Cinemídia - Anais 2015

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ANAIS

Universidade Federal de São Carlos–UFSCar


ANAIS

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

cinemidiaufscar.wordpress.com


Sumário Entre imagens: fotografia e cinema 7

Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção

Entre escutas: sons, espaços e reverberações 65 Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

11 Fotografia: essência e hibridismo 16 Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

Entre afetos: imaginários e fronteiras do horror 23 A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

Entre atos: palcos, telas e escrituras 72 A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo: Um olhar quantitativo-descritivo para o processo de transmidialidade 78 O Ano Passado em Marienbad – Alain RobbeGrillet cineasta segundo Roland Barthes 83 Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia

Entre espaços: documentário, fronteiras e mediações

Entre conceitos: historiografia e teorias intermidiais

30 Frontier Zones: documentários para ler a cidade

89 A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto

Entre tecnologias e imagens expandidas 36 Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo 41 Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema 46 Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games

Entre memórias, poéticas e afetos 52 Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles 57 Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo 59 Memória afetiva na obra de Wenders

Entre mídias, redes e plataformas 95 Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel 100 O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva

Entre melodias: jazz, samba e vanguardas sonoras 106 Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)


Apresentação I Encontro Internacional do Cinemídia – Grupo de Estudos sobre História e Teoria das Mídias Audiovisuais O Cinemídia iniciou suas atividades em 2013, con-

características das mídias em seus discursos audio-

tando com a participação de professores e alunos

visuais, em suas perspectivas intertextuais, interar-

relacionados tanto ao Programa de Pós-Graduação

tísticas e interculturais.

em Imagem e Som (PPGIS) quanto ao Curso de Graduação em Imagem e Som, da Universidade Federal

Além das conferências, várias comunicações serão

de São Carlos (UFSCar). Desde então, mantém vín-

apresentadas por pesquisadores diversos oriundos

culos com outras relevantes instâncias desta Uni-

de instituições distintas, reunidos em mesas a partir

versidade, tais como o Departamento de Artes e Co-

de temáticas e abordagens afins, como uma cons-

municação (DAC), o Centro de Educação e Ciências e

telação representativa das pesquisas em curso, em

Humanas (CECH), a Pró-Reitoria de Pós-Graduação

sintonia com as questões de intermidialidade.

(ProPG) e a Pró-Reitoria de Pesquisa (ProPq), que muito contribuíram para a concretização de várias

Além disso, reiterando a parceria do PPGIS com o

atividades até a realização deste Primeiro Encontro

Centro de Investigação em Artes e Comunicação

Internacional.

da Universidade do Algarve (CIAC – Portugal), este Encontro realiza o minicurso Interdisciplinaridade

O interesse do grupo diz respeito fundamentalmen-

e Intermidialidades Além-mar: o Caso do Cinema

te à investigação das mídias audiovisuais a partir de

Português, que parte de uma perspectiva histórica e

uma compreensão da história e da teoria como fato-

teórica para investigar traços do cinema de Portugal,

res dinâmicos e conjugados a produtos, processos e

com ênfase nas relações entre cinema, literatura e

suas mediações, partindo de três eixos de pesquisa,

outras artes.

a saber: os regimes do discurso audiovisual; as intermidialidades; o som e a música no audiovisual. Tal

Para a concretização deste Primeiro Encontro Inter-

objetivo geral vem pautando as pesquisas específi-

nacional do Cinemídia, vale destacar, com ênfase,

cas, as frequentes reuniões, estudos, participações

que tem sido imprescindível, além da participação

em congressos, produção de textos, entre outras

dos conferencistas e pesquisadores, o suporte do

atividades dos integrantes da equipe em suas várias

PPGIS, da ProPG e ProPq da UFSCar, e especialmen-

instâncias, que agora chegam ao momento especial

te o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Es-

de realização deste Primeiro Encontro Internacional.

tado de São Paulo (FAPESP), e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do

A proposta é reunir pesquisadores tanto do Brasil

Ministério de Educação (CAPES). A todos, os nossos

quanto de outros países para o debate sobre as in-

mais sinceros agradecimentos, com a boa expectati-

termidialidades, com a investigação sobre modos de

va pela realização não só deste mas também de mui-

interação entre mídias/meios e a ativação de suas

tos outros Encontros!

zonas fronteiriças. Assim, as conferências de professores de destaque na área abordam as potencialidades das intermidialidades enquanto lugar epistemológico e métodos de pesquisa, questionando desde gêneros até as presenças do som e da música e as

CINEMÍDIA Coordenação do Grupo de Pesquisa Comitê Organizador do I Encontro Internacional Equipe de Produção


Entre imagens: fotografia e cinema Coord. Cristiano F. Burmester (PUC-SP)


Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção Sancler Ebert (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som) sanclerebert@yahoo.com.br RESUMO: Neste trabalho analisaremos como o filme Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004), usa a fotografia still para instruir leituras documentarizantes (Odin, 2012). Utilizaremos a intermidialidade como metodologia, para pensarmos a relação entre fotografia e cinema. Nosso foco será refletir sobre as referências ao trabalho de fotógrafos como Walker Evans, Robert Frank e Martín Chambi. PALAVRAS-CHAVE: leitura documentarizante, intermidialidade, fotografia, Diários de motocicleta. As referências à fotografia documental: de

(2010), Marcos Strecker aponta a influência de Evans

Walker Evans a Martín Chambi

e Frank nas escolhas visuais do diretor brasileiro. “Um grande seguidor de Evans, Frank compartilha

Neste artigo vamos analisar como o filme Diários de

com ele uma característica fundamental: o huma-

motocicleta (2004), de Walter Salles, referencia o tra-

nismo. E esse atributo resume, em larga medida, a

balho de fotógrafos documentais para instruir leitu-

opção de Walter” (p. 59).

ras documentarizantes (Odin, 2012). O filme conta com três sequências em preto e branco (diferen-

Walker Evans ficou conhecido como o grande fotó-

temente do restante da obra que é em cores), nas

grafo da Depressão americano, nos anos 1930, ao

quais figurantes e pessoas comuns posam para a câ-

retratar trabalhadores do sul dos Estados Unidos.

mera como fossem ser fotografados, olhando dire-

Sua obra Let us now praise famous men (Elogiemos

tamente para a lente na espera do seu retrato. Tais

os homens ilustres, 1941), publicada com textos

sequências emulam a fotografia still, embora não

do jornalista James Agee, é referência da fotografia

sejam propriamente imagens sem movimento. Além

documental até os dias de hoje. Nas fotos vemos

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disso, levando em consideração os fenômenos

crianças e adultos castigados pela crise econômica

propostos por Rajewsky (2012), podemos perceber

que assolava o país. Como em Diários de motocicleta,

referências ao trabalho de fotógrafos documentais.

os retratos em preto e branco continham um olhar

Nossa intenção aqui é entender quais são essas re-

frontal, com os personagens posando em frente a

ferências e como elas operam.

suas casas ou locais de trabalho. Assim como no filme, há uma predileção por pessoas comuns.

Autor de Na estrada – O cinema de Walter Salles 1 - Rajewsky (2012) propõe três fenômenos intermidiáticos: a transposição intermidiática, quando temos, por exemplo, a transposição de um livro para filme; a combinação de mídias, quando mais de uma mídia é visível em outra, como em Diários de motocicleta no qual a fotografia still apresenta suas características, para além daquelas já associadas a fotografia cinematográfica; e as referências intermidiáticas, quando temos a citação de uma mídia em outra, algo que também percebemos no filme de Salles, que referencia o trabalho de fotógrafos documentais.

Já o trabalho do fotógrafo suíço Robert Frank, autor de The Americans (1958), um dos livros fundadores da imagem norte-americana do pós-guerra, teria influenciado o diretor brasileiro a incorporar o inesperado. Frank defende que seus registros reproduzam uma experiência de conhecimento pessoal, efêmera

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Sancler Ebert

Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção

e transcendental. (...) Essa ideia de produção rea-

companhia aquela que seria sua profissão por toda

lista, documental, aberta, que expressa a jornada

vida. Iniciou com um pequeno estúdio no qual aten-

individual do próprio realizador, é uma das chaves

dia a burguesia da cidade, até que aos poucos pôde

para o sucesso do cinema de Walter, desde Terra

começar a retratar pessoas comuns que encontrava

Estrangeira. Teve seu melhor resultado em Diários

na rua e convidava ao seu estúdio. Sua busca por re-

de motocicleta (STRECKER, 2010, p. 56-57).

gistrar os seus pares o aproximou da Alianza Popular Revolucionaria Americana (Apra), movimento políti-

Embora Strecker (2010) aponte aproximações en-

co indígena e nacionalista, que teve grande influência

tre os trabalhos de Evans e Frank com o de Salles, é

em Cuzco no início do século XX. O estúdio de Cham-

preciso observar que, enquanto os dois retrataram

bi era o ponto de encontro de pintores, escritores e

a sociedade americana, em Diários de motocicleta o

jornalistas que defendiam uma cultura radicalmente

brasileiro ressalta nas sequências que emula a fo-

indígena. Esquecida durante quase cinquenta anos, a

tografia a identidade latino-americana. Salles indica

obra do peruano formada por mais de 30 mil negati-

que sua inspiração foi na verdade o trabalho do fo-

vos foi redescoberta em 1988 (SALLES, 2002).

tógrafo peruano Martín Chambi, sobre o qual o diretor escreveu em sua coluna no jornal Folha de S. 2

Paulo em 03 de agosto de 2002 . A confirmação da 3

Para quem não conhecia sua obra, como eu, cada imagem é uma revelação. E um choque. Chambi

referência aparece no site do filme , assim como na

talvez seja o primeiro fotógrafo latino-americano a

obra de Williams (2007):

retratar o mundo em que vive e os rostos a sua volta de forma rigorosamente includente e original. O

Salles explica que ele foi influenciado pelo trabalho

que está em jogo é a criação de um olhar próprio,

de Martín Chambi, um fotógrafo peruano dos anos

através de uma certa descolonização do olhar (Ibi-

1920, “que foi o primeiro a levar a câmera para foto

dem, 2002).

do estúdio e fotografar as pessoas nas ruas. Ele retratou pessoas que nunca havíamos visto antes

Para Salles (2002), a obra5 do fotógrafo peruano su-

como cidadãos, antecipando o que os neorrealis-

geriu a possibilidade de estabelecer um olhar pró-

4

prio. Sendo assim, ao retratar as pessoas encontra-

tas italianos fizeram nos anos 1940 e 1950” (p. 24) .

das ao longo da jornada, o diretor procurou registrar O diretor brasileiro descobriu Chambi durante a

a identidade latino-americana por meio de um olhar

viagem de pesquisa realizada antes das filmagens

singular, que não fosse um olhar estrangeiro sobre

de Diários de motocicleta. De origem humilde, o fo-

as peculiaridades do continente, mas um olhar lati-

tógrafo trabalhou ainda criança numa empresa de

no-americano sobre o povo da América Latina.

mineração, na qual aprendeu com o fotógrafo da A escolha em referenciar a fotografia documental 2 - Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ ilustrad/fq0308200223.htm>, acessado em 22 de janeiro de 2016. 3 - Disponível em: <http://www.motorcyclediariesmovie. com/>, acessado em 22 de janeiro de 2016. 4 - Tradução de “Salles explains that he was influenced by the work of Martín Chambi, a Peruvian photographer of the 1920s, “who was the first to take the camera out of the studio and photograph people in the streets. He treated people you would never have seen before as citizens, anticipating what the Italian neorealist did in 1940s and ‘50s”. (p. 24)

está ligada ao fato de que a fotografia possui uma credibilidade em relação ao que retrata, como aponta Dubois (1994), ao dizer que existe uma espécie de consenso de que o documento fotográfico prestaria 5 - Uma mostra com obras do fotógrafo foi organizada pelo Instituto Moreira Salles, da família de Walter. Face andina – Fotografias de Martín Chambi trouxe 88 fotografias e 23 postais ao Acervo do Instituto. A mostra esteve aberta à visitação de 2 de outubro de 2014 a 29 de março de 2015.

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Sancler Ebert

Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção

contas do mundo com fidelidade, isso devido ao seu

atesta a realidade.

processo mecânico de produção da imagem, no qual a mecanicidade da câmera juntamente à química do

Se admitimos muitas vezes com bastante facilidade

filme (quando pensamos nas câmeras analógicas)

que o explorador pode relativamente fabular quan-

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registram o que está em frente à lente .

do volta de suas viagens e elaborar, portanto, por exemplo para impressionar seu ouvinte, narrativas

Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu

mais ou menos hiperbólicas (...), ao contrário, a fo-

referente, ambos atingidos pela mesma imobilida-

tografia, pelo menos aos olhos da doxa e do senso

de amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em

comum, não pode mentir. Nela a necessidade de

movimento: estão colados um ao outro, membro

“ver para crer” é satisfeita. A foto é percebida como

por membro, como o condenado acorrentado

uma espécie de prova, ao mesmo tempo necessá-

a um cadáver em certos suplícios (...) (BARTHES,

ria e suficiente, que atesta indubitavelmente a exis-

1984, p. 15).

tência daquilo que mostra (BARTHES, 1984, p. 25).

A fotografia se diferencia das outras artes pela sua

O cinema, por ser composto de fotografias em mo-

constituição como índice, uma vez que, diferente-

vimento, possui também esse poder de documen-

mente dos ícones, que são definidos por uma rela-

tação, principalmente quando caracterizado como

ção de semelhança, e dos símbolos, que são deter-

filme documentário, no entanto, como assinala Son-

minados por uma convenção geral, o índice mantem

tag (2007), “fotos podem ser mais memoráveis do

com seu referente uma conexão física (DUBOIS,

que imagens em movimento porque são uma nítida

1994).

fatia do tempo, e não um fluxo” (p. 28). Ou seja, por mais que as imagens em movimento tenham esse

Essa característica vai levar Barthes (1984) a contra-

poder de serem documentais, não possuem como

riar aqueles que acreditavam que os pintores ha-

a foto a qualidade de registrar um único momento

viam inventado a fotografia devido ao uso por estes

privilegiado e nem “podem ser convertidas em um

do enquadramento e da ótica da câmera obscura

objeto diminuto que as pessoas podem guardar e

e afirmar que os verdadeiros inventores foram os

olhar outras vezes” (Idem, p. 28). Podemos pensar

químicos, pois graças a eles descobriu-se a sensibi-

que o frame de um filme pode ser impresso, ser uti-

lidade dos sais de prata à luz e com isso foi possível

lizado em camisetas e banners, mas ao serem conge-

captar e fixar a imagem. “A foto é literalmente uma

lados deixam de ser imagem em movimento, cine-

emanação do referente” (Ibid, p. 120-121). Embora

ma, e passam a ser então outra coisa.

o cinema também tenha um referente fotográfico, “(...) esse referente desliza, não reivindica em favor

A partir desses conceitos podemos então perceber

de sua realidade, não declara sua antiga existência;

que as sequências aqui analisadas possuem uma

não se agarra a mim: não é um espectro” (Idem, p.

forte instrução documentarizante7 (ODIN, 2012),

133-134). E essa questão do referente estará liga-

7 - Odin (2012) sugere que o grau de referência à realidade do filme pode ser considerado como uma das possíveis oposições entre ficção e documentário. O que os distinguiria seria o tipo de leitura realizada pelo espectador: caso a imagem construída considere a origem do enunciador como inexistente ou fictícia, se constitui uma “leitura fictivizante”; por outro lado, se o espectador construir uma imagem do enunciador como sendo real, há uma “leitura documentarizante”. Odin propõe que além da leitura empreendida pelo espectador, o filme pode instruir leituras documentarizantes e fictivizantes,

da ao uso da fotografia como prova, como algo que 6 - Claro que essas reflexões foram feitas antes da ascensão dos programas de correções de imagem disponíveis nos computadores. Hoje, uma imagem, por mais crível que seja, pode ter sido alterada, o que afeta de alguma forma esse ideário da fotografia como 100% fiel à realidade, no entanto, a crença na fotografia permanece existindo.

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Os fenômenos intermidiáticos em Diários de motocicleta: A fotografia como propulsora da leitura documentarizante na ficção

Sancler Ebert

pois, ao usarem da referência à fotografia documen-

Podemos refletir que o espectador que sabe da refe-

tal em sua estética, indicam aos espectadores que

rência ao trabalho de Martín Chambi vai ter um tipo

aquelas pessoas retratadas são enunciadores reais,

de leitura do filme, mais próxima daquela pensada

pois a fotografia tem esse poder de atestar, de servir

pelo diretor. No entanto, mesmo o espectador não

da prova de existência de certas realidades. A utiliza-

sabendo dessa referência, uma maior será por ele

ção da fotografia como referência produz tal efeito

percebida: a referência à fotografia documental. As

que passamos a encarar até mesmos os figurantes

sequências têm em comum uma estética já asso-

como atores naturais. Porque entre as feirantes, os

ciada a tal tipo de fotografia (a imagem em preto e

trabalhadores do campo e os indígenas de Cuzco se

branco, o retrato com olhar frontal, a predileção por

encontram os atores do leprosário e o intérprete do

pessoas simples e pobres, a utilização dos locais de

mineiro encontrado no deserto.

trabalho e vivência como cenário). Dessa forma, tais aspectos por si só dão uma instrução documentari-

por meio de certos elementos, como no caso de Diários de motocicleta, pelo uso da fotografia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

zante ao espectador, que está acostumado a ler tais registros como reais. RAJEWSKY, Irina. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no

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P. 11-27

ODIN,

Roger.

Filme

documentário,

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Fotografia: essência e hibridismo Cristiano Franco Burmester (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, professor doutor ) cristiano.burmester@gmail.com - www.crisburmester.com.br RESUMO: Esta pesquisa investiga as transformações do campo midiático da fotografia em função das intensas transformações decorrentes das inovações tecnológicas provocadas pela digitalização dos meios. A questão central de pesquisa assim se coloca: o que essas transformações podem significar e possibilitar nos termos da renovação das narrativas fotográficas? O processo de hibridização a que estão submetidos os meios de comunicação pode gerar uma forma coerente? Como base metodológica foram utilizados os trabalhos: A Imagem-Tempo de Gilles Deleuze, a análise das mídias, em Entre-Imagens e L’entreImages 2 de Raymond Bellour, o estudo de Edmond Couchot sobre a presença da tecnologia na arte, na obra de mesmo nome, e a pesquisa de François Soulages em A Estética da Fotografia. PALAVRAS-CHAVE: fotografia, cinema, vídeo, tecnologia, convergência, linguagem. Introdução

encontrou na experimentação com a imagem em movimento um espaço para a criação ficcional e o

O diálogo realizado entre a fotografia e o cinema se

entretenimento.

desenvolve desde a origem do cinema, posterior a da fotografia, quando da ocasião da invenção do ci-

De certa maneira, a linguagem fotográfica se afir-

nematógrafo pelos irmãos Lumiére (CAMPANY, 2008.

mou como uma linguagem documental, onde o re-

p.10).

gistro da realidade visível, em formato estático, se tornou o principal motivo da linguagem fotográfica.

A fotografia, aprimorou-se ao longo do tempo na

A imagem em movimento proporcionou ao cinema

busca pelo registro do instante, aquele momento

uma abordagem diferente, onde as sequências de

ínfimo de tempo que não sucederá mais e que as-

imagem em movimento, criaram um espaço para a

sim congela em imagem um traço de realidade em

ficção, construída a partir da atuação do cineasta.

tempo passado. Já o cinema, buscou a imagem movimento, o registro do visível em imagens em forma-

Será decorrente das suas diferenças que ambos os

to dinâmico, em movimento contínuo.

meios irão criar uma relação de diálogo, por vezes de aproximação, por outras de distanciamento. Este

O aprimoramento das linguagens fotográfica e au-

trabalho de pesquisa busca olhar mais atentamen-

diovisual ao longo da história, estabeleceu as identi-

te esta interação, especificamente a partir da digi-

dades de ambos os meios, porém suas construções

talização dos meios, e se apoia no surgimento de

são resultado de um intenso processo de embate,

aparatos fotográficos digitais capazes de fotografar

através de aproximações e distanciamentos que pu-

e filmar a partir de um mesmo equipamento como

deram adquirir contornos mais profundos na medi-

ponto de inflexão.

da em que ocorreu o processo de digitalização dos meios. Ainda no século XIX, enquanto o fotógrafo

Fotografia e Cinema

Edward Muybridge, demonstrou através de fotografias, congelando em instantes distintos, a configura-

Inicialmente, será o desejo por imprimir o movimen-

ção do ciclo de passadas do galope de um cavalo.

to nas imagens que empurrará a fotografia em dire-

Contemporaneamente, o cineasta Georges Méliès

ção ao cinema, e neste sentido, diversas experiências 10


Cristiano Franco Burmester

Fotografia: essência e hibridismo

serão realizadas por fotógrafos que buscam se desprender da rigidez do congelamento da imagem fotográfica. O francês Jacques Henri Lartigue irá produzir no início do século XX, registros fotográficos que incorporam o “borrão” ou o “tremido” como forma de exaltar o movimento na imagem estática.

The Americans. Robert Frank. EUA, 1952-1954.

Ao se aproximar do cinema, a fotografia buscou o A ruptura com a rigidez do congelamento da foto-

movimento. Nos exemplos anteriores, expressos

grafia estará no centro de muitas experimentações

pelo “borrão” e pelo conflito provocado pela edição,

realizadas ao longo da história da linguagem foto-

a imagem congelada busca uma atualização tempo-

gráfica e será realizada com a utilização de vários

ral, tentando escapar do passado e se colocar nova-

métodos. A edição fotográfica também é uma forma

mente no presente, ao menos em sua intenção de

de construção narrativa, primeiramente tendo sido

revelar que algo a sucederá e assim repetidamente

operada com o objetivo da máxima síntese possível,

(DELEUZE; 1990. p.102).

ou seja, a expressão em uma única imagem, um conjunto de informações e significados. Sob um ponto

O cineasta japonês Akira Kurosawa se apropriou da

de vista, podemos entender que este resultado tam-

linguagem fotográfica em muitas das suas produ-

bém representa uma concepção rígida da linguagem

ções cinematográficas. Agora, ao contrário da busca

fotográfica.

pelo dinamismo, foi o efeito da pausa, do estático ou “still” que o cineasta perseguiu. O sentido natural de continuidade provocado no espectador pela imagem em movimento sofre uma ruptura através da operação da pausa, propondo um atitude mais reflexiva para o público (BELLOUR, 1993. p.10).

RAN. Akira Kurosawa. Story-board e still. 1985. Papai a quase 80 quilômetros por hora. Jacques Henri Lartigue. Paris, 1913.

Em suas obras, muitas delas com temática de conflitos e guerras em diferentes períodos da história

O suíço Robert Frank realizou um belo trabalho de

do Japão, o cineasta apresentou personagens fortes

documentação da sociedade norte-americana no

em momentos de confronto e intimidação através

início da década de 1950 e provocou uma ruptura

da parada do movimento da câmera, produzindo as-

com o excesso de controle exercido pelos conceitos

sim um reforço da tensão quando personagens cru-

de edição ao propor um formato de apresentação

zavam olhares em posição estática, à semelhança de

do seu trabalho onde fotografias conflitantes foram

um registro fotográfico.

dispostas lado a lado, provocando uma leitura não linear das imagens pelo público.

De certa maneira, a busca pelo movimento operado pela fotografia propõe um olhar de dentro para fora da imagem, ocorre uma busca para aquilo que 11


Cristiano Franco Burmester

Fotografia: essência e hibridismo

está fora do quadro, ou seja, a continuidade em seu

trazendo não somente agilidade, fluidez e flexibili-

potencial. Em sentido oposto, a pausa provocada

dade, mas também possibilidades de aproximações

pelo “still” no cinema estimula o espectador a entrar

e apropriações de linguagem mais profundas. Gra-

na imagem, atentar para a tensão do momento ali

dualmente, a hibridização vai se intensificando no

representado.

campo audiovisual.

La Jetée, é um filme construído a partir de fotos do-

A revolução que ocorre no campo da comunicação

cumentais, imagens de arquivo, breves sequências

é a constatação de um certo grau de dificuldade de

de fotogramas extraídas de filmes e algumas fotos

se pensar esteticamente um meio sem considerar a

encenadas para complementar a narrativa do filme,

sua pluralidade interna (COUCHOT, 2003. p.265). Em

sendo todo este material montado individualmen-

certa medida, o hibridismo vai ganhando uma pre-

te na mesa de edição. Seu autor, o cineasta francês

sença mais expressiva no campo do audiovisual, tra-

Chris Marker, articulou todo este material visual atra-

zendo a tona a necessidade de compreensão mais

vés de uma série de recursos executados na etapa

ampla sobre como operam os mecanismos de hibri-

de pós-produção, tais como movimentos panorâmi-

dização dos meios.

cos, zoom, dissolve, fusões, além de música e narração em off. Sua temática de ficção científica que se

A convergência tecnológica é o termo que ficou co-

passa entre um tempo passado e a possibilidade do

nhecido para este processo de aproximação dos

futuro permitiu que através da linguagem audiovi-

meios em sua faceta técnica. No campo da fotogra-

sual, a fotografia adquirisse a percepção do tempo

fia, um desdobramento contemporâneo da conver-

presente (BELLOUR, 1999. p.10).

gência tecnológica é o surgimento de câmeras fotográficas capazes de fotografar e filmar a partir de um

Este filme, produzido em película na década de 1960,

mesmo equipamento.

tornou-se uma referência no campo da produção audiovisual, pois conseguiu revelar a pluralidade inter-

Esta transformação tecnológica amplia o escopo da

na dos meios, revelando assim a porosidade natural

hibridização dos meios audiovisuais, pois agora é

presentes na fotografia, no cinema e nos meios au-

possível trabalhar ainda mais intensamente a apro-

diovisuais como um todo. Em que medida então os

priação de linguagem, porém existe um limite para

processos de ressignificação dos meios transformam

este processo? Qual seria o ponto em que fotografia

as narrativas visuais? E deste processo de transfor-

e cinema deixariam de representar suas identidades

mação, o que permanece como essência dos meios?

essenciais?

Imagem e Tecnologia A tecnologia da informação aplicada aos meios de comunicação provocou um profundo processo de digitalização das mídias, ampliando largamente as possibilidades de aproximação das linguagens audiovisuais decorrente da sua configuração em base numérica, ou seja, digital. Inicialmente, a tecnologia digital no campo das imagens facilitou os processos de edição e pós-produção,

Paris. Stephen Wilkes. 2015

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Cristiano Franco Burmester

Fotografia: essência e hibridismo

O fotógrafo norte-americano Stephen Wilkes cria

podendo ser explícita ou implícita. Sua concepção fi-

imagens que em sua concepção visual final revelam

nal permite uma abertura ou um fechamento, como

a passagem do tempo em um período extenso, reve-

por exemplo, Akira Kurosawa executou em seu filme

lando o transcorrer do dia até o cair da noite sobre

Ran. Durante o filme há diferentes momentos de

uma mesma paisagem. Aqui, ao contrário da foto-

parada, onde cavaleiros ou exércitos permanecem

grafia do francês Jacques Henri Lartigue que suscitava

imóveis, quase congelados como em uma fotogra-

o transcorrer do tempo para fora do quadro, o olhar

fia, forçando ali uma pausa para a reflexão antes do

se volta para o interior, provocando a imaginação e

avançar do pensamento, da história e do filme.

o entendimento do observador pela ruptura com a linguagem fotográfica até então. A imagem final é

Já a co-criação é o mecanismo do trabalho realiza-

uma montagem de mais de 1000 fotos capturadas

do em conjunto com outro meio. Podemos observar

em intervalos regulares durante um período de

este processo em diferentes produções multimidiá-

aproximadamente 12 horas. A concepção estática

ticas, onde uma peça audiovisual é composta por fo-

da fotografia se vê subvertida pela nítida percepção

tografias, trechos de vídeos, narração, áudio e texto.

da extensa duração do tempo de registro.

La Jetée também é um bom exemplo de produção em co-criação.

Mecanismos de Ressignificação Narrativas Visuais Para entendermos melhor os processos de hibridização dos meios, particularmente da fotografia, é

Em meio à efervescência das transformações, qual é

importante compreendermos alguns dos mecanis-

o espaço a ser ocupado pela fotografia contemporâ-

mos de tradução em operação nas aproximações e

nea? O campo entre a narrativa e o estático parece

distanciamentos da fotografia com os demais meios

delimitar uma área ampla o suficiente para que a fo-

audiovisuais.

tografia possa se colocar, mantendo suas características essenciais, ao mesmo tempo em que acolhe e

Provavelmente o mecanismo mais próximo da ori-

expressa o seu potencial de hibridismo.

gem fotográfica é o registro, que se coloca não apenas como um meio, mas como um fim, ou seja,

Os processos de hibridização dos meios acontecem

permite que uma fotografia represente a realidade

pela operação de mecanismos de tradução que ao

visível, à semelhança ou não de qualquer outra for-

se colocarem em ação reforçam as características

ma de expressão.

essenciais dos meios, ou seja, uma imagem híbrida somente adquire esta condição na medida em que

O mecanismo da transferência é o deslocamento de

se torna mais evidente a essência do meio em ques-

um meio para o outro, a exemplo, do que realizou

tão, seja ele a fotografia, o cinema, o vídeo ou outra

o diretor francês Chris Marker em seu filme La Jetée.

forma de expressão do campo audiovisual.

Ali, as fotografias foram deslocadas para o audiovisual, na medida em que foram editadas e montadas

De qualquer maneira, o processo de hibridismo tam-

como uma película cinematográfica, proporcionan-

bém ocorre por purificação, criando assim zonas on-

do uma passagem das imagens do tempo passado

tológicas distintas, e não somente por mecanismos

para o tempo presente, característica inerente da

de tradução (LATOUR, 1994. p.16).

linguagem cinematográfica (SOULAGES, 2010; p.279) Ao mesmo tempo em que pensamos a convergênA referência é outro mecanismo em operação,

cia tecnológica e os mecanismos de tradução e suas 13


Cristiano Franco Burmester

Fotografia: essência e hibridismo

reelaborações de linguagem, podemos perceber

ambos, a análise constante dos percursos das trans-

que as traduções entre os meios acontecem mais

formações é provavelmente o método mais eficaz

intensamente nos indivíduos do que na tecnologia.

tanto para o olhar crítico quanto para a reelabora-

Em sua origem, é o humano que catalisa os proces-

ção criativa.

sos de transformação. A aceitação de que o contexto cultural atual é híbrido Como resultado deste processo de reflexão sobre

em sua essência pode colaborar para as proposições

as transformações das narrativas fotográficas, al-

metodológicas, na medida em que o entendimento

gumas observações apontam para caminhos tanto

dos processos passa a ter igual relevância quando

para o pesquisador quanto para o realizador. Para

comparado à necessidade de nomeação dos signos.

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Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme* Eliane Vasconcelos Diógenes (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutoranda / UNIFOR, professora) elianevd@uol.com.br Raphaela Areias da Silveira Miquelete (UFU, graduada) raphaela_miquelete@hotmail.com RESUMO: Este trabalho se propõe a examinar os modos de apropriação da fotografia e vídeos domésticos em documentários, nos quais o diretor, sob efeito do impacto da morte ou da ausência de uma pessoa do seu complexo familiar, busca resgatar a própria história. Investigamos a intencionalidade e a forma de apoderamento destes recursos estilísticos midiáticos na construção da memória através da linguagem cinematográfica. Revisitamos a história do cinema documental para observar a emergência deste modo de narrativa e seus desdobramentos contemporâneos no cenário brasileiro. Verificamos que, ao inserir estes recursos na montagem, o documentarista procura resgatar suas histórias íntimas e trágicas na trama entre memória e estética, favorecendo identificações do receptor. Deste modo, estas histórias deixam de ser apenas particulares, passando, também, a públicas. PALAVRAS-CHAVE: documentário, fotografia, vídeo doméstico. Introdução

publicadas e fomentar memórias comuns? Propomos uma discussão sobre o deslocamento dessas

Este trabalho se propõe a examinar os modos de

imagens para a realização de filmes atraentes, não

apropriação da fotografia e vídeos domésticos em

ficando circunscritas ao universo dos indivíduos

documentários, nos quais o diretor, sob efeito do

envolvidos. Para este debate, destacamos algumas

impacto da morte ou da ausência de uma pessoa do

obras referenciais na história do cinema documental

seu complexo familiar (pai, mãe, irmão, tio), busca

a fim de observar a emergência deste modo de nar-

resgatar a própria história. Investigamos a forma de

rativa e seus desdobramentos contemporâneos no

se assenhorar destes recursos estilísticos midiáticos

cenário brasileiro: Diário de uma busca (Flávia Cas-

na construção da memória.

tro, 2010), Elena (Petra Costa, 2012) e Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013).

Nestes documentários assistimos a busca afetuosa do documentarista em recuperar, dignificar, inúme-

O uso do arquivo familiar na composição do

ros fragmentos da história de sua família, contando,

filme autobiográfico

como recurso fundamental, o arquivo familiar composto por fotografias, vídeos domésticos, cartas,

O gesto de apropriação de imagens de arquivo se

certidões, restos de objetos, lembranças. Rastros de

intensifica cada vez mais no cenário audiovisual con-

histórias íntimas.

temporâneo. Desde o final dos anos 80, expressar a vida íntima do documentarista aparece como uma

Uma questão nos coloca a pensar: como essas ima-

tendência forte do documentário, o que envolve o

gens particulares do documentarista podem ser

movimento de retomada de imagens domésticas.

*Esta pesquisa é beneficiada pela política de fomento da CAPES/PROSUP.

15


Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete

Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

Os documentários costurados com narrativas au-

O vasto acervo deixado pelo pai e avô conta o coti-

tobiográficas são compostos também de imagens

diano comum e trivial da família. São horas de filme

extraídas de acervos privados. Os efeitos desse pro-

em 8mm e uma questão para o cineasta: que fim dar

cedimento são complexos, produzindo obras poten-

a essas imagens? Se, com um olhar descuidado, os

tes, o que chama atenção da crítica cinematográfica.

filmes domésticos parecem harmônicos e ingênuos,

(LINS; REZENDE; FRANÇA, 2011; LINS; BLANK, 2012).

com mais acuidade e atenção revelam as contradições, os conflitos incipientes. A intimidade não é

Fotografias e vídeos, vestígios de histórias e memó-

assim tão plácida e sorridente. Berliner enxerga na

rias, guardados em baús esquecidos e mofados de

representação idealizada da família, a farsa. (MON-

família, são trabalhados para entrar na composição

TEIRO, 2012).

fílmica. Imagens carregando uma certa fragilidade, inexatidão, revelam e confundem ao mesmo tempo,

Seus filmes são feitos de aparentes insignificâncias,

demonstrando suas insuficiências para recuperar

nas quais ele encontra sentido. Coisas pequenas,

o passado. Deste modo, faz-se necessário o docu-

acontecimentos menores, histórias banais. Os epi-

mentarista trabalhar estas imagens no compasso do

sódios cotidianos não têm nada de grandioso, são

desmontar e remontar, estabelecer relações, fazer

uma oposição ao heroísmo, aos reconhecidos vito-

séries, interpretar. (LINS; REZENDE; FRANÇA, 2011;

riosos. Narram uma série de conquistas ínfimas, os

LINS; BLANK, 2012).

mínimos comuns.

O processo de evocar nuances da sua própria tra-

Em 2003, Jonathan Cauette lança na cultura audiovi-

jetória requer tocar em camadas menos visíveis de

sual a obra Tarnacion, sobre a relação com sua mãe;

imagens e sentidos. Assim, imagens perdidas, dis-

os transtornos psicopatológicos dela são interliga-

persas, guardadas sem critério de organização ou,

dos à nuances da vida do filho, atando o nó entre

aparentemente, sem sentido são apropriadas, des-

eles. O diretor recupera vasto arquivo pessoal: fitas

locadas, contextualizadas, passando por um proces-

de VHS, filmes caseiros em Super-8, fotografias e fi-

so de ressignificação. A operação da montagem pro-

tas de áudio. Assistimos à abertura do baú de me-

move construções, invenções de novas memórias.

mórias da família, à explicitação da intimidade.

(LINS; BLANK, 2012). Tarnation é um documentário que, do ponto de vista Nos EUA, Alan Berliner realiza documentários mar-

da construção narrativa, vale-se de recursos ampla-

cados pela dimensão autobiográfica, memória, fa-

mente utilizados pelo gênero ficcional. Flagramos o

mília e inaugura uma forma específica de compo-

tratamento surpreendente da montagem no proces-

sição do filme, estruturada em fotografias e vídeos

so de construção da narrativa. Na obra, a instância

amadores. Destacamos os documentários: Intimate

temporal é completamente manipulada pela organi-

stranger (1991) e Nobody’s business (1996). A singula-

zação da montagem dos materiais arquivados por

ridade do cineasta está justamente na maneira de se

Jonathan. Se Tarnation é a história de uma trajetória

apropriar das imagens caseiras, em sua maioria pro-

de vida contada quase exclusivamente a partir de

duzidas por seu pai e avô, enxergando aí histórias

materiais de arquivo, é o modo como o diretor os

encobertas. Como em um trabalho de mineração,

articula que vai delimitar a estrutura temporal que

as histórias estão para serem extraídas e lapidadas,

tece a narrativa. (COELHO; ESTEVES, 2010).

criando narrativas que extrapolam o âmbito privado. (MONTEIRO, 2012).

16


Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete

Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

Fluxo das imagens do arquivo particular para o

médio no receptor, um interesse nas imagens como

espaço público nos documentários brasileiros

testemunhos políticos, históricos; o olhar se susten-

recentes: Diário de uma busca, Elena e Os dias

ta pela via da busca de informações. Já o punctum

com ele

provoca um afeto pungente, um arrebatamento; a fotografia atinge o receptor de modo a causar-lhe

No Brasil, o documentário Diário de uma busca evoca

uma ferida, um incômodo, algo inominável. Assim, o

a militância de Celso de Castro, pai da diretora, na

studium está sempre codificado e o punctum, não. Na

ditadura militar. Ele morreu em circunstâncias mis-

composição do filme de Flávia, o uso das fotografias

teriosas na presença da polícia, em 1984. A cineasta

é permeado significativamente pela ordem do punc-

busca recuperar memórias e questionar a versão

tum, pela potência das imagens em nos sensibilizar.

oficial deste fato. O documentário começa mostrando as circunstâncias da morte de Celso. Flávia resga-

No documentário Elena, Petra Costa vasculha as in-

ta fotografias publicadas nos jornais da época, dos

terações entre sua vida e a história da sua irmã, que

laudos e arquivos públicos da polícia. Apresenta a

se matou quando ela tinha sete anos. Assistimos a

versão oficial da história para, em seguida, proble-

um mosaico que consiste na exposição de fotogra-

matizá-la, denunciando contradições e lacunas. As-

fias, filmes domésticos, gravações de fitas k7, cartas

sim, ela se empenha no questionamento da versão

e desenhos, através de um fluxo vertiginoso. As vá-

oficial, que indica suicídio. A diretora não logra êxito

rias mídias reproduzidas são amplamente explora-

na conquista de certezas para se contrapor, porém

das numa narrativa epistolar e bem sucedida, possi-

desmancha a exatidão da perícia policial. (DIÓGE-

bilitando íntima identificação do público.

NES; MOTA, 2014). A composição do filme se constitui de diferentes texFotografias, pertencentes à acervos pessoais e pú-

turas das imagens de fotografia e filmes de família.

blicos, são exibidas no filme demonstrando o forte

Este material flui no compasso da nostalgia, no ritmo

entrelaçamento entre memórias pública e privada.

da “memória inconsolável”. Inscreve-se o processo

A exibição de fotografias do arquivo particular é um

do luto para tocar na morte. Assim, diante da invia-

gesto recorrente da realizadora para narrar histórias

bilidade de significação desta perda, a narrativa as-

de fugas, desaparecimentos de pessoas queridas. A

sume um tom profundamente lírico, os enigmas são

narração no tom intimista e afetivo acompanha a se-

bordejados e o tom poético se sobressai na medida

quência das fotografias. O espectador é convocado

em que o discurso subjetivo e metafórico avança. Os

a olhá-las como se estivesse diante de um álbum de

vídeos caseiros são contaminados pela perspectiva

família. Este procedimento estilístico injeta na com-

performática. Um forte desejo de ficcionar ronda o

posição fílmica um certo tom doloroso da saudade.

processo de realização: a presença marcante da mú-

Flávia Castro pontua o quanto sua infância e adoles-

sica, a combinação da voz em off de tom melancóli-

cência foram marcadas pelos caminhos tortuosos

co e as imagens de arquivo de Elena, o tratamento

do pai, consequência dos rumos violentos da política

das imagens, as paradas das imagens, as fusões e

na América Latina.

colorizações.

Barthes (1984) aborda dois conceitos, studium e

O documentário Elena nos lança aos estudos sobre

punctum, que nos ajudam a compreender o fenô-

filme de família. Segundo Roger Odin (1995, 2010),

meno causado pela apresentação das fotografias ao

os filmes domésticos são marcados profundamen-

longo deste documentário. Há fotografias que ope-

te pelas cenas do cotidiano e por pessoas que não

ram pela ordem do studium, o que suscita um afeto

estão preocupadas com as regras cinematográficas, 17


Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete

Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

portanto, não intencionam realizar um filme pro-

Na montagem do filme, há a inclusão de um curioso

priamente dito. O cineasta familiar funciona como

material de arquivo: imagens em Super-8, registros

um agente catalisador ao acionar encontros. O ma-

domésticos de outras famílias. Durante a exposição

terial é comumente uma miscelânea de imagens tre-

de algumas destas imagens, ela anuncia de manei-

midas, borradas e mal enquadradas, planos curtos

ra repetida em voz off a frase “este não é meu pai”;

ou longos demais. O filme de família tende a ser um

como se o estivesse procurando, ou evidenciando

filme incompleto, não contando uma história. São fil-

sua ausência no meio daquela sequência de ima-

mes abertos, fragmentados, dispersos.

gens sequestradas de arquivos alheios.

Para Odin (1995, 2010), a potência de um filme de

Jacques Rancière (2013) defende a tese de que o

família se baseia exatamente na sua falta de aca-

documentário nos possibilita problematizar a me-

bamento, na sua feitura considerada malfeita pelo

mória. A realização do documentário não se funda-

julgamento estético criterioso, o que deixa brechas

menta na perspectiva de conservá-la, mas de criá-la.

para as pessoas recriarem suas próprias narrativas

Afinal, memória é um certo arranjo de signos, ves-

e memórias, isto é, quanto menos perfeito o registro

tígios; o passado sai do terreno da certeza para se

audiovisual for, mais possibilidades de reinvenção

posicionar na ordem do duvidoso. A memória deve

da história familiar. Montar um filme de família as-

constituir-se tanto contra a superabundância das

segura o poder ao documentarista sobre a narrativa,

informações quanto contra sua falta. A memória se

causando muitas vezes um “mal-estar”, um descon-

constrói na montagem, na maneira de entrelaçar

forto geral. As discordâncias sobre as interpretações

série de imagens heterogêneas, fragmentos de fil-

das imagens criam tensões.

mes, depoimentos dos entrevistados, sobrepondo imagens e sons. No ritmo do ziguezague, a monta-

Àlvarez (2010) comenta que estes documentários ex-

gem restringe ou alarga a capacidade de sentido e

pressam conflitos. Os registros domésticos ganham

de expressão das fotografias e filmes domésticos.

inusitada carga de sentido, remetendo o espectador

Assim, memória rima com fabulação e, em alguma

às lacunas da existência humana. Neste filme, isso é

instância, o cinema documentário é um modo de se

flagrante quando são exibidas imagens alegres e, ao

ficcionar. No filme Os dias com ele, esta perspectiva

fundo, há o contraste de uma narração em tom de

de articulações entre memória e fabulação se revela

tristeza. Assim, a narrativa não ilude o espectador

na composição fílmica, onde, para dar conta destas

quanto à condição espetacular das imagens domés-

“imagens que faltam”, a diretora “cria” a sua própria

ticas. Muito pelo contrário, os registros domésticos

memória.

ganham significações muito mais complexas. Considerações finais No documentário Os dias com ele, Maria Clara Escobar coloca o espectador como testemunha da sua

Nestes documentários, assistimos ao modo perfor-

busca pelo pai, Carlos Henrique Escobar. Assistimos

mático de narrar, retomar rastros de histórias de

a filmagem do encontro marcado pelo seu desejo de

família, através da inserção de fotografias e vídeos

aproximações com o pai, quase um desconhecido

domésticos. O trabalho de montagem é fundamen-

para ela. Presenciamos a peleja pelo resgate das me-

tal para a posse fecunda deste acervo íntimo, re-

mórias dele, referentes à sua vida, à época da dita-

sultando numa narrativa envolvente. A memória é

dura militar e, também, à relação dos dois. Durante

construída no fluxo da narrativa, sendo afetada pe-

os diálogos sabemos, gradativamente, das rupturas,

las interferências das emoções. Assim, memória e

distâncias entre os dois no transcorrer da vida.

fabulação se entrelaçam, o documentário se realiza 18


Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete

Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

na tensão entre memória e invenção imaginativa. As

autobiográfico extrapole as categorias estabeleci-

imagens são perturbadoras e têm efeito de espanto.

das, criando linguagem própria e narrativas híbridas. Deste modo, estas histórias deixam de ser apenas

Ao inserir estes recursos midiáticos na montagem,

íntimas e particulares, passando também a públicas

o documentarista expõe suas histórias íntimas e

e universais. A complexidade da vida está contem-

trágicas na trama entre memória e estética. A com-

plada quando exacerbados os limites da arte e suas

binação de mídias permite que o documentário

possibilidades criativas.

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Eliane V. Diógenes / Raphaela A. S. Miquelete

Narrativas autobiográficas no documentário: fotografias e vídeos domésticos na composição do filme

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20


Entre afetos: imaginĂĄrios e fronteiras do horror Coord. Baldomero Ruiz Ortiz (UAM/MĂŠxico)


A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce Thales Figueiredo da Silva (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestrando) thalesfig@gmail.com RESUMO: O que se pretende analisar aqui são as alterações do papel que o zumbi desempenha nos filmes de George Romero e Bruce LaBruce. O primeiro, criador do zumbi do cinema moderno e o segundo um cineasta queer que realizou dois filmes com morto-vivos. Aqui, porém, será tratado mais especificamente do primeiro: Otto; or Up with dead people (2008). Através de uma análise comparativa tentará revelar as convergências e as divergências em como se realiza a criação dessa personagem em tais narrativas, uma vez que ambas se utilizam do zumbi com a preocupação de realizar filmes com críticas sociais. Introdução

uma série de questões de um outro momento, em que uma série de lutas sociais estavam ocorrendo

Os filmes com zumbis começaram a aparecer na dé-

nos Estados Unidos. Noite dos Mortos Vivos (Geor-

cada de 1930. Assim como o cinema hollywoodiano

ge Romero, 1968) irá alterar os paradigmas do fil-

da década, os filmes de terror procuravam narrati-

me de zumbi, ressignificando tal personagem para

vas já conhecidas do público, como maneira de tor-

uma problematização da sociedade norte-america-

nar mais fácil com o público. Os filmes de terror com

na naquele momento. Quarenta anos depois, Bruce

o elemento do morto-vivo já estavam sendo produ-

LaBruce lança Otto; or Up With Dead People (2008).

zidos então com base em histórias já conhecidas,

No filme as posições dos elementos dos filmes de

como Drácula e Frankenstein.

zumbi são novamente alteradas, atualizando esses elementos para trabalhar questões do seu tempo e

Nesse momento uma série de livros e peças com

do seu meio, a comunidade LGBT.

zumbi, vinculado ao vodu haitiano são sucesso nos Estados Unidos. Nesse contexto é produzido White

O zumbi de George Romero

Zombie (Victor Halperin, 1931) baseado num livro e considerado o primeiro filme com zumbi. (GOMES;

Até George Romero realizar seu primeiro longa como

MASSAROLO, 2013, p.198) O filme é uma produção

diretor, Noite dos mortos vivos, o as características do

independente, o que revela a descrença dos grandes

filme de zumbi não tinham sido muito alteradas. Ro-

estúdios nessa temática, mesmo tendo Bela Lugosi

mero, que iniciou a carreira produzindo e dirigindo

no elenco. Nesse período, o zumbi é parte da amea-

comerciais e documentários esportivos, encontrou

ça representada pela alteridade, o estrangeiro, nes-

resistência em achar investidores para um filme que

se caso específico, as culturas caribenhas, em espe-

se passasse na sua cidade: Pittsburgh. Então veio a

cial o vodu haitiano e possibilitando a leitura como

ideia de fazer algo inspirado em I am a legend, livro

um questionamento sobre a miscigenação, num

de Richard Matheson, atraindo dinheiro mais facil-

momento que isso é importante para a sociedade

mente por se tratar com o filme de terror.

norte-americana, em que é posto no papel de vilão esse estrangeiro místico que ameaça a sociedade

Com um forte cunho político, o diretor queria tratar

branca hegemônica.

de temas que o incomodavam na sociedade da época, ele tinha a preocupação de realizar filmes que

Na década de 1960 os filmes de terror materializam

não fossem um filme de terror simples, mas obras 22


Thales Figueiredo da Silva

A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

que “querem transmitir uma visão sobre um gênero

em filmes de terror da época. Wood escreve que a

que não é levado a sério no cinema norte-america-

fácil identificação do terror com o público parte de

no”, se tratando de um “ataque satírico a sociedade

sua forma simples: a normalidade é a ameaçada por

norte-americana” (WILLIAMS, 2003, p.5).

um monstro. (WOOD, 2003) Porém, o que Romero evidencia é que tal normalidade também é extrema-

A principal alteração do zumbi operada em A noite

mente opressiva. Na trilogia de Romero, os micro-

dos mortos vivos foi a retirada da posição de sub-

cosmos da sociedade confinados aos espaços fecha-

serviência em que o zumbi era colocado nos filmes

dos são tão ou mais ameaçadores que os zumbis.

desde a década 30. Agora, eles voltariam a vida sem

Portanto, os filmes retratam essa impossibilidade

estar sobre algum feitiço externo, e sim como uma

de voltar à normalidade, uma vez que ela também

condição biológica, com um objetivo natural, uma

não é interessante aos seus personagens no mundo

vontade de sobreviver através da alimentação de

pós-apocalíptico.

carne humana. Essa mudança tirou os zumbis do seu papel de acessório, posto que anteriormente

Para o presente trabalho, o segundo filme da trilo-

seguiam os comandos de um vilão maior, para se

gia, Despertar dos mortos, se torna mais relevante

transformar no elemento determinante autônomo

por ter personagens homossexuais e se utilizar mais

do terror do filme, conferindo-os o papel de anta-

do humor e do gore, o que o aproxima mais da obra

gonista e medo maior dos protagonistas do filme.

de Bruce LaBruce. No filme quatro sobreviventes –

(GOMES; MASSAROLO, 2013, p.201)

um casal heterossexual tradicional e dois policiais que se conhecem brevemente no começo do filme

Sua obra tem uma série de filmes de zumbi, mas a

- acabam por se refugiar num shopping (espaço me-

sua trilogia original dos mortos na qual se criou as

tonímico da sociedade de consumo neoliberal dos

bases desse zumbi moderno no cinema, nela ele co-

anos 80).

loca no papel de protagonistas (únicos que mantém um senso de humanidade e que conseguem enfren-

Assim que eles chegam nesse espaço a viagem para,

tar a situação sem se entregar a opressão dos outros

e eles começam a desfrutar do shopping, com a mu-

vivos) representantes de oprimidos pela sociedade

lher sendo a única personagem crítica a tal postura.

heteronormativa patriarcal: em Noite dos mortos

Eles então começam a matar os zumbis que estão

um negro; em O despertar dos mortos (1978) um ne-

no shopping para ficar com o espaço e o filme co-

gro e uma mulher; e, em Dia dos mortos (1985) uma

meça a trabalhar os paralelos entre os vivos e os

mulher.

mortos, ambos reduzidos aos seus instintos mais banais, que se comportam igualmente inertes frente

Esses três filmes são essenciais para a alteração do

as atrações do shopping.

gênero e muito representativos do potencial dos filmes de terror, eles “exigem uma redefinição parcial

As relações entre os casais também são bem mar-

dos princípios segundo os quais o gênero opera nor-

cadas e problematizadas no filme. Enquanto o casal

malmente, e eles são mais distintas umas das outras

mantém um relacionamento claro, em que o ho-

- em personagem, tom e significado”. (WOOD, 2003,

mem vai assumindo cada vez mais uma situação de

p.85)

domínio, com a mulher presa ao seu papel doméstico, os outros dois personagens não apresentam

Os filmes expõem a desintegração da sociedade que

tal definição, seja verbalmente seja visualmente, no

se encontra confinada a espaços fechados. Essa al-

que Wood chama de buddy relationship:

teração das forças revela a nova dinâmica proposta 23


Thales Figueiredo da Silva

A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

Despertar dos Mortos explora (e explode) as duas

filme conta a trajetória de Otto, um jovem zumbi

relações de casais dominantes na nossa cultura e

gay, que anda a esmo solitário pelas ruas da Alema-

no seu cinema: o casal heterossexual (indo inevita-

nha, com pequenas lembranças do seu passado até

velmente rumo ao casamento e a suas tradicionais

ser escalado para participar de um filme gay político

regras homem/mulher) e a relação de “camarada-

da diretora Medea Yarn. Sobre os dois personagens

gem” com a sua negação evasiva da sexualidade

o diretor fala:

(WOOD, 2003, p.106). Eu decidi que Medea me representa pelo que sou

O zumbi de Bruce LaBruce

hoje, como cineasta [...] e Otto representa a mim quando eu era uma criança tentando lidar com mi-

Bruce LaBruce irá realizar em Otto;or Up with dead

nha homossexualidade e com o medo da toda a

people (2008) um raro exemplo de filme de zumbi

desaprovação e ódio e violência dirigida aos gays.

que não é de terror. O diretor utiliza-se desse perso-

(ABLEY, 2013, p.47)

nagem para retratar as crises da homossexualidade na sua sociedade. Em entrevista ele mostra como

O tempo de Medea Yarn e de seu filme é um futuro

identifica a vivencia gay ao zumbi, até por se trata-

próximo em que zumbis gays caminham pelo mun-

rem de personagens marginalizados da sociedade

do, mas, ao contrário dos filmes de Romero a socie-

com o personagem do monstro:

dade está funcionando como a nossa, já que não houve (ou está em andamento) um evento apoca-

Se você nunca cruzou um parque público ou ba-

líptico, como usualmente há em filmes de zumbi. Ou

nheiro a noite para sexo gay, é muito parecido com

seja, a sociedade do filme é um retrato da contem-

Noite dos Mortos – figuras sombrias sonambúlicas,

porânea, com zumbis sendo representação de gays,

partes do corpo aparente, gemidos. Então eu pen-

esses por sua vez metonímia de populações que não

so que eu representei esse zumbi de maneira real-

são percebidas pelo restante da sociedade.

mente literal. (ABLEY, 2013, p.46)

Mesmo sem ser um filme de terror Bruce LaBruce Essa postura provocativa, mas que nos filmes procu-

trabalha com uma série de elementos que remetem

ram refletir as vivencias do interior da comunidade

ao gênero, como o zumbi e sua sempre presente

LGBT fazem parte do movimento cinematográfico

possibilidade de praticar o canibalismo. Nesse caso,

ao qual LaBruce pertence: o New Queer Cinema. Esse

além do retrato do consumo literal de pessoas em

foi o nome cunhado pela crítica de cinema feminista

nossa sociedade, esse consumo se dá de maneira

B. Ruby Rich (2004), que em 1992 lançou artigo para

sexualizada. O cinema de terror tem o grande mé-

trabalhar o reconhecimento que filmes indepen-

rito de conseguir transmitir os medos e crises da

dentes de realizadores gays e lésbicas encontravam

sociedade em que é produzido, são “pesadelos co-

naquele ano nos festivais. Ela ressalta que há estilo

letivos” (WOOD, 2003, p.70), a partir daí LaBruce uti-

comum entre as obras com “traços de apropriação e

liza-se da homofobia da sociedade contemporânea

do pastiche, ironia” (RICH, 2004, p.16).

para criar um monstro gay. No entanto, ao colocá-lo como protagonistas em seus dois filmes e bus-

A utilização do zumbi em Otto; or, Up with the dead

car com esse personagem a identificação, revela-se

people é um exemplo dessas experimentações e re-

a impossibilidade dessa realização, uma vez que o

flexões. No filme Bruce LaBruce o zumbi é protago-

próprio personagem encontra dificuldade em se

nista, o que o tira da posição de monstro do filme

entender como indivíduo, vagando num estado de

(ou pelo menos retira um valor negativo desse). O

“não-morte” - como se intitula o estado dos zumbis 24


Thales Figueiredo da Silva

A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

pelo próprio Otto - ou seja, os protagonistas nunca

Outra aproximação possível nos filmes são as per-

estão vivos, mas passivos, em estado de negação de

sonagens femininas fortes. Em Despertar dos Mortos,

um vazio, a morte.

Fran é a única personagem que mantém um comportamento ético frente ao apocalipse, Romero diz

Tanto na obra de Romero quanto no filme de La-

que ela “ela não é a mulher tradicional do filme de

Bruce os cineastas se utilizam do zumbi para criti-

terror […] afinal ela está sempre certa.” (WILLIAMS,

car a sociedade de consumo, eles sendo apenas

2011, p.63) Em Otto temos a cineasta Medea, que

mais uma faceta das características já presentes no

apesar de certo idealismo ingênuo também traba-

mundo dos vivos. LaBruce diz: “zumbis são normal-

lha de maneira progressista. O diretor comenta que

mente conformistas extremamente consumista, que

a personagem foi muito criticado pelo público, fato

comem todos as mesmas coisas, se encontram no

para o qual ele fornece uma explicação: “As pessoas

mesmo espaço, agem parecido”. (ABLEY, 2013, p.46)

não estão acostumadas a personagens fortes, independente, politizada lésbica-feminina, especial-

No caso dos filmes de Romero a representação do

mente no contexto do filme de terror” (ABLEY, 2013,

zumbi pode ser lida por dois pontos de vista. Pri-

p.47).

meiro, eles são os nossos próprios demônios, ou o “nosso próprio mal” (WILLIAMS, 2011, p.51). Isso

Ambos trabalharam para subverter como o gêne-

seria o que Wood classificou como “humanos re-

ro como estava estabelecido. Se Romero recolocou

duzidos para seu “instinto” mais básico” (WOOD,

o zumbi na trama para retratar os marginalizados

2003, p.289). Instintos esses que seriam “produtos

numa sociedade repressora, LaBruce eleva tal apos-

do nosso condicionamento, e esses instintos resi-

ta trabalhando o zumbi como individuo: “Eu quis in-

duais apresentados pelos zumbis são aqueles con-

verter o paradigma e fazer um zumbi que é um out-

dicionados pela sociedade capitalista patriarcal”

sider, um solitário e um desajustado que tem uma

(WOOD,2003, p.289).

aversão a comer carne humana pois ele era um vegetariano quando vivo.” (ABLEY, 2013, p.46)

Nesse ponto os zumbis gays de Labruce diferem dos de Romero, já que para esse os zumbis também são

Otto tem consciência, apesar de não se lembrar de

consumistas como os de Romero, porém não são

grande parte do seu passado, mas ele tem sabe da

tão presos aos condicionamentos da sociedade he-

sua condição. Porém, ao longo do filme ele só é per-

gemônica, uma vez que a continuam a transmitir o

cebido como zumbi quando o veem dentro de uma

vírus de maneira sexualizada, numa forma de elogio

narrativa - seja pela diretora, pela gang homofóbi-

a “anormalidade”.

ca ou pelos gays na festa a fantasia - o que revela certo fetiche da sociedade pelo monstro. A cena em

O segundo ponto é de que se trata de uma metáfora

que o protagonista vai a uma festa a fantasia com a

das populações marginalizadas. Isso começa com o

temática zumbi e desperta o interesse de outro ho-

retrato dos primeiros contaminados. Em Despertar

mem a partir da crença, de seu parceiro, de que ele

dos Mortos uma equipe da SWAT invade um prédio

é apenas uma simulação daquilo que ele realmente

bastante precário, onde habitam populações hispâ-

é deixa evidente a aproximação que LaBruce faz do

nicas e negras. Williams afirma que os “Zumbis se

um zumbi gay a um gay não-alienado. Isso concorda

tornam um novo proletariado que ameaça a orde-

com o significado original do termo queer, que não

nação hierarquia da “ordem das coisas” (WILLIAMS,

se refere apenas a quem tem atração pelo mesmo

2003, p.14)

sexo, mas a uma relação com elementos mais complexos, de questionamentos e não-reprodução da 25


Thales Figueiredo da Silva

A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

sociedade heteronormativa (ARAUJO, 2013).

comunidade LGBT, num discurso que apenas quem faz parte desse panorama pode realizar.

Como a cena revela LaBruce é crítico não apenas com a sociedade heteronormativa, mas também

Essa busca por uma criação que refletisse o inte-

com a comunidade LGBT que busca se adequar den-

rior do grupo queer gerou uma busca por produção

tro dessa sociedade. Isso se revela na sua contrapo-

com linguagem diferente da praticada pelo cinema

sição ao GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against

mainstream. Os filmes de LaBruce carregam uma

Defameation), grupo que combate os estereótipos

forma experimental e problematizam sobre a defi-

LGBT produzidos por Hollywood. A provocação do

nição de gênero, e se utilizam dos elementos con-

diretor revela como ele se coloca como realizador

solidados no cinema de Hollywood como pastiche,

queer:

procurando questionar suas convenções. Enquanto que nos filmes de Romero os protagonistas são os Se Hollywood trata a homossexualidade como per-

vivos que se assustam com essa cena, em LaBruce

turbador e perigoso ou extravagante ou trágico ou

é o próprio zumbi, que já é protagonista do próprio

terrivelmente decadente e estético (o que soa mui-

filme diegético, então em Otto ele opera a identifica-

to preciso para mim até agora), isso deve ser consi-

ção com o monstro/protagonista.

derado como uma indicação do zeitgeist presente. (LABRUCE, 1996, p.27)

Essa posição parece confortável ao cineasta. Enquanto LaBruce aponta uma certa aceitação (e até

Conclusão

glamourização da posição), Romero buscava a construção de uma nova sociedade a partir da desinte-

Se George Romero e outros cineastas da década

gração da hierarquia social. Bruce LaBruce parece

de 1960 e 1970 alteraram o foco do filme de terror

se contentar com as margens, com a possibilidade

dos perigos externos que ameaçavam a sociedade

apresentada em Otto na qual não precisa se obe-

americana para questões internas da própria socie-

decer certas normas sociais, desde que existam es-

dade, Bruce LaBruce por sua vez irá questionar não

paços nas margens em que possam viver alternati-

apenas essa sociedade, mas a reprodução de ele-

vamente, mesmo que ainda tenha que se lutar por

mentos dessa sociedade estabelecida no interior da

esse (pequeno) espaço.

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representações das multidões nos filmes de zumbi.

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Revista Eco-Pós (Online), v. 15, p. 196-216, 2013.

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nitoba, Plug IN Editions, 1996.

nheir@s?. In: Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos Feminismos, 2013, Florianópolis. Seminário In-

RICH, B. Ruby. New Queer Cinema in AARON, Michel-

ternacional Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos

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WILLIAMS, Tony (org.). George A. Romero: Intervie-

sobre construção de mundos no cinema de terror:

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Thales Figueiredo da Silva

A mudança na oposição do zumbi: comparação entre os filmes de George Romero e Bruce LaBruce

WILLIAMS, Tony. The Cinema of George A. Romero:

WOOD, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan...

Knight of the Living Dead. Wallflower Press. 2003.

and Beyond. Columbia University Press, 2003

27


Entre espaços: documentário, fronteiras e mediações Coord. Bráulio de Britto Neves (PUC-Minas)


Frontier Zones: documentários para ler a cidade Luciana Santos Roça, Maria Julia Stella Martins, Nayara Araujo Benatti, José Calijuri Hamra, Marcelo Tramontano (pesquisadores do Nomads.usp, no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) RESUMO: O artigo discute usos do audiovisual, especificamente produções relacionadas ao documentário, para fins de pesquisa e reflexão sobre a cidade contemporânea e os discursos que a constituem. Para tanto, a reflexão é baseada na experiência desenvolvida na Frontier Zones International Summer School, suas propostas iniciais, processos de trabalho e resultados obtidos. A Summer School teve como objetivo explorar fronteiras concretas e simbólicas presentes na cidade por meio da produção de documentários curtos, utilizando o audiovisual como ferramenta para analisar as diversas dinâmicas do espaço urbano. PALAVRAS-CHAVE: documentário, leituras urbanas, cidades. Introdução

do fazer quanto do assistir. Através do assistir, são percebidos estilos e modos de fazer documentário

Diversos autores afirmam, ainda que com diferen-

além do que a própria imagem e som nos fornece.

tes aproximações, que as cidades são compostas de

Enquanto fazer, o método do documentário direcio-

mais do que de seus espaços construídos (HARVEY,

na a atenção e o foco do realizador; além de refletir

2012; JACOBS, 2000; LYNCH, 1982; LEFEBVRE, 1991;

sobre o que grava, em imagem ou som, o realizador

SANTOS, 1996): tão importantes quanto os elemen-

também coloca-se ativamente sobre esse material,

tos físicos da cidade, são as ações, dinâmicas e com-

formando uma representação e construindo um

portamentos das pessoas, formando um todo atra-

discurso. Ambas esferas de fazer e assistir podem

vés da interação entre as diferentes partes que o

se configurar enquanto métodos para entender ci-

constituem. Dessa forma, toda cidade, de qualquer

dades. Estes dois aspectos foram tratados ao longo

porte, contém fronteiras, sejam elas físicas, cultu-

das atividades realizadas na Summer School.

rais, sociais, morais, simbólicas, legislativas, entre outras. Tais fronteiras são todos complexos, tecidos

Compreender as mais diversas camadas das cidades

como redes de relações complementares e confli-

e suas dinâmicas é tema recorrente no trabalho de

tantes (SANTOS, 1979), cujos limites raramente são

profissionais e pesquisadores de muitas áreas do

estanques.

conhecimento, como por exemplo Arquitetura e Urbanismo, Ciências Sociais, Geografia e Arte, e esse

Entende-se que o documentário, assim como argu-

desejo também é presente no Audiovisual e na tradi-

mentado por Bill Nichols (2010), é um conceito que

ção do documentário1. Assim, a prática do documen-

não é distinguido facilmente por não ser encaixado

tário enquanto método para ler cidades contribui

em categorias precisas e imutáveis, além de poder

propondo reflexões e construindo um locus de dis-

possuir estilos e linguagens distintos. Dessa forma,

cussão entre realizadores e público. Enquanto que

para fins de discussão, o presente artigo considera

realizadores obtém outros tipos de aproximação

o processo de produção do documentário enquanto

com a cidade através do “fazer” do documentário,

forma de observação, de enquadramento criativo e de representação sobre algo. É possível afirmar que o documentário enquanto método para ler cidades pode existir tanto na esfera

1 - A temática urbana pode ser exemplificada na tradição do documentário nos filmes de Walter Ruttmann como por exemplo “Berlin: Sinfonia de uma metrópole” (Berlin: Die Symphonie der Grosstadt), além de “O homem com a câmera” (Chelovek s kino-apparatom) de Dziga Vertov.

29


Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano

Frontier Zones: documentários para ler a cidade

devido a construção intensa de representações, a

de aproximadamente dez minutos, sem o uso de

presença da câmera e gravadores de som e as eta-

diálogos ou entrevistas, o que exerce um trabalho

pas de pós-produção, o público, ao assistir, se ali-

diferenciado sobre a linguagem audiovisual. Ao fi-

menta das reflexões que a leitura do documentário

nal, foi realizada uma exibição e discussão dentro do

traz consigo, além do próprio questionamento da

grupo e uma sessão pública em um espaço cultural

perspectiva apresentada, seja por sua temática ou

da cidade.

por sua estrutura cinematográfica. Com essa perspectiva, a Summer School teve como Contexto de pesquisa: Frontier Zones

proposta explorar e realizar leituras de cidades atra-

Internacional Summer School

vés do método de documentário, buscando identificar, entender e explorar fronteiras dos ambientes

A Summer School foi resultado de uma parceria en-

documentados. O uso do audiovisual incentivou os

tre o Instituto de Arquitetura e Urbanismo e o No-

participantes a tomarem diferentes decisões e pos-

mads.usp, ambos da Universidade de São Paulo,

turas perante às situações vivenciadas, promovendo

campus de São Carlos, com quatro universidades

outros olhares sobre o urbano.

alemãs: Leuphana University (Lüneburg), University of Arts and Media (Cologne), HafenCity University

Dentro do programa foram produzidos quatro cur-

(Hamburg), University of Fine Arts (Hamburg). O gru-

tas-documentários pelos participantes. As sinopses

po de tutores foi composto por oito professores de

são:

diferentes especialidades das universidades alemãs, além do palestrante e coordenador brasileiro e equi-

1. Escambo: Fronteiras estão em todo lugar. Sejam

pe de produção do IAU-USP, sendo estes últimos os

elas físicas, humanas, imateriais. Escambo é um

autores do presente artigo. A Summer School foi fi-

curta documentário sobre as trocas que permeiam

nanciada pelo DAAD, Serviço Alemão de Intercâmbio

essas fronteiras, buscando o questionamento so-

Acadêmico, e pelo Ministério Alemão de Educação

bre o que é afinal o espaço que tecemos a nossa

e Pesquisa. Foram selecionados 17 estudantes de

volta, as barreiras que impomos e constantemen-

graduação e pós-graduação de diversas regiões do

te quebramos em relação à cidade, ao outro e a

Brasil, de diferentes formações como Arquitetura,

nós mesmos. (Link: https://www.youtube.com/

Urbanismo, Artes Visuais, Jornalismo, Ciências So-

watch?v=ANmb3zWd5fc).

ciais e também Audiovisual. 2. Grey Light questiona o que acontece durante o

A Summer School foi um evento gratuito que ocorreu

nascer e pôr-do-sol nas cidades? O que essa luz traz

de 20 de julho ao dia 2 de agosto de 2015, nas de-

e revela? O sol brilha para todos nas cidades? O do-

pendências do Instituto de Arquitetura e Urbanismo

cumentário procura discutir o que acontece nessas

da Universidade de São Paulo, campus de São Car-

bordas e zonas de fronteiras que são construídas

los, nos primeiros quatro dias de atividades, deslo-

por muros, mas não somente. (Link: https://www.

cou-se para São Paulo durante cinco dias, quando

youtube.com/watch?v=IlPWJ4RvDUc)

as gravações foram realizadas em diferentes regiões ao longo da linha azul do metrô, após as grava-

3. Sampath: Como se comportam os indivíduos

ções, os participantes retornaram para São Carlos

no espaço urbano? Como diferentes caminhos

e tiveram outros quatro dias de edição de imagem

pessoais se cruzam no espaço comum? Como

e som. Enquanto produto, foi proposto aos partici-

indivíduos constroem territorialidades particula-

pantes realizar um documentário curta-metragem,

res no espaço compartilhado? A observação das

30


Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano

Frontier Zones: documentários para ler a cidade

interações no espaço urbano é capaz de eluci-

A riqueza de discussões e leituras se dá também pela

dar fronteiras sociais? Sampath é um exercício

diversidade de sentidos que o conceito de “fronteira”

do olhar sobre as fronteiras pessoais no espaço

possui. Para além de fronteiras entre cidades e Esta-

compartilhado. (Link: https://www.youtube.com/

dos, as fronteiras na cidade estão também nos im-

watch?v=x680AdGLoKA)

pedimentos físicos: proibição de transitar em determinado espaço demonstrada através de barragens e

4. Framed Freedom foi gravado no Parque da Ju-

placas, ou ordenação e designação da passagem de

ventude, próximo à estação de metrô Carandiru,

pessoas e do tráfego. São impedimentos que proí-

na Zona Norte da cidade. Com uma intensa movi-

bem e ordenam, não necessariamente estabilizando

mentação durante todos os dias, o parque é exem-

as ações, mas que de modo geral influenciam ritmos

plo de diversidade. Ao fundo, funciona até hoje a

e caminhos. Contudo, as diferenciações culturais, so-

Penitenciária Feminina da Capital e o Museu do

ciais, econômicas e simbólicas estão também muito

Carandiru, relembrando o massacre ocorrido na

presentes na cidade, mas não são explicitadas sob a

Penitenciaria do Carandiru em 1992, uma das mais

forma de objetos físicos que assinalam seus limites,

dramáticas violação dos direitos humanos da his-

mas fronteiras simbólicas, como ações e modos de

tória do Brasil. (Link: https://www.youtube.com/

organização.

watch?v=4943HEh8V44)

Assim como Milton Santos (1979, p. 12) assinala, Contexto de discussão: fronteiras como lugares

“nenhuma sociedade tem funções permanentes,

de existir

nem um nível de forças produtivas fixo, nenhuma é marcada por formas definitivas de propriedade, de

A Summer School teve como proposta de abordagem

relações sociais”. As fronteiras, considerando que

o tema “fronteira”. Para identificar as zonas de fron-

também são formadas pela sociedade, inclusive por

teiras na cidade foi feito um recorte espacial para

seus acordos implícitos, portanto, tampouco são

as locações que deveriam se concentrar ao longo

marcadas por formas e funções definitivas. O tran-

da linha azul do metrô. Esse recorte objetivou con-

çado da constituição da intersubjetividade das rela-

centrar os olhares para o eixo norte-sul da cidade

ções sociais, bem como o aspecto cultural por trás

de São Paulo, no qual se podem encontrar diver-

delas, estabelecem fronteiras que não são imutáveis

sos fragmentos da constituição e diferenciação da

ou claramente delineadas. Dessa maneira, é pos-

cidade.

sível afirmar que fronteiras são todos complexos, tecidos como redes de relações complementares e

O recorte espacial, produziu resultados diversos que

conflitantes (SANTOS, 1979), cujos limites raramente

enriqueceram a qualidade de discussões e leituras.

são estanques.

Ler a cidade, assim, significa também identificar os espaços onde a coexistência de diferenças acontece

Sob outra perspectiva, ao mesmo tempo as frontei-

e onde estão os obstáculos para esse intercâmbio.

ras são zonas de contato, sendo interpretadas como espaços de contaminação, atribuindo permeabilida-

Conceitualmente, o termo fronteira se apresenta

de ao invés de uma borda rígida e selada. Apesar

com várias faces, seja vinculado ao conceito de ter-

desta permeabilidade poder originar relações de do-

ritório formal e institucionalizado; de impedimento

minação e sobreposição, pode também originar um

ou obstáculo a ser transpassado; como uma área de

espaço onde há combinação de processos sociocul-

tensão; ou mesmo no sentido de ser contato entre

turais com práticas e estruturas distintas, gerando

diferenças.

outras estruturas, práticas e objetos. 31


Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano

Frontier Zones: documentários para ler a cidade

Como argumentado pelos professores e documen-

grupo se diferenciavam, o que permitiu um apro-

taristas Werner Ruzicka e Bernd Schoch durante a

fundamento do debate sobre as particularidades

Summer School, o uso do equipamento e da lingua-

do espaço por meio da análise do material grava-

gem audiovisual permitem enxergar aspectos e di-

do; tornaram-se instrumentos de diálogos por meio

nâmicas não tão notáveis do espaço, transformando

dos quais cada integrante do grupo conseguia co-

a percepção e, consequentemente, a leitura da cida-

municar de maneira mais palpável a essência da-

de. Isso também foi percebido e constatado pelos

quilo que havia sido desenvolvido na produção do

participantes ao longo do processo de realização

roteiro.

dos documentários. Ultrapassando as intensões prévias do material à A filmagem e o documentário enquanto método

ser captado, o material audiovisual gravado tam-

de leitura das cidades não trata da busca afoita por

bém foi de fundamental importância para que as

imagens únicas, pitorescas ou não usuais, mas sim

percepções individuais dos momentos de gravação

de observar o entorno e refletir, ver significados e

pudessem ser transmitidas no produto final. Neste

sentidos sobre pequenas ações. Assim como Werner

sentido, pode-se dizer que a somatória de perspec-

Ruzicka expôs poeticamente durante o workshop,

tivas do espaço comum, sobre o qual o grupo traba-

“todo o tempo acontece alguma coisa. Até o tempo

lhava, construiu, por meio da produção do material

acontece.”.

audiovisual, parte da complexidade que constitui o espaço real.

Processos: produção de documentários como prática para ler cidades

Deste modo, acredita-se que a produção de um “material audiovisual” torna-se um ponto de con-

É possível aferir que o processo audiovisual se com-

tato do observador com o espaço, um exercício do

porta como uma interface entre os realizadores e a

olhar estrangeiro e de busca por experienciar com

cidade; estabelece assim um locus de contato e co-

o corpo a presença em determinada espacialidade.

nexão, favorecendo relações entre as partes, colo-

Momento em que o observador exercita suas capa-

cando-as em diálogo e estranhamento. No contexto

cidades cognitivas percorrendo e habitando para

da Summer

compreender a complexidade que constitui o espaço em questão.

School, percebeu-se que o uso do audiovisual não apenas transforma dinâmicas e ações do entorno,

Conclusão

mas também propõe outras situações e formas de apreensão da cidade. O processo de produção do

Acredita-se que o processo de realização de docu-

material audiovisual durante a Summer School de-

mentários nessas condições constitua um locus de

monstrou como a complexidade das cidades impac-

comunicação e reflexão conjunta, envolvendo pes-

tou nas percepções individuais dos integrantes de

quisadores acadêmicos e comunidades extracam-

cada grupo.

pos. Trabalhos deste tipo pressupõem a comunicação e a permeabilidade entre áreas de conhecimento

Apesar das intenções de gravação serem previa-

engendrado na transdisciplinaridade.

mente estabelecidas em roteiros, quando os grupos saíram à campo com as câmeras em mãos as

No que tange especificamente a área de Arquite-

percepções individuais apareceram. As imagens e

tura e Urbanismo, constatou-se que o processo de

sons captados por cada integrante de um mesmo

produção de material audiovisual é um exercício 32


Luciana S. Roça / Maria Julia S. Martins / Nayara A. Benatti / José C. Hamra / Marcelo Tramontano

Frontier Zones: documentários para ler a cidade

de compreensão de contextos urbanos de extrema

possam acarretar em determinadas espacialidades.

importância para profissionais que desenvolvem

Indica-se, desta maneira, que a produção de mate-

propostas de alterações no espaço urbano. As refle-

rial audiovisual realizada conforme as práticas des-

xões despertadas não dizem respeito exclusivamen-

critas são exercícios à serem melhor explorados por

te aos contextos estabelecidos, mas também sobre

arquitetos e urbanistas, sugerindo uma aproxima-

o impacto que possíveis transformações urbanas

ção entre as áreas do conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HARVEY, David. Rebel Cities: from the right to the

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Tradução de

city to the urban revolution. New York: Verso, 2012.

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33


Entre tecnologias e imagens expandidas Coord. Cristina Barreto de Menezes Lopes (Unicamp)


Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo Cristina Barretto de Menezes Lopes (Universidade Estadual Paulista - UNICAMP, doutoranda) kitmenezes@gmail.com RESUMO: O presente trabalho propõe analisar uma nova possibilidade narrativa que aparece no campo da produção audiovisual: o cinema locativo - ou locative cinema -, através do projeto “A machine to see with”, produzido pelo grupo inglês Blast Theory. Experimentadas por artistas que atuam no campo das novas tecnologias da comunicação e da informação, propostas desenvolvidas dentro desse contexto apontam como tendências no campo das artes. Muito próximas dos ARG (Alternate Reality Games), essas narrativas invertem a posição do espectador em sua relação clássica com o cinema: ao invés de assistir a um filme dentro de uma sala de projeção, ele agora pode interagir e além de escolher o trecho que quer ver (o que já vinha sendo experimentado em projetos que pensam a interatividade no audiovisual), deve também se posicionar geograficamente, o que permite incluir outras informações sensoriais à narrativa. Através desse processo, são potencializadas as possibilidades de exploração da obra e o espectador deixa sua posição passiva para contribuir na construção da história. Introdução

do mundo. A atração não durou muito tempo, mas deixou um legado importante que será retomado

Pouco conhecida quando se estuda o início da his-

neste texto para refletir sobre a posição do espec-

tória do cinema, a experiência registrada como Ha-

tador diante das novas possibilidades que surgem

les Tours vai ser utilizada aqui como referência para

quando se pensa o cinema aliado à mídias locativas.

o que hoje é conhecido como cinema locativo. De acordo com SANTOS (2007: 180-181), a ideia foi

Para entender esse legado e trazer essa referência

adaptada de uma invenção de Willian J. Keefe, que

para o contexto contemporâneo das novas tecnolo-

utilizou vagões de trem se movimentando em trilhos

gias, este trabalho está dividido em três partes: a pri-

circulares enquanto eram exibidas imagens de fil-

meira parte apresenta o conceito de mídia locativa,

mes de paisagens, simulando uma viagem. George

que será utilizado aqui, através da definição de LE-

C. Hale, um bombeiro de Kansas City, comprou a pa-

MOS (2007) e de projetos que envolvem arte e tecno-

tente dessa ideia em 1904 e a adaptou. Os Hales Tou-

logias de geolocalização; a segunda parte, retoma a

rs de George ainda eram exibidos dentro de vagões

obra A Machine To See With, desenvolvida pelo grupo

de trens, mas nessa versão, eles funcionavam como

Blast Theory - reconhecido internacionalmente por

salas temáticas e as projeções ocorriam em uma tela

trabalhos que exploram aspectos sociais e políticos

frontal, sem que o trem se movesse. Hale também

do uso da tecnologia – associado à mídia locativa e a

instalou mecanismos que reproduziam o áudio dos

terceira parte introduz a ideia de arte e interativida-

vagões em movimento e que simulavam os “sacole-

de, pensada por PLAZA (2003). O texto finaliza com

jos” desses veículos. A ideia fez sucesso nos Estados

um reflexão sobre a construção da narrativa, consi-

Unidos e foi disseminada através de parques de di-

derando a participação do interator1 no enredo e na

versão que atravessaram a fronteira, até o Canadá.

montagem da obra através de dispositivos móveis.

Os programas de cinema eram trocados semanalmente, oferecendo a ilusão de viagens ferroviárias que apresentavam paisagens de diferentes partes

1 - Segundo Murray, o espectador comum passa a ser um interator quando pode realizar ações significativas e ver os resultados de suas decisões e escolhas. (MURRAY, 2001: 127)

35


Cristina Barretto de Menezes Lopes

Mídia Locativa

Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo

entre o ponto de referência do usuário e a estrada mais próxima.

Desenvolvidas para servirem como mecanismos de controle, as mídias locativas ou locative medias são

Outro projeto desenvolvido a partir de mídias loca-

definidas, de acordo com LEMOS (2007), como “um

tivas que também traz uma reflexão acerca do uso

conjunto de tecnologias e processos infocomuni-

das tecnologias disponíveis, foi o Set To Discovey, do

cacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a

Grupo LOCA, de 2006. Propondo um questionamen-

um lugar específico”. São processos de emissão e

to a respeito de temas próprios dos dispositivos de

recepção de informação a partir de um determina-

comunicação móveis (smartphones, GPS) como vi-

do local. Lemos separa as mídias locativas em duas

gilância e invasão da privacidade através de redes

categorias: analógicas - como as placas de trânsito e

sem fio, integrantes do grupo espalharam dispositi-

informativas - “uma placa informando que um deter-

vos eletrônicos em locais públicos que detectavam

minado lugar é uma pizzaria, um hotel ou uma loja

telefones celulares com bluetooth ativo e mandavam

de departamentos pode ser considerada uma mídia

mensagens específicas para essas pessoas, de modo

locativa” - e as digitais, compostas por dispositivos

que elas soubessem que estavam sendo vigiadas.

de comunicação sem fio como GPS, telefones celu-

Aqui, a obra também só se realiza com a participa-

lares, palms e laptops que funcionam através de re-

ção do público, que a partir dessa ação pode perce-

des Wi-Fi, Bluetooth e etiquetas de identificação por

ber a fragilidade da segurança de seus dados. Mas

rádio frequência, RFID.

a narrativa não evolui, já que não é essa a proposta da obra, ou seja, não se trata de um pervasive game

Projetos de arte e tecnologia envolvendo esses dis-

nem de cinema locativo porque não há resposta

positivos tem ganhando visibilidade, tanto pelas ino-

para qualquer reação do interator.

vações estéticas quanto pelas discussões políticas que trazem. O projeto Transborder Immigrant Tool

Mais ligados à produção audiovisual, os projetos

(2009), criado por integrantes do The Electronic Dis-

que envolvem cinema e dispositivos de geolocaliza-

turbance Theater (EDT), vinculado a UCSD (University

ção trabalham com propostas diferenciadas de nar-

of California, San Diego), nos Estados Unidos, cabe

rativa e interatividade. O projeto GPS cinema - Nive

nessa categoria. O grupo, formado por ativistas en-

lives, realizado pelo artista e cineasta Scott Hessels

gajados no desenvolvimento de teorias e práticas

com estudantes de arte e engenharia da Nanyang

voltadas a desobediência civil eletrônica, criou uma

Technological University de Cingapura - está inserido

ferramenta voltada para imigrantes mexicanos que

em um conceito mais amplo de arte interativa, que

atravessam diariamente a fronteira entre os dois

inclui games e not games2, entre outras tendências

países. A partir de um aplicativo desenvolvido por

com propostas relacionadas experiência estética3.

outro professor da UCSD – o Virtual Hiker Tool, um

O convite de Hessels é para que o telespectador

GPS de pulso para pedestres com a função de orientar passeios e caminhadas nos desertos da região de San Diego, o sistema foi modificado e implantado em um aparelho celular simples (um Motorola i455, que já vem com GPS e podia, na época em que o projeto foi desenvolvido, ser adquirido por menos de 30 dólares na internet). O trabalho do grupo foi adicionar informações ao sistema pré-concebido como onde encontrar água, centros de ajuda e distâncias

2 - Termo proposto por Michaël Samyn e Auriea Harvey, do estúdio belga “Tale of Tales”, para definir a produção de narrativas que não se enquadram na categoria de games mas utilizam algumas de suas características com o objetivo de explorar a experiência estética sem focar na concorrência. (<http://notgames.org/blog/2010/03/19/not-a-manifesto/> último acesso em 27/07/2015). 3 - Segundo Henry Jenkins, a experiência estética emerge quando todos os elementos constituintes de uma determinada mídia se unem de forma a criar algo novo (JENKINS, 2005:180).

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Cristina Barretto de Menezes Lopes

assista ao filme através de um dispositivo móvel

Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo impotence of citizens confronted by global capitalism.

4

com GPS, como um palm top (PDA) ou um smartphone. Dependendo do posicionamento geográfico na

O projeto combina elementos de jogos pervasivos,

cidade - neste caso Cingapura - o telespectador tem

teatro e caminhadas pela cidade. Smartphones são

acesso a cada uma das nove partes do filme.

utilizados para direcionar e controlar as etapas narrativas enquanto o interator é convidado a uma

A maneira como Nine Lives foi construída faz com

reflexão relacionada ao sistema de controle. Cada

que não seja necessário que o telespectador circule

usuário segue uma rota similar, mas ao interagir

por todos os locais para entender a história: mesmo

nessa trajetória, transforma a experiência em algo

assistindo a trechos isolados, a história mantem seu

único. O projeto estreou na 01SJ Biennial, Califórnia,

sentido. Por outro lado, a interatividade proposta é

em 2010 e foi apresentado no New Frontier Sundance

muito pequena - ao usuário é permitido apenas que

Film Festival no mesmo ano. Em 2011 participou do

escolha sua localização. Com um grau de participa-

Walker Art Center de Minneapolis e foi lançado no

ção maior que Nine Lives, A Machine to see with exige

Reino Unido no Fringe Festival de Edimburg, perma-

uma postura mais ativa da figura do interator na con-

necendo em temporada por um mês no Festival Digi-

tinuidade da história.

tal Brighton durante o mês de setembro.

A Machine to see with - Blast Theory

A interatividade no cinema locativo

A Machine To See With é um filme produzido para que

A questão da interatividade no cinema é antiga,

o interator assuma o papel principal. Quando o pro-

mas tem sido explorada mais recentemente como

jeto foi exibido, a inscrição podia ser feita via web.

um campo de possibilidades que incluem reflexões

Uma mensagem solicitava o número do celular do

sobre a poética e a estética contemporâneas. O de-

usuário que recebia uma chamada informando o en-

senvolvimento de uma arte interativa – que inclui

dereço para onde ele deveria se dirigir. Ao chegar ao

cinema, teatro, rádio e televisão – está diretamen-

local, o telefone tocava novamente e uma série de

te ligado às mídias e suportes da comunicação de

instruções guiava o indivíduo através da cidade, in-

massa. Antes mesmo de Nam June Paik e do grupo

cluindo a realização por parte deste de ações como

Fluxus apresentarem propostas que incluíam o tem-

esconder dinheiro dentro de um banheiro público e

po real no desenvolvimento da narrativa através de

encontrar-se com um parceiro para a realização de

inovações tecnológicas como a câmera portátil de

um assalto a banco. De acordo com o site do pro-

vídeo e os sintetizadores de imagem e som, a ideia

jeto, A Machine To See With é uma combinação que

de inserir ações ou intervenções em tempo real no

inclui características da linguagem audiovisual com

espaço não diegético como alavanca para o avanço

a realidade do ambiente urbano além de inserir uma

da narrativa já eram experimentadas. O início da

discussão sobre a crise econômica global.

história do cinema aponta para experiências nesse sentido, quando a distribuição dos filmes era reali-

With the attempted robbery of a bank at its heart,

zada através de rolos independentes e organizadas

money is a recurrent part of the work. It contrasts

segundo a escolha do operador do cinematógrafo. A

the agency of a film star, of a protagonist in a heist

ideia se aproxima, de certa forma, do que os Vjings

movie with the reality of the financial crisis. It plac-

fazem hoje, ao manipularem sets de imagens em

es the adrenaline rush of revenge against the steady

4 - Disponível em: <http://www.blasttheory.co.uk/wpcontent/uploads/2013/02/amtsw_tour_pack.pdf>. Acessado em 25/072015.

37


Cristina Barretto de Menezes Lopes

tempo real.

Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo

artístico uma grande confusão conceitual caracterizada, ainda, pela mistura e hibridação de gêneros,

A maioria dos filmes da primeira década tinha ape-

poéticas e atitudes artísticas”.

nas um plano e, quando havia vários planos, eles não eram filmados de forma a se articularem. Os

Conclusão

planos eram vendidos separadamente como filmes individuais, em rolos diferentes. Era o exibidor

A participação do interator na construção da narra-

quem controlava a exibição final, decidindo quais

tiva do cinema locativo merece um reflexão mais

rolos e em que ordem seriam exibidos e até em

atenta. Na sua introdução à segunda edição do livro

que velocidade as cenas seriam mostradas. (...) os

“A Obra Aberta”, ECO (2003) defende que toda obra

primeiros filmes eram formas abertas de relato e

de arte é aberta: além de possibilitar várias interpre-

que a coerência narrativa não era inerente aos fil-

tações, a obra aberta apresenta-se de várias formas

mes, mas estava no ato de apresentação e recep-

e cada uma delas é submetida ao julgamento do

ção. (MASCARELLO, 2006:25).

público.

De acordo com Julio Plaza “o conceito de arte inte-

O Hales Tours proposto por Hale pode ser entendido

rativa expande-se no começo dos anos 80 com a

como precursor de projetos que envolvem mídias

aparição das tecnologias ligadas ao cabo telefônico,

locativas através da experiência individual do es-

que se tornam o suporte de eventos relacionados

pectador (memórias e sensações pessoais). Através

ao videotexto, fax, slow scan e outros meios” (PRA-

de dispositivos móveis de geolocalização, é possível

DO, 2003:15), mas é a partir dos anos 1990 que o

pensar na expansão dessas possibilidades ao trans-

conceito passa a ter umas relação mais próxima às

formar o espectador em interator: ao invés de levar

tecnologias digitais. Os papéis de autor e receptor

o espectador a uma sala temática, adaptada de um

– espectador, incluindo a relação que se estabelece

vagão de trem, simulando uma viagem, a narrativa

entre esses dois atores no cinema, são transforma-

pode se desenvolver através de um roteiro prévio,

dos: o espectador deixa de ter um papel passivo e

definido pelo usuário, promovendo sensações mais

assume a co-autoria da obra. Nesse sentido é impor-

próximas ao real.

tante lembrar que não basta apenas agir para contribuir na elaboração da obra.

O projeto A Machine To See With, mostra algumas possibilidades nesse sentido e apontam para um

O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez

universo amplo a ser explorado. A ideia pode agre-

de simplesmente submeter-se às determinações

gar outras propostas nesse campo: é possível trazer,

do aparato técnico, é subverter continuamente a

por exemplo, experiências mais próximas a ques-

função da máquina ou do programa de que ele se

tões específicas de lutas sociais e decisões políticas

utiliza, é manejá-los no sentido contrário de sua

como forma de conscientização ao aproximar o in-

produtividade programada. (MACHADO, 2004: 5).

terator da experiência real vivida por pessoas em zonas de conflito ou situações de vulnerabilidade

PLAZA (2003), pensa as novas tecnologias da comu-

social, por exemplo. Trabalhos realizados por ci-

nicação como uma nova categoria de arte, a partir

neastas que propõem discussões profundas envol-

do conceito de interatividade. Ele aponta para o des-

vendo questões políticas poderiam ganhar novos

locamento, no século XX, “das funções instaurado-

contornos e ampliar os desdobramentos discursivos

ras (a poética do artista) para as funções da sensi-

que já suscitam.

bilidade receptora (estética), o que produz no meio 38


Tecnologias e narrativas audiovisuais – Do Hales Tours ao Cinema Locativo

Cristina Barretto de Menezes Lopes

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39


Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema* Marina Mapurunga (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, professora mestra do curso de Cinema e Audiovisual e Artes Visuais) marinanimula@gmail.com - www.sonatorio.org RESUMO: Com a revolução tecnológica surgem milhões de possibilidades para o audiovisual. Cada realizador pode criar seu modo de fazer audiovisual. O cinema já nasce como um experimento e se mantém assim até hoje, investigando novas ferramentas a partir das tecnologias de nosso tempo. Neste trabalho apresentamos uma das experiências que busca outras formas de pensar/fazer cinema realizadas no Laboratório de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora – Sonatório, projeto de extensão da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na cidade de Cachoeira-BA. O Sonatório vai propor um corpo-tela/corpo-sonoro. Nesses corpos são projetados samples visuais por meio da técnica de video mapping. O som é realizado em tempo real pelos corpos-telas a partir da linguagem de sinais soundpainting regida por um painter (compositor-regente). PALAVRAS-CHAVE: corpo-tela, corpo-sonoro, soundpainting. Outras formas cinema

convergem entre si: a sala escura de cinema, a projeção da imagem em movimento e o filme que con-

Com a revolução tecnológica surge uma série de

ta uma história. Na forma cinema, “a experiência do

possibilidades para o audiovisual. Cada realizador

cinema esteve confinada nos contornos da tela e na

pode criar seu modo de fazer audiovisual. O cinema

linearidade temporal.” (MACIEL, 2009, p. 15).

já nasce como um experimento e se mantém assim até hoje, investigando novas ferramentas a partir

Porém, o cinema não se confina a esta “forma cine-

das tecnologias de nosso tempo. O cinema sempre

ma”, pois esta é apenas uma das formas em que o

foi um campo de pesquisa. Arlindo Machado (1997,

cinema pode se encontrar. O cinema está para além

p. 211) disserta que se pensarmos em um sentido

de uma sala escura, de uma projeção e de uma his-

mais expandido do cinema, seguindo a etimologia

tória. O cinema se desvia, é múltiplo, variado, com

da palavra cinematográfico (do grego: kínema- éma-

ramificações e imbricações. Isso porque o cinema se

tos + gráphein, escrita do movimento), o cinema se-

reinventa de diversas maneiras. Um pós-cinema, ou

ria uma das formas de expressão mais antigas da

melhor, outra(s) forma(s) cinema(s), busca soluções

humanidade, surgida na pré-história, quando o ho-

inovadoras que rompe com formas e práticas já “fos-

mem projetava imagens em sombras, formadas por

silizadas” pelo excesso de repetição. O cinema pede

suas mãos, nas paredes das cavernas.

mais do que sua forma cinema, há mais camadas. Vários conceitos surgem para explanar este outro ci-

Durante o percurso vital do cinema, uma “forma

nema que vai surgindo. O cinema experimental abre

cinema” acaba por se constituir como dominan-

as portas para outros espaços, outras telas, outras

te, hegemônica, é o cinema convencional. Segun-

sensações e maneiras de perceber o cinema.

do Parente (2009, p.23), esta forma cinema envolve três elementos de três dimensões distintas que

Gene Youngblood lança seu livro Expanded Cinema

* Apoio institucional: Pibex (Programa Institucional de bolsas de Extensão Universitária)/ UFRB.

40


Marina Mapurunga

Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema

(Cinema Expandido) na década de 1970, em um mo-

hibridização entre diferentes mídias. [...] O cinema

mento de transição entre a Era Industrial e a Era

expandido é o cinema ampliado, o cinema ambien-

Cibernética. Esse Cinema Expandido o qual Youn-

tal, o cinema hibridizado.”. O cinema expandido se-

gblood aborda não seria filmes de computador, nem

ria mais voltado a um processo de radicalização do

projeções esféricas, não seria somente um filme, se-

cinema experimental, por meio dos happenings e de

ria “um processo de se tornar uma unidade histórica

performances com o uso de projeções múltiplas e/

contínua do homem para manifestar sua consciên-

ou em outros espaços além da sala de cinema, geral-

cia fora de sua mente, à frente de seus olhos” (YOU-

mente combinando a projeção com outras expres-

NGBLOOD, 1970, p.41, tradução nossa). Ou seja, o

sões artísticas. O cinema expandido tenta criar um

Cinema Expandido seria um processo de expansão,

processo de participação do espectador intensifi-

de externalização, das ideias do homem, como uma

cando os efeitos perceptivos visuais e sonoros sobre

forma de aprimorar a percepção humana. Esse cine-

seu corpo.

ma não estaria ligado apenas a uma disciplina, mas a várias relações no ambiente, especialmente à rede

Nos anos 2000, Katia Maciel nos traz o conceito de

intermídia do cinema e da televisão, que funcionaria

transcinema, o qual ela utiliza para

como o “sistema nervoso da humanidade”. Dentro de sua obra, Youngblood cria várias vertentes para

definir uma imagem que gera ou cria uma nova

esse Cinema Expandido. Entre elas está o cinema

construção de espaço-tempo cinematográfico, em

sinestésico (synaesthetic cinema) que sai da mente

que a presença do participador ativa a trama de-

e transforma-se em visualidade, gerando sentidos

senvolvida. Trata-se de imagens em metamorfose

além da visão que são estimulados pelo processo

que podem se atualizar em projeção múltipla, em

criativo. O cinema sinestésico é, para Youngblood

blocos de imagem e de som, e em ambientes inte-

(1970, p. 77, tradução nossa),

rativos e imersivos. (MACIEL, 2009, p. 17).

1

a única linguagem estética adequada ao ambiente

Os transcinemas seriam formas híbridas entre as ar-

feita pelo homem pós-industrial, pós-alfabetizado

tes visuais e o cinema que envolvem o espectador

com sua rede multi-dimensional simulsensorial de

sensorialmente em um espaço criado. Os transcine-

fontes de informação. É a única ferramenta estéti-

mas representariam o cinema como interface, “como

ca que se aproxima do continuum da realidade da

uma superfície em que podemos ir através” (MACIEL,

existência consciente na não-uniforme, não-linear,

2009, p. 17, itálico da autora). Maciel vai citar, como

não-conectada atmosfera eletrônica da Idade Pa-

exemplo de transcinema, instalações cinematográfi-

leocibernética. [...] o cinema sinestésico transcende

cas nas quais podemos, como participadores, atra-

as restrições de drama, história e enredo e, portan-

vessar o espaço da tela, não apenas mental e visual-

to, não pode ser chamado de um gênero.

mente como também fisicamente. O participador “experimenta sensorialmente as imagens espaciali-

Porém, antes mesmo de Gene Youngblood utilizar o

zadas, de múltiplos pontos de vista, bem como pode

termo Cinema Expandido, autores do cinema expe-

interromper, alterar e editar a narrativa em que se

rimental, como Jonas Mekkas, já se utilizava desse

encontra imerso” (MACIEL, 2009, p. 18).

termo. Segundo Parente (2009, p. 41), diferentemente do que pensa Youngblood, o cinema expandido se caracteriza “por duas vertentes: as instalações que reinventam a sala de cinema em outros espaços e as instalações que radicalizam processos de

1 - “Conceito criado pelo artista plástico brasileiro Hélio Oiticica para tornar o espectador parte da obra, que não existe sem a sua participação. Por exemplo, um Parangolé, sem que o participador o vista, é apenas uma capa pendurada num cabide.” (MACIEL, 2009, p. 17, nota da autora).

41


Marina Mapurunga

Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema

Outro cinema é o live cinema, como o próprio nome

composição sonora por meio de improvisação livre

já aponta é o cinema ao vivo. Este não é como o cine-

utilizando instrumentos musicais, objetos sonantes

ma do início do século passado, em que os músicos

e o corpo. Uma das técnicas de improvisação uti-

executavam a música ao vivo durante a projeção de

lizadas em nossos ateliês foi o Soundpainting. Esta

um filme silencioso. Esse live cinema de hoje iniciou

foi criada em 1974, por Walter Thompson, em Nova

no Brasil e no mundo nos anos 2000 com a figura

York e atualmente tem alcançado vários grupos no

do VJ.

Brasil. O Soundpainting é uma linguagem de sinais/ gestos, universal e multidisciplinar, utilizada para a

O live cinema é permeado por imagens visuais e so-

composição em tempo real para músicos, atores,

noras transformáveis, vivas, recombinantes e trans-

dançarinos e artistas visuais. Atualmente, a lingua-

mutáveis por meio de manipulações, reconstruções

gem é composta por 1200 gestos. Estes gestos são

e ressignificações em tempo real. O live cinema é

sinalizados por um soundpainter (compositor) que

uma apresentação de artista(s) que se utiliza(m) de

indica aos performers o tipo de material que deve

elementos visuais e sonoros que são manipulados

ser executado. Thompson (2006, p.4) apresenta uma

ao vivo (MOSTRA LIVE CINEMA, 2014).

sintaxe para a indicação dos gestos pelo soundpainter: Who (Quem?), What (O que?), How (Como?) e

Os softwares de edição, programação e mapeamen-

When (Quando?). Em primeiro lugar, o soundpainter

to visual e sonoro em tempo real, como Isadora,

indicaria o sinal de quem executaria o que está sen-

Processing, Modul8, Resolume, Video MadMapper,

do pedido: instrumentistas de cordas, sopro, percus-

Ableton Live, PureData, Max/MSP, entre outros, têm

são, cantores, atores, artistas visuais ou até mesmo

sido importantes ferramentas para os artistas de live

uma única pessoa para realizar a ação. Segundo,

cinema. Cineastas como Francis Ford Coppola e Pe-

viria o sinal do que seria executado, por exemplo:

ter Greenway e artistas multimídia como os japone-

nota longa e grave. Em terceiro lugar, como essa

ses Ryoji Ikeda e Daito Manabe estão agregados e

ação será realizada, por exemplo: se é com pouca ou

desenvolvendo pesquisas neste cinema que tem se

muita intensidade, lento ou rápido. Por último vem

tornado mais visível ao longo destes últimos anos.

o gesto de quando a ação será executada: se entra aos poucos ou imediatamente. Ou seja, o soundpain-

O lugar do cinema não é somente em uma sala es-

ter primeiro indica quem realizará, depois apresenta

cura com uma projeção em que há uma narrativa já

qual o conteúdo, as modificações do conteúdo e lan-

pronta, fechada, delimitada. O cinema é repensado,

ça o “vai” para os performers. Além, destes parâme-

re-formado, a “forma cinema” é colocada em ques-

tros há os “modos” e os “palettes”. Os modos são um

tão. Por meio desse pensamento, partirmos para

conjunto de variáveis que afetam gestos específicos

nossa experiência cinematográfica no Laboratório

e os palettes são seções de música, texto, coreografia

de Pesquisa, Prática e Experimentação Sonora – So-

ou design visual já escritos/ensaiados. Trabalhamos

natório, projeto de extensão da Universidade Fede-

no Sonatório com os gestos base do primeiro Wor-

ral do Recôncavo da Bahia – UFRB.

kbook de Soundpainting de Walter Thompson.

Corpo-tela, corpo-sonoro

O Sonatório é formado por alunos de Cinema e Audiovisual e Artes Visuais, pela professora coordena-

Em Julho de 2015, realizamos uma série de ate-

dora e um professor colaborador e, algumas vezes,

liês sonoros no Sonatório que visava a exploração

recebemos participantes externos a UFRB que par-

da experimentação de atividades sonoras, desde

ticipam de nossas oficinas. Nestes ateliês, tínha-

a composição sonora por meio de software até a

mos muitos alunos que não eram músicos ou não 42


Marina Mapurunga

Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema

tocavam instrumentos musicais, logo foi necessário

video mapping. Cada corpo que iria performar rece-

algumas aulas extras sobre teoria musical e um tra-

bia um mapeamento a partir de sua silhueta. Esse

balho de preparação vocal e corporal para que nos-

mapeamento acabava por fazer com que cada cor-

so instrumento principal fosse nossas vozes e nos-

po se tornasse estático, pois qualquer movimento, o

sos corpos. Junto a isso, aderimos objetos sonantes

mapeamento era desfeito. Para ter uma maior mo-

às performances de soundpainting. Estes objetos fo-

bilidade era preciso ter sensores que não tínhamos.

ram construídos no ateliê de criação de Objetos So-

Para a projeção ficar mais nítida, procurávamos usar

nantes, feitos a partir de materiais recicláveis. Estes

roupas mais claras, mas não cobríamos todo nosso

foram utilizados pelo grupo como percussão.

corpo. Cabeça, mãos e pés sempre estavam expostos. Nestas experiências iniciais, nos aproximamos

Algumas performances de soundpainting procuram

mais de um cinema de sensações, sinestésico, uti-

dividir grupos de músicos, atores, artistas visuais e

lizando formas geométricas e orgânicas e cores. As

dançarinos. Em nossas performances, todos podiam

formas visuais eram indicadas pelos gesto de palet-

cantar, tocar, atuar, dançar e iluminar (quando usá-

tes (formas já ensaiadas e combinadas antes da per-

vamos lanternas). Apenas o artista visual, que pro-

formance). As cores, do modo RGB, vermelho (Red),

jetava, ficava mais restrito a projeção e a improvisar

verde (Green) e azul (Blue) eram indicadas com os

poesias.

gestos de notas agudas (R), médias (G) e graves (B). Pensamos em como as formas poderiam se relacio-

Durante nossas experimentações com o soundpain-

nar aos sons, que cor teria um certo som ou qual

ting, percebemos que este teria uma relação muito

seria a forma de um respectivo som. Cores com me-

próxima com outras formas de cinema (cinema ex-

nos brilho teriam sons mais graves, com mais brilho

pandido, transcinemas, live cinema). O soundpainter

teriam sons mais agudos. Formas pequenas teriam

seria esse montador ao vivo, uma espécie de DJ/

sons curtos, formas grandes com sons graves. Nesse

VJ ou um diretor que monta seu filme ao vivo. Mas

processo, tivemos muitas influências das obras de

onde estaria o filme? Se voltarmos à pré-história, po-

Norman McLaren, Oskar Fischinger e John & James

demos dizer que o pré-cinema estava lá, nas caver-

Whitney.

nas, o “homo kínema” criando seu cinema por meio de seu corpo, com as sombras de suas mãos. Por

Considerações finais

que não pensar agora esse corpo com outras funções? Um corpo-sonoro e um corpo-tela? Essa ideia

As experiências realizadas com o soundpaiting e com

partiu de um ensaio o qual começamos a projetar

corpo-sonoro/corpo-tela foram uma tentativa de

formas geométricas nos performers, logo pensamos

realizar um cinema expandido ao vivo, com múlti-

em como poderíamos usar estes corpos como tela

plas telas não convencionais por meio de sensações,

além de já ser um corpo-sonoro. Esse corpo-sonoro

relacionando imagens visuais abstratas a seus possí-

é o corpo que vibra, que realiza sons através do can-

veis sons. Nos primeiros experimentos, ainda sentía-

to, da percussão corporal, da execução de um ins-

mos uma imersão mais voltada à performance que

trumento/objeto, da fala, do assobio. Além de sono-

uma imersão cinema, isso se deu ao utilizarmos as

ro, queríamos que este corpo fosse agora receptor

projeções como uma espécie de “roupa”, de um efei-

de imagens visuais.

to para o corpo do performance. Chegamos a nos apresentar no evento Quartas Experimentais realiza-

Os primeiros experimentos utilizando a projeção nos

do em Cachoeira em Agosto de 2015 e o que ocor-

corpos foi pensando em como esta projeção poderia

reu foi de a projeção servir somente como efeito. A

ser desenhada neles. Isso foi resolvido por meio do

partir disso, nas experiências seguintes, buscamos 43


Marina Mapurunga

Corpo-tela, corpo-sonoro: outras formas de pensar/fazer cinema

dar mais atenção às imagens, não fazer delas mera-

apresentações com soundpainting e cinema. Acredi-

mente um efeito. Para alcançarmos uma imersão ci-

tamos que o processo de experimentação nos ajuda

nema, precisaríamos entender som e imagem como

a refletir sobre questões que vão surgindo durante

um bloco único, os dois com a mesma importância,

a prática. Às vezes, realizamos algo querendo che-

um complementando o outro.

gar em um ponto X, porém acabamos encontrando outros caminhos e nos deparamos com um ponto Y

Atualmente, ainda estamos em processo de ex-

o qual acaba por nos levar a uma rede para outros

perimentação,

pontos.

realizando

ensaios,

oficinas

e

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas.

_______. Cinemáticos: Tendências do Cinema de

Campinas, SP: Papirus, 1997

Artista no Brasil. Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013

MOSTRA LIVE CINEMA. CONCEITO: Live Cinema, o

THOMPSON, Walter. Soundpainting: the art of live

futuro é agora! Mostra Live Cinema. Disponível em:

composition, Workbook Volume 1. New York: W.

<http://www.livecinema.com.br/artigo/77>. Acesso

Thompson, 2006

em: 01 ago. 2015 YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. P. Dutton PARENTE, André. A forma cinema: variações e

& Co., Inc., New York, 1970

rupturas. In: MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009

44


Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games Denner Mark Hall (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Pós Graduação) dennerhall@gmail.com RESUMO: O presente projeto visa analisar as estruturas narrativas, estéticas e produtivas na criação de jogos eletrônicos independentes ou como são conhecidos indie-games. Para isso serão discutidos os bem sucedidos jogos Fez (2012), Limbo (2012), Transistor (2014) para contextualizar e exemplificar o universo dos indie games. Os três jogos possuem distinção entre si dentro de suas temáticas, linhas artísticas, e mecânicas de jogo, ao mesmo tempo estes convergem paralelamente entre si dentro de uma classificação categórica no mercado de jogos eletrônicos. O outro ponto importante a ser discutido neste projeto será conceitualizar os indie games dentro de um gênero próprio, explorando assim um universo onde as facilidades dos meios produtivos e de distribuição ajudam a proporcionar uma liberdade artística e autoral deste tipo jogo digital. PALAVRAS-CHAVE: jogos digitais, produção independente, distribuição digital. Conceitualizando os Indie Games

atende uma demanda de mercado alternativo e por serem graficamente mais simples esses títulos

O movimento independente dos jogos digitais re-

podem ser reproduzidas em um maior número de

presenta uma ruptura nos parâmetros estéticos das

plataformas.

grande produções dentro dessa mídia. Esse formato de produção permite uma maior liberdade na con-

Parâmetros Narrativos e Estéticos

cepção das estruturas narrativas, estéticas e interativas desse jogos produzindo assim obras mais dis-

É importante compreender a natureza narrativa que

tintas entre si quebrando com as convenção já pré

a maioria dos games modernos apresentam junto

estabelecidas na indústria que tende em produzir

aos processos interativos que compreendem o seu

games cada vez mais foto-realistas que demandam

campo lúdico e qual a representação semiótica que

um alto valor de produção, além de requisitarem

essa fusão produz. Vale lembrar que a concepção de

um maior poder de processamento computacional

espaços diegéticos nos jogos eletrônicos contempo-

para serem reproduzidos. Estes jogos digitais de bai-

râneos está lado a lado com os espaços diegéticos

xo orçamento recorrem da originalidade dos auto-

do cinema e da televisão, e a construção de uma lin-

res para construírem suas mecânicas de jogo e seus

guagem que diferencia e delimita fronteiras entre os

arcos narrativos dentro de universos graficamente

games e outras mídias está em constante evolução.

mais simples, menos cinematográfico, e consequentemente, considerados menos realista dentro dos

Na coletânea de textos The medium of the videogame

parâmetros da indústria de games.

(Mark J. P. Wolf, 2001) o autor discorre:

Por serem produções de baixo orçamento a escolha

Quando os jogos eletrônicos surgiram o conceito

na distribuição digital permite dois pontos vanta-

de mundo diegético empregados em filmes e te-

josos: A diminuição nos custos de produção e um

levisão já havia se tornado familiar ao público. Os

maior alcance de público já que esse tipo de obra

video games utilizam muito da gramática visual

45


Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games

Denner Mark Hall

dessas mídias na construção de seus mundos, e

extremamente familiar para um jogador através da

foi possível serem construídos em cima de con-

releitura de mundos diegéticos criadas nos jogos

venções estabelecidas (WOLF, 2007 p. 94, tradução

eletrônicos das décadas de 80 e 90 uma celebração

1

nossa)

ao retro como no caso de Fez (Polytron Corporation, 2012) ou então eles podem ser compostos por ele-

Dessa forma foi possível que os jogos eletrônicos

mentos visuais totalmente abstratos. A liberdade

construíssem seus alicerces narrativos nas conven-

criativa nesse modelo de produção artística é extre-

ções já pré estabelecidas pelas mídias audiovisuais

mamente ampla e permite a criação de jogos mais

mais tradicionais. A própria tela dos jogos eletrôni-

destintos entre si. No caso de Fez é possível observar

cos, do cinema e da televisão representam estâncias

o uso de recursos transmidiático em sequências do

semelhantes e suas representações linguísticas tam-

jogo aonde há o uso de um leitor de códigos para

bém se assemelham.

smartphone que permite progredir no seu mundo diegético.

Ao jogarmos um jogo digital classificado como uma grande produção, triple A game2, e um indie-game

Muitos indie-games são graficamente “cartuniza-

notamos de imediato, do ponto de vista narrativo e

dos” criando pontes intermidiáticas com histórias

estético, que um é mais cinematográfico do que o

em quadrinhos, animações ou artes-plásticas. Suas

outro. Notamos também que as estrutura formais

composições narrativas podem dialogar com a lin-

que compõe seus mundos diegéticos se diferem, os

guagem de outras mídias, suas fronteiras intermi-

triple A games tendem representar mundos diegéti-

diáticas são mais livres e transparentes e em muitos

cos mais polidos construídos em cima de gráficos

momentos isso cria um grau de imersão maior pois

foto-realistas compondo mundos virtuais mais pró-

permite ao jogador agir de forma mais ativa nas es-

ximos da realidade, mais próximos do formato fílmi-

tâncias narrativas do jogo.

co, mesmo quando possuem temáticas fantasiosas. Já os indie-games tendem a ser menos realistas, seus

Para que haja narrativa é preciso haver texto dentro

universos diegéticos podem ser menos detalhados

do campo lúdico dos games, esse texto do qual me

utilizando de diferentes técnicas de representação

refiro é o processo de se contar uma história que

para se estruturarem textualmente.

dialogue com o jogador por assim dizer dentro do ponto de vista semiótico. O que resta saber é como

A maioria dos indie-games tendem a ser menos tri-

essa história será contada, que tipo de artifícios in-

dimensionais utilizando de efeitos de perspectiva

terativos essa mídia utilizara para uma narratividade

para criar a ilusão de profundidade; muitos jogos

coesa que engloba todos os elementos de seu mun-

eletrônicos independentes são bi- dimensionais e

do diegético, criando unidade.

os que são totalmente tridimensionais costumam ser jogos mais curtos ou jogos sem uma narrativa

Esse é o grande desafio dos games como produção

conduzida. Muitas vezes um indie-games pode ser

artística, a criação de uma linguagem que somente

1 - Trecho original: “By the time the video game appeared, the concept of the diegetic world was already familiar to most audiences through film and television. The video game used much of the visual grammar from these media in the construction of its worlds, and was able to build upon established conventions” 2 - Triple-A Game é a classificação que a indústria de jogos digitais usa para indicar títulos que possuem um alto orçamento em seu desenvolvimento e na sua divulgação promocional.

este veiculo midiático possa produzir, digo isso pois a estrutura dos jogos eletrônicos permite o jogador de ser interrompido das estâncias lúdicas do game pelas próprias intervenções narrativas do seu mundo diegético quebrando assim um pouco o estado de imersão do jogador. Essas intervenções muitas vezes ocorrem como “pausas” nos momentos lúdicos 46


Denner Mark Hall

Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games

do game através de sequência de vídeos conhecidos

da coesão dos diferentes elementos que compõe

como cutscenes. No entanto nos indie games essas

um dado espaço diegético. Um mundo virtual cons-

fronteiras entre o lúdico e o narrativo podem ser

tituído por problemas técnicos que causam quebras

mais tênues.

no progresso do jogador, falhas no comportamento da inteligência artificial e quebras na coesão diegé-

No indie-game Transistor (Supergiant Games, 2014)

tica podem destruir todo o delicado estado imersi-

o jogador é colocado dentro do universo da cidade

vo que o jogador busca. Construir mundos virtuais

futurista chamada Cloudbank, a própria exploração

abertos detalhados e realistas, que possibilitam ao

espacial revela inúmeras unidades narrativas que

jogador uma liberdade de exploração espacial e die-

compõe o grande arco na trama de Transistor trans-

gética exige um alto custo, centenas de horas de tra-

formando a cidade de Cloudbank em um importante

balho e inúmeras correções através de atualizações

personagem na sua complexa narrativa. As mecâni-

no código do jogo. Além disso criar inúmeros even-

cas de jogabilidade, história e cenário se fundem de

tos narrativos em jogos digitais é um processo que

forma coesa proporcionando uma experiência bas-

exige a produção de uma alta quantidade de con-

tante imersiva indo contra as convenções de jogos

teúdo, e essas histórias não podem ser reutilizadas

cinematográficos “hiper- realistas”.

ou usadas de forma genérica (BARTLE, 2009, p. 108). Para os desenvolvedores independentes isso se tor-

Até mesmo ao entrar nos menus do jogo é possível

na inviável.

desvendar vários mistérios sobre o que ocorreu com as pessoas dessa cidade futurística, enriquecendo a

Quanto mais bem resolvido o ambiente de imersão,

narrativa do jogo. As poucas sequências de vídeo

mais ativos desejamos ser dentro dele. Quando as

animado em Transistor passam no pano de fundo

coisas que fazemos trazem resultados tangíveis, ex-

enquanto estâncias interativas ocorrem. Muito da

perimentamos o segundo prazer característico dos

história é contada através da técnica de voz-over

ambientes eletrônicos – o sentimento de agência.

evitando “pausas” narrativas durante a navegação e

Agencia é a capacidade gratificante de realizar ações

o combate. O narrador no caso é a espada da perso-

significativas e ver o resultado de nossas decisões e

nagem principal que serve nas estâncias de comba-

escolhas (MURRAY, 2003, p. 127)

te e jogabilidade dentro dos momentos lúdicos do jogo. A mecânica de jogo é uma mistura de ação e

Dessa forma os desenvolvedores independentes

estratégia por turnos encaixando na proposta de gê-

buscam então trabalhar com diferentes sentimen-

nero de RPG de ação. Caso o game seja jogado na

tos de agencia e evocar outras reações emocionais

plataforma Playstation 4 é possível configurá-lo para

criando novas experiências de jogo. A liberdade cria-

que a narrativa em voz-over seja feita pelo auto-fa-

tiva desse tipo de produção possibilita um tipo de

lante do próprio joystick aumentando sua a imersão.

expressão artística que trabalha com outras semiologias. Segundo Henry Jenkings “Nem todos os ga-

O sentimento de Agencia e Imersão nos

mes contam histórias. Games podem ser abstratos,

Indie-Games

expressivos e de formas experimentais, são mais próximo da música ou da dança moderna do que o

Segundo Janet H. Murray a sensação de imersão é

cinema.” (JENKINGS, 2014 p. 2, tradução nossa)3

estar envolvido por uma realidade totalmente estranha que se apodera de toda nossa atenção, de todo nosso sistema sensorial (MURRAY, 2003, p. 102). O estado de imersão dos jogos digitais é obtido através

3 - Trecho original: “Not all games tell stories. Games may be an abstract, expressive, and experiential form, closer to music or modern dance than to cinema”

47


Denner Mark Hall

Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games

A experiência de jogar o indie-game Limbo (Playdead,

errou para superá-las. Por se tratar de um jogo den-

2010) por exemplo tende a evocar padrões emocio-

tro do gênero puzzle os diversos quebra-cabeças são

nais cheios de simbolismo sem o uso de falas, tex-

resolvidos através desse método, morte e ressurrei-

tos, menus, cutscenes ou até mesmo uma história

ção do personagem jogável, lhe trazendo satisfação

propriamente dita. O raso fio narrativo passa então

momentânea por ter solucionado um desafio para

a ser tecido pela interpretação que cada jogador tem

em poucos passos matá-lo novamente.

dessa semiologia linguística. É difícil delimitar qual seria o objetivo do personaO universo de Limbo pode ser descrito como a frontei-

gem principal de Limbo, o que impulsiona suas ações

ra entre a percepção de duas realidades cognitivas.

como protagonista, é difícil observar um fio de even-

O jogador é colocado para experienciar sentimentos

tos narrativos conduzindo o jogador. Por se tratar

não muito convencionais que vão desde uma admi-

de um game em duas dimensões, a movimentação é

ração pelo estranho e não familiar, a compaixão, a

feita de forma linear com alguns raros momentos de

vulnerabilidade e a admiração pelo mórbido através

exploração, a disposição espacial passa a ser então

dos olhos de um frágil menino em um mundo hostil

um dos instrumentos de progressão na experiência,

e assustador porém totalmente envolvente.

no entanto não é o único. Os desenvolvedores de Limbo souberam utilizar de um fluxo de eventos de

Os desenvolvedores de Limbo buscaram trabalhar o

formas sutis, já que há uma ausência quase incomo-

sentimento de agencia na solução de quebra-cabe-

da de uma trilha sonora, um vazio na maior parte da

ças através do processo de tentativa e erro, por essa

experiência e qualquer sonoridade causa um efeito

razão o jogador está constantemente tendo que li-

dramático.

dar com o efeito dramático causado pela morte de seu personagem nas formas mais pavorosas pos-

“No computador, o contexto dramático de captura

síveis para logo depois ser ressuscitado através de

e fuga pode ser simulado pela manutenção do joga-

4

checkpoints estrategicamente colocados, são atra-

dor num espaço confinado até que um quebra-cabe-

vés desses momentos que o jogador se torna mais

ça seja solucionado. Tais quebra-cabeças são mais

consciente das armadilhas e assim aprende aonde

satisfatórios quando as ações possuem uma corres-

4 - Checkpoints são pontos que salvam automaticamente o progresso do jogador para serem retornados quando necessário.

pondência com o drama, quando elas servem para aumentar nossa crença na solidez e na consistência do mundo ilusório” (MURRAY, 2003, p. 138)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTLE, Richard. Alice and dorothy play together. In

MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da

HARRIGAN, Pat; WARDRIP-FRUIN, Noah (org). Third

narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural:

person: authoring and exploring vast narratives.

Unesp, 2003, p. 101 – 150.

Cambridge: The Mit Press, 2009, p. 108 WOLF, Mark. Space in the Video Game; Time in the narrative

Video Game; Narrative in the Video Game; Genre and

architecture 2014, p 2. Disponível em: <http://web.

the Video Game. In. WOLF, Mark (org). The Medium

mit.edu/21fms/People/henry3/games&narrative.

of The Video Game. Austin: University of Texas Press,

html>. Acesso em 15 de janeiro de 2016

2007, p. 51 – 134.

JENKINGS,

Henry.

Game

design

as

48


Denner Mark Hall

Indie Games: O movimento independente dos jogos eletrônicos; suas inovações técnicas e narrativas e seu sucesso no mercado de games

LUDOGRAFIA FEZ. Produtora: Polytron Corp, 2012. Plataformas:

TRANSISTOR. Produtor2a: Supergiant Games, 2014.

PC, PS Vita, PS3, Xbox 360, PS4.

Plataformas: PlayStation 4, Microsoft Windows, Mac, Linux, IOS.

LIMBO. Produtora: Playdead, 2010. Plataformas: Playstation 4, Xbox One, Playstation 3, Xbox 360 Microssoft Windows, Mac, Linux, SteamOS, IOS, Android, Playstation Vita, OnLive, Wii U

49


Entre memórias, poéticas e afetos Coord. Cyntia Gomes Calhado (PUC-SP/FIAM-FAAM)


Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles* Cyntia Gomes Calhado (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutoranda / FIAM-FAAM, professora) cyntia.calhado@gmail.com RESUMO: Este artigo busca apresentar os pressupostos teóricos que sustentam uma aproximação entre a estética maneirista e a poética do cineasta brasileiro Walter Salles. Situaremos a obra de Salles na proposta de Gilles Deleuze do terceiro estado da imagem, trata-se de uma nova tipologia para o cinema no contexto da sociedade de controle. Propomos estudar o maneirismo como um gesto estético que tem origem nas artes plásticas, e é adotado por cineastas de diversas épocas. PALAVRAS-CHAVE: Walter Salles, maneirismo cinematográfico, poéticas do cinema contemporâneo. O diretor e produtor audiovisual Walter Salles faz

momentos do passado cinematográfico, coloca em

parte da renovação do ambiente cultural brasilei-

relação diferentes tempos e estéticas.

ro pós-redemocratização. Apesar de ser conhecido principalmente por sua atuação como cineasta, pela

Terceiro estado da imagem

qual alcançou repercussão internacional, sua trajetória de mais de 30 anos no audiovisual teve início

A proposta de análise que realizaremos da poética

na televisão. Realizou programas e documentários,

de Walter Salles está embasada no modo de ver a

sendo um dos pioneiros nas produtoras de vídeo in-

imagem contemporânea de Gilles Deleuze em “Car-

dependentes que surgiram nos anos 1980. Sua con-

ta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem”,

tribuição artística mais relevante encontra-se, contu-

texto de 1986. Deleuze relaciona as três funções da

do, no cinema. Até o momento, sua obra é composta

imagem cinematográfica definidas por Daney em A

1

por dez longas-metragens , sendo três deles codiri-

rampa (2007), a seus conceitos de “imagem-movi-

gidos por Daniela Thomas.

mento” e “imagem-tempo”. Se a imagem-movimento pode ser expressa na questão “o que há para ver

Neste artigo colocaremos em evidência o aspecto

por trás da imagem?” e a imagem-tempo em “o que

metalinguístico da poética do diretor que, sendo

há para ver na imagem?”, o teórico aponta para a in-

preponderante em sua autoria, será nomeado pela

suficiência desses conceitos para lidar com os filmes

teoria de cinema de estética maneirista. O manei-

que surgiam nos anos 1970 e 1980. Ele defende, em

rismo envolve um diálogo com formas estéticas do

diálogo com Daney, a existência de um terceiro esta-

passado por meio, por exemplo, de citação a cenas

do da imagem, nomeado Maneirismo.

de filmes que são objeto de culto de determinado cineasta. Este procedimento de citação reatualiza

(…) quando não há mais nada para ver por trás dela,

1 - Jia Zhangke, um homem de Fenyang (2014), Na estrada (2012), Linha de passe (2008), Água negra (2005), Diários de motocicleta (2004), Abril despedaçado (2002), O primeiro dia (1999, codireção Daniela Thomas), Central do Brasil (1998), Terra estrangeira (1995, codireção Daniela Thomas) e A grande arte (1991).

quando não há mais muita coisa para ver nela ou dentro dela, mas quando a sempre imagem desliza sobre uma imagem preexistente, pressuposta quando “o fundo da imagem é sempre já uma imagem”, indefinidamente, e que é isto que é preciso

* O presente estudo é um recorte da pesquisa de doutorado O gesto maneirista na poética de Walter Salles em desenvolvimento sob orientação da Profa. Dra. Christine Pires Nelson de Mello e com apoio do CNPq.

51


Cyntia Gomes Calhado

Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles

ver. (…) a tela não é mais uma porta-janela (por trás

do cinema contemporâneo que privilegiam a me-

da qual…), nem um quadro-plano (no qual…), mas

talinguagem, há o maneirismo, um estilo artístico

uma mesa de informação sobre a qual as imagens

meta-histórico, que surge nas artes visuais. O termo

deslizam como “dados” (DELEUZE, 2013, p. 101-

maneirismo designa um estilo da pintura na segun-

102, grifo nosso).

da metade do século XVI, que se apresenta na obra de Pontormo, Rosso, Parmigianino, entre outros ar-

Ler o cinema de Walter Salles à luz do terceiro está-

tistas que acentuavam os traços de Michelangelo e

gio da imagem nos parece esclarecedor, assim como

Rafael como uma forma de resposta possível ao fim

vincular sua poética ao maneirismo. Porém, diferen-

de um ciclo na história da arte, o Renascimento, em

temente de Deleuze e Daney, propomos o manei-

que um certo ideal de perfeição havia sido atingido.

rismo como uma opção formal adotada por alguns

Na estética maneirista, a forma prima sobre o con-

cineastas, a fim de não transformar o conceito em

teúdo; é uma arte do arabesco por vezes gratuito,

uma categoria totalizadora que abarque o cinema

da elegância, mas também das formas complexas,

contemporâneo em geral.

que favorece assimetrias, deformações. A busca do efeito, a distorção das formas, o privilégio do estilo

Além disso, optamos pela abordagem da sobrevivên-

sobre o realismo caracterizam diversos filmes a par-

cia das imagens do historiador da arte Aby Warburg,

tir dos anos 1970. Propôs-se, então, uma extensão

via leitura de Didi-Huberman (2013). Neste sentido,

da noção de maneirismo ao cinema.

entendemos maneirismo como um gesto estético que tem origem nas artes plásticas, e é incorporado

Se, recuperando a reflexão de Serge Daney, nos fil-

ao cinema. Essa forma estética é objeto de ressignifi-

mes maneiristas, “o fundo da imagem é sempre já

cações variadas realizadas por cineastas em diferen-

uma imagem. Uma imagem de cinema” (2007, p.

tes épocas e pode-se observar sua permanência na

233) e é precisamente a natureza dessas articulações

obra de diretores que produzem atualmente.

formais que deve ser investigada, podemos chegar a algumas conclusões a respeito deste cinema. Dizer

Gesto maneirista e seus procedimentos formais

que o “fundo” de inúmeros planos do longa de Brian De Palma Trágica obsessão (1976), para ficarmos com

Se é de caráter duvidoso afirmar que a realização ci-

um exemplo típico de maneirismo no cinema, con-

nematográfica pode ter sido, em algum momento,

siste em imagens de Um corpo que cai (1958) de Al-

inocente, sem dúvida, na contemporaneidade, é im-

fred Hitchcock, significa mais do que uma mera ho-

pensável conceber qualquer exercício de encenação

menagem ou citação de De Palma a Hitchcock, pois

que não leve em conta seu lugar na história das for-

este procedimento autorreferencial à história do ci-

mas. Com seu centenário, o cinema apresenta uma

nema não é apenas um dos aspectos do filme, mas

linguagem e circuito estruturados – com seus gêne-

sim seu gesto estético principal.

ros, técnicas, parque exibidor e festivais. Ao mesmo tempo em que busca espaço e a reinvenção de suas

Além disso, se a mise en scène dos filmes maneiristas

formas na relação com seus pares audiovisuais - a

necessariamente traz uma releitura de uma imagem

televisão e o vídeo.

cinematográfica precedente, pode-se afirmar que todo filme maneirista é metalinguístico, sem que ele

Nesse contexto, a centralidade do procedimento da

precise trazer a realização cinematográfica em sua

metalinguagem foi uma das vias encontradas por al-

narrativa. Trata-se de uma metalinguagem de outra

guns diretores ao redor do mundo para repotenciali-

ordem, que se realiza no plano formal.

zar e reafirmar o lugar do cinema. Entre as correntes 52


Cyntia Gomes Calhado

Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles

Corroborando esta linha de pensamento, o crítico de

JCA – É curioso que em nossa conversa estejamos

cinema Alain Bergala (1985) defende a hipótese de

todo o tempo falando de uma geografia real. Sinto

que, analogamente ao que ocorrera após o fim do

o filme um pouco mais ligado a uma geografia cine-

Renascimento, o cinema vivia um “momento manei-

matográfica. (…) O Sertão aqui é um pouco menos

rista”, entendido como uma tendência estética que

o Sertão mesmo e um pouco mais o Sertão repre-

se torna predominante com o fim do classicismo, a

sentação cinematográfica do Brasil (…).

partir dos anos 1960, e se intensifica na virada da

WS – Exatamente.

década de 1970 para a de 1980, quando o cinema

JCA – Na verdade não é entrar no Sertão, mas pe-

moderno também atinge um ponto de esgotamen-

gar do Sertão o que existe de imagem dele enquan-

to. Filmes identificados nessa tendência, como Pa-

to expressão cinematográfica. Eu penso no filme

ris-Texas (Wim Wenders, 1984), Estranhos no paraíso

como uma viagem ao Cinema Novo, mais do que

(Jim Jarmusch, 1984), O elemento do crime (Lars Von

uma viagem ao Sertão. (BENTES; MATTOS; AVEL-

Trier, 1984) e Boy meets girl (Leos Carax, 1984), te-

LAR, 1998, p. 7-40).

riam em comum a consciência de ter chegado tarde demais.

Em outro trecho da entrevista, Salles justifica uma sequência do filme - em que os personagens tiram

Traços maneiristas na obra de Walter Salles

uma fotografia que é colocada posteriormente em um monóculo, em uma barraca com a imagem de

Devido à profusão de citações ao Cinema Novo e ao

Padre Cícero - utilizando um argumento metalin-

diálogo com o cinema de Wim Wenders, além de re-

guístico, trata-se de uma vontade de homenagear o

ferências a outros cineastas, acreditamos que a obra

cineasta Wim Wenders.

de Walter Salles abarca características maneiristas. Na ocasião do lançamento de Central do Brasil, em

IV – Aliás pensando na cultura oral do nordes-

entrevista do diretor (WS) para os críticos Carlos Al-

te, no ter que ditar as cartas. Um registro fo-

berto Mattos (CAM), José Carlos Avellar (JCA) e Iva-

tográfico, no monóculo: não é estranho numa

na Bentes (IB), estas marcas metalinguísticas são

região em que os registros são precários?

explicitadas.

WS – Eu preciso confessar pra você, a questão do monóculo é uma questão mais wimwendersziana

CAM – O que você conhecia do Nordeste?

do que nordestina. (…) Os lugares onde a possibi-

WS – Eu tinha, evidentemente, uma memória

lidade da migração é muito presente suscitam a

visual…

necessidade de fixação pictórica das pessoas que

IB: Deus e o Diabo…

partiram. Se você entra numa casa nordestina, (…)

WS – Num primeiro momento uma memória

você encontra um número impressionante de re-

visual que nós todos temos, a herança cinemano-

tratos e imagens que permitem a lembrança da-

vista. (BENTES; MATTOS; AVELLAR, 1998, p. 7-40).

queles que partiram. A questão da imagem não é decorativa (…). Constitui-se numa memória, numa

Se, como apontamos, nos filmes maneiristas, “o

necessidade intrínseca quase que de sobrevivên-

fundo da imagem é sempre já uma imagem. Uma

cia. Uma forma de resistir é lembrar a pessoa que

imagem de cinema.” (DANEY, 2007, p. 233), vejamos

se foi (ibid.).

como a colocação de José Carlos Avellar é elucidativa a respeito da apropriação da história do cinema bra-

Existe uma possibilidade de dupla leitura do tre-

sileiro realizada por Walter Salles.

cho acima citado. A explicação que o cineasta realiza da importância da imagem no Nordeste pode 53


Cyntia Gomes Calhado

Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles

ser expandida, tendo em vista o conteúdo de suas

Consideramos a metalinguagem o procedimento

demais falas durante a entrevista. Podemos recon-

formal preponderante dos filmes maneiristas, assim

textualizar seu discurso na problemática da imagem

como aponta Serge Daney, já que neles, “o fundo da

no período da crise do cinema dos anos 1980, con-

imagem é sempre já uma imagem. Uma imagem de

sequência dos impactos do vídeo e da televisão. As

cinema” (2007, p. 233) e é precisamente a natureza

diversas inserções na narrativa do filme de índices

dessas articulações formais que deve ser analisada.

metalinguísticos, como as citações ao Cinema Novo,

Este procedimento autorreferencial à história do ci-

a Wenders, além de fotografias, imagens da icono-

nema não é apenas um dos aspectos dos filmes ma-

grafia cristã, referências à história das artes visuais,

neiristas, mas sim seu gesto estético principal, aquele

quadros e do dispositivo ótico do monóculo, pode-

que norteará as demais escolhas fílmicas. Se a mise

riam ser interpretadas como um ato de resistência,

en scène dos filmes maneiristas necessariamente

de preservação da memória do cinema, de sua histó-

traz uma releitura de uma imagem cinematográfica

ria, de seus mestres: Uma forma de resistir é lembrar

precedente, pode-se afirmar que todo filme manei-

a pessoa que se foi.

rista é metalinguístico, sem que ele precise trazer a realização cinematográfica em sua narrativa. Trata-

Considerações finais

-se de uma metalinguagem que se realiza no plano formal.

A aproximação que propomos entre a estética maneirista e a poética do cineasta Walter Salles tem

Por meio de trechos de entrevistas concedidas por

como pressupostos teóricos a contextualização da

Walter Salles na ocasião do lançamento de Central

obra de Salles no terceiro estado da imagem, defi-

do Brasil, buscamos apontar as afinidades entre o

nido por Deleuze como uma nova tipologia para o

discurso reflexivo do realizador sobre o filme e o

cinema na sociedade de controle. Consideramos o

gesto maneirista. Além disso, ressaltamos que as

maneirismo como um gesto estético que tem ori-

diversas inserções na narrativa do filme de índices

gem nas artes plásticas, e é adotado por cineastas

metalinguísticos, como as citações ao Cinema Novo,

de diversas épocas, a partir da perspectiva da sobre-

a Wenders, além de fotografias, imagens da icono-

vivência das imagens de Aby Warburg, via leitura de

grafia cristã, referências à história das artes visuais,

Didi-Huberman (2013), que defende uma concepção

quadros e do dispositivo ótico do monóculo, pode-

anacrônica da história da arte como um jogo de pau-

riam ser interpretadas como um ato de resistência,

sas, crises, saltos e retornos periódicos de estraté-

de preservação da memória do cinema, de sua his-

gias formais.

tória, de seus mestres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTES, I.; MATTOS, C. A.; AVELLAR, J. C. Conversa

Central do Brasil:
Uma análise da reelaboração da

com Walter Salles - O documental como socorro

identidade nacional à luz das teorias pós-modernas.

nobre da ficção. In: Cinemais, Rio de Janeiro, n. 9,

São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado) - Programa

jan./fev. 1998.

de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São

BERGALA, A. D’une certaine manière. In: Cahiers du

Paulo.

Cinéma no. 370, abril de 1985. DANEY, S. A rampa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. CALHADO, C. G. O dualismo cidade e campo em 54


Cyntia Gomes Calhado

Relações entre a estética maneirista e a poética de Walter Salles

DELEUZE, G. Carta a Serge Daney: otimismo,

OLIVEIRA JR., L. C. G. de. O cinema de fluxo e a mise

pessimismo e viagem. In: Conversações. São Paulo:

en scène. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado)

Ed. 34, 2013.

– Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de

DIDI-HUBERMAN,

G.

A

imagem

sobrevivente:

São Paulo.

história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS BOY MEETS GIRL. Leos Carax. França, 1984, filme 35

PARIS-TEXAS. Wim Wenders. Alemanha/Estados

mm.

Unidos/França/Reino Unido, 1984, filme 35 mm.

CENTRAL DO BRASIL. Walter Salles. Brasil/França,

STRANGER

1998, filme 35 mm.

Alemanha/Estados Unidos, 1984, filme 35 mm.

FORBRYDELSENS

ELEMENT.

Lars

Von

Trier.

Dinamarca, 1984, filme 35 mm.

THAN

PARADISE.

Jim

Jarmusch.

VERTIGO. Alfred Hitchcock. Estados Unidos, 1958, filme 35 mm.

OBSESSION. Brian De Palma. Estados Unidos, 1976, filme 35 mm.

55


Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo Renato Coelho Pannacci (Unicamp, doutorando / UAM, professor) RESUMO: Apontamentos acerca do longa-metragem Corpo Presente (2013), dirigido por Paolo Gregori e Marcelo Toledo, abordando o histórico dos realizadores, anteriormente membros da produtora independente Paraísos Artificiais, bem como questões relativas ao processo de produção da obra. Rodado ao longo de alguns anos e finalizado

picada e Riocorrente, Corpo presente se alinha a uma

em 2012, Corpo presente é o primeiro longa-metra-

vertente de cinema especialmente paulistano, isto é,

gem da dupla de cineastas Marcelo Toledo e Paolo

a de filmes que não apenas retratam ou se passam

Gregori, experientes curta-metragistas no cenário

na cidade de São Paulo, mas nos quais a metrópole

do cinema de São Paulo, tendo realizado diversos

desempenha papel fundamental e central para as

filmes desde o início dos anos 1990.

tramas, ou maior, para que os filmes possam mesmo existir.

Foi nessa época que Gregori e Toledo integraram a Paraísos Artificiais, junto com Christian Saghaard,

Na trama, acompanhamos um dia na vida de três

Debora Waldman e Paulo Sacramento; produtora

personagens: Alberto (Marat Descartes), um agente

que durou pouco tempo, mas que foi responsável

de funerária e frequentador de raves, em dívida com

por uma instigante produção de curtas, filmes ra-

agiotas; Cynthia (Simone Iliesco), manicure em um

dicais como Noite final menos cinco minutos (1993,

salão de beleza e dançarina num clube noturno, que

Waldman), Sinhá demência e outras histórias (1995,

se aventura no universo da prostituição; e Beatriz

Saghaard e Carlos Botosso) e Mariga (1995, Gregori),

(Raissa Gregori), operária em uma fábrica e admira-

entre outros.

dora de punk rock e tatuagens.

Amigos próximos e discípulos das ideias de Jairo Fer-

Diversamente de outros filmes na mesma vertente,

reira, legatários de um cinema de verve mais inventi-

em Corpo presente as trajetórias desses três persona-

va (ou do que JF nomeou de Cinema de Invenção), o

gens pouco se encontram, ou mesmo suas histórias

grupo da Paraísos Artificiais, após a curta e embrio-

se entrecruzam de forma aprofundada. Também

nária existência da produtora, vem agora no século

não temos certeza se o dia tratado na vida de cada

XXI se aventurando em interessantes incursões no

um dos personagens retratados seria o mesmo. Pela

formato de longa-metragem. E ainda, mesmo que

forma que o filme é estruturado, tudo indica que sim,

em diferentes doses, continuam bebendo na fonte

mas tampouco isso importa. O que de fato envolve

do Cinema Baudelairiano.

os três personagens é uma determinada atmosfera da cidade de São Paulo, pela qual parecem por vezes

Paulo Sacramento realizou, em 2003, o documen-

levados, ou melhor, sugados.

tário O prisioneiro da grade de ferro, e mais recentemente Riocorrente (2013). Já Christian Saghaard

Mas é fato que também estão lá referências a cer-

rodou, em 2008, o enigmático e pungente O fim da

tas tradições do cinema de São Paulo. Seja através

picada. Do grupo, apenas Debora Waldman, talvez a

de ecos do cinema de Carlão Reichenbach, ou mes-

mais talentosa, aparentemente abandou o cinema.

mo alusões ao cinema da Boca do Lixo e algumas de suas convenções. E isso sem contar a atuação –

Assim

como

ocorre

em

O

fim

da

e magnífico papel – de David Cardoso, a impagável 56


Corpo presente, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo

Renato Coelho Pannacci

participação de Alfredo Sternheim e a ponta de Dar-

Dessa maneira, o quarto personagem presente no

lene Glória.

roteiro original foi cortado (“Jonas, um taxista viciado em corridas de jockey”, como define Paolo Grego-

Corpo presente é um filme no mínimo estranho, no

ri), e através de uma nova montagem e articulação

qual o registro das atuações foge dos padrões mais

das cenas dos três personagens remanescentes foi

convencionais (pelo menos no âmbito do cinema

finalmente edificada a montagem final do longa-me-

brasileiro), mas que ao mesmo tempo dialoga com

tragem, com seus 75 minutos de duração, tendo es-

um cinema de cunho mais popular. É pena que não

treado no circuito comercial já em 2013.

exista mais público para o cinema por estas bandas. Ou pelo menos para o cinema que não atende aos

Mas, ao fim, o que realmente surpreende é a unida-

padrões e que, consequentemente, não embolsa as

de estética e narrativa que o filme demonstra, certa-

vantagens da máquina publicitária da Globo Filme$.

mente pautadas na firmeza de ideias e propostas da dupla de diretores, bem como na apurada e enxuta

Já em termos de produção, o processo de feitura

fotografia de Aloysio Raulino.

de Corpo presente é daqueles que expõe as dificuldades e percalços por vezes enfrentados por realizado-

Nas palavras de Gregori, Corpo presente “é um filme

res brasileiros, no sentido de conseguirem efetiva-

que foi feito para ser visto por um público que gos-

mente produzir seus filmes. Desde meados dos anos

ta de cinema, mas um filme que não encontrou o

2000, havia a ideia do longa-metragem para cinema,

seu espaço, pois este já não existe. Um tipo de cine-

na verdade não com três, mas com quatro persona-

ma diferente, mas autêntico, para um público não

gens cujas histórias se alternavam na narrativa.

elitizado.”

Primeiro Gregori e Toledo realizaram o curta Corpo

Fica a sensação de que em outros tempos, antes

presente: Beatriz, projeto contemplado pelo Prêmio

da massificação exercida pela televisão, quando o

Estímulo ao Curta-metragem e lançado em festivais

público brasileiro ainda efetivamente frequentava

em 2008, com 20 minutos de duração. Posterior-

as salas de cinema para assistir aos filmes brasilei-

mente realizaram o telefilme Corpo presente: Alberto

ros, Corpo presente e outros filmes com potencial

e Cynthia, com duração de 56 minutos e exibido na

popular – mas que fracassaram nas bilheterias -,

TV Cultura, na grade intitulada “Telefilmes Cultura”,

como Falsa Loura (2007, Carlos Reichenbach), certa-

no fim de 2009.

mente encontrariam seu lugar ao sol.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo:

RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro.

Limiar, 2000.

São Paulo: Art Editora, 1987.

GHIDETTI, Carolina. Paraísos Artificiais: Novos rumos em tempos de crise in Revista Aurora/PUCSP. São Paulo: 2009.

57


Memória afetiva na obra de Wenders Ricardo Tsutomu Matsuzawa (Universidade Anhembi Morumbi, doutorando em Comunicação Audiovisual) e-mail: ricado_matsuzawa@yahoo.com.br RESUMO: A pesquisa busca analisar as relações da cinefilia dos realizadores em suas obras. Os elementos fílmicos que são reapropriados de acordo com a memória afetiva em produções/reproduções que organizam um novo sentido ou uma outra perspectiva. Esta reflexão tem como objetivo apontar as convergências entre elementos formais estabelecidos, a apropriação de cenas emblemáticas, as releituras e a constituição da subjetividade dos modos autorais em uma nova configuração da referência apropriada. Como objeto inicial de análise destaco o realizador Wim Wenders e o seu filme Um filme para Nick (1980). O estudo pretende avaliar como e de que forma as apropriações aparecem na obra de Wenders e como estas metáforas audiovisuais se configuram como uma marca simbólica nas suas produções. PALAVRAS-CHAVE: Nicholas Ray, memória, Wim Wenders. Um filme para Nick nasceu do desejo de Wim Wen-

poucos” (WENDERS, 1986, p.167).

ders e Nicholas Ray de realizarem um filme juntos. Naquele momento, Ray estava à beira da morte e

Wenders de folga na realização de Hammett se en-

esquecido pela indústria cinematográfica americana

contra com Ray, que estava com câncer, fazendo

por não se curvar a ela. Wenders enfrentava os pro-

quimioterapia. Nick já tinha dito a Wenders o seu de-

blemas de tentar se inserir nela com os problemas

sejo de realizar um filme de baixo orçamento. Apro-

de produção em Hammett (1982). Wenders deseja-

veitando a oportunidade deste tempo livre, partiram

va que o filme fosse uma oportunidade de retorno

de uma ideia de Nick: resgatar o seu personagem de

para Ray: “Com Nick’s Movie [Um filme para Nick],

Um amigo Americano (1977), Derwatt, um pintor que

ele (Ray) tinha a oportunidade de trabalhar, de ma-

se fingia de morto e pintava novos quadros com se

nifestar-se de forma visível e pública e não apenas

tivessem sido feitos na época de quando estava vivo.

escrever anotações em um diário íntimo” (CIMENT, 1988, p. 310). Os dois buscam com o filme uma for-

No filme, Derwatt também seria um pintor, mas ago-

ma de se reconstituir.

ra em vez de fingir-se de morto, ele estava à beira da morte com câncer. Não conseguindo vender os

No filme há uma sequência em que o próprio Nicho-

seus quadros recentes, então começa a produzir fal-

las Ray, em uma conferência em Vassar, apresenta

sificações dos antigos quadros que lhe proporciona-

as intenções desse filme e de seu personagem como

ram fama e dinheiro no passado. Ele tem a intenção

protagonista: “O filme é sobre um homem que quer

de trocá-los das galerias onde elas estariam expos-

se recompor antes de morrer. Ele quer recuperar

tas, vendendo os quadros originais para conseguir

a autoestima. Já foi um homem de muito sucesso”.

dinheiro. Wenders propõe a mudança do persona-

Wenders registra a morte de Ray, como um testemu-

gem de um pintor para um diretor de cinema que

nho da sua enorme importância para o cinema e sua

tenta roubar os seus próprios negativos no labora-

própria obra. Essa importância é destacada em uma

tório, o que acontecia com Ray: seu filme We can’t

afirmação que Wenders faz retomando uma célebre

Go Home Again, o filme é um trabalho coletivo que

frase de Godard: “Se o cinema não existisse, Nicho-

mostra a relação professor e os seus alunos de cine-

las Ray o tê-lo-ia inventado, tem, no entanto algo de

ma (1972-1976), estava em um laboratório em Nova

errado: o condicional. Ray inventou o cinema. Como

York, pois não possuía os seus direitos. Nick agora 58


Ricardo Tsutomu Matsuzawa

Memória afetiva na obra de Wenders

desempenharia o seu próprio papel no filme, mas

no filme. A cada dia, contrariando nossos próprios

pede a Wenders que ele desempenhe o seu tam-

desejos, renovávamos o compromisso de continuar

bém: “Você precisa também se expor” (WENDERS,

por Nick (WENDERS, 2005, p. 237).

1990, p. 133). Desse modo, tanto Wenders como Ray são personagens e diretores do filme.

A primeira cena que Wenders filma é uma palestra que Nick apresenta em Vassar. Sem saber quais ca-

Realizado a quatro mãos, é um filme onde ficção e

minhos levariam as filmagens, grava apenas Nick e

documentário se confundem em um trabalho de di-

posteriormente as cenas onde ele próprio, Wenders

fícil classificação, como aponta Wenders, não conse-

aparece com a equipe. Na palestra é apresentado o

guindo classificá-lo: “nem sei sequer se ele é de todo

filme de Nick, Paixão de Bravo (1951), que possui uma

um filme” (WENDERS, 1990, p.78).

das cenas prediletas de Wenders, uma coincidência porque o filme já estava programado para o evento.

O primeiro plano de Um filme para Nick apresenta o

A cena em questão apresenta Jeff McCloud (Robert

mesmo espaço, uma rua em Nova York, e um plano

Mitchuam) procurando recordações escondidas em

muito parecido com o utilizado no começo do filme

um local debaixo da casa em que viveu a sua infân-

Um Amigo Americano (1977). Wenders emula a mes-

cia. Cena que Wenders se apropriou de forma expli-

ma cena de seu filme anterior, mas no lugar de Den-

cita em No decurso do tempo (1976). Bruno, um dos

nis Hopper (Tom Ripley), encontramos ele próprio,

protagonistas deste filme, assim como Jeff, ao voltar

Wenders, indo ao apartamento de Nicholas Ray, o

à casa da infância procura recordações escondidas

seu amigo americano. Podemos perceber uma ana-

debaixo da escada da casa. Wenders comenta esta

logia na reapropriação desta cena: em Um amigo

cena para Nicholas Ray em Um filme para Nick: “Nun-

americano, Tom Ripley ia ao encontro de Derwatt,

ca vi uma cena que represente tão bem a volta para

interpretado por Nicholas Ray a quem Wenders pro-

o lar”.

cura agora em Um filme para Nick, para trabalharem juntos de novo.

Reutilizando a cena, Wenders retoma algo que estava em sua lembrança na cena do filme Paixão de bra-

Além da tentativa de resgate de Derwatt/Nicholas

vo. Talvez na sua memória cinematográfica, “a volta

Ray, existem outros fatores que podem aproximar

para o lar” está na representação desta cena. Pen-

Um amigo Americano e Um filme para Nick. A trama

sando na memória para Bergson, retomemos o que

principal,Jonathan Zimmermann e convidado para

ele classifica como reconhecimento por movimento:

que cometa assassinatos já que sofre de uma doen-

“Este reconduziria à sensação de familiaridade que

ça terminal e não poderia ser ligado aos crimes; com

temos de um objeto visto ou evocado, que determi-

os assassinatos ele teria dinheiro para a sua famí-

na em nosso corpo os mesmos movimentos de rea-

lia depois da sua morte. Tom Ripley aproveita-se

ção que tivemos no momento em que anteriormente

da condição terminal de Jonathan para tirar provei-

o percebemos” (HALBWACHS, 2006, p.55). Wenders,

to próprio e tentar ajudá-lo. Se no personagem de

como se contasse de novo algo que se lembra, reto-

Tom Ripley não fica claro uma reflexão ética e moral,

ma esta cena não como uma cópia, mas para invocar

em Wenders podemos perceber como estas ques-

as sensações que tivera quando assistiu o filme de

tões o perturbaram a cada dia de gravação. Não é

Nicholas Ray. “Quando volto a imaginar esta cena, o

apenas uma questão de escrúpulos. A cada dia, em

fluxo da história também me agrada imediatamente,

cada plano, nos perguntávamos: podemos fazê-lo?

na minha memória: sem tensão e sem pressa, cada

Temos permissão para fazê-lo? Toda a filmagem foi

imagem transformando-se pouco a pouco numa es-

uma contínua reflexão ética e moral, e isso se nota

crita única, que se começa lentamente a olhar e a 59


Ricardo Tsutomu Matsuzawa

Memória afetiva na obra de Wenders

escutar” (WENDERS, 1989, p.166). Imagens que estão

e a sua relação de amizade com Nick. O confronto da

no território do cinema, não pertencem mais nem a

imagem de si mesmo gera em Tom uma reação mais

Nick e nem a Wenders, apenas querem significar a

forte à cena, em comparação aos outros que estão na

volta para o lar. Esta mesma cena inserida em Um

sala, inclusive o próprio Nick. Halbwachs (HALBWA-

filme para Nick aparece de forma diferente de No de-

CHS,2006) aponta que a impressão proporcionada

curso do tempo. Aparentemente ela tem uma função

por uma imagem que gera uma lembrança comum

ilustrativa na palestra de Nick em Vassar, mas a cena

a um grupo é condicionada também aos fatores que

pode ganhar outro contorno se lembrarmos que o

cada um dos participantes guarda para si daquele

filme Paixão de bravo foi realizado com um orçamen-

momento, confrontada com o que aquela lembran-

to pequeno, com poucas páginas de roteiro iniciais

ça tem de importância no momento em que ela é

(16 páginas), escrito à noite por Nick em um proces-

rememorada. Retomando esta imagem do passado

so não usual em produções de Hollywood. Esse mé-

pelas imagens do filme que participaram juntos, po-

todo de trabalho causou a sua desgraça na indústria

demos identificar em Tom a reconstituição daquele

americana, tornando-o um exilado dela, mas este

momento, cada pedaço daquela imagem se junta à

processo é muito próximo ao trabalho do próprio

sua lembrança, confrontada com a relação atual dos

Wenders, que assumiu publicamente uma grande

dois e a doença de Nick. Para Tom esta lembrança o

ligação com este filme. O próprio enredo de Paixão

une mais a Nick do que uma deficiência em comum.

de bravo também permite reconhecer uma identifi-

E ainda, na cena seguinte, Tom indaga a Wenders se

cação: Jeff, antes um grande cowboy com fama e di-

Nick não seria um como pai para os dois.

nheiro, é condenado a ficar a margem da profissão até a sua volta aos rodeios, o que causa a sua morte.

A filiação entre eles é ligada pelo cinema. Wenders

Outro ponto a se refletir seria o próprio tema como

foi influenciado por Ray e ambos eram sobreviven-

afirmado por Ray em Vassar: “Este filme não é um fa-

tes da estrutura de produção de Hollywood. Como

roeste. Na verdade é sobre pessoas que querem ter

um anti-édipo, Wenders tenta com Um filme para

o seu próprio lar”. Podemos apontar em Wenders a

Nick reconstituir a imagem do mestre, preservando

questão da busca de um próprio lar. Nascido de uma

a sua memória. O caminho para a morte seria o ci-

pátria com a identidade abalada e em seu exílio vo-

nema, ele estaria vivo pelos registros da câmera. No

luntário na América, vivendo o que Peixoto chama

meio da produção, Wenders foi chamado para conti-

de desterritorialização contemporânea, “que fez de

nuar o seu trabalho em Hammett. Antes de sua par-

cada indivíduo um estrangeiro no seu país de ori-

tida, Suzanne entrega o diário de Ray. Ele começou a

gem e o levou [Wenders] a tentar virar americano”

escrever o diário quando descobriu que estava com

(PEIXOTO, 1987, p. 203). Wenders em sua busca por

câncer, dois anos antes. No loft vazio, preparando-

um cinema próprio teve a ilusão que o encontraria

-se para partir para Los Angeles, Wenders observa

na America, mas a experiência e o exemplo de Ray

os objetos de Nick e a sua cadeira de diretor agora

mostraram-no o contrário.

abandonada. Wenders no táxi a caminho do aeroporto e dentro do avião lê os escritos de Ray, tenta

Em outra cena Wenders, Suzanne, Nick e Tom Farrell

se aproximar do diretor dos filmes que ajudaram a

assistem a projeção de We can’t go home again (1972-

construí-lo como cineasta. O diário de Ray funciona

1976) Em um trecho da exibição, Tom Farrell, mais

como um guardião de suas memórias e é tão pre-

jovem, explicando a Nick os motivos que ocasiona-

cioso como as anotações e objetos de Ozu que Wen-

ram a perda da visão do olho direito, algo que eles

ders encontra em Tokyo Ga (1985). Wenders destaca

têm em comum. Tom, comovido, relembra seu pas-

três palavras: curiosidade, imaginação, humildade.

sado com o filme, quando era estudante de cinema

Palavras que motivaram o cinema de Nick e também 60


Ricardo Tsutomu Matsuzawa

o seu. Ele retoma o plano da asa do avião observada

Memória afetiva na obra de Wenders Ray: Não corte Corta!!!

por uma de suas janelas. Este plano aparece em seu primeiro longa-metragem Summer in the city (1970)

Wenders no começo desta cena tinha antecipado

e é encontrado em grande parte dos seus filmes. Os

a impressão de realidade que elas possuíam: “Mas,

personagens de Wenders estão sempre em trânsito,

mais uma vez, a realidade foi mais forte que a fic-

viajando, quase sempre não por desejo e sim mo-

ção em que queríamos transformá-la. Seria a última

tivados por uma necessidade. Naquele momento

vez”. As cenas são prólogos da morte de Ray dentro

Wenders, como um de seus personagens, precisava

da montagem do filme. Não temos no filme a cena

encontrar um rumo para os dois filmes que estava

de seu enterro. Sua despedida é a sua última fala

produzindo.

no filme: “Corta!” Com esta fala como diretor que decide a duração dos planos, Nick definiu a sua últi-

Em uma cena apresentada em um hospital estilizado,

ma aparição no filme, e com a sua morte também o

uma adaptação de Rei Lear de Willian Shakespeare:

fim das filmagens. No epílogo a equipe está reunida

Ronee interpreta uma filha, Cordelia, reencontran-

dentro do junco chinês. Bebendo e fumando conver-

do o pai moribundo à beira da morte. Percebemos

sam sobre Nick e o filme. Na proa, um vaso com (tal-

na atuação de Nick uma mescla de Lear e de si pró-

vez) as cinzas de Nick. Tom Farrell comenta sobre a

prio, quando fala sobre sua própria doença. Wen-

doença de Nick: “Acho que você faz de tudo que pos-

ders comenta sobre esta cena para CIMENT (1988,

sa dar certo [cura para o câncer], que possa ajudar

p. 313): Talvez seja a mais artificial do filme. Mas

alguém”. Wenders responde: “Até fazer um filme”.

justamente nessa cena inteiramente funcional Nick fala do câncer, ou seja sua maior verdade. E foi este

Um filme para Nick é um filme sobre um filme que

o problema constante do filme. Era nas cenas intei-

não deu certo, se pensarmos na ideia original de

ramente documentais que tínhamos dificuldades de

Wenders e Nick. A doença de Nick impedia o anda-

nos aproximar da realidade. Quando inventávamos,

mento do filme, era o maior obstáculo e também o

podíamos por fim falar daquela realidade Wenders

maior motivo para Wenders realizá-lo. Um filme que

e Suzanne assistem a cena como espectadores, mas

se coloca como oposição aos padrões americanos

em um momento Wenders cochila. Temos uma pas-

da indústria. Padrões onde a narrativa é construída

sagem para outra cena de sonho. A imagem mostra

para reforçar uma impressão de realidade, eliminan-

Wenders deitado na cama de hospital e ao seu lado

do tudo que é desnecessário para a história. Onde o

Nick com um tapa-olho que o indaga: “De onde você

diretor tem que se ocultar, como um anônimo fun-

veio?” A sequência continua em um longo plano de

cionário obediente aos burocratas que administram

quase seis minutos, em que Nick emite grunhidos,

os estúdios. Em Um filme para Nick a prioridade não

grita, começa a cantarolar e questiona seu estado:

é a história de dois amigos que querem realizar um filme. Essa motivação é apenas o detonador inicial

Ray: Você está me deixando doente. Mas não por

para que reflitam sobre a realização fílmica, o pró-

sua causa. Não sei por quê. Não sei por quê. Pre-

prio cinema, o seu modo de fazer, a opressão que

ciso ir embora. Estou começando a babar. Merda

sofrem os que não se sujeitam às imposições da in-

(em alemão)! Merda Acabei Tudo bem O que você

dústria do cinema. Wenders deixa se expor, entrega-

vai fazer?

-se como personagem do filme e de sua própria his-

Wim: Dizer corta Corta

tória, experimenta co-dirigir, dirige e é dirigido por

Ray: Vá em frente Você deve dizer corta Vá em

Nick, um dos grandes realizadores do cinema clássi-

frente, corte Vamos corte Corte

co de Hollywood. Nicholas Ray faz parte da memória

Wim: Não corte

que retoma os filmes que Wenders assistiu, clássicos 61


Ricardo Tsutomu Matsuzawa

Memória afetiva na obra de Wenders

que o ajudaram a se constituir como cineasta. A par-

dessa mistura, que explicita uma fuga da tradição do

tir das lembranças dos filmes de Nick, Wenders ad-

naturalismo artificial dos filmes ficcionais. Wenders

mirou, aprendeu, copiou, homenageou.

e sua relação cinéfila resgata elementos fílmicos que são reapropriados de acordo com a memória afetiva.

Wenders finaliza o filme sem Nick, o que o livra do

Este não tem mais o objetivo de mostrar dois amigos

pudor que carregava quando filmavam juntos. Além

querendo realizar um filme e sim a sua lembrança

das cenas de campo e contra campo, apresenta o

destes dois amigos querendo produzi-lo. O próprio

fora do campo, o entorno das imagens que estavam

processo de montagem é uma junção de lembran-

sendo filmadas: making of, repetição de planos, en-

ças, um resgate das impressões da filmagem, um

saios. Sequências documentais e ficcionais são em-

rememorar, uma reconstrução. Um filme para Nick

baralhadas, sendo que as mais artificiais traduzem

mostra dois amigos em que o próprio filmar é viver.

uma verdade tão pungente quanto as gravadas sem

Dois amigos que conseguiram se reconstituir com

planejamento. A veracidade é construída através

este filme.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas:

PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas – A

Papirus, 1995.

realidade imagináriacontemporânea. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BERGSON, Henri. Memória e vida. São Paulo:Martins Fontes, 2006.

WENDERS, Wim. A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, 1990.

BUCHKA, Peter. Os olhos não se compram. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

_______.El acto de ver. Barcelona: Paidós, 2005. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São

opacidade e a transparência. 3ed. Rio de Janeiro: Paz

Paulo: Centauro, 2006.

e Terra, 2000.

62


Entre escutas: sons, espaços e reverberações Coord. Damyler Ferreira Cunha (USP)


Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho (Universidade Federal de Pernambuco, mestranda). RESUMO: Este artigo parte da análise do filme O moinho e a cruz para propor uma reflexão acerca das funções narrativas e estéticas do ruído. A problemática da pesquisa se desenvolve a partir da concepção de que este elemento sonoro é predominantemente explorado nas produções contemporâneas como um acessório figurativo da imagem o que acaba por subjugar sua potencialidade expressiva a um papel passivo na produção do sentido fílmico. Assim, por meio do diálogo com o conceito de hiper-realismo sonoro e do estudo analítico desta obra a qual subverte tal tendência dominante, procuramos compreender e problematizar as dimensões diegéticas que o ruído é capaz assumir em uma produção de cinema. PALAVRAS-CHAVE: estudos do som, ruído, análise fílmica. Introdução

no cinema busca trazer uma reflexão comparativa acerca do contexto da produção ficcional contem-

Na linguagem cinematográfica a dimensão visual se

porânea, que em seus múltiplos gêneros e varia-

consolidou como a instância produtora de sentido

das propostas criativas, continua a reproduzir esta

já que são seus elementos que convencionalmente

tendência do período clássico onde a produção da

dominam a construção diegética dos filmes. Aos ele-

significação audiovisual fica concentrada na instân-

mentos do som coube neste processo uma função

cia imagética e textual (diálogos). Neste contexto,

utilitária de servir às aspirações realistas das ima-

o ruído, apesar de sua latente potencialidade cine-

gens. Este quadro se delineou no início do cinema

matográfica, é um componente explorado quase

sonoro onde a intenção de se construir uma verossi-

que exclusivamente como um acessório da imagem,

milhança cada vez mais intensa entre o mundo real

sem encontrar espaços para contribuir ativamente

e o ficcional fez com que o áudio fosse introduzido

na construção da significação fílmica.

nas produções não como um componente autônomo e expressivo, mas sim como uma inovação técni-

A maioria dos outros filmes, incluindo os de autor,

ca cujo papel preponderante seria o de agregar valor

ainda não deu aos ruídos o estatuto global de um

figurativo às imagens.

elemento cinematográfico, ao qual, para além da sua função diretamente figurativa, seria reconheci-

Tal disparidade não ficou restrita a relação audiovi-

da a mesma capacidade expressiva que é atribuída

sual e também se refletiu no âmbito da própria ban-

à luz, ao quadro ou ao desempenho dos atores.

da sonora onde as vozes dos personagens, articula-

(CHION, 1991, p.117)

das em diálogos, são os elementos predominantes na construção diegética, seguidas pela música, e em

Em meio a este quadro de notório domínio do vi-

último lugar, subjugado a um papel passivo, localiza-

sual é possível encontrar obras onde o som atua em

mos o ruído, objeto de estudo deste artigo, entendi-

complementaridade com a imagem em detrimento

do aqui como todo som do filme que não é nem voz

de uma relação de subordinação. É o caso do filme

nem música (som ambiente, foley, efeitos sonoros).

O moinho e a cruz (The mill and the cross, Lech Majewski, 2011) o qual subverte diversas tendências do

Este breve panorama sobre a introdução do som

cinema clássico ao conferir aos ruídos da cena um 64


Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

papel fundamental no desenvolvimento da diege-

de procedimentos que caracteriza a análise fílmica

se. A trama é construída praticamente sem diálogos

(descrição, decupagem e estudo analítico-conceitual

e em alguns poucos momentos é pontuada pelos

da cena) é a metodologia escolhida como ferramen-

monólogos dos personagens o que quebra com a

ta para alcançarmos o objetivo delineado.

convenção clássica do domínio do texto na condução do enredo. Além disso, a música, componente

O hiper-realismo sonoro

massivamente utilizado como um guia sensorial do espectador, só está presente em poucos planos.

Em virtude de sua natureza ondulatória os elemen-

Nesse sentido, é o ruído que se destaca na condu-

tos sonoros são capazes de provocar um forte efeito

ção da trilha sonora ao exercer funções expressivas

sinestésico no público já que o atinge diretamente,

que vão muito além de seu papel figurativo–utilitário

ainda que sua atenção esteja focada no olhar sem-

convencional.

pre direcionado à projeção. “Por suas propriedades intrínsecas, o som, ao se propagar, vai de encon-

A narrativa traça um olhar sobre a ocupação espa-

tro ao espectador, enquanto a imagem está “pre-

nhola em Flanders, atual região da Bélgica, durante o

sa” à tela.” (COSTA, 2011, p.85). Na virada dos anos

século XVI, a partir do emblemático quadro Procissão

70-80, a padronização do sistema Dolby sound nas

para o calvário (Pieter Bruegel, 1564), o qual busca

instâncias da produção e exibição cinematográficas

metaforizar o sofrimento do povo dominado a partir

potencializou a força expressiva dos sons uma vez

do simbolismo fundamental da crucificação de Jesus

que o desenho do áudio, antes limitado pelo precá-

Cristo. A pintura apresenta diversas ações isoladas,

rio sistema monofônico (único canal de áudio para

repletas de códigos católicos e representações de

diálogos, música e ruídos), passou a ser composto

costumes, que exalam uma forte intenção narrativa.

por múltiplos canais, simulando assim a natureza

É a partir da desconstrução deste quadro, atribuindo

estereofônica da nossa percepção auditiva, ou seja,

movimento e sons as suas figuras, que o diretor do

aquela composta por dois ouvidos que captam sons

filme busca reconstruir audiovisualmente o proces-

emitidos em todas as direções e assim identificam

so de montagem deste painel imóvel.

sua origem e seus deslocamentos.

As peculiaridades sonoras do filme, em sintonia com

O aspecto sonoro da experiência cinematográfica

uma proposta imagética mais plástica do que natu-

passou a ser ainda mais valorizado a partir da déca-

ralista, envolvem o espectador em uma diegese in-

da de 90 com o desenvolvimento da tecnologia digi-

tensamente sensorial e sugestiva na qual o ruído se

tal, a qual complexificou o sistema estereofônico do

apresenta como uma chave para a compreensão dos

Dolby Sound permitindo que cada vez mais compo-

sentidos fílmicos ali codificados. A partir desta pers-

nentes audíveis pudessem participar da composição

pectiva, a problemática levantada por este artigo

das sequências, além de ter multiplicado os recursos

busca compreender de que maneira o ruído se apre-

de manipulação do áudio na fase de pós-produção.

senta como um elemento determinante na compo-

Nesse sentido, o ruído foi o elemento da banda so-

sição estética e narrativa da produção analisada. A

nora que mais se destacou nesta nova configuração

partir de quais recursos estilísticos este componente

sônica que caracteriza o cinema contemporâneo.

da banda sonora é explorado na construção do universo diegético proposto? Na tentativa de responder

[...] com a edição de som digital a aventura inicia-

a este questionamento propomos uma investigação

da no fim da década de 1970 de se construir uma

da(s) estratégia(s) sonora(s) trabalhada(s) no dese-

trilha sonora composta por mais de uma centena

nho de som da sequência inicial do filme. O conjunto

de pistas de som, para que se chegue a massa

65


Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

sonora capaz de reproduzir com suposta fidelida-

seria uma consequência direta do aprimoramento

de ambientes complexos, como, por exemplo, uma

técnico dessa propriedade do som. Dentro dessa

guerra em uma floresta, tornou-se corriqueira. Ne-

perspectiva, potencializar a definição de um áudio

nhum outro elemento sonoro ganhou mais espaço

significa amplificar sua pureza e a sua exatidão na

com essa forma de construir o som de um filme

reprodução de detalhes, por meio da manipulação

que os ruídos. (COSTA, 2010, p.100)

de sua potência (volume), frequência (agudo-grave) e deslocamento espacial, o que nos oferece mais in-

Nesse contexto, se em um primeiro momento esses

formações sobre um som do que a escuta natural,

sons diegéticos foram trabalhados primordialmente

ou seja, o ruído hiper-realista, efeito direto dessa al-

num propósito de alcançar uma “suposta” fidelida-

ta-definição, ultrapassa os limites da mimese já que

de aos sons reais, logo passaram a ser explorados

é, “[...] mais fiel à realidade do que a própria realida-

de forma mais criativa, a qual buscava proporcionar

de” (CAPELLER, 2008, p. 66). É na fase de pós-produ-

ao espectador uma experiência mais sensorial do

ção, sobretudo, na mixagem, que tais propriedades

que mimética. Isto porque a noção de alta fidelida-

do som são modificadas. Assim, é nesse momento

de sonora é tecnicamente questionável, pois busca

que a potência sonora é intensificada, os agudos

forçosamente equiparar o som original à sua cópia

(frequências direcionais, sensação de proximidade)

gravada.

e graves (frequências omnidirecionais, sensação de distância) são enfatizados dependendo da proposta Aquele que ouve uma orquestra na sua aparelha-

da cena, e onde ocorre a distribuição espacial dos

gem não tem, por certo, a possibilidade de a com-

sons pelos canais de áudio a qual é responsável por

parar com a orquestra real que tocaria em frente

envolver o espectador no ambiente sônico diegético.

à sua porta! De facto, é preciso saber que a noção de alta-fidelidade é puramente comercial e não

Dentro dessa perspectiva, a relação de complemen-

corresponde a nada de exato nem de verificável

taridade entre o ruído hiper-realista e a imagem po-

(CHION, 1991, p.81).

tencializa a percepção da cena, proporcionando ao espectador uma experiência mais sinestésica do que

Chion (1991) trabalha a noção de alta-definição em

naturalista-realista. O que se busca não é a reprodu-

detrimento da de alta-fidelidade para problemati-

ção mimética do som, mas sim as sensações e im-

zar a dimensão hiper-realista que o ruído alcançou

pressões que ele é capaz de causar. “O hiper-realis-

a partir dos desenvolvimentos técnicos fonográficos

mo está em andamento sempre que o som faz mais

da era digital.

do que simplesmente corresponder ao que se vê na tela, causando ao invés disso uma impressão para o

No cinema, a definição é para o som uma questão

espectador de que há, como diz Capeller, uma “hi-

múltipla e um meio de expressão importante: Um

peramplificação perceptiva do objeto” (COSTA, 2010,

som mais definido, que contém mais informações,

p.101). No filme em questão, o ruído hiper-realista

é suscetível de comportar mais índices materiali-

é explorado de uma forma distinta do seu uso con-

zantes; Favorece uma audição mais viva, espasmó-

vencional, e massivo, no cinema hollywoodiano.

dica, rápida, alertada, nomeadamente pelo segui-

Enquanto que as produções de gênero norte-ame-

mento das frequências agudas e dos fenómenos

ricanas, ainda que de maneira criativa e impactan-

ágeis que se passam nessas regiões [...] (CHION,

te, trabalham este recurso em favor de um reforço

2011, p.81).

a um sentido imagético dominante, nesta obra, ele assume uma autonomia que o torna capaz de com-

Para o autor, o fenômeno do hiper-realismo sonoro

plementar expressivamente e até de redimensionar 66


Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

a significação visual influenciando assim ativamente

de outros sons) vindo em nossa direção, o qual vai

a percepção do espectador.

ficando cada vez mais intenso e grave como uma massa sonora que vai preenchendo nossa percep-

A análise

ção auditiva, é quando a imagem até então nebulosa se torna nítida e revela um grupo de cavaleiros do

O conceito de hiper-realismo sonoro é a base para

exército espanhol se aproximando em velocidade

esta reflexão analítica sobre as funções fílmicas do

(figura 2). O quadro posterior mostra um camponês

ruído. Na análise da obra O moinho e a cruz partimos

deitado na cama com os olhos abertos e com uma

da hipótese de que a representação hiper-realista

expressão de quem acabara de despertar, talvez de

deste elemento é responsável por construir signi-

um sonho ruim (figura 3). Enquanto sua mulher o

ficados estéticos e narrativos fundamentais para o

beija vemos por meio da janela do quarto um corvo

processo de fruição do filme. Trata-se de uma confi-

cruzar o local do seu futuro sacrifício e escutamos o

guração impressionista-sugestiva, em detrimento de

som sinistro do pássaro amplificado (figura 4), o que

uma construção lógica-previsível, a qual é alcançada

faz com que ele se destaque em meio às sonorida-

por meio de uma construção diegética ancorada em

des emitidas pelo casal (respiração, carícias, ranger

uma relação dialógica entre os sentidos imagéticos

da cama). Eles continuam a se acariciar até o fim do

e sonoros.

plano.

Na sequência inicial, nosso objeto de estudo, a banda acústica é composta unicamente por ruídos uma vez que não há diálogo nem música, o que reforça o papel de destaque deste elemento na análise em questão. Tal cena funciona como uma espécie de presságio da morte de um personagem, morte esta que se concretiza em um momento posterior do enredo. Eis a descrição: Dois homens caminham por uma

Figura 1

floresta onde vemos um revezamento de quadros que mostram os dois, isoladamente, observando e tocando algumas árvores aleatoriamente como se quisessem escolher alguma para derrubar. Quando um dos personagens encontra a planta ideal ele risca seu tronco com uma faca formando o desenho de uma cruz (figura 1), o som emanado por este movimento soa com uma potência muito forte (“volume alto”) se sobrepondo às outras camadas sônicas ali presentes (sons da floresta). Em seguida, o ambien-

Figura 2

te muda, a câmera assume uma posição estática e nos oferece a imagem de uma forte neblina de tal modo que nossa visibilidade fica limitada. Depois de alguns segundos, começamos a ouvir um ruído (trata-se de uma camada única, não há a presença 67


Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

para ser derrubada. O som muito grave e crescente do trote dos cavalos explora a natureza vibratória e omnidirecional desta frequência alcançando gradativamente o corpo do espectador, e assim como a imagem dos cavaleiros, também invade o quadro, potencializando o sentido de dominação pela violência que marca a vida dos habitantes de Flanders. Além do ruído amplificado e agudo emitido pelo corFigura 3

vo, animal associado à morte, que ao cruzar a janela da futura vítima e emitir esse som específico parece anunciar que o seu fim está próximo. Se sua sonoridade não fosse hiper-realista talvez nem percebêssemos a sua presença na tela (enfatizada pelo sentido direcional que emana da frequência aguda) o que deixaria o sentido da ação no mínimo incompleto. O conjunto audiovisual analisado, ao estabelecer uma relação não de dependência, mas sim de com-

Figura 4

plementaridade entre seus elementos, conferiu ao ruído um papel ativo na construção da diegese.

O efeito do ruído hiper-realista em conjunto com a

Narrativamente, esta cena antecipa uma ação futu-

potência imagética provoca uma intensificação per-

ra chave para o desenvolvimento do enredo. Este-

ceptiva e sensorial da cena descrita. Os sons em des-

ticamente, ela provoca a percepção do espectador

taque (faca, cavalos, corvo) são altamente definidos,

a se conectar com as sensações ali evocadas. Nes-

manipulados em suas frequências, intencionalmen-

se sentido, os trotes do cavalo e o “grito” do corvo,

te “altos”, reverberantes, e ao invadirem o corpo do

encarnam esses significados da sequência descrita

espectador são capazes de influenciar suas impres-

carregando assim a sensação da invasão e da mor-

sões e interpretações sobre a diegese representada.

te, respectivamente, para outros pontos do filme.

Nesse sentido, os planos analisados possuem uma

Na cena do assassinato do camponês esses ruídos

forte carga estética e narrativa ao anunciarem a

hiper-realistas da premonição de sua morte ressur-

morte do camponês que aparece no último quadro

gem e potencializam a dramaticidade da cena. Des-

da sequência.

sa maneira, esses sons não funcionam como meros estereótipos que servem aos propósitos miméticos

O ruído cortante da faca em conjunto com o sinal

da imagem, mas sim como elementos expressivos

da cruz simboliza a condenação do personagem, es-

capazes tanto de complementar o sentido da dimen-

colhido aleatoriamente para o sacrifício, da mesma

são visual quanto de produzir seus próprios signifi-

forma que a árvore foi marcada de maneira aleatória

cados diegéticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAPELLER, Ivan. Raios e trovões: hiper-realismo

Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Caixa Cultural, 2008. P.

e sound design no cinema contemporâneo. In:

65-70.

CATÁLOGO da mostra e curso O som no cinema. 68


Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Uma análise sobre as funções narrativas e estéticas do ruído no filme O moinho e a cruz

CHION, Michel. A Audiovisão. Som e Imagem no

pdf>. Acesso em: 10. Jul. 2015.

cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011. ______. Pode-se dizer que há algo como um COSTA, Fernando Morais da. A inserção do som no

hiperrealismo

sonoro

no

cinema

argentino?.

cinema: percalços na passagem de um meio visual

Ciberlegenda – Revista do Programa de Pós-

para audiovisual. IN: I ENCONTRO NACIONAL DA

Graduação em Comunicação da Universidade Federal

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em: 16.Jul.2015.

em: 15. Jul. 2015. OPOLSKI, Débora. Introdução ao desenho de som. ______. Pode o cinema contemporâneo representar

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69


Entre atos: palcos, telas e escrituras Coord. Rodrigo Fontanari (Unicamp)


A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo: Um olhar quantitativo-descritivo para o processo de transmidialidade Álvaro Dyogo Pereira (Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Artes, Cultura e Linguagens) alvarodyogo@gmail.com RESUMO: Através de uma metodologia desenvolvida para pesquisar o processo que Kattenbelt (2008) chama de transmidialidade, ocorrido na adaptação de um texto teatral para o cinema, com olhar sobre as rubricas teatrais e sua transposição à obra fílmica, apresentaremos os resultados da coleta de dados feita a partir de análise do filme Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963), realizando inferências de ordem quantitativo-descritivas. A primeira etapa do trabalho foi referenciar as rubricas. A segunda consistiu em uma análise do filme à luz da peça, classificando cada rubrica em relação à sua transposição ao filme. Na terceira etapa, cada rubrica foi atribuída aos tipos e categorias estabelecidos com base na análise da obra de Nelson Rodrigues (2012). Por fim, a quarta etapa foi coletar o que chamamos de alvo de cada rubrica. Relação intersemiótica

profundamente.

Kattenbelt (2008) diz que as diferentes modalidades

Ao tratar desse tema com foco no teatro, Kattenbelt

de artes são indissociáveis de seus processos de mi-

(2008) delimita, principalmente, três conceitos que

dialidade, logo, arte e mídia não são observadas pelo

podem ser utilizados. A multimidialidade acontece

autor distintamente, mas, ao contrário, as artes são

quando diversas mídias ocorrem em um mesmo ob-

vistas como tipos de mídia – concepção que também

jeto. A intermidialidade pressupõe que as mídias se

adotamos em nosso estudo. Moser (2006, p. 63), por

relacionem, com mútuas influências entre elas. Por

sua vez, considera que o dispositivo de relação entre

fim, a transmidialidade sugere mudança de mídia,

as artes permite conhecer a midialidade da arte, na

transferência de um meio a outro. Essas concep-

medida em que se duplica em um dispositivo inter-

ções operam em diversos níveis, que nem sempre

midial. Ao conectarmos a noção de arte aos proces-

podem ser distinguidos explicitamente um do outro.

sos criativos humanos, estabelecendo que, através

Também não se excluem, de modo que pode haver

dela, indivíduos se expressam em palavras, imagens

a ocorrência de mais de um tipo em uma mesma

e sons, de modo a compartilhar suas experiências

relação.

e percepções a um público, entenderemos teatro e cinema como manifestações artísticas e mídias que

O conceito de transmidialidade é aquele que melhor

apresentam diferenças estruturais e de linguagem,

se aplica à análise que faremos neste trabalho. É

mas, também, similaridades.

usado nas teorias de arte e comunicação, principalmente, para se referir à mudança (transposição, tra-

Essas características alteram o pensamento e o pró-

dução) de um meio a outro. Essa transferência pode

prio fazer artístico, que passa a incorporar novos

se dar com relação ao conteúdo (o que é representa-

métodos, possibilidades e interações semióticas en-

do, a história) ou com relação à forma (princípios de

tre as artes em seus processos criativos. Para Kat-

construção, procedimentos estilísticos, convenções

tenbelt (2008), no domínio do teatro, essa questão

estéticas).

é particularmente evidente, vez que ele proporciona um espaço no qual diferentes artes podem se afetar

No primeiro nível, o conceito de transmidialidade 71


Álvaro Dyogo Pereira

A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo

se refere, em particular, àquelas características do

recebeu o convite para transformar a narrativa em

meio original que se perdem no processo de trans-

uma obra fílmica, que viria a estrear nos cinemas do

posição. Filmes baseados em espetáculos teatrais,

Brasil no ano de 1963, com Jece Valadão, produtor

por exemplo, são transposições de histórias, mas

do filme, interpretando o papel principal.

não levam em conta todas as características literárias específicas da narração original. Com relação

Processo metodológico

à forma, a transmidialidade retoma ou imita princípios de representação de outro meio.

O processo metodológico utilizado por nós foi realizado em quatro etapas:

O acesso ou imitação dos métodos de representação de um meio por outro também pode ter uma função

1 – Referenciação: a primeira etapa do trabalho

específica de intertextualidade – um meio se refere

metodológico utilizado será a referenciação das

a outro. Para Simanowski (2006, apud KATTENBELT,

rubricas.

2008), o conceito de transmidialidade enfatiza, em particular, o processo de transição da mídia fonte à

2 – Categorização e tipificação: atribuição de

mídia de destino, assim como destacaremos em nos-

cada rubrica a um ou mais dos nove tipos esta-

sas análises. Transmidialidade seria, então, “a mu-

belecidos por nós divididos em três categorias,

dança de um meio para outro meio como um evento

com base no texto de Rodrigues.

constituído e condicionado por um fenômeno estético híbrido”. (SIMANOWSKI, 2006 apud KATTENBELT,

3 – Classificação: consiste em uma análise do

2008, p. 24, tradução nossa). Veremos como se dá

filme em comparação com a peça, classificando

este processo na passagem da obra teatral Boca de

cada rubrica como “não transposta”, “parcial-

Ouro à obra fílmica homônima.

mente transposta” ou “transposta”.

O caso de Boca de Ouro

4 – Atribuição de alvos: coleta do que estamos chamando de alvo(s) de cada rubrica. Os alvos

Boca de Ouro conta a história de um bicheiro cario-

são, basicamente, a quem a rubrica diz respeito,

ca temido e respeitado em sua comunidade, que se

isto é, qual é a personagem diretamente relacio-

transforma em uma figura quase mitológica do su-

nada àquela rubrica – que agirá, reagirá ou será

búrbio. Seu apelido originou-se de sua decisão de

descrita por ela.

ter mandado arrancar todos os dentes de sua boca trocando-os por uma dentadura de ouro, que se

No caso da peça de Rodrigues (2012), há no texto

tornou sua marca registrada. Conquistador e peri-

875 rubricas distribuídas em três atos, sendo 291 no

goso, o personagem-título é assassinado e tem sua

primeiro ato, 320 no segundo ato e 264 no tercei-

trajetória narrada por uma de suas ex-amantes, D.

ro ato. Cada rubrica pode se converter em uma ou

Guigui que, ao ser procurada pela imprensa, dá três

mais unidades de análise. Quando, a uma mesma

versões diferentes dos mesmos fatos, à medida que

rubrica, forem ser atribuídos mais de uma categoria,

recebe novas informações dos jornalistas.

tipo ou alvo, esta rubrica será subdividida no ato da análise, sendo que cada categoria, tipo ou alvo serão

Essa história foi escrita por Nelson Rodrigues em

considerados uma unidade de análise.

1958, na forma de uma peça teatral que foi encenada, pela primeira vez, no ano de 1960. Dois anos

Com a investigação a ser realizada na etapa de ca-

mais tarde, o diretor Nelson Pereira dos Santos

tegorização e tipificação, pretendemos verificar em 72


Álvaro Dyogo Pereira

A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo

que medida há diferença no tratamento das rubri-

sete casos em seus três tipos, o equivalente a 1% das

cas pelo filme com relação às suas categorias ou

unidades da peça. Esta categoria compreende:

mesmo a seus tipos. O Quadro 1 apresenta todas as categorias e tipos de rubricas encontrados em Boca

- tipo 4, Informação pessoal / cênica (3 uni-

de Ouro.

dades); - tipo 5, Descrição física (3 unidades);

Quadro 1

- tipo 6, Descrição psicológica (1 unidade).

Categorias

1

2

3

Direção de atores

Descrição de personagens

Indicações técnicas

Tipos 1

Estado físico

Por dizerem respeito a característica fixas das per-

2

Estado emocional

sonagens, que não precisam ser repetidas a cada

3

Direcionamento da fala

nova aparição, essas rubricas não costumam apare-

4

Informação pessoal / cênica

cer com muita frequência, sendo mais comumente

5

Descrição física

empregadas na apresentação de uma personagem.

6

Descrição psicológica

7

Indicação de cenário / objeto cênico

Por fim, a categoria 3, Indicações técnicas, engloba

8

Indicação de figurino / caracterização

129 unidades de análise, correspondentes a 11%

9

Indicação de iluminação

dos casos da peça de Rodrigues (2012). Esta catego-

Categorias e tipos de rubricas Fonte: Elaboração do autor

ria se divide da seguinte forma:

A primeira categoria de rubricas, Direção de atores,

- tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico

reúne 1.024 unidades de análise, 88% dos casos

(105 unidades – 9%);

da peça de Rodrigues (2012), divididas da seguinte

- tipo 8, Indicação de figurino / caracteriza-

forma:

ção (12 unidades – 1%); - tipo 9, Indicação de iluminação (12 unida- tipo 1, Estado físico (373 unidades – 32%);

des – 1%).

- tipo 2, Estado emocional (547 unidades – 47%);

Nessa categoria, os tipos especificam características

- tipo 3, Direcionamento da fala (104 unida-

importantes a serem observadas no que se refere a

des – 9%).

cenografia, adereços cênicos, indumentária, cabelo e maquiagem, luz e sombra etc. Ao especificar essas

Nessa categoria, aparecem os tipos de rubricas em

características, o autor do texto sugere signos tea-

que o autor indica, de alguma maneira, sugestões

trais que auxiliarão a compor a estética das cenas

para que o encenador dirija os atores, no que diz

conforme sua visão.

respeito a movimentação ou pausa cênica, intenção e interação entre personagens, ritmo ou qualidade

Para classificar as rubricas, dois caminhos se mos-

da fala, reação etc.

tram possíveis: a classificação específica e a classificação geral. Vejamos, no Quadro 2, uma compara-

A segunda categoria de rubricas, Descrição de perso-

ção entre eles com base na rubrica nº 195 do texto

nagens, soma, no texto de Rodrigues (2012), apenas

de Rodrigues (2012).

73


A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo

Álvaro Dyogo Pereira

Quadro 2 R

- Demais tipos (juntos) - 3%. Exemplo

Classificação específica

9

“Trevas e luz sobre nova cena”

Não transporta

7

“casa do ‘Boca de Ouro’”

Transporta

Tipo

195

Classificação geral

Parcialmente transposta

Classificação específica e geral de rubrica Fonte: Elaboração do autor

Para cada categoria e tipo, também foi possível verificarmos a medida de transposição, através da classificação das rubricas. No Gráfico 1, é possível observar o comportamento de transposição das rubricas da categoria 1, Direção de atores, e de todos os seus tipos.

Nossas análises necessitam da possibilidade de fil-

80%

66%

70% 60%

8%

4%

Categoria 1 Direção de atores

Análises quantitativo-descritivas

1%

Tipo 1 Estado físico

1%

Tipo 2 - Estado emocional

Transposta

0%

Parcialmente transposta

10%

Não transposta

situações com alvo indeterminados.

20%

Transposta

Rodrigues, a presença de 16 alvos. Existiram, ainda,

33%

30%

Parcialmente transposta

foi levada para o filme. Foi identificada, no texto de

53%

45% 46%

Não transposta

de suas rubricas e em que medida essa construção

47%

40%

Parcialmente transposta

cada personagem foi construída pelo autor através

52%

45%

Não transposta

A atribuição de alvos poderá diagnosticar como

50%

Transposta

(classificação específica).

90%

Parcialmente transposta

adotaremos a segunda possibilidade apresentada

100%

Não transposta

mações de ordem mais qualitativa. Por este motivo,

Gráfico 1

Transposta

tragem por tipo ou categoria para fornecerem infor-

Tipo 3 Direcionamento da fala

Rubricas da Categoria 1 e seus Tipos por classificação Fonte: Elaboração do autor

Realizaremos, neste subcapítulo, a etapa de análise quantitativo-descritiva dos dados coletados. Do to-

Analisando o Gráfico 1, observamos que, ao englo-

tal de 1.160 unidades de análise dentro das rubricas,

barmos a categoria 1, Direção de atores, como um

verificamos que 625 (54%) delas foram transpostas

todo, temos, em 52% dos casos, a transposição das

ao filme; 496 (43%) não foram transpostas e outras

rubricas, em 45%, a não transposição, e, em 4% das

39 (3%) foram parcialmente transpostas.

ocasiões, a transposição parcial. O mesmo comportamento se verifica nos tipos 2, Estado emocional, e

Ao apresentarmos as três categorias de rubricas que

3, Direcionamento da fala. Contudo, ao analisarmos

consideramos em nossa metodologia, expusemos o

o tipo 1, Estado físico, em separado, observamos

quantitativo de casos de cada uma delas no texto de

que as não transposições (47%) superam as trans-

Rodrigues. A mesma observação foi realizada quan-

posições (45%).

do fizemos a apresentação dos tipos das rubricas. Com relação aos tipos, encontramos os seguintes

Chama a atenção, ainda, no Gráfico 1, o fato de que

percentuais:

o tipo 1, Estado físico, apresenta um número de rubricas parcialmente transpostas (8%) consideravel-

- tipo 2, Estado emocional - 47%;

mente aos demais tipos e à sua própria categoria. É

- tipo 1, Estado físico - 32%;

possível notar, também, que o tipo 3, Direcionamen-

- tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico

to da fala, apresenta uma discrepância de classifica-

- 9%;

ção maior do que os demais tipos, com o maior per-

- tipo 3, Direcionamento da fala - 9%;

centual de rubricas transpostas (66%) entre todos os 74


Álvaro Dyogo Pereira

A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo

tipos de sua categoria.

o tipo 9, Indicação de iluminação, verificamos que a totalidade das rubricas presentes no texto não foi

Em razão de haver apenas sete casos de rubricas

transposta à obra cinematográfica. Chama atenção,

alocadas na categoria 2, Descrição de personagens,

ainda, o fato de que há, no tipo 8, Indicação de fi-

não faria sentido realizarmos uma inferência como

gurino / caracterização, um percentual consideravel-

esta, visto que o quantitativo tão reduzido, além de

mente maior de rubricas parcialmente transpostas

limitar fortemente qualquer análise comparativa,

em relação aos outros tipos de sua categoria.

poderia servir, no máximo, como exemplo, mas não indicando um padrão de comportamento da trans-

Seria possível observar, ainda, qual teria sido o com-

posição das rubricas.

portamento das rubricas da categoria “Descrição de Personagens” quanto a sua transposição. Os perso-

A seguir, apresentaremos, no Gráfico 2, as rubricas

nagens Boca de Ouro (3 casos) e D. Guigui (1 caso)

da categoria 3, Indicações técnicas, e seus tipos por

foram os únicos alvos aos quais foram atribuídas ru-

classificação em razão de seu comportamento na

bricas dessa categoria, todas elas transpostas à obra

obra fílmica de Nelson Pereira dos Santos.

fílmica. Contudo, o baixo quantitativo dificulta uma atribuição de comportamento às rubricas de Descri-

Gráfico 2

ção de Personagens em Boca de Ouro. 100%

100%

Como explicitado anteriormente, identificamos, du-

90%

79%

80%

71%

70%

rante nossa coleta de dados, as 16 personagens que

67%

são alvos de rubricas da peça de Rodrigues. Os alvos

60% 50%

Boca de Ouro, 10 Leleco e 11 (Celeste), concentram,

40%

27%

Categoria 3 Indicações técnicas

drigues. Os demais alvos representam 28% dos ca-

Tipo 8 - Indicação de figurino/ caracterização

0%

0%

Parcialmente transposta

Transposta

Não transposta

Transposta

Não transposta

Transposta

Tipo 7 - Indicação de cenário/objeto cênico

Parcialmente transposta

8%

2% Transposta

Parcialmente transposta

2% Não transposta

0%

Parcialmente transposta

10%

sozinhos, 70% dos casos de rubricas da peça de Ro-

25%

19%

20%

Não transposta

30%

Tipo 9 - Indicação de iluminação

Rubricas da Categoria 3 e seus Tipos por classificação Fonte: Elaboração do autor

sos de rubricas, enquanto, em 2% das ocasiões, o alvo é indefinido. A indefinição de alvo foi verificada somente em rubricas do tipo 9, Indicação de iluminação (em todos os casos), tipo 7, Indicação de cenário / objeto cênico, e tipo 1, Estado físico. O que observamos foi que o comportamento de

No Gráfico 2, observamos que, no que se refere

cada um desses alvos, em particular, não se difere

à categoria 3, Indicações técnicas, 71% dos casos

do comportamento de transposição das rubricas da

das rubricas são transpostos ao filme, 27% não são

peça no geral. Esta análise indica que, aparentemen-

transpostos e 2% são transpostos parcialmente. Este

te, os alvos não têm impacto no comportamento

comportamento se verifica, também, nos tipos 7, In-

das rubricas no caso do filme de Nelson Pereira dos

dicação de cenário / objeto cênico, e 8, Indicação de

Santos.

figurino / caracterização. Contudo, ao observarmos

75


Álvaro Dyogo Pereira

A transposição das rubricas da peça teatral Boca de Ouro ao filme homônimo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Boca de Ouro (Dir. Nelson Pereira dos Santos, 1963,

MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma

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KATTENBELT, Chiel. Intermediality in Theatre and Performance: Definitions, Perceptions and Media

RODRIGUES, Nelson. Boca de Ouro: tragédia carioca

Relationships. Cultura, Lenguaje y Representación

em três atos, 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

/ Culture, Language and Representation, v. 11,

2012.

2008, p. 19-29. ISSN 1697-7750.

76


O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes Rodrigo Fontanari ( Universidade Estadual de Campinas, pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Multimeios / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutor em Comunicação e Semiótica) rodrigo-fontanari@hotmail.com RESUMO: Esta comunicação busca estabelecer possíveis nexos entre a obra cinematográfica e a literária de Alain Robbe-Grillet a partir da noção de “literatura literal” ou “literatura objetiva”, que Roland Barthes cunhou para as primeiras obras romanescas desse romancista transformado em cineasta. Objetivamos concomitantemente uma pesquisa em torno dos glissements do próprio estilo grilletiano, que já podem ser percebidos em Marienbad, onde há um eterno deslizamento dos tempos e espaços; tal busca aproveitará os termos de Robbe-Grillet em Por que amo Barthes, quando se refere ao problema; trata-se de uma busca inseparável daquela a ser realizada em torno do Neutro porque o discurso que desliza não fixa o sentido. PALAVRAS-CHAVE: Nouveau cinéma, Alain Robbe-Grillet, Roland Barthes. Do nouveau romana ao nouveau cinéma

é lançada por Jean-Paul Sartre, em 1947, e configura-se no prefácio escrito para o romance Portrait d’un

Uma apresentação de Alain Robbe-Grillet cineasta

inconnu, de Nathalie Sarraute, em que o filósofo,

requer que se comece por apresentar o importan-

referindo-se a esses romances como “obras estra-

te movimento literário denominado nouveau roman,

nhas” e “dificilmente classificáveis”, arremata essa

vanguarda tardia do romance que irrompe em mea-

nova realidade do romance francês com as seguin-

dos do século XX, na França. Por seu turno, tal apre-

tes palavras: “elas [essas obras] marcam somente

sentação pede uma explicitação terminológica.

que nós vivemos em uma época de reflexão e que o romance está refletindo sobre ele mesmo” (SARRAU-

O termo nouveau roman, na verdade, como nota

TE,1996, p.8).

Pierre Lepape, surge “no final dos anos 1950, de uma falta de etiqueta mais do que a criação de uma

O que caracteriza, afinal, esse último movimento

verdadeira escola literária.” (Lepape 1994, p. 01), isto

coeso de vanguarda do romance francês, o nouveau

é, uma espécie de rotulação que a crítica cunhou

roman? O que caracteriza essencialmente o nouveau

para agrupar esse escritores que despontavam no

roman, seguindo as proposições de Gerard Prince

cenário literário francês da época, e não uma deno-

(1993, p. 929-934) em De la littérature français, é a

minação que partiu dos envolvidos. Para René Al-

que a história e os personagens estão sempre na

bérèsv(1962, p. 407) em Histoire du roman moderne,

eminência de se realizar, pois o nouveau roman não

trata-se de uma rotulação da imprensa, a maneira

conta mais uma história à qual o leitor se enreda. Ao

“como o denominam os jornalistas”.

contrário, por se revelar, antes de tudo, como um processo de escritura, o nouveau roman, faz o leitor

Pois, em curso desde 1957,é atribuída por Émile

participar ativamente da construção a narrativa. E

Henriot, num artigo para o jornal Le Monde. Outro

então, toda a carga dramática da narrativa tradicio-

apelativo é “escola do olhar”, alusivo ao descritivismo

nal que conduz progressivamente ao ápice da reve-

extremo das páginas desses romances. Outro é “an-

lação dá lugar a um tempo morto, branco, circular e

tirromance”. Sabe-se que esta última denominação

marcado, notadamente, pelas abruptas repetições, 77


Rodrigo Fontanari

O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes

antecipações, similitudes, variações, enfim, movi-

– há mesmo quem pense –reflete-se na própria es-

mentos que desconcertam o leitor desacostumado

critura. É o caso de Claire Clouzet (1973, p. 50), em Le

com esse regime lacunar de narração.

cinéma français depuis la nouvelle vague, que observa: “Desde seu primeiro romance, Alain Robbe-Grillet

Há uma aderem dos nouveaux romanciers às ima-

escreve cinematograficamente. Sua técnica descriti-

gens técnicas. Eles levam para o campo do cinema-

va criou uma equivalência escrita da linguagem fílmi-

tográfico muitas das características estéticas de seus

ca”, escreve a autora.

romances modernos. Esse entrecruzamento estético se deu, notadamente, porque dois dos maiores

Como se sabe, o cinema quanto a literatura de re-

representantes do nouveau roman francês, Magueri-

presentação clássica se mantiveram, por muito tem-

te Duras e Alain Robbe-Grillet, ligaram-se ao cineas-

po, dentro daquele modelo retórico do século XIX. E

ta Alain Renais, que roteirizou, em 1960, Hiroshima

foi a literatura primeiro que rompeu com essa dis-

meu amor, de Duras e, um ano depois, em 1961, de

cursividade, notadamente, o nouveaux romanciers

Robbe-Grillet, O ano passado em Marienbad. Sabe-se

francês, despertando o cinema para o fato de que

que em consequência dessa primeira experiência,

ele tinha nascido não para contar, mas para mostrar,

eles passaram a atuar no cinema, em uma dupla

o que o liberou da armadilha de representação que

frente, a da roteirização e a da direção.

faz da imagem cinematográfica um signo.

Os nouveau romanciers como também os nouveaux

O cinematográfico, partir daí, afasta-se do modelo

cinéastes propunham desconstruir a realidade ou

de narrativa romanesca clássica do século XIX, cujo

para usar a mesma expressão de Claude Murcia

fundamento era a linearidade e a representação mi-

(1998, p. 43), “desconcertar as convenções do real”,

mética suscitada pelo desejo de verdade e “rasga”

no entanto, esses últimos enfrentavam a irredutibi-

a conformidade para aceder às experimentações

lidade do real próprio da imagem cinematográfica.

visuais.

Pretende-se apontar certas “aproximações escriturais” entre a obra romanesca e cinematográfica que

Não existe mais espaços inteiros tanto no signo ver-

não se estabelecem por uma ordem de subordina-

bal quanto no visual, tudo é fragmentação. A narra-

ção, mas, por uma relação transversal, que as con-

tiva se estilhaça em pedaço, cuja colagem é, comple-

duz a reagir entre si. Essas artes contaminam-se sem

tamente estabelecida não pelo autor-diretor, mas, o

entretanto se confundirem. Aliás, o fato é de alguma

expectador-leitor perplexo que aí intervém. É o que

maneira contemplado por Alain Robbe-Grillet em

nota Claire Clouzot, ao escreve que um filme de Ro-

Pour un nouveau roman, mais especificamente, em

bbe-Grillet (1973, p. 69) é “um objeto existente in-

seu ensaio intitulado “Tempo e descrição no roman-

dependentemente do seu autor e cujo espectador,

ce atual”, em que assume que certas preocupações

apossando-se dele, torna-se um dos criadores”.

dos nouveaux romanciers podem ser reencontradas no cinema se pensarmos a imagem cinematográfica

Ora, se aceitarmos a leitura proposta por Roland Bar-

não do ângulo da sua objetividade mas de sua com-

thes para os primeiros romances de Robbe-Grillet

posição. Escreve ele: “é apenas aí que o romancista

no sentido de que eles são “objetivos”, “coisistas” e,

pode encontrar, ainda que modificadas, alguns de

portanto, neutro. “Toda sua arte consiste justamen-

suas preocupações como o estilo” (ROBBE-GRILLET,

te em decepcionar o sentido ao mesmo tempo que

1969, p.100).

ao abre.” (2007, p. 104), confessa Barthes em seu ensaio “Uma conclusão sobre Robbe-Grillet”. Não dei-

A transversalidade da obra de Alain Robbe-Grillet

xa ainda de concluir Barthes, os objetos na obra de 78


Rodrigo Fontanari

O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes

Alain Robbe-Grillet não possui “qualquer valor an-

palavras de Alain Robbe-Grillet ( 1969, p. 104), as ar-

tológico” (2007, p. 104), isto é, não tem função nem

tes modernas “nos deixam vazios, desconcertados”,

mesmo substância, eles são puros espetáculos; de

pois “não aspiram a nenhuma outra realidade além

um esvaziamento propriamente da intriga. E quem

daquela da leitura, ou do espetáculo, como ainda

já viu algum filme de Robbe-Grillet sabe também

parecem estar sempre se contestando, pondo-se em

que os seus personagens despossuídos de qualquer

dúvida a si mesma à medida em que se constroem”.

espessura psicológica, ausentados, muitas vezes, de qualquer nome que possam caracterizá-los, são aí

L’Année Passée à Marienbad

também transformados em objetos. Em 1961, a França recepcionava O Ano passado em É tempo de examinar mais de perto as próprias

Marienbad cujo título original é L’Année dernière à

“composições de imagens”, que nos propõe Alain

Marienbad. Tendo surgido de uma colaboração bas-

Robbe-Grillet. Mas antes de avançarmos nessa aná-

tante inusitada entre Alain Resnais que assina como

lise, é necessário advertir o leitor para algumas es-

diretor e Alain Robbe-Grillet, que produz o roteiro do

pecificações do cinema robbe-grilletiano. Mesmo

filme e, logo após, publica-o em formato cine-roman.

que Robbe-Grillet assuma em Por que amo Roland Barthes, “é necessário se contradizer caso contrário

Nessa trama cinematográfica de personagens anô-

não se pode deslizar” (1995, p. 56), essa contradição

nimos, não se sabe nada deles. Dentre eles, três

aparente de que fala Robbe-Grillet, pode ser vista

destacam-se. Embora nenhuma delas tenha sido

como um traço da arte moderna, como escreve Gil-

nomeadas no filme, no roteiro publicado posterior-

les Deleuze (2006, p. 403) em Diferença e Repetição.

mente, elas são identificados apenas por letras.

Pois, para o filósofo francês, “A arte não imita, mas isso acontece, antes de tudo, porque ela repete, e

A bela mulher “A” e vivida pela atriz Delphine Seyrig.

repete todas as repetições, a partir de uma potência

Quem da vida ao narrador-personagem “X” é pelo

interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é simula-

ator Giorgio Albertazzi, cuja missão é perseguir “A” e

cro, ela subverte as cópias em simulacros)”.

insistir que eles se encontraram no ano anterior. E o autor Sacha Pitoëf, interpreta a personagem “M”, o

Dessa perspectiva deleuziana da repetição, não se

suposto marido/amante de “A”, um jogador.

deve, de nem um modo, encará-la como uma simples contradição, embaralhamento, mas uma espé-

Em síntese, uma parcela considerável dos 86 minu-

cie de ilisibilidade legível, uma vez que “todas estas

tos de projeção do filme fixa-se em torno de um dra-

repetições coexistem e, todavia, estão deslocadas

ma romanesco até certo ponto bastante banal. Den-

umas em relação às outras” (2006, p. 404).

tre a clientela desconhecida que circula no hotel, um deles, o personagem-narrador, X, vagueia ao longo

Nessa constante permanência da dúvida, que, ao

dos corredores intermináveis, de sala em sala às ve-

mesmo tempo, acaba por suspender qualquer pos-

zes cheia e outras tantas, totalmente deserta, atra-

sibilidade última de significação, é a diferença, que

vessa portas e portas, entrechocando-se com suas

irrompe nessa repetição vertiginosa e nesse puzzle

próprias imagens refletidas nos inúmeros espelhos

que se torna a obra cinematográfica de Alain Rob-

encrustados nas paredes desse imóvel, seus olhos

be-Grillet. Cabe ao espectador intrigado e bastante

se movem de um rosto a outro de tantos outros des-

desestabilizado tentar de algum modo “reconstituir”

conhecidos que habitam o falanstério. Ele vai como

a narratividade; ato heroico que, logo nas primeiras

que recolhendo sons, ruídos, fragmentos de frases,

tentativas, revela-se impossível de ser concluído. Nas

que seu ouvido registra aleatoriamente enquanto, 79


Rodrigo Fontanari

O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes

aparentemente desbusolado, anda pelos cômodos

Ver e rever Marienbad é entrar no labirinto. Se por

do hotel.

um lado essa evocação à forma labiríntica é cara à estética de Alain Robbe-Grillet; por outra, nesse

Seus olhos voltam-se insistentemente à uma jovem

primeiro filme assinado a quatro mãos, o mosai-

mulher bela, à quem ele tenta, incansavelmente,

co que evoca o labirinto advém menos da mudan-

convencer de que eles já haviam se encontrado, há

ça abrupta da cenografia, mas, sobretudo de uma

um ano, e que eles se apaixonaram. E ele voltou

espécie de labirinto mental. Ter ali estado ou não,

àquele encontro marcado por eles mesmos,e que,

encontrado ou não o “X” no ano passado e como

dessa vez, ele a levará com ele.

ele marcado de se rever, já produz na mente do espectador a vertigem de não poder agarrar-se à es-

Dentre as personagens “X” e “A”, “X” faz um imenso

tabilidade da certeza de que de fato algo se passou

esforço em convencer “A” de que ela havia lhe pedi-

em Marienbad.

do um ano para poderem fugir juntos. No entanto, a moça parece não se lembrar de que nem de “X” nem

E é nessa forma labiríntica a forma é acêntrica, isto

da promessa feita. Marienbad é feito para decepcio-

é, não nem há um centro para o qual tudo se con-

nar no tempo. À que ano, à que passado referem-se

verge, a narrativa se constrói diante do espectador

essas imagens projetadas na tela? Pergunta que per-

a partir de uma emaranhado de fios difusos; nem

manece em aberto.

muito menos uma verdade ou um significado último a ser descoberto. E aí o sentido torna-se decep-

A ilusão que coloca em cena o cinema de Alain Ro-

cionante, na medida em que ocorre a suspensão do

bbe-Grillet e Alain Resnais, que pode ser talvez en-

sentido. Ao olho semiótico vê-se aí cintilar portanto

tendido como um procedimento da literatura do

a concepção barthesiana de neutro, uma vez que

nouveau roman, e que vivem os heróis (e talvez os

ele consiste numa forma da linguagem burlar o pa-

espectadores) desse filme, é essencialmente aquele

radigma (desfazê-lo), em que a obrigação da língua

do movimento, mas do movimento em falso, decor-

é suspensa, adiada, burlada. Trata-se aí, mais espe-

rente notadamente de sua fixação, de sua repetição

cificamente, é um terceiro termo que impossibilita,

e de sua desbobinagem, do que da progressão.

suspende o paradigma necessário para constituir sentido, lembra-nos Barthes em Neutro (2005, p.

Diante desses aspectos ou características da ima-

34). Esses conceitos aludem a um dizer que pode ser

gem que reformulam a experiência cinematográfica,

incisivo e colocar em colapso a máquina semiótica,

é quase inevitável deixar de entrever aí uma estética

esquivando-se da lei dos signos e das contrições da

do vazio, na medida em que o cinema de Resnais e

língua, sem, entretanto, enveredar-se pelo patético,

Robbe-Grillet procura tornar sensível pelos seus pró-

pelo melodrama.

prios meios uma existência que não pode se caracterizar sob a forma realista: o inesperável e o inexpli-

O espectador mante-se à distância, na superfície rasa

cável. Em Marienbad, depara-se com uma estranha

da tela, pois, o filme faz na tela enquanto se projeta.

categoria de imagem que já não é nem imagem mo-

Como nota René Pédral no prefácio de Robbe-Grillet

vimento nem imagem-tempo, mas sua petrificação:

cinéaste, tudo acontece a partir de “uma sequência

um instante de congelamento no fluxo dinâmico das

elegante de imagens mentais entre as quais cada

imagens em movimento. Em outros momentos, evi-

espectador é convidado a encontrar pessoalmente

dencia-se a transformação desses personagens em

a razão dos encadeamentos” (2005, p. 7-8). Assim,

verdadeiros autômatos, cuja presença assemelha-se

no nouveau cinéma robbe-grilletiano, as imagens

àquelas de uma peça de jogo de xadrez.

assumem posição na montagem sem, no entanto, 80


Rodrigo Fontanari

O Ano Passado em Marienbad – Alain Robbe-Grillet cineasta segundo Roland Barthes

conceder um sentido último na lógica da narrativa.

se realiza-se diante dos olhos do espectador. E en-

A narrativa moderna ou a disnarrativa reivindicada

tão, o enunciado não se fecha, permanecendo em

por Robbe-Grillet para sua obra cinematográfica

estado de suspensão e seu significado, por sua vez,

torna-se estilhaços, como se de fragmentos vindos

escapa tanto ao espectador-leitor quanto ao próprio

de alhures e desconexos a enunciação da história

narrador.

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Graal, 2006.

81


Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia Juily Manghirmalani (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestranda) juilymalani@gmail.com RESUMO: Este artigo busca detectar características híbridas de diferentes artes que compõem as narrativa e estéticas de filmes indianos populares e da diáspora, através de análises de sequências dos filmes Fogo e desejo (Deepa Mehta, 1996) e Lajja (Rajkumar Santoshi, 2001). Ambas as obras apresentam discursos críticos sobre o hinduísmo, cultura e gênero feminino na Índia. Este artigo apresenta quais as influências de diferentes artes que contribuíram para a formação do cinema popular, em específico as influências dos contos mitológicos indianos. PALAVRAS-CHAVE: hibridismo, cinema indiano, diáspora. O cinema indiano trabalha com estruturas narrati-

objetivos de vida, que são: dharma (ação correta), ar-

vas e estilísticas próprias desde o seu nascimento,

tha (propósito), kama (prazer) e moksha (libertação).

na ainda Índia colonial. Sua profunda “indianização” ocorreu como uma estratégia política nacionalista,

Já o Ramayana (Viagem de Rama) celebra a vida e

apesar de também obter influências externas com

proeza do Príncipe Rama, que é exilado por seu pai

as mudanças advindas da globalização.

sob o comando de sua madrasta Kaikeji. Rama parte para a floresta com sua esposa Sita e seu irmão

Para entender como o cinema híndi (ou cinema po-

Lakshman. Ao sair para caçar, deixa Sita sozinha e

pular) tomou forma e distinção, K. Moti Gokulsing e

ela é raptada pelo rei-demônio Ravana. Rama, com

Wimal Dissanayake (1998, pg.17) afirmam que é pre-

ajuda do exército de macacos liderados por Hanu-

ciso analisar forças que exerceram profundo impac-

man, recupera Sita. Com dúvidas sobre a lealdade e

to no crescimento do cinema nacional.

pureza de sua esposa, Rama pede-lhe que faça o teste de fogo, pois comprovaria sua castidade caso ela

A primeira força é a constituída pelos épicos Rama-

saísse viva e intacta. Sita sobrevive ao teste e, mes-

yana e Mahabharata. Esses dois contos têm influen-

mo sabendo que ela manteve-se intocada durante o

ciado, há muitos séculos, a vasta massa populacional

cativeiro, Rama se sente obrigado a afastar-se. Leal

indiana, sendo encontrados em diversas formas de

ao marido, Sita aceita a sua condição, mas abre uma

arte como poesia, drama, arte e escultura, alimen-

fenda no chão e é tragada pela terra. Triste com a

tando a imaginação de vários tipos de artistas e edu-

perda da esposa, Rama se oferece ao deus da morte.

cando a consciência da nação. A influência deles no

Esse épico transmite os valores que regem o relacio-

cinema pode ser analisada em quatro níveis: temas,

namento entre humanos pelo hinduísmo: o caráter

narrativa, ideologia e comunicação.

de pai, filho, irmão, esposa, monarca e servos ideais.

O Mahabharata (A Grande Índia) gira em torno das

Os teatros sânscrito, folclórico e parsi (do século XIX)

lutas entre duas famílias principescas, os Pândavas

foram outras grandes influências do cinema india-

e seus primos, os Kauravas, para possuir um reino

no. Por muitos anos, a cultura e histórias indianas

localizado perto da atual cidade de Déli. Além da

eram passadas oralmente e através de encenações,

narrativa épica, o Mahabharata desenvolve ideologi-

cada um desses teatros contribuiu de forma distin-

camente conceitos básicos do hinduísmo, os quatro

ta. O teatro sânscrito eram constituídos por grandes 82


Juily Manghirmalani

Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia

espetáculos de “dança-drama”; o teatro folclórico

A seguir, faremos análise de sequências de dois fil-

tinha características mais populares e atraiam as

mes, um do cinema popular indiano e outro de sua

massas; enquanto o teatro parsi destacava-se pelos

diáspora.

dramas sociais e históricos. Esteticamente, as peças possuíam misturas de realismo e fantasia, música e

Apesar do filme se passar inteiramente na Índia,

diálogo, narrativa e espetáculo, todos combinados

Fogo e desejo (Deepa Mehta, 1996) é parte do cinema

no quadro do melodrama.

de diáspora por ser financiado em uma coprodução com o Canadá e possui uma parte da equipe estran-

Com isso chegamos às influencias estilísticas moder-

geira. A diretora Deepa Mehta é, inclusive, uma das

nas que gradativamente alteraram a estética dos fil-

realizadoras referenciadas por pertencer à este seg-

mes do cinema indiano. Os musicais hollywoodianos

mento do cinema indiano.

fascinaram os cineastas indianos, que relacionavam de forma única os traços do cinema clássico ameri-

Fogo e desejo começa com a chegada da mais nova

cano e das performances indianas: o enredo não era

integrante da família, Sita. Porém a personagem vive

usado para ligar a narrativa ao espetáculo. Pelo con-

frustrações em seu casamento desde o seu início

trário, músicas e danças eram – e ainda são – usadas

por seu marido, Jatin, possuir uma amante, a chi-

como expressões naturais de emoções e situações

nesa Julie. O irmão mais velho Ashok, é casado com

emergentes no dia a dia, intensificando o elemento

Radha. Na casa vivem também Mundu, serviçal da

fantasia através do espetáculo, criando a impressão

família, e Biji, a mãe viúva dos dois irmãos que após

de que eram naturais e lógicas. A música se consti-

um derrame ficou muda e paraplégica.

tuiu como componente essencial na construção das emoções culturais indianas.

Ashok começa a seguir os ensinamentos de celibato de Gandhi após descobrir que ele e Radha não

A última força de que os autores se recorreram foi o

podem procriar e se abstém de atividades sexuais.

impacto da Music Television. O ritmo dos videoclipes,

Por causa dessa escolha de Ashok, Radha sente-se

com cortes rápidos, sequências de dança e ângulos

obrigada a também abdicar de seus desejos e neces-

de câmera ficaram associados ao canal musical de

sidades sexuais, até a chegada de Sita.

televisão. Após a década de 1980, os clipes musicais nos filmes ganharam força e se tornaram um

Apesar dos nomes das protagonistas serem nomes

dos materiais mais rentáveis vinculados às obras

comuns na Índia, no filme eles fazem menção à duas

cinematográficas.

grandes deusas do Hinduísmo: Radha e Sita. Na mitologia, Sita é a mulher de Rama, conhecida, princi-

Estas grandes potências foram levantadas pelos au-

palmente, pelo grande conto Ramayana, que, como

tores no final dos anos 1990. Atualmente, podemos

falado anteriormente, é excessivamente repetido e

pensar que a internet também é uma das grandes

referido dentro da cultura indiana.

influências desse cinema popular. Sendo uma das formas pela qual indianos, viventes na Índia ou no

No próprio filme, há, pelo menos, três passagens

exterior, têm acesso a filmes de forma globalizada e

que fazem menção ao conto e, todas as vezes, se

os consomem de forma ágil. Além de alterar a dinâmica de recepção, a internet também presta assistência ao soft power deste cinema nacional1. 1 - Soft power é um conceito desenvolvido por Joseph Nye para descrever a capacidade de atrair e cooptar em vez de

coagir, usar a força ou dar dinheiro como meio de persuasão. O poder brando é a capacidade de moldar as preferências dos outros, através de recurso e atração. Uma característica definidora de poder suave é que ele é não coercitivo. A moeda do soft power é a cultura, os valores políticos e as políticas externas.

83


Juily Manghirmalani

referem ao momento em que Sita, após ser seques-

Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia

metalinguístico com o próprio teatro, ao filmá-lo.

trada pelo deus-demônio Ravana e salva por Rama, deve provar sua “pureza e lealdade” ao marido atra-

De volta à mitologia, Radha é amante de Krishna, um

vés de um teste de sobrevivência ao fogo. Ilustrado

dos deuses mais importantes do hinduísmo, apre-

nas imagens retiradas do filme, que vemos abaixo:

sentado em outro conto fundador do comportamento e das crenças hindus, o Mahabharata. Radha representa a beleza e o amor relacionados ao desejo e à paixão. Dentro do filme é possível enxergar os conflitos vividos pelas personagens de nomes homônimos em relação com as deusas. Por anos reprimida, Radha confessa a Ashok, ao final do filme, seu desejo por Sita2, com a representação do que a deusa com o

Biji ao assistir o ritual de fogo na TV (Quadro 1), em Fogo e Desejo, 1996.

mesmo nome proclama – a paixão. E a de Sita, ao renegar toda a tradição imposta a ela por ser mulher indiana, e também, por possuir esse nome (da deusa que representa pureza, dedicação e serventia ao marido), como uma forma de se rebelar de tudo que sempre lhe foi imposto. Entretanto, é Radha quem passa pelo ritual de fogo nos minutos finais do filme. Após Mundu denunciar o relacionamento homossexual entre as duas personagens a Ashok, Sita convence Radha a fugir da

Pôster da série de filmes sobre o Ramayana na loja de filmes de Jatin. (Quadro 2), em Fogo e Desejo, 1996.

casa para iniciarem uma vida em conjunto. Porém, a personagem decide esperar Ashok para uma última conversa. Durante a discussão, Ashok a beija à força e por desespero, pede que ela não fuja e busque a religião como ele fez. A mentalidade patriarcal indiana o impede de compreender o desejo feminino e a subversão da política de sexualidade que aconteceu entre as duas personagens, enxergando apenas como “um pecado aos olhos de deus e dos homens”3.

Teatro folclórico sobre o ritual de fogo de Sita, no Ramayana que Ashok assiste com seu guru (Quadro 3), em Fogo e Desejo, 1996.

Quando Radha se distancia de Ashok, sua vestimenta

Nos quadros podemos ver como o conto é reitera-

vés do teatro folclórico. Além de fazer parte da es-

2 - Radha fala: “Você sabia que sem desejo eu estava morta? Sem desejo não faz sentido viver. E você sabe de mais uma coisa? Eu desejo viver, desejo Sita, desejo seu ventre, sua compaixão, seu corpo. Eu desejo viver novamente.” Tradução livre.

trutura narrativa cinematográfica, há um diálogo

3 - Fala do personagem Ashok neste momento do filme.

do de diversas formas, seja pela narrativa seriada da televisão, o material impresso e também atra-

84


Juily Manghirmalani

Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia

pega fogo. Imerso nos distúrbios dos acontecimen-

por dignidade e direitos são assuntos presentes nas

tos recentes, inclusive nos últimos treze anos seguin-

quatro histórias dais quais Vaidehi participa e apre-

do uma vida de dedicação espiritual, Ashok vê a si-

senta diversas discussões relacionadas ao quadro

tuação como uma provação de fogo que Radha deve

indiano de violência contra mulheres. Estão são: a

passar. Ele a deixa sozinha e sem ajuda, enquanto o

insegurança ou dependência financeira gerada por

resto da casa continua a pegar fogo, salvando ape-

um casamento em que a mulher cuidar apenas da

nas Biji que assistia tudo de longe.

casa e família; a falta de apoio emocional, vindo especialmente das famílias; a importância do dote;

Radha consegue sair da casa e encontrar Sita em um

estereótipos vinculados à mulher, vindo da repre-

templo sufista. O filme direciona a leitura de forma

sentação repetitiva de Sita que questiona, inclusive,

a entender que a personagem prova a sua pureza e

a crença de que o marido seja uma espécie de deus

lealdade, em relação ao que o ritual representa para

na vida da mulher; o assédio sexual e aborto; a pre-

o hinduísmo.

ferencia pelo filho homem e o infanticídio feminino; e o estupro coletivo.

Em sua face interna, há o enorme cinema híndi (mencionado também como cinema popular) em que Laj-

A longo prazo, a identificação de Sita, a deusa dos

ja (Rajkumar Santoshi, 2001) também apresenta crí-

contos mitológicos como devota e casta é enorme-

ticas ao papel da mulher em referência à Sita.

mente prejudicial para as mulheres indianas e Lajja pontua isso de formas singelas até tornarem-se

O cinema híndi dificilmente se aprofunda em temá-

explícitas.

ticas conflituosas, principalmente pelo peso do fundamentalismo hindu no país, preferindo tratar de

Em uma das cena do filme há novamente uma apre-

situações de forma mais leves e romantizadas. No

sentação em forma de teatro folclórico do momento

entanto, o diretor Rajkumar foi um pouco mais lon-

em que Sita deve passar pelo teste de fogo.

ge. Ele utiliza das estratégias cinematográficas indianas como o uso de danças e música, atrizes famosas

Janaki é atriz e interpreta Sita em uma peça do Rama-

e melodrama, porém com a intenção de pontuar a

yana, ela está grávida porém não é casada. Minutos

problemática de gênero na sociedade indiana.

antes de entrar no palco, fala pro pai de seu filho da gravidez e ele a rejeita, insinuando que o filho pode

Vaidehi é a personagem principal, ela vive em Lon-

não ser dele e que ela deve pensar em abortar. Na

dres com o seu marido. Porém ele é negligente e a

peça, este homem é quem interpreta Rama, marido

deixa constantemente frustrada. Quando a persona-

de Sita, e quando Janaki entra em cena, ela reverte a

gem descobre que está grávida, entra em desespero

situação imposta à Sita e também à ela como mulher

e decide voltar para a Índia, para a casa de seus pais.

indiana.

Ela, no entanto, é rejeitada pelos pais que acreditam que agora ela deve devoção ao marido e deve lidar

Na cena, Janaki (como Sita) questiona qual a impor-

com as dificuldades do matrimônio. Vaidehi não

tância da opinião da sociedade sobre o casal, qual

aceita essa condição e foge Índia adentro, onde per-

o peso da moralidade se eles se amam. Os atores

passa a vida de outras três mulheres.

coadjuvantes da cena começam a se desesperar, não compreendem porque Janaki deixou de pro-

Intencionalmente, os nomes das personagens do fil-

clamar as suas falas corretamente. O ator que faz

me são Ramdulari, Vaidehi, Maithili e Janaki, nomes

Hanuman tenta acionar o teste de fogo porém Janaki

que se referenciam à Sita, no Ramayana. A busca

mantém-se firme e o rejeita. 85


Juily Manghirmalani

Hibridismo no cinema popular e de diáspora da Índia

Para concluir, em uma reflexão sobre o primeiro fil-

função ideológica na qual indica que todas as mu-

me, Uma Parameswaran (JAIN, 2007, pg.57) questio-

lheres indianas são criadas para “serem” Sitas. Esta

na as escolhas dos nomes das personagens femini-

pontuação também entra em acordo com o uso de

nas. Por conta do teste de fogo, o nome da esposa

nomes relacionados à Sita feitos em Lajja.

de Ashok deveria ser Sita, não Radha. Porém, diferente das expectativas, o filme consegue formular al-

Segundo a autora Bandana Chakrabarty (JAIN, 2007,

gumas críticas com essa troca. Ao nomear outra per-

pg.124), Sita tornou-se o referencial de mulher e íco-

sonagem de Sita, ela cria um subtexto sobre como a

ne cultural que faz a manutenção e a validação de

construção de mulher é feita na Índia. Ao criar esse

formas de opressão ao gênero feminino.

distúrbio da narrativa principal, ela utiliza isso em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESAI, Jigna. Beyond Bollywood: the Cultural Politics

JAIN, Jasbir. Films, Literature and Culture: Deepa

of South Asian Diasporic Film. New York/London:

Mehta’s Elements Trilogy. Jaipur: Rawat Publications,

Routledge, 2004.

2007.

GOKULSING, K. Moti e DISSANAYAKE, Wimal. Indian

THORAVAL, Yves. The Cinemas of India. Nova Delhi:

Popular Cinema – A Narrative Of Cultural Change.

Macmillan India Ltd., 2000

Inglaterra: Trentham Books Limited, 1998. REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS FOGO E DESEJO. Deepa Mehta. Índia; Canadá, 1996,

LAJJA. Rajkumar Santoshi. Índia, 2001, 35mm.

35mm.

86


Entre conceitos: historiografia e teorias intermidiais Coord. Arthur Autran (UFSCar)


A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto Fabiano Pereira de Souza (Universidade Anhembi Morumbi, mestrando) fabian@uol.com.br RESUMO: Este artigo tem o intuito de apresentar os conceitos publicados pelos cineastas russos que defenderam a polifonia, o contraponto sonoro e o assincronismo no início do que se convencionou chamar de cinema sonoro, período iniciado em 1927, seja como meta para o uso do som no cinema ou possibilidade expressiva. Pretende-se analisar os escritos e os primeiros filmes sonoros dos cineastas e teóricos russos Sergei Eisenstein, V. I. Pudovkin e G.V. Aleksandrov, autores do manifesto em prol da polifonia publicado em 1928, e Dziga Vertov, que valorizava o uso do som como possível contraponto às imagens. Para efeito de delimitação de escopo, serão consideradas as obras dirigidas por eles nos primeiros cinco anos do cinema sonoro soviético, de 1930 a 1934. PALAVRAS-CHAVE: cinema russo, som, polifonia, contraponto sonoro, assincronismo. Introdução

velikih vabot, Abram Room, 1930)1, lançado em março de 1930. Ele agrupava uma série de episódios do-

Embora 1927 seja considerado o início do cinema

cumentais sobre o Plano Quinquenal e animações.

sonoro, sabe-se que esse marco representado pelo

O som se restringia à música, declamações agit-prop

lançamento comercial de O cantor de jazz (The Jazz

e alguns efeitos produzidos em estúdio. Apenas

Singer, Alan Crosland, 1927) se refere ao aparato

duas salas de exibição na União Soviética estavam

tecnológico com que esse filme contava, fazendo

equipadas para exibi-lo, uma em Moscou, outra em

com que a obra pudesse ser exibida em salas de

Leningrado.

projeção especialmente equipadas para tanto com som sincrônico dos diálogos em cena, ainda que o

Antes mesmo disso, cineastas russos que já publi-

filme em si conte apenas com duas inserções desse

cavam alguns dos primeiros materiais teóricos pro-

tipo. No ano anterior, Don Juan (Alan Crosland, 1926)

priamente cinematográficos defendiam outros tipos

já contava com trilha sonora sincronizada ao filme.

de montagem que desacomodassem o expectador

Ambos foram produzidos pelo estúdio Warner Bro-

dos preceitos da narrativa clássica. Entre eles se des-

thers, com tecnologia da Bell Telephone Company.

tacou Sergei Eisenstein. Já em 1928, ele se uniu aos colegas Vsevolod Pudovkin e Grigori Aleksandrov

O cinema se tornava a primeira mídia audiovisual. A

para se manifestarem contrários à assimilação na-

prioridade no som de cinema já era a voz, os diálo-

turalista do som para filmes. Tal manifesto foi cha-

gos em cena. Nos Estados Unidos foi cunhado o ter-

mado de Declaração sobre o futuro do cinema sonoro,

mo “talkies” para se referir a esse novo tipo de “filme

publicado em 5 de agosto.

falante”. Estava estabelecido o poder do realismo e da verossimilhança pela sincronia labial na indústria

Apenas o uso polifônico do som com relação à

cinematográfica, sua regra de ouro. Já o primeiro fil-

peça de montagem visual proporcionará uma nova

me sonoro soviético foi A plan for great works (Plan

1 - Na ausência de títulos em português, os filmes serão tratados aqui por seus títulos em inglês.

88


Fabiano Pereira de Souza

A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto

potencialidade no desenvolvimento da montagem.

pós-período silencioso dava continuidade a estudos

O primeiro trabalho experimental com som deve

anteriores do cineasta. Em Kino-Eye - The writings of

ter como direção a linha de sua distinta não sincro-

Dziga Vertov, Annette Michelson ressalta o papel sim-

nização com as imagens visuais. E apenas uma in-

bólico da teoria russa do som cinematográfico que o

vestida deste tipo dará a palpabilidade necessária

filme Entusiasmo (Entuziazm (Simfoniya Donbassa),

que mais tarde levará à criação de um contraponto

1931), de Vertov, representa até hoje. Para Michel-

orquestral das imagens visuais e sonoras. (EISENS-

son, com a invenção da gravação móvel de som –

TEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV. Apud Eisenstein,

Vertov conseguiu uma parceira com rádios locais

2002, p. 226)

para tanto, antecedendo soluções que só o gravador portátil Nagra popularizaria na segunda metade do

Pudovkin deu prosseguimento ao assunto no en-

século XX –, o jogo das relações de som e imagem e o

saio Assincronismo como princípio do cinema sonoro.

assincronismo desse jogo, Vertov realizou “o primei-

Considerando o uso naturalista do som como algo

ro e até hoje mais significante contribuição ao filme

primitivo, ele distinguia avanço técnico de avanço

sonoro soviético” (MICHELSON, 1984, p. 57).

enquanto expressão artística. Para Pudovkin, o som e a imagem deviam cada um seguir um curso inde-

Declarações sobre a necessidade de evitar que mo-

pendente que, intercalados, criariam uma exatidão

mentos visuais coincidam com momentos audíveis,

maior da natureza representada que a mera cópia.

assim como declarações sobre a necessidade de

Além da voz dos personagens como possível direcio-

haver apenas filmes sonoros ou filmes falados não

namento narrativo fora de quadro, a música como

valem um grão de feijão. No filme sonoro, como

simples acompanhamento também era um desper-

no filme silencioso, só distinguimos dois tipos de

dício de meios para ele. Mais que defender a ideia

filme: documentário (com conversas e sons reais)

do contraponto sonoro, Pudovkin soube explicá-lo

e ficção (com conversas e sons preparados artifi-

por meio de um exemplo em que ele imagina os

cialmente). Nem documentário nem ficções são

olhos do leitor como equivalente à visão da câmera.

obrigados a ter momentos visuais coincidindo (ou não coincidindo) com momentos audíveis. Grava-

O cineasta acrescenta que as impressões que rece-

ções sonoras e gravações silenciosas são editadas

bemos do mundo são parciais. Nossa atenção atua

da mesma fora; podem coincidir (ou não coincidir)

como editora de nossa audição. Isso ocorre por con-

na montagem ou podem misturar uma com a ou-

ta de dois ritmos que precisam ser considerados, o

tra em várias combinações. (VERTOV, 1930. Apud

do mundo objetivo e o ritmo com que o homem ob-

FISCHER, 1985, p. 249)

serva o mundo, sua percepção. Este último varia de acordo com nossas emoções, que alteram velocida-

Vertov combinou trechos de contraponto sonoro a

de de som tanto quanto de imagens. O filme sono-

outros de sincronia entre imagens e sons, lançan-

ro pode criar correspondências variadas com esses

do mão de estruturas mais complexas e sutis. Sua

dois ritmos. Para Pudovkin, esses contrapontos, que

matéria-prima para o filme é realista, afinal trata-se

rompem com a sincronia entre som e imagem, são o

de um documentário. O que Vertov faz questão de

único caminho de superação do naturalismo, apro-

evitar, no entanto, é qualquer recurso ilusório que

fundando e enriquecendo as possibilidades criativas

faça o espectador esquecer que está assistindo a um

do uso de som no cinema.

filme. Entusiasmo mostrou a realizadores de todo o mundo o que falavam os teóricos russos, mas com

Ainda que Dziga Vertov não tenha assinado o ma-

um viés de maior heterogeneidade.

nifesto, o uso do som nos seus primeiros filmes 89


Fabiano Pereira de Souza

A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto

Em seu artigo Contraponto sonoro inicial (THOMP-

Eisenstein: Romance sentimental

SON, 1980, p. 115-140) Kristin Thompson aponta a falta de clareza sobre qual seria a função do tipo de som de cinema proposto pelo trio de cineastas no

Pudovkin: O desertor (Dezertir, 1933)

manifesto, assim como sobre a distinção entre assincronismo e contraponto. Ela concorda que o filme sonoro era para eles um prolongamento dos princí-

Aleksandrov:

pios de montagem locais. Lembra que para Eisens-

Romance sentimental, Jolly fellows/Moscow

tein a sincronia não era problema, desde que não

laughs/Happy-go-lucky Guys (Vesyolye rebyata,

fosse naturalista. Thompson conclui que mesmo

1934)

nesse período inicial do cinema sonoro russo pós-manifesto, o som sincrônico já predominava.

Vertov: Entusiasmo e Réquiem a Lênin (Tri pesni o Leni-

Essa primeira fase do cinema sonoro russo durou

ne, 1934)

até 1934. Chegava o Realismo Socialista, doutrina adotada na União Soviética para a produção de fil-

O curta-metragem Romance sentimental apresenta

mes, introduzida no Congresso de Escritores Sovié-

duas inserções musicais em que a mulher em cena

ticos de 1934 e que passou a vigorar em janeiro de

canta e toca piano de forma sincrônica. O primeiro

1935, durante a ditadura de Josef Stalin, iniciada em

trabalho sonoro de Eisenstein e Aleksandrov já con-

1928. Ela forçava artistas de todas as mídias a se-

tinha sincronia de som. Parcialmente sonorizado,

guir as mesmas diretrizes em que a clareza deveria

O desertor começa com sons pontuais da diegese,

nortear as mais diversas formas de expressão, para

como o apito de um navio no porto, sem os demais

a compreensão do povo russo como um todo, sem

sons do local vistos nas imagens. Os diálogos são

soluções que apenas intelectuais entenderiam. A

sincrônicos. O discurso de Zelle para os trabalhado-

teoria da montagem representava um entrave a ser

res revoltosos é interrompido pelo som que logo em

superado.

seguida vemos partir de uma banda tocando. Poucas cenas curtas de trabalhadores civis em ação têm

Filmes analisados

seu som usado para cobrir todo uma sequência com mais de cenas equivalentes. Cenas de marretadas e

Sobre os quatro diretores aqui selecionados, foi fei-

máquinas funcionando sincronicamente às imagens

to um levantamento de filmes identificados como

geram o som que se segue em cenas do porto.

sonoros no site IMDb entre o período do primeiro filme sonoro russo, lançado em 1930 e o ano anterior

Em geral, os ruídos ficam de fora, substituídos por

ao de início da vigência do Realismo Socialista. De Ei-

música ou silêncio. No confronto entre grevistas e

senstein, apenas Romance sentimental foi encontra-

não grevistas, o som do tanque da polícia chegando

do, em pesquisas realizadas no site de vídeos You-

dura enquanto passam cenas rápidas dos trabalha-

tube e Vimeo, na videolocadora 2001 e na biblioteca

dores. O som da metralhadora atirando dá o ritmo

da Escola de Comunicação e Artes da Universidade

acelerado dos cortes das cenas dos trabalhadores

de São Paulo (USP). No total, restaram cinco obras

correndo e sendo alvejados. Sons de estática e ruí-

para análise, sendo Romance sentimental (Roman-

dos precedem um discurso vindo de alto-falantes

ce sentimentale, 1930) co-dirigido por Eisenstein e

com cenas de imagens tremidas como TV mal sinto-

Aleksandrov.

nizada, o que se repete durante o discurso. O confronto final com música alegre destoa da violência 90


Fabiano Pereira de Souza

A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto

em cena.

sonorizado com música extra-diegética em cenas de produção e eventos políticos. As exceções são uma

Jolly fellows é praticamente todo sincrônico, nos

mulher tocando um tipo de viola, um oficial fazendo

moldes do musical hollywoodiano. Entre as exce-

uma mulher repetir uma declaração parte por par-

ções há a personagem que desce a escada pelo cor-

te enquanto ela mira um rifle, antes de uma parada

rimão enquanto ouve-se uma sirene e o ruído de

de que se ouve o som durar além das imagens cor-

quando o pastor fecha o portão da casa da cantora.

respondentes. Um discurso é ouvido sem sincronia

Quando o pastor cai do galho de árvore ao cantar,

com suas imagens. Badaladas e tiros de canhão são

o ruído parece o de um vaso se espatifando num

vistos e ouvidos sincrônica e repetidamente. Uma

chão duro.

criança canta e dança antes de uma explosão em mina, ambas em sincronia audiovisual. Imagens so-

Entusiasmo é o filme com mais contrapontos sono-

norizadas de bombardeio aéreo tem só o som man-

ros nesta seleção. Ele começa com uma mulher com

tido conforme outras imagens surgem.

fone de ouvido e música sobreposta a um tique-taque. Um detalhe da arquitetura de igreja ao som de

Conclusão

um sino. Segue-se canto religioso e imagens de pessoas fazendo o sinal da cruz e bêbados perambu-

Somando-se a pesquisa e a análise de Kristin Thomp-

lando pelas ruas. Canto religioso sobreposto ao som

son às realizadas para este artigo, fica clara a manei-

de cuco de relógio acompanha imagens de detalhes

ra como a defesa restritiva a construções polifônicas

do prédio, sendo que a imagem de uma estátua re-

adotada em 1928 por Eisenstein, Pudovkin e Alek-

petida por sobreposições vai sumindo uma a uma

sandrov no manifesto Declaração sobre o futuro do

conforme o cuco soa.

cinema sonoro, ponto de partida teórico deste artigo, foi parcialmente aplicada na produção de seus pró-

Uma voz masculina disserta enquanto a mulher do

prios autores, mesmo antes de vigorar a imposição

fone ri. Um jovem maestro parece reger a música

do Realismo Socialista pelo governo soviético.

executada. A fumaça de um apito a vapor soa sincrônica, mas distorcida. Uma parada com marcha mi-

Houve um nível premeditado de ousadia no que diz

litar mantém a sincronia. Marchas extra-diegéticas

respeito ao som desses primeiros filmes, mas a sin-

predominam na trilha musical, mas sons de motor

cronia e a valorização da fala também já estavam

funcionando, apitos industriais, discursos, cantorias

presentes, ainda que longe do valor que a voz dos

coletivas e falas sem sincronia com a imagem tam-

astros e estrelas de cinema tinha em Hollywood. A

bém são usados. Depois dois homens falam e uma

proposta teórica de Vertov se mostrou a mais ade-

mulher discursa em sincronia. Há sincroniza clara

quada para refletir a produção aqui considerada.

em alguns momentos, falados ou não.

Ainda assim, os primeiros filmes soviéticos dos quatro autores analisados seguem como referências

Por fim, Réquiem a Lênin é em grande parte

criativas de som de cinema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EISENSTEIN, S. M.; PUDOVKIN, V. I.; ALEXANDROV, G.

EISENSTEIN, S. M.. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro:

V.. Declaração sobre o Futuro do Cinema Sonoro. In:

Jorge Zahar, 2002.

EISENSTEIN, S. M.. A forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 225-227.

FISCHER, Lucy. Enthusiasm: From Kino-Eye to 91


Fabiano Pereira de Souza

A Declaração sobre o futuro do cinema sonoro e os primeiros filmes sonorizados dirigidos pelos defensores do som como contraponto

Radio-Eyeound in Films. In: WEIS, Elisabeth; BELTON,

Sound Film. In: WEIS, Elisabeth; BELTON, John (Org).

John (Org). Film sound: theory and practice. Nova York:

Film sound: theory and practice. Nova York: Columbia

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University Press, 1985, p. 86-91.

MICHELSON, Anette (Org). Kino-eye: the writings of

THOMPSON, Kristin. Early Sound Counterpoint. In:

Dziga Vertov. Berkeley: University of California Press,

Yale French Studies No. 60, Cinema/Sound. p. 115-

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140. Yale University Press. Disponível em: <http:// www.jstor.org/stable/2930008>. Acesso em: 22 nov.

PUDOVKIN, V. I. Asynchronism as a Principle of

2014.

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS A PLAN FOR GREAT WORKS. Abram Room. União

O CANTOR DE JAZZ. Alan Crosland. Estados Unidos,

Soviética, 1930, filme 35 mm.

1927, filme 35 mm.

DON JUAN. Alan Crosland. Estados Unidos, 1926,

O DESERTOR. Vsevolod Pudovkin. União Soviética,

filme 35 mm.

1933, filme 35 mm.

ENTUSIASMO. Dziga Vertov. União Soviética, 1931,

RÉQUIEM A LÊNIN. Dziga Vertov. União Soviética,

filme 35 mm.

1934, filme 35 mm.

JOLLY FELLOWS. Grigori Aleksandrov, 1934, filme 35

ROMANCE

mm.

Sergei Eisenstein. França, 1930, filme 35 mm.

SENTIMENTAL.

Grigori

Aleksandrov;

92


Entre mĂ­dias, redes e plataformas Coord. Vicente Gosciola (UAM)


Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel André Emilio Sanches (UFSCar, pesquisador / especialista em Redes de Computadores pela Universidade Federal de São Carlos (DC/UFSCar – 2008) / mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS/UFSCar - 2015) / membro do GEMInIS-UFSCar, pesquisa temas relacionados a Ficção Seriada no Cinema e Televisão, Cultura de Fãs e Cultura Participativa) asanches@gmail.com RESUMO: O grande sucesso do Universo Cinematográfico Marvel, iniciado em 2008, tem causado reflexos nas demais produções do grupo de entretenimento, desde novos licenciamentos até um redesenho quase que completo das publicações da Marvel Comics, o ramo de quadrinhos do grupo. Tais reflexos tem dividido as opiniões a respeito dos rumos que ambos os universos irão tomar, visto que apesar de terem a mesma origem, possuem diferentes bases de fãs bem como diferentes ênfases e formas de consumo. Faz-se aqui uma análise do ponto de vista da convergência de mídias e da cultura de fãs se tais mudanças, em ambos os universos narrativos, têm se dado no contexto da convergência de mídias ou da preponderância de uma, a cinematográfica, sobre as outras, e quais seus efeitos tanto nos fãs mais antigos, oriundos dos quadrinhos, quando nos fãs mais recentes, conquistados com o universo cinematográfico. PALAVRAS-CHAVE: convergência, cultura de fãs, franquias de mídia, Marvel. Introdução

Tal divisão entre os fãs, aliada a uma mudança tanto no rumo das publicações atuais de quadrinhos,

A criação do Universo Cinematográfico Marvel em

quanto no planejamento das produções futuras de

2008 com o filme Homem de Ferro (Jon Favreau,

filmes e seriados para televisão e serviços sob de-

2008) aliado à inabilidade do grupo de reaver os

manda tem criado dúvidas em relação ao real grau

direitos sobre algumas propriedades intelectuais li-

de integração e interação entre esses dois universos

cenciadas anteriormente, como Quarteto Fantástico,

narrativos, que, embora coexistam com persona-

X-Men e Homem Aranha, ditou, nos anos recentes,

gens semelhantes e histórias adaptadas, até o mo-

os rumos tomados pela Marvel Entertainment no que

mento sempre foram colocados como diferentes e

diz respeito ao alinhamento das produções de qua-

objetivando públicos distintos.

drinhos da Marvel Comics com os filmes produzidos pelos Estúdios Marvel. Tal direcionamento tem cau-

Esse trabalho faz uma análise, à luz da teoria da

sado momentos de decepção e desgosto por parte

convergência e da cultura participativa, de como os

de fãs antigos, que se ressentem de ver quadrinhos

fãs tem manifestado seus anseios, desagravos em

antigos darem espaço a produções recentes mais

relação às mudanças propostas, tanto na estrutura

alinhadas aos filmes e seriados de TV, bem como es-

das publicações de histórias em quadrinhos quan-

tranhamento por parte de fãs recentes, que, com co-

to nas adaptações de graphic novels consagradas

nhecimento apenas dos produtos cinematográfico e

para o cinema, televisão e serviços de distribuição

televisivo não encontram maneira fácil de adentrar

sob demanda, em especial no que diz respeito ao

o universo notadamente hermético das histórias em

relacionamento com outros grupos produtores,

quadrinhos.

como Fox, Universal e Sony, que detém os direitos 94


André Emilio Sanches

Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel

cinematográficos de vários personagens, em uma

Dessa forma, a primeira produção desse universo

tentativa de verificar se os objetivos, a longo prazo,

compartilhado é o filme Homem de Ferro, de 2008,

da Marvel Entertainment são de convergência midiá-

que traz consigo o “lançamento de um modelo único

tica entre seus diferentes universos e produtos ou,

para a produção de cinema na era da convergência”

ao contrário, de preponderância do mais lucrati-

(JOHNSON, 2012), apostando desde o início em um

vo, o cinematográfico, sobre todos outros tipos de

universo ficcional compartilhado e alimentado por

produção.

diversos títulos com a narrativa dividida em diversas fases, de tal sorte que o resultado final é uma gran-

Universo Cinematográfico Marvel

de serialização narrativa no cinema, acompanhada por outras produções na televisão, nos meios de dis-

O Universo Cinematográfico Marvel, ou MCU no

tribuição sob demanda e nos quadrinhos.

acrônimo original, consiste em uma franquia de mídias vinculada a um universo ficcional compartilha-

Seguindo a fórmula tradicionalmente encontrada

do que agrega produções cinematográficas, televisi-

nas histórias em quadrinhos, em que os vários per-

vas e impressas, além de diversos licenciamentos de

sonagens podem transitar livremente pelos diversos

propriedade intelectual como brinquedos, objetos

títulos da editora, promovendo encontros, aventu-

colecionáveis, jogos eletrônicos, entre outros. Todas

ras conjuntas e compondo assim um panorama nar-

estas produções têm como base o universo das his-

rativo único, os filmes apresentaram ao público uma

tórias em quadrinhos da Marvel Comics, fazendo uso

série de personagens já bastante conhecidos dos fãs

de todos os seus personagens e situações, à exceção

do universo da Marvel Comics, que com o transcorrer

daqueles que estão licenciados para outros estúdios

dos diversos filmes evoluíram, encontraram-se com

cinematográficos.

outros personagens, construíram, de certo modo, a história daquele universo ficcional (HOWE, 2013).

Tais licenciamentos ocorreram especialmente entre 1998 e 2007, quando em parceria com estúdios

Essa construção do universo narrativo a partir de

como Sony-Columbia, 20th Century Fox, New Line Ci-

elementos conhecidos, porém com nova dinâmica,

nema e Lionsgate Entertainment, o estúdio realizou

sem seguir, de maneira obrigatória, a cronologia

a coprodução de nada menos que dezesseis filmes,

presente no universo dos quadrinhos, permitiu que

incluindo vários sucessos de bilheteria como a tri-

as produções atingissem tanto os fãs que já deti-

logia do Homem Aranha (Sam Raimi, 2002-2007), a

nham o conhecimento necessário para entender a

trilogia dos X-Men (Bryan Singer, 2000, 2003; Brett

narrativa quanto conquistassem novos fãs unica-

Ratner, 2002), a trilogia Blade (Stephen Norrington,

mente a partir dos filmes produzidos para o univer-

1998; Guillermo del Toro, 2002; David Goyer, 2004) e

so cinematográfico.

filmes menores como Justiceiro (Jonathan Hensleigh, 2004).

Ainda que os fãs mais antigos e mais ferrenhos dos quadrinhos não se sintam totalmente contempla-

A renda adquirida com os licenciamentos de proprie-

dos pela maneira como suas personagens favoritas

dade intelectual para outros estúdios permitiu que

estão sendo adaptadas para os novos formatos, é

os Estúdios Marvel financiassem, a partir de 2008,

inegável o fato de que tal escolha de modo produ-

produção própria de filmes, e assim tentassem read-

tivo favoreceu, em muito, a aquisição de novos fãs,

quirir o controle criativo de seus personagens e his-

ligados unicamente às produções audiovisuais mais

tórias que outros estúdios detinham.

recentes, e em grande parte alheias a história pregressa daquelas personagens nos quadrinhos. 95


André Emilio Sanches

Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel

De maneira análoga, a opção por não contar com

cinco curtas lançados diretamente na internet e vin-

algum conhecimento prévio por parte da audiência

te títulos de quadrinhos publicados.

para que as produções fossem perfeitamente fruídas permitiu que as mesmas obtivessem grande

A previsão para o próximo arco narrativo, chamado

sucesso também em regiões consumidoras aonde o

de Phase Three, é que ao seu final, proposto para

mercado de quadrinhos da Marvel não é tão bem

2019, ele seja composto de dez longas-metragens,

sedimentada, como a China e o Japão, fornecendo

duas novas séries para a televisão aberta, quatro

dessa maneira incentivo para que esses novos fãs

novas séries para serviços sob demanda, além de

buscassem compreensão aditiva nos quadrinhos,

novas temporadas das séries já em andamento bem

até então desconhecidos (HOWE, 2013).

como novos curtas e títulos de quadrinhos.

A estratégia de colocar os filmes para o cinema no

Tais produções, que englobam um sem número de

centro da cadeia produtiva desse novo universo

personagens já apresentados ou citados, represen-

desvinculado, porém não desconexo àquele dos

tam apenas uma pequena parte do universo narra-

quadrinhos, direcionou também o desenvolvimento

tivo existente nos quadrinhos, aventando a possibi-

de produtos derivados, mesmo aqueles licenciados

lidade de que haja uma quase infinita capacidade

para outras empresas, como o caso de jogos eletrô-

de produção de novos filmes, séries, jogos e outros

nicos que seguiam os filmes, ou mesmo objetos co-

formatos narrativos, fato que pode ser evidenciado

lecionáveis, ou, como explica Derek Johnson (2012),

por afirmações de executivos dos estúdios de ha-

“...o filme é a linha criativa a ser seguida. Observa-se

ver planos para lançamentos de obras até, no mí-

para aonde a linha narrativa do filme está seguindo,

nimo, 2028, postulando assim um universo cinema-

pega-se algumas ideias dos quadrinhos para o jogo

tográfico e televisivo quase tão inesgotável quanto

e filtra-se essas ideias através do filme”.

aquele construído ao longo de mais de 70 anos de publicações.

Com isso, obtém-se praticamente uma reprodução no cinema da maneira como revistas em quadrinhos

Convergência ou Preponderância?

são produzidas, respeitando a dimensão textual de cada título produzido, porém construindo, de ma-

O conceito da convergência de mídias, redefinido

neira mais ampla, um estilo e continuidade narrativa

por Jenkins (2009) como o fluxo de conteúdos atra-

que por sua vez englobam todos os títulos, dando-

vés de múltiplas plataformas de mídias e a coope-

-lhes as características únicas que os fazem ser per-

ração de múltiplos mercados midiáticos visando a

cebidos como uma das partes de um grande todo

migração dos públicos entre os diversos meios de

(JOHNSON, 2012).

distribuição de conteúdos, pode ser entendida nesse contexto como a base para o bom funcionamento

Seguindo esse modelo de produção, e contemplan-

de iniciativas criativas como esta empreendida pela

do as três entidades produtivas dentro da Marvel En-

Marvel com o objetivo de transportar sua base fiel

tertainment, o universo cinematográfico é composto,

de fãs dos quadrinhos para o cinema e a televisão.

até o fim de 2015, de dois arcos narrativos maiores e distintos, chamados de Phase One e Phase Two, cada

Levando-se em consideração que, também segundo

uma delas composta por uma miríade de títulos e

Jenkins (2009), em um ambiente de convergência mi-

produtos, totalizando doze longas-metragens para

diática toda história contada é importante, e o obje-

o cinema, duas séries para a televisão aberta, duas

tivo principal é a circulação dos diversos conteúdos

séries para serviços de distribuição sob demanda,

no maior número possível de mídias, sejam esses 96


André Emilio Sanches

Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel

conteúdos filmes, seriados, quadrinhos ou jogos ele-

Johnson (2012) elucida que com esse arranjo, a

trônicos, torna-se necessário analisar as iniciativas

Marvel pode ser capaz de gerir conteúdos em múl-

da Marvel, e a importância talvez exagerada aos fil-

tiplas plataformas dentro da própria organização,

mes para o cinema, à luz desse contexto.

de modo a reduzir custos e produzir lucro em uma maior base de distribuição, bem como incentivar a

Ainda que a empresa busque trabalhar de maneira

migração de consumidores entre os diversos forma-

uniforme através de todas as mídias, buscando in-

tos, ainda que para isso sejam sacrificados os fãs de

tegrar sua base de consumidores e promover uma

longa data que, nessa visão, promoveram o cresci-

experiência unificada ao se consumir longas-metra-

mento da companhia em primeiro lugar, de tal sorte

gens, séries de televisão ou revistas em quadrinhos,

que torna-se impossível avaliar se essa estratégia é

Johnson (2012) identifica que existe uma buscar

viável a longo prazo e se a base de fãs de fato irá

maior em adaptar a velha mídia, ou mídia original,

transitar entre os diversos produtos e formatos de

no caso os quadrinhos, para que esta esteja em sin-

consumo.

tonia maior com a nova mídia, ou seja, as produções audiovisuais para o cinema e televisão.

Conclusões

Tal necessidade, diz Johnson (2012) deriva da de-

Ao fim dessa reflexão, podemos especular mesmo

pendência da empresa no sucesso e na visibilidade

em se tratando de experiência nova, com um uni-

dos seus produtos de maior alcance, ou seja, os au-

verso compartilhado magnitude não vista antes no

diovisuais, para que suas propostas de licenciamen-

âmbito do cinema e da televisão, parece viável que

to e de produção de obras derivadas funcionem, e

formato de produção dos quadrinhos tem se aplica-

mesmo para que os próprios quadrinhos alcancem

do de maneira funcional ao novo ambiente. Da mes-

penetração em mercados ainda virgens ou não sa-

ma maneira, não é possível afirmar que o mesmo se

turados, invertendo assim a relação de poder entre

encontra consolidado, mesmo diante do expressivo

os diferentes universos narrativos de tal sorte que

número de produções e fãs, haja vista as críticas re-

o universo dos quadrinhos, ainda que mais antigo,

cebidas ao alinhamento forçado que todas as outras

represente apenas uma fonte de inspiração para os

produções do grupo têm recebido em relação aos

demais produtos, e um lucro colateral da populari-

filmes para o cinema.

dade do universo cinematográfico. É inevitável que o arranjo produtivo vigente vai preEssa nova configuração produtiva traz à tona uma

cisar passar por adequações de modo a se adaptar

série de rusgas entre fãs antigos e produtores, bem

as formas de consumo em constante evolução, bem

como entre esses mesmos fãs e aqueles recém-che-

como aos humores de seus consumidores, sejam

gados a franquia, trazidos a ela majoritariamente

eles fãs de quadrinhos ou audiovisuais, uma vez que

pelos filmes, e na maior parte das vezes alheios aos

tal arranjo depende profundamente da capacidade

quadrinhos. Tais rusgas tendem a aumentar uma

que os produtos têm de dirigir seus consumidores

vez está em curso, nos quadrinhos, uma remodela-

a todas as outras mídias na busca por um entendi-

gem quase completa das linhas editoriais, ainda sem

mento completo daquele universo ficcional, criando

data para conclusão, mas que visa alinhar os estilos

assim um emaranhado narrativo que, a longo prazo,

narrativos e criativos àqueles ditados principalmen-

pode tornar-se por demais complexo para ser aden-

te pelos longas-metragens para o cinema.

trado por alguém não iniciado em seus mistérios.

97


André Emilio Sanches

Convergência ou Preponderância: Os desafios da Marvel Entertainment frente aos fãs da Marvel Comics e do Universo Cinematográfico Marvel

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOWE, S. Marvel Comics – A História Secreta. São

JOHNSON, D. Cinematic Destiny: Marvel Studios and

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JOHNSON, D. Media Franchising: Creative License and Collaboration in the Culture Industries. New

JENKINS, H.; GREEN, J.; FORD, S. Cultura da Conexão:

York: New York University Press, 2013.

Criando Valor e Significado por Meio da Mídia Propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

98


O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva Renato Tavares Junior (Universidade Anhembi Morumbi, doutorando em Comunicação) rtavaresrtv@yahoo.com.br RESUMO: o trabalho apresenta uma evolução histórica da dramaturgia na televisão brasileira relacionando-a com as estratégias de programação, a consolidação como produto cultural e a valorização como modelo de negócio. A dramaturgia audiovisual, compreendida como o

semanal foi a novela da faixa das 21 horas da

conjunto de possibilidades de contar histórias uti-

Rede Globo (chamada comercialmente de Novela

lizando som e imagem em movimento, mostra for-

III; Império e, depois, Babilônia). Entre as emisso-

ça para se atualizar e se renovar. Vivenciamos um

ras que disputam o 2º lugar de audiência, a dra-

processo no qual convivem modelos tradicionais de

maturgia também se destacou com as novelas

concepção, produção e comercialização com a rede-

Chiquititas e Carrossel ocupando o 1º e 2º lugares

finição de papéis marcada pelo rompimento da dico-

nos índices de média semanal do SBT e a novela

tomia produtor/receptor.

Os Dez Mandamentos liderando entre os programas veiculados pela TV Record na média sema-

As telenovelas exibidas pelas emissoras de TV aberta

nal. De acordo com levantamento do IBOPE para

do Brasil não atingem os mesmos índices proporcio-

a média anual de 2013 no PNT (15 regiões me-

nais de audiência de anos atrás, mas isto não neces-

tropolitanas) os programas mais assistidos nas

sariamente significa que a dramaturgia audiovisual

três emissoras de maior audiência foram pro-

deixou de ter importância estratégica na montagem

dutos ficcionais nacionais: na Globo a Novela III

das grades de programação nem nos planejamentos

representada por Salve Jorge e Amor à Vida (37,96

de mídia dos anunciantes. Nos últimos anos houve

pontos); na TV Record a minissérie José do Egito

mudanças metodológicas e tecnológicas de aferição

(11,47 pontos) e no SBT a Novela I - Chiquititas

de audiência televisiva, bem como surgiram concor-

(10,12 pontos)1;

rentes para as emissoras de TV. Novos players (produtores, distribuidores e exibidores de conteúdo)

os espaços de mídia mais valorizados para inser-

se fortaleceram no mercado sem deixar de lado o

ções comerciais: as tabelas de valores de veicu-

investimento em ficção audiovisual. Mesmo com as

lação publicitária nos meios de comunicação de

inovações tecnológicas e as novas formas de acesso

massa do Brasil consolidam há alguns anos que

à produção audiovisual constatamos o predomínio

o produto audiovisual que possui o maior valor

da dramaturgia quando analisamos cinco aspectos

de investimento para inserção de comercial de

de fundamental importância para contextualizar o

30 segundos em rede nacional é o intervalo da

mercado:

telenovela veiculada na faixa das 21 horas da Rede Globo (Novela III). Em abril de 2016, o valor

os índices de audiência dos programas mais

oficial de tabela uma inserção avulsa no inter-

assistidos em TV aberta: no primeiro semestre

valo da principal telenovela da emissora era de

de 2015, de acordo com os dados do IBOPE de mensuração de audiência na Grande São Paulo, o programa com maior média de audiência

1 - Dados aferidos pelo Ibope Media.

99


Renato Tavares Junior

O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva

R$754.600,002;

versão exibida em 2012 pela Globo, mais de 500 anunciantes nacionais, regionais e locais paga-

os formatos audiovisuais mais acessados e pre-

ram para ter sua marca exposta no intervalo da

miados em serviços e plataformas de vídeo sob

novela6. Na última semana de exibição, 27,1% do

demanda são ficcionais: destaque para as séries

tempo de veiculação foram dedicados aos inter-

House of Cards da Netflix (primeira série indicada

valos totalizando 2 horas e 17 minutos nos seis

ao prêmio Emmy que não foi veiculada por uma

capítulos finais7.

emissora de TV; líder em indicações para o Globo de Ouro em 2014) e Transparent da Amazon (ven-

A fim de compreender como a dramaturgia audio-

cedora do Globo de Ouro de melhor série cômi-

visual atingiu tamanha relevância no país, procura-

ca em 2015);

mos traçar um breve panorama histórico que evidencia decisões e estratégias mercadológicas que a

o canal brasileiro mais visto na internet: Porta

viabilizaram e a legitimaram.

dos fundos produz e veicula esquetes ficcionais de cunho humorístico em português com elenco

O rádio e a televisão permitiram que as performan-

brasileiro e se transformou no canal brasileiro

ces de contar histórias atingissem um público amplo

do You Tube recordista tanto no número de ins-

e simultâneo como jamais havia sido possível com o

critos (mais de 11 milhões) como no total acumu-

teatro, a ópera ou o cinema. As obras ficcionais esta-

lado de visualizações de seus vídeos (mais de 2,4

vam disponíveis no ambiente familiar por meios de

3

bilhões) ;

novos dispositivos eletrônicos independentemente do interesse do ouvinte ou do espectador. Não havia

o recorde de vendas para o mercado internacio-

mais a necessidade de se deslocar até um espaço fí-

nal: a telenovela brasileira se consolidou como

sico de representação em tempo real ou de projeção

um dos principais produtos de exportação do

cinematográfica.

país. Avenida Brasil (produzida pela Rede Globo, em 2012) detém o recorde de telenovela brasi-

O surgimento da dramaturgia televisiva no Brasil

leira exibida no maior número de países: 130 na-

ocorreu com o formato de teleteatro, em 1950. A

4

ções até o ano de 2015 . De acordo com a revis-

primeira história contada na televisão foi uma trans-

ta Forbes, Avenida Brasil é a novela mais rentável

missão ao vivo, na TV Tupi, do drama policial A vida

da história da América Latina. O estudo leva em

por um fio, adaptado do filme Sorry, Wrong Number

conta apenas a veiculação no próprio país em

(Anatole Litvak, 1948) por Cassiano Gabus Mendes

2012: seus custos de produção foram estimados

(ALENCAR, 2002, p. 18). Nos anos 50 e início dos anos

em cerca de US$ 45 milhões e seu faturamento

60 houve muitas transmissões de teleteatros com

enquanto esteve no ar foi de aproximadamen-

histórias unitárias transmitidas ao vivo porque ain-

te US$ 1 bilhão5. Apenas no último capítulo da

da não havia equipamentos de gravação em vídeo.

2 - Lista de preços abril a setembro de 2016. Disponível em: <negocios.redeglobo.com.br> Acesso em: 03 jun. 2016

andersonantunes/2012/10/19/brazilian-telenovela-makesbillions-by-mirroring-its-viewers-lives/> Acesso em: 06 jun. 2015

3 Disponível em: <https://www.youtube.com/ portadosfundos> Acesso em 03 jun. 2016 4 - Disponível em: <http://natelinha.ne10.uol.com.br/ novelas/2014/06/17/avenida-brasil-e-vendida-para-suecianovela-chega-a-130-paises-76206.php> Acesso em 09 jun. 2015 5

-

Disponível

em:

<http://www.forbes.com/sites/

6 Disponível em: <http://www.valor.com.br/ empresas/2872006/ultimo-capitulo-de-avenida-brasil-tera500-anunciantes> Acesso em: 12 jun. 2015 7 - Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/ geral,intervalos-tomaram-mais-de-14-da-ultima-semana-deav-brasil-imp-,949587> Acesso em: 12 jun. 2015

100


Renato Tavares Junior

Na época, o único suporte de registro de imagem em

O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva

protagonistas.

movimento era a película de cinema. Os executivos de emissoras de TV entenderam que a grade televi-

Beto Rockfeller foi considerada um marco para a mo-

siva não podia repetir as mesmas histórias por dias

dalidade da novela realista por ter elementos como

consecutivos como ocorria nas salas de cinema e

um protagonista anti-herói, locações externas com

nos teatros: adotaram a estratégia de contar, a cada

ruas que tinham o mesmo nome na vida real e na

dia, histórias unitárias e independentes a cada dia

ficção e por abordar temas contemporâneos. No fim

de modo a preencher a grade.

dos anos 60, a proposta de novela realista passa a ser aprimorada pela Globo:

Em 1951 houve a transmissão ao vivo pela TV Tupi da primeira telenovela da história do país: Sua vida

Em 1969, a Rede Globo, apoiada em excelente pla-

me pertence levou ao ar 15 capítulos de 20 minutos

nejamento (especialmente por José Bonifácio de

de duração apenas às terças e quintas-feiras. Em

Oliveira Sobrinho e Walter Clark), revoluciona o pa-

1953, foi veiculado, também ao vivo pela Tupi, o pri-

drão da telenovela brasileira. Saem os condes, du-

meiro seriado de TV: Alô Doçura8. Apenas em 1962

ques e sheiks do deserto do Saara e entra o “Brasil

foi produzido o primeiro seriado brasileiro de TV que

de verdade” na tela da TV (ALENCAR, 2002, p. 133).

não era ao vivo, mas filmado por meio da película: O Vigilante Rodoviário na TV Tupi9.

Ainda na mesma década, Redenção (transmitida pela Excelsior) explicitou como os resultados de audiên-

A telenovela se tornou diária em 1963 quando a TV

cia influenciavam a telenovela (obra aberta) quando

Excelsior transmitiu 2-5499 Ocupado, uma versão

estabeleceu o recorde de novela com o maior nú-

nacional do original argentino 0597 Da Ocupado

mero de capítulos consecutivos da história da TV

adaptado por Dulce Santucci. A consolidação das

brasileira: 596. Os índices de audiência e de fatu-

telenovelas no Brasil e a valorização de suas respec-

ramento das telenovelas geravam uma relação de

tivas faixas horárias dependiam diretamente dos

interdependência entre emissoras e agências. Os

patrocinadores que “compravam horários inteiros e

aspectos comerciais relacionados aos anseios do

de certa forma dispunham deles como melhor lhes

mercado anunciante e às estratégias das grades de

aprouvesse, mas foi esse esquema que possibilitou

programação passaram a influenciar cada vez mais

o nascimento e a sustentação da telenovela no Bra-

as narrativas:

sil” (ALENCAR, 2002, p. 23). Agregam-se condicionantes da produção e de mí-

Nos anos 60, a televisão ultrapassou o rádio como

dia, como: o grande peso das emissoras produ-

veículo de comunicação que ficava com a maior fatia

toras, que agem de maneira parecida com a dos

da receita publicitária do país. No final da década,

grandes estúdios norte-americanos, a interferência

com a pretensão de aumentar o público fiel às te-

dos índices de audiência medidos com precisão; a

lenovelas, as emissoras procuraram realizar obras

atuação dos anunciantes sobre temas e persona-

que conquistassem também o público masculino.

gens; as imposições das grades de programação

A Tupi lançou Beto Rockfeller (1968-69) e a Globo

(SADEK, 2008, p. 141).

produziu Irmãos Coragem (1970) com três homens 8 - Disponível em: <http://www.infantv.com.br/alo_docura. htm> Acesso em: 05 jun. 2015 9 - Disponível em: <http://retrotv.uol.com.br/series/ovigilante-rodoviario> Acesso em: 05 jun. 2015

Para Walter Avancini, um dos principais diretores da Rede Globo no período de consolidação das telenovelas na grade televisiva da emissora, “a novela é um tipo de programação horizontal que condiciona 101


Renato Tavares Junior

o telespectador, e isso só é viável em sociedades de

O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva

dois finais.

baixa renda, em países subdesenvolvidos, onde o povo não tem condições de optar por outras formas

Em 1995, a Globo inaugurou, no Rio de Janeiro, o Pro-

de entretenimento” (AVANCINI apud SOUZA, 2004,

jac (rebatizado em 2016 para Estúdios Globo), que se

p. 54). O autor Walter Negrão destaca ainda que a

tornou o maior polo de produção televisiva do país

telenovela permitiu que o brasileiro passasse a po-

incluindo estúdios e áreas abertas para a construção

der ver na grade de programação mais dramaturgia

de cidades cenográficas. Em 2012, a Globo comer-

nacional e menos produtos ficcionais estrangeiros:

cializou 59 produtos distribuídos em 25 mil horas de

“a telenovela diária surgiu como a arma mais impor-

conteúdo em 33 idiomas para 92 países11. Segun-

tante no combate aos enlatados estrangeiros, aos

do a revista Exame, “a chave para o sucesso dessas

filmes de quinta categoria que infestavam a progra-

produções são as histórias baseadas em temas uni-

mação de todas as emissoras” (ALENCAR, 2002, p.

versais, onde todos os grupos étnicos e sociais são

95).

representados, de acordo com as expectativas do público e as questões da atualidade”12.

Nos anos 70, o Brasil diminui sua cota de importação de produtos ficcionais estrangeiros e passa a se

Em 2002 foi gravada em língua estrangeira a primei-

consolidar como exportador. Em 1973, o Bem Amado

ra novela com consultoria da Globo para veiculação

se tornou a primeira telenovela brasileira exibida no

fora do país: Vale Todo coproduzida com a Telemun-

exterior. A primazia coube ao México10. Três anos

do foi uma livre adaptação de Vale Tudo (exibida no

depois foi criada a divisão internacional da Rede Glo-

Brasil em 1988) para o mercado latino. O acordo

bo, responsável pela adaptação das novelas segun-

previu que os custos de produção seriam divididos

do o público de cada país para o qual era exportada

entre ambas as emissoras: a Globo receberia uma

(ALENCAR, 2002, p. 125). Desde a década de 70, as

quantia fixa por ponto de audiência no mercado ex-

novelas nacionais “são conhecidas no mundo inteiro

terno e a Telemundo ficaria com a receita publicitá-

e, no espaço de uma geração, contribuíram grande-

ria do intervalo13.

mente para a valorização da televisão brasileira e da imagem do país” (WOLTON, 1996, p. 163).

Em 2014, o Grupo Globo lançou na internet o portal Gshow com publicação de webséries inéditas, gratui-

Em 1982, a Rede Globo lançou sua primeira minissé-

tas e exclusivas. Além de disponibilizar na internet e

rie intitulada Lampião e Maria Bonita. As minisséries

em aplicativos (como o GloboPlay lançado em 2015)

“em geral parecem uma novela curta, diferindo no

alguns trechos e/ou capítulos na íntegra (geralmen-

número menor e limitado de capítulos e pelo fato

te mediante assinatura) de seus produtos ficcionais

de serem uma obra fechada” (ALENCAR, 2002, p. 67).

televisivos, a Globo passou a produzir séries ficcionais com episódios de curta duração pensados para

Em 1992, estreou o programa considerado por mui-

internet: os websódios.

tos executivos de TV como o primeiro formato de ficção interativa: o Você decide. A interatividade, no

As telenovelas exibidas pelas emissoras de TV aberta

entanto, era limitada, pois o espectador podia interferir apenas uma vez no desenvolvimento da narrativa (ligação telefônica) escolhendo entre somente 10 - Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/ programas/entretenimento/novelas/o-bem-amado.htm> Acesso em: 06 jun. 2015

11 - Disponível em: <http://exame.abril.com.br/estilo-devida/noticias/a-fantastica-fabrica-de-sonhos-da-rede-globo> Acesso em: 12 jun. 2015 12 - Idem 13 - Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ ilustrada/ult90u23003.shtml> Acesso em: 12 jun. 2015

102


Renato Tavares Junior

O protagonismo estratégico-mercadológico da dramaturgia televisiva

do Brasil mantêm reconhecida importância estra-

estrategicamente as formas de disponibilização de

tégica na montagem das grades de programação e

partes de narrativas entre a linearidade do fluxo te-

nos formatos de inserção publicitária dos anuncian-

levisivo e a não-linearidade das novas plataformas

tes. As emissoras e as agências buscam equilibrar

de mídia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, M. A Hollywood brasileira: panorama da

SOUZA, J. C. A. de. Gêneros e formatos na televisão

telenovela no Brasil. São Paulo: Senac, 2002

brasileira. São Paulo: Summus, 2004

SADEK, J. R. Telenovela: um olhar do cinema. São

WOLTON, D. O elogio do grande público. Uma teoria

Paulo: Summus, 2008

crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996

103


Entre melodias: jazz, samba e vanguardas sonoras Coord. Gustavo Rocha Chritaro (UFES)


Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936) Afonso Felipe G. L. Romagna (UAM) contato@feliperomagna.com RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar como a música popular se relaciona com o cinema no filme Cidade mulher (1936). Esta película, hoje desaparecida, possui uma trilha sonora original composta em quase sua totalidade pelo sambista Noel Rosa – sendo o único filme musicado por este compositor. Estas canções trazem elementos significativos que refletem questões sociais e culturais da época, além de demonstrarem de forma rítmica e harmônica as influências e transformações musicais que aconteciam na década de 1930, mais especificamente no samba carioca. Desta maneira propomos efetuar um resgate de partes deste filme através de seu repertório musical, valorizando seus aspectos sonoros e sua relação com a imagem, o enredo, a cultura e a sociedade no qual está imerso. PALAVRAS-CHAVE: Cidade Mulher, samba, Noel Rosa, cinema brasileiro, música popular. O filme Cidade Mulher (1936), hoje desaparecido, foi

do velho empresário. Os dois jovens se casam e seis

produzido pela Brasil Vita Filme, dirigido por Hum-

anos depois são pais de um garoto que, apesar de

berto Mauro, e com trilha sonora criada em sua gran-

sua pouca idade, alimenta ideias de fazer concorrên-

de parte pelo compositor Noel Rosa (sendo seis can-

cia ao pai e ao avô nos negócios teatrais.

ções): Cidade Mulher; Dama de Cabaré; Na Bahia (Noel Rosa e José Maria de Abreu); Numa noite a beira-mar;

Através da pesquisa documental realizada em jor-

Morena Sereia (Noel Rosa e José Maria de Abreu) e

nais da época, disponíveis no site da Biblioteca Na-

Tarzan, o filho de alfaiate (Noel Rosa e Vadico). Além

cional, observamos também que Humberto Mauro,

destas canções, ainda constam no filme uma canção

diretor da película, buscou um filme-musical em que

sob o título Boi-Bumbá (Valdemar Henrique), e par-

a canção estivesse presente na ação fílmica. Mauro

ticipações musicais de Assis Valente, Muraro, Raul

era conhecedor da cultura popular, de vários sam-

Roulien e Heckel Tavares. Observa-se também que

bistas e suas músicas (SCHVARZMAN, 2004, p. 89),

estas músicas foram encomendadas por Carmen

explorou cenas cômicas mas também sensuais.

Santos, produtora e atriz, especialmente para o filme, sendo as mesmas inéditas até o lançamento da

O filme está imerso em um momento histórico de

película. (ALMIRANTE, 2013, p. 75).

grande importância nacional. O Rio de Janeiro da década de 1930 era marcado por várias mudanças

Segundo roteiro disponível no site da Cinemateca

sociais e políticas. A necessidade de suprir a falta

Brasileira, o filme conta a história de um empresário

de uma unidade nacional tomou conta dos debates

teatral que está sendo perseguido por uma série de

que buscavam uma “[...] definição dos caminhos a

insucessos. Sua filha, juntamente com o namorado,

serem seguidos para se alcançar a modernidade”

se propõe a auxiliá-lo recorrendo ao patrocínio de

(LINO, 2007, p.164). É interessante que esse proces-

uma baronesa excêntrica e rica, fanática protetora

so de busca por uma identidade tomava conta de

de cães, e montam uma revista que obtêm suces-

uma boa parte da América Latina, porém no Brasil,

so invulgar, salvando com isso a situação financeira

diferentemente dos seus “vizinhos”, a dificuldade 105


Afonso Felipe G. L. Romagna

Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)

em delimitar a discussão se dava por conta de seu

Inimitável....

vasto território e sua ampla mistura e miscigenação

Maior e mais bela que outra qualquer...

de culturas. Neste sentido, “[...] redescobrir o Brasil

Cidade sensível...

e dar a ele uma identidade cultural, foi uma das tare-

Irresistível...

fas a que se impôs o Estado instaurado após 1930”.

Cidade do amor... cidade mulher!

(Idem, 2007, p. 164). Já na canção Dama do Cabaré, podemos perceber a Buscava-se também um imaginário ideal da capital

influência do samba de partido alto, com mais es-

brasileira, uma cidade que inspirasse e que princi-

pécies de instrumentos percussivos como o surdo e

palmente fosse relatada pela sua beleza natural e

outros tambores. O mesmo acontece com a canção

modernidade, mesmo que a realidade vista fosse

Na Bahia, que faz referência as origens do samba.

diferente do discurso adotado. Neste caso o cinema foi um importante aliado da República para a cons-

Outro número musical do filme, a canção de Noel

trução no imaginário da população de um país e

Rosa Tarzan, o filho do alfaiate demonstra uma fusão

também de uma cidade maravilhosa. (SALLES, 2013,

muito maior de estilos musicais comuns à década de

p. 10).

1930, além de uma visão crítica da sociedade carioca. Segundo João Máximo e Carlos Didier, em Tarzan,

A maneira como cinema, música, rádio, interesses

a ideia de projetar “tipos” da cidade vem da inspi-

políticos e cultura de massa interagiram, influenciou

ração dos heróis projetados pelo cinema americano

uma mudança na paisagem cultural do país. O sam-

- ombros largos, bíceps avantajados, corpos muscu-

ba, ritmo eleito como símbolo nacional, começa a fa-

losos. Os rapazes da burguesia carioca, que antes se

zer parte tanto de grupos sociais populares quanto

inspiravam em galãs menos robustos, como Rodol-

de intelectuais da cidade do Rio de Janeiro. (NAPOLI-

fo Valentino, passam a ter como inspiração Johnny

TANO, 2009, p. 141). Este samba, que ainda não era

Weissmuller, protagonista do filme Tarzan, The Ape

musicalmente como conhecemos hoje, formava-se

Man. Porém muitos destes, desprovidos de um rigor

na diversidade afro brasileira com lundus, maxixes,

físico, não conseguiam obter resultados musculares

e danças de roda, além da influência musical euro-

que pudessem ser comparados ao do protagonista

peia e de grandes produtores estrangeiros que de-

de Tarzan, e acabam recorrendo aos alfaiates. Tor-

sembarcavam no Brasil.

na-se então moda na cidade o uso de paletó com ombreiras, que aproximavam os franzinos rapazes

Noel Rosa soube explorar muito bem as variedades

de Johnny Weissmuller. (MÁXIMO, 1990, p. 425). Na

rítmicas do samba daquele período no filme – estilo

letra observamos o tom de ironia tanto em relação

eleito nesta década como ritmo nacional pelo en-

às influências que os filmes americanos exerciam na

tão presidente Getúlio Vargas (VIANNA, 2007, p. 73).

sociedade, quanto também da figura do malandro

Desta maneira, podemos ver na música título Cida-

ressaltando a preguiça e a indolência. Nesta música,

de Mulher uma típica marcha de carnaval, tanto em

o poeta do samba tratou de produzir uma harmonia

forma harmônica como rítmica, tendo a caixa como

mais elaborada nas estrofes, além do ritmo que é

instrumento principal de percussão. A ideia de valo-

mais cadenciado e muito mais próximo do Samba

rizar os aspectos da cidade, criando um imaginário

de Estácio.

espetacular e maravilhoso foi abordado nesta canção do compositor.

Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte

Cidade notável...

Nem conheço futebol.

106


Afonso Felipe G. L. Romagna

Cidade do samba, do asfalto e do morro. As relações entre a música popular e o cinema no filme Cidade mulher (1936)

O meu parceiro sempre foi o travesseiro

Mas que pesa e faz doer.

E eu passo o ano inteiro Sem ver um raio de sol.

Essa versatilidade é essencial para compreender to-

A minha força bruta reside

das as influências musicais do samba e da música

Em um clássico cabide,

popular na década em questão e a maneira como se

Já cansado de sofrer...

relacionam com o cinema, demonstrando a riqueza

Minha Armadura é de casimira dura,

musical da trilha sonora do filme Cidade Mulher.

Que me dá musculatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa / Almirante -

MÁXIMO, João, DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma

3. ed. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2013.

biografia. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica Editora, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil, de Noel a Gabriel”. In: CAVALCANTE, Berenice; STARLING,

NAPOLITANO, Marcos. O fantasma de um clássico:

Heloisa; EISENBERG, José (Org). Decantando a

recepção e reminiscências de Favela dos Meus

República. Inventário Histórico e Político da Canção

Amores (H. Mauro, 1935). Significação Revista de

Popular Moderna Brasileira, 2: Retrato em branco

Cultura Audiovisual. São Paulo, n. 32, pp. 137-157,

e preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova

2009.

Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. pp. 23-43.

SALLES, Michele. A cidade no cinema brasileiro: Rio de Janeiro, ontem e hoje. Revista Recine. Rio de

CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em: <www.

Janeiro, n. 10, p. 8-17, 2013.

cinemateca.gov.br> Acesso em: 08 Out. 2014. SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as DO FILME CIDDE MULHER. A Noite, Rio de Janeiro, 24

imagens do Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

jul. 1936. Disponível em: <http://hemerotecadigital. bn.br/>. Acesso em 08 out. 2014.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2007.

LINO, Sonia Cristina. “A tendência é para ridicularizar [...]” Reflexões sobre cinema, humor e público no Brasil. Revista Tempo. Rio de Janeiro, n. 10, pp. 6379, 2000.

107


Cinemídia Coordenação do Grupo de Pesquisa

Comitê Científico

Profa. Dra. Flávia Cesarino Costa (UFSCar)

Alessandro Gamo (UFSCar)

Prof. Dr. Samuel Paiva (UFSCar)

Alfredo Suppia (Unicamp)

Profa. Dra. Suzana Reck Miranda (UFSCar)

Ana Isabel Soares (CIAC/UAlg) Arthur Autran Franco de Sá Neto (UFSCar)

Comitê Organizador do I Encontro Internacional

Antônio Carlos Amâncio da Silva (UFF)

Prof. Dr. Fábio Raddi Uchôa (UFSCar)

Carlos Roberto de Souza (UFSCar)

Profa. Dra. Flávia Cesarino Costa (UFSCar)

Carolin Overhoff Ferreira (UNIFESP)

Prof. Dr. Samuel Paiva (UFSCar)

Cecilia Antakly de Mello (ECA/USP)

Profa. Dra. Suzana Reck Miranda (UFSCar)

Eduardo Simões dos Santos Mendes (USP)

Prof. Ms. Wiliam Pianco (CIAC/UAlg)

Eduardo Vicente (USP) Fabio Raddi Uchôa (UFSCar)

Comitê Organizador Discente

Felipe de Castro Muanis (UFF)

Debora Taño

Flávia Cesarino Costa (UFSCar)

Juily Manghirmalani

Gilberto Alexandre Sobrinho (Unicamp)

Moema Pascoini

Gustavo Souza da Silva (UNIP)

Sancler Ebert

João Carlos Massarolo (UFSCar) Josette Monzani (UFSCar)

Coordenação Transmissão Online

Laura Cánepa (UAM)

Pedro Dolosic Cordebello

Leonardo Antonio de Andrade (UFSCar) Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo (UFSCar)

Equipe de Produção

Márcio de Vasconcellos Serelle (PUC-Minas)

Ana Julia Lima

Margarida Maria Adamatti (UFSCar)

Anna Carolina de Assis Pereira

Maurício de Bragança (UFF)

Beatriz Oliveira

Mirian Tavares (CIAC/UAlg)

Bianca Brauer

Rodrigo Carreiro (UFPE)

Danielle Ribeiro

Rogério Ferraraz (UAM)

Gabriel Scarpa

Rosana de Lima Soares (USP)

Gabrielle Araujo

Rubens Machado Jr (USP)

Isabella Herling

Samuel Paiva (UFSCar)

Joyce Cury

Sheila Schvarzman (UAM)

Laís Lima

Suzana Reck Miranda (UFSCar)

Larissa Bela Fonte

Wiliam Pianco dos Santos (CIAC/UAlg)

Leticia Gomes Michele Delbon

Identidade Visual

Pedro Oliveira

Gelson Pereira

Victoria Gregoire C. S. A. de Magalhães


Pró-Reitoria de Pós-Graduação

109


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