementaridade entre seus elementos, conferiu ao ruído um papel ativo na construção da diegese.
O efeito do ruído hiper-realista em conjunto com a
Narrativamente, esta cena antecipa uma ação futu-
potência imagética provoca uma intensificação per-
ra chave para o desenvolvimento do enredo. Este-
ceptiva e sensorial da cena descrita. Os sons em des-
ticamente, ela provoca a percepção do espectador
taque (faca, cavalos, corvo) são altamente definidos,
a se conectar com as sensações ali evocadas. Nes-
manipulados em suas frequências, intencionalmen-
se sentido, os trotes do cavalo e o “grito” do corvo,
te “altos”, reverberantes, e ao invadirem o corpo do
encarnam esses significados da sequência descrita
espectador são capazes de influenciar suas impres-
carregando assim a sensação da invasão e da mor-
sões e interpretações sobre a diegese representada.
te, respectivamente, para outros pontos do filme.
Nesse sentido, os planos analisados possuem uma
Na cena do assassinato do camponês esses ruídos
forte carga estética e narrativa ao anunciarem a
hiper-realistas da premonição de sua morte ressur-
morte do camponês que aparece no último quadro
gem e potencializam a dramaticidade da cena. Des-
da sequência.
sa maneira, esses sons não funcionam como meros estereótipos que servem aos propósitos miméticos
O ruído cortante da faca em conjunto com o sinal
da imagem, mas sim como elementos expressivos
da cruz simboliza a condenação do personagem, es-
capazes tanto de complementar o sentido da dimen-
colhido aleatoriamente para o sacrifício, da mesma
são visual quanto de produzir seus próprios signifi-
forma que a árvore foi marcada de maneira aleatória
cados diegéticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAPELLER, Ivan. Raios e trovões: hiper-realismo
Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Caixa Cultural, 2008. P.
e sound design no cinema contemporâneo. In:
65-70.
CATÁLOGO da mostra e curso O som no cinema. 68
Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz
CHION, Michel. A Audiovisão. Som e Imagem no
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Ciberlegenda – Revista do Programa de Pós-
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em: 15. Jul. 2015. OPOLSKI, Débora. Introdução ao desenho de som. ______. Pode o cinema contemporâneo representar
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o ambiente sonoro em que vivemos? Logos Comunicação e Audiovisual, Rio de Janeiro, v.17,
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema.
n.1, jan\jun. 2010. P. 94-106. Disponível em: <http://
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69
Entre atos: palcos, telas e escrituras Coord. Rodrigo Fontanari (Unicamp)
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo: Um olhar quantitativo-descritivo para o processo de transmidialidade Álvaro Dyogo Pereira (Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Artes, Cultura e Linguagens) alvarodyogo@gmail.com RESUMO: Através de uma metodologia desenvolvida para pesquisar o processo que Kattenbelt (2008) chama de transmidialidade, ocorrido na adaptação de um texto teatral para o cinema, com olhar sobre as rubricas teatrais e sua transposição à obra fílmica, apresentaremos os resultados da coleta de dados feita a partir de análise do filme Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963), realizando inferências de ordem quantitativo-descritivas. A primeira etapa do trabalho foi referenciar as rubricas. A segunda consistiu em uma análise do filme à luz da peça, classificando cada rubrica em relação à sua transposição ao filme. Na terceira etapa, cada rubrica foi atribuída aos tipos e categorias estabelecidos com base na análise da obra de Nelson Rodrigues (2012). Por fim, a quarta etapa foi coletar o que chamamos de alvo de cada rubrica. Relação intersemiótica
profundamente.
Kattenbelt (2008) diz que as diferentes modalidades
Ao tratar desse tema com foco no teatro, Kattenbelt
de artes são indissociáveis de seus processos de mi-
(2008) delimita, principalmente, três conceitos que
dialidade, logo, arte e mídia não são observadas pelo
podem ser utilizados. A multimidialidade acontece
autor distintamente, mas, ao contrário, as artes são
quando diversas mídias ocorrem em um mesmo ob-
vistas como tipos de mídia – concepção que também
jeto. A intermidialidade pressupõe que as mídias se
adotamos em nosso estudo. Moser (2006, p. 63), por
relacionem, com mútuas influências entre elas. Por
sua vez, considera que o dispositivo de relação entre
fim, a transmidialidade sugere mudança de mídia,
as artes permite conhecer a midialidade da arte, na
transferência de um meio a outro. Essas concep-
medida em que se duplica em um dispositivo inter-
ções operam em diversos níveis, que nem sempre
midial. Ao conectarmos a noção de arte aos proces-
podem ser distinguidos explicitamente um do outro.
sos criativos humanos, estabelecendo que, através
Também não se excluem, de modo que pode haver
dela, indivíduos se expressam em palavras, imagens
a ocorrência de mais de um tipo em uma mesma
e sons, de modo a compartilhar suas experiências
relação.
e percepções a um público, entenderemos teatro e cinema como manifestações artísticas e mídias que
O conceito de transmidialidade é aquele que melhor
apresentam diferenças estruturais e de linguagem,
se aplica à análise que faremos neste trabalho. É
mas, também, similaridades.
usado nas teorias de arte e comunicação, principalmente, para se referir à mudança (transposição, tra-
Essas características alteram o pensamento e o pró-
dução) de um meio a outro. Essa transferência pode
prio fazer artístico, que passa a incorporar novos
se dar com relação ao conteúdo (o que é representa-
métodos, possibilidades e interações semióticas en-
do, a história) ou com relação à forma (princípios de
tre as artes em seus processos criativos. Para Kat-
construção, procedimentos estilísticos, convenções
tenbelt (2008), no domínio do teatro, essa questão
estéticas).
é particularmente evidente, vez que ele proporciona um espaço no qual diferentes artes podem se afetar
No primeiro nível, o conceito de transmidialidade 71
Álvaro Dyogo Pereira
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo
se refere, em particular, àquelas características do
recebeu o convite para transformar a narrativa em
meio original que se perdem no processo de trans-
uma obra fílmica, que viria a estrear nos cinemas do
posição. Filmes baseados em espetáculos teatrais,
Brasil no ano de 1963, com Jece Valadão, produtor
por exemplo, são transposições de histórias, mas
do filme, interpretando o papel principal.
não levam em conta todas as características literárias específicas da narração original. Com relação
Processo metodológico
à forma, a transmidialidade retoma ou imita princípios de representação de outro meio.
O processo metodológico utilizado por nós foi realizado em quatro etapas:
O acesso ou imitação dos métodos de representação de um meio por outro também pode ter uma função
•
1 – Referenciação: a primeira etapa do trabalho
específica de intertextualidade – um meio se refere
metodológico utilizado será a referenciação das
a outro. Para Simanowski (2006, apud KATTENBELT,
rubricas.
2008), o conceito de transmidialidade enfatiza, em particular, o processo de transição da mídia fonte à
•
2 – Categorização e tipificação: atribuição de
mídia de destino, assim como destacaremos em nos-
cada rubrica a um ou mais dos nove tipos esta-
sas análises. Transmidialidade seria, então, “a mu-
belecidos por nós divididos em três categorias,
dança de um meio para outro meio como um evento
com base no texto de Rodrigues.
constituído e condicionado por um fenômeno estético híbrido”. (SIMANOWSKI, 2006 apud KATTENBELT,
•
3 – Classificação: consiste em uma análise do
2008, p. 24, tradução nossa). Veremos como se dá
filme em comparação com a peça, classificando
este processo na passagem da obra teatral Boca de
cada rubrica como “não transposta”, “parcial-
Ouro à obra fílmica homônima.
mente transposta” ou “transposta”.
O caso de Boca de Ouro
•
4 – Atribuição de alvos: coleta do que estamos chamando de alvo(s) de cada rubrica. Os alvos
Boca de Ouro conta a história de um bicheiro cario-
são, basicamente, a quem a rubrica diz respeito,
ca temido e respeitado em sua comunidade, que se
isto é, qual é a personagem diretamente relacio-
transforma em uma figura quase mitológica do su-
nada àquela rubrica – que agirá, reagirá ou será
búrbio. Seu apelido originou-se de sua decisão de
descrita por ela.
ter mandado arrancar todos os dentes de sua boca trocando-os por uma dentadura de ouro, que se
No caso da peça de Rodrigues (2012), há no texto
tornou sua marca registrada. Conquistador e peri-
875 rubricas distribuídas em três atos, sendo 291 no
goso, o personagem-título é assassinado e tem sua
primeiro ato, 320 no segundo ato e 264 no tercei-
trajetória narrada por uma de suas ex-amantes, D.
ro ato. Cada rubrica pode se converter em uma ou
Guigui que, ao ser procurada pela imprensa, dá três
mais unidades de análise. Quando, a uma mesma
versões diferentes dos mesmos fatos, à medida que
rubrica, forem ser atribuídos mais de uma categoria,
recebe novas informações dos jornalistas.
tipo ou alvo, esta rubrica será subdividida no ato da análise, sendo que cada categoria, tipo ou alvo serão
Essa história foi escrita por Nelson Rodrigues em
considerados uma unidade de análise.
1958, na forma de uma peça teatral que foi encenada, pela primeira vez, no ano de 1960. Dois anos
Com a investigação a ser realizada na etapa de ca-
mais tarde, o diretor Nelson Pereira dos Santos
tegorização e tipificação, pretendemos verificar em 72
Álvaro Dyogo Pereira
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo
que medida há diferença no tratamento das rubri-
sete casos em seus três tipos, o equivalente a 1% das
cas pelo filme com relação às suas categorias ou
unidades da peça. Esta categoria compreende:
mesmo a seus tipos. O Quadro 1 apresenta todas as categorias e tipos de rubricas encontrados em Boca
- tipo 4, Informação pessoal / cênica (3 uni-
de Ouro.
dades); - tipo 5, Descrição física (3 unidades);
Quadro 1
- tipo 6, Descrição psicológica (1 unidade).
Categorias
1
2
3
Direção de atores
Descrição de personagens
Indicações técnicas
Tipos 1
Estado físico
Por dizerem respeito a característica fixas das per-
2
Estado emocional
sonagens, que não precisam ser repetidas a cada
3
Direcionamento da fala
nova aparição, essas rubricas não costumam apare-
4
Informação pessoal / cênica
cer com muita frequência, sendo mais comumente
5
Descrição física
empregadas na apresentação de uma personagem.
6
Descrição psicológica
7
Indicação de cenário / objeto cênico
Por fim, a categoria 3, Indicações técnicas, engloba
8
Indicação de figurino / caracterização
129 unidades de análise, correspondentes a 11%
9
Indicação de iluminação
dos casos da peça de Rodrigues (2012). Esta catego-
Categorias e tipos de rubricas Fonte: Elaboração do autor
ria se divide da seguinte forma:
A primeira categoria de rubricas, Direção de atores,
- tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico
reúne 1.024 unidades de análise, 88% dos casos
(105 unidades – 9%);
da peça de Rodrigues (2012), divididas da seguinte
- tipo 8, Indicação de figurino / caracteriza-
forma:
ção (12 unidades – 1%); - tipo 9, Indicação de iluminação (12 unida- tipo 1, Estado físico (373 unidades – 32%);
des – 1%).
- tipo 2, Estado emocional (547 unidades – 47%);
Nessa categoria, os tipos especificam características
- tipo 3, Direcionamento da fala (104 unida-
importantes a serem observadas no que se refere a
des – 9%).
cenografia, adereços cênicos, indumentária, cabelo e maquiagem, luz e sombra etc. Ao especificar essas
Nessa categoria, aparecem os tipos de rubricas em
características, o autor do texto sugere signos tea-
que o autor indica, de alguma maneira, sugestões
trais que auxiliarão a compor a estética das cenas
para que o encenador dirija os atores, no que diz
conforme sua visão.
respeito a movimentação ou pausa cênica, intenção e interação entre personagens, ritmo ou qualidade
Para classificar as rubricas, dois caminhos se mos-
da fala, reação etc.
tram possíveis: a classificação específica e a classificação geral. Vejamos, no Quadro 2, uma compara-
A segunda categoria de rubricas, Descrição de perso-
ção entre eles com base na rubrica nº 195 do texto
nagens, soma, no texto de Rodrigues (2012), apenas
de Rodrigues (2012).
73
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo
Álvaro Dyogo Pereira
Quadro 2 R
- Demais tipos (juntos) - 3%. Exemplo
Classificação específica
9
“Trevas e luz sobre nova cena”
Não transporta
7
“casa do ‘Boca de Ouro’”
Transporta
Tipo
195
Classificação geral
Parcialmente transposta
Classificação específica e geral de rubrica Fonte: Elaboração do autor
Para cada categoria e tipo, também foi possível verificarmos a medida de transposição, através da classificação das rubricas. No Gráfico 1, é possível observar o comportamento de transposição das rubricas da categoria 1, Direção de atores, e de todos os seus tipos.
Nossas análises necessitam da possibilidade de fil-
80%
66%
70% 60%
8%
4%
Categoria 1 Direção de atores
Análises quantitativo-descritivas
1%
Tipo 1 Estado físico
1%
Tipo 2 - Estado emocional
Transposta
0%
Parcialmente transposta
10%
Não transposta
situações com alvo indeterminados.
20%
Transposta
Rodrigues, a presença de 16 alvos. Existiram, ainda,
33%
30%
Parcialmente transposta
foi levada para o filme. Foi identificada, no texto de
53%
45% 46%
Não transposta
de suas rubricas e em que medida essa construção
47%
40%
Parcialmente transposta
cada personagem foi construída pelo autor através
52%
45%
Não transposta
A atribuição de alvos poderá diagnosticar como
50%
Transposta
(classificação específica).
90%
Parcialmente transposta
adotaremos a segunda possibilidade apresentada
100%
Não transposta
mações de ordem mais qualitativa. Por este motivo,
Gráfico 1
Transposta
tragem por tipo ou categoria para fornecerem infor-
Tipo 3 Direcionamento da fala
Rubricas da Categoria 1 e seus Tipos por classificação Fonte: Elaboração do autor
Realizaremos, neste subcapítulo, a etapa de análise quantitativo-descritiva dos dados coletados. Do to-
Analisando o Gráfico 1, observamos que, ao englo-
tal de 1.160 unidades de análise dentro das rubricas,
barmos a categoria 1, Direção de atores, como um
verificamos que 625 (54%) delas foram transpostas
todo, temos, em 52% dos casos, a transposição das
ao filme; 496 (43%) não foram transpostas e outras
rubricas, em 45%, a não transposição, e, em 4% das
39 (3%) foram parcialmente transpostas.
ocasiões, a transposição parcial. O mesmo comportamento se verifica nos tipos 2, Estado emocional, e
Ao apresentarmos as três categorias de rubricas que
3, Direcionamento da fala. Contudo, ao analisarmos
consideramos em nossa metodologia, expusemos o
o tipo 1, Estado físico, em separado, observamos
quantitativo de casos de cada uma delas no texto de
que as não transposições (47%) superam as trans-
Rodrigues. A mesma observação foi realizada quan-
posições (45%).
do fizemos a apresentação dos tipos das rubricas. Com relação aos tipos, encontramos os seguintes
Chama a atenção, ainda, no Gráfico 1, o fato de que
percentuais:
o tipo 1, Estado físico, apresenta um número de rubricas parcialmente transpostas (8%) consideravel-
- tipo 2, Estado emocional - 47%;
mente aos demais tipos e à sua própria categoria. É
- tipo 1, Estado físico - 32%;
possível notar, também, que o tipo 3, Direcionamen-
- tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico
to da fala, apresenta uma discrepância de classifica-
- 9%;
ção maior do que os demais tipos, com o maior per-
- tipo 3, Direcionamento da fala - 9%;
centual de rubricas transpostas (66%) entre todos os 74
Álvaro Dyogo Pereira
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo
tipos de sua categoria.
o tipo 9, Indicação de iluminação, verificamos que a totalidade das rubricas presentes no texto não foi
Em razão de haver apenas sete casos de rubricas
transposta à obra cinematográfica. Chama atenção,
alocadas na categoria 2, Descrição de personagens,
ainda, o fato de que há, no tipo 8, Indicação de fi-
não faria sentido realizarmos uma inferência como
gurino / caracterização, um percentual consideravel-
esta, visto que o quantitativo tão reduzido, além de
mente maior de rubricas parcialmente transpostas
limitar fortemente qualquer análise comparativa,
em relação aos outros tipos de sua categoria.
poderia servir, no máximo, como exemplo, mas não indicando um padrão de comportamento da trans-
Seria possível observar, ainda, qual teria sido o com-
posição das rubricas.
portamento das rubricas da categoria “Descrição de Personagens” quanto a sua transposição. Os perso-
A seguir, apresentaremos, no Gráfico 2, as rubricas
nagens Boca de Ouro (3 casos) e D. Guigui (1 caso)
da categoria 3, Indicações técnicas, e seus tipos por
foram os únicos alvos aos quais foram atribuídas ru-
classificação em razão de seu comportamento na
bricas dessa categoria, todas elas transpostas à obra
obra fílmica de Nelson Pereira dos Santos.
fílmica. Contudo, o baixo quantitativo dificulta uma atribuição de comportamento às rubricas de Descri-
Gráfico 2
ção de Personagens em Boca de Ouro. 100%
100%
Como explicitado anteriormente, identificamos, du-
90%
79%
80%
71%
70%
rante nossa coleta de dados, as 16 personagens que
67%
são alvos de rubricas da peça de Rodrigues. Os alvos
60% 50%
Boca de Ouro, 10 Leleco e 11 (Celeste), concentram,
40%
27%
Categoria 3 Indicações técnicas
drigues. Os demais alvos representam 28% dos ca-
Tipo 8 - Indicação de figurino/ caracterização
0%
0%
Parcialmente transposta
Transposta
Não transposta
Transposta
Não transposta
Transposta
Tipo 7 - Indicação de cenário/objeto cênico
Parcialmente transposta
8%
2% Transposta
Parcialmente transposta
2% Não transposta
0%
Parcialmente transposta
10%
sozinhos, 70% dos casos de rubricas da peça de Ro-
25%
19%
20%
Não transposta
30%
Tipo 9 - Indicação de iluminação
Rubricas da Categoria 3 e seus Tipos por classificação Fonte: Elaboração do autor
sos de rubricas, enquanto, em 2% das ocasiões, o alvo é indefinido. A indefinição de alvo foi verificada somente em rubricas do tipo 9, Indicação de iluminação (em todos os casos), tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico, e tipo 1, Estado físico. O que observamos foi que o comportamento de
No Gráfico 2, observamos que, no que se refere
cada um desses alvos, em particular, não se difere
à categoria 3, Indicações técnicas, 71% dos casos
do comportamento de transposição das rubricas da
das rubricas são transpostos ao filme, 27% não são
peça no geral. Esta análise indica que, aparentemen-
transpostos e 2% são transpostos parcialmente. Este
te, os alvos não têm impacto no comportamento
comportamento se verifica, também, nos tipos 7, In-
das rubricas no caso do filme de Nelson Pereira dos
dicação de cenário / objeto cênico, e 8, Indicação de
Santos.
figurino / caracterização. Contudo, ao observarmos
75
Álvaro Dyogo Pereira
A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo
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103 min., 35mm. P&B).
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KATTENBELT, Chiel. Intermediality in Theatre and Performance: Definitions, Perceptions and Media
RODRIGUES, Nelson. Boca de Ouro: tragédia carioca
Relationships. Cultura, Lenguaje y Representación
em três atos, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
/ Culture, Language and Representation, v. 11,
2012.
2008, p. 19-29. ISSN 1697-7750.
76
O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes Rodrigo Fontanari ( Universidade Estadual de Campinas, pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Multimeios / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutor em Comunicação e Semiótica) rodrigo-fontanari@hotmail.com RESUMO: Esta comunicação busca estabelecer possíveis nexos entre a obra cinematográfica e a literária de Alain Robbe-Grillet a partir da noção de “literatura literal” ou “literatura objetiva”, que Roland Barthes cunhou para as primeiras obras romanescas desse romancista transformado em cineasta. Objetivamos concomitantemente uma pesquisa em torno dos glissements do próprio estilo grilletiano, que já podem ser percebidos em Marienbad, onde há um eterno deslizamento dos tempos e espaços; tal busca aproveitará os termos de Robbe-Grillet em Por que amo Barthes, quando se refere ao problema; trata-se de uma busca inseparável daquela a ser realizada em torno do Neutro porque o discurso que desliza não fixa o sentido. PALAVRAS-CHAVE: Nouveau cinéma, Alain Robbe-Grillet, Roland Barthes. Do nouveau romana ao nouveau cinéma
é lançada por Jean-Paul Sartre, em 1947, e configura-se no prefácio escrito para o romance Portrait d’un
Uma apresentação de Alain Robbe-Grillet cineasta
inconnu, de Nathalie Sarraute, em que o filósofo,
requer que se comece por apresentar o importan-
referindo-se a esses romances como “obras estra-
te movimento literário denominado nouveau roman,
nhas” e “dificilmente classificáveis”, arremata essa
vanguarda tardia do romance que irrompe em mea-
nova realidade do romance francês com as seguin-
dos do século XX, na França. Por seu turno, tal apre-
tes palavras: “elas [essas obras] marcam somente
sentação pede uma explicitação terminológica.
que nós vivemos em uma época de reflexão e que o romance está refletindo sobre ele mesmo” (SARRAU-
O termo nouveau roman, na verdade, como nota
TE,1996, p.8).
Pierre Lepape, surge “no final dos anos 1950, de uma falta de etiqueta mais do que a criação de uma
O que caracteriza, afinal, esse último movimento
verdadeira escola literária.” (Lepape 1994, p. 01), isto
coeso de vanguarda do romance francês, o nouveau
é, uma espécie de rotulação que a crítica cunhou
roman? O que caracteriza essencialmente o nouveau
para agrupar esse escritores que despontavam no
roman, seguindo as proposições de Gerard Prince
cenário literário francês da época, e não uma deno-
(1993, p. 929-934) em De la littérature français, é a
minação que partiu dos envolvidos. Para René Al-
que a história e os personagens estão sempre na
bérèsv(1962, p. 407) em Histoire du roman moderne,
eminência de se realizar, pois o nouveau roman não
trata-se de uma rotulação da imprensa, a maneira
conta mais uma história à qual o leitor se enreda. Ao
“como o denominam os jornalistas”.
contrário, por se revelar, antes de tudo, como um processo de escritura, o nouveau roman, faz o leitor
Pois, em curso desde 1957,é atribuída por Émile
participar ativamente da construção a narrativa. E
Henriot, num artigo para o jornal Le Monde. Outro
então, toda a carga dramática da narrativa tradicio-
apelativo é “escola do olhar”, alusivo ao descritivismo
nal que conduz progressivamente ao ápice da reve-
extremo das páginas desses romances. Outro é “an-
lação dá lugar a um tempo morto, branco, circular e
tirromance”. Sabe-se que esta última denominação
marcado, notadamente, pelas abruptas repetições, 77
Rodrigo Fontanari
O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes
antecipações, similitudes, variações, enfim, movi-
– há mesmo quem pense –reflete-se na própria es-
mentos que desconcertam o leitor desacostumado
critura. É o caso de Claire Clouzet (1973, p. 50), em Le
com esse regime lacunar de narração.
cinéma français depuis la nouvelle vague, que observa: “Desde seu primeiro romance, Alain Robbe-Grillet
Há uma aderem dos nouveaux romanciers às ima-
escreve cinematograficamente. Sua técnica descriti-
gens técnicas. Eles levam para o campo do cinema-
va criou uma equivalência escrita da linguagem fílmi-
tográfico muitas das características estéticas de seus
ca”, escreve a autora.
romances modernos. Esse entrecruzamento estético se deu, notadamente, porque dois dos maiores
Como se sabe, o cinema quanto a literatura de re-
representantes do nouveau roman francês, Magueri-
presentação clássica se mantiveram, por muito tem-
te Duras e Alain Robbe-Grillet, ligaram-se ao cineas-
po, dentro daquele modelo retórico do século XIX. E
ta Alain Renais, que roteirizou, em 1960, Hiroshima
foi a literatura primeiro que rompeu com essa dis-
meu amor, de Duras e, um ano depois, em 1961, de
cursividade, notadamente, o nouveaux romanciers
Robbe-Grillet, O ano passado em Marienbad. Sabe-se
francês, despertando o cinema para o fato de que
que em consequência dessa primeira experiência,
ele tinha nascido não para contar, mas para mostrar,
eles passaram a atuar no cinema, em uma dupla
o que o liberou da armadilha de representação que
frente, a da roteirização e a da direção.
faz da imagem cinematográfica um signo.
Os nouveau romanciers como também os nouveaux
O cinematográfico, partir daí, afasta-se do modelo
cinéastes propunham desconstruir a realidade ou
de narrativa romanesca clássica do século XIX, cujo
para usar a mesma expressão de Claude Murcia
fundamento era a linearidade e a representação mi-
(1998, p. 43), “desconcertar as convenções do real”,
mética suscitada pelo desejo de verdade e “rasga”
no entanto, esses últimos enfrentavam a irredutibi-
a conformidade para aceder às experimentações
lidade do real próprio da imagem cinematográfica.
visuais.
Pretende-se apontar certas “aproximações escriturais” entre a obra romanesca e cinematográfica que
Não existe mais espaços inteiros tanto no signo ver-
não se estabelecem por uma ordem de subordina-
bal quanto no visual, tudo é fragmentação. A narra-
ção, mas, por uma relação transversal, que as con-
tiva se estilhaça em pedaço, cuja colagem é, comple-
duz a reagir entre si. Essas artes contaminam-se sem
tamente estabelecida não pelo autor-diretor, mas, o
entretanto se confundirem. Aliás, o fato é de alguma
expectador-leitor perplexo que aí intervém. É o que
maneira contemplado por Alain Robbe-Grillet em
nota Claire Clouzot, ao escreve que um filme de Ro-
Pour un nouveau roman, mais especificamente, em
bbe-Grillet (1973, p. 69) é “um objeto existente in-
seu ensaio intitulado “Tempo e descrição no roman-
dependentemente do seu autor e cujo espectador,
ce atual”, em que assume que certas preocupações
apossando-se dele, torna-se um dos criadores”.
dos nouveaux romanciers podem ser reencontradas no cinema se pensarmos a imagem cinematográfica
Ora, se aceitarmos a leitura proposta por Roland Bar-
não do ângulo da sua objetividade mas de sua com-
thes para os primeiros romances de Robbe-Grillet
posição. Escreve ele: “é apenas aí que o romancista
no sentido de que eles são “objetivos”, “coisistas” e,
pode encontrar, ainda que modificadas, alguns de
portanto, neutro. “Toda sua arte consiste justamen-
suas preocupações como o estilo” (ROBBE-GRILLET,
te em decepcionar o sentido ao mesmo tempo que
1969, p.100).
ao abre.” (2007, p. 104), confessa Barthes em seu ensaio “Uma conclusão sobre Robbe-Grillet”. Não dei-
A transversalidade da obra de Alain Robbe-Grillet
xa ainda de concluir Barthes, os objetos na obra de 78
Rodrigo Fontanari
O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes
Alain Robbe-Grillet não possui “qualquer valor an-
palavras de Alain Robbe-Grillet ( 1969, p. 104), as ar-
tológico” (2007, p. 104), isto é, não tem função nem
tes modernas “nos deixam vazios, desconcertados”,
mesmo substância, eles são puros espetáculos; de
pois “não aspiram a nenhuma outra realidade além
um esvaziamento propriamente da intriga. E quem
daquela da leitura, ou do espetáculo, como ainda
já viu algum filme de Robbe-Grillet sabe também
parecem estar sempre se contestando, pondo-se em
que os seus personagens despossuídos de qualquer
dúvida a si mesma à medida em que se constroem”.
espessura psicológica, ausentados, muitas vezes, de qualquer nome que possam caracterizá-los, são aí
L’Année Passée à Marienbad
também transformados em objetos. Em 1961, a França recepcionava O Ano passado em É tempo de examinar mais de perto as próprias
Marienbad cujo título original é L’Année dernière à
“composições de imagens”, que nos propõe Alain
Marienbad. Tendo surgido de uma colaboração bas-
Robbe-Grillet. Mas antes de avançarmos nessa aná-
tante inusitada entre Alain Resnais que assina como
lise, é necessário advertir o leitor para algumas es-
diretor e Alain Robbe-Grillet, que produz o roteiro do
pecificações do cinema robbe-grilletiano. Mesmo
filme e, logo após, publica-o em formato cine-roman.
que Robbe-Grillet assuma em Por que amo Roland Barthes, “é necessário se contradizer caso contrário
Nessa trama cinematográfica de personagens anô-
não se pode deslizar” (1995, p. 56), essa contradição
nimos, não se sabe nada deles. Dentre eles, três
aparente de que fala Robbe-Grillet, pode ser vista
destacam-se. Embora nenhuma delas tenha sido
como um traço da arte moderna, como escreve Gil-
nomeadas no filme, no roteiro publicado posterior-
les Deleuze (2006, p. 403) em Diferença e Repetição.
mente, elas são identificados apenas por letras.
Pois, para o filósofo francês, “A arte não imita, mas isso acontece, antes de tudo, porque ela repete, e
A bela mulher “A” e vivida pela atriz Delphine Seyrig.
repete todas as repetições, a partir de uma potência
Quem da vida ao narrador-personagem “X” é pelo
interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é simula-
ator Giorgio Albertazzi, cuja missão é perseguir “A” e
cro, ela subverte as cópias em simulacros)”.
insistir que eles se encontraram no ano anterior. E o autor Sacha Pitoëf, interpreta a personagem “M”, o
Dessa perspectiva deleuziana da repetição, não se
suposto marido/amante de “A”, um jogador.
deve, de nem um modo, encará-la como uma simples contradição, embaralhamento, mas uma espé-
Em síntese, uma parcela considerável dos 86 minu-
cie de ilisibilidade legível, uma vez que “todas estas
tos de projeção do filme fixa-se em torno de um dra-
repetições coexistem e, todavia, estão deslocadas
ma romanesco até certo ponto bastante banal. Den-
umas em relação às outras” (2006, p. 404).
tre a clientela desconhecida que circula no hotel, um deles, o personagem-narrador, X, vagueia ao longo
Nessa constante permanência da dúvida, que, ao
dos corredores intermináveis, de sala em sala às ve-
mesmo tempo, acaba por suspender qualquer pos-
zes cheia e outras tantas, totalmente deserta, atra-
sibilidade última de significação, é a diferença, que
vessa portas e portas, entrechocando-se com suas
irrompe nessa repetição vertiginosa e nesse puzzle
próprias imagens refletidas nos inúmeros espelhos
que se torna a obra cinematográfica de Alain Rob-
encrustados nas paredes desse imóvel, seus olhos
be-Grillet. Cabe ao espectador intrigado e bastante
se movem de um rosto a outro de tantos outros des-
desestabilizado tentar de algum modo “reconstituir”
conhecidos que habitam o falanstério. Ele vai como
a narratividade; ato heroico que, logo nas primeiras
que recolhendo sons, ruídos, fragmentos de frases,
tentativas, revela-se impossível de ser concluído. Nas
que seu ouvido registra aleatoriamente enquanto, 79
Rodrigo Fontanari
O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes
aparentemente desbusolado, anda pelos cômodos
Ver e rever Marienbad é entrar no labirinto. Se por
do hotel.
um lado essa evocação à forma labiríntica é cara à estética de Alain Robbe-Grillet; por outra, nesse
Seus olhos voltam-se insistentemente à uma jovem
primeiro filme assinado a quatro mãos, o mosai-
mulher bela, à quem ele tenta, incansavelmente,
co que evoca o labirinto advém menos da mudan-
convencer de que eles já haviam se encontrado, há
ça abrupta da cenografia, mas, sobretudo de uma
um ano, e que eles se apaixonaram. E ele voltou
espécie de labirinto mental. Ter ali estado ou não,
àquele encontro marcado por eles mesmos,e que,
encontrado ou não o “X” no ano passado e como
dessa vez, ele a levará com ele.
ele marcado de se rever, já produz na mente do espectador a vertigem de não poder agarrar-se à es-
Dentre as personagens “X” e “A”, “X” faz um imenso
tabilidade da certeza de que de fato algo se passou
esforço em convencer “A” de que ela havia lhe pedi-
em Marienbad.
do um ano para poderem fugir juntos. No entanto, a moça parece não se lembrar de que nem de “X” nem
E é nessa forma labiríntica a forma é acêntrica, isto
da promessa feita. Marienbad é feito para decepcio-
é, não nem há um centro para o qual tudo se con-
nar no tempo. À que ano, à que passado referem-se
verge, a narrativa se constrói diante do espectador
essas imagens projetadas na tela? Pergunta que per-
a partir de uma emaranhado de fios difusos; nem
manece em aberto.
muito menos uma verdade ou um significado último a ser descoberto. E aí o sentido torna-se decep-
A ilusão que coloca em cena o cinema de Alain Ro-
cionante, na medida em que ocorre a suspensão do
bbe-Grillet e Alain Resnais, que pode ser talvez en-
sentido. Ao olho semiótico vê-se aí cintilar portanto
tendido como um procedimento da literatura do
a concepção barthesiana de neutro, uma vez que
nouveau roman, e que vivem os heróis (e talvez os
ele consiste numa forma da linguagem burlar o pa-
espectadores) desse filme, é essencialmente aquele
radigma (desfazê-lo), em que a obrigação da língua
do movimento, mas do movimento em falso, decor-
é suspensa, adiada, burlada. Trata-se aí, mais espe-
rente notadamente de sua fixação, de sua repetição
cificamente, é um terceiro termo que impossibilita,
e de sua desbobinagem, do que da progressão.
suspende o paradigma necessário para constituir sentido, lembra-nos Barthes em Neutro (2005, p.
Diante desses aspectos ou características da ima-
34). Esses conceitos aludem a um dizer que pode ser
gem que reformulam a experiência cinematográfica,
incisivo e colocar em colapso a máquina semiótica,
é quase inevitável deixar de entrever aí uma estética
esquivando-se da lei dos signos e das contrições da
do vazio, na medida em que o cinema de Resnais e
língua, sem, entretanto, enveredar-se pelo patético,
Robbe-Grillet procura tornar sensível pelos seus pró-
pelo melodrama.
prios meios uma existência que não pode se caracterizar sob a forma realista: o inesperável e o inexpli-
O espectador mante-se à distância, na superfície rasa
cável. Em Marienbad, depara-se com uma estranha
da tela, pois, o filme faz na tela enquanto se projeta.
categoria de imagem que já não é nem imagem mo-
Como nota René Pédral no prefácio de Robbe-Grillet
vimento nem imagem-tempo, mas sua petrificação:
cinéaste, tudo acontece a partir de “uma sequência
um instante de congelamento no fluxo dinâmico das
elegante de imagens mentais entre as quais cada
imagens em movimento. Em outros momentos, evi-
espectador é convidado a encontrar pessoalmente
dencia-se a transformação desses personagens em
a razão dos encadeamentos” (2005, p. 7-8). Assim,
verdadeiros autômatos, cuja presença assemelha-se
no nouveau cinéma robbe-grilletiano, as imagens
àquelas de uma peça de jogo de xadrez.
assumem posição na montagem sem, no entanto, 80
Rodrigo Fontanari
O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes
conceder um sentido último na lógica da narrativa.
se realiza-se diante dos olhos do espectador. E en-
A narrativa moderna ou a disnarrativa reivindicada
tão, o enunciado não se fecha, permanecendo em
por Robbe-Grillet para sua obra cinematográfica
estado de suspensão e seu significado, por sua vez,
torna-se estilhaços, como se de fragmentos vindos
escapa tanto ao espectador-leitor quanto ao próprio
de alhures e desconexos a enunciação da história
narrador.
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Graal, 2006.
81
Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia Juily Manghirmalani (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestranda) juilymalani@gmail.com RESUMO: Este artigo busca detectar características híbridas de diferentes artes que compõem as narrativa e estéticas de filmes indianos populares e da diáspora, através de análises de sequências dos filmes Fogo e desejo (Deepa Mehta, 1996) e Lajja (Rajkumar Santoshi, 2001). Ambas as obras apresentam discursos críticos sobre o hinduísmo, cultura e gênero feminino na Índia. Este artigo apresenta quais as influências de diferentes artes que contribuíram para a formação do cinema popular, em específico as influências dos contos mitológicos indianos. PALAVRAS-CHAVE: hibridismo, cinema indiano, diáspora. O cinema indiano trabalha com estruturas narrati-
objetivos de vida, que são: dharma (ação correta), ar-
vas e estilísticas próprias desde o seu nascimento,
tha (propósito), kama (prazer) e moksha (libertação).
na ainda Índia colonial. Sua profunda “indianização” ocorreu como uma estratégia política nacionalista,
Já o Ramayana (Viagem de Rama) celebra a vida e
apesar de também obter influências externas com
proeza do Príncipe Rama, que é exilado por seu pai
as mudanças advindas da globalização.
sob o comando de sua madrasta Kaikeji. Rama parte para a floresta com sua esposa Sita e seu irmão
Para entender como o cinema híndi (ou cinema po-
Lakshman. Ao sair para caçar, deixa Sita sozinha e
pular) tomou forma e distinção, K. Moti Gokulsing e
ela é raptada pelo rei-demônio Ravana. Rama, com
Wimal Dissanayake (1998, pg.17) afirmam que é pre-
ajuda do exército de macacos liderados por Hanu-
ciso analisar forças que exerceram profundo impac-
man, recupera Sita. Com dúvidas sobre a lealdade e
to no crescimento do cinema nacional.
pureza de sua esposa, Rama pede-lhe que faça o teste de fogo, pois comprovaria sua castidade caso ela
A primeira força é a constituída pelos épicos Rama-
saísse viva e intacta. Sita sobrevive ao teste e, mes-
yana e Mahabharata. Esses dois contos têm influen-
mo sabendo que ela manteve-se intocada durante o
ciado, há muitos séculos, a vasta massa populacional
cativeiro, Rama se sente obrigado a afastar-se. Leal
indiana, sendo encontrados em diversas formas de
ao marido, Sita aceita a sua condição, mas abre uma
arte como poesia, drama, arte e escultura, alimen-
fenda no chão e é tragada pela terra. Triste com a
tando a imaginação de vários tipos de artistas e edu-
perda da esposa, Rama se oferece ao deus da morte.
cando a consciência da nação. A influência deles no
Esse épico transmite os valores que regem o relacio-
cinema pode ser analisada em quatro níveis: temas,
namento entre humanos pelo hinduísmo: o caráter
narrativa, ideologia e comunicação.
de pai, filho, irmão, esposa, monarca e servos ideais.
O Mahabharata (A Grande Índia) gira em torno das
Os teatros sânscrito, folclórico e parsi (do século XIX)
lutas entre duas famílias principescas, os Pândavas
foram outras grandes influências do cinema india-
e seus primos, os Kauravas, para possuir um reino
no. Por muitos anos, a cultura e histórias indianas
localizado perto da atual cidade de Déli. Além da
eram passadas oralmente e através de encenações,
narrativa épica, o Mahabharata desenvolve ideologi-
cada um desses teatros contribuiu de forma distin-
camente conceitos básicos do hinduísmo, os quatro
ta. O teatro sânscrito eram constituídos por grandes 82
Juily Manghirmalani
Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia
espetáculos de “dança-drama”; o teatro folclórico
A seguir, faremos análise de sequências de dois fil-
tinha características mais populares e atraiam as
mes, um do cinema popular indiano e outro de sua
massas; enquanto o teatro parsi destacava-se pelos
diáspora.
dramas sociais e históricos. Esteticamente, as peças possuíam misturas de realismo e fantasia, música e
Apesar do filme se passar inteiramente na Índia,
diálogo, narrativa e espetáculo, todos combinados
Fogo e desejo (Deepa Mehta, 1996) é parte do cinema
no quadro do melodrama.
de diáspora por ser financiado em uma coprodução com o Canadá e possui uma parte da equipe estran-
Com isso chegamos às influencias estilísticas moder-
geira. A diretora Deepa Mehta é, inclusive, uma das
nas que gradativamente alteraram a estética dos fil-
realizadoras referenciadas por pertencer à este seg-
mes do cinema indiano. Os musicais hollywoodianos
mento do cinema indiano.
fascinaram os cineastas indianos, que relacionavam de forma única os traços do cinema clássico ameri-
Fogo e desejo começa com a chegada da mais nova
cano e das performances indianas: o enredo não era
integrante da família, Sita. Porém a personagem vive
usado para ligar a narrativa ao espetáculo. Pelo con-
frustrações em seu casamento desde o seu início
trário, músicas e danças eram – e ainda são – usadas
por seu marido, Jatin, possuir uma amante, a chi-
como expressões naturais de emoções e situações
nesa Julie. O irmão mais velho Ashok, é casado com
emergentes no dia a dia, intensificando o elemento
Radha. Na casa vivem também Mundu, serviçal da
fantasia através do espetáculo, criando a impressão
família, e Biji, a mãe viúva dos dois irmãos que após
de que eram naturais e lógicas. A música se consti-
um derrame ficou muda e paraplégica.
tuiu como componente essencial na construção das emoções culturais indianas.
Ashok começa a seguir os ensinamentos de celibato de Gandhi após descobrir que ele e Radha não
A última força de que os autores se recorreram foi o
podem procriar e se abstém de atividades sexuais.
impacto da Music Television. O ritmo dos videoclipes,
Por causa dessa escolha de Ashok, Radha sente-se
com cortes rápidos, sequências de dança e ângulos
obrigada a também abdicar de seus desejos e neces-
de câmera ficaram associados ao canal musical de
sidades sexuais, até a chegada de Sita.
televisão. Após a década de 1980, os clipes musicais nos filmes ganharam força e se tornaram um
Apesar dos nomes das protagonistas serem nomes
dos materiais mais rentáveis vinculados às obras
comuns na Índia, no filme eles fazem menção à duas
cinematográficas.
grandes deusas do Hinduísmo: Radha e Sita. Na mitologia, Sita é a mulher de Rama, conhecida, princi-
Estas grandes potências foram levantadas pelos au-
palmente, pelo grande conto Ramayana, que, como
tores no final dos anos 1990. Atualmente, podemos
falado anteriormente, é excessivamente repetido e
pensar que a internet também é uma das grandes
referido dentro da cultura indiana.
influências desse cinema popular. Sendo uma das formas pela qual indianos, viventes na Índia ou no
No próprio filme, há, pelo menos, três passagens
exterior, têm acesso a filmes de forma globalizada e
que fazem menção ao conto e, todas as vezes, se
os consomem de forma ágil. Além de alterar a dinâmica de recepção, a internet também presta assistência ao soft power deste cinema nacional1. 1 - Soft power é um conceito desenvolvido por Joseph Nye para descrever a capacidade de atrair e cooptar em vez de
coagir, usar a força ou dar dinheiro como meio de persuasão. O poder brando é a capacidade de moldar as preferências dos outros, através de recurso e atração. Uma característica definidora de poder suave é que ele é não coercitivo. A moeda do soft power é a cultura, os valores políticos e as políticas externas.
83
Juily Manghirmalani
referem ao momento em que Sita, após ser seques-
Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia
metalinguístico com o próprio teatro, ao filmá-lo.
trada pelo deus-demônio Ravana e salva por Rama, deve provar sua “pureza e lealdade” ao marido atra-
De volta à mitologia, Radha é amante de Krishna, um
vés de um teste de sobrevivência ao fogo. Ilustrado
dos deuses mais importantes do hinduísmo, apre-
nas imagens retiradas do filme, que vemos abaixo:
sentado em outro conto fundador do comportamento e das crenças hindus, o Mahabharata. Radha representa a beleza e o amor relacionados ao desejo e à paixão. Dentro do filme é possível enxergar os conflitos vividos pelas personagens de nomes homônimos em relação com as deusas. Por anos reprimida, Radha confessa a Ashok, ao final do filme, seu desejo por Sita2, com a representação do que a deusa com o
Biji ao assistir o ritual de fogo na TV (Quadro 1), em Fogo e Desejo, 1996.
mesmo nome proclama – a paixão. E a de Sita, ao renegar toda a tradição imposta a ela por ser mulher indiana, e também, por possuir esse nome (da deusa que representa pureza, dedicação e serventia ao marido), como uma forma de se rebelar de tudo que sempre lhe foi imposto. Entretanto, é Radha quem passa pelo ritual de fogo nos minutos finais do filme. Após Mundu denunciar o relacionamento homossexual entre as duas personagens a Ashok, Sita convence Radha a fugir da
Pôster da série de filmes sobre o Ramayana na loja de filmes de Jatin. (Quadro 2), em Fogo e Desejo, 1996.
casa para iniciarem uma vida em conjunto. Porém, a personagem decide esperar Ashok para uma última conversa. Durante a discussão, Ashok a beija à força e por desespero, pede que ela não fuja e busque a religião como ele fez. A mentalidade patriarcal indiana o impede de compreender o desejo feminino e a subversão da política de sexualidade que aconteceu entre as duas personagens, enxergando apenas como “um pecado aos olhos de deus e dos homens”3.
Teatro folclórico sobre o ritual de fogo de Sita, no Ramayana que Ashok assiste com seu guru (Quadro 3), em Fogo e Desejo, 1996.
Quando Radha se distancia de Ashok, sua vestimenta
Nos quadros podemos ver como o conto é reitera-
vés do teatro folclórico. Além de fazer parte da es-
2 - Radha fala: “Você sabia que sem desejo eu estava morta? Sem desejo não faz sentido viver. E você sabe de mais uma coisa? Eu desejo viver, desejo Sita, desejo seu ventre, sua compaixão, seu corpo. Eu desejo viver novamente.” Tradução livre.
trutura narrativa cinematográfica, há um diálogo
3 - Fala do personagem Ashok neste momento do filme.
do de diversas formas, seja pela narrativa seriada da televisão, o material impresso e também atra-
84
Juily Manghirmalani
Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia
pega fogo. Imerso nos distúrbios dos acontecimen-
por dignidade e direitos são assuntos presentes nas
tos recentes, inclusive nos últimos treze anos seguin-
quatro histórias dais quais Vaidehi participa e apre-
do uma vida de dedicação espiritual, Ashok vê a si-
senta diversas discussões relacionadas ao quadro
tuação como uma provação de fogo que Radha deve
indiano de violência contra mulheres. Estão são: a
passar. Ele a deixa sozinha e sem ajuda, enquanto o
insegurança ou dependência financeira gerada por
resto da casa continua a pegar fogo, salvando ape-
um casamento em que a mulher cuidar apenas da
nas Biji que assistia tudo de longe.
casa e família; a falta de apoio emocional, vindo especialmente das famílias; a importância do dote;
Radha consegue sair da casa e encontrar Sita em um
estereótipos vinculados à mulher, vindo da repre-
templo sufista. O filme direciona a leitura de forma
sentação repetitiva de Sita que questiona, inclusive,
a entender que a personagem prova a sua pureza e
a crença de que o marido seja uma espécie de deus
lealdade, em relação ao que o ritual representa para
na vida da mulher; o assédio sexual e aborto; a pre-
o hinduísmo.
ferencia pelo filho homem e o infanticídio feminino; e o estupro coletivo.
Em sua face interna, há o enorme cinema híndi (mencionado também como cinema popular) em que Laj-
A longo prazo, a identificação de Sita, a deusa dos
ja (Rajkumar Santoshi, 2001) também apresenta crí-
contos mitológicos como devota e casta é enorme-
ticas ao papel da mulher em referência à Sita.
mente prejudicial para as mulheres indianas e Lajja pontua isso de formas singelas até tornarem-se
O cinema híndi dificilmente se aprofunda em temá-
explícitas.
ticas conflituosas, principalmente pelo peso do fundamentalismo hindu no país, preferindo tratar de
Em uma das cena do filme há novamente uma apre-
situações de forma mais leves e romantizadas. No
sentação em forma de teatro folclórico do momento
entanto, o diretor Rajkumar foi um pouco mais lon-
em que Sita deve passar pelo teste de fogo.
ge. Ele utiliza das estratégias cinematográficas indianas como o uso de danças e música, atrizes famosas
Janaki é atriz e interpreta Sita em uma peça do Rama-
e melodrama, porém com a intenção de pontuar a
yana, ela está grávida porém não é casada. Minutos
problemática de gênero na sociedade indiana.
antes de entrar no palco, fala pro pai de seu filho da gravidez e ele a rejeita, insinuando que o filho pode
Vaidehi é a personagem principal, ela vive em Lon-
não ser dele e que ela deve pensar em abortar. Na
dres com o seu marido. Porém ele é negligente e a
peça, este homem é quem interpreta Rama, marido
deixa constantemente frustrada. Quando a persona-
de Sita, e quando Janaki entra em cena, ela reverte a
gem descobre que está grávida, entra em desespero
situação imposta à Sita e também à ela como mulher
e decide voltar para a Índia, para a casa de seus pais.
indiana.
Ela, no entanto, é rejeitada pelos pais que acreditam que agora ela deve devoção ao marido e deve lidar
Na cena, Janaki (como Sita) questiona qual a impor-
com as dificuldades do matrimônio. Vaidehi não
tância da opinião da sociedade sobre o casal, qual
aceita essa condição e foge Índia adentro, onde per-
o peso da moralidade se eles se amam. Os atores
passa a vida de outras três mulheres.
coadjuvantes da cena começam a se desesperar, não compreendem porque Janaki deixou de pro-
Intencionalmente, os nomes das personagens do fil-
clamar as suas falas corretamente. O ator que faz
me são Ramdulari, Vaidehi, Maithili e Janaki, nomes
Hanuman tenta acionar o teste de fogo porém Janaki
que se referenciam à Sita, no Ramayana. A busca
mantém-se firme e o rejeita. 85
Juily Manghirmalani
Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia
Para concluir, em uma reflexão sobre o primeiro fil-
função ideológica na qual indica que todas as mu-
me, Uma Parameswaran (JAIN, 2007, pg.57) questio-
lheres indianas são criadas para “serem” Sitas. Esta
na as escolhas dos nomes das personagens femini-
pontuação também entra em acordo com o uso de
nas. Por conta do teste de fogo, o nome da esposa
nomes relacionados à Sita feitos em Lajja.
de Ashok deveria ser Sita, não Radha. Porém, diferente das expectativas, o filme consegue formular al-
Segundo a autora Bandana Chakrabarty (JAIN, 2007,
gumas críticas com essa troca. Ao nomear outra per-
pg.124), Sita tornou-se o referencial de mulher e íco-
sonagem de Sita, ela cria um subtexto sobre como a
ne cultural que faz a manutenção e a validação de
construção de mulher é feita na Índia. Ao criar esse
formas de opressão ao gênero feminino.
distúrbio da narrativa principal, ela utiliza isso em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESAI, Jigna. Beyond Bollywood: the Cultural Politics
JAIN, Jasbir. Films, Literature and Culture: Deepa
of South Asian Diasporic Film. New York/London:
Mehta’s Elements Trilogy. Jaipur: Rawat Publications,
Routledge, 2004.
2007.
GOKULSING, K. Moti e DISSANAYAKE, Wimal. Indian
THORAVAL, Yves. The Cinemas of India. Nova Delhi:
Popular Cinema – A Narrative Of Cultural Change.
Macmillan India Ltd., 2000
Inglaterra: Trentham Books Limited, 1998. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS FOGO E DESEJO. Deepa Mehta. Índia; Canadá, 1996,
LAJJA. Rajkumar Santoshi. Índia, 2001, 35mm.
35mm.
86
Entre conceitos: historiografia e teorias intermidiais Coord. Arthur Autran (UFSCar)
A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto Fabiano Pereira de Souza (Universidade Anhembi Morumbi, mestrando) fabian@uol.com.br RESUMO: Este artigo tem o intuito de apresentar os conceitos publicados pelos cineastas russos que defenderam a polifonia, o contraponto sonoro e o assincronismo no início do que se convencionou chamar de cinema sonoro, período iniciado em 1927, seja como meta para o uso do som no cinema ou possibilidade expressiva. Pretende-se analisar os escritos e os primeiros filmes sonoros dos cineastas e teóricos russos Sergei Eisenstein, V. I. Pudovkin e G.V. Aleksandrov, autores do manifesto em prol da polifonia publicado em 1928, e Dziga Vertov, que valorizava o uso do som como possível contraponto às imagens. Para efeito de delimitação de escopo, serão consideradas as obras dirigidas por eles nos primeiros cinco anos do cinema sonoro soviético, de 1930 a 1934. PALAVRAS-CHAVE: cinema russo, som, polifonia, contraponto sonoro, assincronismo. Introdução
velikih vabot, Abram Room, 1930)1, lançado em março de 1930. Ele agrupava uma série de episódios do-
Embora 1927 seja considerado o início do cinema
cumentais sobre o Plano Quinquenal e animações.
sonoro, sabe-se que esse marco representado pelo
O som se restringia à música, declamações agit-prop
lançamento comercial de O cantor de jazz (The Jazz
e alguns efeitos produzidos em estúdio. Apenas
Singer, Alan Crosland, 1927) se refere ao aparato
duas salas de exibição na União Soviética estavam
tecnológico com que esse filme contava, fazendo
equipadas para exibi-lo, uma em Moscou, outra em
com que a obra pudesse ser exibida em salas de
Leningrado.
projeção especialmente equipadas para tanto com som sincrônico dos diálogos em cena, ainda que o
Antes mesmo disso, cineastas russos que já publi-
filme em si conte apenas com duas inserções desse
cavam alguns dos primeiros materiais teóricos pro-
tipo. No ano anterior, Don Juan (Alan Crosland, 1926)
priamente cinematográficos defendiam outros tipos
já contava com trilha sonora sincronizada ao filme.
de montagem que desacomodassem o expectador
Ambos foram produzidos pelo estúdio Warner Bro-
dos preceitos da narrativa clássica. Entre eles se des-
thers, com tecnologia da Bell Telephone Company.
tacou Sergei Eisenstein. Já em 1928, ele se uniu aos colegas Vsevolod Pudovkin e Grigori Aleksandrov
O cinema se tornava a primeira mídia audiovisual. A
para se manifestarem contrários à assimilação na-
prioridade no som de cinema já era a voz, os diálo-
turalista do som para filmes. Tal manifesto foi cha-
gos em cena. Nos Estados Unidos foi cunhado o ter-
mado de Declaração sobre o futuro do cinema sonoro,
mo “talkies” para se referir a esse novo tipo de “filme
publicado em 5 de agosto.
falante”. Estava estabelecido o poder do realismo e da verossimilhança pela sincronia labial na indústria
Apenas o uso polifônico do som com relação à
cinematográfica, sua regra de ouro. Já o primeiro fil-
peça de montagem visual proporcionará uma nova
me sonoro soviético foi A plan for great works (Plan
1 - Na ausência de títulos em português, os filmes serão tratados aqui por seus títulos em inglês.
88
Fabiano Pereira de Souza
A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto
potencialidade no desenvolvimento da montagem.
pós-período silencioso dava continuidade a estudos
O primeiro trabalho experimental com som deve
anteriores do cineasta. Em Kino-Eye - The writings of
ter como direção a linha de sua distinta não sincro-
Dziga Vertov, Annette Michelson ressalta o papel sim-
nização com as imagens visuais. E apenas uma in-
bólico da teoria russa do som cinematográfico que o
vestida deste tipo dará a palpabilidade necessária
filme Entusiasmo (Entuziazm (Simfoniya Donbassa),
que mais tarde levará à criação de um contraponto
1931), de Vertov, representa até hoje. Para Michel-
orquestral das imagens visuais e sonoras. (EISENS-
son, com a invenção da gravação móvel de som –
TEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV. Apud Eisenstein,
Vertov conseguiu uma parceira com rádios locais
2002, p. 226)
para tanto, antecedendo soluções que só o gravador portátil Nagra popularizaria na segunda metade do
Pudovkin deu prosseguimento ao assunto no en-
século XX –, o jogo das relações de som e imagem e o
saio Assincronismo como princípio do cinema sonoro.
assincronismo desse jogo, Vertov realizou “o primei-
Considerando o uso naturalista do som como algo
ro e até hoje mais significante contribuição ao filme
primitivo, ele distinguia avanço técnico de avanço
sonoro soviético” (MICHELSON, 1984, p. 57).
enquanto expressão artística. Para Pudovkin, o som e a imagem deviam cada um seguir um curso inde-
Declarações sobre a necessidade de evitar que mo-
pendente que, intercalados, criariam uma exatidão
mentos visuais coincidam com momentos audíveis,
maior da natureza representada que a mera cópia.
assim como declarações sobre a necessidade de
Além da voz dos personagens como possível direcio-
haver apenas filmes sonoros ou filmes falados não
namento narrativo fora de quadro, a música como
valem um grão de feijão. No filme sonoro, como
simples acompanhamento também era um desper-
no filme silencioso, só distinguimos dois tipos de
dício de meios para ele. Mais que defender a ideia
filme: documentário (com conversas e sons reais)
do contraponto sonoro, Pudovkin soube explicá-lo
e ficção (com conversas e sons preparados artifi-
por meio de um exemplo em que ele imagina os
cialmente). Nem documentário nem ficções são
olhos do leitor como equivalente à visão da câmera.
obrigados a ter momentos visuais coincidindo (ou não coincidindo) com momentos audíveis. Grava-
O cineasta acrescenta que as impressões que rece-
ções sonoras e gravações silenciosas são editadas
bemos do mundo são parciais. Nossa atenção atua
da mesma fora; podem coincidir (ou não coincidir)
como editora de nossa audição. Isso ocorre por con-
na montagem ou podem misturar uma com a ou-
ta de dois ritmos que precisam ser considerados, o
tra em várias combinações. (VERTOV, 1930. Apud
do mundo objetivo e o ritmo com que o homem ob-
FISCHER, 1985, p. 249)
serva o mundo, sua percepção. Este último varia de acordo com nossas emoções, que alteram velocida-
Vertov combinou trechos de contraponto sonoro a
de de som tanto quanto de imagens. O filme sono-
outros de sincronia entre imagens e sons, lançan-
ro pode criar correspondências variadas com esses
do mão de estruturas mais complexas e sutis. Sua
dois ritmos. Para Pudovkin, esses contrapontos, que
matéria-prima para o filme é realista, afinal trata-se
rompem com a sincronia entre som e imagem, são o
de um documentário. O que Vertov faz questão de
único caminho de superação do naturalismo, apro-
evitar, no entanto, é qualquer recurso ilusório que
fundando e enriquecendo as possibilidades criativas
faça o espectador esquecer que está assistindo a um
do uso de som no cinema.
filme. Entusiasmo mostrou a realizadores de todo o mundo o que falavam os teóricos russos, mas com
Ainda que Dziga Vertov não tenha assinado o ma-
um viés de maior heterogeneidade.
nifesto, o uso do som nos seus primeiros filmes 89
Fabiano Pereira de Souza
A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto
Em seu artigo Contraponto sonoro inicial (THOMP-
•
Eisenstein: Romance sentimental
SON, 1980, p. 115-140) Kristin Thompson aponta a falta de clareza sobre qual seria a função do tipo de som de cinema proposto pelo trio de cineastas no
•
Pudovkin: O desertor (Dezertir, 1933)
manifesto, assim como sobre a distinção entre assincronismo e contraponto. Ela concorda que o filme sonoro era para eles um prolongamento dos princí-
•
Aleksandrov:
pios de montagem locais. Lembra que para Eisens-
Romance sentimental, Jolly fellows/Moscow
tein a sincronia não era problema, desde que não
laughs/Happy-go-lucky Guys (Vesyolye rebyata,
fosse naturalista. Thompson conclui que mesmo
1934)
nesse período inicial do cinema sonoro russo pós-manifesto, o som sincrônico já predominava.
•
Vertov: Entusiasmo e Réquiem a Lênin (Tri pesni o Leni-
Essa primeira fase do cinema sonoro russo durou
ne, 1934)
até 1934. Chegava o Realismo Socialista, doutrina adotada na União Soviética para a produção de fil-
O curta-metragem Romance sentimental apresenta
mes, introduzida no Congresso de Escritores Sovié-
duas inserções musicais em que a mulher em cena
ticos de 1934 e que passou a vigorar em janeiro de
canta e toca piano de forma sincrônica. O primeiro
1935, durante a ditadura de Josef Stalin, iniciada em
trabalho sonoro de Eisenstein e Aleksandrov já con-
1928. Ela forçava artistas de todas as mídias a se-
tinha sincronia de som. Parcialmente sonorizado,
guir as mesmas diretrizes em que a clareza deveria
O desertor começa com sons pontuais da diegese,
nortear as mais diversas formas de expressão, para
como o apito de um navio no porto, sem os demais
a compreensão do povo russo como um todo, sem
sons do local vistos nas imagens. Os diálogos são
soluções que apenas intelectuais entenderiam. A
sincrônicos. O discurso de Zelle para os trabalhado-
teoria da montagem representava um entrave a ser
res revoltosos é interrompido pelo som que logo em
superado.
seguida vemos partir de uma banda tocando. Poucas cenas curtas de trabalhadores civis em ação têm
Filmes analisados
seu som usado para cobrir todo uma sequência com mais de cenas equivalentes. Cenas de marretadas e
Sobre os quatro diretores aqui selecionados, foi fei-
máquinas funcionando sincronicamente às imagens
to um levantamento de filmes identificados como
geram o som que se segue em cenas do porto.
sonoros no site IMDb entre o período do primeiro filme sonoro russo, lançado em 1930 e o ano anterior
Em geral, os ruídos ficam de fora, substituídos por
ao de início da vigência do Realismo Socialista. De Ei-
música ou silêncio. No confronto entre grevistas e
senstein, apenas Romance sentimental foi encontra-
não grevistas, o som do tanque da polícia chegando
do, em pesquisas realizadas no site de vídeos You-
dura enquanto passam cenas rápidas dos trabalha-
tube e Vimeo, na videolocadora 2001 e na biblioteca
dores. O som da metralhadora atirando dá o ritmo
da Escola de Comunicação e Artes da Universidade
acelerado dos cortes das cenas dos trabalhadores
de São Paulo (USP). No total, restaram cinco obras
correndo e sendo alvejados. Sons de estática e ruí-
para análise, sendo Romance sentimental (Roman-
dos precedem um discurso vindo de alto-falantes
ce sentimentale, 1930) co-dirigido por Eisenstein e
com cenas de imagens tremidas como TV mal sinto-
Aleksandrov.
nizada, o que se repete durante o discurso. O confronto final com música alegre destoa da violência 90
Fabiano Pereira de Souza
A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto
em cena.
sonorizado com música extra-diegética em cenas de produção e eventos políticos. As exceções são uma
Jolly fellows é praticamente todo sincrônico, nos
mulher tocando um tipo de viola, um oficial fazendo
moldes do musical hollywoodiano. Entre as exce-
uma mulher repetir uma declaração parte por par-
ções há a personagem que desce a escada pelo cor-
te enquanto ela mira um rifle, antes de uma parada
rimão enquanto ouve-se uma sirene e o ruído de
de que se ouve o som durar além das imagens cor-
quando o pastor fecha o portão da casa da cantora.
respondentes. Um discurso é ouvido sem sincronia
Quando o pastor cai do galho de árvore ao cantar,
com suas imagens. Badaladas e tiros de canhão são
o ruído parece o de um vaso se espatifando num
vistos e ouvidos sincrônica e repetidamente. Uma
chão duro.
criança canta e dança antes de uma explosão em mina, ambas em sincronia audiovisual. Imagens so-
Entusiasmo é o filme com mais contrapontos sono-
norizadas de bombardeio aéreo tem só o som man-
ros nesta seleção. Ele começa com uma mulher com
tido conforme outras imagens surgem.
fone de ouvido e música sobreposta a um tique-taque. Um detalhe da arquitetura de igreja ao som de
Conclusão
um sino. Segue-se canto religioso e imagens de pessoas fazendo o sinal da cruz e bêbados perambu-
Somando-se a pesquisa e a análise de Kristin Thomp-
lando pelas ruas. Canto religioso sobreposto ao som
son às realizadas para este artigo, fica clara a manei-
de cuco de relógio acompanha imagens de detalhes
ra como a defesa restritiva a construções polifônicas
do prédio, sendo que a imagem de uma estátua re-
adotada em 1928 por Eisenstein, Pudovkin e Alek-
petida por sobreposições vai sumindo uma a uma
sandrov no manifesto Declaração sobre o futuro do
conforme o cuco soa.
cinema sonoro, ponto de partida teórico deste artigo, foi parcialmente aplicada na produção de seus pró-
Uma voz masculina disserta enquanto a mulher do
prios autores, mesmo antes de vigorar a imposição
fone ri. Um jovem maestro parece reger a música
do Realismo Socialista pelo governo soviético.
executada. A fumaça de um apito a vapor soa sincrônica, mas distorcida. Uma parada com marcha mi-
Houve um nível premeditado de ousadia no que diz
litar mantém a sincronia. Marchas extra-diegéticas
respeito ao som desses primeiros filmes, mas a sin-
predominam na trilha musical, mas sons de motor
cronia e a valorização da fala também já estavam
funcionando, apitos industriais, discursos, cantorias
presentes, ainda que longe do valor que a voz dos
coletivas e falas sem sincronia com a imagem tam-
astros e estrelas de cinema tinha em Hollywood. A
bém são usados. Depois dois homens falam e uma
proposta teórica de Vertov se mostrou a mais ade-
mulher discursa em sincronia. Há sincroniza clara
quada para refletir a produção aqui considerada.
em alguns momentos, falados ou não.
Ainda assim, os primeiros filmes soviéticos dos quatro autores analisados seguem como referências
Por fim, Réquiem a Lênin é em grande parte
criativas de som de cinema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EISENSTEIN, S. M.; PUDOVKIN, V. I.; ALEXANDROV, G.
EISENSTEIN, S. M.. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro:
V.. Declaração sobre o Futuro do Cinema Sonoro. In:
Jorge Zahar, 2002.
EISENSTEIN, S. M.. A forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 225-227.
FISCHER, Lucy. Enthusiasm: From Kino-Eye to 91
Fabiano Pereira de Souza
A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto
Radio-Eyeound in Films. In: WEIS, Elisabeth; BELTON,
Sound Film. In: WEIS, Elisabeth; BELTON, John (Org).
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PUDOVKIN, V. I. Asynchronism as a Principle of
2014.
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Soviética, 1930, filme 35 mm.
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DON JUAN. Alan Crosland. Estados Unidos, 1926,
O DESERTOR. Vsevolod Pudovkin. União Soviética,
filme 35 mm.
1933, filme 35 mm.
ENTUSIASMO. Dziga Vertov. União Soviética, 1931,
RÉQUIEM A LÊNIN. Dziga Vertov. União Soviética,
filme 35 mm.
1934, filme 35 mm.
JOLLY FELLOWS. Grigori Aleksandrov, 1934, filme 35
ROMANCE
mm.
Sergei Eisenstein. França, 1930, filme 35 mm.
SENTIMENTAL.
Grigori
Aleksandrov;
92
Entre mĂdias, redes e plataformas Coord. Vicente Gosciola (UAM)
Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel André Emilio Sanches (UFSCar, pesquisador / especialista em Redes de Computadores pela Universidade Federal de São Carlos (DC/UFSCar – 2008) / mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS/UFSCar - 2015) / membro do GEMInIS-UFSCar, pesquisa temas relacionados a Ficção Seriada no Cinema e Televisão, Cultura de Fãs e Cultura Participativa) asanches@gmail.com RESUMO: O grande sucesso do Universo Cinematográfico Marvel, iniciado em 2008, tem causado reflexos nas demais produções do grupo de entretenimento, desde novos licenciamentos até um redesenho quase que completo das publicações da Marvel Comics, o ramo de quadrinhos do grupo. Tais reflexos tem dividido as opiniões a respeito dos rumos que ambos os universos irão tomar, visto que apesar de terem a mesma origem, possuem diferentes bases de fãs bem como diferentes ênfases e formas de consumo. Faz-se aqui uma análise do ponto de vista da convergência de mídias e da cultura de fãs se tais mudanças, em ambos os universos narrativos, têm se dado no contexto da convergência de mídias ou da preponderância de uma, a cinematográfica, sobre as outras, e quais seus efeitos tanto nos fãs mais antigos, oriundos dos quadrinhos, quando nos fãs mais recentes, conquistados com o universo cinematográfico. PALAVRAS-CHAVE: convergência, cultura de fãs, franquias de mídia, Marvel. Introdução
Tal divisão entre os fãs, aliada a uma mudança tanto no rumo das publicações atuais de quadrinhos,
A criação do Universo Cinematográfico Marvel em
quanto no planejamento das produções futuras de
2008 com o filme Homem de Ferro (Jon Favreau,
filmes e seriados para televisão e serviços sob de-
2008) aliado à inabilidade do grupo de reaver os
manda tem criado dúvidas em relação ao real grau
direitos sobre algumas propriedades intelectuais li-
de integração e interação entre esses dois universos
cenciadas anteriormente, como Quarteto Fantástico,
narrativos, que, embora coexistam com persona-
X-Men e Homem Aranha, ditou, nos anos recentes,
gens semelhantes e histórias adaptadas, até o mo-
os rumos tomados pela Marvel Entertainment no que
mento sempre foram colocados como diferentes e
diz respeito ao alinhamento das produções de qua-
objetivando públicos distintos.
drinhos da Marvel Comics com os filmes produzidos pelos Estúdios Marvel. Tal direcionamento tem cau-
Esse trabalho faz uma análise, à luz da teoria da
sado momentos de decepção e desgosto por parte
convergência e da cultura participativa, de como os
de fãs antigos, que se ressentem de ver quadrinhos
fãs tem manifestado seus anseios, desagravos em
antigos darem espaço a produções recentes mais
relação às mudanças propostas, tanto na estrutura
alinhadas aos filmes e seriados de TV, bem como es-
das publicações de histórias em quadrinhos quan-
tranhamento por parte de fãs recentes, que, com co-
to nas adaptações de graphic novels consagradas
nhecimento apenas dos produtos cinematográfico e
para o cinema, televisão e serviços de distribuição
televisivo não encontram maneira fácil de adentrar
sob demanda, em especial no que diz respeito ao
o universo notadamente hermético das histórias em
relacionamento com outros grupos produtores,
quadrinhos.
como Fox, Universal e Sony, que detém os direitos 94
André Emilio Sanches
Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel
cinematográficos de vários personagens, em uma
Dessa forma, a primeira produção desse universo
tentativa de verificar se os objetivos, a longo prazo,
compartilhado é o filme Homem de Ferro, de 2008,
da Marvel Entertainment são de convergência midiá-
que traz consigo o “lançamento de um modelo único
tica entre seus diferentes universos e produtos ou,
para a produção de cinema na era da convergência”
ao contrário, de preponderância do mais lucrati-
(JOHNSON, 2012), apostando desde o início em um
vo, o cinematográfico, sobre todos outros tipos de
universo ficcional compartilhado e alimentado por
produção.
diversos títulos com a narrativa dividida em diversas fases, de tal sorte que o resultado final é uma gran-
Universo Cinematográfico Marvel
de serialização narrativa no cinema, acompanhada por outras produções na televisão, nos meios de dis-
O Universo Cinematográfico Marvel, ou MCU no
tribuição sob demanda e nos quadrinhos.
acrônimo original, consiste em uma franquia de mídias vinculada a um universo ficcional compartilha-
Seguindo a fórmula tradicionalmente encontrada
do que agrega produções cinematográficas, televisi-
nas histórias em quadrinhos, em que os vários per-
vas e impressas, além de diversos licenciamentos de
sonagens podem transitar livremente pelos diversos
propriedade intelectual como brinquedos, objetos
títulos da editora, promovendo encontros, aventu-
colecionáveis, jogos eletrônicos, entre outros. Todas
ras conjuntas e compondo assim um panorama nar-
estas produções têm como base o universo das his-
rativo único, os filmes apresentaram ao público uma
tórias em quadrinhos da Marvel Comics, fazendo uso
série de personagens já bastante conhecidos dos fãs
de todos os seus personagens e situações, à exceção
do universo da Marvel Comics, que com o transcorrer
daqueles que estão licenciados para outros estúdios
dos diversos filmes evoluíram, encontraram-se com
cinematográficos.
outros personagens, construíram, de certo modo, a história daquele universo ficcional (HOWE, 2013).
Tais licenciamentos ocorreram especialmente entre 1998 e 2007, quando em parceria com estúdios
Essa construção do universo narrativo a partir de
como Sony-Columbia, 20th Century Fox, New Line Ci-
elementos conhecidos, porém com nova dinâmica,
nema e Lionsgate Entertainment, o estúdio realizou
sem seguir, de maneira obrigatória, a cronologia
a coprodução de nada menos que dezesseis filmes,
presente no universo dos quadrinhos, permitiu que
incluindo vários sucessos de bilheteria como a tri-
as produções atingissem tanto os fãs que já deti-
logia do Homem Aranha (Sam Raimi, 2002-2007), a
nham o conhecimento necessário para entender a
trilogia dos X-Men (Bryan Singer, 2000, 2003; Brett
narrativa quanto conquistassem novos fãs unica-
Ratner, 2002), a trilogia Blade (Stephen Norrington,
mente a partir dos filmes produzidos para o univer-
1998; Guillermo del Toro, 2002; David Goyer, 2004) e
so cinematográfico.
filmes menores como Justiceiro (Jonathan Hensleigh, 2004).
Ainda que os fãs mais antigos e mais ferrenhos dos quadrinhos não se sintam totalmente contempla-
A renda adquirida com os licenciamentos de proprie-
dos pela maneira como suas personagens favoritas
dade intelectual para outros estúdios permitiu que
estão sendo adaptadas para os novos formatos, é
os Estúdios Marvel financiassem, a partir de 2008,
inegável o fato de que tal escolha de modo produ-
produção própria de filmes, e assim tentassem read-
tivo favoreceu, em muito, a aquisição de novos fãs,
quirir o controle criativo de seus personagens e his-
ligados unicamente às produções audiovisuais mais
tórias que outros estúdios detinham.
recentes, e em grande parte alheias a história pregressa daquelas personagens nos quadrinhos. 95
André Emilio Sanches
Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel
De maneira análoga, a opção por não contar com
cinco curtas lançados diretamente na internet e vin-
algum conhecimento prévio por parte da audiência
te títulos de quadrinhos publicados.
para que as produções fossem perfeitamente fruídas permitiu que as mesmas obtivessem grande
A previsão para o próximo arco narrativo, chamado
sucesso também em regiões consumidoras aonde o
de Phase Three, é que ao seu final, proposto para
mercado de quadrinhos da Marvel não é tão bem
2019, ele seja composto de dez longas-metragens,
sedimentada, como a China e o Japão, fornecendo
duas novas séries para a televisão aberta, quatro
dessa maneira incentivo para que esses novos fãs
novas séries para serviços sob demanda, além de
buscassem compreensão aditiva nos quadrinhos,
novas temporadas das séries já em andamento bem
até então desconhecidos (HOWE, 2013).
como novos curtas e títulos de quadrinhos.
A estratégia de colocar os filmes para o cinema no
Tais produções, que englobam um sem número de
centro da cadeia produtiva desse novo universo
personagens já apresentados ou citados, represen-
desvinculado, porém não desconexo àquele dos
tam apenas uma pequena parte do universo narra-
quadrinhos, direcionou também o desenvolvimento
tivo existente nos quadrinhos, aventando a possibi-
de produtos derivados, mesmo aqueles licenciados
lidade de que haja uma quase infinita capacidade
para outras empresas, como o caso de jogos eletrô-
de produção de novos filmes, séries, jogos e outros
nicos que seguiam os filmes, ou mesmo objetos co-
formatos narrativos, fato que pode ser evidenciado
lecionáveis, ou, como explica Derek Johnson (2012),
por afirmações de executivos dos estúdios de ha-
“...o filme é a linha criativa a ser seguida. Observa-se
ver planos para lançamentos de obras até, no mí-
para aonde a linha narrativa do filme está seguindo,
nimo, 2028, postulando assim um universo cinema-
pega-se algumas ideias dos quadrinhos para o jogo
tográfico e televisivo quase tão inesgotável quanto
e filtra-se essas ideias através do filme”.
aquele construído ao longo de mais de 70 anos de publicações.
Com isso, obtém-se praticamente uma reprodução no cinema da maneira como revistas em quadrinhos
Convergência ou Preponderância?
são produzidas, respeitando a dimensão textual de cada título produzido, porém construindo, de ma-
O conceito da convergência de mídias, redefinido
neira mais ampla, um estilo e continuidade narrativa
por Jenkins (2009) como o fluxo de conteúdos atra-
que por sua vez englobam todos os títulos, dando-
vés de múltiplas plataformas de mídias e a coope-
-lhes as características únicas que os fazem ser per-
ração de múltiplos mercados midiáticos visando a
cebidos como uma das partes de um grande todo
migração dos públicos entre os diversos meios de
(JOHNSON, 2012).
distribuição de conteúdos, pode ser entendida nesse contexto como a base para o bom funcionamento
Seguindo esse modelo de produção, e contemplan-
de iniciativas criativas como esta empreendida pela
do as três entidades produtivas dentro da Marvel En-
Marvel com o objetivo de transportar sua base fiel
tertainment, o universo cinematográfico é composto,
de fãs dos quadrinhos para o cinema e a televisão.
até o fim de 2015, de dois arcos narrativos maiores e distintos, chamados de Phase One e Phase Two, cada
Levando-se em consideração que, também segundo
uma delas composta por uma miríade de títulos e
Jenkins (2009), em um ambiente de convergência mi-
produtos, totalizando doze longas-metragens para
diática toda história contada é importante, e o obje-
o cinema, duas séries para a televisão aberta, duas
tivo principal é a circulação dos diversos conteúdos
séries para serviços de distribuição sob demanda,
no maior número possível de mídias, sejam esses 96
André Emilio Sanches
Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel
conteúdos filmes, seriados, quadrinhos ou jogos ele-
Johnson (2012) elucida que com esse arranjo, a
trônicos, torna-se necessário analisar as iniciativas
Marvel pode ser capaz de gerir conteúdos em múl-
da Marvel, e a importância talvez exagerada aos fil-
tiplas plataformas dentro da própria organização,
mes para o cinema, à luz desse contexto.
de modo a reduzir custos e produzir lucro em uma maior base de distribuição, bem como incentivar a
Ainda que a empresa busque trabalhar de maneira
migração de consumidores entre os diversos forma-
uniforme através de todas as mídias, buscando in-
tos, ainda que para isso sejam sacrificados os fãs de
tegrar sua base de consumidores e promover uma
longa data que, nessa visão, promoveram o cresci-
experiência unificada ao se consumir longas-metra-
mento da companhia em primeiro lugar, de tal sorte
gens, séries de televisão ou revistas em quadrinhos,
que torna-se impossível avaliar se essa estratégia é
Johnson (2012) identifica que existe uma buscar
viável a longo prazo e se a base de fãs de fato irá
maior em adaptar a velha mídia, ou mídia original,
transitar entre os diversos produtos e formatos de
no caso os quadrinhos, para que esta esteja em sin-
consumo.
tonia maior com a nova mídia, ou seja, as produções audiovisuais para o cinema e televisão.
Conclusões
Tal necessidade, diz Johnson (2012) deriva da de-
Ao fim dessa reflexão, podemos especular mesmo
pendência da empresa no sucesso e na visibilidade
em se tratando de experiência nova, com um uni-
dos seus produtos de maior alcance, ou seja, os au-
verso compartilhado magnitude não vista antes no
diovisuais, para que suas propostas de licenciamen-
âmbito do cinema e da televisão, parece viável que
to e de produção de obras derivadas funcionem, e
formato de produção dos quadrinhos tem se aplica-
mesmo para que os próprios quadrinhos alcancem
do de maneira funcional ao novo ambiente. Da mes-
penetração em mercados ainda virgens ou não sa-
ma maneira, não é possível afirmar que o mesmo se
turados, invertendo assim a relação de poder entre
encontra consolidado, mesmo diante do expressivo
os diferentes universos narrativos de tal sorte que
número de produções e fãs, haja vista as críticas re-
o universo dos quadrinhos, ainda que mais antigo,
cebidas ao alinhamento forçado que todas as outras
represente apenas uma fonte de inspiração para os
produções do grupo têm recebido em relação aos
demais produtos, e um lucro colateral da populari-
filmes para o cinema.
dade do universo cinematográfico. É inevitável que o arranjo produtivo vigente vai preEssa nova configuração produtiva traz à tona uma
cisar passar por adequações de modo a se adaptar
série de rusgas entre fãs antigos e produtores, bem
as formas de consumo em constante evolução, bem
como entre esses mesmos fãs e aqueles recém-che-
como aos humores de seus consumidores, sejam
gados a franquia, trazidos a ela majoritariamente
eles fãs de quadrinhos ou audiovisuais, uma vez que
pelos filmes, e na maior parte das vezes alheios aos
tal arranjo depende profundamente da capacidade
quadrinhos. Tais rusgas tendem a aumentar uma
que os produtos têm de dirigir seus consumidores
vez está em curso, nos quadrinhos, uma remodela-
a todas as outras mídias na busca por um entendi-
gem quase completa das linhas editoriais, ainda sem
mento completo daquele universo ficcional, criando
data para conclusão, mas que visa alinhar os estilos
assim um emaranhado narrativo que, a longo prazo,
narrativos e criativos àqueles ditados principalmen-
pode tornar-se por demais complexo para ser aden-
te pelos longas-metragens para o cinema.
trado por alguém não iniciado em seus mistérios.
97
André Emilio Sanches
Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOWE, S. Marvel Comics – A História Secreta. São
JOHNSON, D. Cinematic Destiny: Marvel Studios and
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York: New York University Press, 2013.
Criando Valor e Significado por Meio da Mídia Propagável. São Paulo: Aleph, 2014.
98
O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva Renato Tavares Junior (Universidade Anhembi Morumbi, doutorando em Comunicação) rtavaresrtv@yahoo.com.br RESUMO: o trabalho apresenta uma evolução histórica da dramaturgia na televisão brasileira relacionando-a com as estratégias de programação, a consolidação como produto cultural e a valorização como modelo de negócio. A dramaturgia audiovisual, compreendida como o
semanal foi a novela da faixa das 21 horas da
conjunto de possibilidades de contar histórias uti-
Rede Globo (chamada comercialmente de Novela
lizando som e imagem em movimento, mostra for-
III; Império e, depois, Babilônia). Entre as emisso-
ça para se atualizar e se renovar. Vivenciamos um
ras que disputam o 2º lugar de audiência, a dra-
processo no qual convivem modelos tradicionais de
maturgia também se destacou com as novelas
concepção, produção e comercialização com a rede-
Chiquititas e Carrossel ocupando o 1º e 2º lugares
finição de papéis marcada pelo rompimento da dico-
nos índices de média semanal do SBT e a novela
tomia produtor/receptor.
Os Dez Mandamentos liderando entre os programas veiculados pela TV Record na média sema-
As telenovelas exibidas pelas emissoras de TV aberta
nal. De acordo com levantamento do IBOPE para
do Brasil não atingem os mesmos índices proporcio-
a média anual de 2013 no PNT (15 regiões me-
nais de audiência de anos atrás, mas isto não neces-
tropolitanas) os programas mais assistidos nas
sariamente significa que a dramaturgia audiovisual
três emissoras de maior audiência foram pro-
deixou de ter importância estratégica na montagem
dutos ficcionais nacionais: na Globo a Novela III
das grades de programação nem nos planejamentos
representada por Salve Jorge e Amor à Vida (37,96
de mídia dos anunciantes. Nos últimos anos houve
pontos); na TV Record a minissérie José do Egito
mudanças metodológicas e tecnológicas de aferição
(11,47 pontos) e no SBT a Novela I - Chiquititas
de audiência televisiva, bem como surgiram concor-
(10,12 pontos)1;
rentes para as emissoras de TV. Novos players (produtores, distribuidores e exibidores de conteúdo)
•
os espaços de mídia mais valorizados para inser-
se fortaleceram no mercado sem deixar de lado o
ções comerciais: as tabelas de valores de veicu-
investimento em ficção audiovisual. Mesmo com as
lação publicitária nos meios de comunicação de
inovações tecnológicas e as novas formas de acesso
massa do Brasil consolidam há alguns anos que
à produção audiovisual constatamos o predomínio
o produto audiovisual que possui o maior valor
da dramaturgia quando analisamos cinco aspectos
de investimento para inserção de comercial de
de fundamental importância para contextualizar o
30 segundos em rede nacional é o intervalo da
mercado:
telenovela veiculada na faixa das 21 horas da Rede Globo (Novela III). Em abril de 2016, o valor
•
os índices de audiência dos programas mais
oficial de tabela uma inserção avulsa no inter-
assistidos em TV aberta: no primeiro semestre
valo da principal telenovela da emissora era de
de 2015, de acordo com os dados do IBOPE de mensuração de audiência na Grande São Paulo, o programa com maior média de audiência
1 - Dados aferidos pelo Ibope Media.
99
Renato Tavares Junior
O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva
R$754.600,002;
versão exibida em 2012 pela Globo, mais de 500 anunciantes nacionais, regionais e locais paga-
•
os formatos audiovisuais mais acessados e pre-
ram para ter sua marca exposta no intervalo da
miados em serviços e plataformas de vídeo sob
novela6. Na última semana de exibição, 27,1% do
demanda são ficcionais: destaque para as séries
tempo de veiculação foram dedicados aos inter-
House of Cards da Netflix (primeira série indicada
valos totalizando 2 horas e 17 minutos nos seis
ao prêmio Emmy que não foi veiculada por uma
capítulos finais7.
emissora de TV; líder em indicações para o Globo de Ouro em 2014) e Transparent da Amazon (ven-
A fim de compreender como a dramaturgia audio-
cedora do Globo de Ouro de melhor série cômi-
visual atingiu tamanha relevância no país, procura-
ca em 2015);
mos traçar um breve panorama histórico que evidencia decisões e estratégias mercadológicas que a
•
o canal brasileiro mais visto na internet: Porta
viabilizaram e a legitimaram.
dos fundos produz e veicula esquetes ficcionais de cunho humorístico em português com elenco
O rádio e a televisão permitiram que as performan-
brasileiro e se transformou no canal brasileiro
ces de contar histórias atingissem um público amplo
do You Tube recordista tanto no número de ins-
e simultâneo como jamais havia sido possível com o
critos (mais de 11 milhões) como no total acumu-
teatro, a ópera ou o cinema. As obras ficcionais esta-
lado de visualizações de seus vídeos (mais de 2,4
vam disponíveis no ambiente familiar por meios de
3
bilhões) ;
novos dispositivos eletrônicos independentemente do interesse do ouvinte ou do espectador. Não havia
•
o recorde de vendas para o mercado internacio-
mais a necessidade de se deslocar até um espaço fí-
nal: a telenovela brasileira se consolidou como
sico de representação em tempo real ou de projeção
um dos principais produtos de exportação do
cinematográfica.
país. Avenida Brasil (produzida pela Rede Globo, em 2012) detém o recorde de telenovela brasi-
O surgimento da dramaturgia televisiva no Brasil
leira exibida no maior número de países: 130 na-
ocorreu com o formato de teleteatro, em 1950. A
4
ções até o ano de 2015 . De acordo com a revis-
primeira história contada na televisão foi uma trans-
ta Forbes, Avenida Brasil é a novela mais rentável
missão ao vivo, na TV Tupi, do drama policial A vida
da história da América Latina. O estudo leva em
por um fio, adaptado do filme Sorry, Wrong Number
conta apenas a veiculação no próprio país em
(Anatole Litvak, 1948) por Cassiano Gabus Mendes
2012: seus custos de produção foram estimados
(ALENCAR, 2002, p. 18). Nos anos 50 e início dos anos
em cerca de US$ 45 milhões e seu faturamento
60 houve muitas transmissões de teleteatros com
enquanto esteve no ar foi de aproximadamen-
histórias unitárias transmitidas ao vivo porque ain-
te US$ 1 bilhão5. Apenas no último capítulo da
da não havia equipamentos de gravação em vídeo.
2 - Lista de preços abril a setembro de 2016. Disponível em: <negocios.redeglobo.com.br> Acesso em: 03 jun. 2016
andersonantunes/2012/10/19/brazilian-telenovela-makesbillions-by-mirroring-its-viewers-lives/> Acesso em: 06 jun. 2015
3 Disponível em: <https://www.youtube.com/ portadosfundos> Acesso em 03 jun. 2016 4 - Disponível em: <http://natelinha.ne10.uol.com.br/ novelas/2014/06/17/avenida-brasil-e-vendida-para-suecianovela-chega-a-130-paises-76206.php> Acesso em 09 jun. 2015 5
-
Disponível
em:
<http://www.forbes.com/sites/
6 Disponível em: <http://www.valor.com.br/ empresas/2872006/ultimo-capitulo-de-avenida-brasil-tera500-anunciantes> Acesso em: 12 jun. 2015 7 - Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/ geral,intervalos-tomaram-mais-de-14-da-ultima-semana-deav-brasil-imp-,949587> Acesso em: 12 jun. 2015
100
Renato Tavares Junior
Na época, o único suporte de registro de imagem em
O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva
protagonistas.
movimento era a película de cinema. Os executivos de emissoras de TV entenderam que a grade televi-
Beto Rockfeller foi considerada um marco para a mo-
siva não podia repetir as mesmas histórias por dias
dalidade da novela realista por ter elementos como
consecutivos como ocorria nas salas de cinema e
um protagonista anti-herói, locações externas com
nos teatros: adotaram a estratégia de contar, a cada
ruas que tinham o mesmo nome na vida real e na
dia, histórias unitárias e independentes a cada dia
ficção e por abordar temas contemporâneos. No fim
de modo a preencher a grade.
dos anos 60, a proposta de novela realista passa a ser aprimorada pela Globo:
Em 1951 houve a transmissão ao vivo pela TV Tupi da primeira telenovela da história do país: Sua vida
Em 1969, a Rede Globo, apoiada em excelente pla-
me pertence levou ao ar 15 capítulos de 20 minutos
nejamento (especialmente por José Bonifácio de
de duração apenas às terças e quintas-feiras. Em
Oliveira Sobrinho e Walter Clark), revoluciona o pa-
1953, foi veiculado, também ao vivo pela Tupi, o pri-
drão da telenovela brasileira. Saem os condes, du-
meiro seriado de TV: Alô Doçura8. Apenas em 1962
ques e sheiks do deserto do Saara e entra o “Brasil
foi produzido o primeiro seriado brasileiro de TV que
de verdade” na tela da TV (ALENCAR, 2002, p. 133).
não era ao vivo, mas filmado por meio da película: O Vigilante Rodoviário na TV Tupi9.
Ainda na mesma década, Redenção (transmitida pela Excelsior) explicitou como os resultados de audiên-
A telenovela se tornou diária em 1963 quando a TV
cia influenciavam a telenovela (obra aberta) quando
Excelsior transmitiu 2-5499 Ocupado, uma versão
estabeleceu o recorde de novela com o maior nú-
nacional do original argentino 0597 Da Ocupado
mero de capítulos consecutivos da história da TV
adaptado por Dulce Santucci. A consolidação das
brasileira: 596. Os índices de audiência e de fatu-
telenovelas no Brasil e a valorização de suas respec-
ramento das telenovelas geravam uma relação de
tivas faixas horárias dependiam diretamente dos
interdependência entre emissoras e agências. Os
patrocinadores que “compravam horários inteiros e
aspectos comerciais relacionados aos anseios do
de certa forma dispunham deles como melhor lhes
mercado anunciante e às estratégias das grades de
aprouvesse, mas foi esse esquema que possibilitou
programação passaram a influenciar cada vez mais
o nascimento e a sustentação da telenovela no Bra-
as narrativas:
sil” (ALENCAR, 2002, p. 23). Agregam-se condicionantes da produção e de mí-
Nos anos 60, a televisão ultrapassou o rádio como
dia, como: o grande peso das emissoras produ-
veículo de comunicação que ficava com a maior fatia
toras, que agem de maneira parecida com a dos
da receita publicitária do país. No final da década,
grandes estúdios norte-americanos, a interferência
com a pretensão de aumentar o público fiel às te-
dos índices de audiência medidos com precisão; a
lenovelas, as emissoras procuraram realizar obras
atuação dos anunciantes sobre temas e persona-
que conquistassem também o público masculino.
gens; as imposições das grades de programação
A Tupi lançou Beto Rockfeller (1968-69) e a Globo
(SADEK, 2008, p. 141).
produziu Irmãos Coragem (1970) com três homens 8 - Disponível em: <http://www.infantv.com.br/alo_docura. htm> Acesso em: 05 jun. 2015 9 - Disponível em: <http://retrotv.uol.com.br/series/ovigilante-rodoviario> Acesso em: 05 jun. 2015
Para Walter Avancini, um dos principais diretores da Rede Globo no período de consolidação das telenovelas na grade televisiva da emissora, “a novela é um tipo de programação horizontal que condiciona 101
Renato Tavares Junior
o telespectador, e isso só é viável em sociedades de
O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva
dois finais.
baixa renda, em países subdesenvolvidos, onde o povo não tem condições de optar por outras formas
Em 1995, a Globo inaugurou, no Rio de Janeiro, o Pro-
de entretenimento” (AVANCINI apud SOUZA, 2004,
jac (rebatizado em 2016 para Estúdios Globo), que se
p. 54). O autor Walter Negrão destaca ainda que a
tornou o maior polo de produção televisiva do país
telenovela permitiu que o brasileiro passasse a po-
incluindo estúdios e áreas abertas para a construção
der ver na grade de programação mais dramaturgia
de cidades cenográficas. Em 2012, a Globo comer-
nacional e menos produtos ficcionais estrangeiros:
cializou 59 produtos distribuídos em 25 mil horas de
“a telenovela diária surgiu como a arma mais impor-
conteúdo em 33 idiomas para 92 países11. Segun-
tante no combate aos enlatados estrangeiros, aos
do a revista Exame, “a chave para o sucesso dessas
filmes de quinta categoria que infestavam a progra-
produções são as histórias baseadas em temas uni-
mação de todas as emissoras” (ALENCAR, 2002, p.
versais, onde todos os grupos étnicos e sociais são
95).
representados, de acordo com as expectativas do público e as questões da atualidade”12.
Nos anos 70, o Brasil diminui sua cota de importação de produtos ficcionais estrangeiros e passa a se
Em 2002 foi gravada em língua estrangeira a primei-
consolidar como exportador. Em 1973, o Bem Amado
ra novela com consultoria da Globo para veiculação
se tornou a primeira telenovela brasileira exibida no
fora do país: Vale Todo coproduzida com a Telemun-
exterior. A primazia coube ao México10. Três anos
do foi uma livre adaptação de Vale Tudo (exibida no
depois foi criada a divisão internacional da Rede Glo-
Brasil em 1988) para o mercado latino. O acordo
bo, responsável pela adaptação das novelas segun-
previu que os custos de produção seriam divididos
do o público de cada país para o qual era exportada
entre ambas as emissoras: a Globo receberia uma
(ALENCAR, 2002, p. 125). Desde a década de 70, as
quantia fixa por ponto de audiência no mercado ex-
novelas nacionais “são conhecidas no mundo inteiro
terno e a Telemundo ficaria com a receita publicitá-
e, no espaço de uma geração, contribuíram grande-
ria do intervalo13.
mente para a valorização da televisão brasileira e da imagem do país” (WOLTON, 1996, p. 163).
Em 2014, o Grupo Globo lançou na internet o portal Gshow com publicação de webséries inéditas, gratui-
Em 1982, a Rede Globo lançou sua primeira minissé-
tas e exclusivas. Além de disponibilizar na internet e
rie intitulada Lampião e Maria Bonita. As minisséries
em aplicativos (como o GloboPlay lançado em 2015)
“em geral parecem uma novela curta, diferindo no
alguns trechos e/ou capítulos na íntegra (geralmen-
número menor e limitado de capítulos e pelo fato
te mediante assinatura) de seus produtos ficcionais
de serem uma obra fechada” (ALENCAR, 2002, p. 67).
televisivos, a Globo passou a produzir séries ficcionais com episódios de curta duração pensados para
Em 1992, estreou o programa considerado por mui-
internet: os websódios.
tos executivos de TV como o primeiro formato de ficção interativa: o Você decide. A interatividade, no
As telenovelas exibidas pelas emissoras de TV aberta
entanto, era limitada, pois o espectador podia interferir apenas uma vez no desenvolvimento da narrativa (ligação telefônica) escolhendo entre somente 10 - Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/ programas/entretenimento/novelas/o-bem-amado.htm> Acesso em: 06 jun. 2015
11 - Disponível em: <http://exame.abril.com.br/estilo-devida/noticias/a-fantastica-fabrica-de-sonhos-da-rede-globo> Acesso em: 12 jun. 2015 12 - Idem 13 - Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ ilustrada/ult90u23003.shtml> Acesso em: 12 jun. 2015
102
Renato Tavares Junior
O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva
do Brasil mantêm reconhecida importância estra-
estrategicamente as formas de disponibilização de
tégica na montagem das grades de programação e
partes de narrativas entre a linearidade do fluxo te-
nos formatos de inserção publicitária dos anuncian-
levisivo e a não-linearidade das novas plataformas
tes. As emissoras e as agências buscam equilibrar
de mídia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, M. A Hollywood brasileira: panorama da
SOUZA, J. C. A. de. Gêneros e formatos na televisão
telenovela no Brasil. São Paulo: Senac, 2002
brasileira. São Paulo: Summus, 2004
SADEK, J. R. Telenovela: um olhar do cinema. São
WOLTON, D. O elogio do grande público. Uma teoria
Paulo: Summus, 2008
crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996
103
Entre melodias: jazz, samba e vanguardas sonoras Coord. Gustavo Rocha Chritaro (UFES)
Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936) Afonso Felipe G. L. Romagna (UAM) contato@feliperomagna.com RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar como a música popular se relaciona com o cinema no filme Cidade mulher (1936). Esta película, hoje desaparecida, possui uma trilha sonora original composta em quase sua totalidade pelo sambista Noel Rosa – sendo o único filme musicado por este compositor. Estas canções trazem elementos significativos que refletem questões sociais e culturais da época, além de demonstrarem de forma rítmica e harmônica as influências e transformações musicais que aconteciam na década de 1930, mais especificamente no samba carioca. Desta maneira propomos efetuar um resgate de partes deste filme através de seu repertório musical, valorizando seus aspectos sonoros e sua relação com a imagem, o enredo, a cultura e a sociedade no qual está imerso. PALAVRAS-CHAVE: Cidade Mulher, samba, Noel Rosa, cinema brasileiro, música popular. O filme Cidade Mulher (1936), hoje desaparecido, foi
do velho empresário. Os dois jovens se casam e seis
produzido pela Brasil Vita Filme, dirigido por Hum-
anos depois são pais de um garoto que, apesar de
berto Mauro, e com trilha sonora criada em sua gran-
sua pouca idade, alimenta ideias de fazer concorrên-
de parte pelo compositor Noel Rosa (sendo seis can-
cia ao pai e ao avô nos negócios teatrais.
ções): Cidade Mulher; Dama de Cabaré; Na Bahia (Noel Rosa e José Maria de Abreu); Numa noite a beira-mar;
Através da pesquisa documental realizada em jor-
Morena Sereia (Noel Rosa e José Maria de Abreu) e
nais da época, disponíveis no site da Biblioteca Na-
Tarzan, o filho de alfaiate (Noel Rosa e Vadico). Além
cional, observamos também que Humberto Mauro,
destas canções, ainda constam no filme uma canção
diretor da película, buscou um filme-musical em que
sob o título Boi-Bumbá (Valdemar Henrique), e par-
a canção estivesse presente na ação fílmica. Mauro
ticipações musicais de Assis Valente, Muraro, Raul
era conhecedor da cultura popular, de vários sam-
Roulien e Heckel Tavares. Observa-se também que
bistas e suas músicas (SCHVARZMAN, 2004, p. 89),
estas músicas foram encomendadas por Carmen
explorou cenas cômicas mas também sensuais.
Santos, produtora e atriz, especialmente para o filme, sendo as mesmas inéditas até o lançamento da
O filme está imerso em um momento histórico de
película. (ALMIRANTE, 2013, p. 75).
grande importância nacional. O Rio de Janeiro da década de 1930 era marcado por várias mudanças
Segundo roteiro disponível no site da Cinemateca
sociais e políticas. A necessidade de suprir a falta
Brasileira, o filme conta a história de um empresário
de uma unidade nacional tomou conta dos debates
teatral que está sendo perseguido por uma série de
que buscavam uma “[...] definição dos caminhos a
insucessos. Sua filha, juntamente com o namorado,
serem seguidos para se alcançar a modernidade”
se propõe a auxiliá-lo recorrendo ao patrocínio de
(LINO, 2007, p.164). É interessante que esse proces-
uma baronesa excêntrica e rica, fanática protetora
so de busca por uma identidade tomava conta de
de cães, e montam uma revista que obtêm suces-
uma boa parte da América Latina, porém no Brasil,
so invulgar, salvando com isso a situação financeira
diferentemente dos seus “vizinhos”, a dificuldade 105
Afonso Felipe G. L. Romagna
Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)
em delimitar a discussão se dava por conta de seu
Inimitável....
vasto território e sua ampla mistura e miscigenação
Maior e mais bela que outra qualquer...
de culturas. Neste sentido, “[...] redescobrir o Brasil
Cidade sensível...
e dar a ele uma identidade cultural, foi uma das tare-
Irresistível...
fas a que se impôs o Estado instaurado após 1930”.
Cidade do amor... cidade mulher!
(Idem, 2007, p. 164). Já na canção Dama do Cabaré, podemos perceber a Buscava-se também um imaginário ideal da capital
influência do samba de partido alto, com mais es-
brasileira, uma cidade que inspirasse e que princi-
pécies de instrumentos percussivos como o surdo e
palmente fosse relatada pela sua beleza natural e
outros tambores. O mesmo acontece com a canção
modernidade, mesmo que a realidade vista fosse
Na Bahia, que faz referência as origens do samba.
diferente do discurso adotado. Neste caso o cinema foi um importante aliado da República para a cons-
Outro número musical do filme, a canção de Noel
trução no imaginário da população de um país e
Rosa Tarzan, o filho do alfaiate demonstra uma fusão
também de uma cidade maravilhosa. (SALLES, 2013,
muito maior de estilos musicais comuns à década de
p. 10).
1930, além de uma visão crítica da sociedade carioca. Segundo João Máximo e Carlos Didier, em Tarzan,
A maneira como cinema, música, rádio, interesses
a ideia de projetar “tipos” da cidade vem da inspi-
políticos e cultura de massa interagiram, influenciou
ração dos heróis projetados pelo cinema americano
uma mudança na paisagem cultural do país. O sam-
- ombros largos, bíceps avantajados, corpos muscu-
ba, ritmo eleito como símbolo nacional, começa a fa-
losos. Os rapazes da burguesia carioca, que antes se
zer parte tanto de grupos sociais populares quanto
inspiravam em galãs menos robustos, como Rodol-
de intelectuais da cidade do Rio de Janeiro. (NAPOLI-
fo Valentino, passam a ter como inspiração Johnny
TANO, 2009, p. 141). Este samba, que ainda não era
Weissmuller, protagonista do filme Tarzan, The Ape
musicalmente como conhecemos hoje, formava-se
Man. Porém muitos destes, desprovidos de um rigor
na diversidade afro brasileira com lundus, maxixes,
físico, não conseguiam obter resultados musculares
e danças de roda, além da influência musical euro-
que pudessem ser comparados ao do protagonista
peia e de grandes produtores estrangeiros que de-
de Tarzan, e acabam recorrendo aos alfaiates. Tor-
sembarcavam no Brasil.
na-se então moda na cidade o uso de paletó com ombreiras, que aproximavam os franzinos rapazes
Noel Rosa soube explorar muito bem as variedades
de Johnny Weissmuller. (MÁXIMO, 1990, p. 425). Na
rítmicas do samba daquele período no filme – estilo
letra observamos o tom de ironia tanto em relação
eleito nesta década como ritmo nacional pelo en-
às influências que os filmes americanos exerciam na
tão presidente Getúlio Vargas (VIANNA, 2007, p. 73).
sociedade, quanto também da figura do malandro
Desta maneira, podemos ver na música título Cida-
ressaltando a preguiça e a indolência. Nesta música,
de Mulher uma típica marcha de carnaval, tanto em
o poeta do samba tratou de produzir uma harmonia
forma harmônica como rítmica, tendo a caixa como
mais elaborada nas estrofes, além do ritmo que é
instrumento principal de percussão. A ideia de valo-
mais cadenciado e muito mais próximo do Samba
rizar os aspectos da cidade, criando um imaginário
de Estácio.
espetacular e maravilhoso foi abordado nesta canção do compositor.
Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte
Cidade notável...
Nem conheço futebol.
106
Afonso Felipe G. L. Romagna
Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
Mas que pesa e faz doer.
E eu passo o ano inteiro Sem ver um raio de sol.
Essa versatilidade é essencial para compreender to-
A minha força bruta reside
das as influências musicais do samba e da música
Em um clássico cabide,
popular na década em questão e a maneira como se
Já cansado de sofrer...
relacionam com o cinema, demonstrando a riqueza
Minha Armadura é de casimira dura,
musical da trilha sonora do filme Cidade Mulher.
Que me dá musculatura
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa / Almirante -
MÁXIMO, João, DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma
3. ed. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2013.
biografia. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica Editora, 1990.
CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil, de Noel a Gabriel”. In: CAVALCANTE, Berenice; STARLING,
NAPOLITANO, Marcos. O fantasma de um clássico:
Heloisa; EISENBERG, José (Org). Decantando a
recepção e reminiscências de Favela dos Meus
República. Inventário Histórico e Político da Canção
Amores (H. Mauro, 1935). Significação Revista de
Popular Moderna Brasileira, 2: Retrato em branco
Cultura Audiovisual. São Paulo, n. 32, pp. 137-157,
e preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova
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Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. pp. 23-43.
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CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em: <www.
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cinemateca.gov.br> Acesso em: 08 Out. 2014. SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as DO FILME CIDDE MULHER. A Noite, Rio de Janeiro, 24
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jul. 1936. Disponível em: <http://hemerotecadigital. bn.br/>. Acesso em 08 out. 2014.
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LINO, Sonia Cristina. “A tendência é para ridicularizar [...]” Reflexões sobre cinema, humor e público no Brasil. Revista Tempo. Rio de Janeiro, n. 10, pp. 6379, 2000.
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Cinemídia Coordenação do Grupo de Pesquisa
Comitê Científico
Profa. Dra. Flávia Cesarino Costa (UFSCar)
Alessandro Gamo (UFSCar)
Prof. Dr. Samuel Paiva (UFSCar)
Alfredo Suppia (Unicamp)
Profa. Dra. Suzana Reck Miranda (UFSCar)
Ana Isabel Soares (CIAC/UAlg) Arthur Autran Franco de Sá Neto (UFSCar)
Comitê Organizador do I Encontro Internacional
Antônio Carlos Amâncio da Silva (UFF)
Prof. Dr. Fábio Raddi Uchôa (UFSCar)
Carlos Roberto de Souza (UFSCar)
Profa. Dra. Flávia Cesarino Costa (UFSCar)
Carolin Overhoff Ferreira (UNIFESP)
Prof. Dr. Samuel Paiva (UFSCar)
Cecilia Antakly de Mello (ECA/USP)
Profa. Dra. Suzana Reck Miranda (UFSCar)
Eduardo Simões dos Santos Mendes (USP)
Prof. Ms. Wiliam Pianco (CIAC/UAlg)
Eduardo Vicente (USP) Fabio Raddi Uchôa (UFSCar)
Comitê Organizador Discente
Felipe de Castro Muanis (UFF)
Debora Taño
Flávia Cesarino Costa (UFSCar)
Juily Manghirmalani
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Sancler Ebert
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Coordenação Transmissão Online
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Equipe de Produção
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