Competência e atividade de trabalho
Série Ciência, Tecnologia e Sociedade Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico Ludwik Fleck O Golem – O que você deveria saber sobre ciência (2a edição) Harry Collins e Trevor Pinch
O Golem à Solta – O que você deveria saber sobre tecnologia Harry Collins e Trevor Pinch Doutor Golem – Como pensar a medicina Harry Collins e Trevor Pinch Mudando a Ordem – Replicação e indução na prática científica Harry Collins Repensando a Expertise Harry Collins e Rob Evans A Forma das Ações – O que os humanos e as máquinas podem fazer Harry Collins e Martin Kusch Especialistas Artificiais – Conhecimento social e máquinas inteligentes Harry Collins A Internet – Uma crítica filosófica à educação a distância e ao mundo virtual (2a edição) Hubert L. Dreyfus Expertise Intuitiva – Para além do pensamento analítico Hubert L. Dreyfus e Stuart E. Dreyfus Ciência, verdade e sociedade – Contribuições para um diálogo entre a sociologia e a filosofia da ciência Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Série Trabalho e Sociedade Trabalho e o Poder de Agir Yves Clot Engenheiros no Cotidiano – Etnografia da atividade de projeto e de inovação Dominique Vinck (org.) O Curso da Ação Método elementar – Ensaio de Antropologia enativa e concepção ergonômica Jacques Theureau Análises do Trabalho Leda Leal Ferreira Trabalho e Ergologia - Diálogos sobre a atividade humana. Yves Schwartz & Louis Durrive Ergologia, Trabalho, Desenvolvimentos Yves Schwartz & Louis Durrive
Série Confiabilidade Humana O Acidente e a Organização Michel Llory e René Montmayeul
Série Conhecimento e Experiência do Trabalho Competência e atividade de trabalho Louis Durrive
Série Conhecimento e Experiência do Trabalho
Organizadores Daisy Moreira Cunha (UFMG) Admardo Bonifácio Gomes Júnior (CEFET/MG) Mônica de Fatima Bianco (UFES) Maria Clara Bueno Fischer (UFRGS) Wanderson Ferreira Alves (UFG) Élida Hennington (FIOCRUZ)
Conselho Editorial EDITORES Prof. Rodrigo Ribeiro Universidade Federal de Minas Gerais Prof. Francisco de Paula Antunes Lima Universidade Federal de Minas Gerais
MEMBROS Prof. Antonio Arellano Hernández Universidad Autónoma del Estado de México Prof. David Hess Rensselaer Polytechnic Institute Prof. Dominique Vinck Université Pierre Mendès France de Grenoble Prof. Harry Collins Cardiff University Prof. Henrique Luiz Cukierman Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. Ivan da Costa Marques Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. João Porto de Albuquerque Universidade de São Paulo Dr. José Marçal Jackson Filho Fundacentro – RJ Profa. Léa Maria Leme Strini Velho Universidade Estadual de Campinas Profa. Maíra Baumgarten Universidade Federal do Rio Grande
Dra. Maria Cristina Guimarães Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ Profa. Maria Elizabeth Antunes Lima Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Maria Lúcia Álvares Maciel Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. Mário Sérgio Salerno Universidade de São Paulo Prof. Michel Jean Marie Thiollent Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. Michelangelo Trigueiro Universidade de Brasília Prof. Rob Evans Cardiff University Prof. Thales Haddad Novaes de Andrade Universidade Federal de São Carlos Prof. Wiebe Bijker Maastricht University Prof. Yves Schwartz Université de Provence
LOUIS DURRIVE
Competência e atividade de trabalho 1ª Edição
Belo Horizonte 2021
© 2021 Fabrefactum Editora Ltda. Todos os direitos da tradução e desta edição reservados à Fabrefactum Editora. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização, por escrito, da Fabrefactum Editora Ltda. Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2021 Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério Francês da Europa e das Relações Exteriores. Originalmente publicado na França sob o título “Compétence et activité de travail “Copyright © L’Harmattan, 2016 www.harmattan.fr
Durrive, Louis Competência e atividade de trabalho [livro eletrônico] / Louis Durrive. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Fabrefactum Editora, 2021. PDF ISBN 978-85-63299-24-6 1. Ciências sociais 2. Competência 3. Educação profissional 4. Gerenciamento 5. Trabalho Administração I. Título. 21-86177
CDD-370.11
Índices para catálogo sistemático: 1. Competência : Educação : Finalidades e objetivos 370.11 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Tradução Admardo Bonifácio Gomes Júnior Revisão Técnica Daisy Moreira Cunha Revisão Marlene Machado Zica Vianna Apoio Produção Vera Margarete Maia Pereira Pessoa Capa, Projeto Gráfico e Editoração Burnier Branding & Marketing
Fabrefactum Editora Ltda. Rua Miranda Ribeiro,165 Belo Horizonte – Minas Gerais CEP 30380-660 – Brasil http://www.fabrefactum.com.br E-mail: gerencia@fabrefactum.com.br
Sumário
INTRODUÇÃO.............................................................................................. PARTE 1: PROBLEMATIZAR A COMPETÊNCIA..........................................00 1. A questão da relação entre os saberes e a ação.........................................................00 2. O uso do termo competência entre os organizadores............................................00 2.1. Sob o ângulo do indivíduo..............................................................................00 2.2. Sob o ângulo do coletivo.....................................................................................00 3. O uso do termo competência pela chefia..........................................................00 3.1. Uma posição “entre dois”...................................................................................00 3.2. Um exemplo no meio industrial.....................................................................00 4. O uso do termo de competência entre os avaliadores.................................................00 4.1. A competência sob o prisma da coleta de provas...................................................00 4.2. A competência sob o prisma da coleta de argumentos............................................00 5. O uso do termo competência entre os formadores: agir com um ponto de vista responsável..............................................................................................00 6. O uso da palavra competência entre os recrutadores: uma bricolagem necessária .......00 PARTE 2: ELABORAR O CONCEITO DE COMPETÊNCIA ...........................00 1. Organizar ..........................................................................................................00 1.1. O resultado virtual do projeto comanda a ação planejando um programa (Aristóteles).......................................................................................................00
1.2. Se a atividade é uma interação com a situação real, a divisão do trabalho deve se tornar uma cooperação (Dewey)................................................................00 1.3.As normas de um grupo social fixam antecipadamente as modalidades de ação individual e coletiva (Lévi-Strauss e Bourdieu).................................................................00 1.4. Normas antecedentes representam apenas uma primeira antecipação, que será sempre ela mesma antecipada pelo esforço de viver (a perspectiva ergológica)...................00 2.Chefiar.................................................................................................................00 2.1. Realizar a ação é aplicar passo a passo as etapas do projeto (Aristóteles) ..................00 2.2. Adaptar constantemente nossas hipóteses e nossos hábitos segundo as respostas que nos reenvia o meio ambiente: isso é pensar (Dewey) .................................................00 2.3. Não se segue a norma como uma regra de gramática, mas como a regra de um jogo: o senso prático adaptar a norma a uma estratégia (Bourdieu)..........................................00 2.4. Os modelos da aplicação e da interiorização são não apenas impossíveis pelo fato da variabilidade mas, de início, invisíveis (a perspectiva ergológica)..............................00 3. Avaliar.................................................................................................................00 3.1. É a conformidade da operação em relação à sua função que faz a excelência (Aristóteles).......................................................................................................00 3.2 É a eficácia com a qual o ato desabrocha no meio que faz sua autovalidação (Dewey)...........................................................................................................00 3.3. É a graça com a qual se encontra espontaneamente a norma que beneficia a legitimidade ideológica (Bourdieu).......................................................................................00 3.4. É a reinserção da tarefa no serviço coletivamente realizadoque lhe dá seu sentido e determina sua qualidade (a perspectiva ergológica) ...................................................00 4. Formar............................................................................................................00 4.1. Cultivar as disposições adquiridas, hábitos é atualizar as capacidades (Aristóteles) .........................................................................................................00 4.2. É o crescimento do ator em sua interação com o meio que forma todo seu devir (Dewey) ........................................................................................................00 4.3. É a prática do jogo (aculturação) que nos faz incorporar, interiorizar as regras (Bourdieu).......................................................................................................00
4.4. É somente a constituição do ponto de vista sobre as normas que pode tornar a experiência formadora: é preciso se apropriar delas (a perspectiva ergológica).........00 5. Recrutar, mobilizar............................................................................................00 5.1. A motivação é a antecipação do benefício recebido pelo resultado visado (Aristóteles)..........................................................................................................00 5.2. A motivação é o investimento no ato em que se tenta se realizar, desenvolver sua existência (Dewey)...............................................................................................00 5.3. A motivação é ilusio, quer dizer identificação ilusória em relação aos interesses da norma no seu campo de poder (Bordieu)........................................................00 5.4. Preferir uma norma é compreender sua importância como valor: seu sentido aparece uma vez recontextualizado no serviço (perspectiva ergológica).............00 Conclusão..........................................................................................................00 PARTE 3: MODELIZAR O AGIR EM COMPETÊNCIA................................00 1. Os ensinamentos do uso atual da palavra competência......................................00 2. Avanços e limites do discurso gerencial atual: o caso de Guy Le Boterf....................00 2.1. O ponto de vista do autor...................................................................................00 2.2. O ponto de vista crítico sobre o saber agir.............................................................00 2.3. O ponto de vista crítico sobre o saber combinar...............................................00 2.4. O ponto de vista crítico sobre o saber interagir e a reflexividade.............................00 2.5 Conclusão sobre a obra de G. Le Boterf.......................................................00 3. O estado de nossa pesquisa: gerar modelos para desenvolver e avaliar as competências que respondam equitativamente à dupla exigência de objetividade e de diálogo...........................................................................................................00 3.1. Dar visibilidade à aderência, a fim de melhor falar da competência, com os Dispositivos Dinâmicos a Três polos........................................................................00 3.2 Compreender a situação através da dupla impossível/invivível, a fim de melhor julgar a competência.................................................................................................00 3.3 Os dois eixos de nossa pesquisa atual: partir das situações e aproximá-la em uma dinâmica a três polos...............................................................................................00
4. Função “organizar”......................................................................................00 4.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “organizar”................00 4.2. Ilustração a partir de um breve exemplo............................................................00 5. A função “chefiar”.............................................................................................00 5.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “chefiar”.....................00 5.2. Ilustrações a partir de um breve exemplo..........................................................00 6. A função “avaliar”.............................................................................................00 6.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “avaliar”.....................00 6.2 . Ilustração a partir de um breve exemplo........................................................00 7. A função “formar”............................................................................................00 7.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “formar”.....................00 7.2. Ilustração a partir de um breve exemplo............................................................00 8. A função “recrutar”..........................................................................................00 8.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função recrutar.............00 8.2. Ilustração a partir de um breve exemplo............................................................00 Conclusão............................................................................................................00 CONCLUSÃO GERAL.......................................................................................00 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................00 LINHA EDITORIAL........................................................................................00
Apresentação da edição brasileira
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Apresentação da edição brasileira Daisy Moreira Cunha Admardo B. Gomes Júnior
Este livro interessa a pesquisadores, formadores, trabalhadores e gestores em geral, sobretudo àqueles que buscam pensar e transformar o trabalho do ponto de vista da atividade humana. Eis uma contribuição única e densa sobre a compreensão do conceito de competência visando a uma utilização mais relevante e legítima. Louis Durrive examina a noção de competência nos discursos e práticas da gestão e da formação profissional desvelando o uso inflacionário e a banalidade de seu conteúdo conceitual. Mas, longe de apenas criticar o emprego do conceito em suas acepções correntes, o autor nos conduz às origens dessas concepções que associam ação e saber, identificando, em suas bases conceituais três matrizes que as diferenciam – Aristóteles, Dewey e Bourdieu –, localizando seus avanços e limites. Todo esse percurso sobre as bases lógicas do conceito nos permitirá, ao final, propor, com as ferramentas e modelos elaborados a partir de seu conhecimento da Abordagem Ergológica do Trabalho, uma noção de competência que pensa a ação e o saber com base na relação entre norma e o ponto de vista da atividade sobre a norma. Trata-se de uma obra que contribui com vários campos disciplinares que estudam o trabalho, tais como a Administração, a Engenharia de Produção, a Educação e Formação Profissional, a Economia, a Psicologia e a Sociologia do Trabalho e, em especial, com o campo dos Recursos Humanos, ou melhor, com aqueles que
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preferem uma Gestão com Pessoas. Isso porque o autor, durante todo o livro discute as bases das funções que compõem esse campo: organizar, chefiar, avaliar, formar, recrutar e mobilizar pessoas. Durrive o faz trazendo os dilemas do trabalhar, seja na relação com outrem (colegas de setor e/ou gestores de outros níveis hierárquicos, usuários de serviços e/ou clientes comerciais), seja na relação com as disposições tecnológicas e sóciotécnicas em espaços laborais. Nessas relações de trabalho, estão sempre em questão infindáveis procedimentos que requisitam competências diversas. Enfim, um livro que substancialmente nos apresenta importantes e sólidas reflexões sobre elementos do quotidiano da gestão do trabalho humano, que, efetivamente conseguem incluir o ponto de vista daquele que trabalha. Na tradução da presente obra contamos com as contribuições de vários pesquisadores com conhecimentos em ergologia, gestão, formação humana e trabalho que possibilitaram, de forma coletiva e bastante generosa, que a obra ganhasse uma versão em português. Gostaríamos de agradecer nominalmente e ressaltar a contribuição deixada: Luciana Gelape dos Santos pelos capítulos 3 e 4 da parte I; Sirley Araújo Dias pelos capítulos 5 e 6 da parte I; Estela Aparecida Oliveira Vieira pelo capítulo 1 da parte II; Jurandir Soares da Silva pelo capítulo 3 da parte II; Mônica de Fátima Bianco pelo capítulo 5 da parte II; Deise de Souza Dias pela conclusão da parte II; Lecy Rodrigues Moreira pelo capítulo 2 da parte III; Rosimare Alves Petitjean pelos capítulos 4 e 5 da parte III e Ênio Rodrigues da Silva pelo capítulo 8 da parte III e a conclusão geral. Todos os outros 9 capítulos foram traduzidos por Admardo B. Gomes Júnior, a quem coube a organização do processo de tradução e a primeira revisão geral. Agradecemos também à Embaixada da França no Brasil pelo financiamento de parte dos custos de edição. E finalmente ao autor, Louis Durrive e à Editora, L’Harmantan, por terem cedido os direitos da obra para esta versão digital gratuita. Aos leitores desejamos um bom proveito!
Apresentação da edição brasileira
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“Toda atividade de trabalho é sempre, em qualquer grau, de uma parte, descritível como sequência de um protocolo experimental e, de outra parte, experiência ou encontro” (Yves Schwartz)
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Introdução
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Introdução
Examinando os discursos e as práticas da administração e da formação profissional hoje, não se pode deixar de se surpreender pela distância entre, de uma parte, o uso inflacionado da noção de competência e, de outra parte, pela grande banalidade do conteúdo conceitual dado atualmente a essa “lógica competência” supostamente revolucionária. A presente obra – que se apoia no texto de uma Tese de Habilitação para Dirigir Pesquisa1, defendida em 2013, pretendia ser uma contribuição para a compreensão do conceito de competência, determinando as suas condições de um uso mais pertinente do ponto de vista teórico e mais legítimo do ponto de vista prático. De fato, pensamos que, sob a condição de compreender a riqueza desconhecida, esse conceito pode se constituir em uma verdadeira oportunidade de mudar nossa forma de ver, pensar e gerir as situações de trabalho e de aprendizagem. Definir a competência não é evidente nem simples. Como ponto de partida, vamos dizer que a competência é entendida como uma hipótese: uma hipótese sobre a maneira pela qual alguém enfrentará um problema (no sentido de uma questão a ser resolvida), numa dada situação. Ora, os profissionais da prática que utilizam 1 Cf. A tese Habilitação para Dirigir Pesquisas (Habilitation à Diriger des Recherches - HDR) confere um diploma de reconhecimento de competência científica aos professores pesquisadores franceses que os habilitam à dirigir pesquisas e orientar teses.
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Competência e atividade de trabalho
os diferentes modelos de competência expressam uma insatisfação constante: de um lado, a competência é desumanizada, desencarnada, relegada ao anonimato das listas; mas, de outro lado, tal competência é frequentemente associada a um apelo à mobilização, à iniciativa, à inovação – o que leva a uma injunção do engajamento pessoal. Essa insatisfação revela, acreditamos, um mal-entendido do julgamento de competência como hipótese, o que conduz a se fechar numa falsa oposição entre duas exigências que devem coexistir no agir profissional: a exigência da objetivação, que é a condição da organização e a exigência da interpretação por alguém singular, que é a condição da realização da obra. A hipótese aqui em questão se coloca na intersecção de duas expectativas simétricas. Do lado de quem solicita um serviço, a hipótese de competência visa responder a uma necessidade de confiança: o que eu tenho o direito de esperar dessa pessoa, em que eu posso contar com ela? Do lado daquele que presta um serviço, a hipótese de competência responde a uma necessidade de reconhecimento: o que atesta o valor próprio do meu trabalho, de maneira a me garantir as contrapartidas? No entanto, ainda fica por esclarecer que tipo de hipótese revela a competência. O julgamento de competência consiste em supor – tendo em vista a experiência, quer dizer considerando a avaliação de uma pessoa num dado momento – uma certa continuidade (mais ou menos unívoca) com suas futuras reações. Ao mesmo tempo, isso leva a supor uma razão para essa correlação – essa razão sendo a operação que permite à pessoa bem gerir essa situação. O conceito de competência é utilizado exatamente para designar essa operação, porque é ela que nos importa encontrar no futuro. Vê-se que não se trata de um método de verificação experimental. Trata-se, portanto, de uma inferência: uma operação ambígua e, no entanto, indispensável, visando estabelecer uma correlação entre dois casos (uma situação constatada e uma situação futura) e enunciar uma interpretação quanto à razão desta correlação. Ora, ali onde o método científico se apoia na construção de um modelo fictício (teórico), submetido ao protocolo experimental, de modo a seguir, sempre mais
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perto, uma razão objetiva desta correlação estabelecida – tal raciocínio rigoroso é inconcebível no tratamento da competência. De novo, é importante esclarecer a operação cognitiva sobre a qual repousam os julgamentos de competência que utilizamos no quotidiano, pois isso deve permitir compreender melhor os riscos e as potencialidades desta noção. Se a natureza da competência é aquela de uma hipótese (inferência), assumi-la consiste em interrogar a fonte e as condições de sua legitimidade: a partir de que é julgada a competência? Em relação a que legitimidade repousam nossos usos deste conceito? Acabamos de dizer que uma razão estritamente lógica não é possível, pois que o desafio da competência não é da ordem de um método hipotético-dedutivo. Da mesma forma, o critério pragmático é um impasse: se a verdade de uma competência se confunde com sua eficácia, iríamos falar simplesmente de performance. Infere-se, então, que a única modalidade de julgamento de competência é uma avaliação que passa pelo debate (debate de interpretação) e se esforça por chegar a um consenso – com base em fatos objetivos, mas que são eles mesmos, em parte, reconstruídos pelas interpretações. A competência aparece, então, como o objeto de um debate necessário (onde os referenciais têm um papel de critério) se se quiser escapar da dupla armadilha do arbitrário e do julgamento redutor. O eixo problemático em torno do qual vai girar nosso estudo será o seguinte: redinamizando os dispositivos, a conceitualidade e os modelos atualmente em uso para conceber e gerir as competências – como a integração, no âmago mesmo do conceito de competência de um debate entre os pontos de vista (próprios a todas as pessoas em atividade numa situação de trabalho) permitiriam mostrar não só o motor explicativo e performativo como também – os limites e as condições sob as quais eles poderiam ser aperfeiçoados no seu sentido próprio. Dito de outra forma: como as práticas e os discursos atualmente dominantes em torno da noção de competência veem sua eficácia e sua pertinência fortemente
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limitados por um viés que tende à unilateralidade de sua abordagem das situações de trabalho? E, sobretudo, em que a especificidade do conceito de competência – notadamente no que diz respeito àquele da qualificação que ele visa substituir aos poucos – iria tender justamente ao que se define, em primeiro lugar, como um consenso emergente do debate de pontos de vista para fazer que se reencontrem as exigências de confiança e do reconhecimento? O fio condutor que vai guiar nossa reflexão para responder a esta problemática toma, como ponto de partida, o conceito ergonômico de distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Seguindo Yves Schwartz, acreditamos que é preciso insistir sobre o caráter fundamentalmente paradoxal dessa distância. Com efeito, na dinâmica da atividade, o prescrito (ou seja, o quadro normativo preexistente à situação) só retira sua efetividade da atividade humana que o utiliza – aplicando-o a si mesmo – o que corresponde à incontornável “personalização da tarefa” na etapa da sua realização. Mas, ao mesmo tempo, não haveria aí nenhuma atividade efetiva sem o plano de normas antecedentes, que a guia e suporta (até a padronização, para organizar a cooperação em grande escala) – o que corresponde à indispensável “anonimização da tarefa” quando da sua planificação. Esse paradoxo da atividade nos parece decisivo para repensar a competência. De fato, a dificuldade da substancialização da competência (sua redução às listas de um referencial) é ultrapassada quando se olha a atividade do trabalho como um vai e vem entre “a norma antecedente” (anônima) e a “renormalização”, ou seja, a maneira própria a cada um de assumir essa norma num momento da vida. Para desenrolar esse fio condutor e desenvolver todas as potencialidades inscritas no paradoxo da atividade, vamos voltar constantemente, no decorrer deste trabalho, a esse vai e vem entre norma antecedente e renormalização. Sobre esse ponto, uma precisão terminológica se impõe logo de saída. Trabalho prescrito e trabalho real não são simplesmente objetos distintos, fatos separados – um discursivo (o prescrito) e outro empírico (o real). Trabalho prescrito e trabalho real engajam também maneiras de analisar o trabalho, as quais são muito
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diferentes: para “ver” o trabalho prescrito, é preciso tomar distância no que diz respeito aos detalhes anedóticos do concreto, é preciso focalizar sua atenção sobre as regularidades, ajustar as lentes da abstração. Pelo contrário, para reconhecer o trabalho real, é preciso “ir vê-lo” (de acordo com as palavras do ergonomista Jacques Duraffourg), quer dizer que é preciso – tanto quanto possível – se aproximar da situação tal como é gerada aqui e agora e por uma pessoa específica. Analisando o trabalho dos outros ou mesmo o seu próprio, não se percebe a “atividade” (o esforço da interação que retrabalha o prescrito no real) senão ao preço de um ir e vir constante entre esses dois ângulos de análise de uma mesma realidade: tal situação de trabalho. Para insistir a respeito de cada um destes dois possíveis pontos de vista sobre a atividade, o filósofo Yves Schwartz propõe batizá-los respectivamente a “aderência” e a “desaderência”, um binômio que esse autor define de acordo com as palavras que se seguem. A aderência é o desafio de viver o mais perto das reais restrições, a fim de tentar utilizá-las como oportunidades: Não há nenhuma vida humana que não seja como que chamada a viver, de uma parte, no que nomeamos ‘a aderência’: seja a mobilização de nossas energias, incorporadas não só às nossas faculdades mentais como também aos equipamentos biológicos, para detectar o que se torna ponto de resistência e ponto de apoio no presente do meio a viver (2009a: 16).
A desaderência é a capacidade de inventar um modo de se mover – pelo pensamento humano – que seja à distância, desconectado, mais ou menos profundamente, da situação imediata, de suas solicitações, de suas urgências. Isso vai permitir – a longo prazo – produzir, de início, a linguagem articulada, mas, na continuação, o conceito até seu polo extremo, o conceito científico. (...) O fato de pensar à distância, portanto, de categorizar é, de uma certa maneira, uma invenção da norma (...). No entanto, categorizar, antecipadamente, os elementos do mundo é, também, ‘qualificá-los’ (...). Subsume-se um caso sob um conceito – ver a qualificação como ato jurídico – mas não se pode, ao mesmo tempo, criar uma relação qualitativa, polarizada, em valor, com o que se visa (2009b: 62).
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Esta obra vai apresentar, em três tempos, nossa pesquisa metodológica: Uma primeira parte será uma coletânea dos usos do termo competência nas situações de comunicação profissional em que ele opera – onde ele quer dizer alguma coisa. Realizada a partir de trabalhos universitários em contextos de formação contínua, esta coletânea classifica todos os casos em famílias de usos, correspondendo às diferentes funções do manager: organizar, chefiar2, formar, avaliar, recrutar. Confirmadas com os casos típicos discutidos na literatura gerencial, essas situações de uso revelam, nos autores relacionados, representações, a cada vez, diferentes da competência. Uma segunda parte consiste em reconstruir a lógica das concepções da ação e do saber, associadas a cada um desses conceitos operatórios da competência. A ideia é reencontrar e compreender a coerência do conjunto que permite aos diferentes atores verem a competência de tal ou tal maneira. Reconhecemos três lógicas com – a cada vez – sua força e seus limites: (a) considerar que a competência é um “saber aplicar bem” as etapas do projeto comum; (b) conceber, tendo em vista as circunstâncias que não cessam de mudar, a competência, sobretudo como um “saber improvisar no trabalho”, ser mais reativo que proativo; enfim (c), em face dessas duas visões demasiadamente unilaterais, alguns opõem um caminho: a competência significa, então, adaptar o prescrito para se propor regras. Três concepções que subentendem para nós os discursos sobre a competência. Ilustrando-as, a cada vez, com um autor representativo (Aristóteles, Dewey, Bourdieu), queremos realçar sua grande coerência interna, antes de confrontá-las cada uma com (d), o conceito de atividade real tal como o desenvolve a abordagem ergológica a partir de uma perspectiva antropológica. O objetivo é aqui mostrar que a competência aparece de maneira particularmente clara (em cada um dos usos), quando os conceitos de ação e saber utilizados levam em conta, ao mesmo tempo, a norma e o ponto de vista sobre a norma. 2 N.T. Optamos pela palavra chefiar para traduzir encadrer.
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Enfim, a terceira parte vai consistir em sintetizar as ferramentas e os modelos elaborados no quadro da nossa própria prática (inserção profissional), porque eles visam evidenciar o ponto de vista do ator a respeito de uma regra que ele tenta seguir. A ideia aqui é mostrar que é possível elaborar dispositivos para que a competência seja estudada e gerida tendo em conta, ao mesmo tempo, a norma e o ponto de vista sobre a norma. Em relação a cada uso, nós apresentamos, alternativamente, uma ferramenta saída de nossa prática ou o modelo teórico em que ele se assenta. Re-contextualizar cada uma dessas “modelizações” nos projetos onde eles foram elaborados. Esta síntese tem por objetivo balizar um programa de uma pesquisa futura, interdisciplinar, objetivando aprofundar essa investigação sobre as condições de atualização concreta da competência de uma pessoa em situação.
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Parte 1: Problematizar a competência
No mundo do trabalho, o uso da palavra competência não é exatamente o mesmo segundo o papel que se tem em “gestão de recursos humanos” (GRH): organizar o trabalho, chefiar, avaliar, formar ou ainda recrutar. Começaremos nossa investigação buscando o que revelam esses usos, ou seja, tentando encontrar o conceito operatório da competência, o qual estrutura, ao mesmo tempo, o discurso e as maneiras de se apropriar dele. No entanto, antes de considerar, alternadamente, as cinco funções que acabamos de identificar, gostaríamos de nos colocar uma pergunta fundamental: de onde vem a necessidade de falar de competência hoje nas empresas? Trata-se de um desafio comum a todos os protagonistas das situações de trabalho: o de compreender a ligação entre o que se sabe e o que se faz.
1. A questão da relação entre os saberes e a ação O que subjaz à questão da competência no trabalho é a relação entre os saberes e a ação. A preocupação é crucial para as organizações que buscam produzir: elas devem tirar o melhor partido do saber que elas geram. Na organização taylorista, saber é inteiramente antecipação: os dirigentes detêm o seu monopólio, considerando que o operário é um cérebro vazio, guiado, inevitavelmente, por
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sua hierarquia. De modo mais geral, uma organização formal define, como ação, as operações repetitivas e rotineiras, que correspondem ao saber considerado estritamente necessário e suficiente. Ora, alcançam-se rapidamente as fronteiras de tal representação do trabalho: a cada vez que se fixam a priori as fronteiras entre os atores da produção, arrisca-se a confinar, em seus limites, os saberes especializados, em vez de encorajar as interações no momento das diferentes arbitragens em produção. A aceleração das mudanças, no curso das três últimas décadas, tem levado a repensar essa relação entre os saberes e a ação coletiva: evolução das tecnologias; evolução dos consumidores; evolução da duração de vida dos produtos, etc. Os saberes produzidos pela empresa são não somente aqueles extraídos do trabalho pensado antecipadamente, mas também aqueles ligados à percepção das mudanças e à avaliação das respostas mais bem-adaptadas. Gradualmente, o problema de tirar partido dos saberes, graças a um corte dos domínios e dos níveis de decisão, desloca-se para uma perspectiva mais global, aquela da estratégia da empresa face à complexidade e à instabilidade do mercado. Mais que nunca, é preciso poder contar com as interações entre os protagonistas das situações de trabalho a fim de efetuar as boas arbitragens no momento adequado. Cada indivíduo é não somente uma fonte de saberes de experiência, mas, além disso, ele vai gerar novos saberes, graças às relações que ele estabelece com seus pares. Contudo, a coletivização dos saberes encontra ela também, muito rapidamente, seus limites. Pretende-se realmente promover os saberes da experiência e igualmente as perspectivas únicas sobre a realidade, contanto que eles não interfiram no processo de decisão. A gestão dos recursos humanos – ao menos na cultura francesa – prefere relegar o compartilhamento dos saberes em uma área predeterminada. Vamos citar o exemplo dos Círculos de Qualidade, em voga no último século, na indústria: concebidos para partilhar os saberes e melhorar assim os processos de uma maneira contínua, eles se confrontaram com a dificuldade do diálogo entre níveis hierárquicos e com a cooperação problemática dos saberes entre categorias profissionais heterogêneas.
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Acabamos de evocar as profundas mudanças sociais das últimas décadas: mundialização, automação, emergência das tecnologias da comunicação e da informação. Essas transformações obrigam nossas representações de trabalho e da organização a evoluir, mesmo que muito gradualmente. A análise de um desvio “trabalho prescrito, trabalho real”, que pôde ter sido acolhida friamente pelos responsáveis de empresa no período taylorista de meados do século XX, é, a partir do momento atual, comumente aceita. Essa defasagem é mesmo, na maioria das vezes, reivindicada pelos dirigentes. As novas expectativas dos clientes, a imposição de se adaptar, constantemente, aos novos dados do mercado, fazem com que os organizadores declarem, de bom grado, que eles não estão mais em condições de prever tudo e que parte da antecipação recai, daqui em diante, sobre seus colaboradores. Ser organizado não é mais, necessariamente, ter tudo antes do tempo previsto. É, igualmente, ter reunido os meios de arrostar os acontecimentos em situação real. Esses acontecimentos são os constrangimentos a que temos de nos submeter todos os dias: uma pane, uma falha, um defeito de qualidade, uma modificação forçada na programação. Ocorrem, também, os constrangimentos que são provocados, quando se toma uma série de decisões durante as etapas da produção de bem ou do serviço. Note-se que, admitindo-se uma distância prescrito/real, reconhecemos nos assalariados, simultaneamente, uma capacidade de reflexão, porque contamos com eles para gerir essa distância. Os operadores trabalham, ou seja, são solidários com os objetivos fixados coletivamente, com os resultados esperados e com os meios a mobilizar. Eles se chocam com os obstáculos e, apesar de tudo, acabam por elucidar os problemas e a atingir o objetivo – em níveis diversos. Observando de perto, as ocasiões de reconsiderar e de aprender no trabalho se apresentam, então, em profusão. Os saberes da experiência são, em princípio, reconhecidos e bem-vindos – e, no entanto, seu encontro com os saberes da organização, aqueles que estruturam as situações de trabalho, toma, na maioria das vezes, a forma de um encontro infeliz. Tudo acontece como se, numa espécie de persistência da visão taylorista da organização, os saberes da experiência continuassem a ser percebidos como
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uma fonte de incerteza e uma ameaça de desfuncionamento. O erro estaria na comunicação, nas mensagens que não circulam corretamente entre os atores da organização: de acordo com o domínio de intervenção e também em função do nível hierárquico. Para se colocar a salvo das tensões e dos interesses divergentes, espera-se que esses saberes da prática correspondam aos “fatos”. No entanto, os fatos sozinhos não dizem nada: uma pane tem a importância que se lhe quer dar. O mundo objetivo é interpretado, de fato, num mundo social. Dizer que o acontecimento é importante tem este significado: é preciso que os participantes da situação, onde se dá o acontecimento e, além deles, a sociedade, deem um valor discriminante ao acontecimento que vai permitir identificá-lo como ‘fazendo acontecimento’. Sem essa condição, a pesquisa não terá início. Não se vai interessar pelo acontecimento (Zarifian, 1995: 27-28).
Sem dúvida, a questão de uma melhor manifestação sobre o trabalho real e a atividade se apresenta como uma questão social, que ultrapassa em muito os aspectos de comunicação tal como a linguagem comum. Há muito tempo se fala da “crise de prescrição”: outrora, um feedback se instalava, de modo relativamente fácil, entre operadores e os prescritores, permitindo a esses últimos atualizar seu conhecimento da prática. Hoje, torna-se cada vez mais difícil para os gestores ter esse conhecimento profundo das realidades do trabalho, o qual lhes permitiria ajustar as normas estruturantes da situação de atividade. Aí está, talvez, uma espécie de círculo vicioso: os prescritores, estando de preferência na defensiva, têm tendência a receber, com distanciamento, os saberes da experiência, desencorajando, por fim, o setor operacional (operadores e gestores locais) de desempenhar o papel de mediadores entre sua atividade de trabalho e o prescrito que a torna possível – e essa retenção faz aumentar, um pouco mais, a relativa defasagem dos organizadores.
2. O uso do termo competência entre os organizadores 2.1. Sob o ângulo do indivíduo O organizador é o responsável pela continuidade da atividade de uma empresa, busca implementar seus grandes eixos estratégicos encontrando uma relação entre
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saberes e ações e desenvolvendo, sobre essa base, uma estrutura eficaz. Em primeiro lugar, diferenciar, para, em seguida, reunir: ou seja, fazer a diferença entre os funcionários, para alcançar as boas combinações coletivas. O organizador deve, pois, nomear a relação entre saber e ação no que diz respeito à capacidade de cada indivíduo, para compor, a partir disso, as equipes que irão gerar novos saberes. A qualidade do trabalho vai se apoiar nas identidades profissionais fortes, produzidas por sólidos sistemas de interação, de comunicação e de ajustamentos recíprocos. Em consequência, o organizador dirigente é um gestor de “competências” num sentido bem particular do termo. Cada competência designa para ele, de maneira inevitavelmente um pouco abstrata e global, um colaborador, um participante no serviço que a empresa projeta realizar. O conjunto das competências disponíveis assim diferenciadas é adaptado pela reunião não mais de conteúdos de empregos (como nas qualificações), mas de situações profissionais típicas – pelo menos, se demonstramos uma vontade de entrar em uma abordagem de competências. Essas situações são, em princípio, escolhidas como as mais representativas no que diz respeito à realidade do trabalho efetuado pelos trabalhadores em questão, para, em seguida serem analisadas e sintetizadas em um referencial de competências. No entanto, passando da qualificação à competência, o organizador vê a questão da relação estável entre saber e ação se complicar. Com as qualificações, a relação entre o que uma pessoa sabe e o que ela faz não só é nomeada, mas também normatizada: são designadas situações de funções comuns a grupos de pessoas, facilitando sua classificação, sua hierarquização e a composição de um organograma. Ora a competência não permite isso: não existem escalas susceptíveis de medir as competências, nem a hierarquia de valores da competência. Com o declínio do trabalho prescrito estandardizado, a organização reconhece não mais dispor, a priori, do repertório preciso de saberes úteis e faz apelo aos saberes da prática. E, efetivamente, a pessoa competente vai implementar saberes que vão sempre um pouco além do que é requerido nas grades estabelecidas anteci-
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padamente. Introduz-se, nesse momento, a noção de responsabilidade, aquela do operador ao qual se confia a gestão de uma situação profissional. Certamente, com a competência, o organizador dispõe de uma nova ferramenta de governança, o que lhe dá uma ideia mais clara dos saberes efetivamente usados no trabalho. No entanto, nessa aproximação do saber e da ação, deve-se necessariamente integrar a tomada de iniciativa e de responsabilidade. O problema não é mais, como na concepção taylorista, respeitar as operações prescritas e a velocidade de sua realização, mas de assegurar que a ação realmente engajada se mantém dentro do enquadramento acordado, em conformidade com os objetivos da direção. Isso supõe um novo dispositivo de controle exercido pelos dirigentes, no contexto de uma relação salarial. Um controle não disciplinar, que assegure ao assalariado uma liberdade de movimento e de arbitragem nas situações que ele encontra e lhe permitem, em retorno, se reapropriar de suas próprias ações – sem que, todavia, ele não “tensione o elástico que o liga à hierarquia”, precisa Philippe Zarifian (2006:11). Uma vez que é considerado como estratégico, o saber da experiência não pode ser totalmente comandado, teleguiado. Há, certamente um limite, é a entrevista para prestar contas dos resultados. Porém, uma tal pressão artificial é pouco compatível com o engajamento de compartilhar um saber da experiência. A confusão arrisca-se, então, rapidamente a se instalar entre a avaliação da performance e avaliação da competência. E diríamos que uma armadilha se fecha. Escolhendo, no início, um critério de cooperação altamente personalizado, aquele da competência em lugar da qualificação, liberam-se espaços de autonomia. Mas, se essa escolha é feita em razão do aumento dos controles e de um retorno sobre o output, então estamos em contradição com o desejo de nos apoiarmos mais em saberes da experiência relacionada com a ação situada, ou seja, de mobilizar ainda mais a competência para assumir a situação de trabalho... Vê-se que para a organização não é fácil fazer uso do termo de competência. Julgar a relação entre os saberes e as ações é, de alguma forma responder a uma dupla
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questão. Do lado do assalariado: essa relação irá responder ao que se espera de mim? E, nesse caso, quais serão as minhas margens de autonomia, de iniciativa? Qual será o reconhecimento dessa relação? No lado do organizador: essa relação vai responder ao que eu espero da pessoa? E, neste caso, até que ponto posso confiar nela, até que nível de responsabilidade chegar à composição de uma equipe? O resultado é uma inferência do particular para o geral: ser julgado capaz de... ora, no caso da qualificação, esse julgamento parece mais evidente porque ele é exterior em relação à ligação saberes/ações, operada com base em referências negociadas. Ao contrário, com a competência, esse julgamento parece mais questionável porque interior, inscrito dentro do processo que religa o saber à ação. Entre qualificação e competência, o organizador irá escolher entre desconforto (dispor de uma grade que tende a incomodar na sua distribuição de papéis) e insegurança (privar-se de uma proteção na relação salarial para melhor se aproximar do trabalho real)? Certo é que o desenvolvimento do termo competência introduz uma mudança na relação entre o indivíduo e a organização. “Com a qualificação, é o fato de ser qualificado que vale como reconhecimento; para a competência é o fato de ela ser reconhecida que a estabelece” (Lichtenberger, 1999: 84).
2.2. Sob o ângulo do coletivo No deslocamento da qualificação à competência, a outra preocupação incômoda para o organizador – depois da gestão das margens individuais – é a cooperação no trabalho. As situações de trabalho que se representavam estáveis e reprodutíveis permitiam ao organizador criar estruturas evidentes com equipes de trabalho com contornos bem definidos. Uma tal concepção de organograma é descontruída pelos coletivos moventes, que – frente à evidência de sua atividade, do trabalho real – não se deixam encerrar na modelização inicial. As entidades coletivas de geometria variável sempre existiram nas empresas (Schwartz, 2000a), mas elas se tornam visíveis onde eram, sobretudo, discretas. Em função da natureza dos problemas encontrados, os coletivos se recompõem rapidamente e procuram
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ser reativos, para responderem, em conjunto ao imediatismo, à variabilidade das situações encontradas. O risco para o organizador que faz uso do termo competência é confirmar a tendência de se perceber o trabalho como uma iniciativa sem raiz coletiva, sem vinculação a uma equipe. Esse risco reforça a ideia de que a competência estaria atrelada a uma qualidade individual, transportável permanentemente, em um saber relacional, comunicacional. Ao mesmo tempo, poderíamos dizer, o organizador que se baseia na competência e descreve suas expectativas, apenas esclarece sobre o que os ergonomistas já haviam revelado no período taylorista: as colaborações mais ou menos clandestinas para fazer face aos acontecimentos no trabalho. São essas relações nascidas da necessidade que teciam as comunidades de interesses, portanto, os coletivos solidários e susceptíveis de favorecer as identidades profissionais e sociais. A diferença é, todavia, importante: quando a abordagem competência coloca, em palavras, essas relações profissionais e as integra em suas próprias características, ela as modela, ela as congela de alguma forma – para fazer um novo prescrito. O uso do termo competência vai ao encontro das precauções outrora tomadas, na época apenas das qualificações, que consistiam em manter a uma boa distância, de um lado, a maneira de nomear o que se tinha como uma força de trabalho e, de outro lado, a personalidade que deveria ocupar o cargo. Interditava-se, então, qualquer suposição sobre o que poderia explicar a qualidade do gesto que tornava alguém mais apto que o outro, para executar uma função; recusava-se qualquer hipótese sobre a natureza ou a origem dessa “competência”, que se definia como uma qualidade inata, ou mesmo, como o resultado da experiência ou de uma dada formação. Com o agente anônimo sendo completamente apartado da realidade do trabalho, era suficiente a diferenciação somente pela qualificação. E é, na ação real, em situação de trabalho, que esse agente se construía com os outros, uma outra diferença, uma verdadeira identidade.
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Vê-se bem, na relação saberes e ação, porque razão os organizadores do trabalho se debatem com a suspeita de favorecimento do papel do indivíduo – enquanto as atividades profissionais têm objetivamente um caráter coletivo e interdependente. Renuncia-se a se representar a ação no trabalho como uma simples aplicação de saberes, o que significa que nós nos aproximamos da mobilização efetiva dos saberes na ação. Por consequência, introduz-se inevitavelmente um elemento perturbador, o poder de agir. O indivíduo que age é convocado à responsabilidade, ele deve assumir a realidade encontrada no trabalho. Ele aceita mais ou menos esta convocação para agir, em função do grau de iniciativa que, em parte, lhe é concedida e que, de outra parte, ele quer aceitar. Um novo tipo de relação entre o indivíduo e o coletivo resulta inevitavelmente do uso do termo competência. Recordemos que, desde as primeiras introduções da abordagem competência nos anos 90, Yves Lichtenberger colocava esta questão central: “em quais condições os homens aceitam cooperar entre si?” (1990:23). Parece-nos que, do ponto de vista do organizador, é um pouco como a quadratura do círculo. A competência é um vocábulo prático para se aproximar da prática, no momento onde é preciso contar com uma reatividade máxima das equipes. Simultaneamente, esse vocábulo invade as situações de trabalho, obrigando-nos a considerar que o saber e a ação não estabelecem uma relação neutra, mas que se referem a uma atividade, com configurações de acontecimentos, obrigações a escolher em função ou à custa dos outros. Ou seja, ao aproximar saber e ação, revelam-se as margens de responsabilidade e iniciativa, um poder de agir tomado como um debate sempre renovado na situação. A situação: é isso que traz dificuldade do ponto de vista da organização. Até que ponto a situação pode ser a pedra de toque que distingue os protagonistas do trabalho? A situação nos aparece como um intermediário entre a classificação e a performance. Do lado da classificação, o raciocínio sobre a diferenciação se baseia sobre o sistema das qualificações. Do lado da performance, quando ela é o único critério, a diferença se faz de acordo com os “talentos” (Pigeyre, 2011).
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A situação é, desse ponto de vista, a referência para a competência, obrigando-a a atualizar os saberes. Para se distinguir um do outro, cada um é, assim, posto à prova no aqui e agora. Mas, para caracterizar isso que é realizado, como considerar o ator que se revela no ato sem se fechar na singularidade de suas escolhas? Como dar conta tanto do individual quanto do coletivo, sem lesar nem um nem o outro? A competência, em relação à qualificação, é um deslocamento de saberes em direção a ação. Ao fazê-lo, penetra-se na atividade em lugar de ficar só no limiar. O que se descobre então, no menor dos atos de trabalho, é toda a realidade humana: individual e coletiva. O organizador deseja refinar a sua percepção das forças em presença, mas isso não se deve fazer nem em prejuízo do indivíduo, nem em detrimento do coletivo. Ora – já vimos, falar da competência já é transbordar, colocar-se para além da única designação dos saberes úteis à ação. Inevitavelmente, toca-se nas relações humanas. O ato no que diz respeito ao saber nos humanos não é comparável a uma operação correspondente a um programa informático, por exemplo. Agir forma uma unidade com os saberes e os valores – e os valores conduzem, nos seus sulcos, à questão dos outros, das preferências e das prioridades. Essa unidade do agir humano incomoda forçosamente o raciocínio de um organizador que, caso contrário, iria adorar se aproximar das realidades do trabalho. O gesto técnico, que se queria neutro a fim de melhor indexá-lo, é intimamente investido por uma personalidade. O operador, que gostaríamos de observar à parte para refletir sobre seu percurso, está estreitamente misturado ao trabalho dos outros... O gestor de recursos humanos está bem consciente das dificuldades relativas às competências e aos riscos da perda de dinamismo, de motivação, em caso de falta de habilidade em relação à pessoa ou no tocante ao coletivo. É por isso, parece-nos, que a introdução massiva do uso deste termo individualizante que é “a competência” chamou, paradoxalmente, muitas vezes, a atenção dos organizadores sobre os coletivos. Longe de serem aglomerações, eventualmente ameaçadoras, como foram percebidas nas fábricas do passado, os coletivos
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são construções pacientes, frágeis e preciosas – tipos de emergências a que as empresas devem boa parte de seu sucesso. O que nós retemos de nossa análise do uso que os organizadores do trabalho podem fazer da palavra competência é, primeiramente, isto: eles aprenderam a pensar as competências de uns em relação às competências dos outros. Aproximando o binômio “saberes – ações” requerido pela competência, apreendemos melhor a medida das interdependências que uma visão por demais racionalista do trabalho poderia mascarar na época taylorista. Mas do que escolhido, o vocabulário da competência foi incontestavelmente imposto aos organizadores, sendo trazidos pela onda de mudanças ambientais que assolam as empresas, sobretudo no curso das três últimas décadas. O termo pôde seduzir, porque deu novo acesso às realidades do trabalho. Mas ele tem também constrangido: não nos aproximamos da atividade real sem correr riscos. Em um estudo relativamente recente, Ewan Oiry (2005) fez um balanço comparativo dos usos de dois conceitos: a qualificação e a competência desde os anos sessenta. Ele ressalta que o modelo da competência foi severamente criticado: em primeiro lugar, por uma ambiguidade porque uma competência não pode ser tão contextualizada e retirada de seu contexto organizacional e, também por seu unilateralismo, dado que ele parece se desobrigar de todo diálogo social, ao contrário da qualificação; por sua abordagem conciliadora e compreensiva por assim dizer, por seu irenismo1, porque fingiu acreditar que uma competência pudesse ser avaliada sem debate ou controvérsia. O autor desse estudo seguiu os vários ajustes desse modelo de competência e conclui, comparando-os às evoluções paralelas do modelo de qualificação, visto que as últimas versões desses dois conceitos são finalmente muito semelhantes. As duas características da competência que mais significativamente evoluíram são: de uma parte, considerar que a competência é o atributo do indivíduo (agora nos contentamos em dizer que o foco é colocado 1NT: Ecumenismo.
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sobre o sujeito); de outro lado, pretender que a competência responda a critérios objetivos não negociáveis, porque fundados cientificamente (admite-se agora que eles podem estar sujeitos uma negociação). Parece-nos, efetivamente, que o uso do termo de competência pelo organizador do trabalho se aproxima da qualificação como uma “irmã gêmea” (Oiry). Trata-se provavelmente um compromisso inevitável, até que o conceito seja mais aprofundado: nós estamos ainda, de acordo com o nosso ponto de vista, no meio do caminho.
3. O uso do termo competência pela chefia 3.1. Uma posição “entre dois” Dependendo do tamanho da empresa, duas funções de administração podem ser confundidas ou, ao contrário, bem-separadas: a do dirigente que organiza e a do chefe que implementa. Em nossa pesquisa, a respeito do uso da palavra competência, parecia-nos importante fazer uma diferenciação. Não teríamos a mesma precaução com a qualificação, o conceito operatório não está necessariamente nuançado de uma função para a outra. Em compensação, a competência aproximando o saber da ação, nós nos damos conta da posição específica do chefe de setor, pois ele fica o mais perto das realidades do trabalho, na “aderência” – enquanto, por seu lado, o organizador se posiciona necessariamente em “desaderência”. Todas as grandes estruturas de produção de bens ou serviços, nos setores público e privado, recorrem a um intermediário entre, de um lado, o nível hierárquico dos responsáveis encarregados da definição estratégica, assim como das grandes linhas de organização e, por outro lado, o nível dos operacionais no sentido primeiro da palavra, os que estão diretamente enfrentando o terreno no contato do usuário ou do cliente. O chefe de linha é, muitas vezes, fragilizado na percepção de sua própria identidade profissional. Sua prática não abarca realmente um ofício, sendo a sua função permeável a diferentes categorias profissionais. O grupo ao qual ele pertence não pode
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ficar do lado dos dirigentes, pois ele está claramente em posição de subordinação, mas ele também não pode estar do lado das pessoas do chão de fábrica. Mesmo que a relação disciplinar não seja mais do tipo taylorista, ele precisa manter uma distância mínima para preservar a sua autoridade. Aliás, considera-se, muitas vezes, que ele possui responsabilidades operacionais tendo um estatuto funcional. A partir do papel que lhe é prescrito (Bellini e Labit, 2005: 227), o gerente vai tentar construir um papel ele próprio para si mesmo ao lado de sua equipe, evitando, se for possível, dois obstáculos: o do amigo e o do “pequeno chefe”. A diretoria usa o chefe de setor como uma correia de transmissão ao passo que as equipes gostariam que ele fosse o porta-voz delas. Como está na escuta das diferentes preocupações, estratégicas por uns e operacionais pelos outros, ele assume uma função de regulação, até mesmo de agente da paz social. A posição entre os dois grupos é, sem dúvida, um freio para o desenvolvimento de um profissionalismo e de uma verdadeira autoridade no âmbito da missão confiada a essa categoria de trabalhadores. O que se espera de um chefe de setor é acompanhar, ajudar e encorajar cada pessoa da sua unidade, construindo uma equipe unificada: formar um grupo que seja, ao mesmo tempo, coerente e unido, integrado - mas não fusionado, de maneira a não impedir cada um de realizar sua tarefa com a sua própria personalidade. Administrar uma equipe, não é pilotá-la do alto, mas é, de preferência, compartilhar a sua luta com o real. A chefia de proximidade é, sem dúvida, muito mais uma arte do que uma técnica.
3.2. Um exemplo no meio industrial Em uma empresa metalúrgica, os chefes de setor ficam ressentidos quando a diretoria de recursos humanos não os consulta antes de decidir sobre as progressões dos colaboradores. Por seu lado, a DRH critica as chefias por tratarem muito superficialmente as ferramentas de gestão das competências (relatório das entrevistas anuais, identificação das necessidades de formação). Considerados por
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muito tempo como especialistas técnicos, podendo substituir, aliás, a qualquer momento um operador no seu posto de trabalho, os chefes de setor entenderam que o que se esperava deles, de agora em diante, era assumir o papel de coach das equipes: explicar o que se esperava deles, formalizar as tarefas, valorizar os resultados. Em resumo, demonstrar que vale a pena engajar-se no trabalho, apesar das dificuldades do quotidiano. O chefe de setor reivindica o seu conhecimento do terreno. Ele sempre aprecia o trabalho de cada colaborador: “vendo como ele trabalha você sabe se ele entendeu o seu trabalho ou não”, explica um chefe que enfatiza a necessidade de os operadores serem reconhecidos. “Não é desenhando organogramas num quadro que se administra esse reconhecimento. Como o chefe [hierárquico] pode julgar a competência de um trabalhador, sem consultar o seu chefe de setor?” (Kauffmann, 2012: 70). Isso pode parecer paradoxal: de um lado, os chefes acham que eles são capazes de “saber o que as pessoas fazem, qual é a pessoa na melhor posição para fazer esse trabalho” (ibid: 65); mas, por outro lado, esses mesmos chefes atrasam as agendas de manutenção anual, negligenciam obviamente os documentos ligados a isso, notadamente a respeito do assunto das formações recomendadas. Na realidade, para o chefe cuja missão, apesar de tudo, é alcançar o resultado esperado, a competência significa algo de bem-definido. Constantemente, o número de trabalhadores flutua nas empresas e desorganiza as equipes. Para alcançar os objetivos de performance, os chefes de linha têm que antecipar as necessidades de competência da sua equipe. Muitas vezes, com a polivalência ou com contratos temporários, pois as diretorias limitam os recrutamentos por motivo de rentabilidade. O chefe deve estar na escuta das evoluções estratégicas da sua hierarquia e adaptar as necessidades de competência em caso de mudanças impactando sua equipe. Ele tem que reagir e fazer propostas. O chefe de setor deve poder identificar os potenciais da sua equipe. (ibid.: 31).
E, entretanto, o chefe de setor se sente despojado ao analisar a competência de maneira formal. É bem provável que esse seja o verdadeiro motivo de sua negligência aparente no que se refere às entrevistas anuais. No fundo, como falava um tutor
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em outro contexto, “se fala muito pouco de competências no meio do trabalho” (Gasser-Franco, 2012: 68). Para a chefia, a competência se vive muito mais do que se fala. Devemos concluir, como Guy Le Boterf, que “a competência requerida é a que está presente nos referenciais de competências. A competência real é aquela construída por cada pessoa” (Le Boterf, 2002)? Parece-nos, ao contrário, que precisamos evitar a armadilha desta dicotomia: competência teórica, competência real. É evidente que o chefe de setor percebe algo diferente daquilo que o chefe hierárquico percebe, mas esse “algo diferente “ não significa que haja dois fenômenos a levar em conta separadamente. Isso seria transformar a competência especificamente em outra coisa, uma substância que iríamos poder apreender como tal – quer se tenha tomado ou não a precaução de associá-la ao contexto. Na realidade, os chefes hierárquicos e de setor consideram um só e mesmo fenômeno: a pessoa em atividade. A única diferença está na abordagem: uns em desaderência, os outros em aderência. Como ele apreende seu julgamento de competência com o peso da situação real, multidimensional, com inúmeras obrigações e que, na sua maioria, ele não escolheu o seu projeto de ação, o chefe de setor não vai compartimentar o seu raciocínio. Se ele tiver que achar um substituto na esmaltaria para a caldeiraria, ele sabe que os operadores altamente especializados correm o risco de viver isso como degradante, mesmo sendo somente uma emergência. Ele vai apreender a questão da competência como uma única realidade a fim de convencer o profissional: ele não vai analisar separadamente os aspectos técnicos e psicológicos ou ligados à personalidade. Ele vai, também, considerar o momento e mobilizar, na sua retórica tanto os valores quanto os argumentos lógicos. Em uma avaliação, a competência designa a referência a respeito do referido que é a atividade, um “uso de si”. A competência pertence, assim ao registro do discurso sobre uma realidade, não se trata da realidade de um fato indiscutível. Os chefes de setor têm um discurso sobre a competência de seus colaboradores que não cruza com o dos chefes hierárquicos, não pelo fato de falarem uns e outros sobre duas formas de competência distintas, mas porque eles têm pontos de vista diferentes a respeito do fenômeno das ações julgadas positivas por alguém.
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Dizendo que o chefe de setor está na fronteira entre o trabalho prescrito e o real (Létondal, 1997: 18), indica-se efetivamente o ponto de vista que ele pode ter a respeito da competência, fortemente matizada de pragmatismo. Contrariamente ao uso que poderia ter um organizador, que assimila com facilidade a competência e a qualificação (cf supra: duas “irmãs gêmeas”), um chefe vai usar o termo competência para falar do que funciona, dos desafios vencidos por um ou outro, em função do que ele já sabe sobre ele. O chefe faz uso da competência na sua prática para avançar de maneira concreta no trabalho de equipe, mas não com a preocupação do gestor estratégico ou ainda do avaliador.
4. O uso do termo de competência entre os avaliadores 4.1. A competência sob o prisma da coleta de provas Avaliar é um exercício difícil, particularmente em empresa: nisso, o uso feito do termo competência pelos avaliadores pode ser muito instrutivo. De fato, a competência não é um objeto intelectual fácil, pois ela se entende no cruzamento do objetivo e do subjetivo. A tarefa que eu estou fazendo, hic et nunc e com mais ou menos sucesso, é a “minha” tarefa. Sou eu mesmo: não é uma tarefa neutra realizada por alguém que poderia ser eu – aliás, “julgado competente”. Por outro lado, é complicado porque essa tarefa não sou “somente” eu! Em outras palavras, eu não poderia ser reduzido ao que essa tarefa fala sobre mim nem, aliás, a todas as outras que eu pude realizar no passado ou que eu poderia garantir no futuro. Não existe loja virtual a meu respeito, com competências “manifestas” e outras na espera, porque “possuídas” por mim. Uma tal visão das coisas procede de uma apreensão ruim da dialética entre o ato e o ator: um faz o outro – e reciprocamente. Os que têm a tentação, por exemplo, de considerar um teste como uma prova incontestável de uma competência, o que significa atestar uma relação objetiva entre saber e ação, esses confundem o ato e o ator. Ao contrário, os que imaginam que um trabalho repetitivo não requer nenhuma competência, como se o meu agir fosse então reduzido a uma mecânica, esses fazem uma separação abusiva do ato e
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do ator: segundo eles, o ato repetitivo seria realizado como uma operação neutra, claro que na minha presença, mas sem um “eu” investido… Levando em conta o que acabamos de dizer, será que a avaliação das competências é possível? Mesmo assim, se impõe. Nós precisamos saber o que sabemos coletivamente e individualmente, quando se trata de passar à ação, realizar um projeto. A exigência de avaliação da competência é inteiramente legítima. Então, avaliar sim, mas o que avaliar? Descrevem-se ações profissionais em longas listas de itens. O frenesi dos cortes tomou conta de muitos avaliadores e isso não é surpreendente. Querendo aproximar o saber e a ação, vamos abordar necessariamente “a atividade”, que é um operador sintético. Essa atividade é transgressiva em relação às nossas categorias intelectuais, ela perturba, simultaneamente, o dualismo e o solipsismo ambientes. O dualismo considera, separadamente, o homem por um lado e o mundo externo por outro lado. O solipsismo isola o sujeito individual de seus semelhantes como se ele fosse sozinho uma realidade em si. No entanto, ao analisar o agir em competência, temos que constatar duas coisas. Em primeiro lugar, no momento de passar à ação, o protagonista não domina tudo; ele não domina o mundo pela sua qualidade de ser um pensante racional, mas ele luta, pelo contrário, com múltiplas exigências das quais muitas não foram levadas em conta no seu projeto. Em segundo lugar, esse mesmo protagonista nunca age sozinho. Ele reage sempre ao agir: as interações em situação reconfiguram, incessantemente, o seu esquema inicial de intervenção. Em consequência, o ato planejado, logicamente pensado, segundo uma intenção, é inevitavelmente transformado pelo real, pois o agir é um tecido de escolhas a fazer continuamente. É claro que isso não impede a modelização e, depois, a realização de um projeto, mas proíbe imaginar correspondências não equívocas entre o ato formulado hipoteticamente, indexado de maneira anônima numa grade de avaliação, por um lado, e, por outro lado, o ato tal como verificado na realidade, às vezes temporalizado e personalizado. Falamos que os avaliadores tendem em detalhar, cada vez mais a realidade do trabalho, afrontando com certa ousadia a inextricável complexidade da atividade
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humana. Eles elaboram a hipótese de que, com a força da precisão conceitual, terão delimitado os contornos de uma parte da experiência da vida concreta do avaliado na empresa nesse caso. Por exemplo, para relatar o fenômeno de um agir onde é difícil distinguir-se do outro, vamos forjar a expressão “competência coletiva”. É muito significativo o uso de uma representação da competência que fica, no fundo, ainda desencarnada, um tipo de fenômeno que pode caracterizar um grupo, além das personalidades que o compõem. Não se trata para nós de questionar a realidade das emergências coletivas, as sinergias entre atores, mas de ver que exatamente o termo “competência” pode facilmente ser transportado a uma escala que não é mais individual ao passo que, na origem, busca-se identificar as arbitragens de alguém, de uma personalidade que é o autor de um ato julgado exitoso. A discordância é, aliás, acentuada por outros motivos ainda: A gestão pelas competências deve assim fundar-se sobre ferramentas de reconhecimento relativamente precisas e estáveis para ser eficaz e parecer justa. No entanto, as competências coletivas, pela sua natureza, são dificilmente compreendidas: existe então, potencialmente, uma contradição de natureza entre, de um lado, uma abordagem necessariamente precisa, formalizada e, por outro lado, competências coletivas traduzindo, sobretudo, um equilíbrio mais ou menos estável de comportamentos e de competências interindividuais (Cavestro et al., 2007: 22).
A expressão “competência coletiva” mostra um desvio do avaliador para conseguir dizer algo da competência que seja, ao mesmo tempo, isolável e que assuma a permeabilidade da atividade humana entre si e os outros. Acontece o mesmo com as competências sociais ou comportamentais. Deslizamos, assim, da competência às competências, da passagem do singular ao plural sendo ela, também, reveladora do conceito operatório para os avaliadores. O que deveria ser um meio de distinguir os protagonistas do trabalho entre eles – com mais sutileza do que a qualificação e com respeito da identidade daquele que age – torna-se um catálogo de características heteróclitas. Mas, segundo os avaliadores, isso corresponde ao desejo dos avaliados, que preferem as fórmulas de competências mais precisas, como se não existisse meio termo entre as categorias universais da qualificação e a tentativa de categorizar o agir singular. Os assalariados vão considerar justas as
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competências definidas de maneira precisa, pois uma competência geral demais tornaria o seu reconhecimento mais delicado, aberto demais à arbitrariedade das chefias. Essa exigência de justiça como condição para aderir à abordagem de avaliação da competência nos faz pensar que é justamente o dualismo “sujeito agente de um lado, objeto-mundo do outro” que incomoda os seres de atividade que se tenta avaliar: cada um sente que ele terá que defender a sua causa, explicar com quais dificuldades ele teve que lutar ao realizar a tarefa em questão, antes de aceitar que se marque, com uma cruz, em seu nome, um dos quadrados da grade de avaliação.
4.2. A competência sob prisma da coleta de argumentos Desde o fim dos anos 90, parece-nos, são reconhecidas duas correntes na avaliação das competências na empresa. A primeira, que apresentamos anteriormente, apresenta uma abordagem mais positivista. Trata-se em reconhecer as provas do que o trabalhador consegue fazer: de um lado, dentro de um contexto dado, o que relata o seu desempenho; por outro lado, e independentemente desse contexto, o que fornece indícios da sua empregabilidade. Há uma segunda corrente que é orientada pela preocupação da interpretação. Os fatos existem, mas, certamente, eles não falam por si mesmos. É importante lembrar que, quando se pensa na competência, ela sempre supõe o olhar do outro. No ambiente de trabalho, por exemplo, no momento de se decidir da competência de um trabalhador, será para privilegiar a conformidade (as regras da arte, mais ou menos respeitadas) ou, sobretudo, a utilidade (a qualidade e a eficiência do serviço feito, mesmo tomando algumas liberdades em relação às maneiras canônicas de fazer na profissão)? O debate sempre continua: ele nunca vai cessar, pois ele é consubstancial ao trabalho como atividade, em tensão entre uma forma de desaderência (o prescrito, as delimitações da profissão) e uma forma de aderência (as urgências da hora, as realidades do momento). Assim, o discurso sobre a avaliação da competência está evoluindo: não é a mobilização dos saberes que está em primeiro lugar, mas a apreciação da situação.
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É visto como competente aquele que problematiza corretamente a configuração dos acontecimentos num momento dado. A questão dos recursos chega, necessariamente, em segundo lugar em relação à fase da avaliação de uma situação. Trabalhando, cada um está diante da obrigação de escolha. Agir é julgar – e, também, expor-se ao julgamento dos outros. Julgar o que é bom a ser feito não é somente combinar saberes num momento dado, é igualmente e, sobretudo, pesar os valores desses saberes, entrar num debate sem fim entre o que vale para si e o que vale para os outros. É por isso que, quando a avaliação é aberta para a argumentação, não se detendo nas únicas provas do ato exitoso, ela possibilita ao avaliado expressar certa satisfação ao constatar a singularidade da sua contribuição e o sentimento de uma nova dignidade: “não ser mais uma simples máquina de execução, mas ser reconhecido como participante do desempenho da empresa como indivíduo com um nome, uma personalidade e maneiras de fazer que lhe sejam próprias” (Lichtenberger, 1999: 80). Um nome, um rosto, “debates de normas”, um julgamento próprio: no oposto do anonimato de uma qualificação, a competência é um discurso sobre a pessoa vista em ação, no sentido de ela associar saberes e valores, nas suas escolhas em situação. Percebe-se nitidamente o paradoxo da avaliação da competência no meio profissional: como analisar, com uma relativa objetividade, o que é tão personalizado? Há de se achar um equilíbrio entre a prova objetiva e o argumento subjetivo para pronunciar um julgamento pertinente e aceitável do ponto de vista deontológico. Trata-se de um equilíbrio entre as duas práticas exageradas do julgamento de competência: uma que prova sem argumento; outra que argumenta sem provas. Nós já apresentamos a primeira com um tipo de uso cego da referência. A segunda consiste em negligenciar os fatos testemunhados de uma competência para remeter-se à notoriedade: “Nas organizações descentralizadas, os avaliadores incomodados com os sistemas de avaliação podem procurar usar a fama para avaliar implicitamente seus colaboradores” (Plouchard, 2013: 32).
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Para administrar o paradoxo da competência – pronunciar um julgamento de ordem geral sobre um fenômeno altamente específico – os avaliadores vão, a nosso ver, adotar o raciocínio seguinte. Em primeiro lugar, a competência não se confunde com o desempenho, mas ela não está dissociada dele: a competência representa o caminho para alcançá-lo. No entanto, esse caminho, esse processo que se chama competência é uma forma de inteligência da situação encontrada: ela passa pela tomada de iniciativa (engajamento de si) e de responsabilidade (engajamento com os outros). Então, para relatar melhor um agir na competência, é necessário associar a avaliação do desempenho a uma argumentação relativa à produção desse desempenho. “Uma pessoa somente poderá realmente ser reconhecida como “competente” se ela demonstrar capacidade em realizar uma ação, mas também entender por que e como ela faz para agir” (Le Boterf; 2002a). Os avaliadores finalmente se colocam em um tipo de combinação para identificar a competência: uma realização competente associada a uma explicação lógica das arbitragens, quer dizer, de uma abordagem reflexiva. Nós pensamos que essa maneira de fazer revela uma representação da competência ainda muito racional: uma construção lógica, uma combinação que pode se modificar dependendo das situações, o que explicaria que ela pode ser negociável. É, assim, uma percepção fortemente em desaderência, ou seja, ao abrigo das arbitragens concretas, reais, aqui e agora. Afirmamos isso porque, na situação em aderência, não existe arbitragem puramente lógica, no sentido de um agenciamento neutro de diferentes opções. Há, necessariamente, um domínio axiológico no ato: eu estou agindo em um ou outro sentido não somente em nome de uma racionalidade lógica, mas também segundo algumas preferências ou rejeições. É o que chamamos no sentido forte: o ponto de vista, aquele da pessoa engajada na ação.
5. O uso do termo competência pelos formadores: agir com um ponto de vista responsável Em simetria com a posição do gestor em relação ao organizador, o formador nos parece talvez mais em aderência, isto é, mais próximo das mediações situadas e
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datadas ao passo que o avaliador estaria mais numa postura de desaderência na medida em que ele tende distanciar-se do aqui e agora para ser mais pertinente. A partir disso, o uso que o formador vai fazer da palavra competência será nitidamente diferente do sentido do avaliador. E necessário precisar, sem dúvida, em que condições nós fazemos uso da palavra formador. Se a palavra prevalece quando se faz referência aos adultos em aprendizagem é porque existe uma diferença nítida com o docente. Trata-se de reforçar a relação entre o saber e a ação, em outras palavras, de se apoiar sobre o caráter operacional do saber, sobre a sua implementação, em situação, na vida concreta. É certo que os seres ativos que somos estão necessariamente posicionados de modo simultâneo em aderência e desaderência. Esse posicionamento está num reequilíbrio permanente, pois é próprio da atividade humana que é vital e intelectual ao mesmo tempo. Entretanto, a vida profissional causa desproporções entre aderência e desaderência, favorecendo uma mais do que a outra segundo os papéis e funções de cada um. O exemplo-tipo é a diferença entre o praticante e o pesquisador. Em contradição com as dicotomias injustificadas, como o “manual intelectual”, fazemos referência aqui a um relato de si ao mundo e aos outros – e não a uma escandalosa divisão da pessoa humana. Aliás, diferenciamos aqui o formador do docente na base dessa relação com mundo, o primeiro sensivelmente em aderência, e o segundo, em desaderência. Quando se pensa na parceria escola-empresa, subentende-se que o saber dispensado por uma entidade servirá para a outra na ação transformadora. A separação é nítida entre os dois lugares: de um lado, a escola onde se adquirem recursos, por definição, transversais porque propostos justamente em desaderência e externos aos contextos profissionais definidos; por outro lado, a empresa que “favoreceu a transformação dos recursos adquiridos na escola em competências profissionais. Dito de outra maneira, ela ‘ancora’ na ação dos saberes, dos saber-fazer ou atitudes” (Medef, 1998: t.5, 11).
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Essa divisão, um tanto categórica, questiona há muito tempo, o mundo profissional que reflete sobre a alternância. O que significam as idas e vindas entre a escola e a empresa? Essa alternância seria mais “uma articulação teoria/prática, isso quer dizer uma articulação pensamento/ação?” (ibid:12). Se entendemos a competência como “uma inteligência operativa do saber” (idem), é indefensável sustentar um compartilhamento absurdo dos papéis entre os que pensariam e os que agiriam. Em compensação, distinguir segundo o grau de proximidade com as arbitragens em aderência é absolutamente pertinente. Os atores do mundo da escola ocupam principalmente uma posição de desaderência sem, portanto, serem privados de todo o contato com a realidade concreta da vida profissional. As instituições de ensino técnico têm oportunidade de colocar os seus alunos em situação de fazer algo nas oficinas, aproximando assim o saber e a ação. Dito de outro modo, elas possibilitam aos alunos obter uma competência no mundo real a transformar. Inversamente, os atores do mundo da empresa estão principalmente em posição de aderência sem, entretanto, serem privados de um acesso à conceitualização e à modelização. O tutor é, assim, uma figura da transação educadora no ambiente de trabalho. Mas é bem o conjunto dos atos no trabalho que devem ser entendidos em tensão entre aderência e desaderência. A atividade cognitiva de quem está agindo nunca se interrompe, mas pode adotar regimes diferentes com “circuito curto” ou “circuito longo” para retomar a diferenciação de Gérard Malglaive (1998). Se ficarmos com a ideia de que, para o ser humano, nenhum ambiente está livre da tensão entre aderência e desaderência, percebe-se que os contornos da função de formador permanecem como objeto de um debate. Pois podemos querer aproximar o saber e a ação, mas vamos dizer que estamos diante de um docente ou um formador? É a diferenciação entre a aprendizagem e a competência que é posta nas entrelinhas: “Para transformar-se em competência, a aprendizagem in vitro deve poder ser posta à prova do real, na situação de trabalho. Ora, sabe-se hoje que, em múltiplos domínios (línguas, administração, pedagogia, por exemplo), saberes ditos “adquiridos” em sala não poderão jamais ser explorados in vivo por falta de pertinência, de realismo ou de oportunidades favoráveis” (Carré; 2005 : 93).
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Com a ajuda do binômio aderência-desaderência, parece possível esclarecer esse ponto. O modelo escolar é principalmente aquele da desaderência, pois a transmissão acontece ao abrigo de certo número de contingências da vida concreta. O docente é o mediador no domínio progressivo de uma maneira de pensar ou de fazer, com certa desaderência: de fato, os constrangimentos existem, mas eles são selecionados em função do projeto de aprendizagem. O tempo, a variação dos efetivos, as interações, a hierarquização das tarefas, a disponibilidade de materiais, tudo isso é objeto de uma antecipação no âmbito de uma oficina escolar. O formador, por seu lado, age em função da vida real, o que significa aqui, estar em conformidade com certo número de constrangimentos, muitos dos quais não foram pensados antecipadamente. Ele também é um mediador das maneiras de fazer, mas numa relação ao mundo que remete mais à aderência. Ele aconselha o aprendiz em seus debates com as contradições da situação profissional real: foi previsto, em dado momento, realizar uma etapa da iniciação profissional, mas precisa escolher, na verdade, o que é prioritário na ação coletiva para não afundar, manter o controle sobre o que está acontecendo; ou bem se quer antecipar um retorno de experiências entre o tutor e o seu aprendiz, ou, esse esquema é questionado de última hora porque uma equipe pede ajuda e é a cooperação que se impõe: são os imperativos da produção que têm prioridade. Não afirmamos que o formador tem que, obrigatoriamente, estar no contato direto das realidades profissionais: isso seria confundi-lo sistematicamente com o trabalhador-tutor da empresa. Um formador é, efetivamente, o que mais fica fora da prática, mas a sua preocupação é o terreno; ele está preparando alguém para administrar uma situação concreta, multidimensional, cujos contornos não são jamais inteiramente delimitados. Para diferenciar o docente – e o técnico – do formador, parece pertinente formular a pergunta assim: trata-se de formar somente para uma “tarefa” ou também para “escolhas”? É óbvio que os dois são imprescindíveis, mas num caso estamos em desaderência relativa, e, no outro, não. Dominar uma tarefa é uma aprendizagem: realizar a mesma tarefa em situação de trabalho é uma competência, porque sempre será necessário fazer escolhas. Não se aplica uma
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tarefa, no sentido primeiro, quando estamos no trabalho real: as possibilidades locais são avaliadas e tenta-se realizar a tarefa da melhor maneira possível. A passagem de uma situação inteiramente dedicada à aprendizagem de uma situação comum de trabalho fica significativamente marcada pelo posicionamento de outrem. Com efeito, numa oficina para iniciação técnica, o docente é o mediador de uma realidade sobre a qual ele tem um domínio relativamente importante. Visto do lado do aluno, tem-se uma situação de atividade, pois existe um confronto com a tarefa (o cognitivo) e uma negociação com o mediador (o relacional) que vão juntos solicitar um esforço ao interessado (o conativo). Entretanto, num centro de capacitação profissional em alternância, o formador é o mediador de uma realidade muito complexa, a do trabalho sobre a qual ele somente tem um domínio parcial. Visto pelo aprendiz, o aspecto do confronto à resistência do mundo real e o aspecto negociação com os outros obrigam o interessado a se mobilizar em várias frentes ao mesmo tempo. No triângulo das causalidades recíprocas, do tipo “saber-agir, querer-agir, poder-agir”, percebe-se que a situação é bem diferente ao se fazer referência às realidades do trabalho não somente às realidades de um exercício controlado em um nicho determinado dentro de uma oficina. O docente tem que contar, claro, com o engajamento, o projeto de ação de seu aluno, mas o formador deve se apoiar ainda mais no projeto profissional do aprendiz (no sentido forte: sua razão de estar lá) pelo fato de confrontá-lo ao trabalho como um problema. Em outras palavras, o docente fixa toda a atenção do seu interlocutor sobre a única tarefa e segue as regras da arte; o formador – esse – convida seu aprendiz a se concentrar no serviço a fornecer e explica depois quais tarefas são para realizar – tarefas cuja realização serão mais ou menos orientadas, modelizadas, segundo as prioridades do momento. O primeiro verifica somente a conformidade; o segundo avalia, ao mesmo tempo, a conformidade e a utilidade do que o iniciante faz (os dois objetivos estando, por vezes, em coabitação difícil no trabalho real). O formador leva em conta a ação situada e datada: entretanto, isso não quer dizer que ele fique preso no aspecto específico das situações encontradas. Pelo contrário,
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ele vai fazer de tudo para evitar que a pessoa capacitada não se tranque no caso singular que ela examina. “Reafirmar a dimensão situada das competências não vem negar o que há de genérico nas situações. Toda situação comporta um certo número de traços genéricos que a assimilam a outras situações da mesma classe permitindo o reconhecimento da classe de situação e, assim, da orientação e da organização da ação na situação” (Mayer et al, 2010: 34).
Se o trabalho puder tornar-se formador, isso significa desenvolver a competência, é justamente porque a situação é parcialmente transmissível: ela sempre cruza algo de geral e específico, os níveis de desaderência (a maneira de se organizar, os gestos profissionais, os saberes associados, os valores do métier, etc.) com uma forma de aderência (a configuração dos acontecimentos, o peso dos constrangimentos, a condição física, a pressão sobre as arbitragens). Tornar-se competente é agir com responsabilidade no sentido de que, após uma fase necessária de imitação, assumem-se as escolhas profissionais, suas soluções inéditas: desenvolve-se um ponto de vista cada vez mais forte e reconhecido, em relação às situações encontradas. Dito de outra maneira, vai se chegar a gerir uma “família de situações” graças a um sólido debate de normas que resulta em renormalizações julgadas eficientes pelos outros. O uso que o formador fará da palavra competência será fortemente impregnado dessa preocupação de apreender globalmente uma situação e de encorajar a constituição de um ponto de vista a fim de transferir o que foi aprendido, sobretudo de não ser somente “adaptação” à especificidade dessa situação. É por isso que a dimensão axiológica da competência é muito presente no seu discurso. É relativamente diferente do avaliador que adota um processo analítico e tem mais dificuldade em adotar o ponto de vista pessoal, associando-o, às vezes, à maneira própria de raciocino lógico de cada um em situação. No entanto, o ponto de vista remete mais amplamente à competência como inteligência global da situação, tomada de responsabilidade e transferência em situações, em parte inéditas.
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6. O uso da palavra competência entre os recrutadores: uma bricolagem necessária A função de recrutador, como a entendemos, corresponde àquela que dota uma organização com competências necessárias, atraindo candidatos para selecioná-los. Mesmo existindo cada vez mais uma problemática no recrutamento interno nas empresas, com uma pressão crescente sobre a mobilidade dos trabalhadores em termos de cargo, não vamos considerar esse aspecto da administração em nosso estudo. O recrutador é aqui aquele que vai integrar progressivamente uma pessoa externa num coletivo de trabalho. O recrutador não ocupa necessariamente sempre o mesmo lugar na empresa: hoje, essa função é muitas vezes assegurada por uma rede de participantes, os “recrutadores”, privados ou públicos. Nas diferentes funções GRH2 que consideramos, todas têm algo híbrido entre a aderência e a desaderência (nunca estamos inteiramente num registro ou noutro), no entanto, com uma dominante de cada vez. Mas, para o recrutador, parece mais difícil dizer o que é preponderante, pois ele está entre os dois registros. É justamente essa ambiguidade do “fora-dentro” que passa pela função do recrutador, a nosso ver. O organizador e o avaliador têm como missão desvincularem-se do hic et nunc, de dizer algo de pertinente a respeito da competência disponível para oportunizar um raciocínio ulterior a respeito dos trabalhadores. O gestor e o formador têm, também, uma responsabilidade clara: eles devem orientar os seus interlocutores no cerne de uma situação multidimensional, incentivá-los a se engajarem com um ponto de vista forte que chamamos competência. O recrutador, por seu lado, está no limiar, se consideramos que o cerne da competência é a própria situação de trabalho. Do lado externo, a sua missão consiste em adequar o que se deve fazer tecnicamente no emprego com o perfil daquele que saberá fazê-lo: a aproximação pode ser pensada assim de maneira lógica. Entretanto, do lado interno, a tarefa do recrutador remete muito mais à arte do que à técnica. Ele precisa identificar “o potencial” do candidato, o que esse manifesta sem manifestá-lo claramente 2 NT
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– e que, entretanto, interessa muitíssimo ao empregador, o qual se prepara mais do que nunca para o inesperado. Essa ambiguidade entre análise e pressentimento pode ser achada num manual recente de administração. O autor recomenda que se exijam duas variáveis dos pretendentes a um cargo: “os candidatos serão selecionados pela sua eficiência comparada em ocupar o cargo aberto para recrutamento. No entanto, o recrutador não poderá limitar seu julgamento nessa única dimensão do trabalho. Trabalhar não é, verdadeiramente, somente produzir bens e serviços, é também transformar seu capital humano, adquirir novas competências, modificar suas características (…). De uma maneira mais geral, o recrutador deverá levar em conta a sua capacidade de adaptação às mudanças ou ao seu potencial de evolução” (Stankiewicz, 2007: 221-222).
Os comentários na linha desse aconselhamento insistem sobre a falta de correlação entre as duas variáveis. Pode-se, certamente, estar em posição de ocupar, com eficácia, um cargo de poder e não ser conveniente por uma falta de potencial de evolução que colocaria a organização em dificuldade na medida em que a expectativa de vida e de emprego aberta ao recrutamento é julgada curta. Dado que o mercado de trabalho vem se tornando cada vez menos estável, o recrutador não para de manobrar com estes dois imperativos: achar a resposta para o problema criado com cargo livre agora e pensar, ao mesmo tempo, no seu eventual desaparecimento, achar, então uma solução, um recurso para resolver problemas que ainda não existem. É por isso que, se o organizador é mais sensível no interesse da qualificação para as operações de classificação, ao ponto de pegar a competência como a sua “irmã gêmea” (cf supra), o recrutador, por sua vez, está longe em confundir os dois termos. A qualificação é preciosa para que ele identifique objetivamente as grandes características do cargo a ser preenchido, mas ela é impotente em dar conta dos conteúdos do trabalho além do que faz o objeto do contrato entre o trabalhador e o empregador. Contudo, a competência, muito mais abarcadora do que a qualificação, vai ser muito útil para o recrutador na sua estratégia de resposta ao excesso de exigências, pesando nele ao aproximar a
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demanda da oferta: achar um candidato não somente que sabe fazer, mas também que poderia fazer. O recrutador será necessariamente levado a bricolar o seu próprio uso do termo de competência, isso porque ele está diante de um paradoxo que Yves Lichtenberger resume muito bem: “De certa maneira, a competência somente pode ser apreciada a posteriori enquanto a qualificação se aprecia a priori” (1999: 77). Falar assim das competências necessárias para um cargo é relativamente desconfortável. Qualificar um cargo não apresenta problemas: isso quer dizer traçar uma fronteira precisa entre o que é necessário para ocupar o cargo e o que não é, a fim de estabelecer os termos de um contrato. Entretanto, as competências “requeridas” são mais difíceis em conceber na medida em que pode haver aí um mal-entendido. De fato, as competências não antecedem a ação como condições de possibilidade: pelo contrário, a ação sendo realizada, as competências se tornam uma maneira de se falar dessa ação graças a uma tabela, a uma referência, a um conjunto de coordenadas para descrever e formalizar a ação a posteriori. As competências “requeridas” no momento da contratação fazem, pois, referência à gestão responsável por uma situação por alguém bem-identificado, em outras palavras, à sua experiência de trabalho: ele será julgado na base desses critérios. O mal-entendido é transformar essa maneira de falar a priori em um atributo descontextualizado, que se torna um dos critérios sobre os quais se poderá justificar um recrutamento. O segundo motivo pelo qual pode ser desconfortável falar de “competências requeridas” e não de qualificação, é o caráter impreciso e dificilmente objetivável dessas competências. Fala-se em exigências mais técnicas ou mais pessoais para o cargo a preencher? Trata-se de disposições, de aptidões (sentido prático, confiança em si…), de traços de personalidade (negociador, autoritário…), de qualidades morais (perseverança, honestidade, sentido do esforço…), de gostos e interesses (imaginativo, animador…) ou de comportamentos específicos (iniciativa, reatividade, adaptabilidade…)? Podemos ver muito bem como se traduz o conflito característico da posição do recrutador: ele não está realmente no registro da aderência, e não exatamente no registro da desaderência. Ele está em tensão máxima entre o
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fato e a interpretação: com ele, vai se falar de prestação (a do futuro assalariado) como de uma realidade – ao passo que ela não é senão uma projeção, ou melhor, uma hipótese sobre o futuro de uma situação. Todo recrutamento tem algo de uma aposta. É verdade que uma competência é sempre da ordem da interpretação e se baseia sobre a inferência e a extrapolação. Mas, no recrutamento, é difícil apoiar-se em fatos para melhor controlar suas próprias conclusões. É por isso que muitos recrutamentos são fechados numa base factual extremamente reduzida: a competência da qual se fala, então, é, na realidade, uma reputação que tentamos verificar, por exemplo, quando dos “controles de referência”. A existência mesma da função de recrutador é eloquente: se precisamos de uma intermediação na adequação entre a oferta de trabalho e a oferta de emprego, é porque não seria razoável remeter-se somente aos critérios objetivos dos quais uma máquina poderia se ocupar. Um acoplamento realizado totalmente pelo computador não tem muito futuro. Precisamos de toda força e fineza da interpretação do recrutador para conseguir, partindo de dados necessariamente equívocos, uma contratação. Essa poderá, aliás, dar certo porque o recrutador soube movimentar as linhas: o encontro entre dois oferecedores de trabalho e emprego foi possível graças a algumas concessões recíprocas. De maneira geral, o uso da competência pelo recrutador é cada vez mais dirigido a único “ator” ao passo que se distancia da realidade do ato técnico em si. As duas temáticas próprias ao recrutamento testemunham neste sentido: a transmissibilidade e a empregabilidade. Trata-se de satisfazer uma dupla exigência: o que foi adquirido em situação deve permitir passar de um emprego a outro, como recursos para fazer face a situações no futuro. E a própria pessoa tem que se manter sempre em condição de procurar outro emprego que não o seu: de alguma maneira, viver desligada do contexto de trabalho no qual ela está evoluindo. O que é sistematicamente encoberto nesse uso da competência é a questão do posicionamento em valor da pessoa que trabalha. Imagine-se um ator indiferente a seu ambiente, sem raízes e disponível, pronto para replantar sem implicação
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afetiva o que ele adquiriu em terra nova, mediante um “mecanismo mental” lógico – neutro então. Na realidade, o modelo do trabalhador – ser racional, que faz bom uso dos saberes-fazeres em contextos sempre diferentes – não resiste à análise dos processos de integração em coletivos de trabalho: “É necessário evocar, mais uma vez, a questão da integração. Com efeito, através da ideia da transmissibilidade/transversabilidade, está um tipo de relação com a organização que integra imediatamente uma parte de mobilidade, de não determinado, de evolutividade, de desconhecido. Quando a organização contrata uma pessoa, ela contrata mais do que um conjunto de saber-fazer. Ele considera, então, ter direito a mais do que está escrito no currículo. Ela tem também o dever de possibilitar o desenvolvimento das competências. Há um reforço da implicação do indivíduo. Mas, por outro lado, o reconhecimento das suas competências cria uma distância importante entre o indivíduo e a organização: afinal de contas, a mobilidade pode também existir fora da empresa. O indivíduo é supostamente não desprovido, pois pode transferir suas competências. Estamos longe do esquema do trabalhador vitalício que se torna incompetente fora da sua empresa. Cria-se uma relação ambígua: a pessoa faz supostamente mais do que previsto, a empresa pode supostamente administrar esse mais, mas, ao mesmo tempo, uma distância maior está se criando diante da organização que se tem a possibilidade de deixar.” (Bellier, 2004: 91-92).
No fundo, podemos nos perguntar se as práticas de recrutamento, que fazem um grande uso da competência, não são paradoxalmente obrigadas a considerar, mais do que nunca, as situações de trabalho, as mesmas que dão sentido à competência. Dito de outra maneira, parece que, no momento do recrutamento, são os coletivos de trabalho que estão no interior do debate na medida em que é o serviço a fornecer juntos, mais do que o domínio (eventualmente brilhante) das tarefas pelo candidato ao emprego.
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Cinco usos da competência Organizar
Chefiar
Avaliar
Formar
Recrutar
Mudança induzida pela chegada da Competência
Deslocamento do sistema de qualificação em direção à gestão de recursos humanos pela competência
A função do encarregado torna-se menos técnica e mais gerencial
Uma avaliação menos baseada no controle e mais centrada nas maneiras de fazer
Uma importância menor da relação de ensino e mais atenção à transferência
A adequação do candidato ao emprego não é mais suficiente, é necessário recrutar um potencial de Evolução
Aderência Desaderência
Mais em desaderência (saber/ação)
Mais em aderência (ação/ saber)
Mais em desaderência (saber/ação)
Mais em aderência (ação/ saber)
Entre desaderência e aderência (saber/ação)
Como a Competência é entendida
A competência é a “irmã gêmea” da qualificação
A competência é “uma iniciativa controlada”
A competência, são atos exitosos e argumentados
A competência é um ponto de vista forte sobre a sua própria ação
A competência é a personalização de uma candidatura
Percepção da Situação
A situação é abstrata
A situação presente é mais intensa
A situação é tomada à distância
As situações = sempre no plural
A situação significa o Coletivo
Parte 2: Elaborar o conceito de competência
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Parte 2: Elaborar o conceito de competência A tipologia do capítulo precedente sugeriu que a competência diz respeito fundamentalmente a dupla relação possível entre ação e conhecimento: ser competente significaria, com efeito, de um lado, mobilizar os saberes pertinentes para realizar a ação pretendida de maneira otimizada; e, por outro lado, produzir saberes da experiência tanto por ocasião das falhas quanto nos êxitos de nossas ações. Por mais esclarecedora que seja esta hipótese de pesquisa é ainda demasiado formal. Se se quiser construir um verdadeiro conceito de competência utilizável e útil tanto para prática como para a modelização, não se pode evitar a abertura das “caixas pretas” (no sentido teórico) que contém essa formulação em quiasmo: “mobilizar os saberes em ação”, “produzir, na ação, saberes”. Quatro questões inevitáveis são supostamente resolvidas em tal definição da competência: • quais operações estão sendo submetidas aos conhecimentos objetivos para torná-los operacionais, quando os mobilizamos em uma situação? • como se consegue agir de maneira esclarecida (guiada pelos procedimentos e informados pelos modelos) sem que nossa ação seja reduzida a uma aplicação mecânica de comandos (uma espécie de modelagem)? • em que minha confrontação (no ato) a resistência do real é construtiva, formadora ou esclarecedora?
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• em que isso dá a minha experiência (a vivência do ato), o alcance e a pertinência de um saber sobre a realidade?
Seria, evidentemente, despropositado pretender responder decisivamente a essas questões – isso seria, de qualquer forma, fora de nossas competências, uma vez que seria da alçada da disciplina filosófica. Nosso objetivo de conceptualização é formular hipóteses fortes quanto ao conteúdo do conceito de competência; mas seria igualmente ridículo entregar essas hipóteses à inspiração. Esta segunda parte do nosso trabalho vai consistir, então, em construir, progressivamente, a coerência teórica de nossas hipóteses, fazendo um trabalho de análise conceitual: sobre quais concepções da ação e do saber repousam as pesquisas e os debates (atuais e menos recentes) a propósito da competência? Essa questão de análise pode parecer abstrata. No entanto, jamais será por elas mesmas que serão estudadas as diferentes concepções em debate. O que nos interessa a cada vez é o desafio do debate – esse termo desafio sendo tomado em duplo sentido: de uma parte, qual é o ensinamento específico a ser aproveitado de um debate geral sobre as relações entre saberes e ação quanto ao desafio colocado pela competência? De outra parte, qual é o pomo da discórdia que opõe as partes em debate e que, portanto, cada um tenta apontar (para dizer com essas palavras) nessas relações entre a ação e o saber? Ao invés de apresentar tal qual nossa tipologia de três concepções que encontramos nos debates atuais sobre a competência – concepções da ação, em primeiro lugar, acompanhada em seguida da concepção do saber da experiência que, a cada vez, elas compreendem – parece-nos mais interessante de colocar em cena seu debate. E, é, realmente, a leitura de dois artigos – “The influence of Darwinism on philosophy” (Dewey, 1977: 3-14) e “De la règle aux stratégies” (Bourdieu, 1987: 75-93) – que nos permitiu organizar facilmente esses debates. Seguiremos, às vezes, a ordem cronológica (o fio da história) e uma ordem argumentativa, colocando em evidência o que trouxe cada etapa na construção do conceito de competência. A essa tipologia de três conceitos, nós adicionamos, aos poucos, o quadro teórico no qual avançamos nossas próprias hipóteses:
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• a ação como projeto: Aristóteles descobre a força prática da racionalidade. • o ato como aventura: o pragmatismo de Dewey descobre a resistência do real – às vezes obstáculo e suporte – com o que estamos, então, interagindo. • a ação como uma prática de um agente: o estruturalismo particular de Bourdieu descobre o papel estruturante da norma. • a atividade como encadeamento de debates de normas: a abordagem ergológica (por meio qual Yves Schwartz estende a teoria canguilhemiana das normas) descobre que isso é, na verdade, a relação com a norma – ou seja o ponto de vista do ator sobre ela – que é constitutiva da norma.
De fato, essas quatro grandes etapas entre os debates da relação entre saber e ação parecem estabelecer gradualmente os fundamentos dos conceitos de competência atualmente em discussão no campo das ciências da educação. É, então, para situar suas respectivas contribuições, umas em relação às outras, que nós o passaremos pelo crivo da tipologia anteriormente estabelecida. Essa apresentação nos permitirá expor, a cada vez, a solidariedade teórica de nossas hipóteses no contexto das discussões das quais derivam o seu sentido. E o movimento geral que se desenhará da sequência repetida dessas quatro etapas deverá, finalmente, nos permitir sugerir uma visão um pouco mais unificada do conceito de competência, a partir de seus cinco usos precedentemente repertoriados.
1. Organizar 1.1. O resultado virtual do projeto comanda a ação planejando um programa (Aristóteles) O esquema clássico da ação – que nós herdamos de fato de Aristóteles, mesmo que ele faça hoje em dia parte do senso comum – considera que, entre dois processos reais, como a queda de uma pedra e o fato de alguém andar, há, seguramente, pontos físicos comuns, mas que uma diferença fundamental (Charles 1984: 55-57) permite distingui-los claramente: somente a ação humana persegue um objetivo definido por um projeto antes que o processo se inicie. De uma maneira geral,
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este é, portanto, o objetivo final que faz de uma ação o que ela é – um processo voluntário, intencional. Aristóteles modeliza assim a característica voluntária da ação: o ator começa por se representar um estado ideal (desejável) e, então vai deduzir as condições de sua realização, levantando toda a cadeia de causas e efeitos até sua situação presente. O objetivo é, então, o resultado virtual e os meios são as condições a preencher para que o resultado virtual se concretize em resultado efetivamente real. Conseguir deduzir corretamente quais são as condições de possibilidade de um estado ideal, requer certa competência: com efeito, Aristóteles considera que um tal raciocínio (que é inteiramente a priori) não é dado a todos. De fato, ele supõe poder predizer a maneira como as causas e os efeitos vão se relacionar na situação futura. Para fazer tal previsão, é preciso conhecer de maneira abstrata como os efeitos de um determinado tipo dependem universalmente das causas do tipo correspondente. Ora, Aristóteles considera que tal conhecimento é científico, e ele vai opor-se, muito claramente, ao saber da experiência daquele que, agindo, observa bem as regularidades gerais, mas que permanece incapaz de identificar a causa. Essa diferença entre o científico e o homem de experiência é, em Aristóteles, o princípio fundamental da divisão social do trabalho. Para ver a que ponto esse princípio continua atual na nossa concepção corrente da organização, deve-se compreender que é a divisão social do trabalho, repartindo as tarefas entre produtor e utilizador que justifica, aos olhos de Aristóteles, a hierarquia entre o tomador de decisões e executante. Porque as pessoas experientes sabem o fato, mas ignoram-lhe o porquê, ao passo que outros adquirirem o conhecimento do porque, isso é, a causa. Por essa razão, também nós julgamos que aqueles que governam têm, em cada domínio, mais valor por saber mais que aqueles que executam e que são mais sábios porque eles sabem as causas do que eles produzem; quanto aos executantes, eles produzem como certos seres inanimados também produzem, sem saber o que eles produzem, assim como o fogo queima. Então os seres inanimados produzem
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cada um desses efeitos por certa natureza, enquanto os executantes o fazem pelo hábito (Aristóteles, 2008: 73). Na verdade, é porque o objetivo dita unilateralmente e completamente a priori os meios que – para usar um célebre exemplo de Aristóteles – o fabricante de selas descobre com o cavaleiro por que ele executa as operações técnicas que ele aprendeu habitualmente a realizar. Contudo, ao usar esse exemplo, o autor afirma que o próprio cavaleiro recebe do estrategista as razões pelas quais ele conduz seu cavalo segundo tal ou tal hábito, que seu treinamento militar lhe incutiu (Aristóteles, 1997: 33). Claro, tal ajuste unilateral da divisão do trabalho nos choca: mas ele não é compreendido verdadeiramente somente na condição de ver que, para Aristóteles, essa é a consequência direta da divisão do trabalho. Para atingir o objetivo comum (aqui: fazer diplomacia ganhando a guerra) cada um deve cuidar de sua tarefa. Ora, essas tarefas estão ajustadas umas dentro das outras, assim como os meios estão ajustados no processo que leva à realização do fim. Do ponto de vista da organização, se a ação coletiva é considerada apenas no plano do sucesso, a competência de cada um é reduzida à eficácia de sua participação no projeto. Contudo, em tal perspectiva, essa participação é ela mesma reduzida ao melhor desempenho da função atribuída ao posto pelo plano de ação. Esta tendência da organização à hiperespecialização, ela também obedece ao princípio da otimização racional dos meios. Então, ela reenvia ainda ao esquema de ação herdado de Aristóteles. Com efeito, se se retoma o exemplo da hierarquia “diplomata, cavaleiro, seleiro”, vemos na obra a célebre distinção aristotélica entre poïesis (ação produtiva) e práxis (ação liberal). Na verdade, Aristóteles separava, claramente, os atos livres que ocupam o dia dos cidadãos – atenienses, maiores do sexo masculino – e os atos servis ocupando a dos não cidadãos: mulheres, estrangeiros, escravos. No pensamento e na linguagem da Atenas do século V a.C., não havia nenhum conceito de ação reagrupando todas essas atividades, simplesmente porque era impensável de se ver aí o menor ponto comum. No entanto, práxis e poïesis eram perfeitamente coordenadas: primeiro porque – trivialmente – a segunda foi a condição de possibilidade material da primeira; em seguida, porque,
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basicamente, a primeira foi a razão de ser da segunda. De fato, Aristóteles considera que os homens se distinguem dos animais, porque eles participam da política (eles debatem na Ágora): o próprio do homem, o que constitui a humanidade é, então, participar da vida pública. Mas essa atividade é, literalmente, um fim em si mesma; para Aristóteles, é uma atividade autotélica, que não precisa se justificar por qualquer utilidade, uma vez que é a excelência humana no trabalho. No nosso exemplo, a diplomacia era uma tal práxis. Ora, não só toda direção, mas também toda a operacionalização da práxis (fazer a guerra, por exemplo) são ações que – segundo Aristóteles – não têm, nelas mesmas, nenhum interesse: elas são necessárias somente como meios. Seu significado se esgota completamente em sua utilidade. No nosso exemplo, a cavalaria, e ainda mais a selaria, eram tais poïesis. Ora, mais uma vez a divisão social do trabalho (aqui, a subordinação completa do executante ao tomador de decisão) é explicada e justificada pela repartição de papéis: o seleiro não tem mais nada a conhecer que a lista de operações a executar para produzir uma sela, o cavaleiro não tem nada a conhecer que a lista de formação na qual se organiza no campo de batalha. E o diplomata tem que prestar contas apenas para si mesmo, uma vez que é ele quem decide qual é o fim de sua ação ao estabelecer o seu projeto. As finalidades de todas as poïesis são ditadas pela dedução dos meios em função da finalidade, quando se estabelece o programa (antes da ação). Cada participante tem então suas ordens e não tem mais nada a conhecer: Aristóteles afirma explicitamente que o artesão nem sequer sabe a razão pela qual ele fez o que fez. E quando, na última frase da passagem citada, Aristóteles compara o executante a um simples objeto, ele é naturalmente impulsionado pela lógica da sua concepção: se é o projeto que faz a diferença entre a queda de uma pedra e a ação humana – e se somente a práxis fixa seu fim autotélico em um projeto – então, inevitavelmente, as ações da poïesis têm algo de mecânico, pois elas visam a um fim natural (a satisfação das necessidades), lá onde os atos livres da vida política (práxis), que têm por finalidade cultivar a excelência humana (virtude cívica), são nobres. Aristóteles é, naturalmente, um homem de seu tempo, e, portanto, não se pode decentemente censurá-lo por se lançar na justificativa da escravidão. Mas a lógica
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interna de seu raciocínio permanece interessante para nós, porque mostra esses enquadramentos dos meios no projeto: Os instrumentos são inanimados ou animados: por exemplo, para o piloto, o leme é um instrumento inanimado, mas para o timoneiro é um instrumento animado – porque o executante, nas diferentes profissões, se enquadra na categoria do instrumento. Da mesma forma como um bem que foi adquirido é um instrumento para viver (...), o escravo é uma propriedade animada adquirida e todo executante é um instrumento anterior aos instrumentos que ele manipula (Aristóteles, 1993: 96).
Nossa concepção explícita da organização não é, obviamente, tão brutal quanto a hierarquização unilateral de Aristóteles. Mas o paralelo que ele estabelece aqui entre o instrumento (o utensílio é um meio para nossa ação) e “todo executante” (então, aqui, não apenas o escravo) ilustra bem a continuidade teórica entre um projeto concebido como realização de um programa e a divisão social do trabalho. Um não vai sem o outro, porque a primeira é, em última análise, a justificativa pragmática da segunda. Então, se em nossa modernidade, ainda permanecemos na mesma concepção da ação (qualquer ação não será senão a realização lógica de um projeto – um projeto articulando os meios visando a um fim), as possibilidades alternativas na organização do trabalho (sua divisão social) serão, por isso, limitadas. Uma hipótese, então, para o desenvolvimento do debate que estamos tentando estabelecer aqui, será movimentar o próprio esquema “fim/meio”. Isto é o que tentará fazer o pragmatismo de Dewey.
1.2. Se a atividade é uma interação com a situação real, a divisão do trabalho deve se tornar uma cooperação (Dewey) Todo mundo hoje em dia concordará em dizer que a competência, do ponto de vista da organização, não é o que Aristóteles supôs: a simples eficácia a preencher a função esperada. Entretanto, se é comum tomar partido contra essa redução, liberar-se de seus pressupostos está longe de ser fácil. Porque da mesma maneira que não se conseguiu conceituar a ação para além da mera realização de um projeto, não se pode realmente dizer que saímos da lógica do projeto-programa
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que motivou e justificou (no plano teórico) tal redução da competência. A crítica e a alternativa que propôs Dewey consideram, de alguma forma, o mal pela raiz. No artigo mencionado na introdução, o autor identifica o ponto de oposição fundamental – entre o esquema clássico da ação e a concepção pragmática do ato – em duas definições opostas do conceito de “forma” guiando a ação. A ideia aristotélica é, por conseguinte, que a ação é a realização de um projeto. O resultado virtual visado como objetivo é esse ideal, que vai tudo ditar e tudo causar. De fato, segundo Aristóteles, é dela (de suas características técnicas) que o ator vai deduzir os meios. É a partir dela (da sua perfeição ideal) que ele vai desencadear o desejo, que vai causar os seus esforços, diríamos sua motivação. Essa é, enfim, sua definição (ou seja, para Aristóteles sua essência intrínseca, que é, ao mesmo tempo, sua função natural e seu funcionamento ideal), que servirá de ponto de comparação. Logo depois de uma ação concluída, ele irá avaliar a qualidade do resultado. Dewey enfatiza que a cada vez, nesses três planos, a forma (resultado virtual) preexiste à ação, que ela determina de um ponto ao outro. O psiquiatra Gérard Mendel (que aproximamos de Dewey) expressa a mesma análise nos seguintes termos: “Em Aristóteles, de fato, o ato tem vocação natural para a perfeição que é aquela do pensamento abstrato. O ato normal se refere à norma do ato, que é aquela da manifestação do ser, a atualização de uma potência, ou em termos Aristotélicos, a passagem da potência ao ato” (Mendel, 1998: 30).
O interesse do artigo de Dewey é identificar a origem desse princípio da teoria aristotélica da ação. Se a forma do ato precede o ato, é pela mesma razão que, de acordo com Aristóteles, a forma específica (própria da espécie) “girafa” precede o nascimento da girafa individual. Aristóteles pensa que as espécies vivas são eternas, porque ele postula que a sua forma (aspecto) é, na matéria, a instanciação de uma forma (essência) natural. Aí reside, de acordo com Dewey, a origem da nossa teoria da ação como projeto. Ora, de maneira interessante, a alternativa desenvolvida pelo autor vai jogar o jogo e seguir a mesma abordagem que a de Aristóteles. Darwin – escreveu Dewey – mostrou que as diferentes espécies não
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são formas eternas, mas apenas um estado provisório na evolução contínua da vida. Melhor: as espécies que vemos hoje são bem distintas, porque sua forma resulta de sua aventura para existir – ela não a precede! Esta forma própria de cada grupo de indivíduos se constrói, de fato, por confrontação com as oportunidades e os perigos de seu meio. A conclusão do artigo é forte: assim como na biologia, a modernidade consistiu em abandonar o preconceito aristotélico das formas preexistentes, mesmo e em qualquer outro lugar só se pensará e só se organizará, de maneira realmente moderna, as atividades sociais – e inicialmente, as atividades de trabalho – na condição de romper com a impressão de que a ação é a realização do programa (da forma) antes da implantação concreta. Na visão pragmática, portanto, o ato é, fundamentalmente, uma interação com o ambiente real no qual está imerso o ator. A planificação aparece como uma visão do espírito, porque ela raciocina no abstrato. Ela constrói uma sucessão de etapas, independentemente da sua ancoragem na situação concreta. E se, para evitar o fracasso completo, a organização tenta aproximar um pouco o plano do contexto local, ela irá projetar previsões sobre a conjuntura e raciocinar a partir daí. Mas, como mostra o exemplo de previsões meteorológicas, a sensibilidade às condições iniciais faz com que, desde que o sistema seja um pouco complexo, sua evolução transforme em reviravoltas imprevisíveis a menor variação, insensível no início: é o que comumente se chama de efeito borboleta. Em suma, para Dewey a organização deve, portanto, ser governada pela interação aqui e agora – e não o inverso! A concepção clássica que subordina os meios ao fim deve ser profundamente revista: Para uma pessoa construindo uma casa, o fim à vista (end in view) é um objetivo distante e final que seria enfim alcançado após um número suficientemente importante de movimentos impostos terem sidos cumpridos corretamente. O fim a vista é um plano que é operado de maneira contemporânea na seleção e disposição dos materiais. Esses últimos, tijolos, pedra, madeira e argamassa, são meios, na medida em que o final à vista se incorpora a eles, dando-lhes forma. Eles são, literalmente, o fim em sua forma atual de realização. O fim à vista está presente em todas as fases do processo; ele está presente enquanto significação do material utilizado e dos atos desempenhados; sem a sua presença formadora,
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esses últimos não são, de modo algum, meios. Eles são simplesmente condições causais extrínsecas (Dewey, 1984: 281- 282, traduzido em Renault, 2012: 131).
A ideia de Dewey é, então, que estamos constantemente em interação infra consciente com o meio ambiente (porque a nossa vida biológica é tal atividade) e que nós não intelectualizamos refletidamente a articulação entre fins e meios senão a partir do momento em que encontramos um obstáculo e buscarmos uma solução não imediata para resolvê-lo. Por conseguinte, esta reorganização técnica do trabalho chama-se, segundo Dewey, uma reorganização de sua divisão social (e, portanto, da organização propriamente dita: a articulação dos fins e meios permitindo a coordenação das atividades). Dewey considera que o modelo de subordinação deve dar lugar a um modelo de cooperação: Claro, a sociedade não consiste senão nas relações entre indivíduos, sob qualquer forma que seja. E todas as relações são interações, não moldes fixos. (...) A organização, não importa para qual ser vivo, é o consenso de cooperação de múltiplas células, cada uma vivendo de suas trocas com os outros (Dewey, 1984: 82 -83; traduzido pelo autor1).
A metáfora organicista empregada aqui por Dewey nos incomoda – porque, como recordou Canguilhem (Canguilhem, 2002: 101-122), ela é, por vezes, suspeita pelos usos que tem feito historicamente do objeto, e falsa, pela amálgama que ela opera entre norma vital e norma social. Mas, em geral, sabe-se que este modelo de organização cooperativa permanece em estado de princípio maior na obra de Dewey. Enquanto ele o defende em um plano ético e político: [...] frequentemente, se esquece de que a vida econômica e industrial (que já é ela mesma ética) deve contribuir para a realização da personalidade, graças à formação de uma unidade maior e mais completa entre os homens: ou quando 1 N.T. Texto original: Society is of course but the relations of individuals to one another in this form and that. And all relations are interactions, not fixed molds. (...); organization, as in any living organism, is the cooperative consensus of multitudes of cells, each living in exchange with others.
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afirmamos que a democracia deve se tornar industrial, não queremos dizer outra coisa (Dewey, 1969: 237; traduzido pelo autor2).
Esse modelo nunca é detalhado nas suas modalidades concretas de aplicação. Ora, isso corresponde precisamente à dificuldade e o limite da revolução copernicana que propõe Dewey. Ao jogar assim a tática contra a estratégia – para retomar a famosa distinção de Clausewitz (Clausewitz, 2000: 102) – Dewey nos parece muito extremo, a ponto de, finalmente, cair de um excesso em outro. Na verdade, lá onde o sonho do todo estratégico incorporado pela organização aristotélica conduziu inevitavelmente a negar ao operador toda iniciativa e toda liberdade tática, o voto piedoso de Dewey (louvável, porque fundamentalmente democrata) de uma organização sempre in medias res faz perder qualquer acuidade estratégica, em empresas de médio e grande porte. Mas em ambos os casos, os obstáculos simétricos parecem estar relacionados à negligência de uma forma de saber. Aristóteles reconhecia apenas o saber científico (isto é, abstrato, teórico), de modo que o operador não dispunha, segundo ele, de nenhuma lucidez tática: foi reduzido a cumprir servilmente e cegamente. Mas a recusa dos dualismos impulsiona Dewey a defender um continuísmo epistemológico que nos parece excessivo. Na sua perspectiva (por vezes qualificada de experimentalismo), sendo todo saber proveniente de uma confrontação com a situação em que nossas hipóteses são testadas, o saber teórico não tem, por consequência, de acordo com ele, nenhuma pertinência específica. Ora, como os organogramas e outras modelizações pelas quais se organiza a priori a coordenação dos coletivos revelam a mesma abordagem de abstração preditiva das ciências (mesmo quando eles não se inspiram nelas diretamente), Dewey lhes recusa toda a legitimidade de guiar as interações concretas. Aristóteles e Dewey, na verdade, compartilham o mesmo pressuposto apesar de suas diferenças. Na ausência do conceito de norma, ambos 2 N. T. Texto original: That the economic and industrial life is in itself ethical, that it is to be made contributory to the realization of personality through the formation of a higher and more complete unity among men, this is what we do not recognize; but such is the meaning of the statement that democracy must become industrial.
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os autores imaginam a ação como o face a face do ator com a realidade nua. Um e outro raciocinam sobre o modelo da transformação do meio: eles não irão procurar seus exemplos na complexidade das situações profissionais – e isso explica suas deficiências quando se trata de entrar nos detalhes do conteúdo do conceito de competência. A sequência da reflexão (sempre no nível organizacional) irá, portanto, passar pela tomada pela via do conceito de norma social.
1.3. As normas de um grupo social fixam antecipadamente as modalidades de ação individual e coletiva (Lévi-Strauss e Bourdieu) O grande mérito do conceito de norma parece-nos ser de desmistificar a famosa forma guiando a ação, que foi precisamente o nervo do debate entre aristotelismo e pragmatismo. Na verdade, esse fio condutor que orienta e as expectativas que constrangem a ação não são nem uma essência a priori, nem uma bricolagem performática a posteriori. Essas são, sobretudo, as facetas de uma regra social, mais ou menos conscientemente formulada, que funcionaria como uma grade sobre a qual tece a ação particular. Considerar, assim, “a forma” constitutiva da ação permite, então, ultrapassar as falsas alternativas da organização, entre ser proativo e ser reativo, aplicar ou improvisar, etc. No entanto, tal conceito suscita dificuldades de utilização e interpretação. Acreditamos que essas dificuldades surgem inicialmente do fato de que o conceito de norma não é um conceito de natureza, mas sim de função. Na verdade, qualquer tipo de realidade pode ser uma norma: um artefato, um hábito, uma expressão, um desenho, uma ideia, uma ordem, etc - desde que funcione como tal. Isto é, fazer a regra para o ator. Mas essa primeira dificuldade, na verdade, se abre imediatamente para uma segunda. Uma vez que a norma não é natural, mas uma função, nunca é evidente se o fenômeno, aquele que se tem em face, é ou não uma norma. Pois não é necessariamente norma tudo que se reivindica como tal. Tudo dependerá, de fato, do comportamento dos atores em face dessa pretendida norma. Impossível, de fato dizer que o semáforo “é” um padrão para um ciclista que iria atravessar um cruzamento sem levar em consideração os sinais de trânsito. O indivíduo pode muito bem perceber a presença do semáforo, mas será a seus olhos um fato sem significado normativo: a necessidade virá para
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ele sob outra forma de constrangimento, por exemplo, como o medo da polícia. Esta dificuldade real do conceito de norma (ao mesmo tempo em que ela é sua originalidade e potência teórica) nos levará a distinguir, em seguida, “o fato da norma” que cada um pode objetivamente atestar (por exemplo, a linha contínua, traçada no solo), e o fato de uma pretensa norma “fazer norma” efetivamente para a pessoa – o que significa ter uma incidência sobre sua conduta. Esse segundo aspecto é em parte objetivamente descritivo: podemos registrar o comportamento da pessoa. Mas isso será sempre somente em parte, pois, se quisermos fazer uma hipótese a respeito de sua conduta (sua deliberação, seus motivos, etc.), é preciso arriscar uma interpretação desse comportamento. E, como qualquer interpretação, esta aqui é submetida a debate, já não é estritamente fala objetiva. Mas a questão de saber se uma norma “faz norma” ou não para a pessoa (E como? Em que medida? Sob qual forma? Segundo qual compromisso?) é, portanto, submetida ao debate interpretativo. Não é que será impossível sabê-lo, mas isso quer dizer que não podemos fazer economia do testemunho da pessoa, então, da confrontação de seu ponto de vista com o do observador. No entanto, os primeiros teóricos da norma social, claramente não se obstruíram com tais precauções metodológicas. É, entretanto, do seu conceito de norma que se deve partir, uma vez que ele permite construir progressivamente o conceito de atividade como um encadeamento de debates de normas, o qual nós desejamos alcançar (porque este constitui a ferramenta metodológica fundamental que tomamos emprestado de Yves Schwartz). Parece-nos que, até para Bourdieu, o conceito de norma foi usado – na modelização das ações – segundo um modelo que girou mais ou menos explicitamente em torno da metáfora industrial, de onde o termo se originou. Lembremos que, se os dicionários etimológicos (Rey, 2005: 1002-1003) atestam ocorrências medievais dos derivados de “norma” (aplicar a norma um assunto significando regrá-la no século XI e “verbo normal” – significando regular, o que não constitui uma exceção no século XV), eles precisam imediatamente que esse campo lexical permaneça raro até o século XIX, quando, no início do século, ele desenha a instituição que dá as regras (Escola Normal
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de Professores), depois, tudo que está na média e, progressivamente, o que não é patológico (um sentido atestado em 1833, em Balzac, por exemplo). O termo parece se popularizar desde então (a expressão “estar na norma” é atestada desde 1864, adjetivo “normativo” – no sentido de dar as regras – em 1868). Canguilhem observa também (Canguilhem, 2005: 175) que o léxico da norma passa, no curso do século XIX, a usos correntes através da utilização que fazem as duas instituições, escolar e sanitária. Finalmente, o sentido técnico e teórico parece surgir posteriormente. As primeiras ocorrências do termo normalização (no sentido de regulação pelos padrões, como praticado pela Associação Francesa de Normatização – AFNOR, uma organização criada em 1926) remontam a 1873 e é no final do século que Durkheim populariza o conceito de norma social. Enfim, a emergência do modo de pensar politicamente correto explica, sem dúvida, o surgimento nos anos de 1960 o termo normativismo, na acepção da atitude que consiste em comparar sistematicamente o dado a um dever ser. De qualquer forma, entre o domínio da produção e o da administração, o conceito de norma é usado inicialmente para a prática da estandardização – e a importação do termo nas ciências humanas não nos parece independente da transferência de um modelo de utilização desse conceito. Assim, dada a moda que despertou o estruturalismo nas ciências humanas, é inegável que o conceito de norma sobre o qual repousa a análise estrutural fez progredir a modelização da ação em relação ao nosso primeiro debate. Como Lévi-Strauss usa esse conceito? A vida social de macacos não é adequada para a formulação de qualquer norma. (...) Não só o comportamento do mesmo sujeito que não é constante, como nenhuma regularidade pode ser alcançada do comportamento coletivo. (...) Esta ausência de regra parece fornecer o critério mais confiável que permite distinguir um processo natural de um processo cultural. Nada é mais sugestivo a este respeito que a oposição entre a atitude da criança (mesmo muito jovens) para quem todos os problemas são regulados por distinções nítidas – mais nítidas e mais imperativas, por vezes, que no adulto – e as relações entre os membros de um grupo símio – inteiramente abandonado ao acaso e ao encontro, onde o
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comportamento de um sujeito não ensina nada sobre o do seu congênere, no qual a conduta do mesmo indivíduo hoje não garante em nada seu comportamento no dia seguinte (...) (Lévi-Strauss, 2002: 7-9). As muitas regras interditando ou condenando não somente certos tipos de articulações, bem como a proibição do incesto, que as resume todas, tornam-se claras a partir do momento em que se coloca a necessidade que a sociedade seja. Mas a sociedade poderia não ser. (...) as regras de parentesco e casamento não se tornaram necessárias em virtude do estado da sociedade: elas são o estado próprio da sociedade por elas mesmas – remodelando as relações biológicas e sentimentos naturais, obrigando-os a tomar posição em estruturas que os implicam simultaneamente com os outros, e obrigá-los a superar suas primeiras características (Ibid., 561-562).
Em retrospectiva, vemos que Aristóteles e Dewey podem ter subestimado este aspecto essencial: todo homem é sempre aculturado, qualquer ação pressupõe então, como uma condição de sua possibilidade, a totalidade da norma da cultura em que ela ocorre. Dewey tem razão, o ato é uma confrontação com o real, e ele viu que esse encontro com o real é feito apenas através da mediação de normas culturais – regras instituídas por outros. Mas, para melhor insistir sobre a iniciativa, sobre a dimensão de confrontação individual com o real em ato, parece que ele não considerou a regra apenas como segunda, tanto cronologicamente quanto em importância. Ora, o que Lévi-Strauss vai nos permitir pensar, é a primeira característica da norma – sua antecedência, disse Yves Schwartz. O desafio é compreender como podemos demonstrar, efetivamente, a iniciativa agindo em um mundo de normas, sem ter de assumir essa iniciativa já presente no início, já dada de imediato como um fato. Mas vamos por etapas. A realidade em que atuamos é inteiramente normativa e normalizada, ela é sempre constituída pelas normas. Ora, em que esse complemento do conceito de ação o faz modelável pelas humanidades? Lévi-Strauss mostrou claramente: é que – longe de serem escolhidas pelo ator – as regras sociais que guiam sua ação são ditadas pelo funcionamento de seu grupo social.
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Então, o que vale para as regras de parentesco vale para os modos à mesa ou os usos corretos da linguagem. Na perspectiva estruturalista, todas as nossas ações são a implantação inconsciente de uma função anexa, na economia de um sistema. Um modelo qualquer pode ser consciente ou inconsciente, essa condição não muda sua natureza. É somente possível dizer que uma estrutura superficialmente escondida no inconsciente torna mais provável a existência de um modelo que a mascara, como uma tela, para a consciência coletiva. Com efeito, os modelos conscientes – comumente chamados “normas” - estão entre os mais pobres, quer sejam, em razão de sua função, que é de perpetuar as crenças e costumes, ao invés de expor suas fontes (Lévi-Strauss, 2009: 335).
Então, lendo literalmente Lévi-Strauss, a ação individual ou coletiva é objetivamente compreensível na medida em que se relacionam às regras conscientes, segundo as quais tem-se a impressão de que elas são levadas (regras ilusórias, portanto, chamadas aqui: normas) à verdadeira regularidade que a dirige e dela necessita: a participação anedótica e indireta desse ato ao sistema autoregulador do funcionamento do grupo social. A aplicação à organização e à divisão do trabalho de tal esquema geral de pensamento é fácil. Ela é relevante? A crítica que ele dirige a Bourdieu (no artigo mencionado na introdução) é esclarecedora sobre esse ponto: Quando comecei o meu trabalho, como etnólogo, eu queria reagir contra o que eu chamei de juridismo, quer dizer, contra a tendência dos etnólogos de descrever o mundo social no idioma da regra, e a agir como se tivéssemos percebido as práticas sociais, logo que se enunciou a regra explícita segundo a qual elas são supostamente produzidas. Fui muito feliz de encontrar um dia um texto de Weber, que dizia algo como: “Os agentes sociais obedecem à regra quando o interesse em obedecer a ela supera o interesse para desobedecê-la”. Essa boa e sã fórmula materialista é interessante porque lembra que a regra não é automaticamente eficaz por si só e que ela obriga a se perguntar em quais condições uma regra pode agir (Bourdieu, 1987: 76).
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O autor critica ao conceito levistraussiano da norma o fato de ser mística: ele parece retornar a uma concepção aristotélica da forma presidindo a ação, lá onde, Bourdieu representaria aqui uma concepção deweyana dessa mesma forma. Mas nós não vamos retomar, entretanto, ao primeiro debate, porque Bourdieu acrescenta, [...] porque a estratégia é para ele sinônimo de escolha – escolha consciente e individual, guiada pelo cálculo racional ou por motivações éticas e afetivas – e que ela se opõe a constrangimentos e à norma coletiva, Lévi-Strauss não pode senão rejeitar fora da ciência um projeto teórico que, na verdade, visa reintroduzir o agente socializado (o não sujeito) e as estratégias, mais ou menos, “automáticas” do senso prático (e não os projetos ou cálculos de uma consciência). (...) A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que supõe estruturalismo (recorrendo, por exemplo, à noção do inconsciente). Mas pode-se recusar ver na estratégia o produto de um programa inconsciente, mas sem fazer disso o produto de um cálculo consciente e racional. Ela é o produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que é adquirido desde a infância, participando das atividades sociais (Ibid., 78-79).
Então, quando Bourdieu define seu trabalho (no início deste artigo) como um estruturalismo construtivista, ele coloca imediatamente a continuidade e ruptura a respeito da questão da forma na ação. Ele é estruturalista na medida em que considera que um ato socializado (isto é, toda ação) é a aplicação mais ou menos automática das normas. Mas ele é construtivista na medida em que considera que essas formas (ou normas) não são nem herdadas de um grande sistema, nem aplicadas mecanicamente como que por sonâmbulos. Então, seu construtivismo modaliza e precisa sua concepção estruturalista da ação sobre dois aspectos: sobre a origem e a modalidade de intervenção das normas. Ora, esses dois aspectos são decisivos quanto à organização. Para repensar a origem das normas na ação, Bourdieu forja o conceito de práticas. As práticas são as maneiras de se comportar aceitáveis ou exigidas em um determinado meio social. A gênese dessas normas já não é mais uma implicação de acordo com um movimento de cima para baixo – top-down – (como em Lévi-
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-Strauss), mas uma diferenciação, de acordo com um movimento de baixo para cima – bottom-up. Essas são as microrrelações de poder próprias a um campo ou subcampo que vão ditar localmente as previsões, condicionando a aceitabilidade dos comportamentos. Agir é, então, sempre inscrever suas práticas nas práticas de um determinado meio (aquele em que sempre se evolui, aquele de onde se vem ou aquele para onde se quer entrar realizando essa ação). É precisamente o que Bourdieu chama, nesse extrato, o senso prático, é a espontaneidade com a qual uma pessoa adapta as normas de sua ação às normas do meio. Então, o que faz a diferença entre Lévi-Strauss e Bourdieu – do ponto de vista da organização, do estabelecimento das normas de ação individual e coletiva – é, então, que, para o segundo, a lógica que governa as ações dos membros de um grupo social resulta das relações de poder (dentro do grupo e entre os grupos), lá onde o holismo do antropólogo vê apenas um sistema total. Ora, essa redefinição não existe sem alterar a concepção das modalidades de intervenção de normas na ação. Com efeito, se a emergência de normas, que governa as práticas, vem das relações de força nas quais elas estão investidas, é que os agentes sociais não seguem maquinalmente a norma (nesse ponto Lévi-Strauss está errado), mas eles a seguem porque eles veem o seu interesse em fazê-lo. Bourdieu forja também o conceito de “estratégias” para insistir sobre o fato de que uma norma não faz norma somente a partir do momento em que o agente percebe como o respeito a ela lhe dará uma vantagem nas relações de poderes constitutivos de seu campo. Mas Bourdieu precisa imediatamente de que as estratégias são sempre mais ou menos automáticas. Em seu espírito, as normas se formam como uma panóplia de reflexos, entre os quais o hábito nos faz implementar o que melhor se adapta à situação. Essa metáfora parece justa para mostrar os limites do modelo de Bourdieu. Certamente esse modelo consegue esquematizar a maneira pelas quais as normas precedem a ação, tendo sido desenvolvidas nas ações. Nesse sentido, Bourdieu opera uma autossuperação do impasse em que se opõem as deficiências de Aristóteles e Dewey. Mas a redução metodológica que o sociólogo opera para estabelecer seu modelo – pensar a norma sem normatividade (no sentido da
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recepção e não somente da imposição) – encontra rapidamente seu limite teórico. O que ele chama de “ação” não é mais verdadeiramente uma ação. Ora, o conceito de competência é multidimensional: ele integra não só todas as facetas da atividade, profissionais e específicas, como também extraprofissionais e subjetivas. De fato, pode-se raciocinar, em certo momento, sobre a competência em termos de bons reflexos. Mas, dando a si mesmo essa facilidade, impede-se de ir mais longe, quando a modelização e a organização vão pedir uma análise mais refinada. Porque, então, não será suficiente detalhar os reflexos: há uma escala de microanálise, em que o modelo deve ser completamente readaptado. Caso contrário, ele propicia violência em relação ao que se passa concretamente nesse nível. Contudo, uma vez que os julgamentos de competência – inclusive na organização – estão lidando sempre com indivíduos nos coletivos, o uso desse conceito se faz, inicialmente, se não sempre, nessa escala do micro.
1.4. Normas antecedentes representam apenas uma primeira antecipação, que será sempre ela mesma antecipada pelo esforço de viver (a perspectiva ergológica) Em resumo, o que dizer de três perspectivas em debates, sobre a competência na organização que acabamos de percorrer? As duas primeiras pecam pela unilateralidade respectiva: a primeira raciocina exclusivamente no a priori e o universal (abordagem top-down da organização), a outra responde raciocinando exclusivamente no a posteriori e no singular (abordagem bottom-up da organização). O interesse do conceito de norma, tal como Bourdieu a reinterpretou contra Lévi-Strauss, é de restabelecer ida e volta entre os dois movimentos top-down e bottom-up, entre os dois momentos a priori e a posteriori. A norma é essa forma guiando a ação, que, ao mesmo tempo a precede e é o seu produto. Do ponto de vista da perspectiva organizacional, o avanço é decisivo em relação ao falso dilema entre as hierarquias encaixadas de Aristóteles e o espontaneísmo autárquico de Dewey: as formas rígidas da divisão do trabalho são herdadas da sedimentação do passado – elas emergem, portanto, das práticas enquanto as condiciona. No
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entanto, superando o que parecia ser um impasse, Bourdieu transpôs o conceito de Lévi-Strauss de norma (macroscópica) ao plano microscópico. Na verdade, ele postulou que os comportamentos descritos no nível estatístico refletiam fielmente o que se passava no nível individual. Ora, está aí todo o problema: tal atalho explicativo impede de ver a competência no trabalho, então isso limita consideravelmente a sua modelização. Assim, a ultrapassagem dessa terceira perspectiva deve ser renegociada, para permitir uma descrição mais fiel, posteriormente uma modelização mais segura da atividade concreta de trabalho. E esta renegociação passa por uma reinterpretação do conceito de norma guiando a ação. A partir de sua tese de medicina (1943), consagrada à definição da norma vital, Canguilhem propôs elementos de generalização para contribuir com a construção do conceito de norma social (Canguilhem, 2005: 175-191). Ora, as características essenciais que o autor põe, assim, em evidência, se opõem à visão estruturalista, então contemporânea. Acima de tudo, a explicitação e o desenvolvimento que Yves Schwartz deu tornou esse novo conceito de norma muito mais eficaz na modalização da competência. A perspectiva de Canguilhem permite compreender em que consiste a normatividade que faz da norma uma norma. Apresentamos aqui os três pontos de oposição em relação à sua definição estruturalista: – inicialmente, Canguilhem insiste sobre o fato que uma norma é sempre polêmica. “O conceito de normal é ele mesmo normativo” (Canguilhem, 2005: 178). De sua parte, o estruturalismo faz um uso descritivo desse conceito, reduzindo “o que faz norma” ao simples fato da norma, postulando que uma norma é um fato tornado lei. Canguilhem explica que uma norma só “faz norma” na medida em que ela a retifica e a corrige. É porque um comportamento é julgado insatisfatório em função de certos valores que se decreta uma norma: a infração precede a norma (ibid, 176), se bem que uma norma se define como uma exigência que se impõe a uma existência – existência, aqui, precede a norma.
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– no entanto, Canguilhem como Lévi-Strauss, reconhece que todo homem sempre já é aculturado. Nós nunca vamos nos confrontar com a realidade nua na nossa atividade de vida. A realidade é atravessada por normas sociais que não só antecedem nossa interação, mas também a torna possível. A prova pela negativa, é, seguramente, o caso das crianças selvagens que, não tendo sido aculturadas no nascimento, desenvolveram apenas uma interação rudimentar com o mundo e os outros. Contudo aqui não se constitui absurdo dizer que, de uma parte, a existência precede a norma, e que, de outra parte, a norma precede a existência. Na verdade, ao contrário dos estruturalistas, Canguilhem se recusa a escolher uma das duas proposições desse aparente dilema. E pelo seguinte motivo: Lévi-Strauss e Bourdieu negligenciaram o fato de que uma norma quer endireitar, retificar e que, por essa razão, ela está constantemente em contradição com o que precede; ora, o que precede, é a atividade insatisfatória – dizemos –, mas essa atividade não é espontânea (no sentido em que ela não vai obedecer a nenhuma regra). Na realidade, ela mesma já segue uma norma. O que os estruturalistas, portanto, negligenciaram é o fato de que as normas estão constantemente em conflito, em contradição entre elas. Para o ator (a pessoa, no centro da atividade julgada insatisfatória) tal contradição das normas é literalmente vivenciado como uma situação de injunção paradoxal de duplo constrangimento na acepção do Bateson (1956: 253). Se, então, tal situação é patogênica (psiquiatras de Palo Alto mostraram isso claramente), resulta que apenas injunções paradoxais são o lote diário de uma atividade socializada, ou seja, de toda ação. O conceito de norma é normativo, porque ele impõe tomar parte de uma norma e a exclusão de outras e, portanto, de se engajar e aceitar o risco. Bem, não é somente qualquer norma que vamos reter finalmente em nossa ação, mas essa escolha vem acompanhada de temas pesados, uma vez isso que pode resultar tanto no círculo vicioso da alienação (podendo ir até a esquizofrenia, de acordo com Bateson) quanto no círculo virtuoso da competência. Suceder, entre todas essas contradições, a “fazer norma” de forma autônoma é, então, um desafio: “Todo homem quer ser sujeito de suas normas” (Canguilhem, 1947: 135).
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Os estruturalistas recusam totalmente que uma norma seja relacionada a um valor. No entanto, este é o caso (e Dewey efetivamente nos ensinou), porque pela norma social, entre progredir na competência ou se enterrar na alienação, há toda diferença que separa, pela norma vital, a saúde e a doença. E aqui, como em Dewey a fonte de valores é a atividade: essa procura ganhar em iniciativa sobre os duplos constrangimentos. É uma existência que tenta florescer em um ambiente normalizado, porque é sempre social. – finalmente, a contribuição mais decisiva de Canguilhem ao conceito de norma é, na realidade, a condição dos dois pontos precedentes. Toda a obra desse filósofo da vida consistiu em defender uma ideia que parecia estranha: a biologia (explicação objetiva do funcionamento e comportamento do vivente) só será completamente pertinente por muito tempo, se ela encontrar, nesses modelos, um meio de integrar a experiência que tem o organismo “daquilo que faz, para viver”. É fundamental: prever a ação do ponto de vista do organismo – e a fortiori do ser humano – é a única maneira de ver se e como a norma “faz norma”. “Nós sustentamos que a vida de um vivente (ainda que de uma ameba) reconhece as categorias de saúde e doença apenas sob o plano da experiência” (Canguilhem, 2005: 131). Em outras palavras, para determinar se um estado é patológico ou não, é preciso, vez ou outra, inevitavelmente interrogar o ponto de vista do paciente. Generalizada à norma social, essa conclusão significa que nunca ocorre automaticamente, mas sempre sendo reinterpretada e reinvestida em uma situação (por um ponto de vista, no sentido axiológico) que uma norma “faz norma”. Esse ponto de vista não é necessariamente consciente, uma vez que é, primeiramente, o ponto de vista do corpo. É, por exemplo, o corpo tal como ele se expressa nas alterações posturais, constantes e, no entanto, totalmente inconscientes – aquelas pelas quais gerimos a fadiga muscular sem o saber. Para insistir sobre o fato de que o ponto de vista constituindo nossa normatividade excede a opinião que se pode exprimir em um testemunho consciente, Yves Schwartz propõe o conceito de corpo-si (Schwartz, 2011: 148-177), em que o fisiológico e o psíquico participam ativamente de nossa tentativa de nos apropriarmos das normas antecedentes, a fim de existirmos no meio social.
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Parece que é baseado nesse novo conceito de norma que se pode vantajosamente renegociar a ultrapassagem do debate entre top-down e bottom-up, sobre a competência na organização. Aqui, nós nos apoiamos no conceito de dupla antecipação (Schwartz 2004: 261-294), que clarifica e prolonga essas três proposições canguilhemianas. Acima de tudo, isso nos leva a contestar a maneira como Bourdieu negociou o ir e vir entre a priori e a posteriori. Por um lado, de fato, o organizador racionaliza a ação coletiva, definindo as modalidades concretas e constrangedoras do projeto. Ao estabelecer esse plano de ação, a organização produz normas que serão antecedentes em relação à atividade aqui e agora de cada membro da equipe. Em certo sentido, essa antecedência da norma lhe confere um estatuto assaz próximo da forma prevista por Aristóteles. O fato de ser antecedente significa que a regra que precede minha ação, a fim de limitá-la e guiá-la, foi concebida de maneira anônima, ou seja, abstraída de qualquer consideração das particularidades das pessoas ou situações. Para designar essa antecedência, ou essa abstração que permite generalização, Yves Schwartz fala de raciocínio em desaderência (Schwartz, 2009: 15- 28) em relação às situações de ações concretas. O que Dewey não observou, quando imaginou que a tática poderia inventar a sua própria estratégia, é que todo poder estratégico chega às normas guiando a ação dessa postura em desaderência das normas antecedentes. Essa é certamente a condição dessa racionalidade exponencial que dá às empresas coletivas um domínio sempre maior de constrangimentos reais – que nos fazem, parafraseando Descartes, mestres e possuidores da natureza. Mas, por outro lado, o organizador, que também planeja, está igualmente sujeito a normas antecedentes. É em função de constrangimentos, igualmente tão diversos e moventes como a legislação, as especificações, o organograma, etc. que ele deverá elaborar grandes linhas de um projeto. Ora, o organizador não aplica mecanicamente essas normas antecedentes. A sua ação não é o produto das normas, como um movimento (em física clássica) é o resultante da composição de forças mecânicas que se opõem. Colocado em injunções paradoxais, ele tenta resolvê-las mediante a imposição de uma linha de ação (uma norma),
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que funciona como um compromisso entre as exigências que ele percebeu como prioritárias. Então, paradoxalmente, é o duplo constrangimento que revela o ponto de vista. Para não ficar preso como um robô (que funcionaria aqui como nosso asno de Buridan), a pessoa arrisca a interpretar a hierarquia das prioridades. E essa hierarquização não pode ser neutra, como se a programação das prioridades pudesse ser pensada à parte da situação, em função de um resultado previsto ou de acordo com um algoritmo de decisão. A questão de saber – aqui e agora, dado às urgências e oportunidades sempre em parte imprevisíveis – qual norma deverá precisar a outra retificando-a, depende da avaliação da situação presente. Se ela tiver que ser fixada com antecedência (em desaderência), tal ordem de prioridade não poderá incluir nenhuma nuança, e especialmente nenhuma das exceções que compõem o quotidiano do trabalho. Na realidade, essa hierarquização deverá ser assumida por uma pessoa, em aderência, ou seja, no calor da ação. Assim, o próprio organizador, em seu trabalho, passa inevitavelmente pela expressão de seu ponto de vista: porque é aí que a norma antecedente “faz norma” para ele. Ora, não há razão para que o que é bom para o organizador não valha a pena para aqueles que têm a tarefa de organizar o trabalho. Essa consideração pessoal da norma (caracterizada por ser antecedente e anônima) se encontra, na verdade, em todos os postos e níveis hierárquicos na divisão do trabalho.
Essa maneira de ver o ir e vir top down, bottom up, é muito nova; ela não retoma aquela de Bourdieu. Os conceitos de aderência e desaderência mostram isso bem. Porque a norma segundo Bourdieu é apenas um feixe de variantes, garantindo uma adaptação ideal no caso do cenário encontrado. Bourdieu também estipula, para enfatizar que não é realmente necessário expressar seu ponto de vista sobre a norma assim definida, que sua utilização diferencial visando adaptá-la (a estratégia do sentido prático) é sempre mais ou menos automática. Bourdieu não diz apenas “inconsciente”: é automático, porque a operação é passiva. Longe de apelar por um ponto de vista, este reflexo condicionado produziu o que Bourdieu chama de ponto de vista:
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O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de vista, o princípio de uma perspectiva tomada a partir de um ponto situado no espaço social, a partir de uma perspectiva definida em sua forma e seu conteúdo pela posição objetiva de que é tomada. O espaço social é a primeira e última realidade, porque ele ainda comanda as representações que os agentes sociais podem ter (Bourdieu 1994: 28).
Essa telescopagem entre o “social instituído” e o “social incorporado” permite a Bourdieu reduzir o que acontece no nível micro (indivíduo) a um modelo reduzido do que acontece no nível macro (ambiente social). Ora, com os conceitos de aderência e desaderência, Yves Schwartz prolonga, ao contrário, o conceito canguilhemiano de ponto de vista, no sentido que já recordamos: tanto a desaderência pode alcançar a objetividade científica (ausência de ponto de vista), como a aderência é sempre uma interpretação da situação, que é feita no centro dessa situação. O ponto de vista em aderência é, então, a necessidade (para um organismo, e a fortiori para o homem no trabalho) para se tornar o centro de gravidade de seu meio, isto é, o pivô para o qual as normas antecedentes são renegociadas na urgência da ação. Bourdieu concluiu que a organização foi a sedimentação de práticas passadas, “o morto apodera-se do vivo” (Bourdieu, 1980: 3). Mas, novamente, esta é apenas uma visão unidimensional das coisas. Certamente as normas antecedentes se tornam constrangimentos, elas se acumulam como fatos. Mas elas também fazem normas, ou seja, são renegociáveis como interpretações. Enquanto Bourdieu deixa clara a maneira como a difração das regras pode fazer com que as regras do jogo evoluam, Yves Schwartz (2000: 32-68) propõe o modelo da dupla antecipação para dar conta deste ir e vir entre aderência e desaderência, na constituição e evolução progressiva da organização. As normas antecedentes formam uma primeira antecipação, quer dizer, os raciocínios in abstrato (da ciência e gestão) vão definir uma planificação, que sempre vai valer como pedra angular – como uma referência para guiar a ação e como critério para decidir as diferenças – mas que não é aplicável tal e qual. Para se
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tornar efetiva, essa antecipação em desaderência deve, de fato, ser religada por uma segunda antecipação, que revela a aderência, uma vez que tem lugar aqui e agora, através do ponto de vista de uma pessoa sobre a situação. Essa mediação (interpretação, hierarquização, modelização, retrabalho) pode ser qualificada de antecipação porque ela consiste, para a pessoa, em mobilizar todos esses saberes pertinentes sobre a situação, a fim de ganhar a iniciativa sobre a norma. Para poder tornar-se ou permanecer o centro de sua própria interatividade com o meio, a pessoa tenta intervir, a tempo, sobre as modalidades (as condições de aplicação) da norma, de modo que não seja apenas um constrangimento. Esta segunda antecipação corresponde fundamentalmente ao esforço da pessoa para viver saudável: O meio não pode impor qualquer movimento a um organismo, se esse organismo se propõe inicialmente ao meio segundo certas orientações próprias. Uma reação forçada é uma reação patológica. (...) As reações dos trabalhadores para extensão progressiva da racionalização taylorista – revelando a resistência do trabalhador às “medidas que lhes são impostas do exterior” – devem ser incluídas tanto quanto as reações de defesa biológica, como reações de defesa social e em ambos os casos como reações de saúde (Canguilhem, 1947: 128- 129).
Na interação da pessoa com o seu meio, opera-se, então, um debate entre as normas antecedentes do ambiente e as normas próprias das pessoas (seus equilíbrios, físicos e mentais). É por isso que a contribuição específica de Yves Schwartz aos conceitos de ação como norma é modelizar a atividade como um encadeamento de debates de normas (Schwartz 2004: 265). O movimento de ir e vir top down, bottom up, constitutivo da organização, parece-nos melhor elaborado pelo modelo da dupla antecipação, porque ele mostra o papel crucial desempenhado pela competência em tal processo. Na verdade, não se entende bem em Bourdieu o que a diversificação das normas teria a ensinar à organização, uma vez que, por definição, isso só interessa no geral, e – como previsto por Bourdieu – as estratégias individuais são apenas particularização.
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Em vez disso, a segunda antecipação modifica concretamente as condições e os detalhes do conteúdo das normas antecedentes. A ascensão dessas inovações através da via hierárquica está envolvida em calibrar as normas antecedentes. Os saberes da aderência têm de fato algo a ensinar aos modelos em desaderência – algo que seja específico para os primeiros e interessante para os segundos (Schwartz, 2009: 15-28). O modelo da dupla antecipação, portanto, oferece muitos meios de realizar um verdadeiro movimento de ir e vir e também para mostrar o papel efetuado pela competência, desde a etapa de organização.
2. Chefiar 2.1 Realizar a ação é aplicar passo a passo as etapas do projeto (Aristóteles) No padrão clássico da ação (como realização de um projeto), toda a atenção é colocada sobre a etapa de planificação, porque se considera que toda variabilidade que oferta uma situação pode ser capturada nas diferentes opções de uma árvore lógica – uma árvore de possíveis. Se esse é o caso, seria possível compreender por que o esforço é exclusivamente dedicado a essa preparação da ação. Ter previsto, assim, uma resposta adaptada a cada cenário possível fará com que seja logicamente impossível que tudo não se passe segundo o plano – que este tenha conseguido prever tudo. Ora, certamente, a experiência não para de demonstrar que esse não é o caso. É impossível prever tudo porque uma situação de vida concreta é extremamente movente e multidimensional. Planejar se torna certamente útil e eficaz, já que se reduz a variabilidade da situação concreta a um número finito de parâmetros significativos, pois estabelecemos a lista de valores possíveis que podem tomar cada uma das variáveis. Fazendo isso, estabelecemos uma combinatória que não teria desagradado a Lévi-Strauss. Mas esta etapa propriamente estratégica só seria suficiente no caso, concretamente impossível, de uma previsão exaustiva. Na realidade a segunda etapa, aquela da readaptação tática, é indispensável e irredutível. Mas o problema é que, passando do sonho estratégico – àquele de tudo prever – ao planejamento razoavelmente aproximativo, conserva-se de
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forma idêntica a ideia que temos da segunda etapa, a etapa tática. Persiste-se de fato em considerá-la como uma aplicação, uma operacionalização ao pé da letra. Vejamos como Aristóteles, na sequência de sua concepção da organização, considera a etapa da realização. Vamos retirar daí as consequências para a visão de enquadramento que ela supõe. Eis como Aristóteles dá conta da operacionalização proximal de um plano de ação: “Assim, quando se pensa que todo homem deve andar e que é você mesmo um homem, anda-se livremente; quando, ao contrário, se considera que as circunstâncias exigem que algum homem não ande, e que é você mesmo um homem, a consequência imediata é que ficamos paralisados: e nos dois casos, o homem age, a menos que alguma coisa não o impeça ou restrinja. ‘É preciso que eu faça qualquer coisa que seja boa para mim; ora, uma casa é algo bom’; e imediatamente faz-se uma casa. ‘Eu preciso de me cobrir; ora um casaco serve para cobrir; eu preciso de um casaco; é preciso, então, fazer um casaco’. E a conclusão, ‘é preciso fazer um casaco’, é uma ação. Age-se a partir de um princípio. Se estabelecermos que haverá um casaco, é necessário que tal proposição seja admitida se ela é entre outras; e, ao fazê-lo, agimos imediatamente. Portanto, é evidente que uma ação representa a conclusão. Quanto às proposições que preparam a ação, elas são de duas ordens, aquela do bem e aquela do possível. Mas (...) o raciocínio não se detém necessariamente sobre a segunda proposição, que obviamente: ele deixa de lado. Por exemplo, se pensamos que a marcha é um bem para o homem, não nos detemos na proposição que se é um homem. E é por isso que todas as ações que fazemos sem raciocinar fazemos rapidamente. Na verdade, quando se está chegando ao fim que fornece a sensação, a imaginação ou a razão, fazemos imediatamente o que queremos. No questionamento ou na reflexão se substitui o ato do desejo. “Eu tenho que beber”, disse o apetite; “Aqui está uma bebida”, disse a sensação; e bebemos imediatamente. “ (Aristóteles, 2002: 60- 61).
Estas formulações podem fazer sorrir, e é interessante interpretar o porquê. Na verdade Aristóteles mostra aqui a sua teoria do silogismo prático. Em grego, syllogismos quer dizer o raciocínio, mas Aristóteles se apropria desse termo para dar-lhe o sentido preciso de raciocínio dedutivo, retirando da associação de uma proposição maior (universal, tipo: todos os homens são mortais) e de uma proposição menor (particular, no caso: ora os gregos são homens), uma conclusão – em decorrência: então os gregos são mortais. Agora vemos, em um estudo episte-
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mológico, que Aristóteles desenvolveu sua teoria do silogismo. Mas, quando ele trata de pensar a ação, é que o modelo que ele projeta (e mesmo que ele aborda) para compreender como se passa a deliberação, buscando maneiras de acabar decidindo antecipadamente. É nisso que insiste tanto o autor, é o imediatismo com o qual a ação resulta da deliberação. Aristóteles chega mesmo a identificar a ação e a conclusão. Enquanto em um silogismo teórico, o raciocínio resulta em uma proposição científica, no silogismo prático o raciocínio (sempre também mental, discursivo, representacional) resulta em movimento do corpo – em uma estrita solução de continuidade. Mas, uma vez a artificialidade de tal modelagem destacada, não se reconhece nossa própria concepção de operacionalização, de realização de uma ação? De fato, o que nos diz Aristóteles aqui? Simplesmente que, para agir em uma situação, nós reunimos dois elementos: um tipo e um caso. O tipo é a regra de ação em geral, e o caso é da situação particular que se apresenta aqui e agora. Ora, não somente, essa concepção é exatamente aquela que governa nossa concepção usual da relação entre a formação teórica e a prática (os modelos universais aprendidos na escola devem ser recusados pelo aluno, num certo número de casos particulares, de maneira a que ele identifique corretamente os casos sob os tipos e aplique corretamente os tipos aos casos); mas, sobretudo, o conceito aristotélico de competência é explicitamente definido como a justa relação entre o tipo e o caso. A definição aristotélica de prudência (phronésis) é de fato literalmente uma definição da competência: antes essa antiga forma da competência era reservada à praxis, aos atos não profissionais. Nas ações políticas, diplomáticas e morais, a prudência aristotélica é um certo saber-fazer adquirido pela experiência, próprio àquele que – tendo já as premissas maiores (os princípios morais e políticos) – identifica claramente as situações particulares que encontra (os casos que vai classificar sob os tipos previstos nos princípios). Aristóteles toma o exemplo do médico que, para ele, representa uma atividade liberal, retirado da práxis: segundo ele, sua incompetência é essencialmente um erro de categorização – diagnóstico, nesse caso. O médico sabe, em geral, como tratar uma determinada doença, mas
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ele coloca o caso clínico que ele encontra (um paciente específico) sob a categoria errada. É, portanto, a formulação do menor (“eis uma bebida”), ou seja, a articulação dos meios justos que está em falta, na incompetência. É esse mesmo modelo que Aristóteles usa para analisar a intemperança moral (a “fraqueza da vontade”) daquele que, uma vez tentado em uma situação, não respeita mais os princípios aos quais ele adere, no entanto. A definição aristotélica da competência a realizar a ação é ela mesma, portanto, complementar à sua definição da competência na organização. Já que a segunda consiste para o operador em realizar sua função de maneira ótima, a primeira vai consistir literalmente, para o produtor, em bem aplicar em meio aos tipos fornecidos pelo utilizador, aquele que não corresponder à situação encontrada. Da mesma forma, como sob o plano da organização, nenhum saber pertinente ou original é reconhecido ao executante. É o que explica por que a competência não se beneficia de qualquer transversalidade. A competência (assim entendida) sendo o simples hábito de categorizar os casos sobre os tipos é, por definição, hiperespecializada. Por fim, a falta de saber próprio explica a ausência de iniciativa. O enquadramento de uma tal competência seria, sem dúvida alguma, na perspectiva de Aristóteles, o simples controle da conformidade do resultado. Da mesma forma, portanto, será necessário, para superar a concepção antiga da organização, libertar-se da estrita subordinação dos meios aos fins, tal como implicado no esquema clássico da ação. É, doravante, do modelo da aplicação que é preciso nos desfazermos, para pensar o conteúdo positivo da competência sobre o plano do enquadramento.
2.2. Adaptar constantemente nossas hipóteses e nossos hábitos de acordo com as respostas que nos reenviam o meio ambiente: isso é pensar (Dewey) O erro de Aristóteles (e do senso comum que ainda herdamos frequentemente dele) foi de ceder ao sonho do todo estratégico, a ponto de esquecer que a operaciona-
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lização concreta do objetivo mais próximo pode já requerer uma inventividade, em razão da resistência que nos opõe o real. Por esse motivo, a resposta de Dewey consiste, em primeiro lugar, pôr em plena evidência tudo que se passa entre o ator e seu meio, no aqui e agora de sua interação. Ora, se essa aventura não é guiada por um protocolo, definitivamente fixado antes do começo da ação, é que a interação encontra, nela mesma, uma forma de autonomia. Efetivamente, segundo Dewey, porque nossas ações têm certa eficácia (caso contrário não estaríamos vivos), apesar dos problemas postos pela resistência do real, é que não agimos maquinalmente, por simples tentativas e erros. Encontramos constantemente soluções para superar os problemas. E nós só as encontramos porque as procuramos. Sob o nome de enquete (Dewey, 2006:83), o pensador pragmático considera, de fato, nossa interação com o meio ambiente como uma fonte de informações e de métodos, tanto mais pertinentes quando são postos constantemente à prova pela prática. Essa perspectiva não se contenta em supervalorizar a tática. Ela tende a concluir que a tática vai elaborar sempre sua própria estratégia. Assim, o aporte de Dewey quanto à definição das competências, sobre o plano do enquadramento, é decisivo. Como anteriormente, é preciso o esforço de mergulhar na raiz do esquema clássico da ação, para verdadeiramente encontrá-lo. “A experiência implica uma relação da ação ou do ensaio com uma consequência que é sustentada. Separar a fase ativa do agir e a fase passiva do submeter-se destrói a significação real de uma experiência. Pensar é criar, de uma maneira precisa e deliberada as relações entre o que é feito e suas consequências. (...) A incitação a pensar reside no desejo de determinar a significação de um ato realizado ou a realizar: prevemos, então, suas consequências. Isso implica que a situação existente é – seja realmente, seja em nós – incompleta, portanto, indeterminada. A projeção das consequências significa uma solução proposta, uma solução de ensaio. Para perfazer essa hipótese, é preciso examinar com cuidado as condições existentes e desenvolver as implicações da hipótese – operação que chamamos “raciocínio”. A solução sugerida (“ideia” ou “teoria”) deve, então, ser posta à prova em prática.”
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Essa passagem mostra bem o antidualismo do autor. Ele é dirigido contra uma concepção de tipo aristotélica onde somente o utilizador (o cavaleiro, por exemplo) viveria uma experiência (estando sozinho em posição de receptor das respostas do meio ambiente) e deveria, consequentemente, informar o artesão (o seleiro, neste exemplo) das finalidades que ele deduziu a partir dessas respostas. A mesma dificuldade nos parece se aplicar nas utilizações que Clausewitz faz da distinção que ele propôs entre tática e estratégia. Em seu discurso, tudo mostra que ele só concebe o papel do tático como aquele que nivela as circunstâncias, para que a situação pareça o mais possível aquela prevista pelo planejamento (Clausewitz, 2000:187-190). Na sua perspectiva, o tático não deve – e nem pode – tomar a iniciativa, mas cabe a ele, sim, ajustar o planejamento, se for o caso, às informações que a ele retornam do campo de batalha. Encontramos, assim a mesma unilateralidade que, na divisão do trabalho aristotélica, com a diferença de que com Clausewitz o tático, estando no terreno, tem informações a retornar – mesmo se não se reconhecem os meios de interpretá-las. Aqui, ao contrário, a força do raciocínio de Dewey vem, sem dúvida de sua recusa em separar a pertinência teórica – mesmo a mais intelectual – da eficácia prática. Nessa ótica, certamente, a competência aparece como certa performatividade de nossas referências (nossas representações, nossos hábitos). Já que a prática é, fundamentalmente, uma interação com o real, é em seu próprio devir que ela encontra os critérios para guiá-la. O feedback que nos reenvia o meio ambiente nos informa, a todo instante, se nossa interação com ele está em uma espiral ascendente ou mesmo descendente, em um círculo virtuoso, ou ao contrário, vicioso. A ideia pragmática é, certamente, a de que uma representação mental não só é real, mas também induz mudanças no real. Ora, a utilização que Dewey faz dessa ideia lhe permite pensar a estruturação dinâmica da ação. Tanto a determinação de nossos fins quanto a articulação dos meios para atingi-los são operações cognitivas que se desenvolvem nas interações com o meio ambiente real. Nossos projetos emergem, portanto, de nossa atividade espontânea que, além disso, é, na origem, uma atividade vital, orgânica: essa é, assim, anterior em relação a estes projetos que
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acreditávamos primeiros, porque lhe dão uma orientação. A tese, bem conhecida, segundo a qual são os insucessos desta atividade espontânea que provocam a reflexão (a análise intelectual) permite a Dewey marcar a diferença entre uma atividade que se contenta em tatear ao acaso (ensaio e erro) e uma atividade que – ainda que ela permaneça sempre uma experimentação – faz o esforço não somente de religar a ação e a reação, mas ainda de antecipar esta resposta com uma hipótese sobre a natureza de sua relação. Sem dúvida, isso é, para Dewey, o agir em competência. O limite de seu raciocínio, para nós, tende a isso que – sem mais precisão sobre a relação que se instala entre nossa interação e as regras sociais que a precedem e a enquadram – esse limite dá impressão de que cada ator deve reinventar o prescrito. Certamente, Dewey pensa, de modo constante, nossas ações em sua continuidade histórica. Não partimos, portanto, jamais do zero, perseguimos a cada vez, a atividade que conduzimos desde sempre. Mas o que não vemos bem é a maneira como nossa ação se inscreve em uma herança estável e mesmo universal; como cada ator modifica adaptando-a às necessidades da situação – e, sobretudo como as modificações que ela aí aporta podem duravelmente enriquecer as normas e os saberes comuns. Dewey tem, a nosso ver, perfeitamente razão em definir o pensamento como essa dimensão cognitiva em obra em toda confrontação construtiva com o real. Mas o que nos parece faltar é uma descrição da maneira pela qual esse pensamento se universaliza, pelo qual ele se torna um saber sobre a realidade, como se torna uma experiência transmissível – por exemplo, sobre a forma de um saber-fazer. Lá onde Aristóteles concebia os tipos fixos e reduzia os casos a instanciações de suas essências eternas, Dewey a nossos olhos peca pelo excesso inverso. Os tipos nos parecem ser mais do que o resultado de um processo de abstração, partindo do alcance dos casos. Considerar, portanto, que a tática elabora sempre sua própria estratégia, dito de outra forma em nosso vocabulário, que os raciocínios em aderência podem dispensar qualquer raciocínio em desaderência, tanto sobre o plano teórico, quanto sobre o plano organizacional: é aí que o autor nos parece operar um atalho explicativo. As normas antecedentes são indispensáveis para reconfigurar tanto a ação
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coletiva quanto a ação individual. Sobretudo, é preciso insistir sobre o fato que, a iniciativa e a engenhosidade têm necessidade desses enquadramentos normativos, para poder reinterpretá-los e antecipá-los novamente. Falar, como o faz Dewey, de uma emergência da estratégia, a partir de uma pura tática, parece-nos tão ilusório quanto o sonho do todo estratégico. Mas, principalmente, isso parece limitar, de forma drástica, os avanços da reflexão sobre a competência. Nesse sentido, é preciso ultrapassar isso que um tal espontaneísmo tem de simplificador. É precisamente a isso que visam não somente as ambições científicas de Bourdieu, como também as de Lévi-Strauss ao utilizarem o conceito de norma.
2.3. Não seguimos a norma como uma regra de gramática, mas como a regra do jogo: o senso prático adapta a norma a uma estratégia (Bourdieu) Vimos o princípio da crítica e da superação de Lévi-Strauss, feita por Bourdieu a propósito da organização. A ilusão do estruturalismo ortodoxo (em oposição ao estruturalismo construtivista, à qual se refere Bourdieu) é, com efeito, acreditar que o modelo sistemático que o científico inscreve sobre o papel é realmente operante, no inconsciente social do grupo que ele estuda. Ora, a redefinição do conceito de norma que essa crítica implica, coloca, em primeiro plano, o momento da operacionalização da norma, ou seja, para aquele do enquadramento. A metáfora das regras do jogo do social, proposta por Bourdieu, parece-nos dever ser compreendida em oposição ao modelo linguístico que Lévi-Strauss mantém do estruturalismo. Lévi-Strauss falava, com efeito, da regra no sentido de uma regra de gramática – que a linguística estrutural ama imaginar inflexível, sistemática. De sua parte, Bourdieu substitui esse modelo por aquele da regra do jogo. Ele utiliza, sem dúvida, o aspecto lúdico para lembrar que, por funcionar como norma, uma regra deve ser reconhecida como legítima, e, por isso, reconhecida como contingente. Mas o que significa concretamente esse duplo reconhecimento? O que são a legitimidade e a contingência das normas, segundo Bourdieu? É precisamente sobre esse ponto que vamos nos opor à sua
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perspectiva – um ponto que diz respeito, portanto, diretamente à competência, considerada sobre o plano do enquadramento.
Fazendo manifestamente alusão a Lévi-Strauss, Bourdieu escreve: “Lá onde se viu uma álgebra, eu veria, sobretudo, uma dança ou uma ginástica.” (Bourdieu, 1987:90). Essa segunda metáfora é interessante porque põe em relevo aquilo de que se trata quando se pensa na competência. Na ação individual ou coletiva, Lévi-Strauss vê uma combinatória – ou seja, um algoritmo onde a variabilidade na entrada (input) é predeterminada, como um conjunto de valores possíveis. Essa canalização da variabilidade explica a variabilidade limitada obtida na saída (output). Bourdieu qualifica, sem dúvida, esse modelo lévi-straussiano de álgebra para sublinhar o que se supõe, como sendo de natureza lógica, o processo em obra na determinação das ações. Ora, dança e ginástica são atividades que se caracterizam por duas linhas completamente opostas à lógica da combinatória: o tempo (a cronologia) e a variação (o sentido da variação sobre o tema). Os conceitos de prática e de estratégia reinterpretam fundamentalmente o conceito de norma porque eles implicam que uma norma não pode existir se ela permanece somente a priori. Para existir como norma – como prática, como estratégia – essa forma apriorística deve ser investida em uma situação aqui e agora. Em que isso esclarece para nós a questão do enquadramento e, mais geralmente, a operacionalização das normas? Vamos tomar um exemplo de Bourdieu quando ele faz referência aos ritos, os quais pertencem às regras sociais, guiando fortemente a ação coletiva. Temos tendência em crer que, nos ritos (por oposição aos outros atos da vida social, a troca comercial, por exemplo), a regra é seguida por ela mesma. Na realidade, toda ação, tendo lugar na sociedade, é pré-condicionada por normas (relações de forças interiorizadas), mas nenhuma é o puro e o simples desenvolvimento – sem contexto e desinteressado – de um programa. Aqui Bourdieu mostra que o simples fato de diferenciar, mesmo que pouco, a realização de um ato esperado, pode mudar completamente a sua significação. “Mesmo quando o fluxo da ação é fortemente ritualizado (como na dialética da ofensa e
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da vingança), há ainda lugar para as estratégias, que consistem em jogar com o tempo – ou melhor, com o tempo da ação, arrastando a vingança e perpetuando assim a ameaça.” (Bourdieu, 1972:224). Ora, isso quer dizer ao menos duas coisas quanto à operacionalização, para nós, portanto, a questão do enquadramento. Primeiramente, por mais normatizado que seja, um ato pode ser concluído de várias maneiras diferentes, e todas essas maneiras vão dar tantos atos quanto forem as significações performativas diferentes. Em seguida, por mais normatizado que seja, o ato tem lugar numa situação singular, de modo que é, nesse contexto, e em relação a ele, que a norma terá sua eficácia e seu sentido. Por mais que eu não tenha escolhido as regras da gramática e o que o meu discurso deva se apoiar nessas regras para poder produzir um sentido compreensível para outros, isso não reduz a minha tomada da fala numa recitação. Assim, por exemplo: respeitar, não respeitar, ou mesmo respeitar demais (hipercorreção) uma regra de gramática, constitui não somente três atos diferentes, mas é impossível evocar esses atos sem precisar o contexto onde eles realizam a norma. Ora, o mesmo ato será inteiramente diferente de acordo com o lugar onde acontece em tal ou qual quadro, com tal ou qual meio. Voltemos à substituição das metáforas. A realização do prescrito e seu enquadramento são pensados, de um lado, como álgebra; de outro, como uma ginástica ou uma dança. Dança e ginástica são exemplos típicos de atividades nas quais a pessoa segue um plano de ação, (tal coreografia, tal sequência de exercícios), mas que perderiam totalmente o interesse e toda a razão de ser se, seguirem um plano de ação, quisesse dizer: aplicar mecanicamente um programa. O que torna viva a prática da dança ou da ginástica é a interpretação, aquela interpretação dos passos e das figuras. Aqui, a palavra interpretação não deve enganar. Não se trata do sentido, o mais corrente, cognitivo e axiológico do termo. Tomamos aqui essa palavra exclusivamente no sentido em que o chefe da orquestra interpreta a partitura, a partir da qual ator interpreta seu papel. A interpretação, nessa acepção,
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é a transformação de uma ação descrita (como em uma partitura, em um script) em uma ação real. Ora, sabemos: se essa transformação fosse uma pura e simples aplicação, ninguém iria ao teatro, nem ao concerto. Se não é o caso, é bom que aconteça algo inédito na efetuação, aqui e agora, da ação descrita. E o que acontece parece tão significativo que não é raro assistir a várias interpretações diferentes de uma mesma obra, a fim de apreciá-las e compará-las. Certamente, neste sentido, a diferença entre as interpretações é diretamente ligada à significação que cada um lhe emprestou – o que nos faz alternar a acepção cognitiva e axiológica do termo. Mas esse segundo aspecto deverá ser estudado em seguida. No momento, constatamos que para Bourdieu uma norma só é uma norma se ela é interpretada no primeiro sentido, ou seja, efetuada no aqui e agora. Primeira característica da norma, portanto, em uma perspectiva bourdieuniana: ela só existe na medida em que é “jogada”, interpretada no tempo (a duração concreta da situação). Mas, segunda característica, ainda mais decisiva: ao existir assim, a norma não permanece intacta, ela é, a cada vez, difratada e adaptada. Difratada porque há sempre várias maneiras de seguir uma regra. Adaptada porque, entre as múltiplas maneiras possíveis de fazer, nenhuma se equivale, em vista da situação presente. Entre esse (mais ou menos) grande número de opções, a escolha será feita em função das características do contexto particular. É mesmo por causa dessa existência em tema e variações que a norma é, fundamentalmente, uma prática e uma estratégia. O enquadramento (e isso que ele enquadra, a saber, a operacionalização do prescrito) nos confirma, aliás retrospectivamente, que a organização é o resultado de negociações com as obrigações herdadas do passado, de onde emergem, portanto, os temas que darão lugar às variações. É bem exatamente esse conceito de norma que mobiliza Guy Le Boterf, no definir a competência como uma “disposição a agir em uma família de situações” (Le Boterf, 2002:21). Na verdade, mesmo se, além disso, esse autor qualifique esta disposição como uma “combinatória de recursos”, é o conceito de estratégia de Bourdieu que ele tem em mente. Efetivamente, não somente ele segue a metáfora do chefe de orquestra (Le Boterf, 2009:75), mas, de maneira geral, ele considera
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que a competência (na execução de tarefas e no enquadramento dessas) consiste na adaptação ótima das maneiras de agir às particularidades da situação. O que resta então, acreditamos, é deter-se no meio do caminho na definição do conceito de competência. Veremos por quê.
2.4. Os modelos da aplicação e da interiorização não são apenas impossíveis pelo fato da variabilidade, mas, de início, invivíveis (a perspectiva ergológica). Até certo ponto, o problema bourdieuniano de uma norma, como prática estratégica, quer dizer como tema e variação, permite ultrapassar uma redução da operacionalização competente à pura aplicação em conformidade com a norma. Mas, até certo ponto apenas, porque ela considera o ato competente unicamente como a escolha ótima em uma árvore de possíveis: a gama de reflexos sociais à disposição do agente, quer dizer para os quais ele desenvolveu uma disposição. É esse uso, parece-nos, que é retomado quando pensamos a competência em termos de habitus. O habitus permanece fundamentalmente um hábito – mais estrutural que empírico, ainda assim, um hábito, no sentido em que Lévi-Strauss dizia: “O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos modelos construídos antes dela” (2009:331). Ora, lá onde Bourdieu cultiva uma ambiguidade, é sobre o papel da matriz diferencial geradora de comportamentos inéditos que ele pretende fazer jogar o seu conceito de norma como prática estratégica. Bourdieu – como G. Le Boterf na sequência – segue a metáfora musical do “tema e variação” para dizer que um pequeno número de normas pode ser diversificado pelo agente, de maneira a produzir a infinidade dos comportamentos possíveis e esperados nessas condições. Aqui parece-nos haver uma profunda ambiguidade. Por mais esquemático que seja, o raciocínio de Lévi-Strauss parece-nos mais sólido: o autor tenta regularmente relativizar o escopo da diversidade cultural, mostrando-nos que a aparência da variedade infinita vem do fato de que não vemos o tema. Pois para o antropólogo, na medida em que a diversidade cultural é o produto de uma combinação de elementos de acordo com
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um algoritmo fixo, o número de soluções é necessariamente limitado. Quando Bourdieu (e G. Le Boterf em seguida) reutilizam explicitamente o modelo da combinatória de elementos – “Quando um funcionário age com competência ... ele deve construir uma combinatória particular de ingredientes múltiplos” (Le Boterf, 2002: 21) – mas eles pretendem, ao mesmo tempo, que um tal mecanismo possa dar origem a uma infinita diversidade de comportamentos. Como uma árvore de possibilidades poderá comportar uma infinidade de sub-ramos e ainda funcionar como uma árvore de decisão? Acima de tudo, como uma combinação pode produzir um comportamento inédito? Por definição, ele combina elementos já presentes. Por inédito, seria necessário, portanto, apenas ouvir o que ainda não foi encontrado na experiência do agente, mas que um cientista julgaria como previsível. Esse agente é simplesmente revertido para uma associação bem-conhecida, mas ignorada por ele. Novamente, portanto, não há espaço para uma infinitude. O desejo de qualificar de infinita a diversidade de situações da atividade parece-nos se impor dela mesma, quando se observa o trabalho concreto, sem imediatamente escamotear o detalhe sob as categorizações que violentam as nuanças. Essa atenção à complexidade dos dados parece ser a melhor vacina para evitar simplificações e atalhos teóricos do modelo da aplicação. Nesse sentido, Bourdieu e G. Le Boterf são muito mais clarividentes do que Lévi -Strauss. Mas, na medida em que seu modelo não permite gerar a diversidade, o que eles, no entanto, atestam, parece-nos que com essa incoerência eles mesmos dão o melhor argumento para duvidar da pertinência do modelo da combinatória. Os dois limites desse modelo parecem ter, por um lado, a redução da variabilidade a uma árvore de possibilidades – uma redução que Yves Schwartz qualifica como impossível (Schwartz, 2007: 123) – mas, por outro lado e acima de tudo, a redução da singularidade do ator a uma simples particularidade – uma redução que Yves Schwartz qualifica de invivível (idem), prolongando nessas as teses centrais de Canguilhem. Se, portanto, conseguimos superar esses dois pressupostos do modelo de competência como combinatória, parece-nos que aproximaremos melhor a infinitude da diversidade das atividades. De um lado, não será reduzida de forma
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mais abusiva, mas, por outro lado, será possível prever, com mais serenidade, as condições de uma relação ganha-ganha entre as singularidades das pessoas e a indispensável universalidade das normas antecedentes. Anteriormente à operacionalização e o enquadre ao qual está sujeita, a planificação consistiu em definir os principais eixos do projeto e os detalhes de suas modalidades, desenhando uma árvore de possibilidades (do tipo do diagrama de Ishikawa Chamado diagrama de causa e efeito – Ishikawa, 2006: 25-36), com normas antecedentes. Pensar a competência em termos de combinatória é repetir este mesmo modelo: o operador estará ele também face a uma árvore de possibilidades. Agora, parece-nos que esse raciocínio negligencia o fato de que estabelecer uma árvore de possibilidades pressupõe uma drástica simplificação da realidade. É uma abstração, no sentido etimológico, uma vez que consiste em extrair pelo pensamento algumas circunstâncias do todo, um todo verdadeiramente inexplicável formado pela situação e percorrer mentalmente a cadeia de causas e efeitos, de modo a identificar pontos de bifurcações. A melhor prova de que essa lógica da árvore não é uma representação exaustiva da realidade é que basta que ocorra um acontecimento imprevisto para que o esquema se torne obsoleto, exigindo recomeçar a elaborar com base nessa nova situação. Se, portanto, colocamos de lado a ilusão Lévi-Straussiana, que consiste em supor que a base do real é ela mesma uma árvore de possibilidades, a pretensão de encerrar definitivamente a variabilidade conjuntural em um diagrama exaustivo encontra muito rapidamente sua negação prática: esse controle é impossível. A combinação conceitual de “trabalho prescrito / trabalho real”, desenvolvida pela ergonomia à francesa (Wisner, 1996: 29-55), possibilita evidenciar o “encarregar-se” indispensável da variabilidade pelo operador no nível micro e mostra que este “encarregar-se” necessariamente cria, ele mesmo, uma escala de variabilidade (o que, gradualmente, ressoará até o nível macro). Essa análise mostra claramente que a competência do operador, do ponto de vista do enquadramento, consiste efetivamente na boa gestão da distância prescrito/real,
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ou seja, na busca dos recursos suficientes para realizar o prescrito adaptando-o aos casos particulares – esse é o modelo de G. Le Boterf. Mas os mesmos fatos (que recaiam nas categorias da distância prescrito/real) são suscetíveis de uma segunda interpretação. Longe de serem exclusivas, essas duas perspectivas são complementares no sentido de se enriquecerem mutuamente. Ao mobilizar o conceito canguilhemiano de norma para realizar a análise de uma situação de trabalho, percebe-se que a aplicação literal forçada (em um modo de governança do trabalho que confia demais na onipotência do prescrito) não é apenas contraproducente (ver greve de zelo): ela é patogênica, literalmente invivível. Agora, se nos detivermos um pouco sobre esse fato, o que parece anedótico para muitos, é possível extrair um princípio positivo e universal – exatamente da mesma forma que ao estudar a doença, Canguilhem se dá os meios para entender melhor a saúde. Assim como se tem a impressão, quando alguém está em boa saúde, que o funcionamento do corpo é apenas um mecanismo bem-azeitado, de modo que se tem a impressão, quando o trabalho está bem-feito, que se tratava apenas uma questão de aplicar corretamente o prescrito. Mas, assim como a doença revela retrospectivamente, sob a saúde, todo o debate que o corpo mantém com seu meio ambiente, assim também os casos de doença ocupacional revelam o quanto, em tempos normais, geramos (em todos os graus da consciência), um debate entre as normas antecedentes e as nossas próprias normas, as que compõem o nosso equilíbrio pessoal (tanto fisiológico como psíquico). Yves Schwartz modela esta apropriação (pela qual a norma antecedente “faz norma” para nós) graças ao conceito ergológico de atividade como um encadeamento de debates de normas. Ora, o interesse de tal modelo ultrapassa a abordagem clínica das situações de trabalho. Da mesma maneira que a modelagem canguilhemiana da normatividade vital, o modelo de atividade como uma sequência de debates de normas mostra toda a sua eficácia quando se trata de pensar a competência – a gestão, sã e até mesmo potente, das situações de dupla obrigação onde nos colocam constantemente as normas. Para o ponto de partida da perspectiva ergológica, essas são realmente as duas questões eludidas pelo
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modelo combinatório. De onde vem a infinidade de comportamentos possíveis? Como pode neles haver algo inédito? Ao retomar a ideia canguilhemiana de que “todo homem quer ser sujeito de suas normas” (Canguilhem, 1947: 153) e lembrando que essa ideia significa que ele quer ser o centro de um meio de que ele participa na construção, em um universo de normas antecedentes que é a situação, pode-se dar conta do fato de que existe uma verdadeira singularidade da pessoa, na medida em que seu ponto de vista é propriamente falar inantecipável. É na medida em que esse ponto de vista não é uma mera particularização de alguma lei normal que pode reivindicar a singularidade. Em outras palavras, é na medida em que ele reivindica essa singularidade para poder viver que o ator sempre é já singular, não meramente particular. Sua posição no universo social, a lista de suas características, sua trajetória histórica: tudo isso pode ser exaustivamente bastante descrito, pois isso é apenas um conjunto de particularidades (os elementos de uma combinatória elaborada pelo sociólogo) que vão se encontrar – inclusive, talvez, no mesmo arranjo – em outros casos, já que finalmente, é isso o que constitui a regularidade estatística. Por outro lado, a maneira pela qual a pessoa estabelece sua relação com essa condição, com a situação, com as normas antecedentes que ela tenta se apropriar: tudo isso é inantecipável, porque é necessário passar pelo ponto de vista da totalidade indivisível do corpo-si da pessoa (Schwartz, 2011: 148-177). Para entender a maneira como ela retrabalhou a norma antecedente (renormalizada, diz Yves Schwartz), é necessário não apenas deixá-la falar, mas fazer com ela todo um trabalho de acompanhamento, para ajudá-la a expressar sua consciência – através da linguagem – todas as iniciativas que a totalidade biopsíquica de seu corpo tomou para ganhar microiniciativas nas normas do meio. O lado positivo, portanto, do invivível de uma situação revela todo o trabalho mais ou menos inconsciente (e não, como Bourdieu afirmou, a adaptação mais ou menos automática) que realizamos para investir a norma antecedente das nossas arbitragens no debate que temos com o meio. Agora, na medida em que essa normatividade, essa renormalização constante, é capaz de tomar todos os graus
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(a partir, então, de um grau infinitesimal de sofrimento na situação de alienação máxima), é precisamente essa tentativa de negociação pela iniciativa, que parece nos ser o objetivo próprio do conceito de competência. Na verdade, uma tal reapropriação pessoal das normas é a condição para uma readaptação pertinente dessas normas em vista da situação. Para ser interpretada, no sentido de Bourdieu e G. Le Boterf, isto é, difratada para ser adaptada, toda norma deve ser primeiro interpretada no sentido axiológico: apreender uma importância de acordo com as urgências, isto é, uma prioridade, ou seja, um valor. Vamos detalhar, no que diz respeito aos usos futuros, o que parece ser o processo de uma tal interpretação. O fato é que que nos colocamos dentro da estrutura canguilhemiana (que a perspectiva ergológica herda). A interpretação pertinente do significado das normas (que consideramos ser a competência) é a elaboração de um ponto de vista sobre a norma e, portanto, uma distância crítica para o debate, o padrão antecedente.
3. Avaliar 3.1. É a conformidade da operação à sua função que faz a excelência (Aristóteles) Nós já evocamos como – em Aristóteles e Dewey – cada concepção da ação que se opõe traz consigo a origem de seus critérios. Já que, de acordo com Aristóteles, a finalidade de um ato precede esse ato (esse é o modelo do projeto), a avaliação do ato vai consistir em um resultado com o objetivo inicial. Essa visão das coisas é tão presente na mentalidade da Atenas do século V a.C. que ela ali mesmo até recebeu um nome: é a doutrina de excelência ou virtude. Todas as coisas, e também todo ser e toda ação, têm uma essência que o define, e essa essência funciona como um ideal prototípico. Para Aristóteles, a essência – ou ideal – é a função desse ser: a produção que ela gera ou sua operação autotélica. A partir daí, uma pessoa ou uma coisa é excelente (ou virtuosa ou ainda divina) quando ela realiza sua função com perfeição. “Gostaríamos de dizer claramente qual é a natureza da felicidade. Talvez chegássemos a isso se determinássemos a função do homem. De fato, como no caso de
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um flautista, um escultor ou um artista qualquer – e em geral para todos aqueles que têm uma função ou uma atividade – é (parece) na função onde reside o bem e a perfeição. Da mesma forma, pode-se pensar que isso é possível para o homem, se é verdade que existe alguma função própria de um homem. Seria possível que um carpinteiro ou um sapateiro tivessem uma função e uma atividade para exercer, mas que o homem não tenha nenhuma e que a natureza o tenha dispensado de todo o trabalho a fazer? Ou ainda – da mesma forma que um olho, uma mão, um pé – e em geral cada parte do corpo – têm claramente uma função a cumprir, não se deve admitir que o homem tem também essas atividades particulares, tem uma função determinada?” (Aristóteles, 1997: 57).
O fato de Aristóteles colocar aqui, no mesmo plano, o órgão, o trabalhador e o homem não é surpreendente. Porque as suas ações respectivas são pensadas sob o mesmo modelo (no que diz respeito a esta diferença, exceção feita do homem – é claro, é preciso compreender aqui o homem livre, cidadão ateniense, que se fixa ele mesmo seus fins sob a forma de projeto), suas competências respectivas são pensadas a partir do mesmo modelo3.
Seguramente, uma tal maneira de ver nos parece rígida e extrema, na medida em que somente os cidadãos atenienses, fixando fins, a competência como perfeição é reduzida em todos os outros casos à eficiência em uma função que não foi escolhida. Mas a crítica de Dewey deveria interpelar-nos. Segundo ele, toda concepção da ação, em que a finalidade precede o ato, apresenta, na realidade, a mesma armadilha. Dewey sugere, na verdade, que é a prática da avaliação que se apoia no critério de conformidade do resultado, que traz consigo uma lógica perigosa. Quais são realmente as condições necessárias e suficientes para que tal sapateiro seja declarado um bom sapateiro, um verdadeiro sapateiro (se se reduz, com Aristóteles, a competência correta aplicação)? Onde encontraríamos esses critérios 3 No original: “Puisque leurs actions respectives sont pensées sur le même modèle (à cette différence près que l’homme – et bien sûr, il faut entendre ici l’homme libre, le citoyen athénien – se fixe lui-même ses fins, sous la forme de projet), leurs compétences respectives sont pensées sur le même modèle”.
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a não ser inscritos, desde sempre, sob a forma de sapateiro em si? Porque, para Aristóteles, não há como fazer diferença entre um julgamento descritivo e um julgamento normativo a respeito do trabalho: se tal sapateiro produz sapatos de má qualidade (sapatos que não respondem perfeitamente a todas as características esperadas de sapatos, o que, aliás, é percebido no fato e não no uso, elas não realizam perfeitamente a sua função esperada), então, segundo Aristóteles, nem esses sapatos e nem esse sapateiro estão de acordo com seus respectivos conceitos, se bem que são sapatos e sapateiro apenas no nome. No entanto, parece-nos que se tem em mente que, de acordo com Aristóteles, a forma pré-existente determina todos os aspectos da ação (seus meios, sua motivação, sua avaliação), percebe-se, de certa forma, a influência desse paradigma na convicção do engenheiro F.W. Taylor (provavelmente de boa-fé, uma vez que todas as evidências – dentro do paradigma – parecem ir por nesse sentido) que existiria sempre e necessariamente uma boa maneira de fazer e uma única, a melhor (the one best way) quando se é confrontado com esse ou aquele problema. Isto é, de fato, o raciocínio de Taylor: “Há muitas maneiras diferentes de fazer a mesma coisa, 40, 50 ou 100 talvez na mesma fábrica, e é por isso que há uma variedade de ferramentas para fazer o mesmo trabalho. Entre os métodos e as ferramentas utilizadas em cada operação, há sempre um método e uma ferramenta mais rápida e melhor que os outros. Eles podem ser descobertos somente após uma análise científica de todos os métodos e ferramentas usados pela oficina. Análise essa, com base num estudo minucioso e exato dos movimentos e do tempo.” (Taylor, 1927:33).
Para lembrar o critério de Dewey, encontramos, nesse trecho, o mesmo princípio de avaliação na perfeição da poièsis aristotélica. É que – tanto para Aristóteles como para Taylor (ou mesmo Clausewitz) – a forma do resultado virtual, que é o objetivo, determina, via dedução, não só todos os meios possíveis, bem como os critérios para a sua avaliação e a sua seleção. Então, aqui não há espaço para o pluralismo e o debate sobre as maneiras a percorrer, uma vez que esses são, todos, submissos a um mesmo critério universal – exaustivo e suficiente, ao mesmo tempo porque a avaliação é unidimensional e porque a situação de intervenção é
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abstrata, reduzida a uma árvore lógica – e que esse critério só pode apresentar as alternativas senão como deficientes. Novamente, a crítica construtiva de Dewey vai procurar apreender, na raiz, esse pré-julgamento duplo (a unidimensionalidade dos critérios e a suposta fixidez da situação) em uma tentativa de fazer avançar o princípio mesmo da prática de avaliação de um ato (notadamente profissional).
3.2. É a eficácia na qual o ato desabrocha no meio que faz a sua auto-validação (Dewey) O pragmatismo tem, muitas vezes, má reputação do ponto de vista da avaliação das ações. Interpretando mal a sua tese de que a verdade não pode ser senão o que funciona, taxamos os pragmáticos de relativistas. Todo princípio iria se tornar verdadeiro, pelo simples fato de que se retira dele uma conclusão eficaz – o que, aliás, é um erro de lógica, porque disso se pode sempre deduzir uma consequência verdadeira de um princípio errado. Suspeita-se mesmo de que são cínicos, dando a entender que tudo seria legítimo, contanto que o resultado o justifique retrospectivamente. Acreditou-se, finalmente, ver, no critério de eficácia uma negação do pluralismo dos valores como se pode supor, por exemplo, na expressão conotativa “ele é muito pragmático”, querendo significar que uma pessoa não se incomoda com princípios. Isso é um contrassenso um pouco paradoxal, porque a crítica de um Dewey, alguém evidentemente democrático, é especificamente dirigida contra a concepção aristotélica de avaliação, que teria a tendência de comprometer o pluralismo de valores, reduzindo tudo a princípios. A concepção de avaliação em Dewey nos parece partir da ideia de que qualquer juízo é um juízo normativo (considere, por exemplo: “é um verdadeiro sapateiro”), no sentido de que é um julgamento que se refere aos critérios. Ora, esses critérios são arbitrários, se eles ambicionam se aplicar à ação, sem terem sido desenvolvidos de maneira autônoma. É nisso que está a sua crítica ao aristotelismo: os critérios não devem preceder à ação, eles devem, ao contrário serem nela decididos. “A projeção das consequências [das nossas ações] significa uma solução proposta, uma solução de teste. (...) A solução sugerida (‘a ideia’ ou ‘teoria’)
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deve ser posta à prova na prática. Se produz algumas consequências, algumas determinadas mudanças no mundo, ela é aceita como válida. Caso contrário, ela é modificada e submetida a uma nova prova. O pensamento implica cada uma dessas etapas: o sentido de um problema, a observação das condições, a formação e a elaboração racional de uma conclusão sugerida e o teste experimental ativo. Ainda que todo o pensamento chegue ao conhecimento, o valor do conhecimento está subordinado, afinal de contas, à sua utilização no pensamento. Porque nós não vivemos em um mundo fixo e acabado, mas em um mundo que progride e no qual nossa tarefa essencial é prospectiva – um mundo em que a retrospectiva (e todo o conhecimento distinto do pensamento é retrospectivo) não tem valor apenas pela solidez, a segurança e o enriquecimento que ele proporciona a não ser a nossa maneira de abordar o porvir. “(Dewey, 1983:186).
Dewey sugere que o desenvolvimento multidimensional de uma existência em interação com seu meio fornece o critério interno para a avaliação de sua própria atividade. Aqui, por exemplo, são mencionados “a solidez, a segurança e o enriquecimento” de nossa experiência. Esses são os dois pressupostos aristotélicos tão criticados. Por um lado, é impossível definir critérios de avaliação a priori, porque a pertinência dos critérios vai depender da situação presente. É ilusório pretender que determinados critérios poderiam valer universalmente, em qualquer situação, visto que justamente, de acordo com Dewey, o que faz a legitimidade de um critério é a eficácia (por isso sua adaptação à situação). Ora, é uma contradição nos termos pretender ser adaptado a tudo. Então, no plano político, por exemplo, Dewey diz que o princípio democrático exige que hábitos sociais e formas institucionais, contratados em virtude de sua eficácia, numa dada situação, sejam periodicamente revistos, atualizados, submetidos a esse mesmo critério de eficácia – mas tendo em conta a situação presente. Por outro lado, a unidimensionalidade da avaliação – longe de ser uma fatalidade – é um efeito da antecedência dos critérios em relação à ação. O interesse de Dewey pelo princípio da eficácia não está apenas na sua performatividade (ele não precisa de nenhuma outra justificação do que ele próprio), mas especialmente sua fertilidade. Deixando cada um livre para submeter seus próprios critérios de
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avaliação à sanção do seu devir, na confrontação in situ, ele permite abrir caminho a práticas alternativas que, na verdade, não iriam subsistir senão na medida em que elas têm uma parte de verdade. Finalmente, uma terceira dimensão dessa renovada avaliação consiste na sua autonomia. Pois para Dewey, da mesma forma que a origem dos critérios de avaliação não deve ser procurada em outros lugares senão na atividade em si, da mesma forma a modalidade de aplicação desses critérios – avaliação prática em si – não deve ser exterior, supostamente imparcial. Autoavaliação é parte integrante da ação, sendo uma etapa constitutiva dela e é dela que se obtém legitimidade e sua segurança. A essas três novas características, pode-se objetar a ideia, que um tal modo de avaliação não pode senão confortar o ator em seus preconceitos, depois que sua grade de critérios funciona aí como uma profecia autorrealizadora (ou círculo hermenêutico, hipótese de interpretação que se auto mantém) – o que a priori não favorece o espírito crítico. Mas o argumento de Dewey consiste em antecipar o fato de que as mudanças contínuas do ambiente impõem adaptação, quer dizer, confrontam constantemente nossas grades de interpretação com suas próprias eficácias. O autor adianta que essa é a única garantia da relevância de qualquer interpretação. Isso é o que Dewey escolheu reter do princípio darwiniano da evolução exponencial pela seleção do mais apto a se adaptar, a cada vez, a essa ou àquela dada situação. Portanto, o que vale para nós é essa definição do agir em competências de acordo com Dewey? Ela é um pouco estranha, porque, em última análise, é apenas formal. A eficácia é um critério que nos reenvia constantemente a critérios mutáveis, definidos caso por caso – e pelo caso em si mesmo. Mas, sobretudo, ela não nos parece mais satisfatória do que a concepção aristotélica, porque tal concepção de competência não satisfaz as especificações ligadas a esse conceito. Qual é essa especificação? O desafio específico do conceito de competência é de poder servir de um espaço de encontro entre uma demanda de reconhecimento (por parte do
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empregado) e uma demanda de confiança, de responsabilidade então (por parte do empregador). Uma tal mediação passa pela estabilidade de um referencial de competências. Ora, criticando a rigidez dos critérios aristotélicos, Dewey insiste demasiadamente sobre o futuro mutável dos critérios de avaliação. O revelador desse excesso é que os critérios, tais como ele os entende, não só podem, finalmente, serem utilizados senão para autoavaliação. Mas, embora esse exercício seja útil, enriquecedor e mesmo indispensável, ele representa apenas a parte subjetiva (interpretativa) do ato de avaliação. Na ausência da outra parte (objetiva: os fatos dos atos, comparados às expectativas fixadas antes da missão), não somente a função de controle não pode operar, mas é, sobretudo, toda possibilidade de debate que fracassa com ela. Com efeito, sem um terreno comum onde confrontar os pontos de vista, sem fatos sobre os quais se fundar para confrontar as interpretações, as subjetividades se enfrentam em um face a face estéril e, muitas vezes, violento. Mais uma vez então, nós sofremos aqui com a ausência do conceito de norma – um terceiro neutro buscando um debate de pontos de vista.
3.3 É a graça com a qual se encontra espontaneamente a norma que beneficia a legitimidade ideológica (Bourdieu) Do ponto de vista da avaliação, o conceito de norma em Lévi-Strauss remete, sem dúvida à armadilha aristotélica. Imaginar que os indivíduos e os coletivos seguem um programa inconsciente não permite nem a menor modelização das atividades (adaptação ao novo), nem sua avaliação (além do permitido/ defendido). Aqui, novamente, o critério de ajuste se aplica. É por isso que a proposta de Bourdieu – de pensar as práticas em termos de estratégias, nos parece ter o interesse em revelar o quanto nossas ações, em um meio social, são atravessadas pelas normas, a ponto de que nenhum detalhe de sua operacionalização concreta não possa continuar inofensiva. Na verdade, sempre se vai gostar mais disso, ao invés daquilo – e tal discriminação não será apenas significativa, mas sendo julgada em relação a tal ambiente social, sendo relacionado a tal ou tal norma de avaliação.
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Já foi dito, o paradoxo estruturalista para pensar a norma sem normatividade (receptiva) conduz a uma interiorização de modelo esquemático, ao ponto de que ele nos parece falso. «Se o mundo social tende a ser percebido como óbvio (...) isso ocorre porque as disposições dos agentes – seus habitus, ou seja, as estruturas mentais, através das quais eles apreendem o mundo social – são essencialmente o produto da internalização das estruturas do mundo social. “(Bourdieu, 1987:155).
Também já foi dito que a possibilidade de modelização, que Bourdieu confere às normas, apresenta, no entanto, esse interesse (no que diz respeito à Lévi-Strauss) que permite, numa primeira aproximação, dar conta da forma como os julgamentos de competência utilizam as normas para avaliar um comportamento. Uma norma, na verdade, não funciona como um guia, ou como condicionamento. Ela é uma pedra de toque, uma referência, servindo-se do critério ou da fronteira para detectar uma diferença, para estabelecer uma distinção. “As representações dos agentes variam de acordo com sua posição (e os interesses que lhes estão associados) e, de acordo com seus habitus, como um sistema de padrões de percepção e apreciação, tais como estruturas cognitivas e valorativas que adquirem através da experiência sustentável de uma posição no mundo social. O habitus é, às vezes, um sistema de produção de práticas e padrões de percepção e apreciação do sistema de prática. E, em ambos os casos, suas operações expressam posição social em que foi construído. (...) É o que faz com que nada classifique alguém mais do que suas classificações.” (Ibid., 156-157).
Nós nos situamos bem aqui no cruzamento entre Aristóteles e Dewey. Contra Dewey e a favor de Aristóteles, Bourdieu mostra que são os referenciais, estáveis e comuns, que nos servem para avaliar as práticas. Mas contra Aristóteles e a favor de Dewey, Bourdieu mostra que esses referenciais avaliando a ação estão em um perpétuo devir, precisamente porque eles não se constituem num único referencial guiando a ação em si! Mas sente-se bem a diferença de tom. Ali, onde Dewey transbordava de otimismo e generosidade democrática, Bourdieu lança um olhar cínico sobre a prática da avaliação. Seu raciocínio parece, de fato, ter uma visão pragmática no mau sentido do termo. Ele considera que a
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avaliação está em tal continuidade com a prática que ela não é senão um meio de perpetuação, de reprodução. O interesse do pragmatismo de Dewey seria o de trazer toda a eficácia ao desenvolvimento de uma atividade que, tendo em si mesma um valor para a pessoa, iria conferir, dessa vez, valor eficaz às ações. Na análise da avaliação, de acordo com Bourdieu, pelo contrário, o mesmo princípio de performatividade dos critérios gira de alguma forma no vazio, porque serve apenas para reforçar uma posição em uma relação de força. “O mundo social apresenta-se como uma realidade altamente estruturada (...) mas os objetos do mundo social podem ser percebidos e expressos de diversas maneiras, porque eles sempre envolvem uma parte de indeterminação e fluidez e, ao mesmo tempo, um certo grau de elasticidade semântica: na verdade, combinações as mais constantes sempre são baseadas em conexões estatísticas entre traços intercambiáveis; (...) esse elemento objetivo de incerteza (...) fornece uma base para a pluralidade das visões do mundo, ligando à pluralidade de pontos de vistas; e, ao mesmo tempo, uma base para as lutas simbólicas para poder produzir e impor a visão legítima de mundo.” (Ibid., 157-159).
É o termo legitimidade que nos parece importante aqui. Em Dewey, avaliações são legítimas na medida em que elas são autônomas. Aqui, um julgamento depreciativo é legítimo quando ele é bem-sucedido – por um golpe de força simbólica – para dar o tom, ao se fazer passar por referência, presumindo ser a medida da legitimidade. Mais uma vez encontramos o limite da concepção de Bourdieu, que considera a norma como um fato tornado direito, ou seja, uma concepção que reduz “o que faz normas” aos “fatos de normas” – pretendendo, assim, conceber a norma sem normatividade (normatividade receptiva). O fato de que as normas de ação e as ações que fazem essas normas existirem sejam assim avaliadas enquanto comparadas a outras normas, lembra o princípio do relativismo cultural em Lévi-Strauss. Todo julgamento normativo, sendo relativo ao sistema de normas que usamos como critérios e toda norma sendo relativa a uma dada cultura, é ilegítimo – e – absurdo julgar uma prática fora do sistema
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de normas que é a expressão, fora a cultura onde ela ocorre. Mas a sociologia de Bourdieu pretende romper com o irenismo metodológico da etnologia. Na verdade, as normas são constantemente confrontadas a outras normas, a outros meios, e o essencial da vida social consiste nessas lutas simbólicas, onde o que está em jogo é o primeiro lugar (arbitrário) de quem fala por último. Diferentemente de Dewey, Bourdieu e Lévi-Strauss concebem a avaliação como um circuito fechado, onde as normas falam às normas, sem jamais se relacionarem com valores. É que esses dois autores consideram que não há nenhuma outra fonte de valor senão as normas arbitrárias, que se pretendem fundadas em direito e impõem artificialmente diferenças de valor. Sem dispor do conceito de normas, Dewey parece-nos ainda mais inspirado, quando ele relaciona a avaliação positiva de uma ação à fonte (único, de acordo com ele) do valor: automanutenção exponencial da atividade. Voltaremos a esse ponto. Mas a concepção de norma em Bourdieu apresenta ainda uma nuança crucial, que nos faz claramente avançar na construção do conceito de competência. Como havíamos dito anteriormente, a norma serve de referencial de avaliação. Sim, mas como? Uma norma representa o modelo ao qual o resultado deve corresponder, traço a traço (como foi o caso na ideia antiga de excelência)? De acordo com Bourdieu, isso não é tão simples. Lembramo-nos da célebre crítica que ele dirige a professores escrevendo de forma “demasiadamente acadêmica” na prova de um estudante: “A escola não exalta na “cultura geral” o oposto do que ela denuncia como uma prática escolar da cultura, naqueles cujas origens sociais condenam não ter nenhuma outra cultura senão aquela que eles devem à escola?’” (Bourdieu, 1964:33).
É que – por paradoxal que isso possa parecer na perspectiva de autores anteriores – a conformidade se torna, em algum grau, contraproducente, quando queremos ser declarados competentes. Bourdieu sugere não somente que os julgamentos de competência se voltem primeiramente sobre o domínio, sobre a facilidade na maneira de fazer, mas que a hipocrisia social de um julgamento de competência vem
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daquilo que se exige que a norma seja seguida do nada, sem que isso transpareça. A análise que Bourdieu faz da avaliação culmina, portanto, do conceito de graça: para ser declarado competente, em um determinado jogo social, é preciso dar a impressão de que não há necessidade da norma para responder às expectativas. A concepção de Dewey nos parecia insuficiente, porque ela implicava que, para ser competente, era preciso reinventar o prescrito a cada ação. No entanto, Bourdieu retifica de algum modo a análise. Para ser competente, deve-se, ao mesmo tempo realizar as estratégias sempre mais ou menos automáticas do senso prático e dar a impressão de reinventar, a cada vez, a norma! Além de sua conduta crítica, qual é então a contribuição conceitual de tal retificação? Um ponto positivo é que Bourdieu nos convida a nos perguntarmos o que se torna norma na ação, visto que sua aplicação literal é desconsiderada. Já mencionamos a dupla característica do conceito de norma, pelo qual ele responde. Para ser operacionalizada de uma forma que vamos qualificar como competente, a norma deve ser, às vezes, difratada e adaptada na ação. No entanto, apesar do seu interesse, o modelo da graça nos parece insuficiente, porque ele ignora um fato muito importante. Mais ainda do que domínio, é a responsabilidade do ator que sanciona o conceito de competência. Se precisamente o conceito de competência se distingue da graça, do brio ou ainda do gênio, porque ele é usado para designar – ao mesmo tempo que a facilidade do ator – a seriedade da qual ele faz prova, quando se trata das consequências (mesmo remotas) de suas ações. Ora, nós encontramos aqui a inspiração de Dewey e especialmente de Canguilhem (Canguilhem, 1980: 187-188). A responsabilidade, a coerência no que se refere às consequências de suas ações, são noções axiológicas. Em outras palavras, a avaliação não consiste apenas em trazer uma ação às normas: através dessas normas e assim, além delas, é com os valores (e à sua fonte, a relação com às outras) que a conformidade mais ou menos literal é finalmente relacionada. No entanto, essa ampliação, quanto à avaliação das práticas profissionais, transformou completamente o conceito de norma em relação à concepção estruturalista.
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3.4. É a reinserção da tarefa no serviço coletivamente realizado que lhe dá seu sentido e determina sua qualidade (a perspectiva ergológica) Para apresentar a hipótese que fizemos avançar quanto ao conteúdo do conceito de competência no plano da avaliação, vamos partir da distinção entre avaliar e controlar, proposta por Jacques Ardoino e Guy Berger (1986: 120-127). A conformidade do resultado com as especificações4 é uma condição necessária para a avaliação de alguém como competente. Mas está longe de ser uma condição suficiente, entretanto. De fato, essa comparação entre o resultado e o objetivo não corresponde senão ao que os autores chamam a etapa de controle. Uma tal comparação não é um juízo de valor, mas realmente um julgamento. O referente ou elemento comparativo (como dizem os gramáticos) é o fato do prescrito, são as especificações. O referido ou elemento comparado é o fato do comportamento, é a ação e o estado da situação depois da sua intervenção. O ponto de comparação, finalmente, é mera conformidade, ou seja, a adequação, a superposição. Um tal controle nunca é suficiente para um julgamento de competência, pois ele só pune atos ou os resultados dos atos – ao passo que julgamento de competência julga uma pessoa de acordo com seus atos. A avaliação propriamente dita, de acordo com Ardoino e Berger, é uma interpretação. Nós diríamos, de bom grado, que a avaliação de competência é uma dupla interpretação: interpretação da qualidade do ato (que, ela mesma, já não se resume à conformidade com as expectativas resultado do ato) e interpretação do nexo de causalidade entre o ato e o ator. A respeito desse último ponto, é fácil imaginar casos em que ato bem-sucedido (ou até mesmo um ato perfeito) não valoriza em nada uma competência de seu autor. Pode ser evidente que tudo tenha acontecido por acaso, ou que a pessoa tenha sido ajudada de forma excessiva, ou mesmo que o ato fosse tão básico (não importa a razão) que ela não teve nenhum mérito por ter sido bem-sucedida. Mas vai se hesitar também em declarar alguém competente, se ele executa o prescrito “ao pé 4 N.T. No francês, cahier des charges. Documento contratual que define as regras da execução de serviços. Ele foi elaborado por uma equipe projetista (prescrição) e deverá ser respeitado quando da realização das tarefas.
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da letra”, ou se ele faz seu trabalho com má vontade (sobretudo se ela é óbvia). Aqui nós ousamos mais que a análise de Bourdieu. Não se trata apenas de uma facilidade que pune o juízo de competência, mas é também, uma motivação e uma presença da pessoa (no sentido de: ser voluntário ou ser responsável). Aqui, toca-se, ao mesmo tempo em todo problema e em todo desafio do conceito de competência. No que diz respeito a Dewey, nós havíamos evocado as especificações ligadas a esse conceito. A definição de seu conteúdo deve permitir à competência (se se consideram as coisas no plano da avaliação) desempenhar apenas o papel de intermediário, entre a demanda de reconhecimento do funcionário (ser reconhecido como um status) e a demanda de garantias por parte do empregador (sob a forma de certificação, qualificação, recomendação, etc.). Ou poderia ser tentador dar ao conceito de competência um conteúdo estritamente objetivo, que faça desaparecer o debate entre essas duas demandas – que ele coloque todo mundo de acordo apresentando fatos que não evocariam nenhuma resposta. Mas tal pretensão confunde a avaliação e o controle, na tentativa de desacreditar o primeiro sobre o segundo. Portanto, a integração ao conceito de competência para ter em conta os motivos e as motivações do ator pode ser chocante aos olhos de um objetivista ortodoxo, é muito mais do que um mal menor: trata-se de uma oportunidade de progresso em uma avaliação mais justa. Parece-nos mesmo que esse é o desafio e a oportunidade que a passagem da qualificação à competência representa. Acreditamos que se ele vai até o fim de suas especificações, o conceito de competência pode se aproximar da atividade de trabalho de uma maneira muito mais justa (em todos os sentidos da palavra) do que o da qualificação. Retomemos, por um instante, a distinção entre controlar e avaliar, para aplicá-la a um objeto. No final de uma linha de montagem, uma máquina pode controlar totalmente a conformidade dos produtos aos padrões de peso, forma e tamanho. Para avaliar a qualidade do produto, por outro lado, deve-se convocar uma pessoa – não por falta de padrões, mas em razão da maneira aplicá-los. Pode-se, com efeito, em uma lista de critérios, descrever completamente os atributos que um produto deverá apresentar, para que sua aparência seja percebida como desejá-
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vel. Mas, uma vez que esses critérios estejam no papel, não se pode pedir a um computador para avaliar a aparência do produto, a atração que é susceptível de causar ao consumidor. É que esses atributos e critérios são normas: é preciso passar pelo julgamento de um especialista em marketing, que, de uma maneira ou de outra, vai procurar “se colocar na pele” do cliente, para estimar a atratividade do produto. Isso não é exatamente uma ciência exata, porque nós reconhecemos bem a indefinição característica do léxico: o zumbido da tendência, etc., que agora é exportado para todo lado. Essa digressão é útil para mostrar que, se existem casos onde o controle é suficiente por si mesmo, esses casos são extremamente raros. Na grande maioria dos casos, o controle é um momento de avaliação e não é suficiente por si só. Quando dizemos, neste instante, que a irredutibilidade da avaliação ao controle não era um mal menor, mas uma chance, considerando motivos e motivações – ainda longe de diminuir a objetividade da avaliação – é que aumenta essa objetividade desde que não se dê a esse termo sentido restrito e restritivo. Na verdade, existem dois significados da palavra objetividade: o sentido científico e o senso comum. O sentido científico está muito bem resumido pelo título de um livro do filósofo analítico Thomas Nagel: A objetividade é o ponto de vista de lugar nenhum. O objetivismo é essa doutrina (ou esta ideologia) que sustenta que os fatos sempre falam por si, e que se deve, por conseguinte, opor a eles opiniões (consideradas em bloco), que todas são, enquanto opiniões, válidas. Com Bachelard, Canguilhem, acreditamos que esse ponto de vista “do nada” é assintomaticamente alcançado pela ciência através de sua história. Todo método de objetivação, a ruptura epistemológica, consiste em purificar sempre os fatos, purificá-los de preconceitos relacionados à nossa experiência e à nossa existência – esta purificação se dá através da explicação das hipóteses nos princípios de uma teoria, submetida a críticas. Na medida em que essa objetividade constitui gradualmente os fatos, ela não está submetida senão a um controle experimental. Nenhuma avaliação pode pretender esse estatuto, a objetividade compreendida nesse sentido. Por outro lado, o segundo sentido do termo (senso comum) é sinô-
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nimo estrito de imparcialidade. Quando nós nos esforçamos para permanecermos objetivos em nossa avaliação, é que fazemos um esforço para subtrair dos nossos julgamentos de valor a sua quota de unilateralidade, de simplismo. A objetividade, nesse sentido, é o horizonte (novamente) de uma compreensão da complexidade do real, que iria reunir todos os pontos de vista. E, como os todos os pontos de vista seriam representados, nem todos eles valeriam, dado que haveria aí todos os graus de pertinência – desde um nível zero de autocrítica até o pensamento o mais problemático pensamento. Essas duas formas de objetividade, então, funcionam uma ao contrário da outra: a primeira exclui ali onde a segunda inclui qualquer ponto de vista: a primeira é apodítica (ela progride por confirmação de certeza), a segunda é problemática (progride pelo aprofundamento de questões de uma complexidade sempre inextricável. Ora, uma avaliação que pretendia se prender exclusivamente à primeira forma de objetividade constrange a pessoa avaliada, porque ela não reflete com precisão a maneira como a pessoa se revelou em seu ato. Já foi dito, o julgamento de competência está baseado em uma inferência das propriedades do ato àquelas do ator. Se essa inferência se contenta com uma visão unilateral da relação de causa e efeito entre o ator e seu ato, é inevitável que o julgamento seja parcial – e mesmo sendo parcial, favoreceria ilegitimamente um certo tipo de saber-fazer inútil ou prejudicial, no emprego ou na formação a que essa avaliação dá acesso (sonha-se, por exemplo, com o acesso ao curso de medicina por meio da realização de provas de múltiplas escolhas como condicionante). Intencionando, então, uma objetividade absoluta, essa redução na avaliação de controle trai a exigência de objetividade, no sentido habitual. No entanto, levando em conta os motivos e as motivações, não é um mal menor, mas um bem. É que, sob determinadas condições específicas – ela vem corrigir no sentido de uma maior objetividade, o que pode ter de insuficiente todo controle. Questionar os motivos e motivações de uma ação que se tenta avaliar é mais geralmente interrogar o ponto de vista do ator, no sentido canguilhemiano do termo: o
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posicionamento que a pessoa mantém na presença da norma, que guiou a sua ação. Assim, logo depois de ter apresentado sua dissertação, um estudante é convidado a defender o que escreveu, esses dois momentos representam, respectivamente, o controle (o domínio das noções da coerência de seu discurso, etc.) e a avaliação. Nesse segundo tempo, a arguição não é tanto sobre o conteúdo do trabalho e (já apresentado na produção escrita), e é mais sobre o confronto de pontos de vista sobre esse conteúdo, entre o candidato e a banca de avaliação, a fim de dar ao ato de pesquisa o relevo do que está em jogo. Podemos ver que, se o controle quase nunca é autossuficiente, a avaliação não pode ser feita sem o tempo de controle. Se não há nenhum fato, objeto, norma sobre os quais analisar os pontos de vista, a pretendida avaliação não é senão um confronto de opiniões sem tarefa comum, nem horizonte comum de verdade. A problematização, então, se vira para o vazio, para a ausência de um engajamento sobre os fatos contraditórios de uma situação real. Se sairmos do campo da educação para se entrar no mundo do trabalho, a complementaridade entre controle e debate, para compor a avaliação justa, é ainda mais necessária pelo de os critérios não terem mais a exclusividade relativa da cientificidade. Avaliar uma pessoa como competente cruza os numerosos critérios que figuram nos referenciais da competência. Na medida em que esses critérios são conhecidos pela pessoa avaliada antes de seu período de avaliação, eles funcionam como o elemento comparativo factual, ao qual serão comparados, então, os fatos da atividade da pessoa e do seu resultado. Esse é o primeiro momento de controle. Ele tem um valor em si mesmo e vai servir como uma pedra de toque no segundo momento. Não desagradando a Aristóteles, esse controle ainda não é suficiente quando se avalia a competência de uma pessoa. O momento da avaliação propriamente dita vai consistir no debate dos pontos de vista sobre o sentido a dar a essa relação nova estabelecida entre prescrito e trabalho real – relação que dizemos consistir a priori em uma ‘superposição’ entre o objetivo e o processo/ resultado. Essa segunda etapa é necessária, precisamente porque não seria nem desejável nem satisfatório que essa relação se revele, efetivamente, apenas como uma adequação. Com efeito, da mesma forma, o avaliador irá procurar entender
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como o prescrito “fez norma” para a pessoa avaliada, prevendo seus motivos e suas motivações, da mesma forma será conduzido (a fazer isso) a apresentar seus referenciais de competência, reescrevendo-os na perspectiva do seu sentido – ou seja, de seus motivos e motivações. Uma grande parte desse momento de avaliação (de debate) do julgamento de competência vai consistir, de fato, em estudar como os motivos e motivações de um penetram nos do outro. Especificamente, vai se tratar de relatar a distância ou a obediência literal da pessoa com relação à norma antecedente, vai se tratar da maneira pela qual ela escreveu seus próprios motivos e motivações com aqueles que a norma incorporava. Na linguagem a que seremos levados a apresentar no terceiro capítulo – a sobreposição dos dois triângulos “ofício, emprego, trabalho” e “tarefa, serviço, esforço “ – nós diríamos que, na avaliação propriamente dita, o julgamento de competência estuda como a tarefa foi reinvestida no serviço – senão que a norma antecedente (definindo uma tarefa genérica) foi alterada em seu próprio sentido (no sentido da direção do requisito que ela serve), de acordo com as solicitações da situação singular: e, inicialmente, do significado desse emprego para os outros, tanto os clientes como os colegas, na realidade humana considerada. Para resumir, diríamos que Aristóteles fez consistir a competência na integração a mais completa da racionalidade da forma de ação para o ator. Dewey a faz consistir, ao contrário, na reinvenção total – aqui e agora – na forma do projeto, na fusão mútua dos fins e os meios na dinâmica da existência da pessoa. Finalmente, Bourdieu negocia um estranho compromisso entre essas duas posições simétricas: a competência consiste em ter êxito em fazer passar os próprios interesses para a racionalidade prática (a visão de mundo legítimo), com a qual é preciso doravante julgar as competências. Acreditamos que a avaliação da competência expressa um juízo normativo sobre a maneira como o ator interpretou o que era essencial na norma antecedente (o referencial de competência), para alcançar, o mais próximo possível, esse espírito essencial em função de um outro essencial – o da situação. Essa ligação de dois essenciais (o da tarefa e o do serviço) é feita através do ponto de vista do ator – no
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sentido em que esse relaciona uma grade de hierarquização para fatiar os conflitos de prioridades, que ele vai encontrar no equilíbrio interno do seu corpo-si. Finalmente, o julgamento de competência avalia como a realização do prescrito, através das exigências da situação, manteve-se fiel ao espírito da primeira, levando em consideração o sentido dos segundos. Então há debate porque, em um julgamento de competência, a carta da norma antecedente é sempre relacionada com o espírito em que ela foi elaborada. No entanto, essa significação, desenvolvida em desaderência, não pode não ser objeto de um contrassenso, se a pessoa se contenta em aplicá-la in situ ainda que aconteça. De fato, se bem que ela tenha sido decidida em desaderência, o sentido da norma antecedente deve ser tratado em aderência, quer dizer confrontado aos desafios da situação. Essa relação (onde um sentido julga o outro e reciprocamente) é complexa: é a “dramática do uso de si” (Schwartz, 2000:293) no debate de normas, entre as normas antecedentes e as normas constitutivas da situação presente. Ela pode ser, portanto, fatiada em um grande número de diferentes maneiras (que devem ser avaliadas de forma multidimensional) e pode dar origem a tantas muitas formas de insuficiência (não respeito às obrigações, desleixo com as expectativas do cliente, hesitação prolongada e, finalmente falsos compromissos, etc.), como também a numerosas soluções engenhosas e elegantes. É que o julgamento de competência – por ser normativo – é, ao mesmo tempo qualitativo e aberto. Sempre acontece que o debate de normas é fatiado (já o dissemos) de forma em parte consciente e em parte inconsciente – mas em ambos os casos, em referência a ordens de prioridades que constituem o ponto de vista axiológico do corpo-si em si mesmo. É nesse sentido que estamos trabalhando com tudo o que somos. Como todos os nossos atos, nossas atividades de trabalho se assemelham a nós, porque a maneira como nós resolvemos as restrições duplas reflete a maneira em que a “tabela de valores” (Canguilhem, 2005:117) própria ao nosso corpo se tornou um compromisso com eles.
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Eis, pois, porque o julgamento de competência ganha em objetividade (em imparcialidade) e pertinência, quando ele recontextualiza a adequação entre atos, resultados e referenciais, na complexidade dos motivos e das motivações, tanto da norma quanto da pessoa. Essa objetividade pretende ser tão justa quanto possível. Como um ser de atividade, cada um tem as suas razões, sem ter necessariamente razão. No entanto, nem a conceitualização de Bourdieu nem a de Dewey permitem fazer esta distinção crucial: para o primeiro só existe a lei do mais forte, para o segundo, existe apenas a autonomia, no sentido mais solipsista; se bem que cada um não possui a universalidade de um critério para decidir razoavelmente (aqui: “ter razão”). Por sua vez, Aristóteles e Taylor pecam pelo extremo oposto. Eles consideram apenas uma universalidade unilateral do critério puramente racional: razão teórica, filosófica para Aristóteles (conhecimento das essências); razão de calculadora da gestão para Taylor. Como muito bem assinalou Philippe Meirieu (1991:76), as teorias atuais de comunicação – pós-kantianas ou aquela desenvolvida por Habermas, por exemplo – m ostram que é possível prever a universalidade de um critério de juízo de valor, não mais como condição a priori que deve preceder o debate, mas, como um horizonte, que faria o consenso entre os interlocutores interessados que concordam em discutir. Essa consensualidade do acordo (mesmo tácito, pelo simples fato de aceitar serve para discutir) como uma base para discussão, que pode ser usada como critério universal formal, de pedra de toque para separar o ilegítimo (o que dificulta a discussão) do legítimo. Sem necessariamente levar em conta a concepção de comunicação de Habermas, é o caminho que se abre e a direção que ele mostra que reforça a ideia de que a reunião dos dois exemplos de avaliação (controle, em seguida, o debate) permite construir um juízo normativo e axiológico justo – quer dizer nem arbitrário (confronto de opiniões sem outros neutros da norma antecedente para desempatar), nem redutora (reduzir a avaliação a um juízo de fato objetivo – por exemplo, a medida quantitativa da produtividade).
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4. Formar 4.1. Cultivar as disposições adquiridas, hábitos é atualizar as capacidades (Aristóteles) A distinção entre o inato e o adquirido passou à língua corrente há muito tempo. A distinção entre os dois é clara. Há mesmo uma separação precisa, um dualismo – embora algumas formas de discurso ainda cultivem a ambiguidade: o dom, o gênio (do latim engenium: as qualidades inatas), etc. A priori, quando ela utiliza o conceito de competência, parece-nos, então, evidente que a formação, e especialmente a formação profissional, diz apenas respeito ao adquirido, sem consideração a respeito do inato. No entanto, não é tão simples nas práticas, precisamente por causa da teoria da ação, subjacente em nossos usos correntes do conceito de competência. Essa teoria da ação que desliza do inato ao mais profundo do adquirido, nós a herdamos novamente de Aristóteles. A teoria aristotélica da ação é, na verdade, fundamentalmente caracterizada – sobre o plano da formação dos saber-fazer e dos saber-ser; hoje diríamos das competências – por meio da dupla conceitual “capacidade inata/disposição adquirida”. Também para nós, a distinção é a priori clara em Aristóteles. Basta considerar os exemplos que o autor apresenta. Um sentido como a visão é uma capacidade porque é inata, natural, própria à espécie à qual pertence o sujeito. Uma virtude, como a coragem, é uma disposição porque é adquirida, é um hábito (hexis), que acabou por se tornar para nós uma segunda natureza. Capacidade e disposição funcionam assim numa ordem cronológica inversa. Para ver alguma coisa, é preciso possuir a visão (e isso é parte da natureza, a essência da espécie); já para possuir uma virtude como coragem, é preciso já ter realizado ato de coragem. Daí a frase: é forjando que nos tornamos ferreiros. A competência não é, pois, uma capacidade, mas, sim, uma disposição, porque a desenvolvemos ao longo do tempo, pela força da ação (de errar e acertar) em suma: adquirindo experiência. Mesmo se são competências morais e políticas que interessam (a famosa prudência, na praxis), Aristóteles faz compreender
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como ele modela as disposições ao tomar profissões artísticas: não se nasce citarista, torna-se citarista ao tocar cítara. Até aqui, a distinção é clara. Mas, na prática, a ideia ainda assim fere o senso comum: como se pode forjar sem já ser ferreiro? Como é que vamos começar a forjar antes de ser (pelo menos um pouco) ferreiro? Muito sensível a este paradoxo Aristóteles vai considerar o seguinte raciocínio para recolocar, de alguma forma, o modelo de aquisição de competências: “Em geral, tudo o que tem uma dada natureza não saberia se acostumar a se comportar de outra forma. Assim, não é nem pela natureza nem, então, contrariamente à natureza que nascem em nós as virtudes, mas a natureza nos deu a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é levada à maturidade pelo hábito. Com efeito, para todas as coisas que ocorrem em nós por natureza nós as recebemos de início em estado de potência, e é mais tarde que nós as fazemos passar ao ato – como é evidente no caso de faculdades sensíveis (porque não é depois de uma infinidade de atos de visão ou de audição que adquirimos o sentido correspondente, mas é o oposto: já tínhamos os sentidos antes de usá-los e não é depois de ter usado que os tivemos). Mas para as virtudes, ao contrário, possuí-las supõe um exercício anterior, como é também o caso para as outras artes. Efetivamente, as coisas que são necessárias ter aprendido para fazê-las é fazendo que as aprendemos: por exemplo, é construindo que nos tornamos construtores, e tocando a cítara que nos tornamos citaristas. Da mesma maneira, é praticando ações justas que nos tornamos justos, é praticando ações moderadas que nos tornamos moderados, e por ações corajosas nos tornamos corajosos. (...) Na verdade, se não fosse assim, não haveria necessidade do mestre, mas seríamos sempre, de nascença, bons ou maus em nossa arte.”
Nessa passagem, Aristóteles reafirma a distinção entre uma capacidade inata como a audição e uma aptidão adquirida como uma construção. Mas ao mesmo tempo e sem dizê-lo, ele utiliza um segundo sentido do termo capacidade. Com efeito, para evitar a redução ao infinito do tipo: para forjar é preciso ser ferreiro, ou é somente forjando que se começa a ser ferreiro. Aristóteles precisa: nós só podemos desenvolver tais ou tais disposições se “a natureza nos tenha dado a capacidade de recebê-los”. Em relação ao inato, as capacidades reagrupam as ações que somos imediatamente capazes de fazer (como para a visão, sendo que
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basta abrir os olhos, se eles estão funcionando). Ora nas aquisições, há também capacidades – mas dessa vez o termo designa a possibilidade de contrair um hábito, o poder (no sentido do poder mágico) de desenvolver, um dia, uma qualidade (ou, até mesmo, seu defeito contrário). Em Aristóteles, esse segundo sentido da capacidade é tão inato quanto o primeiro. É a nossa natureza (nossa essência) que, desde sempre, define aquilo de que somos capazes ou não. Em certos casos, isso é bastante evidente: Aristóteles pensa que a capacidade de desenvolver a disposição para tocar cítara é de possuir mãos que funcionam. Em outros, trata-se de muito menos: “E a natureza quer marcar nos corpos a diferença entre homens livres e escravos: os corpos dos últimos são robustos, aptos aos trabalhos indispensáveis; os dos outros são destros e ineptos para tais tarefas, mas cuja natureza é adaptada à vida política” (Aristóteles, 1993:102). Seria necessário que o autor considerasse também a situação inversa (que homens livres tenham corpos de escravos e vice-versa), e isso nos lembra que a capacidade, no sentido da predisposição, não é uma necessidade mecânica, mas, sobretudo, uma opção numa gama pré-definida. A ideia aristotélica que parece ter permanecido no senso comum é, então, a seguinte: todo estado atual (de uma coisa ou de uma pessoa), que resulta de uma transformação, de uma mudança, de uma modificação, não pode “já ter estado lá, desde sempre”, virtualmente, de uma forma latente – porque nada pode surgir do nada de nenhuma parte. Na natureza íntima de um ser (sua essência eterna), Aristóteles inscreve, então, de antemão tudo que lhe será possível fazer e se tornar. O conjunto constitui a lista de suas propriedades em potencial. O desenvolvimento das disposições adquiridas será, portanto, a atualização do que já está lá, em germe – quer dizer – literalmente – a passagem da potência (potencial) ao ato (atual). Claro, hoje não se diz mais: é um criminoso em potencial! E, contudo, ainda se diz às vezes: é Mozart que assassinamos! Lá onde Aristóteles via uma forma biológica, vemos, frequentemente, uma condição social. É um pouco como se a trajetória de uma pessoa consistisse para ela em seguir uma ou outra opinião predefinida. Por que se utiliza, ainda tantas vezes, o léxico do virtual (potencial,
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aptidão, recursos, etc.), quando se fala a respeito de um estudante em dificuldade embora ele tenha capacidades? De fato, parece que, em geral, sentimos o mesmo desconforto que Aristóteles diante da falsa alternativa entre (por exemplo): seja ter arquitetura infusa, seja reinventá-la num golpe de inspiração. Mas, como ele, mais do que dar um passo para trás, recusando a formulação mesma desse falso dilema, saímos do impasse por um misto de duas proposições. A disposição desenvolve uma capacidade que, entretanto, se torna uma simples opção. Mais uma vez, o interesse do debate com essa concepção introduzida por Dewey é que ele se dá, como aposta, modelar (e praticar) a formação sem recorrer ao registro do virtual, ou seja, sem pressupor, em nenhum momento, que o que precisa ser desenvolvido já está lá, sob uma forma latente. Mas, novamente também, por falta do conceito de norma, esta visão pragmática peca inversamente pelo excesso, se bem que ela não pode esclarecer os desafios e a direção da próxima superação (aquela do reducionismo estruturalista).
4.2. É o crescimento do ator em sua interação com o meio que forma todo seu devir (Dewey) O desafio que se coloca Dewey é claro. Trata-se de modelar e de favorecer a aprendizagem sem utilizar o léxico do virtual, porque para um pragmatista só existe o que já é efetivo, atual. A propósito da operacionalização ou enquadramento da ação – portanto da inteligência (o pensamento) mobilizada e desenvolvida pela interação com o real – já havíamos evocado a dimensão formadora que Dewey reconhece na ação. Em sua perspectiva, de fato, a modificação mútua dos dois polos da interação (ator e ambiente) é constitutiva da regulação permanente da ação por ela mesma. Agir de certa maneira, durante um certo tempo, vai mudar minha relação com meu ambiente. E isso muda a maneira como o percebo – e como me apresento a ele. É, nesse sentido, que Dewey dirige a metáfora biológica do crescimento, para opô-la (como uma alternativa de fundo) ao modelo aristotélico da atualização: “Há uma concepção de educação que pretende se fundar na ideia de desenvolvimento. Mas ela toma com uma mão o que ela dá com a outra. O desenvolvimento
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é nela concebido não como um crescimento contínuo, mas como a atualização das potências latentes em uma direção determinada. O objetivo a alcançar é concebido como qualquer coisa de completo e de perfeito. Considerada em qualquer etapa, antes que alcance o objetivo, a vida é apenas um processo de atualização que nela se estende. (…) A concepção, segundo a qual o crescimento e o progresso não são senão etapas sobre um objetivo fixo último, revela uma fraqueza de espírito em sua passagem de uma compreensão estática a uma compreensão dinâmica da vida. (…) Já que o crescimento é apenas [de acordo com essa concepção] um movimento em direção a um ser completo, o ideal último é imóvel. É no reino de um futuro abstrato e indefinido, com tudo o que isso implica, quer dizer, a depreciação das capacidades e das ocasiões presentes.” (Dewey, 1983: 79-80).
Essa alternativa conserva a noção aristotélica de aquisição (que ainda guardamos): as disposições adquiridas são hábitos de pensar, de agir, que trazemos quando de nossas interações passadas. Mas Dewey reinterpreta essa ideia para deslocá-la de toda a mitologia das capacidades: “[No modelo de crescimento] a maleabilidade – ou faculdade de aprender pela experiência – permite a aquisição dos hábitos. Os hábitos permitem dominar o ambiente, utilizá-lo para fins humanos. Os hábitos tomam a forma seja da habituação ou equilíbrio geral e constante das atividades orgânicas com o ambiente, seja de capacidades efetivas de readaptação da atividade a novas condições. A primeira fornece o segundo plano do crescimento, a segunda constitui o crescimento. Os hábitos ativos fazem apelo ao pensamento, à invenção e à iniciativa na aplicação das capacidades a novos fins. Eles se apõem à rotina que detém o crescimento” (ibid., 76).
Dewey utiliza o termo capacidade. Simplesmente o autor está atento em não mais considerar as capacidades tendo em vista o modelo (implícito) da acepção técnica, trivial dessa palavra: o limite do volume que pode ser estocado em um recipiente. Abandonar a ideia mesma de virtualidade lhe permite assim não mais pensar as disposições como as diferentes opções à disposição da pessoa, opções estocadas no espaço delimitado por suas capacidades. E o argumento de Dewey é significativo. É em razão de o ator estar em devir que ele é transformado em suas ações – ações que são, para ele, seu esforço para existir no ambiente real. Ou em razão de ele estar em devir, ninguém sabe do que é capaz um ser de atividade – nem ele
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mesmo. Vemos, a rigor, de onde ele parte e qual direção toma sua trajetória, mas isso dificilmente se abre para uma previsão. A ideia de maleabilidade expressa essa tentativa de pensar de outra forma nossos hábitos. É como uma dobra que toma a forma, de início indiferenciada, de nossa atividade global e espontânea. “Considerar a dobra” seria, portanto, a reinterpretação pragmática da disposição, uma reinterpretação que a torna independente daquela capacidade (virtual). A ideia parece-nos interessante, porque ela consiste, no fundo, em reinscrever a pessoa de uma parte em seu devir – e de outra parte em sua trajetória (lá onde ela está). Reinscrever alguém em seu devir é reconhecer que nada é definitivo. Como bem disse Dewey: “O ponto de partida de todo processo de pensamento é alguma coisa que se está fazendo, qualquer coisa que, no estado, é incompleta ou inacabada. Seu sentido, sua significação residem no sentido próprio do que vai se tornar, portanto, na maneira que vai evoluir” (ibid., 181).
Esse primeiro tempo lembra assim ao formador que é inteiramente questionável predizer o que uma pessoa não poderá jamais fazer. Pelo contrário, reinscrever a pessoa na sua trajetória, portanto, na temporalidade desse devir (seu ritmo, sua duração, ou seja, o tempo que isso toma, de tornar-se); isso permite pôr em palavras as incapacidades, as impossibilidades em agir. De fato, o tempo não é somente a abertura do devir, ele é também a duração incompressível (que se percebe na espera ou no tédio, por exemplo). No entanto, é o sentido do conceito de duração em Bergson – ninguém pode pretender ter acesso a um estado de coisa, sem passar pela sequência contínua de todas as mudanças que fazem esse estado. Imaginar a ação como projeto, isso fixa um estado ideal e a articula a etapas lógicas. Mas tudo isso se concebe como abstração feita de tempo – ora, as noções de possível, impossível, capacidade, incapacidade são eminentemente relativas à duração da ação. Reconsiderando o tempo real, Dewey consegue livrar a competência (no sentido de disposição adquirida) do pressuposto da capacidade virtual. O dilema de
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Aristóteles estava, na realidade, mal colocado. Dizer que é impossível que uma competência nasça do nada é raciocinar exclusivamente sobre o plano das relações lógicas (de onde aliás a solução, que consiste em supor que certas coisas existem de acordo com a modalidade lógica do possível). Ora, desde que com Dewey fazemos o esforço de estudar a situação concreta, percebe-se que o tempo tem aí um papel essencial, tanto construtivo (a constituição de uma experiência) quanto restritivo (a urgência de um tempo inexorável e dos prazos que se aproximam). Mas se a ruptura que ela introduz é efetivamente decisiva, a alternativa de Dewey nos parece ainda insuficiente. Ela abandona, de fato, certos aspectos do saber na ação (saber-fazer, saber-ser), da qual a teoria aristotélica da disposição se esforçava em dar conta. É bem atual, por exemplo, a possibilidade de definir os perfis, visados pela formação (que será sancionada em relação a esse objetivo); o papel dos saberes formais (teóricos) na formação profissional; e a relativa estabilidade dos formulários dos postos de trabalho no tempo, etc. Dewey parece-nos ter visto bem que a atividade é uma imersão na situação (e no seu ritmo), mas negligenciou o fato de que as situações são sempre regradas por normas antecedentes anônimas – que, portanto, têm necessidade para desempenhar seu papel estruturante, de aparecer, pelo menos no primeiro tempo, como precedendo absolutamente a situação (vale dizer, assumir uma temporalidade incomensurável).
4.3. É a prática do jogo (aculturação) que nos faz incorporar, interiorizar as regras (Bourdieu) Até certo ponto, o conceito de norma em Bourdieu se abre a um conceito de competência mais fecundo que o de Dewey, por pensar, especialmente, a dimensão da formação dos atos. De fato, contrariamente ao pragmatismo, o sociólogo modeliza em detalhe a maneira como se faz a adaptação do comportamento à variabilidade do meio. Do ponto de vista da potência e da utilidade teóricas, seus conceitos de práticas e estratégias têm assim a vantagem de mostrar como uma ação nunca é espontânea, no sentido de que ela não obedeceria a nenhuma regra,
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mas que, em revanche, há sempre uma margem de adaptabilidade que acompanha a regra (de maneira que ela não esteja jamais fora do contexto). Mas essa precisão – que releva, portanto, da competência no plano da implementação (o enquadramento, na nossa tipologia) – lhe permite, ao mesmo tempo propor uma hipótese sobre a maneira como a experiência é formadora. Seu raciocínio é o seguinte: se uma norma social funciona como um tema, susceptível de se difratar em várias variações, deve ser possível, então, inferir o tema uma vez que temos percebido suficientemente variações. E, uma vez que assim inferimos o tema, podemos, nós mesmos, apresentá-lo em variações melhor adaptadas a tal ou tal situação sem ter jamais por isso encontrado essas variações. É de fato a Wittgenstein que Bourdieu toma emprestado este modelo, porque Wittgenstein é um pragmático bem particular – um pragmatista de regra. Assim, Bourdieu, de um lado, ultrapassa Lévi-Strauss por sua visão pragmática e de outro lado, ultrapassa Dewey por seu conceito de norma. Pelo contrário, naquilo que Wittgenstein considera que a norma é uso (no sentido linguístico, certamente, mas também no sentido da tradição), Bourdieu retoma Aristóteles e sua teoria das disposições. Na verdade, a célebre definição “o hábito é uma segunda natureza” é uma paráfrase de Aristóteles. Esse último, que falava do hábito, descrevia com essa fórmula a maneira como as disposições adquiridas, uma vez plenamente atualizadas, se implementam de forma tão imediata quanto as capacidades inatas. Esse cruzamento de modelos permite a Bourdieu insistir que essas adaptações (essas variações sobre um tema) são inconscientes – as famosas estratégias sempre mais ou menos automáticas do sentido prático. Com Wittgenstein, as regras do jogo da linguagem (2004:73) se formam ao longo da atividade intersubjetiva, para permitir a comunicação – nesse sentido, elas não são nem conscientes nem inconscientes, exatamente como as operações que efetuamos para levantar o braço para acenar para alguém. Com Bourdieu, elas tomam um sentido estruturalista. A metáfora lúdica, salvo pequenas diferenças, é utilizada da mesma maneira pelos dois autores: ela serve para modelizar a aprendizagem da norma, como uma incorporação progressiva pela força da participação.
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“O bom jogador, que é, de algum modo, o jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção permanente, indispensável para se adaptar às situações indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idênticas. O que não garante a obediência mecânica à regra explícita, codificada (quando ela existe). (...) O sentido do jogo (...) é perfeito, exceto nas situações trágicas, quando então se apela aos sábios, que, em Cabília, em geral também são poetas, e sabem tomar liberdade com a regra oficial, que permite salvar o essencial daquilo que a regra visava a garantir. Mas essa liberdade de invenção, de improvisação, que permite produzir a infinitude de lances possibilitados pelo jogo (como no xadrez), tem os mesmos limites do jogo. As estratégias adaptadas quando se trata de jogar o jogo do casamento cabila (...) não conviriam no caso de se jogar o jogo do casamento beamês” (Bourdieu, 1987:79). “Nada é simultaneamente mais livre e mais coagido do que a ação do bom jogador. Ele fica naturalmente no lugar em que a bola vai cair, como se a bola o comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola. O habitus como socialmente inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades e de exigências objetivas; as coações e as exigências do jogo, ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se àqueles e somente àqueles que, por terem o sentido do jogo, isto é, o senso da necessidade imanente do jogo, estão preparados ·para percebê-las e realizá-las”. (Ibid., 80) (Ibid., 82).
O deslocamento permanente que Bourdieu opera aqui entre o ato e ator (“o jogo feito homem”, os jogos de espelho entre o jogador e a bola) é representativo, simultaneamente, do que o conceito de norma permite doravante pensar – nossos atos nos constituem tanto quanto nós constituímos nossos atos – e do que faz a especificidade do conceito de competência: é uma pessoa (e não seu ato) que é competente, mesmo que seja apenas após seus atos que se vai poder declará-la como tal. Qual é então o aporte específico de Bourdieu quanto ao conceito de competência em seu componente de formação? É, parece-nos, o modelo do esquema, que Bourdieu retoma de Kant para dar-lhe uma interpretação em termos de normas sociais (já que as normas funcionam também, e talvez em primeiro lugar, como referências cognitivas). Em Kant (2001:224-230), o padrão é a interface necessá-
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ria entre o conceito (universal) e a percepção sensível (singular). A necessidade do esquema vem do fato de que seu papel é estabelecer a mediação entre o tipo (conceitual) e o caso (empírico), de maneira a que reconheçamos um sob o outro, que se identifique, então, a coisa que temos diante de nós. Para Kant, o esquema é uma regra de projeção dos conceitos (formais, abstratos) na imaginação, de maneira a lhes fornecer uma imagem. Um esquema é assim a regra de construção de um exemplo – o esquema do conceito de círculo é, assim, um movimento do compasso. Como podemos ver, o essencial do conceito de esquema reside em sua função bem particular: estar na interface, assegurar a mediação entre duas realidades heterogêneas (o abstrato e o concreto, o tipo e o caso). Ora, o que Bourdieu vai reter é um pouco diferente. Como mais tarde a didática profissional e principalmente Gérard Vergnaud (2007:11), o sociólogo retém do conceito de esquema sua labilidade, quer dizer sua capacidade de se modificar livremente sem se deformar, para fazer entrar em sua forma bem-conservada, um conjunto bem diverso de realidades. O esquema, nestes autores contemporâneos, torna-se uma ferramenta cognitiva – tanto intelectual quanto gestual ou perceptiva – que permite articular sob um mesmo tipo (flexível, para não dizer um pouco frouxo), uma variedade de casos parecidos. Assim transformado, o conceito de esquema se parece com o de ares de família de Wittgenstein (2004:64) (um conceito que, justamente esse autor propunha como alternativa ao que o conceito tinha de demasiado rígido). O que captura um esquema não são as propriedades necessárias e suficientes que formam tradicionalmente a definição de um conceito, mas é “o” traço que, segundo as necessidades da situação presente, vai se revelar pertinente (significativa) para fazer a diferença e categorizar tal caso, sob tal ou tal tipo. Isso permite, assim, a Bourdieu considerar que o saber-fazer, adquirido na experiência (formadora) do mundo social é um gerador diferencial de práticas. “O habitus (...) permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades” (Bourdieu, 1987:82). Eis toda a fecundidade, sem dúvida, de sua interpretação do conceito de norma, como feixe de variações, onde uma será finalmente retida, porque adaptada ao caso em presença. Essa
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é a especificidade deste conceito de norma que permite a Bourdieu dizer assim simultaneamente que a interiorização das restrições em normas “permite produzir a infinidade de lances possibilitados pelo jogo”, que o “sentido prático (...) funciona abaixo da consciência e do discurso” e que ele gera “estratégias mais ou menos automáticas” (idem). Assim, neste sentido, Bourdieu joga com uma ambiguidade no uso do conceito de norma, uma ambiguidade que ele denunciava em Lévi-Strauss. Lá onde esse último faria de uma representação teórica (o modelo) o princípio realmente motor da realidade prática, Bourdieu faz – ao inverso – de um princípio de determinação mecânica (a interiorização, que permanece seu modelo), o fundamento exclusivo de um saber da experiência e de um saber-fazer (que é potência de existir no mundo social). O conceito de norma em Bourdieu é, às vezes, fecundo e insuficiente, pelo fato, acreditamos, de o seu conceito de norma ser separado daquele de normatividade (receptivo).
4.4. É somente a constituição do ponto de vista sobre as normas que pode tornar a experiência formadora: devemos nos apropriar delas (a perspectiva ergológica) O aporte e o limite de cada concepção podem ser vistos perfeitamente sob o plano da formação. Aristóteles superou seu próprio intelectualismo (contido em suas teorias da ação como projeto voluntário guiado a todo instante pela representação discursiva), modelando a formação dos hábitos. Dewey apostou em dar conta da formação sem pressupor nada: nossa maleabilidade ativa é transformada em sua interação com o mundo – ela adquire dobras (prendre le pli), encorajada pelo sucesso de seus atos. Enfim, Bourdieu olhou para a formação do esquema de nossas aprendizagens (hábitos, conceitos, maneiras de perceber, etc.). É o conceito de esquema que nos parece importante, porque ele ultrapassa o dualismo entre tipo e caso. Certamente, o esquema faz a relação, a mediação entre a universalidade de nossos conhecimentos em desaderência (as premissas maiores de Aristóteles) e a singularidade de nossos saberes em aderência (a experiência feita, o vivido em Dewey). Sem a relação que opera o esquema, nós nos encontraríamos na situação absurda (um falso dilema) de dever escolher entre uma formação pontual
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hiperespecializada – que só nos permitiria agir em um domínio extremamente restrito – ou uma formação genérica que iria cobrir todos os aspectos da atividade humana, mas que não nos permitiria concretamente agir em nenhum domínio. Ora, observa-se bem que formar a competência não é nem uma coisa nem outra. Nem a segunda, porque isso não consiste em aperfeiçoar sua cultura nas humanidades, independentemente dos prazos do mundo do trabalho. Nem a primeira: ao contrário da hiperespecialização, a competência é uma forma de “cultura”, no sentido em que ela opera um recuo, uma maturidade do olhar, uma visão de conjunto dos problemas. Para constatarmos o quanto o primeiro aspecto é insuficiente, retomamos o contraexemplo de Aristóteles: “Há uma ciência do mestre e uma ciência do escravo, aquela do escravo sendo precisamente a que é ensinada em Siracusa. Lá, de fato, por meio de salários, os jovens escravos aprendem o ciclo completo de seus ofícios. E pode-se aperfeiçoar o estudo de certas disciplinas, como a culinária e outros ofícios do mesmo gênero. Pessoas diferentes têm, de fato, tarefas diferentes, algumas mais apreciadas, outras mais indispensáveis, e, como diz o ditado: “há escravo abaixo do escravo e mestre abaixo do mestre”. Tudo isso é, então, ciência de escravo; quanto àquela do mestre é a do emprego dos escravos” (Aristóteles, 1993:108-109).
Não voltaremos à coerência interna do pensamento de Aristóteles, o que torna bastante necessárias tais conclusões no interior de seu sistema. O que parece mais interessante é nós nos colocarmos a seguinte questão: como nossas formações profissionalizantes (ainda mais especializadas do que o que está aqui descrito) conseguem não reduzir o aprendiz a “uma ferramenta dotada de vida”? Como os usos atuais da competência permitem, nos dias atuais, não raciocinar como Aristóteles? Parece-nos que é graças ao fato de que nossas formações raciocinam bastante sobre os esquemas (as relações a fazer entre teoria e prática, se quisermos) e que isso os leva a insistir mais sobre os “saber-fazer” transversais que sobre as tarefas especializadas. Sua teoria da norma como esquema-padrão permite a Bourdieu responder a esta dupla questão (até certo ponto). É preciso “universalizar as condições de acesso ao universal” (Bourdieu, 2001:40), quer dizer aliar a profissionalização e a cultura
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geral, completar as formações práticas por uma verdadeira difusão dos saberes teóricos (primeiramente no sentido etimológico – de theôria, a contemplação) desinteressados. Contudo, Bourdieu permanece em um nível de dualismo: se os primeiros servirão aos agentes no trabalho, os segundos vão participar na sua emancipação na ação política (a praxis). Parece-nos, com efeito, que há uma clara separação em Bourdieu (como em Marx) entre a esfera do trabalho e aquela do florescimento subjetivo. Quanto a nós, pensamos que o conceito de competência não pode se satisfazer com tal dualismo, porque sua diferença em relação aos conceitos de qualificação, ou de expertise, mantém justamente isso que ele põe em evidência: toda a cultura técnica e social (relacional) que vai distinguir sempre o trabalho humano de uma tarefa realizada por uma máquina. Se a formação se esforça em ajudar o aprendiz a tornar-se mais competente que apenas eficaz ou especializado, é que a cultura (os saberes teóricos das ciências fundamentais e os saberes desinteressados das humanidades) vão ter um papel de primeiro plano na transversalidade dos saber-fazer. Mas, além de apresentar nossa hipótese a este propósito, lembremos brevemente por que, segundo Bourdieu, a cultura emancipa – lá onde os saberes técnicos apenas servem. Parece-nos que Bourdieu alterna entre duas respostas a esta questão. Primeiramente, a razão é pragmática: se a cultura humanista parece universal e desinteressada, é que ela detém, desde sempre, o monopólio da imposição da visão de mundo legítimo. A cultura liberta porque ela arma os dominados contra essa violência simbólica (a fim que eles desarmem as armadilhas ou as coloquem a seu favor). Mas, em segundo lugar, a razão é mais construtiva: “A ciência que revela, que desmascara, poderia exercer, por si só, um efeito significativo. Mas claro, na condição de que seus efeitos sejam conhecidos por aqueles que têm o maior interesse em os conhecer.” (Bourdieu, 1997:156).
Enquanto os saberes técnicos são somente úteis, os conhecimentos científicos (incluindo humanidades, sociologia, por exemplo) têm uma objetividade que desilude e, portanto, emancipa os agentes sociais de sua servidão. Num diálogo entre ciência e sociedade, Bourdieu defende uma rigorosa simetria: é preciso, às vezes,
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uma exigência de direito de entrada (no reconhecimento de cientificidade) e uma exigência de dever de sair para que o conjunto da sociedade aproveite verdades assim produzidas (Bourdieu, 1996:75-78). Nessa ótica, é preciso não apenas dar uma formação especializada aos agentes – e para Bourdieu, toda formação é uma formatação (Bourdieu e Passeron, 1973:170-171) – mas uma formação generalista complementar deve permitir-lhes retornar sobre essa formação, de se “desformatar” tanto quanto possível, para viver fora da esfera do trabalho. Encontramos bem aí – assumida pelo autor – a ambiguidade de sua teoria do sentido prático, que sublinhamos no fim da seção precedente: bachelariano mais ortodoxo que Canguilhem, Bourdieu tem uma concepção dualista da relação entre saber (da experiência) e conhecimento (científico). É a razão pela qual o senso prático vai reter que Bourdieu utiliza para descrever a competência de um jogador de tênis, um exemplo retomado por G. Le Boterf – não tem alcance cognitivo bastante relativo e limitado: é simplesmente a latitude a difratar e adaptar automaticamente nossos esquemas. O senso prático não consiste somente em fazer corpo o mais intimamente possível com os reflexos (cognitivos – vieses, preconceitos – e corporais) que estruturam percepções e reações típicas de um micro campo social. Seus exemplos de jogo de bola o mostram bem: Bourdieu transporta para a ação a mais micro (posicionar-se para receber um passe) o esquema-padrão de explicação estatística que ele desenvolveu sobre as estratégias de percurso social (escolher o estabelecimento escolar de seus filhos; ou seu cônjuge; ou sua localização administrativa, etc.). Mas, contrariamente a essa visão das coisas, parece-nos que o conhecimento geral e a aprendizagem teórica participam, de maneira central, da competência no trabalho. Por quê? Aqui nós gostaríamos de aprofundar o que entendemos por “ter um ponto de vista sobre a norma.” Acreditamos que a função de qualquer cultura geral é diversificar os esquemas (de ação e de percepção) por sua mobilização artificial em situações extraordinárias – ou seja, situações que ninguém vive no quotidiano. Estudar em aula de francês a poesia do século XVII torna-se interessante porque é para o aluno uma maneira de ver funcionar a riqueza expressiva
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da norma, em um universo normativo que não é mais válido hoje. O acesso ao universal deve ser “universalizado” não apenas para entrar na luta simbólica, nem para abrandá-la, mas para ajudar as pessoas a constituir para si um ponto de vista, para que os agentes existam como atores dentro das relações de poder que fazem o quotidiano das situações reais. Bourdieu já tinha sublinhado o alargamento da gama de variações possíveis do esquema como um fator de competência: isso permite ao agente não só não permanecer fechado em um único meio, mas até mesmo cultivar a sua posição nas interfaces entre os meios. Mas considerar o ponto de vista sob a norma vai mudar completamente o funcionamento do esquema. Vê-se bem isso com o exemplo do professor: na fronteira entre duas culturas, ele ainda não se contenta, entretanto de ser anfíbio! O professor competente tem que, efetivamente, conseguir, com sucesso, um novo sistema de normas (por exemplo, o formalismo matemático) como válido para si mesmo, enquanto o apresenta nas coordenadas teóricas e axiológicas da experiência dos estudantes (Bourdieu diria: de seus habitus). Para conduzir bem esse exercício de mediação com interfaces, o professor deve ter entendido suficientemente as normas dos dois universos e também se distanciado suficientemente em relação a elas, para projetar umas na perspectiva das outras, sem nunca trair o espírito delas. À luz da definição da competência que sugerimos como uma hipótese sobre a avaliação, poderia ser descrito nesses termos o desafio do professor competente: • ele deve retomar a norma antecedente (aqui, conceitos matemáticos) no serviço que presta concretamente, respondendo, então, às expectativas do público real, caso contrário, os alunos não se sentem interessados pela norma apresentada a eles; • mas, sem trair o espírito da norma, ou seja, proporcionando que os alunos façam a experiência do valor intrínseco, realmente autônomo, de um conhecimento teórico (aqui, a matemática) – ou da universalidade própria da cultura humanista.
Esse exemplo parece mostrar o que Bourdieu não viu: a diversificação do esquema suposto de ter desenvolvido um ponto de vista sobre essa norma. O que acrescentamos é que a diversidade do esquema (a apropriação da norma) passa
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em primeiro lugar e, antes de tudo pela experiência de esquemas “inúteis” do ponto de vista da eficácia prática. Por quê? Porque são essas referências desinteressadas que irão alargar o espectro de difração do esquema, acrescentando a ele pontos de comparação não automaticamente mobilizáveis. As regras do soneto são esquemas que jamais serão convocadas pelas situações quotidianas; por outro lado, sua apropriação abre um leque de perspectivas de formas de se expressar, efetivamente convocadas pelas situações da vida real. E é esse leque de perspectivas que, precisamente, torna menos automáticos todos estes apelos das normas pela situação vivida. A pessoa se dá conta de que não é jamais insignificante se expressar de tal ou tal maneira, mesmo sendo em prosa. Ela percebe que as figuras de estilo, que mobilizamos maquinalmente, significam tanto nas normas de cada situação da verdadeira vida, quanto significam nas normas artificiais percebidas na escola. De repente, a fala quotidiana deixa sua aparência neutra e indiferente: ela se torna objeto de um jogo (e sabemos que o domínio de uma língua estrangeira é medido pela espontaneidade com a qual se desvia dela, tomam-se liberdades estilísticas com sua norma), tanto quanto a ferramenta de uma ação performativa ou então a arma de uma luta simbólica. Em todos os casos, a instalação de uma diversidade extrautilitária revelou o espaço de difração do esquema como o lugar de um ponto de vista, e a difração/adaptação como o resultado de uma escolha que pôde ter sido alcançada até o momento, apesar de si mesma (mecanicamente), mas que começa a “fazer norma” para nós, a partir do momento em que perde sua aparente indiferença. Uma vez que se considera a atividade como um encadeamento de esquemas de debates, o ato se revela como esforço de apropriação de uma norma antecedente, graças ao ponto de vista que se tenta construir sobre ela. Longe de ser dado como tal, inicialmente, esse ponto de vista se constitui por meio de tentativas sucessivas de apropriações que são nossos atos. Esse esforço continuado, construtivo e exponencial é o que chamamos, seguindo Yves Schwartz, a experiência das normas (literalmente: o vivido e a prática de fazendo, fazer norma, para nós as normas antecedentes), expressão que foi o título de nossa tese de doutorado. No entanto,
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se se constituir um ponto de vista, é primeiramente ousar contestar a norma, em seguida, avaliar o bom fundamento. Avaliar bom fundamento de uma norma, significa, precisamente, colocar uma norma na perspectiva de outra e vice-versa. Portanto, como mostra Yves Schwartz, a experiência não é formadora sozinha, por ela mesma. Para se tornar realmente formadora, a experiência da pessoa deve ser retrabalhada por ela (Schwartz, 2004:11-23). Em quê? Precisamente nisso que a pessoa deve se construir um ponto de vista crítico e refletir, a partir da evidência do ponto de vista que ela já tinha (mesmo que seja infinitesimal), quando age em uma determinada situação. Retrabalhar sua experiência para torná-la retrospectivamente formadora é reconhecer-se normativo, criar e defender a normatividade que tem sido demonstrada concretamente, sem ainda saber. Retrabalhar quer dizer: de uma parte, fazer o esforço de explicitar a relação entre a sua interação com o meio e os modelos conceituais (teóricos e organizacionais) que a pessoa aí mobilizou; e de outra parte, utilizar essa primeira análise em termos de prescrito para fazer o esforço de explicitar o destino que ela tem dado a essas normas (ao se apropriar delas para se adaptar à situação) e, assim, justificar suas interpretações da norma, colocando na discussão seus pontos de vista sobre a norma. É, pois, nessa perspectiva que apresentamos nossas hipóteses sobre o conteúdo do conceito de competência em termos de formação. Parece-nos que esse modelo esclarece um aspecto tradicionalmente bastante complexo da competência: em que consiste a transversalidade dos saber-fazer? De fato, nas concepções da ação aristotélicas, deweyana e bourdieuniana atuais, parece muito difícil modelar a título de que, sob que forma e por qual viés, uma aprendizagem fundamental (como história ou mesmo a literatura) vai intervir e será mobilizada nas diferentes atividades especializadas da pessoa. Considera-se, frequentemente, que tudo o que não é diretamente útil nas atividades quotidianas desenvolve as faculdades (cognitiva, afetivas, etc.), que serão mobilizadas a título de uma disposição geral, subentendendo-se uma tarefa especializada. Agora, ter estudado na escola A Princesa de Clèves ou a guerra da Argélia, isso obviamente não nos dá evidentemente a solução para os problemas encontrados em nossas diferentes atividades de trabalho.
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Mas não podemos, também, dizer que isso participaria somente da educação cívica de maneira geral (porque, afinal, a separação entre práxis e poièsis seria reconduzida). Na realidade, parece-nos que esse tipo de formação forma o julgamento (discernimento), de maneira tal que, nas situações de trabalho, colocar em relação as normas do prescrito e as normas da situação seja estabelecido em um espaço de ponto de vista que esteja em maior destaque, multidimensional. Porque fazer de forma tal que as normas próprias do estudante “façam norma” para ele (lutar contra os prejuízos), é ajudá-lo a construir para si um ponto de vista através do debate com os outros, um ponto de vista que lhe vai permitir se posicionar em relação à norma antecedente. Sob o plano da formação, a competência é, portanto, todo o contrário das estratégias sempre mais ou menos automáticas do senso prático. A competência corresponde ao esforço para mediatizar as normas antecedentes com a ajuda de um ponto de vista que só existe depois de ultrapassada sua unilateralidade primeira. Se considerarmos a atividade como um encadeamento de debates de normas, a competência vai consistir em se arrancar desse automatismo primeiro – em fazendo, fazer norma à norma antecedente na situação onde somos implicados.
5. Recrutar, mobilizar 5.1. A motivação é a antecipação do benefício recebido pelo resultado visado (Aristóteles) Todas as concepções de ação não nos parecem ter o mesmo valor, quando se trata de considerar o interesse que um ator assume ao realizar sua ação. Ora, esta dimensão é essencial para poder considerar o que significa o êxito multidimensional de nossas ações – para além da simples eficácia. Se o julgamento de competência inclui uma apreciação das pessoas nas suas atividades, como se concebe – na base – o investimento de si na ação? Por que o ator se interessa pelo que ele faz no trabalho, por exemplo? A visão a mais clássica, que está por trás do nosso senso comum, mas que foi bem representada, sobretudo por Taylor, corresponde, outra vez, perfeitamente à teoria aristotélica da motivação. Aristóteles se pergunta, de fato, o que exatamente tem um papel de motor, iniciador na ação:
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“Quanto à vontade, à impulsão e ao apetite, eles pertencem todos os três ao desejo, enquanto a escolha refletida é do domínio, ao mesmo tempo, da razão e do desejo. Assim, o primeiro motor [da ação] é o objeto visado pelo desejo e concebido pela razão. (...) Eis por que o motor que preenche estas condições é um dos bens, mesmo que não seja o bem. É, na medida em que uma coisa age em vista desse bem – e em que ela é o fim das coisas que existem em função de outra coisa – que ela tem um papel-motor. Mas é necessário admitir que o bem aparente mantém o lugar do verdadeiro bem, em particular o agradável: porque o agradável é um bem aparente.” (Aristóteles, 1973: 59-60).
Como a ação é aqui concebida, antes de tudo, como “um projeto”, que tem um papel de motor, esse é o objetivo em direção ao qual todo o esforço da pessoa é feito. E, mais precisamente (reencontra-se ali o modelo da forma) é o resultado virtual, visado como objetivo, que suscita – graças às suas qualidades “desejáveis” intrínsecas – o desejo que coloca em movimento o ator. É de se supor que é na imaginação do ator que tal apresentação atrativa tem lugar. É interessante chamar atenção em relação a isso porque, quando da Idade Média, o aristotelismo escolástico desenvolve o esquema clássico de ação, o modelo que ele propõe é o seguinte: toda ação exterior (chamada ato transitivo, no jargão de Tomás de Aquino especialmente) é a consequência de uma ação interior (ato imanente, que é a decisão da vontade), se bem que o movimento físico do corpo não comece senão quando ele já tenha virtualmente terminado em pensamento. Os detalhes do fim da citação precedente sugerem que a reflexão sobre o interesse na ação abre-se, logo em seguida, a uma perspectiva moral normativa. Hoje, ainda o termo de interesse resta ambíguo – no sentido onde ele pode tomar uma conotação favorável, melhorativa (ver aí um interesse) tanto como pejorativa (ele procura seu interesse). No entanto, nos dois casos, Aristóteles usa o mesmo modelo explicativo. O que sugere, esse modelo, aliás, é que a distinção entre bem verdadeiro e bem aparente (que se chamará na Idade Média de falsos bens: riqueza, poder, glória ilusória, prazer) está obrigado a utilizar a mesma palavra “bem”, então isso obscurece o discurso. Não se vê, com efeito, qual poderia ser o ponto comum entre bens verdadeiros e falsos. A descrição do processo de motivação
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parece distinguir dois casos: quando é o intelecto que sugere em que o objeto é ideal, a imaginação será racional e o desejo será voluntário. Ora a passagem citada deixa pensar que tal não é o caso, quando são os sentidos que sugerem no que o objeto é ideal, agradável, lisonjeiro. Como a teoria da ação como projeto dá conta do fato que nossos atos concretos não são sempre tais como eles são projetados? Aristóteles estabelece uma tipologia dos atos, que distingue: os atos voluntários (o projeto realizado), os atos não voluntários (o reflexo) e os atos involuntários (nossas falhas). Como a ação é um projeto, a deliberação (que é a razão pela qual o ator deduz os meios do fim que foi proposto) parece, então, não dizer respeito aos atos voluntários (age-se a partir de um princípio). Entretanto, os atos voluntários podem até mesmo resultar em atos involuntários. Nós mencionamos a análise da intemperança – o fato de nós abandonarmos nosso projeto em curso e, mais exatamente, o fato de nós sermos desviados do curso de nossa ação por uma circunstância que venha a mudar o caso (menor) de nossa deliberação. Essa maneira, da qual Aristóteles separa, na ação, o que é da ordem do voluntário e o que é da ordem do involuntário, faz pensar na maneira como, hoje, nós chamamos: mas eu não queria (ter feito) isso! Quando uma criança faz uma besteira por negligência, ela tem espontaneamente a impressão de que esta fala não somente a desculpa, mas a desculpa liberando retrospectivamente sua responsabilidade do curso dos acontecimentos que venham a se passar. Ora, é a mesma lógica, o mesmo limite interno do esquema clássico de ação (quem a concebe exclusivamente como realização de um projeto) que governa as concepções aristotélicas da motivação e da responsabilidade. Não é fácil ultrapassar os limites dessas concepções de motivação e de responsabilidade, que nos são comuns ainda hoje no nosso esquema de ação. Assim como na prática corrente, nós vamos corrigir, de qualquer forma, as insuficiências de tal visão, juntando a isto um pouco de pragmatismo. Por exemplo, nós vamos nos lembrar de que, para que um ator encontre interesse pela sua ação, é necessário que a interatividade, ela mesma (e não somente o resultado), seja engajadora. Da
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mesma forma, nós lembramos que, diante de uma catástrofe industrial, a investigação vai pesquisar sempre, após ter reconstituído a cadeia das causas materiais, a responsabilidade humana que precede imediatamente o encadeamento dos acontecimentos. Se a responsabilidade está engajada, está de maneira indireta, ou seja, na ideia de que os comportamentos voluntários têm consequências sobre o meio ambiente – consequências que podem acarretar respostas sob a forma de reações em cadeia. Mas como esse último exemplo demonstra, mesmo se nas práticas nós corrigimos espontaneamente os excessos do esquema clássico da ação, essas correções encontram seus limites, muito rápido e mostram que uma revisão teórica é também útil, talvez indispensável. Assim, pode-se, por exemplo, prosseguir com a análise da imputação de responsabilidade, indicando que identificar a causa humana próxima não é ainda suficiente. Para ser justo (e é bem isso que faz o tribunal), é necessário ainda procurar quais eram os constrangimentos com os quais o operador se deparou, e quais as origens desses constrangimentos. Ora para ver a complexidade da responsabilidade na ação, é necessário portanto dispor do conceito de norma e fazer dele uso corretamente. Colocada de lado a questão da responsabilidade, há pelo menos dois pressupostos interrogados pelo autor, na concepção aristotélica da motivação: de um lado, a possibilidade de que uma propriedade seja desejável em si (independentemente da variabilidade das pessoas); de outro lado, a ideia que, no desejo, o colocar em movimento parte do objeto para se aplicar à pessoa. Ora, como antes, esses são os dois pré-julgamentos com os quais se vai tentar subverter a crítica de Dewey.
5.2. A motivação é o investimento no ato onde se tenta realizar, desenvolver sua existência (Dewey) Dewey escolhe desenvolver um exemplo mirando especificamente a vida profissional, se bem que nós podemos identificar aí sua crítica e sua opção alternativa: “No desenvolvimento normal, um interesse não está somente ligado exteriormente a outro; ele o penetra, o satura e ao mesmo tempo o transfigura e lhe dá um valor novo para a consciência. O pai de família pode ter motivos novos
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para realizar seu trabalho quotidiano; ele pode descobrir nisso um significado original e retirar dessa visão nova uma estabilidade e um entusiasmo que ele não tinha antes. Mas se esse pai não tem esta visão, se ele o considera seu trabalho uma tarefa quotidiana, unicamente para obter dela salário, as coisas se passam diferentemente. Nesse caso, os meios e os fins ficam afastados, eles não se penetram. A pessoa não está realmente interessada e vê, na sua tarefa, uma prova da qual seria vantajoso escapar. Ele não pode, então, lhe dar sua atenção integral, engajar-se plenamente. Mas para outra pessoa, cada esforço realizado no trabalho pode trazer um significado para a família. Exteriormente, fisicamente, trabalho e família são entidades afastadas; mentalmente para a consciência, elas têm o mesmo valor e formam uma unidade. Mas, quando se trata de uma tarefa quotidiana, os meios e o fim permanecem tão separados para a consciência como eles o são no tempo e no espaço.” (Dewey, 2004: 35-36)
A ideia desenvolvida pelo autor está clara: a insuficiência do modelo do projeto para explicar a motivação vem da separação, da relação arbitrária e exterior que ele supõe entre os meios e os fins. Convencer-se (por força de repetir) que uma ação vai nos dar... ou que nos vai permitir... não é suficiente jamais para torná-la interessante. Isso se limita a torná-la suportável. A ideia de Dewey é, pois, que a relação entre meios e fim deva ser bem mais que lógica e instrumental. Essa deve ser uma relação de sentido: a filiação das duas ações (o meio e o fim) a um mesmo todo contínuo – a saber, nossa existência em devir. O apelo ao interesse, na formação como na ação da equipe, não pode, pois, segundo Dewey apelar para um interesse já existente (e mesmo necessariamente existente): o interesse que a pessoa toma para a sua própria vida. O autor se impõe não apoiar modelização senão sobre elementos atualmente efetivos: “O interesse, não mais que o impulso, não precisa de um estimulante externo. Pelo fato de que os impulsos se selecionam, eles se encontram a todo tempo – quando nosso ser psíquico está em estado de vigília – nós estamos interessados de uma maneira ou de outra. A ausência completa de interesse, ou o estado de equilíbrio perfeito na distribuição dos interesses, é um mito, como a história do asno inventada pela escolástica.” (Ibid: 31)
A ideia inovadora de Dewey é que nós estamos sempre desejando. Por quê? Porque, de um lado, nós estamos sempre já agindo, e, de outro, o desejo consiste
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no fato de que nós sentimos nossa atividade tomar uma evolução exponencial. Nós nos sentimos desabrochar nessa interação. É este aspecto construtivo em Dewey que parece nos indicar a via de uma verdadeira alternativa em relação ao esquema clássico da ação. O autor inverte, com efeito, a direção dos termos com os quais nós formulamos habitualmente as coisas. Não é isso que nós tiramos de uma atividade que nos faz desejá-la (pois este ganho é virtual e iria supor, portanto, o dispositivo aristotélico), mas é, ao contrário disso, o que nós investimos nessa atividade, que nos faz desejá-la atualmente, quer dizer amar. Certamente, há certas condições: nem toda atividade faz desabrochar; mas precisamente são as condições – o que significa que alguma atividade (por exemplo profissional) não é ela mesma desejável ou detestável. Tudo vai depender das circunstâncias concretas onde, regra geral, interagimos com o ambiente. Vejamos, novamente, então a relação entre meios e fins, relação constitutiva da motivação como investimento, engajamento da pessoa. Pelo simples fato de o ator estar vivo, ele está literalmente sempre já motivado por alguma coisa. O desafio da motivação em toda atividade será, então, reunir as condições para que essa atividade se inscreva na continuidade do esforço de viver. De uma tal razão, Dewey tirará a ilação seguinte: é impossível exteriormente tornar interessante uma atividade. Pelo contrário, a maioria, se não todas as atividades, pode se tornar interessante, na medida que as condições sejam reunidas para que o ator lhe dê sentido, organicamente unido com o sentido que ele dá à sua existência global, multidimensional. “Desta forma, é fácil ver que as teorias que fazem do prazer um motivo, como aquelas que recorrem ao esforço artificial, resultam praticamente no mesmo resultado. A teoria do esforço implica sempre um apelo ao prazer ou à dor como mobilizador da ação. Desse modo, na ausência de objetivo intrínseco susceptível em manter e dirigir as energias psíquicas, a teoria do prazer deve continuamente recorrer aos elementos exteriores para excitar essas falhas de energia. (...) Os psicólogos nos mostram que o interesse do eu pelo objeto ou por um fim indica que o eu descobriu sua via e seus desejos próprios. Nesse caso, os esforços do eu se justificam; ele sabe e dizem por que ele deve desenvolver sua energia: é para atender a um fim ao qual ele aspira, e que lhe permitirá se exprimir.” (Ibid., 45-46).
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Como precedentemente já foi dito, essa inversão de perspectiva sobre isso que é fundamentalmente uma ação nos parece constituir um verdadeiro avanço no debate sobre a competência. E, na medida em que nossa modernidade é ainda profundamente aristotélica, esse debate tem sua atualidade e sua razão de ser. Mas sobre esse último aspecto (o recrutamento), e também sobre as quatro outras funções, a crítica e a alternativa construtiva alcançadas por Dewey nos parecem mesmo apresentar limites. No caso, o continuísmo radical que possa se afirmar entre a atividade vital e a atividade de trabalho – por mais louvável e salutar que seja, sobretudo quando vem compensar o dualismo, do qual as pessoas se satisfazem sempre muito rápido – parece-nos um espectro muito imediato, porque Dewey se situa num nível muito geral, abstrato e esquemático da ação. Ora, para dar um verdadeiro conteúdo ao conceito de competência, necessário se impor esta dupla exigência: de um lado, é importante determinar suficientemente o conceito de competência pelo que ele captura da especificidade da atividade profissional, a propósito da qual o mundo do trabalho entende utilizar; mas, de outro lado (e retendo aí a lição de Dewey), é necessário reinscrever essa especificidade da atividade de trabalho no quadro geral de uma atividade global – aquela que diz respeito à existência da pessoa. Tanto isso é verdade que o conceito de competência qualifica sempre a atitude geral de uma pessoa em seu trabalho, uma pessoa que vem com tudo aquilo que ela é.
5.3. A motivação é ilusio, quer dizer identificação ilusória em relação interesses da norma no seu campo de poder (Bourdieu) A reflexão de Dewey, em relação ao esquema aristotélico, elevou o debate sobre a motivação ao nível de uma interrogação sobre o sentido que a pessoa dava ao seu trabalho. Esse sentido é, de fato, apresentado por Dewey como a condição indispensável que se torne interessado por sua atividade profissional. Ora, cada uma das teorias da norma (historicamente, portanto, de início estruturalistas) emprestam seu modelo do sentido à teoria da significação de acordo com Saussure – portanto, a um paradigma linguístico. Ora, Saussure havia fundado a vertente
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semântica de sua linguística geral a partir de uma dupla recusa: opondo-se contra o senso comum de sua época, o linguista afirmava que a significação de uma palavra não lhe era conferida nem pela referência a qualquer coisa do mundo (é o princípio do encerramento da referência), nem pela intenção (a mensagem a comunicar) com a qual o emissor investe o termo, aqui e agora. De fato, a significação seria um efeito de estrutura. A relação arbitrária entre significante e significado vem da integração dessas duas dimensões do signo num sistema de oposições, fechado nele mesmo. Ora, quando se trata de evocar o sentido que toma uma norma de acordo com a experiência daquele que age segundo ela, tanto Lévi-Strauss quanto Bourdieu se mantêm nos termos de Saussure. Assim, por exemplo, o conceito de interesse, que Dewey havia tentado reabilitar para mostrar sua nobreza, é substituído, na sociologia de Bourdieu pelo conceito de illusio – que, para um agente, consiste no fato de se identificar às questões que agitam seu campo, a ponto de acabar por acreditar que essas são questões existenciais para ele. “O illusio é o fato de [alguém] ser tomado no jogo, de ser tomado pelo jogo, de crer que no jogo, vale a pena o desafio, ou, para dizer simplesmente as coisas, que vale a pena jogar. De fato, a palavra interesse, num primeiro sentido, queria significar de modo muito preciso o que coloquei sob essa noção de illusio, quer dizer que o fato de admitir que o jogo é importante, que o que se passa aí importa àqueles que estão engajados no jogo, a quem se engaja. O interesse é “em estar”, participar, admitir que o jogo mereça ser jogado e as questões que se engendram no e pelo fato de jogar merecem ser processadas, é reconhecer o jogo e reconhecer as questões. (...) Se você tem um espírito estruturado conforme as estruturas do mundo no qual você joga, tudo lhe parece evidente, e a questão mesmo de saber se o jogo vale a pena não se coloca. (...) Libido seria, assim, totalmente pertinente, para dizer aquilo que chamei illusio, ou investimento. (...) Uma das tarefas da sociologia é a de determinar como o mundo social constitui a libido biológica – pulsão indiferenciada – em libido social, específica. Há, de fato espécies de libido quanto existem de campos: o trabalho de socialização da libido, sendo precisamente esse que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que não existem se não em relação com um espaço social no seio do qual certas coisas são importantes e outras indiferentes” (Bourdieu, 1994: 151-153).
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Comparando essa modelização da motivação àquela que propunha Dewey, seria possível ver aí uma forma de cinismo que prejudica a compreensão do conceito de competência. Pois, se efetivamente as normas – sendo arbitrárias, mas performaticamente autolegitimas no campo de forças por vezes qualificado de violência simbólica – não precisam de ter um sentido, se elas são literalmente para elas mesmas sua própria finalidade, esse não é o caso da competência que, enquanto julgamento, tem, de fato, a especificidade de precisar de outras. Mas mais fundamentalmente: o limite do modelo de Bourdieu para dar conta da motivação de uma pessoa competente, parece-nos ser o sintoma de uma insuficiência teórica, de uma conceitualização incompleta da norma. Depois de Saussure, os estruturalistas recusam relacionar a norma a um valor, que os leva a considerar que o signo pode “fazer norma” pelo simples fato de seu funcionamento, sem depender de um ator que iria investir na sua atividade. Ora nós temos evocado os limites que ocasionam essa tentativa de pensar assim uma norma sem normatividade (receptiva): de uma parte ela reduz o saber a um condicionamento adaptado (porque adaptável); de outra, ela reduz o sentido à função (impedindo todo investimento subjetivo, toda interpretação pessoal). A título de ilustração desse último ponto, e como uma pista de abertura para o próximo, lembremos algumas trocas que colocaram em oposição, em meados dos anos sessenta, Lévi-Strauss e Ricoeur sobre a questão da natureza do sentido. Claude Lévi-Strauss: “(...) Você disse em seu artigo que O pensamento selvagem faz uma escolha pela sintaxe contra a semântica; para mim, não há o que escolher. Não há o que escolher, contanto que (...) o sentido resulte sempre da combinação de elementos que não são eles mesmos significantes. Por consequência, o que você procura (...) é um sentido do sentido, um sentido que está por trás do sentido. Enquanto, na minha perspectiva, o sentido não é jamais um fenômeno primeiro: o sentido é sempre redutível. Dito de outro modo, atrás de todo sentido há um não sentido – e o contrário não é verdadeiro. (...) O que é o sentido para mim? Um saber específico percebido por uma consciência quando ela saboreia uma combinação de elementos, na qual nenhum deles, tomado em particular, não irá oferecer um sabor comparável. (...)” (Lévi-Strauss, 1963: 637-641)
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“Paul Ricoeur: Eu não disse que o sentido era sentido para a/ou pela consciência; o sentido é, inicialmente, aquilo que instrui a consciência; a linguagem é, primeiramente, veículo de sentido a retomar, e esse potencial de sentido não se reduz à minha consciência. Não há o que escolher entre subjetivismo de uma consciência imediata do sentido e o objetivismo de um sentido formalizado; entre os dois, há aquilo que o sentido propõe, aquilo que diz o sentido, e é aquilo “a dizer” e “a pensar” que me parece ser o outro lado do estruturalismo. E, quando eu digo o outro lado do estruturalismo, eu não designo necessariamente um subjetivismo do sentido, mas uma dimensão do sentido que – também – é objetivo, mas de uma objetividade que só aparece pela consciência que o retoma. Essa retomada exprime a ampliação da consciência pelo sentido, muito mais que o domínio da consciência sobre o sentido. (...) Eu vejo, no seu trabalho, uma forma extrema de agnosticismo moderno; para você não há “mensagem”: não no sentido cibernético, mas no sentido Kerigmático [do grego kêrugma, a promessa]; você está no desespero do sentido; mas você se salva pelo pensamento que, se as pessoas não têm nada a dizer, menos elas o dizem, se bem que é possível submeter seu discurso ao estruturalismo. Você sabe o sentido, mas é o sentido do não sentido, o admirável arranjo sintático de um discurso que nada diz. Vejo você nessa conjunção de agnosticismo e de uma hiperinteligência de sintaxes. Por isso, você é ao mesmo tempo fascinante e inquietante.” (Ibid., 644-653)
Assim, a mesma vontade de descartar absolutamente o investimento subjetivo nas normas que guiam nossas ações reúne, portanto, Bourdieu, Lévi-Strauss e Saussure. Os três apresentam o funcionamento autotélico das normas como uma justificativa suficiente para que os atores desejem segui-los e respeitá-los. Ora, a prática mostra a que ponto esse não é o caso. Tal redução metodológica opera um empecilho explicativo que limita, em grande parte a pertinência do modelo. Se o conceito de norma deve ser repensado (em relação à sua definição estruturalista), é, inicialmente para tornar enfim compreensível o fato de que uma pessoa possa investir de um verdadeiro sentido a norma que ela segue na sua ação. Com efeito, na mesma medida em que a motivação é uma parte integrante da competência, é necessário reexaminar a questão de saber em que medida a consideração da subjetividade, na ação normalizada do trabalho, não é uma condição sine qua non para dar um verdadeiro conteúdo ao conceito de competência.
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5.4. Preferir uma norma é entender sua importância como valor: seu sentido aparece quando uma vez recontextualizado no serviço (perspectiva ergológica) O argumento crítico que Dewey fez à modelagem do interesse, no esquema clássico de ação, parece-nos definitivo. Se se consideram o fim e os meios como exteriores ao outro, perde-se completamente a coerência axiológica e existencial que constitui o desejo – se bem que se tenha, de fato, já reduzida, a atividade do futuro empregado em um meio simples, num projeto coletivo que não lhe diz respeito senão muito de longe. Trata-se da mesma teoria da ação que se estende de Aristóteles a Taylor – Canguilhem sugeriu isso já criticando a concepção rudimentar que se fazia da motivação: “Na verdade, devemos, ao mesmo tempo, para justificar a tarefa do taylorismo, conceber o homem como uma máquina acionando adequadamente outras máquinas e, como um vivente simplificado, em seus interesses e reações em relação ao meio, até não conhecer outros incentivos atraentes e repulsivos como “a ameixa e o chicote.” O inviável é aqui – como em outros lugares – a onipotência da lógica.”(Canguilhem, 1947: 122).
A intuição de uma continuidade entre a vida e o trabalho em Dewey, portanto, parece-nos justa – embora muito abrupta, no sentido de que ela negligencia todas as mediações tornadas necessárias pela inclusão social dessas duas atividades. Esse é, obviamente, o último aspecto que coloca em evidência o estruturalismo, mas de uma forma tão exclusiva que ela realmente esquece a lição de Dewey. O substituto ilusório (imaginado por Bourdieu) para a sua própria autorrealização nos parece ser domínio da mesma hipótese que o autor denunciava em Lévi-Strauss: “dar como princípio da prática dos agentes a teoria que se deve construir para ter razão” (Bourdieu, 1987: 76). Após ter modelizado o espaço social como um campo de forças, o sociólogo precisa explicar que os agentes dão um sentido ao seu investimento nessas lutas simbólicas. O modelo de interiorização (interiorização das normas, no modelo de formação; interiorização das regras dessas normas, no modelo de motivação) lhe permite fazer economia sem rodeios – custoso teoricamente – do ponto de vista da pessoa.
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Para modelizar a motivação e também a responsabilidade (segunda dimensão do recrutamento, ainda menos explicada, acreditamos, pelo modelo da illusio) de uma forma que se esforça para reconhecer e manter-se fiel ao ponto de vista (em devir) da pessoa, pode-se voltar por um momento, ao conceito canguilhemiano de norma vital. Identificamos três contribuições fundamentais por meio das quais esse conceito corrigia e ultrapassava o conceito estruturalista da norma: a polêmica, a inscrição nos duplos constrangimentos e a irredutibilidade do ponto de vista. É necessário completar o primeiro por uma precisão, sobre a qual Canguilhem insiste ao longo da sua obra, O normal e o patológico: se o funcionamento orgânico saudável (normal porque normativo) tem um valor vital positivo, é pelo fato de que ele é superior – na ordem do poder e do desabrochamento – à norma restrita que o organismo foi levado a seguir no estado patológico. “Os filósofos discutem para saber se a tendência fundamental do ser vivente é a conservação ou a expansão. Parece que a experiência médica traria aqui um argumento de peso ao debate. (...) O instinto de conservação não é, de acordo com [Goldstein], a lei geral da vida, mas a lei de uma vida retirada. O organismo sadio visa menos se manter em seu estado e em seu ambiente presentes do que a realizar a sua natureza. Ora isso requer que o organismo, enfrentando os riscos, aceite a possibilidade de reações catastróficas. O homem saudável não se furta diante dos problemas que as mudanças lhe colocam, às vezes súbitas, de seus hábitos, mesmo fisiologicamente falando; ele mede sua saúde por sua capacidade de superar as crises orgânicas para instaurar uma nova ordem. O homem não se sente em boa saúde – que é a saúde – quando se sente mais do que normal (isto é, adaptado ao ambiente e às suas exigências), ou mais normativo: capaz de seguir novas normas de vida. (...) Entende-se que a saúde seja para o homem um sentimento de segurança na vida que não atribui a ele mesmo nenhum limite. Valere que originou “valor” significa, em latim, estar bem. A saúde é uma forma de abordar a existência sentindo-se não apenas possuidor ou portador, mas também, em caso de necessidade, criador de valor, fundador de normas vitais. (Canguilhem, 2005: 132-134).
A extrapolação do vital ao social não é evidente. O valor vital tem uma univocidade (uma evidência) completamente desprovida de valor social – é por isso que a metáfora organicista tem sido historicamente utilizada para limitar o pluralismo de valores políticos, o debate sobre os fins da vida social (Canguilhem,
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2002: 108-123). Isso, em compensação, é, sem dúvida, a força de um raciocínio a fortiori. Se, desde a vida orgânica, o corpo humano não saberia, sem sentir-se doente, se contentar em seguir as normas fisiológicas por elas mesmas, sob o pretexto de que elas seriam “o normal”, isso seria possível no nível da vida social? Canguilhem coloca em oposição as expressões: criador de valor, instaurador de normas. Elas são equivalentes porque descrevem as duas faces de um mesmo processo. Apenas na medida em que a norma antecedente encontra o modo ou maneira de se inscrever na dinâmica da sua existência, é que a pessoa lhe vai dar um valor. Mas parar na descrição não é senão descrever a metade da realidade da experiência das normas: porque ela também encontra normas antecedentes em relação às quais é preciso se posicionar, porque a normatividade em devir (do ponto de vista da construção) chega a existir no meio, na sua interação com o ambiente. Ora, se após Dewey, por exemplo, mas também, após Nietzsche ou o próprio Canguilhem, considera-se que a fonte do valor – pelo menos a vital – é o sentimento de um desabrochar exponencial dessa existência na sua interação in situ, pode-se muito bem compreender que estamos interessados (no sentido de Dewey, isto é, investidos, engajados) no resultado de nossos próprios debates de normas. O modo como nós vamos resolver as duplas obrigações (as situações problemáticas onde nós tentamos impor o nosso ponto de vista), em círculos viciosos ou círculos virtuosos, decide, de fato, o futuro da nossa existência – de seu desenvolvimento em emancipação ou em alienação. Em certo sentido, isso reflete um aspecto essencial da motivação. É muito frequente para ela mesma que se busque a competência. Tornar competente é uma perspectiva da evolução – e, portanto, auto-investimento – o que faz sentido porque isso significa não só ganhar o domínio, aumentar o seu poder (sobre os constrangimentos do real) ou acumular experiência variada – mas também crescer significativamente a autonomia, ou seja, para construir um ponto de vista (cognitivo, axiológico, relacional, estético e perceptivo, etc.) mais genuinamente pessoal. Parece-nos que é o desejo de se encontrar que está na base do amor ao trabalho bem-feito, tanto quanto de se realizar. Sobretudo, essas três expressões
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– metafóricas e talvez depreciadas – parecem tomar um sentido muito preciso, quando as modelizamos como constituição de um ponto de vista sobre a norma, através da atividade entendida como uma sequência de debates de normas. Ora, para não cair na armadilha da ilusão solipsista, é necessário ter em mente que não há “eu” fora de seu relacionamento com os outros. “Pensar é um exercício do homem que exige consciência de si na presença do mundo, não como a representação do sujeito Eu, mas como sua reivindicação, porque essa presença é a vigilância e, mais exatamente, sobre controle. De um ponto de vista filosófico, não há contradição em reconhecer uma subjetividade sem interioridade, que não cause suspeita de idealismo solipsista. “(Canguilhem, 1980: 29).
A “reivindicação” faz parte desses esforços para se constituir um ponto de vista sobre a norma, de modo a fazê-lo fazer norma – e essa é uma reivindicação no debate com os outros pontos de vista sobre a norma. Uma tarefa – com a sua norma antecedente – ganha todo o seu sentido quando é reinscrita no serviço, porque é vis-à-vis do ponto de vista dos outros que a minha interpretação da norma antecedente ressalta e realmente se torna a minha. Os outros – sob a forma de destinatário do serviço como de colegas com os quais formamos entidades coletivas relativamente pertinentes (Schwartz, 2000: 34-39) – medeiam o valor que dou à norma de minha ação. A unificação (que Dewey descreveu) entre a família e o emprego na motivação do trabalhador pode, sobre esse ponto, ser comparada ao que escreveu Canguilhem a propósito das reações ao taylorismo: “A prática dos trabalhadores de restrição de rendimento é um sintoma da sua não integração à empresa. Acredita-se poder remediá-la pelo desenvolvimento de serviços, dos clubes, das sociedades desportivas. Mas é claro que a insuficiência dessas práticas revela a incapacidade dos investigadores, agentes a serviço da empresa, de ver a empresa pelos olhos dos trabalhadores, de ver a empresa na sociedade, em lugar de fazer coincidir a sociedade e a empresa. (...) O que Friedman chama a “libertação do potencial do indivíduo “não é outra coisa senão essa normatividade que é para o homem o sentido de sua vida.” (Canguilhem, 1947: 134-135).
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Conclusão A partir de uma definição simétrica da competência – a mobilização de saberes em ação, produzir, na ação, os saberes – nós nos propusemos quatro perguntas para reabrir (o tempo da discussão) as caixas pretas sobre as quais uma disciplina deve sempre se apoiar: neste caso, as concepções de ação e de saber, que somos levados a pressupor em nossos argumentos e debates sobre competência. Ao invés de apresentar tal e qual a nossa tipologia dessas diferentes concepções, pareceu-nos interessante encenar o seu debate. Isso, certamente, permitiu mostrar não somente a sua coerência interna, as linhas divisórias que indicam os pontos de desacordo (por isso as apostas do problema), bem como os pontos fortes e as limitações que encontramos em nosso próprio trabalho – teórico e prático – com o conceito de competência. Sem resumir novamente o conteúdo de cada uma dessas concepções (serão encontrados os principais elementos positivos de cada uma, resumidos na tabela recapitulativa dessa parte), lembramos que nós distinguimos três dela: a ação como projeto (ao qual corresponderia o saber como conhecimento empírico e hiperespecializado dos meios subordinados); o ato como aventura (ao qual correspondia o saber como hipótese preditiva sobre as relações entre nossas ações e as consequentes respostas do ambiente); e, finalmente, a ação como prática de um agente (ao qual correspondia o saber como plano de reflexos adaptáveis, para corresponder espontaneamente aos comportamentos esperados). A partir do debate das concepções dessa tipologia, apresentamos – a coerência interna e nas suas posições relativas aos pontos em debate, nossas próprias hipóteses quanto à concepção de ação e de saber, da mesma forma de dar um conteúdo ao conceito de competência que melhor atenda às suas especificações. Considerar a atividade como uma experiência normativa – modelo que se inscreve diretamente na tradição canguilhemiana e no conceito ergológico de atividade como um resultado de debates de normas – permite considerar o saber como uma interpretação pertinente à situação, a partir das regras das normas que a constituem. Esse saber é, então, fundamentalmente a constituição de um ponto de vista sobre a norma (e sobre a situação feita de normas), através do debate com os pontos de vista dos outros, sobre essa mesma situação.
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As quatro perguntas que abrimos para interrogar as caixas-pretas encontraram, em cada fase do debate, elementos de resposta, relacionadas às concepções correspondentes. Nós não vamos resumir aqui os elementos que correspondem às nossas hipóteses sobre a competência: • acreditamos que os conhecimentos objetivos valem como normas antecedentes (em desaderência): para torná-las operacionais em aderência (aqui e agora), nós as desneutralizamos. Quer dizer que nós as fazemos “fazer norma, para nós”, nas circunstâncias desta situação. Essa operação tem sido descrita como a constituição de um ponto de vista sobre a norma, através do debate com os outros sobre essa norma. • pensamos que a resistência e, particularmente, a atividade de trabalho, pode ser autônoma e até mesmo enquadrada por normas antecedentes, na medida em que as condições são reunidas para que esses fatos de normas possam efetivamente “fazer norma” para o ator. Mas, assim como não há aplicação pura (mecânica), não há pura autonomia (autárquica): nossa normatividade necessita de, para se exercer, apoiar-se sobre as normas antecedentes, sem a qual ela gira no vazio. • acreditamos que a resistência do real em nossos atos é concretamente a situação de duplo constrangimento, que constantemente nos faz decidir. Enfrentar essa resistência é formador, porque coloca à prova o ponto de vista que faz a nossa compreensão da norma: dá-nos a fazer a experiência do círculo vicioso ou o círculo virtuoso, segundo o qual evolui a nossa interação com o meio. • por fim, acreditamos que a experiência vivenciada no debate de normas nos faz sentir o que está em jogo, tanto das normas antecedentes como das normas constitutivas da situação; o objeto próprio do saber da experiência nos parece ser a relação problemática entre essas duas fontes da norma. Essa é a razão pela qual não podemos evitar um retorno à perspectiva do ator, quando queremos saber como o fato de norma tem “feito norma” em sua atividade.
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As contribuições de cada concepção para o conteúdo do conceito de competência Organizar
Chefiar
Avaliar
Formar
Recrutar
Contribuição da ação como “Projeto”
A competência é o fato de que cada um preenche da melhor forma sua função no plano
A competência é a arte de aplicar bem o tipo previsto pelo plano aos diferentes casos encontrados
A competência é a adequação perfeita entre o objetivo previsto e o resultado obtido
A competência é o desenvolvimento de disposições atualizando algumas capacidades
A competência é uma adesão a “bem” do objetivo, suficiente para fazer desejáveis os meios
Contribuição do ato como “aventura”
A competência é a capacidade efetiva de fazer emergir um plano estratégico de uma interação Autônoma
A competência é uma atenção às respostas do ambiente para adaptar com precisão (via a reflexão) nossa ação
A competência é uma auto-validação performática e exponencial do ato que floresce a interação
A competência é a relevância do levantamento (de hipóteses conectando a priori minha ação e a reação do meio)
A competência é um engajamento no ato se consistente que unifica (veja que le identifica) o fim e os meios
Contribuição da ação como “prática” de um agente
A competência é um domínio das regras (que estruturam um campo) suficientes para bem se colocar nas relações de força
A competência difrata o esquema da ação (em substituição ao “tipo”) e o adapta à situação (que substitui o “caso”)
A competência toma liberdades com a regra (como se ela a esquecesse) e exige sua própria rede de leitura ao observador
A competência consiste em encontrar o tema sob variações, jogando-o, de modo mais ou menos “reflexo”
A competência é o investimento na emulação (ou rivalidade) que faz com que se “jogue o jogo” das normas
Contribuição da atividade como uma sequência de “Debates de normas”
A competência é o fato (irredutível) de que uma pessoa nunca está satisfeita por fazer o que se diz, massempre antecipar a norma – de tomar a iniciativa sobre ela
A competência consiste em se apropriar da norma antecedente de forma a implementá-la concretamente no seu próprio sentido (interpretar a carta segundo o espírito).
A competência é uma compreensão suficiente do sentido das normas (antecedentes e in situ) para ficar fiel aos primeiros levando em conta os segundos.
A competência é a constituição de um ponto de vista multilateral sobre a norma (através da confrontação com as dos outros) permitindo viver o que está em jogo.
A competência é o engajamento e a presença responsável de um ator que tenta existir em sua relação com as normas dos meios onde ele vive e age.
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Parte 3: Modelizar o agir em competência 1. Os ensinamentos do uso atual da palavra competência Analisamos, na primeira parte, cinco funções que dizem respeito ao pessoal de empresa: organizar, chefiar, avaliar, formar e recrutar. Para cada uma delas, buscamos o que a gestão entende quando faz uso da palavra competência: a maneira como ela “bricola” o termo, diante dos desafios que enfrenta. Esse desvio pelas práticas nos leva a expressar uma primeira formulação do conceito operacional: a competência é o saber que passa à ação. A fórmula revela imediatamente a dificuldade que os praticantes enfrentam. Nós pensamos ser claros sobre o input (aqui, o saber) e o output (aqui, a ação), mas o “que se passa” continua sendo uma blackbox, uma caixa preta ... Certamente, pode-se tirar partido de um sistema não entrando no motor deliberadamente: o problema é o limite de uma metáfora mecânica, é que não se geram competências como se dirige um carro. Na verdade, a competência é o vínculo entre os dois registros de confrontação no mundo real que Yves Schwartz chama de aderência e desaderência. O saber pertence ao registro da desaderência, a ação, à aderência. Passar de um ao outro, quer dizer mudar de registro. Se a competência é compreendida como um saber que passa à ação, é que a segunda não é mais tomada como redun-
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dância da primeira. Já não se percebe mais essa mudança de registro como uma evidência. Entre os profissionais e os teóricos dos “recursos humanos” no sentido amplo, agora as representações do trabalho evoluíram. O modelo rigorosamente aplicativo, aquele da era taylorista, já não é usado. Não se defende mais a ideia de um saber que teria uma qualidade operatória imediata: isso não é mais uma questão de passar do programa para sua realização. Todo mundo ou quase admite que existe uma distância entre o trabalho prescrito e o real. Consequentemente a intervenção humana é incontornável. Mas se o organizador é bem-orientado sobre as condições concretas do trabalho, ele deve contar com uma competência – uma pessoa competente – para atingir os resultados esperados. O conceito operacional de competência leva em conta a realidade da distância, uma vez que não só o operador tem que compensar a discrepância, mas ele mesmo é obrigado a ir mais longe. Ele deve esperar enfrentar o acontecimento, ter que improvisar as respostas frente à cascata de imprevistos que, sem dúvida, reservarão para a sua jornada de trabalho. A competência, em seus usos, é, portanto, de fato uma realidade (e não apenas uma palavra), uma realidade social, uma norma – uma norma específica, uma vez que exige ir além da conformidade. Numa segunda formulação do conceito operatório, diríamos então que para os práticos a competência é o saber que compõe com a ação. Isso é, por exemplo, o que Guy Le Boterf sugere, usando uma analogia musical em uma apresentação sobre competência: “A partitura (...) é de ordem do prescrito. A interpretação respeita as regras, mas não se reduz à sua aplicação mecânica. O talento do músico ou da orquestra intervém. O público informado sente a diferença entre a execução do iniciante e a de um mestre (...) A competência necessária é a partitura; essas são as regras ou critérios que devem ser respeitados. A competência real é a interpretação ou a improvisação. Enquanto a partitura é a mesma para todos, a interpretação é própria a cada um. Existe uma singularidade de competência real. Cada pessoa tem uma certa maneira de “apropriar-se disso” para realizar a atividade com competência” (1998: 145).
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Ao considerar, em seu uso da competência, uma composição do saber com a ação, os especialistas de “recursos humanos” começam a considerar a ideia de situação. As mudanças no ambiente de trabalho, desde o final dos Trinta Anos Gloriosos1, impuseram a todas as mentes a ideia de variabilidade, mesmo se, na realidade, ela sempre tenha estado lá, já que a estandardização não é ela mesma senão uma representação da atividade dos homens produtores. No entanto, como vamos ver, a impossível padronização continua sendo uma constatação que não ultrapassa o fato. Cada um dos protagonistas do trabalho apreende de um mundo em movimento, com um alcance de intervenção que pode evoluir a qualquer momento, as margens de manobra mais ou menos reduzidas, condições finalmente incertas e que assumem “uma inteligência da situação”. Para certos observadores, a competência, no fundo, seria primeiramente, procurada em “uma capacidade geral para enquadrar a situação, para lhe dar sentido, para ler o contexto que pode ser chamado de acordo com os autores,” inteligência “ ou “a intenção” “(Bellier, 2004: 91). Ao introduzir a referência sistemática às situações profissionais em sua diversidade, a lógica da competência, sem dúvida, introduziu uma forte perturbação e um questionamento nas formas de colocar, em todos os níveis de gestão, treinamento e recrutamento de pessoal. a) a supervisão de linha se tornou, com a chegada da abordagem de competências, menos técnica e muito mais um “gerenciamento de equipe”. É esse o momento em que as empresas adaptaram seus organogramas, reduzindo as linhas hierárquicas ao mesmo tempo, para racionalizar, economizar e responsabilizar. O chefe de equipe é aquele que dá as diretrizes a fim de alcançar, apesar de todos os obstáculos, resultados que estejam de acordo com os objetivos esperados. Ele tem, portanto, uma percepção aguda da situação, mas ele não a conceitualiza necessariamente fazendo uma cone1 N.T.: A expressão é atribuída ao demógrafo francês Jean Fourastié, que cunhou o termo em 1979, com a publicação de seu livro Les Trente Glorieuses ou la révolution invisible de 1946 à 1975.
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xão com a competência formalizada. Há uma espécie de paradoxo entre os supervisores locais: eles trabalham continuamente, de fato, com a noção de competência, recompondo suas equipes de acordo com os riscos, sabendo identificar quem saberá se virar melhor com esse ou aquele nó de problemas – e, ao mesmo tempo, muitas vezes são criticados por não se apropriarem suficientemente do conceito de competência nos exercícios de avaliação, especialmente durante entrevistas anuais com seus subordinados. Tudo se passa como se a abordagem da competência fosse demasiadamente intelectualizada, demasiadamente abstrata para que eles façam, diretamente, a relação com a situação concreta. b) os treinadores estão diretamente ligados, enquanto uma categoria profissional emergente, à história recente da abordagem de competência. A generalização de abordagens por alternância e os treinamentos a partir do trabalho levaram a uma rápida mudança na educação técnica tradicional. A ponto de que hoje podemos distinguir entre professor e treinador de acordo com suas respectivas abordagens de competência. O treinador tem, como o supervisor de linha, uma abordagem global do tipo “ser competente, é ter a inteligência da situação”. Ele não pode ignorar a relação da norma com relação ao saber. A desneutralização, o posicionamento pessoal, a afirmação de um ponto de vista são condições da apropriação das formas de fazer, pensar, dizer pelo aluno. O dilema operacional do treinador, de certa maneira, é que ele visa à eficiência em uma situação específica, portanto, singular no plano de escolhas – e, ao mesmo tempo, não quer prender o iniciante nesta situação: ele procura provocar uma mudança de ponto de vista de quem é treinado, de tal forma que ele reutilize em outro lugar o que aprendeu em determinado momento. Assim, o treinador vai tender a identificar nas situações os aspectos mais transversais, neutralizando os momentos de escolha – com o risco de deixar a competência parecer mais como um discurso sobre o domínio relativo do saber.
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c) os avaliadores, mais ainda, não escaparam do turbilhão da abordagem de competência no mundo corporativo. Foi necessário admitir os limites de um controle binário da única performance para se questionar, para além do ato bem-sucedido, sobre a maneira de aí se tomar e avaliar o próprio “agir em competência” ele mesmo. A dificuldade é que uma tão grande proximidade da situação hic et nunc relativiza o ato bem-sucedido (muito preso nas circunstâncias locais e, portanto, nas escolhas) e, inversamente, o afastamento do terreno reforça deploravelmente o anonimato do ato. Entre geral e específico, o avaliador deve, no entanto, dizer algo relevante sobre a competência do ator. Seu diagnóstico é impessoal o suficiente para ser crível e pessoal o suficiente para ser válido. Trata-se ainda de uma interpretação muito cognitivista que oferece – parece, uma solução provisória: baseia-se em alguns fatos verificáveis, completados por um exercício de reflexividade (ambos lógicos, portanto, tendendo para o neutro – mas pessoal, porque traçando um raciocínio adequado). A situação como experiência singular – isto é, como uma obrigação de escolha – é finalmente mantida à distância, em nome de um esforço de objetivação da competência. d) o lado do organizador, a chegada da noção de competência sem dúvida despertou a esperança, já que os modelos anteriores estavam sem fôlego. No entanto, a forma como os gestores tomaram posse da noção de competência é muito particular, uma vez que eles mantiveram principalmente a ideia de uma diferenciação das pessoas, mais fina do que a oferecida no sistema de qualificação. A competência se tornou, de acordo com alguns analistas, o equivalente à qualificação nos usos já feitos pelos líderes empresariais. É certo, no entanto, que o organizador deve prever os diferentes tipos de situações que podem surgir, a fim de melhor atender aos meios de resposta a eles. Para conseguir isso, ele precisa necessariamente de uma perspectiva redutora: ao contrário do supervisor que enfrenta uma situação após a outra, o organizador deve considerá-las todas. Ele perde em profundidade o que ganha em visão panorâmica. A situação para um organizador, portanto, per-
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manece virtual, e a percepção da competência permanece, inevitavelmente esquemática. Essa é, sem dúvida, a razão pela qual o organizador tende a confundir a competência com a polivalência, isto é, a conduta de situações diversificadas. e) resta a função de recrutamento, que também conseguiu acolher, com interesse, a rápida difusão das lógicas próprias da competência. A contratação com base na qualificação adquirida pelos candidatos foi, por si só, mais simples, a posição aberta ao recrutamento também pode ser qualificada, a fim de aproximar os perfis. No entanto, as empresas impuseram claramente aos recrutadores uma missão dupla que não poderia mais ser preenchida usando o único sistema de qualificação: o candidato selecionado não só deverá atender aos requisitos do posto de trabalho, mas também ter a capacidade de evoluir na empresa, acompanhando o ritmo de mudança permanente. O recrutador, então, usa o vocabulário da habilidade à sua maneira, para designar tudo o que não está explicitamente na qualificação e que ele considera como um atributo pessoal ao fazer sua seleção. Pode-se pensar, no entanto, que a noção de competência também teve outro efeito sobre as práticas de recrutamento: o de prestar mais atenção à situação, no sentido do coletivo de trabalho. Porque não é tanto a singularidade das situações profissionais que interessam aos recrutadores quanto a dimensão do serviço a ser prestado. Um candidato brilhante com conhecimento das tarefas pode ser demitido por receio de incompatibilidades com colegas. Dissemos que, de acordo com nossa análise, os profissionais e os teóricos dos “recursos humanos” começam hoje a abordar a noção de situação nas suas reflexões sobre competência entendida como uma aproximação do conhecimento e da ação, mas afirmando apenas o “fato” da impossibilidade de recurso à estandardização. É, de fato, inegável e, além disso, amplamente demonstrado, que a situação encontrada pelo operador contradiz, de certa forma, o que foi prescrito ou pensado antecipadamente. Para chegar a um resultado que atenda às expectativas, esse operador deve ousar trabalhar de forma diferente. O conceito operacional de
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competência, aquele que se manifesta nos diferentes usos que analisamos, mostra claramente essa aquisição da referência à situação, que o conceito de qualificação não possuía. O trabalho real de fato foi deliberadamente ignorado pela qualificação, que quer um operador generalizado e impessoal. De agora em diante, estamos um pouco mais atentos e admitimos a insuficiência do pensamento organizador, conceitual, em relação à diversidade de situações. Somos conscientes da realidade que surge no trabalho sem ter sido necessariamente antecipada, o que proíbe falar desse trabalho como uma simples aplicação do prescrito. Em virtude de reconhecermos o fato de um retratamento dos modelos da organização por aqueles que intervêm realmente no terreno, admite-se o fato da personalização dos modos de fazer, dos “estilos” – tanto no nível quase imperceptível dos gestos profissionais, quanto no nível coletivo. No entanto, em nossa opinião, esse reconhecimento dos fatos não é suficiente: estamos, na verdade, no meio do caminho. Embora o reconhecimento da variabilidade das situações tenha sido um avanço definitivo, incontestavelmente ainda falta alguma coisa no raciocínio sobre a competência no trabalho. É o que testemunham as duras críticas da abordagem de competência, como a de Jean-Pierre Le Goff, que não hesita em falar de “desumanização”: “O que significa hoje a longa lista de itens de competências para aquele que trabalha? A atividade de trabalho também se tornou irreconhecível. As competências são divididas em tantas normas apresentados quanto os objetivos que os funcionários devem atender se quiserem se adaptar às mudanças e manter seus empregos. (...) A ‘mobilização da inteligência’ e o ‘saber-ser’ são vistos como fatores-chave no desenvolvimento da produtividade e da qualidade. Mas o que mudou em relação à representação mecânica do trabalho humano? Em referência às ciências cognitivas, a inteligência é considerada como um mecanismo de processamento de informações cujo funcionamento e aperfeiçoamento são coisas de especialistas. O ‘saber-ser’ que envolve competências comportamentais e relacionais também está integrado a esse modelo. Os ‘Estados internos’, as sensações, os sentimentos, os valores ... são levados em conta na mesma lógica que reduz o homem no trabalho a um mecanismo que poderia ser dominado e manipulado livremente” (1999: 34).
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O que o autor critica fundamentalmente na abordagem da competência é de ter ignorado a atividade de trabalho: “Porque o trabalho não é apenas uma questão de ‘competência’ ou atividade cognitiva, não é não só um ‘processo’ para racionalizar, é também um ‘mundo’ no qual o indivíduo se confronta com os limites do possível, entra em cooperação e conflitos com os outros, adquire hábitos e valores que são constitutivos de uma identidade individual e coletiva. O termo ‘mundo do trabalho’ é cada vez menos usual. Essa evolução é significativa não só da erosão de uma ‘cultura operária’, mas da maneira como o trabalho está sendo cada vez mais abordado hoje. Não são apenas as condições em que essa atividade se desenvolve, que não são mais levadas em consideração, mas a experiência humana que ela constitui, o tecido das relações humanas que é inerente a ela. Este mundo de trabalho é significativo para aqueles que trabalham” (idem: 35).
Nossa hipótese é a seguinte: se as reflexões e práticas de gestão atuais em torno da noção de competência são denunciadas por sua forma de abordar o ser humano no trabalho, é porque elas nem sempre levaram realmente em consideração o registro da aderência. Não basta considerar a variabilidade das situações de trabalho, porque é possível continuar a pensar que o tratamento dos riscos é viável pela simples desaderência, isto é, por um “saber-agir” pré-constituído. A maioria dos atores na vida profissional felizmente desistiram da ideia de representar uma separação no trabalho entre seres humanos que pensam e outros que agem, mas a resistência ainda está na ideia que temos de nossa faculdade de conceitos. Os organizadores do trabalho realmente admitiram sua incapacidade de prever tudo: no entanto, eles continuam a pensar que é o esforço de neutralização que é o elemento caracterizador do conhecimento, que é a única garantia de operacionalidade na prática. Parece que, coletivamente, temos dificuldade em admitir a insuficiência do conceito, que é sempre sobrecarregado pela vida – ao mesmo tempo em que é reavivado indefinidamente na sua conquista do conhecimento, porque é precisamente superado pelo inédito do ato. Não recebemos bem a ideia de que existe um registro da aderência, em ruptura com o da desaderência. Porque a aderência inflige um choque às nossas certezas de poder antecipar tudo: não controlamos tudo. O agir é sempre um compromisso entre as restrições que vão
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permanecer restrições em nossas próprias iniciativas. Essas nos permitem tornar certas restrições em oportunidades, por servirem ao nosso projeto de transformação ou de conhecimento, enquanto nos arranjamos com outras restrições que sofremos. Isto é o que encontramos em filigrana no protesto de J.-P. Le Goff: a vida real, aquela que todos os dias cada um de nós experimentamos, desapareceu na leitura do mundo que os arautos de uma nova era dominada pela competência propõem. Seus discursos não levam em consideração a relação entre o ser humano e seu ambiente. É como se a situação nas empresas fosse apenas informativa, que seria suficiente tratar com os bons modelos nas mãos dos organizadores. A vida ordinária no local de trabalho é, desse ponto de vista, dominada por quadros em que se pretende intervir e, assim, condicionar essa vida na direção desejada pela administração. Mas podemos dizer exatamente o oposto: além de ser uma sequência pré-pensada, pré-enquadrada, a situação de trabalho é principalmente um momento de vida, e é essa vida que dá uma realidade aos quadros e à organização em geral. Ambas as perspectivas estão em interação permanente em “dupla antecipação”.
2. Avanços e limites do discurso gerencial atual: o caso de Guy Le Boterf 2.1. O ponto de vista do autor O discurso gerencial se abre à noção de situação, buscando assim o caminho de uma saída progressiva do paradigma taylorista. No entanto – é nossa hipótese, como já dissemos – o caminho percorrido não é suficiente. A mudança é bastante significativa em razão de ter reorientado, há aproximadamente três décadas, em todos os níveis, todos os protagonistas das situações de trabalho. Entretanto, não tendo sido bem-sucedida hoje, ela provoca certos requisitos negativos, como acabamos de ver com o autor de La Barbarie douce (1999) –enquanto todos, incluindo o último, concordam com a urgência de uma nova abordagem do emprego e das competências num mundo em constante mudança, obrigando-nos a antecipar tudo aquilo que pode ser antecipado. Pensamos que, se interpretado até o seu limite,
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o conceito de competência representa uma oportunidade de transformar nossa percepção do trabalho – e, mais ainda talvez, de enxergar novas pistas de viver em coletividade, pois trata-se de compreender a experiência humana como uma experiência normativa. Para explicitar mais ainda o nosso ponto de vista, propomos partir dos trabalhos de Guy Le Boterf, o promotor da abordagem intitulada “agir com competência na situação”. Autor de inúmeros livros sobre a questão, G. Le Boterf é também um consultor que goza, atualmente, de uma ampla audiência nas empresas e organizações socioprofissionais. Ele é um representante importante de um pensamento gerencial relativamente avançado em como tratar o tema da competência no trabalho e da engenharia das competências em formação. Primeiramente, vamos expor o raciocínio G. Le Boterf a respeito das competências na gestão de “recursos humanos” e em formação (2002b), para os extratos seguintes: a) De acordo com G. Le Boterf, entende-se, primeiramente, a competência como um “saber agir”. Ele pretende atualizar o conceito de competência que é, na organização taylorista uma prescrição restrita, um “saber-fazer em situação.” Nessas circunstâncias, o trabalhador deve “saber executar uma operação prescrita e aplicar instruções.” Segundo ele, ao contrário, nas novas organizações de trabalho, quanto mais a prescrição é aberta mais vai se falar da competência em termos de saber como “agir em situação”. O operador é obrigado a agir com uma margem de autonomia, de arbitrar sem ter necessariamente todas as informações úteis. Ser competente significa, no presente, “ir além do prescrito”. b) A competência significa igualmente para G. Le Boterf um “saber combinar”. Segundo ele, a competência está organizada em sistemas e não em adição de ingredientes heterogêneos. A pessoa competente é aquela que faz interagir os recursos de que ela dispõe. Em consequência a validação das competências
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não saberia ser o controle separado de cada um dos recursos: ela deve ser verificada na situação de trabalho “que o sujeito é capaz de selecioná-los, combiná-los e mobilizá-los de forma pertinente.” Isso significa igualmente que as competências requisitadas, codificadas em referenciais, não correspondem exatamente à “competência real” elaborada por cada um e que é “uma disposição para agir numa família de situações”. c) A competência é, enfim, um “saber interagir com o outro”. Para G. Le Boterf, mobilizar e combinar seus próprios recursos não basta, pois é preciso tirar proveito dos recursos em situação, no meio ambiente e com as redes (com tudo que estiver interligado). Os coletivos são, por sua vez, referências para as maneiras de agir no trabalho, as “regras da arte” e dos apoios para a cooperação no trabalho diante das incertezas que caracterizam as situações encontradas. d) Entretanto, acrescenta G. Le Boterf, o reconhecimento de uma competência não poderia ficar limitado ao ato praticado, que pode acontecer por acaso. É julgado competente aquele que comprova sua reflexividade mostrando que pode reinvestir, em contextos distintos, suas maneiras de obter sucesso. “É paradoxalmente compreendendo como nos preparamos para agir eficazmente em um contexto particular que nos preparamos para agir em um contexto diferente.”
2.2 O ponto de vista crítico sobre o saber agir Retomemos as etapas do raciocínio de Guy Le Boterf, de modo a relevar, ao mesmo tempo, o que é, aos nossos olhos, não somente um incontestável avanço, mas também o que nos surge como limite, considerando a nossa própria investigação sobre a relação entre a atividade e a competência. Le Boterf assume posição com relação às práticas das empresas diante da mudança e da incerteza. Ele denuncia as soluções habituais que consistem em
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adicionar sempre mais regras a fim de controlar a variabilidade. Em razão da demanda crescente de confiança por parte do seu ambiente, os empresários têm respondido ao imperativo de confiabilidade por meio do aumento de procedimentos e uma automação excessiva. É momento, segundo ele, de acreditar na competência dos profissionais. Le Boterf leva em consideração, em particular, resultados da investigação dos ergonomistas, a propósito da diferença entre o trabalho prescrito e o trabalho real. É preciso: “pessoas capazes de reagir aos acontecimentos previsíveis ou imprevisíveis, de serem capazes de esconder, ainda que de modo provisório as falhas dos sistemas técnicos, de enfrentar situações não rotineiras, de ir além de procedimentos a serem executados, de lidar com o inédito, de tomar iniciativas pertinentes, arbitrar, inovar todos os dias “(2010: 75).
A dificuldade para nós se encontra nas premissas do raciocínio: haveria momentos no trabalho, em que a tarefa seria suficientemente explícita para ser aplicada ao pé da letra. A expressão utilizada aqui – um saber-fazer em situação – contém, além disso, uma forma de contradição em relação aos termos. Se partimos da hipótese de um trabalho inteiramente alienado, ao qual bastaria aplicar as orientações, não vemos o que justificaria nesse “fazer” um espaço qualquer para um saber. Em seguida, qual seria a diferença entre um trabalho que se limita a fazer e um outro que autoriza um “agir”? Para o autor, parece que essa seja uma questão de informações disponíveis. Contrariamente ao que caracterizava o trabalho na cadeia de montagem, as organizações atuais não estão em condições de prescrever tudo. Uma situação da qual não se pode conhecer tudo de antemão, sendo impossível estandardizar, o operador iria encontrar a matéria para saber e para agir. Consciente, sem dúvida, da fragilidade da argumentação, G. Le Boterf afirma que ele não está defendendo uma visão maniqueísta dos empregos: saber-fazer e saber-agir iriam se revezar como momentos, no intercâmbio entre o indivíduo e a organização. É o que, de acordo com o autor, iria tornar indispensável uma perspicácia dos responsáveis pelo pessoal, quanto à natureza das exigências em
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cada uma das situações de trabalho: se uma delas prevê margens de manobra, as competências devem corresponder em termos de “saber agir.” Certamente, o “saber-fazer” é uma expressão que todos utilizam deliberadamente como uma caixa-preta, para designar um fenômeno óbvio, mas que não se consegue necessariamente explicar. Todavia, quando o opomos ao “saber agir”, subentende uma oposição do tipo poiësis e práxis. Ora, pensamos que é inconcebível limitar o trabalho de um ser humano ao funcionamento de uma máquina, isto é, à sua estrita aplicação. Não é mais aceitável falar de alternância “homem-máquina/ homem inteligente.” Não se compreende uma situação de trabalho sob o ângulo exclusivo da troca de informações. E aquele que evolui nessa situação não se deixa de modo algum simplificar, para não existir senão no plano cognitivo – e mais, sobre o modo o “on” ou “off”. Não há trabalho sem agir e nem agir sem interpretação. O agir corresponde a uma experiência normativa, o que significa que um assujeitamento é conduzido por uma iniciativa. Um supõe o outro, uma passa pelo outro: estruturalmente, a poièsis supõe uma práxis. Afirmar isso não é, entretanto, o equivalente da proposição de G. Le Boterf “um saber agir comporta e combina diversos saber-fazer” (2002b). Queremos dizer que uma norma visa ao assujeitamento, mas ela supõe um ser normativo, então, um “relais” de existência. Não se trata da ideia de um saber agir (inventar normas quando não há normas) que iria conter saberes de produzir (bem respeitar a norma explícita): como as diferentes formas do segundo poderiam se reencontrar no primeiro? Agir em situação nova não é reencontrar normas que já eram conhecidas, é sobretudo, reinventar, readaptar as normas no inédito. O fazer/poïèsis não poderia ser impermeável ao agir/práxis ... Agir significa “fazer alguma coisa” no sentido de seguir uma regra, mas retomando a iniciativa sobre essa regra, mas de maneira a que ela não permaneça somente como um constrangimento, mas apareça igualmente como uma oportunidade. Não existe o “puro ator” da norma: cada um tenta, modestamente, ser um pouco autor (portanto, relativamente responsável) daquilo que ele empreende para alcançar a norma. Ele não a aplica sem viver a norma com aquilo que ele é, caso contrário, ele seria um robô.
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2.3 O ponto de vista crítico sobre o saber combinar Em seguida, Guy Le Boterf propõe falar da competência como um saber combinar. Isso levanta outras questões. “As competências não são entidades que existiriam independentemente das práticas de avaliação que procuram identificá-las”, escreve o autor em outro momento do texto (1998:144). Estamos de acordo em que uma competência seja entendida como uma convenção, uma maneira de falar da maneira de agir de alguém. Nós nos unimos, portanto, ao autor para dizer que não existe um perfil típico de competência, nenhum critério universal (formal, estrutural) para julgar a priori, se tal pessoa é competente ou não. Quando se fala de competências requeridas, fixamos de algum modo as normas antecedentes da tarefa: isso não significa que o operador vá extrair potencialidades que dormem nele, mas isso quer dizer que não se põe de acordo sobre um referencial: a base de uma exigência (eis o que lhes peço e vou julgar com base naqueles critérios); a base de uma reivindicação (eis sobre quais índices quero ser reconhecido à altura da tarefa que me é confiada) e de um direito (eis qual será a minha contribuição e tenho direito aos meios que a acompanham: um poder de agir). Na medida em que a competência exprime assim, uma convenção, uma linguagem comum a propósito de um agir, o que pode querer dizer “combinar” competências? A competência no singular representa um julgamento geral sobre a pessoa e seu trabalho, enquanto as competências no plural levam o julgamento aos detalhes desse trabalho. Contudo, em todos os casos, falamos de uma descrição categorial, formal da atividade de qualquer pessoa – e não de elementos tangíveis. Para se explicar, G. Le Boterf toma o exemplo do ciclista: ele deve saber pedalar, frear, acelerar e, entretanto, sua competência global é mais do que uma adição de saber-fazer. Certamente, o modelo de competência como acumulação não é crível, mas o modelo da combinatória para nós é dificilmente aceitável. Efetivamente, se se analisa com exagero, perde-se a relação, e isso faz o autor dizer que existe uma dinâmica interacional entre os elementos da competência, que ele qualifica de “sistema” (2002b). Entretanto, não pensamos que a singularidade do ato e sua
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irredutibilidade relevem uma lógica combinatória: é possível predizer com grande precisão diferentes formas de um modelo matemático, mas jamais as de uma ação! Além disso, uma combinatória não faz uma singularidade. O ciclista veio a andar de bicicleta não por causa do gerenciamento de recursos segundo um estilo próprio, mas porque ele encara a estrada para ficar em equilíbrio: ele está em debate com o seu meio, enfrentando obstáculos os quais ele tenta superar, ter iniciativa. Ele aprende e sabe efetivamente andar de bicicleta dado que está em atividade, movido por uma insatisfação que é um desejo de existir singularmente. Mas essa singularidade não é um fato constatado de antemão: ela continua a conquistar e isso é precisamente o que incita o ciclista a voltar a subir em sua bicicleta (...). Por sua parte, Yves Schwartz (1997) apresenta seu modelo de inteligibilidade da competência como uma combinação de ingredientes heterogêneos. Ele não fala de uma combinatória, porque esse termo sugere uma configuração de um número finito de elementos, mas de uma mistura como quando se coloca uma comida pronta no prato. Os componentes do agir em competência – que agem uns sobre aos outros – não são todos tratados da mesma maneira, isto é, de maneira lógica, porque eles são trabalhamos mais sobre um plano axiológico. As normas antecedentes que permitem que uma situação de trabalho aconteça vão ser reprocessadas por cada um em função da sua percepção de urgências, de seus preconceitos, do que é norma para ele. Falaremos de debate de normas para designar a comensurabilidade conflituosa das normas. Além disso, quando comenta seu modelo, Y. Schwartz salienta que o tratamento heterogêneo de ingredientes heterogêneos não se presta a uma avaliação homogênea. A maneira, por exemplo, como uma pessoa participa das sinergias coletivas não pode ser avaliada da mesma maneira como pode ser avaliado o domínio de técnicas. Guy Le Boterf, ao contrário, procura unificar com um mesmo termo o que ele chama de “recursos”, confundindo o que é geralmente distinguido no esquema da ação: as condições – circunstâncias objetivas, subjetivas – os meios, a ação de pôr em trabalho... Essa generalização favorece a abstração a ponto de fazer desse “recurso” uma pura possibilidade (pode-se tratar de um meio, de um esforço, de
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uma autorização, de uma alternativa, de uma oportunidade etc.), da qual se fala como um elemento objetivável, “um dado” na análise da situação. Ora, um recurso, na realidade, não aparece como tal senão em função de um ponto de vista: em outros termos, em função da atividade de alguém, em relação com seu meio de vida. Esta questão da combinatória de recursos vai criar uma nova dificuldade na avaliação da competência. Guy Le Boterf recomenda não mais se limitar a controlar separadamente a aquisição dos recursos, mas “assegurar que o sujeito é capaz de selecioná-los, combiná-los e de mobilizá-los de modo permanente em uma situação de trabalho particular” (2002b). Parece-nos que o autor confunde aqui a avaliação e o controle, na medida em que a avaliação, como cruzamento de pontos de vista, visa à competência no singular e ao controle (a coleta de fatos probantes) diz respeito mais às competências no plural. Num primeiro momento, acreditamos, a avaliação olha o exercício singular de uma pessoa a quem se confiou uma tarefa. Essa pessoa defende sua interpretação, que está sujeita a debate. O referencial vai, na sequência, apresentar uma pedra de toque e, portanto, uma proteção diante do arbitrário das interpretações. Constata-se um fato, que é recortado com outros fatos para daí concluir do real ao possível, à capacidade de fazer: existe sempre uma margem de debate, que se pondera com a avaliação – sendo esse relevante igualmente de uma aposta interpretativa. Em suma, utiliza-se a estabilidade de um referencial (resultante de um debate) para dar à avaliação, ao mesmo tempo, uma pertinência e uma legitimidade. Essa maneira de utilizar o referencial nos lembra de que a aquisição de que se fala não é outra senão a atividade mesma: não estocamos “as aquisições” em nós mesmos, numa loja interior; estamos total e simplesmente em atividade. O mal-entendido se prolonga com a distinção que G. Le Boterf faz entre as competências requeridas e as competências reais. A competência é sempre da ordem de um discurso (normativo) que se apoia sobre fatos. Trata-se de uma convenção de descrição, uma maneira de falar do agir de uma pessoa bem-identificada. Quando se desloca da palavra para a coisa, do substantivo para a substância deixa-se acreditar que a competência/convenção não seria senão um reflexo de
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uma competência/realidade. E o que surge desse imbróglio uma (des) realização da única coisa que é real, a saber, a convenção em si mesma! A dupla “competência requerida e competência real” nos parece, então, ser uma distinção falsa que ocasiona problemas falsos: as competências não precedem a ação como suas condições de possibilidade (condições subjetivas, no sentido de pertencerem ao sujeito da ação), mas ao contrário, a ação sendo realizada, as competências são uma grade, uma referência, um conjunto de coordenadas para descrever e formalizar a posteriori essa ação, como uma maneira de falar dessa ação. Com razão, Le Boterf faz notar que um referencial está em discordância com a realidade, ele não dá a imagem fiel do agir de uma pessoa em um determinado momento. É que a pessoa em atividade está em evolução, ao passo que o referencial é uma ferramenta, uma maneira de falar da atividade. Aí não pode haver uma homotesia2 entre os dois, o referencial e a atividade, uma vez que o primeiro pertence ao registro da desaderência e a segunda, ao registro da aderência. O que conta é não se enganar em relação ao registro, ter o referencial pelo o que ele é: um traço, mais como parte de um todo do que de uma tendência sem dúvida, dessa atividade de que não se pode falar sem normas. A norma antecedente é sempre uma referência (um sinal indicador, não o trilho...) para aqueles que devem agir – e é para isso que serve o referencial, tanto para o administrador quanto para o empregado.
2.4. O ponto de vista crítico sobre o saber interagir e a reflexividade Guy Le Boterf propõe, finalmente, associar a competência a um “saber interagir com o outro”: saber tomar de empréstimo e utilizar os meios dos outros; saber falar com o cliente, mostrar-se profissional em relação a ele; saber resolver as situações-problemas em relação às normas do ofício e da empresa. Saber interagir não traz como consequência nada de novo, já que o saber agir já está enraizado na situação, a qual só existe em relação com os outros. Além disso, como no conjunto de sua argumentação, G. Le Boterf usa aqui a palavra saber como si2. N. T.: Propriedade de figuras semelhantes e semelhantemente dispostas (Aurélio, 2009).
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nônimo da competência. Ora, se a competência foi identificada a um saber, ela poderia ser ensinada – e esse não é o caso. Trata-se, sobretudo, de uma relação ao saber, sobre a qual trazemos um julgamento: julgamos positivamente alguém declarando-o competente; reconhecemos seu domínio da situação, ou seja, a sua relação com o saber, entendido como um ponto de vista sobre as normas e seu investimento na situação. Último ponto: a reflexividade. Sem sombra de dúvida, adotar um ponto de vista crítico sobre o que se empreende é um meio de se tornar mais competente. Consideramos que a competência caracteriza aquilo que desenvolve um ponto de vista sobre a norma, de maneira a suportá-la normativamente, existindo face a ela e através dela. Contudo, no modelo proposto por G. Le Boterf, a inclusão de um capítulo sobre a reflexividade pode surpreender. Na verdade, ‘autorregular a sua ação’ e ‘compreender como se segurar nessa ação’ deveriam ser os fundamentos do saber agir, ele mesmo identificado com a competência pelo autor. Se a reflexividade é até agora uma dimensão adicional, uma capacidade cognitiva para desenvolver novas estratégias, já não se entende mais exatamente o que recobre o saber agir. “Poder analisar e explicar sua maneira de fazer” (2002b) pode ser entendido como o domínio do porquê, em complemento ao como. Contudo, não pensamos que a competência possa ser unicamente de natureza cognitiva, localizável unicamente pela análise lógica. Todo o sentido da retomada crítica é ir além da análise da eficácia dos meios, para provar o recuo axiológico, para pôr em perspectiva, a fim de cruzar os diferentes pontos de vista. No singular, a competência é uma apreciação geral que sanciona e encoraja o distanciamento e a formação de um ponto de vista. O debate interpretativo serve para entender a relação com as normas, o que faz com que a pessoa vá além do prescrito, reinterprete sua tarefa no serviço. As linhas do referencial vêm apoiar este esforço de interpretação, propondo a formulação “ser capaz de” que identifica as competências no plural, como um ensaio de generalização e de abandono do imediatismo, da particularidade da tarefa.
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Não saber agir com competência em tal situação: isso significa que a pessoa não soube o que fazer? Ou que ela não soube restituir o que ela aprendeu entrando no concreto? No segundo caso, respondemos que isso não é necessariamente um problema de análise lógica, porque o problema pode também revelar um posicionamento axiológico. Na primeira hipótese, diríamos que um insucesso não significa que a pessoa não era competente. Resta saber o que ela faz da sua situação de insucesso: ser competente, acreditamos, é gerir de uma maneira pertinente um insucesso eventual, que não depende jamais unicamente de nós. Seria possível mesmo dizer (cf. Mendel, 1998) que, já que agir é de alguma forma surfar sobre a crista ativo/passivo, nossos sucessos não dependem apenas de nós. Na perspectiva da atividade, nós não temos nem de nos culparmos de nossos fracassos, nem a nos glorificarmos de nossas realizações: tudo depende da forma como gerimos a evolução do curso das coisas, na situação em que se investiu. Podemos ter sucesso em coisas sem sermos competente (se tudo corre bem, as situações se ajustam, às vezes, por si mesmas) assim como o inverso. É também por esta razão que um júri de avaliação das competências vai buscar verificar na perspectiva da pessoa se ela é ou não competente: ela será julgada em relação à maneira como geriu a situação.
2.5. Conclusão sobre a obra de G. Le Boterf Na área de “recursos humanos”, Guy Le Boterf exige uma renovação da abordagem de competências empresariais. Ele denuncia a fixidez da abordagem tradicional, o seu lado fragmentado, que lista separadamente as características prescritas da tarefa e do ator e a generalidade da proposta, ao passo que seria necessário partir das situações de trabalho específicas. O autor representa um progresso inegável no pensamento gerencial hexagonal. Sua abordagem é manifestadamente inspirada pelas teorias da ação, com o esquema clássico do processo: um assunto independente que é tomado em circunstâncias (que não dependem dele) e meios (que dependem dele), no momento de se engajar em uma ação (com um projeto e sua execução) e de produzir um resultado. Encontra-se esse esquema em todos os três componentes do saber agir: primeiramente, os recursos (pessoais e externos – esses são os meios); em seguida, as atividades-chave a serem realizadas (esses são
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os objetivos) e, finalmente, os resultados. Guy Le Boterf, porém, insiste em três coisas: a particularização das situações mudando no trabalho; a recombinação do prescrito em estratégias particulares; finalmente, a transferência das competências, uma generalidade que não é dada com antecedência, mas se constrói pela análise lógica reflexiva. Esta é sua introdução de situações particulares que o levaram a transformar a trilogia “saber, saber-fazer, saber-ser” em um novo triângulo: o querer agir (representando o sujeito e isso que o motiva); o poder agir (representando as circunstâncias/condições da situação, os meios); e o saber agir (aplicar o procedimento sob a forma de uma estratégia adaptada à situação particular). Guy Le Boterf se dedica à mentalidade muito aplicativa que domina a governança do trabalho ainda hoje amplamente. Ele gasta, então, bastante energia explicando o que será descoberto, levantando o véu da aplicação: de uma parte a situação profissional, onde nem tudo é prescrito pela organização e, de outra parte, o comportamento de elaboração de uma estratégia, para essa situação particular, por um indivíduo. Para o autor, a competência é sinônimo de combinação original de recursos ou ainda “de interpretação da partitura.” Os dois conceitos de situação profissional e de prática profissional correspondem a um duplo movimento que realmente caracteriza o trabalho: primeiramente, a abstração/generalização, e depois, a re-contextualização. No entanto, para essa análise do trabalho, G. Le Boterf se atém estritamente ao plano cognitivo. Isso é o que o distingue de uma abordagem pela atividade, tal como foi proposto pela análise ergológica. Yves Schwartz, com efeito, reconhece o esforço de abstração/generalização, que ele chama de “desaderência” uma tensão tanto conceitual quanto axiológica: e essas duas formas de desaderência só têm sentido ligadas. Na verdade, é porque queremos ganhar em objetividade (incluindo aí o sentido corrente de consenso) que desaderimos conceitualmente – e isso significa se desfazer de seus juízos de valor, a fim de se esforçar para se tornar imparcial. Então, se não fizermos a ruptura epistemológica, procuramos descobrir os juízos de valores residuais até negar a humanidade de seu próprio ponto de vista (cf. “a função essencial da ciência é a de
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desvalorizar as qualidades dos objetos que compõem o meio próprio, propondo-se como teoria geral do meio real, quer dizer inumano”; Canguilhem, 1965: 153). O ser humano está constantemente em aderência com o meio em que vive, notadamente no trabalho. E, simultaneamente, ele busca sem descanso se distanciar desse meio e desse momento, graças à sua faculdade de pensar em desaderência. Quando não afrouxa essa tensão entre a aderência e desaderência, no momento de refletir sobre uma questão relativa ao humano, percebe-se que as análises nos pareciam colar à realidade, refleti-la, destacando-se ao contrário – o que deixa aparecer o espaço de um debate, ou seja, o reconhecimento de um ponto de vista naquele que faz o objeto dessa análise. Esse destaque sistemático, graças ao par aderência/desaderência, não conduz necessariamente a algum analista ergólogo a contradizer o que é dito sobre a atividade humana (além disso, ele não traz nenhum fato novo), mas frequentemente desloca os pontos de vista, justamente ao jogar luz sobre os debates da atividade, os debates de normas. É por isso que nós nos felicitamos pela abordagem adotada por Guy Le Boterf para trazer o pensamento gerencial a considerar ainda mais as situações de trabalho. Porém, esse autor se posiciona sempre em desaderência. Inclusive quando ele fala do singular, uma vez que ele pensa sobre as combinatórias, ele não percebe a aderência. Esse acantonamento no registo do geral o impede de considerar o específico simultaneamente. Ele continua no único esquema clássico da ação. Ora, quando se ignora a atividade, corre-se o risco de ficar presos em um dualismo. Percebe-se o ato como o confronto de dois blocos, um interior e o outro exterior àquele que age: eu e o mundo. “Eu me preparo, eu otimizo meus meios e eu enfrento o mundo – que me é favorável ou não, nas circunstâncias em que ele se opõe a mim.” Para nós, isso não é a atividade. A atividade está numa aventura de uma confrontação incerta com o mundo porque, quando tem início a ação, eu não gerencio mais tudo. “O risco é o ato, como o caroço é parte integrante da cereja” escreve G. Mendel (1998:323).
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3. O estado de nossa pesquisa: gerar os modelos para desenvolver e avaliar as competências que respondam equitativamente à dupla exigência de objetividade e de diálogo 3.1. Dar visibilidade à aderência, a fim de melhor falar da competência, com os Dispositivos Dinâmicos a Três Polos Como um sistema de normas, já dissemos, uma organização deve se instalar em um paradoxo, o de apoiar-se simultaneamente sobre uma anonimização e uma personalização. A anonimização permite a gestão das competências porque as maneiras de fazer a gestão seriam por demais pressionadas se levassem em conta as singularidades. Inversamente, é a personalização que torna possível a operacionalização do prescrito, visto que o trabalho não pode se realizar de forma neutra. O debate entre a qualificação e competência conferiu ainda mais acuidade para este paradoxo normativo. Com a qualificação, a controvérsia em torno da interpretação dos conteúdos e dos níveis hierárquicos era explícita porque o julgamento era suficientemente exteriorizado e livremente distante do trabalho real. No modelo de competência, o julgamento é mais interiorizado e não aparente. Logo, é mais difícil distinguir anonimização e a personalização pelo fato de que buscamos colá-las à realidade do trabalho. Se os modelos atuais de gestão das competências ainda geram muita insatisfação entre os utilizadores é que as duas exigências de objetivação (condição objetiva, neutralização, anonimização) e de transformação (interpretação de acordo com um ponto de vista, portanto tendenciosa, uma personalização) são mais justapostas que integradas. De fato, tem-se, de um lado, o uso, às vezes intempestivo, de grades anônimas para delimitar a competência através de uma codificação (uma desincorporação que incita alguns a falar de desumanização, como vimos) e, de outro lado, uma chamada contínua ao engajamento pessoal, uma imposição à iniciativa e à inovação no trabalho.
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A modelização, proposta pela abordagem ergológica, repousa sobre a atividade entendida como uma sequência de debates de norma e assimilada em “dupla antecipação”: é esse modelo que permite dar conta da competência como um fenômeno, ao mesmo tempo, livre dos pontos de vista (julgamentos sobre o ator, esforçando-se em ser objetivo) e imerso nos pontos de vista (julgamento fundamentado sobre o ato, que leva em conta um ponto de vista singular e em situação). A dupla antecipação é uma maneira de representarmos a relação complexa entre o conhecimento e os saberes, o conhecimento como sendo teórico e os saberes como sendo experimentais, práticos. O conhecimento vai intervir acima da situação de trabalho, na elaboração racional da situação de trabalho (definição de tarefas e procedimentos, divisões do trabalho), na modelização gerencial e na formação dos operadores. Contudo, como o demonstraram durante décadas os trabalhos da ergonomia, esses esforços de antecipação teórica da atividade não serão jamais suficientes. Serão necessários saberes informais para considerar o “relais” do conhecimento em situação concreta: esses saberes em proximidade do evento são interpretações, pontos de vista, iniciativas que permitem ir além do prescrito, de ultrapassá-lo – e é nesse sentido que se pode falar deles como de uma “segunda antecipação”. Uma situação de trabalho supõe a articulação de duas antecipações, porque ela exige tanto a proatividade (o domínio de certo número de variáveis) quanto a reatividade (não somente de inteligência prática, do raciocínio lógico, mas também um engajamento em valor, um esforço de vida). A primeira antecipação [da ação] é uma construção racional e discursiva, ao passo que a segunda antecipação [na ação] é uma compreensão feita de julgamento de valores, de apreciações e de estimativas. O saber da experiência, que a abordagem ergológica caracteriza como uma segunda antecipação, não é uma mera opinião. Ele é um ponto de vista sobre a situação, o que quer dizer duas coisas: em primeiro lugar, ele traduz o fato que os conteúdos da norma (conceitos com pretensão universal, modelos predefinidos) fazem nor-
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ma para alguém que dele se apropria; depois, ele pode trazer um esclarecimento inédito sobre um aspecto desconhecido da realidade. Assim, o saber nascido da experiência não é mais somente um obstáculo epistemológico na produção do conhecimento científico; ele é, também, uma condição positiva, indispensável à apropriação desse conhecimento. Reencontra-se essa dupla dimensão cognitiva na atividade entendida como uma sequência de debates de normas: ou seja, um debate interno à entidade que age, presa entre as normas antecedentes que ambicionam orientar sua ação e suas próprias normas, em nome das quais ela propicia uma coerência à situação. A força do modelo da “dupla antecipação” é de não ceder à exigência de rigor conceitual do conhecimento em primeira antecipação, reconhecendo o lugar dos saberes interpretativos, portanto largamente axiológicos e relativos a uma dada situação. Longe de alterar a validade das neutralizações sobre as quais repousam as ciências e as técnicas, a segunda antecipação assume o conjunto das escolhas e a parcialidade dos pontos de vista da experiência e justifica que se procure, pelo contrário, retirar todo o valor residual pela ruptura epistemológica, quando se trata da primeira antecipação. Em lugar de desprezá-las como ilusões ou conteúdos pré-científicos, tomamos a sério os saberes da experiência reforçando a objetividade do conhecimento. Não se trata de relativismo, trata-se de se dar os meios de melhor considerar a atividade humana que é multidimensional. Porque cada um dos dois registros tem necessidade do outro. Os saberes da experiência não podem bastar para prever, coordenar e regulamentar o trabalho; ademais, o conhecimento racional e abstrato está interessado por aquilo que a experiência pode dizer de inédito sobre a realidade em situação. Consequentemente, o modelo da dupla antecipação torna possível a dialética do conhecimento e dos saberes. Essa dialética afirma sua descontinuidade, o que os justifica em sua diferença; mas ao mesmo tempo, ela afirma sua continuidade, pois eles têm, através de sua respectiva consistência, a mesma razão de ser: considerar a realidade.
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Temos assim, em toda situação de trabalho, duas formas de recursos intelectuais, distintos, mas que podem ser medidos como saberes da atividade, tipos de construções híbridas, mais ou menos, em aderência, portanto, atados a valores retratados localmente – e valores constituídos mais ou menos em desaderência, ou seja, próximos de uma elaboração conceitual. Para promover o diálogo dessas formas de saberes em um contexto institucional ou de empresa, Yves Schwartz propõe imaginar “dispositivos dinâmicos a três polos”. Ele situa os saberes instituídos e os saberes investidos na atividade sobre dois polos diferentes – o termo polo aqui significa que estamos lidando com as tendências, não com recortes marcados. Na verdade, não se trata de caricaturar a oposição entre conceptores de um lado e executantes do outro. As mesmas pessoas podem estar no primeiro polo, o dos saberes constituídos, porque elas são mestres de obra, posicionando-se no segundo polo, sob o ângulo de sua atividade de trabalho. O diálogo desses dois polos não é nada evidente. O polo 1, elevado pelo prestígio do conceito, pode se satisfazer em construir os saberes sob a forma de modelizações neutralizantes e continuar a ignorar o retrabalho dos saberes na atividade. O polo 2, tomado nas urgências da ação, não tem necessariamente a disponibilidade para a formalização, tanto quanto a manutenção de uma certa opacidade dos saberes do trabalho pode ser um verdadeiro desafio. Daí a abordagem ergológica preconiza um terceiro polo, susceptível de provocar a interfecundação dos saberes. Vamos falar de um estado de espírito ou ainda de uma postura específica a sustentar (via uma animação ou uma formação ad hoc): impossível, de fato, se encontrar sem que haja aí uma expectativa mínima de cooperação, um tipo de desconforto que leva em direção ao outro polo. Duas condições de possibilidade: a primeira é de ordem epistemológica porque é uma questão de produção original de saberes, envolvendo a preocupação de ir buscar novas fontes; a segunda é de ordem ética, porque uma verdadeira escuta passa pela autêntica convicção do inédito na palavra do outro, uma vontade de saber, um certo olhar sobre seus semelhantes. No fundo, cada um deve “estar disponível para redesenhar a sua quota de ignorância constantemente renovada, sem em
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nada ceder da ambição de saber” (Schwartz 2000: 126). Modéstia e não saber de um lado, rigor e exigência de saber do outro. O terceiro polo é não só o provocador dos encontros, mas também o beneficiário do trabalho cooperativo. Ele produz saberes novos, que também são, na perspectiva de uma conduta de mudança, verdadeiras “reservas de alternativas”, porque a atividade transborda novas ideias nascidas dos debates de normas. Juntos, entramos no coração da atividade humana, aprendendo a desdobrar os triângulos: agir – valores – saberes. Cria-se, assim, um espaço mediano entre dois imperativos, o de pensar através de conceitos e o de lidar com as urgências. Como já dito, Yves Schwartz designa o agenciamento assim constituído, sob o nome de dispositivo dinâmico a três polos. A palavra dinâmico faz referência a tudo o que pode ser gerado de tais matrizes, em particular o fato de tornar visíveis as renormalizações; as tomadas de consciência provocadas por sua colocação em palavras; o exercício formador que consiste em “torcer o conceito”; a renovação dos valores humanos, sociais, coletivos; a renovação dos saberes formais e disciplinares; a transformação dos ambientes de vida. Um dispositivo dinâmico a três polos permite às duas formas saber que são claramente distinguidas para melhor dialogar em seguida. O polo dos saberes codificados responde à exigência epistêmica, aquela que tende à objetividade e à universalidade, enquanto o polo dos saberes investidos na atividade responde à exigência ergológica, que dá conta das escolhas e dos debates de normas. O terceiro polo permite, em primeiro lugar, compreender a atividade como uma experiência normativa: cada indivíduo é confrontado com as normas antecedentes, numa relação triangular, pois essa confrontação inclui necessariamente outra pessoa. Esta experiência repousa sobre a dinâmica norma/renormalização: é a própria dinâmica da competência, que para nós é uma arte de gerar seus debates de normas. O emprego do termo “arte” é aqui nossa maneira de sublinhar vários aspectos da competência: ela não é um processo, mas uma aposta; ela assinala a convergência de uma demanda de confiança e de uma demanda de reconhecimento;
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ela expressa o ato sempre perfectível de alguém, uma pessoa identificada, mas sempre através do olhar dos outros; ela repousa sobre o debate de normas, mas corresponde mais largamente à experiência normativa ela mesma, quer dizer à modificação de seus diferentes ingredientes (cf. os ingredientes da competência, Schwartz, 1997). O terceiro polo permite em seguida compreender a importância de distinguir, sem jamais separá-los, os dois registros da aderência e da desaderência, porque eles representam a tensão entre os dois movimentos contrários, mas necessários, da relação entre as normas e os homens normativos: a anonimização e a personalização. O primeiro polo representa o esforço de anonimização: liberam-se as condições específicas para alcançar o nível geral de uma instituição, de uma organização. O segundo polo representa o esforço de personalização: através de nossos debates de normas, interpretamos a demanda institucional em função das realidades encontradas, o que gera de inédito – e esse inédito vai tornar sempre vão o projeto de uma modelização exaustiva. Quando perdemos de vista esta tensão aderência/desaderência, arrisca-se a assimilar o primeiro registro à “teoria” ou à “concepção”, e o segundo registro à “prática” ou à “realização em contexto”. Nesse caso, no lugar de ver a competência através do modelo da dupla antecipação, como um esforço para renovar, sem cessar a tarefa numa interpretação pertinente do serviço, vamos olhar essa competência como uma qualidade que se possui ou não, a partir de uma imagem congelada da realidade – já que a relação, sempre problemática, entre aderência e desaderência terá perdido o valor. Enfim, o terceiro polo encoraja a produção de novos saberes sobre a atividade humana (e notadamente sobre o agir em competência), no quadro do diálogo dos dois tipos de saberes postos em comensurabilidade. Será visto, então, como as práticas e os discursos, hoje dominantes em torno da noção de competência, certamente têm eficácia e pertinência, mas eles mesmos se limitam pela unilateralidade de sua abordagem das situações de trabalho. Porque, aproximando o trabalho unicamente pela desaderência, ignorando, portanto, a aderência e a relação dos
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dois registros, pode-se delimitar e constatar os seguintes fatos: o trabalho real, o desvio do prescrito, a singularidade das maneiras de se posicionar em uma situação, os estilos, a impossível estandardização do trabalho. O dispositivo a três polos, pelo contrário, põe de fronte a norma e a renormalização: é nisso que a norma aparece, como outra coisa e não um constrangimento – e que a renormalização aparece, por seu lado, como mais que uma maneira de fazer: ela é o resultado de um debate de normas. Pois o que justifica um dispositivo dinâmico a três polos é a atividade, enquanto ela ultrapassa o fato da renormalização. Para chegar lá, o autor deste retrabalho das normas propôs a si mesmo perspectivas, considerou as possibilidades e renúncias, pesou as soluções e maneiras de ver o oposto, que são tantas alternativas portadoras de mudanças potencialmente fecundas – na condição de lhes dar alguma visibilidade (a que visa o terceiro polo). Podemos tomar novamente, por nossa própria conta, a metáfora teatral preferida a Le Boterf (1998), aquela do papel e da interpretação do papel, sublinhando o que falta ao raciocínio. Na verdade, a norma e a renormalização podem ser efetivamente ilustradas pelo papel previsto pelo roteirista e pela interpretação que faz o comediante. No entanto, a atividade desse artista vai muito além de sua apresentação visível, tal noite em tal lugar. Seu saber da experiência, isto é, tudo o que ele pode nos dizer da realidade considerada de seu ponto de vista, serão suas próprias arbitragens que ele vai, em seguida, analisar e criticar. O que ele não fez é também tão interessante de se conhecer quanto o que ele realmente fez, uma vez que entra em suas razões de agir: sua maneira de ver a cadeia de causas e de efeitos, sua interpretação dos fatos, vista como impedimentos ou oportunidades, notadamente em atos postos por outros, simultaneamente, etc.
3.2. Compreender a situação através da dupla impossível/invivível, a fim de melhor julgar a competência Acabamos de descrever um dispositivo susceptível de lançar mais luz sobre essa “matéria ativa”, pela reflexão que chamamos atividade humana e a partir do qual é possível entender melhor o agir em competência. Vamos descrever, um pouco à
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frente, um exemplo desses dispositivos dinâmicos a três polos. Antes, gostaríamos de aprofundar um pouco mais o conceito de aderência, na medida em que temos como hipótese que é isso que escapa às reflexões atuais sobre a competência. Como temos, repetidamente, sublinhado a noção de distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real não tem sido realmente debatida na literatura gerencial de hoje. A variabilidade das situações de trabalho é um fato confirmado: nós, então, superamos um obstáculo na desconstrução das representações simplistas de homem produtor, mas isso não é suficiente. É preciso ir mais longe e colocar a questão: o que acontece com essa distância entre o prescrito/real quando “alguém” se ocupa dela? Essa é a pergunta à qual Yves Schwartz (2003) procurou responder formulando quatro proposições que vai resumir assim: • a distância entre o prescrito e o real é universal; ela é encontrada fatalmente em todos os lugares; • essa distância não é jamais a mesma de uma situação a outra, ela é singularizada; • essa distância é gerada por alguém, um corpo-si, que vai renormalizar; • essa distância conduz a se confrontar a um mundo de valores, com uma obrigação de escolher. Propusemos o seguinte comentário em um trabalho anterior: “O enunciado poderia, de alguma forma, tornar-se um manual para qualquer pessoa interessada em questões do trabalho. Ele contém, de fato, o essencial de uma perspectiva ergológica: – a primeira proposição indica que existe um impossível: a pressão do real é irredutível. Nunca, em lugar nenhum, vamos suprimir completamente a resistência que o mundo real nos opõe. Essa proposição responde imediatamente a eventuais objeções, apresentando, por exemplo, uma insuficiência de informações dos organizadores do trabalho. Mesmo melhor documentados, eles não têm senão que esperar modelizar inteiramente uma situação de trabalho, anulando a distância.
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– A segunda proposição destaca a existência de um invivível: a iniciativa do protagonista de uma situação de trabalho é também incompreensível. Quando confrontado com uma obrigação, o ser normativo não tem jamais resposta estandardizada. Longe de reduzir a distância, ele a aprofunda através de sua iniciativa que afasta um pouco mais a situação vivida da modelização precedente. Assim, outra objeção é refutada por antecedência: não se vai apoiar jamais em estatísticas para controlar a distância entre o prescrito e o real. – A terceira proposição indica o fato das renormalizações. Em relação à tarefa prescrita, a distância não é uma alucinação ou uma fantasia. É uma versão dessa tarefa que dá aquele ou aquela que arbitra. Uma criação respeitando uma exigência prévia (Jouanneaux, 1994:42). Devemos sempre considerar a renormalização em relação à própria norma, como uma contribuição pessoal, verdadeira. Esse ponto interdita pensar a priori que a interpretação da norma equivale à sua recusa ou à sua negação. – A quarta proposição representa a originalidade da perspectiva ergológica. Sim, há criação, mas essa não é um milagre da desaderência. A renormalização se obtém subtraída por um esforço, na aderência, porque temos um invivível lutando com um impossível, uma iniciativa que quer rejeitar seu limite e um constrangimento que resiste a ele. Quem age está no coração de uma dramática, com a obrigação de escolher. Esse último ponto lembra a natureza profundamente controversa do uso de si e também sua dinâmica. “(Durrive, 2015: 118.
O que chamamos aqui de aderência, seguindo Y. Schwartz, não é, por conseguinte, o equivalente ao trabalho real. Esse é, sobretudo, o ponto de partida da reflexão sobre a aderência. Constata-se que não é possível antecipar tudo no trabalho, porque as pressões do real vão surgir sempre, qualquer que seja o esforço de previsão, de planificação dos organizadores. A pessoa que é chamada a gerir a distância entre o prescrito e o real deve se virar, “fazer com”. Consequentemente, trabalhar é pensar. Certamente: a intervenção humana é exigida para encontrar soluções inteligentes face aos problemas da variabilidade do trabalho e a insuficiência da organização. É preciso, como sempre recorda G. Le Boterf, “ir além do prescrito” (1998). No entanto, o que nos dizem as quatro proposições vai mais longe. A atividade humana exigida no trabalho não se reduz a restabelecer as conexões lógicas quando há lacunas no raciocínio prévio. Se não fosse isso, então a automação poderia, um dia, substituir
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totalmente o trabalhador. Ora, sabemos que esse não é o caso: “As máquinas ditas inteligentes são máquinas de produzir relações entre os dados que lhes são fornecidos, mas elas não estão em relação com o que o usuário se propõe, a partir das relações que elas engendram para ele” (Canguilhem, 1980:27). O privilégio do ser humano é “relação a”, enquanto as máquinas, produtos dos conceitos, são limitadas à “relação entre”. Trata-se de uma outra maneira de dizer que a desaderência, que permite à humanidade escapar ao único momento presente, é sempre dupla: ela é conceitual (relação entre) mas também axiológica (relação a). Pensar corresponde ao esforço de categorizar, de generalizar, liberando-se das camadas que recobrem os valores próprios à ação situada. É graças à objetivação, à anonimização que a organização se torna concebível. Mas, inversamente, nada é possível sem a personalização, sem o retorno às situações marcadas pelos valores, pelas escolhas. Viver é escolher, portanto optar por tal ou tal solução preferencialmente. E o que torna a intervenção humana insubstituível por um autômato é bem isto: ela é capaz de preferir, em nome de uma avaliação, o que parece importante em relação ao que parece secundário no momento presente. A avaliação não é somente lógica (relação entre), ela é também axiológica (relação a). Consequentemente, trabalhar é pensar, mas é também viver – no sentido de avaliar continuamente sua relação com o meio. Compreender a aderência é compreender que o ser humano, colocado diante da distância prescrito/real não está somente diante uma escolha. Não fosse isso, poderíamos imaginar uma árvore lógica e pré-condicionar a conduta da escolha. Não, o humano não faz somente a experiência da escolha (latitude entre várias soluções possíveis), ele faz a experiência da obrigação de escolha. Na verdade, ele deve decidir, assumir a responsabilidade de seu ato. E, a partir deste ponto de vista, então, mesmo não fazer nada é um ato posto. Quando se detém a reflexão sobre a atividade unicamente na renormalização (ou na “interpretação do papel”), não se faz senão a metade do caminho – se se segue essa hipótese da obrigação da escolha. Na verdade, a solução que a pessoa encontrou na maneira de aí se assumir poderá figurar numa árvore de escolhas
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possíveis. Mas trabalhar significa mais do que apresentar uma “solução”: é necessário tomar parte, ter um ponto de vista bastante forte para excluir todas as outras soluções possíveis. Quando compreendemos isso, nós nos aproximamos da noção de norma na linha de Canguilhem: uma norma é polêmica porque ela se impõe às outras maneiras de fazer. Agir é escolher – ou seja – é reter uma só das hipóteses possíveis. E é exatamente por isso que a atividade ultrapassa a renormalização, que é tão somente a solução retida. A atividade é, segundo Yves Schwartz (1992), uma “dramática do uso de si” porque ela recobre os seus debates íntimos do eu: seu próprio projeto, que deve aceitar ajustes com o projeto do outro. O que é possível e o que é, ao contrário, impedido por outro, o que a pessoa sonhava em fazer e o que ela pôde realizar é isso o debate de normas – ou atividade (como sequência de debates de normas). Quando dizemos que a literatura gerencial e, mais globalmente, aquela que hoje em dia trata das competências, está, de alguma forma, no meio do caminho, queremos dizer isto: a impossível estandardização é, daqui em diante, reconhecida, mas o invivível (no sentido daquilo que a estandardização de uma atividade humana, em particular no trabalho, teria de insuportável, de invivível), isso ainda não é levado em conta. Ora, a dialética “impossível/invivível” descrita por Yves Schwartz (2000; 2003; 2009) é justamente aquela que constitui a situação de trabalho. Quando falamos aqui de “situação”, queremos dizer: “a situação de um ser de atividade”. Efetivamente, trata-se de designar a forma concreta que a realidade toma (portanto, o real) para alguém bem identificado: é a sua experiência, positiva ou negativa, dessa realidade. A situação é aquela que viveu a pessoa da qual se fala. Claro que o mundo real vai estar lá, inclusive na ausência dessa pessoa. No entanto, se se quer falar sobre “saber da experiência”, portanto de uma perspectiva própria, inédita, sobre a realidade, então é preciso delimitar a situação a partir da consciência singular que está no comando da situação (é a parte “realidade” que ela representa), ao mesmo tempo em que ela está aí engajada, implicada (essa é
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a parte do ‘real’ a que ela se submete sem necessariamente representá-lo). Essa consciência que percebe, à sua maneira, certo estado de coisas, vai tentar ocupar o seu centro, o que significa que ela vai buscar retomar a iniciativa sobre as regras. Essa é a condição para que se passe algo, no encontro da atividade, ou seja, em tal lugar e tal momento. De fato, apesar de sua imersão no real governado pela cadeia de causas e efeitos, um real ao qual a pessoa não vai escapar – então, apesar disso, ela vai se mostrar irredutivelmente ativa, portanto, normativa. Ele vai tomar uma iniciativa, colocar ali, pois, uma espécie de início, lá onde não há senão encadeamento determinado de obrigações. Ela vai mudar (por pouco que seja) o curso das coisas, o encadeamento dos fatos, graças a sua interpretação do real que resiste a ela. Certamente, ela não pode fazer qualquer coisa: a realidade está aí, os fatos são “teimosos” ... Mas, na situação que lhe diz respeito, e da qual ela reivindica a posição central, a pessoa consegue encontrar subjetivamente uma coerência, que é, também uma condição para agir a seu nível. Por sua presença, como existência, reivindicando uma iniciativa sobre o meio, ela vai modificar localmente o real, colocando-o em movimento, assim, em devir, apesar de sua grande inércia (cf. o peso das obrigações, que nunca cessa). Na abordagem ergológica, a situação de trabalho se caracteriza, portanto, pela dialética do impossível/invivível. À irredutibilidade das obrigações (a estandardização é impossível), responde a irredutibilidade da iniciativa (a estandardização seria também invivível). É por essa razão que – todo mundo o constata – o prescrito é sempre ultrapassado: se ocorre alguma coisa numa situação de trabalho. Essa não é a simples execução de um modelo, é uma sequência da história humana que segue seu curso, muito modestamente na maioria das vezes. É isso que é preciso compreender na palavra “aderência”: não somente o fato da variabilidade, não somente o fato da renormalização, do estilo próprio na maneira de fazer, mas também todas as interpretações, todos os debates de normas da pessoa que pilota essa situação – e que fará aparecer a seus olhos as oportunidades e impedimentos. Evitamos, imediatamente, um mal-entendido afirmando que: “Pilotar a situação” não significa que a pessoa é mestre de tudo o que está
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acontecendo! Pelo contrário: o significado de sua presença, de sua luta, de seu trabalho é tentar alcançar ser um pouco mais ativa do que passiva, nessa situação. Mas ela só pode aspirar a isso reivindicando estar ao centro, organizar a coerência do meio em função dela: “o meio próprio do homem é o mundo da sua percepção, ou seja, o campo de sua experiência pragmática no qual suas ações, orientadas e regradas pelos valores imanentes às tendências, recortam objetos qualificados, situam-nos uns em relação aos outros e todos em relação a ele. De modo que o ambiente ao qual ele supostamente reage encontra-se originalmente centrado nele e por ele” (Canguilhem, 1965:152).
A aderência é finalmente “o presente do meio a viver” do ponto de vista de alguém único. É o sentido da quarta proposição de Yves Schwartz citada anteriormente: a distância prescrito/real vai levar alguém a se confrontar com um mundo de valores, com uma obrigação de escolher. Segundo nossa análise, é essa percepção da aderência que falta hoje nas reflexões sobre a competência. Na verdade, todos ou quase todos concordam em admitir que uma situação de trabalho sempre vai escapar à modelagem exaustiva, o que justifica a presença do ser de atividade. Mas só se percebe a conexão cognitiva entre o registro do que é pensado com antecedência e registro do atual, o que implica repensar a instrução em função do problema a resolver. Ora, a desaderência é dupla: lógica e axiológica, conceitual e em valor. E é isso que, acreditamos, permite indiretamente apreender a noção de aderência.
3.3 Os dois eixos de nossa pesquisa atual: partir das situações e aproximá-las em uma dinâmica a três polos Como dissemos, acreditamos que o pensamento gerencial hoje não considera suficientemente os aspectos cruciais da competência, por falta de se apoderar da noção de aderência e, além disso, da noção de “debate de normas”. Trata-se de compreender que a realidade não é somente um conjunto de fatos sobre os quais
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podemos todos concordar e sobre os quais em seguida, podemos todos intervir com toda objetividade. A realidade, portanto, a realidade no trabalho igualmente, são também interpretações que orientam os fatos e fazem história. A realidade são fatos e, também, a tomada de decisão. O esforço de desaderência nos permite dominar melhor esta realidade, nela intervir mais eficazmente do que improvisando nossa luta com os marcos do momento presente. É esse, certamente, o formidável privilégio do humano entre os outros seres vivos. Na verdade, se necessitamos de desaderência, é não somente para reduzir a realidade nos modelos (tornar o complicado complexo), mas também para alcançar certa neutralidade. Porque, ao contrário, a aderência é um mundo de valores, escolhas a fazer, em função não somente da lógica, mas também dos valores ambientais, aqueles dos outros, aqueles que são compartilhados ou não, mas dos quais será preciso de toda forma levar em conta. Se mudamos as coisas ativando-nos, se conseguimos colocar o real como devir, isso não é só pela força de nossos conceitos, mas é também pela força dos valores que nós não cessamos de retrabalhar com os outros, nossos semelhantes humanos. O chefe hoje parece, acreditamos, querer raciocinar sobre a situação de trabalho com “toda objetividade”. Ele observa uma configuração de situações diversas que se apresentam e espera respostas idôneas. É, então, competente aquele que demonstra um bom raciocínio lógico (e, aliás, este será um critério de avaliação). Isso é apenas parcialmente exato, uma vez que, se olharmos de perto, percebemos que uma resposta adequada passa primeiramente por uma avaliação pertinente. A lógica seria suficiente se as premissas do raciocínio fossem inamovíveis, sempre intactas. Ora, é difícil imaginar, uma vez que a situação se inscreve em uma história, as coisas evoluem. A impossível padronização de respostas está bem ali. O que é preciso apreender para além de uma ação racionalizada no trabalho, são dados que mudam muito, que devem ser apreciados, pesados, comparados em custos e vantagens. Mas isso não é tudo: vamos fazer um apelo ao ser humano que é capaz de avaliação, mas ele deve avaliar a situação para ele mesmo antes de se engajar. Isso significa que, em qualquer caso não podemos conceber o homem como uma simples solução,
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como uma peça em uma engrenagem que vai mover porque as outras se movem: ele deve, primeiramente, aderir à coisa empreendida. Aderir significa duas coisas: em primeiro lugar, que ele tenha um projeto de uso de si mesmo que vá no sentido do uso que os outros querem fazer dele; em seguida, que ele encare como um problema (um obstáculo ao seu projeto), isso que levanta problema para os outros. Essa é a condição para agir como ser autônomo no seu trabalho. E é isso que expressa a invivível estandardização: o ser humano é insubstituível porque é capaz de avaliar, ou seja, de enfrentar não só os problemas lógicos, mas também o vazio lógico, em nome de sua percepção do que é importante, o que vale para ele e para os outros num dado momento. No entanto, a condição de sua participação é que ele viva no trabalho não como uma pequena roda que se articule com uma grande, mas como um ser de iniciativa “sujeito de suas normas” (Canguilhem, 1947). O agir em competência é para nós: primeiramente, demonstrar uma avaliação pertinente da situação antes de mobilizar os recursos (aqueles do ambiente e os seus). Essa maneira de apresentar as coisas põe em evidência o que, de acordo com a nossa análise, está faltando hoje ao pensamento gerencial: a noção de norma, no sentido canguilhemiano, ou seja, o que é associado com a normatividade. É essa lacuna que nos parece estar na origem de um raciocínio errado sobre a subjetividade no trabalho. Constata-se o ato nos fatos que ele engendra, o que é observável, até mesmo mensurável (por exemplo, o ato técnico). Percebe-se claramente que há um ator, adivinha-se: mas o que continua profundamente obscuro é a relação entre o ato e o ator. Na falta de capturar a norma e o que a acompanha, a normatividade, não se compreende que é o ato que faz o ator, como o ator faz o ato (da mesma forma, a norma faz o homem normativo, como o homem normativo faz a norma). No entanto, mais do que nunca, os chefes são sensíveis à instabilidade do ato técnico: eles já não confiam unicamente na qualificação, porque ela não serviu senão para caracterizar o ato, sem nunca dizer nada do ator. Então, eles vão se ocupar em cercar o ator como tal e multiplicar a racionalidade sobre a subjetividade no trabalho, muitas vezes fora do ato (que, acreditamos, é a porta aberta para todos os tipos de manipulação). Ora, também, enquanto separamos o ato do ator, não se compreende,
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acreditamos, a dinâmica da competência. A subjetividade não é “a terceira dimensão” da competência justaposta ao domínio dos saberes e àquela do saber-fazer: a subjetividade é a atividade própria (Schwartz, 2009b). São os debates de normas no ato presente, entre saberes (dos outros e de si mesmo) e valores (dos outros de si mesmo), uma tensão permanente – ‘aderência/desaderência’; debates geridos por um ator ‘corpo-si’, o que significa um ser inteiro, historicizado por sua experiência do mundo e dos outros e visando a um projeto de uso de si. Esses são nossos dois eixos de pesquisa hoje. Primeiramente, trabalhar com os protagonistas das situações de trabalho, compreendendo a situação não apenas como um campo de obrigações que não condicionam a atividade, mas também como o ponto de vista de alguém sobre esse campo de obrigações, a perspectiva dada por um ser de iniciativa, que busca se colocar no centro de seu próprio meio, a fim de nele intervir em conformidade com um projeto de uso de si. Em segundo lugar, trabalhar a partir dessas situações segundo a abordagem de um dispositivo dinâmico a três polos. Isso quer dizer que não consideramos as normas sem a normatividade: colocam-se, face a face, as normas antecedentes e renormalizações, a fim de fazer aparecer o que caracteriza a atividade: o debate de normas. É ele que vai ocupar o terceiro polo. A noção da realidade que o protagonista de uma situação de trabalho pode ter é inicialmente bem parcial. No entanto, o ponto de vista vai se tornar cada vez mais sólido e pertinente à medida que ele se confronta, no dispositivo, com o ponto de vista dos outros. O protagonista vai progredir duplamente, fazendo de seu ponto de vista um verdadeiro “saber da experiência”: de uma parte ele vai se revelar cada vez mais aberto e compreensivo em relação às outras maneiras de ver – e de outra parte ele vai reforçar sua própria singularidade à medida que ele critica suas próprias interpretações, que existem doravante no debate com uma opinião fundamentada e uma consciência aguçada da situação. Portanto, bem longe de uma simples opinião. Vamos fazer duas considerações a partir disso. Primeiramente, o que acabamos de descrever sobre o protagonista engajado em uma abordagem ‘à três polos’ é uma verdadeira postura de aprendizagem, para retomar a expressão de P. Carré
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(2005): voltar metodicamente sobre si, para melhor se abrir ao mundo e aos outros, encontrar o autêntico projeto “de uso de si por si”, que vai permitir se arrimar a um “projeto de uso de si para outros”. Agora entendemos, então, que o ponto de vista, quando ele é trabalhado, aprofundado, escavado, não é um vago julgamento que teríamos sobre as coisas do momento, mas é um “ponto de vida”, uma ancoragem no fundo de si para melhor se engajar na aderência, consolidando suas abordagens por todas as formas de desaderência. Nossa segunda consideração visa a oportunidade destes cadinhos de novas ideias que são os dispositivos dinâmicos a três polos. Temos consciência que é menos arriscado atribuir certa neutralidade, quando se fala do trabalho, do que avançar sobre o terreno dos valores. Não falamos aqui de escolhas societais em geral, mas de situações como microescolhas no quotidiano do trabalho. O gestor está confortável para incentivar a reflexividade, o raciocínio lógico numa abordagem de competência. Na verdade, trabalhar é pensar – e a inteligência passa doravante por um requisito do trabalho. Em compensação, quando evocamos o retorno sobre os pontos de vista, sobre a questão das escolhas e dos valores, percebe-se frequentemente certo temor entre os seus interlocutores. O mal entendido seria acreditar que os dispositivos a três polos abrem a caixa de Pandora: seria semear a dúvida sobre o bom fundamento das escolhas da organização. Ora, esse não é jamais o caso e a explicação é simples. Quando nos disciplinamos para sempre abordar a renormalização colocando as normas antecedentes face a face, permite-se à pessoa de expressar sua iniciativa “no” campo das obrigações e não fora dele. Essa é a diferença: os atos sobre os quais retornamos são tratados não isoladamente, mas em referência à experiência normativa in situ, como mediada pelos outros. O parapeito, que evita derrapagens em uma causalidade geral e estéril, é a relação entre a desaderência/aderência (ou “localização-ancoragem”). Nessas condições, podemos serenamente abordar, no trabalho, a questão dos valores dos pontos de vista, e não apenas aquela do raciocínio lógico neutro. Os protagonistas logo percebem que é nos valores e pontos de vista que se encontra a fonte tanto de sua singularidade quanto de sua eficácia. O exercício favorece uma conscientização,
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no sentido de uma tomada de consciência do que está em jogo, para os outros e para si mesmo, de uma medida de sua responsabilidade, certamente limitada, mas precisa e coordenada com a responsabilidade de outros no agir junto.
4. A função “organizar” 4.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “organizar” O desafio da organização é de tornar possível e eficaz a ação coletiva a serviço de um projeto. Para isso, ela deve, ao mesmo tempo, produzir a norma (antecedente e anônima) e poder contar com homens normativos, isto é, em condições de exercer sua normatividade, de efetuar um retrabalho pessoal das normas, no momento de se confrontar com a realidade, de maneira a atingir os objetivos fixados. O erro de certo número de organizadores foi o de, há muito tempo, sustentar a ideia de que os planos, os programas, os procedimentos, os métodos, etc. teriam o poder de modelizar perfeitamente uma ação, de pensá-la com antecedência e ‘sem excedente’, o que quer dizer de maneira exaustiva, pois nada da realidade lhes escaparia. Ora, isso é impossível, pois, posicionada em desaderência, a organização opera necessariamente uma redução da realidade. O administrador dirigente tem uma visão mais ampla que profunda das situações de trabalho que ele supervisiona de longe. Nós propomos uma ferramenta derivada da abordagem ergológica voltada para os dirigentes. Ela é um dispositivo suscetível de dinamizar a relação entre os dirigentes e as pessoas engajadas no terreno. Trata-se dos “grupos de encontros do trabalho” (GRT) que são eles próprios, uma modalidade de dispositivos dinâmicos a três polos (DD3P) oriundos de uma abordagem ergológica. Como dissemos precedentemente, o DD3P organiza o encontro entre os saberes acadêmicos, universitários de uma parte, e, de outra parte os saberes da experiência. Os GRT também fazem referência à dialética dos conceitos e da vida, mas tratando de refletir sobre o funcionamento de uma organização, a ferramenta do pensamento é considerada – prioritariamente e não exclusivamente – por seu segundo uso, a estruturação da vida social (seu uso primeiro sendo a produção de seus conhecimentos).
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O projeto de um GRT é de fazer circular os saberes entre os protagonistas das situações de trabalho, aqueles que asseguram a realização e os que a tornam possível instituindo os enquadramentos normativos. Mas esse não é um exercício igual a um diálogo clássico “pessoas da administração e pessoas dos ateliês”, ou ainda os teóricos com os operadores engajados na prática. Trata-se aqui de uma outra coisa. Inicialmente, uma prática já foi colocada em palavras e então compartilhada: ora, o GRT tenta fazer existir o ponto de vista da atividade no que ele tem de único, antes de socializá-la e de abri-la, graças a uma abordagem feita de escuta e de espírito crítico (no senso construtivo), sobre a produção de saberes originais a respeito das situações encontradas. Ele oferece perspectivas novas sobre a realidade, esclarecimentos que interessam tanto aos dirigentes quanto aos operadores. Relembramo-nos de que essa socialização de pontos de vista em um GRT não é provocada de maneira anárquica e irresponsável, pois a abordagem ergológica consiste em sempre considerar, em conjunto o par “norma, renormalização”. Isso significa que o ponto de vista da pessoa que realiza uma tarefa é colocado face a face com a própria tarefa. Uma iniciativa só encontra sentido na medida em que as exigências às quais ela responde são explícitas e claras aos olhos de todos. E reciprocamente: aquele que institui a norma definindo as tarefas vai considerar a renormalização uma condição de uma tradução dessas na realidade. O imperativo de manter juntos o par “norma e renormalização” não é necessariamente uma postura reivindicadora. Trata-se da saída do modelo aplicativo da tarefa, que associava a sequência eficaz de uma regra e sua obediência cega. Quando se compreendeu que seguir uma regra supõe um jogo de normas, não se defende mais a ideia de uma aplicação mecânica ou dócil: sabe-se que o ser humano deve, inicialmente, existir face à norma para poder se submeter razoavelmente, conformar-se a ela, porém guardando a iniciativa de seu ato. Efetivamente no trabalho, dobrar-se a uma ordem sem reagir com um ponto de vista, sem resistir através de um debate íntimo (um debate de normas), quer dizer não se apropriar da instrução da ordem, renunciar a ser – por pouco que seja – o autor e o responsável de seus atos, deixar-se guiar e se levar pelos acontecimentos, enfim ser totalmente ineficaz.
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Tomando ao contrário o jogo entre a norma e sua renormalização, descobre-se o manancial de saberes que cada um dos protagonistas pode apresentar sobre as situações consideradas. O problema, entretanto, é que não existem saberes – no senso estrito – que sejam espontâneos. Um saber é certamente uma captura única sobre a realidade: alguém “sabe”, isso quer dizer que este tem o privilégio de uma visão sobre a realidade que outros não têm de modo idêntico, porque esta percepção é, às vezes, conceitual e axiológica. No entanto, o saber só está lá em estado bruto, de alguma maneira, como promessa de um verdadeiro saber (o agir concreto em uma situação dada permitindo a formação de conceitos incoativos, em formação, à espera de serem trabalhados, de serem circunscritos: Schwartz, 1992: 69). Um saber é, de fato, sempre o fruto de um trabalho crítico, no sentido de que é preciso separar o essencial do secundário – é preciso modelar, fabricar o saber bruto que gera a ação. É impossível esperar imediatamente recolher os saberes da experiência realmente novos, como se recolheriam os frutos da árvore... Tenho um “ponto de vista” saído da minha experiência normativa, portanto uma perspectiva original sobre a situação; mas me falta ainda fazer um trabalho de colocar em palavras esse ponto de vista que, paradoxalmente, já está lá. Assim, o material de um retorno de experiência tem necessidade de ser aperfeiçoado, criticado, em primeiro lugar pelo interessado. Toda a força do ser humano está, de fato, no discernimento: ele é capaz de criticar sua própria interpretação. Isto é o fundamento de uma abordagem racional, no sentido científico. O encontro entre os saberes de experiência e os saberes institucionais, para ser bem-sucedido, supõe, além do mais um dispositivo, uma construção ad hoc: é o grupo de encontros do trabalho. É necessário um primeiro polo, o que coloca em visibilidade as “normas antecedentes” da organização (inclusive quando elas são tidas como evidentes). É indispensável mobilizar esses saberes formais, de fazer seu inventário e torná-los presentes nos GRT, porque são eles que vão funcionar como normas com as pessoas que trabalham – os seres dotados de normatividade. Na falta
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de um lugar para uma renormalização, as normas antecedentes da organização vão funcionar como normas, mas unicamente como exigências. Em seguida, é necessário um segundo polo; este representa os protagonistas em situação, os que estão em atividade. São eles que vão levar sem interrupção, um material novo, inédito ao GRT, mas na condição de não se deter somente aos fatos. Isso porque a atividade é a interpretação indefinida dos fatos: dessa forma, a atividade reorienta os fatos provocando, nela mesma, novos fatos, modificando assim, os contornos da história que está tomando forma. Graças ao segundo polo, no GRT, toma-se consciência das iniciativas feitas para administrar as obrigações, no coração do “trabalho real”. O que é inédito e fonte de um saber original sobre a situação é a maneira como cada um reprocessa as normas antecedentes contestando-as, não pelo espírito de rebelião, mas enquanto um ser de iniciativa, para existir face a elas e chegar, desse modo, a se apropriar dessas normas. O GRT, que não se confunde com um grupo de apoio, tem a necessidade de refletir sobre a dupla “normas/renormalizações”: o primeiro polo (os saberes que tendem à neutralidade) e o segundo polo (os saberes tomados através dos valores). Isso vai fazer existir tanto as renormalizações quanto aos saberes – o que lhes vai permitir se colocar em comensurabilidade com as outras formas de saberes na organização e, se as condições o permitirem, de dialogar com eles. Enfim, é necessário um terceiro polo. É aquele que propõe um novo regime de produção de saber: um saber saído da experiência e que é capaz – uma vez que ele foi construído como um saber – de dialogar com os saberes institucionais. Esse terceiro polo é um polo de trabalho colaborativo: se ele não estivesse lá, nós iríamos deixar as duas formas de saber se ignorarem. Esse é o polo que permite que a atividade normativa seja percebida. Ele tem o papel de animação do GRT, dando garantias aos que vão expor seus “debates de normas”. Inicialmente evitar a arrogância daquele que já sabe: é preciso estar à escuta de um relato da atividade que ninguém conhece a priori, porque o narrador vai testemunhar através de uma captura inédita da realidade. Em seguida, o terceiro polo deve tratar o conteúdo da
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atividade normativa emergente: depois da exigência de escuta e modéstia, há que se fazer prova de rigor. Isso porque cada um deve tentar retirar aquilo que, em seu relato, mereça ser retido como uma perspectiva singular e essencial, uma maneira original de ver as coisas – e que nos ensina ainda mais sobre o que se vive nessa situação, especialmente sobre os desafios que ela contém. Em resumo, as diferentes interpretações de uma situação se tornam “saber da experiência” na medida onde elas nos informam sobre o espírito dessa situação – pelo contraste com a anotação da situação (aquilo que objetivamente se poderia dizer dela, simplesmente descrevendo os fatos, as constatações sobre as quais todos já estão de acordo). Enfim o terceiro polo assegura o respeito de um princípio: ter um ponto de vista diferente, o que não é “não ter compreendido nada da situação”. O real é contraditório, não há que esperar a revelação de uma realidade coerente sob nossas interpretações. Isso não dá “razão” mecanicamente a ninguém, mas isso quer dizer que cada um tem “suas razões” de ver as coisas através do seu ponto de vista. É o espírito crítico que deve tirar o verdadeiro ensinamento da experiência, levada, em seguida, coletivamente. Um DD3P reconcilia então os dois usos do conceito, o uso compreensivo e o uso explicativo. 3o polo – ética/crítica Saberes novos
O GRT, um lugar que permite às duas formas de saber de se nutrir reciprocamente. O objetivo = progredir junto sobre uma questão dada.
1. Saberes das organizações
Trocas recíprocas
2. Saberes da atividade
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4.2. Ilustração a partir de um breve exemplo Participamos, uma vez por ano, da animação de um dispositivo na Assistência Pública/ Hospital de Marselha (APHM). Os chefes de saúde organizam aí GRTs com uma frequência bimestral. O GRT permite retornar, sem cessar, a ligação entre a norma e a renormalização, a fim de delimitar o debate de normas que está no centro da competência profissional. Apresentamos um extrato de um relatório interno do nosso encontro com os participantes de um GRT. O objetivo é, ao mesmo tempo, a ampliação dos saberes e a transformação das situações, graças à instrução de normas antecedentes (uma norma é dita “instruída”, no sentido em que ela se abre a pontos de vista da experiência e leva em conta, sobretudo, as renormalizações). “O que diferencia um GRT de simples grupos de apoio sobre o trabalho é a dinâmica de coprodução de elementos de saberes novos sobre a atividade. A parte de inédito desses saberes não traz soluções prontas, mas permite a construção de muitas respostas aos problemas levantados. Reflete-se sobre normas antecedentes porque a função de chefiar é, atualmente, um novo ofício em relação ao que se vivia até agora nos estabelecimentos, mas essas mudanças não são formalizadas. Tenta-se colocar em palavras nossos valores no trabalho, a representação dos valores do ofício. Para nós, “fazer uso do seu corpo si”, por exemplo, significa algo, isso permite falar do sofrimento da chefia. Existem riscos produzidos por um encarregado em sofrimento no interior de uma equipe, face a uma norma antecedente indecisa, devido à ausência de uma nova definição da função de chefiar”. “As coisas se fazem graças às nossas arbitragens cotidianas. Mas temos um problema a comunicar sobre essas arbitragens. Por falta de palavras, generaliza-se deixando à direção dizer frases do tipo “Vamos fazer mais com menos”, porque nós não chegamos a colocar em palavras esses momentos cruciais, que são nossos debates de normas. Nós é que sozinhos tomamos decisões em situação – mas são os gestores quem decidem sozinhos em nome da racionalidade lógica. Por exemplo, o aquecedor entrou em pane nesse inverno em um dos setores do hospital. O tratamento da pane pode ser executado pelo polo I, puramente técnico. O que nos interessa no GRT são os saberes ligados à convivência com um meio: é o que se faz com pacientes quando um aquecedor está estragado. Finalmente o que o GRT quer apresentar como saberes é o domínio da realidade de cada uma das pessoas que trabalha, mas isso a todo momento e não somente quando isso
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não funciona. Já que é “todo o trabalho” que nos pertence – e não unicamente o que não deu certo ou o que vai mal. Nós tentamos responder à questão: “O que fazer isso significa?” Será mostrado, às vezes, que existe uma excessiva solicitação da normatividade em uma situação de trabalho. Existe, então, um problema com as normas. Isso não quer dizer que se pede às normas ocuparem todo o terreno. Quer-se encontrar um melhor equilíbrio, que permita à normatividade do operador de serem exercidas nas melhores condições. Atualmente, face a um déficit de normas (em qualidade), o chefe de saúde é obrigado a inventar o que não existe. É isso que conduz ao burnout. Tivemos um problema com a administração penitenciária que não equipa seu pessoal com os mesmos aparelhos que aqueles dos cuidadores. A telecomunicação interna torna-se, então, impossível, e é o chefe de saúde que deve correr pelos corredores para coordenar as equipes quando os detentos estão hospitalizados. O que falta do ponto de vista de gestão na ocorrência é de perceber o desafio da atividade real: o que significa trabalhar com os aparelhos não coordenados? O GRT esclarece graças a uma perspectiva original. O ponto de vista do chefe de saúde sobre esse tema não interessa somente a ele, é um saber útil a todos, uma perspectiva sobre uma realidade, principalmente sobre os desafios” (Marie-Hélène Dassa - documento não publicado).
5. A função “chefiar” 5.1 Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “chefiar” A chefia imediata assume um papel complementar ao quadro da direção, já que ela está diretamente no comando das equipes. O desafio dessa função é de esperar, apesar de tudo, o resultado previsto. A chefia deve saber navegar sobre os mares agitados, e conduzir os homens em função dos acontecimentos, a fim de não perder o ponto fixado pela organização. De qualquer modo, é a tática em resposta e em apoio à estratégia. A chefia tem de se haver com a distância entre o prescrito e o real, ela não pode, então, contentar-se de ter previsto um processo para cumprir sua tarefa e de fazer com que este seja aplicado. Além de um objetivo de conformidade, ele deve se assegurar, com efeito, em ultrapassar o útil: seus subordinados, de fato, devem fazer “mais do que lhes foi pedido” sem, todavia, sair da rota.
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A ferramenta de acompanhamento no trabalho que nós propomos, quando se trata de concretizar a abordagem ergológica junto à chefia imediata encarregada de supervisionar o iniciante, é o modelo “tarefa/serviço” em dupla antecipação. O chefe de equipe, o chefe de seção ou o chefe de atelier –pouco importa – vê bem as urgências: ele tem clientes e fornecedores e ele deve lhes trazer a boa resposta no bom momento, dando as instruções adaptadas. Esse chefe se encontra em meio a várias exigências, o que nós chamamos “em aderência”, o mais próximo da realidade do trabalho. Mas esses não são os pesos, as dificuldades que ele tem em sua mente: ele está preocupado com o programa, com os horários, a sequência das operações, com os custos de cada uma das iniciativas que ele poderia tomar. A chefia tem, então, em sua mente esse registro da desaderência que lhe permite conceber e modelar o trabalho a ser feito. Se nós atrairmos sua atenção sobre o que o preocupa, mostrando-lhe que ele não cessa de gerir a distância entre o plano e a realidade encontrada, nós o teremos rapidamente convencido. Existe bem uma distância ente o prescrito e o real. Provavelmente, nós o faremos provavelmente admitir um outro ponto importante: essa distância não se dá devido a uma deficiência, mas em razão de uma impossibilidade. Não há, pelo menos de maneira significativa, que procurar a causa dos seus problemas nas carências de organização – mesmo que seja sempre possível fazer melhor. Se o chefe imediato está sempre a correr, a vigiar o fogo da ação, é porque está colocado em um plano diferente do plano do chefe dirigente. Ele opera no concreto da vida e é bem por isso que ele é reconhecido em meio aos operadores. Por seu lado, o organizador está posicionado em desaderência, à distância das situações reais de trabalho e é este posicionamento que lhe oferece outra perspectiva, um outro horizonte para a negociação com os parceiros da empresa. Entretanto, além dessas duas observações (existe uma distância e esta é irredutível), vai se esperar uma interrupção no raciocínio com nosso interlocutor supervisor. Admite-se o fato, sim, mas e depois? Essa é bem a questão que persegue o pensamento gerencial há meio século. O que fazer com essa distância prescrito/real? Vê-se bem que é preciso ir além do prescrito – isso é tudo. É nesse ponto da refle-
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xão que nossa ferramenta de acompanhamento em situação de trabalho encontra todo o seu lugar. Porque o conceito de dupla antecipação de Yves Schwartz (1988) permite colocar em movimento o que era até então uma imagem fixa, sobretudo, bastante embaraçante: “o prescrito e o real”, ou seja, a diferença incompreensível entre os dois registros de apreensão do mundo real pelos humanos, o registro do conceito e o da vida. Tudo o que na empresa é da ordem do conceitual (o programa da jornada, as faturas de entrega, o catálogo dos preços, as fichas de autocontrole, etc.) aparece como normas do trabalho porque está a cargo dos viventes humanos (seres humanos) dotados de normatividade. Uma norma e sua renormalização são solidárias: é isso o que explica uma característica da norma, que, contrariamente a uma lei física, não tem nenhum efeito por ela mesma. No seu modelo da dupla antecipação do qual já falamos, Yves Schwartz nos explica que essas normas devem ser pensadas como anteriores aos sujeitos, que devem “fazer com”. Entretanto, é a história desses sujeitos, ela mesma anterior a essas normas, que permite aproximar localmente o resultado das negociações de onde se origina, a cada vez, a reconfiguração do meio. Vamos retomar as etapas do raciocínio: a) a situação de trabalho é pré-construída por uma série de regras que vão se impor aos operadores: é mesmo essa posição de anterioridade que vai conferir uma certa autoridade aos quadros regulamentares; b) entretanto esses operadores já viveram, eles têm cada um uma história; c) cada um vai abordar a regra com sua história e na medida onde ele a reconhece como pertinente e com uma autoridade, ele faz dela sua norma; d) negociando o seu uso da norma em um meio específico e com uma história singular, o operador vai reconfigurar a situação de trabalho. É preciso destacar que uma regra, de início neutra, anônima, torna-se na ação uma norma pessoal, atualizada. A regra tem o efeito de uma norma a partir do momento em que alguém tem relação com ela em sua vida concreta (à distância, ela lhe será indiferente). A desneutralização permitiu fazer existir a norma fazendo mover o meio. Finalmente, não é a estrita aplicação que se obtém, mas ainda mais: a norma foi colocada em história e gerou história. Ela provocou sua própria superação (aperfeiçoamento). E por continuar provocando
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essa superação a norma vai reivindicar ainda sua anterioridade (ela pretende, então, superar sua superação), depois será superada de novo e assim por diante. Eis o motivo pelo qual falamos de “dupla antecipação”. Para traduzir operacionalmente essa dinâmica da distância prescrito/real, nós propomos a dupla “tarefa/serviço”. A tarefa será aqui tomada como uma metonímia pois ela designa, por ser a menor unidade do prescrito, o conjunto de exigências da situação de trabalho pré-pensada. Entretanto, essa tarefa não existe fora daquele que vai encarná-la por sua atividade. E essa vai se desenvolver na única realidade, a realidade humana (o mundo “desumano” sendo o real). É nesse sentido que nós compreendemos a palavra serviço: esse termo recupera para nós a obrigação de agir (cf. em inglês on duty) induzida pela presença de outros ou indiretamente por sua influência. Na dupla antecipação, reconhece-se, então, a tarefa como um movimento de conquista conceitual da realidade, com o serviço subjacente que é o esforço para colocá-la na história (para alguém que estava lá antes e estará lá depois), na exigência de outras histórias humanas que estão sendo escritas. A tarefa é, pois, metamorfoseada pelo serviço. A tarefa a cumprir se distingue do serviço a prestar sem jamais se separar dele, porque ambos correspondem aos polos de uma unidade dialética. Um age sobre o outro: cada um disputa a prioridade sobre o outro no seio de uma mesma atividade. Mas isso não é tudo, falta um terceiro termo. Se se aceita a definição seguinte – o trabalhador é aquele que, em sinergia com os outros protagonistas da situação, gere à sua maneira as variabilidades do momento, a fim de responder da melhor forma possível às instruções iniciais, então serão reconhecidos três níveis de aprofundamento na análise: existem inicialmente as instruções relativas à tarefa a cumprir, portanto, formuladas anteriormente; há, em seguida, a ancoragem dessa tarefa no contexto presente, sempre em mudança e que vai redesenhá-la parcialmente, provocando a famosa distância entre o prescrito e o real; há, enfim, uma segunda ancoragem na medida em que a pessoa que vai tratar dessa distância vai trazer com sua marca e dará à tarefa realizada um caráter inteiramente singular. É preciso, então, mencionar em
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nossa ferramenta, o engajamento daquele que trabalha, em função do que ele aceita da tarefa “e” do serviço. A ferramenta que propomos disseca o agir em “projeto de uso de si”, que se interpreta como um triplo posicionamento: em relação aos outros (o serviço a fazer), em relação ao mundo real que me resiste (a tarefa a cumprir) e em relação a si mesmo (os recursos que devo mobilizar). Essa ferramenta esclarece, ao mesmo tempo, a competência nascente no iniciante e suas eventuais dificuldades. Quando a dificuldade é melhor colocada, novas pistas se abrem (veja o exemplo a seguir):
O relativo domínio das tarefas
O projeto de uso de si A mobilização dos seus recursos
O serviço a ser realizado para os outros
5.2. ilustração a partir de um breve exemplo Por ocasião de um estudo realizado pela Associação de Gestão do Fundo para a Inserção Profissional das Pessoas Deficientes (AGEFIPH), encontramos uma equipe de profissionais da grande distribuição que acolheu um empregado de self service, iniciante. Trata-se de Matthias, com idade de 18 anos e com diploma nesse setor de atividade. Esse jovem homem deseja ardentemente entrar na vida ativa, mas, depois de um mês de experiência, a empresa decide não ficar mais com ele. Matthias foi admitido no departamento de padaria de um supermercado, onde ele demonstrou uma excepcional lentidão. O chefe que tomou a decisão sabe que esse jovem é reconhecido como trabalhador com deficiência leve: tratava-se de uma dispraxia provocando dificuldade de adquirir certos automatismos na movimentação.
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A pedido do jovem e daqueles que o acompanhavam e com o objetivo de ver quais eram os níveis eventuais para favorecer a inserção na empresa, uma análise em situação de trabalho foi realizada com um vídeo comentado em autoconfrontação. A conclusão desse estudo coloca em evidência, no caso de Matthias, um bom domínio das tarefas que lhe são confiadas: ele acaba de concluir sua formação em técnicas de distribuição de produtos alimentares. As imagens mostram que o jovem chega a executar as operações com uma certa destreza e, se ele comete às vezes algumas faltas, é, sobretudo, quando está indo muito rápido. Nesse caso, por que se reprova sua lentidão? Nossa ferramenta de análise permite formular uma hipótese: não é o cumprimento das tarefas que causa o problema desse aprendiz e que o faz lento. É, sim, o trabalho ligado aos outros. Mathias, que não manifesta nem um retardo intelectual, nem má vontade, não consegue entrar na dinâmica do “serviço”. Ele fica paralisado pelo medo de fazer mal feito, tomado da preocupação de agir em conformidade, o que faz dele um colaborador fatigante para as suas coequipes: “eu, o que eu quero, eu quero fazer bem, é isso que conta para mim !”. O controle parece uma obsessão para Mathias. Nós o vemos continuamente retornar, ou ainda voltar para verificar que nada foi esquecido por ele sobre a mesa ou sobre uma prateleira, no chão, em uma seção. Ele examina cada baguete para estar certo de que ela esteja bem-apoiada no fundo do saco. No momento da retirada, ele manipula várias vezes os produtos na prateleira, para ter a certeza de que eles não estejam mal-posicionados. Quando ele utiliza a impressora, ele verifica cada etiqueta, para verificar se um código não teria sido apagado antes dele. A respeito das idas e vindas entre o laboratório e o espaço de vendas, nós o interrogamos: não poderia ele se organizar para limitar seus deslocamentos? “Sim, existem carrinhos, mas é preciso ter um livre, é este o problema”. Essa resposta é reveladora do posicionamento do estagiário no coletivo de trabalho. Ele não ousa reivindicar sua presença como protagonista no ambiente de produção, ele se mantém afastado de forma sistemática. Um outro e não ele pensa que um outro além dele, poderá precisar do carrinho e além do mais, pegar um carrinho em um espaço tão reduzido, vai certamente atrapalhar a passagem.
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É a mesma discrição que Matthias observa quando ele deve compartilhar com uma colega, uma mesa de trabalho prevista para um só operador. Ele espera que ela saia para deslocar sua pilha de pães para a balança e não ousa, mesmo nessas condições, deslocar caixas vazias que ela deixou no local, reduzindo enormemente seu espaço de trabalho, o que o deixa ainda mais lento porque ele é obrigado a colocar no chão a sua caixa e se abaixar constantemente para efetuar suas operações. Encarregado de condicionar os pães e bolos, Matthias deve utilizar numerosos códigos de produto. Parece que ele não reteve nenhum deles, apesar de numerosas semanas de prática. Podemos pensar que a perda de memória é um efeito do estresse, na medida em que o iniciante parece viver seu trabalho com uma tensão nervosa persistente. Seu mal-estar é perceptível até em sua aparência ligeiramente arqueada, seu sorriso raro e, sobretudo, em seus olhos. “Ele tem uma inquietude em seu olhar que lhe tiram certos recursos” diz o chefe a respeito desse jovem. “Ele tem um ar de quem diz: eu vou ser criticado, porque eu não consigo fazer o que eles me pediram?” Nós lhe perguntamos por que ele solicita constantemente a padeira a respeito do código dos artigos: “Eu lhe pergunto para estar certo...Eu sei, mas eu tinha ainda uma dúvida”. O medo de fazer malfeito? “Sim, é sempre isso”. Matthias está efetivamente dividido entre duas exigências, que ele traduz assim: “Desde que eu não compreenda, eu devo perguntar a ela. Se não isso lhe fará perder tempo também, se eu erro depois. Ela deve refazer e corrigir tudo.” Ele chega ao cúmulo de interromper continuamente a padeira em seu trabalho, porque ele quer evitar o erro... que fará essa profissional perder tempo. A ferramenta que propusemos para a chefia em situação de trabalho permite abrir um debate sobre o trabalho como “projeto de uso de si”: a explicação é sucessivamente dirigida para o controle das tarefas, o controle do serviço a ser feito e para a mobilização dos recursos. No caso de Matthias, a dinâmica desses três polos deve começar levando-o a trabalhar não em prioridade sobre as tarefas ou sobre os recursos a mobilizar (porque ele já está mobilizado e formado profissio-
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nalmente), mas de preferência em relação ao serviço como diálogo e troca com os outros em situação de trabalho. Matthias não tem necessidade que o levemos a um posto, ele deve se autorizar a conquistar seu lugar, a incomodar existindo pelo seu trabalho – ou seja, reivindicar existir como os outros, a fim que se reconheça sua prestatividade tanto por sua utilidade como por sua conformidade.
6. A função “Avaliar” 6.1 Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “avaliar” Avaliar é estimar, apreciar – e assim reconhecer –, julgar: a fim de se entender sobre o valor de algo. A avaliação é uma interpretação, portanto, necessariamente discutível. Consiste em comparar um estado atual com um estado ideal (referido/ referente) para valorizar o existente, formar projetos, decidir, corrigir, reorientar. O desafio da função de avaliação é, primeiramente, o reconhecimento de uma realidade presente e seu desenvolvimento posterior: a melhoria das performances individuais e coletivas. A ferramenta que propomos para a avaliação em situação de trabalho se inclui numa perspectiva ergológica. A atividade é vista como um encadeamento de debates de normas. Devemos pensar em dois eixos ortogonais de modo a expressar, entre o registro da aderência e o registro de desaderência, ao mesmo tempo a diferença de natureza quanto a sua necessária confirmação – uma vez que não há atividade senão em tensão entre os dois. Enquanto horizontalmente tenta-se explicar a aderência da vida concreta com suas densidades, representam-se, no mesmo esquema (mas desta vez verticalmente), os vários graus de desaderência, ou seja, o distanciamento, da simples generalização da experiência à sua modelização e teorização graças a uma conceitualização cada vez mais rigorosa. Toda situação de trabalho está, portanto, na encruzilhada de um esforço para conhecer (desaderência) e um esforço de viver (aderência), o primeiro respondendo a uma neutralização axiológica, necessária porém tendenciosa, e o segundo, a uma desneutralização igualmente indispensável.
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Nossa ferramenta tenta, eloquentemente, ilustrar a tensão que caracteriza a atividade humana e da qual o avaliador vai considerar quando ele tentar dizer algo relevante sobre um ser de atividade. O eixo horizontal representa a flecha do tempo histórico, o desenvolvimento dos fatos, o encadeamento das causalidades, a inércia do real. Quando se evoca a aderência, assinala-se a luta diária de humanos que mobilizam suas forças intelectuais e físicas para enfrentar esse real, resistir a ele como ele lhes resiste, a fim de retornar, oportunamente, a uma parte das restrições do meio. Pelo contrário, o eixo vertical visualiza a característica do ser pensante, o privilégio que lhe dá toda a sua humanidade: é o poder de adotar uma postura de desaderência, de descolar do presente, de criar entre ele mesmo e a restrição atual, um espaço, uma distância, que pode ir da simples categorização a fim de integrar o caso, de subsumi-lo sob um tipo, até às operações mentais extremamente sofisticadas, à formação de uma rede de conceitos bastante rica que oferece uma inteligibilidade nova e extraordinária sobre fenômenos observados no real. O eixo vertical é, portanto, aquele de um novo controle do humano sobre a realidade, em graus muito diversos. O efeito mais imediato é o esquema, cognitivo ou gestual, o que torna possível fazer algo com a impressão de “não o ter pensado nisso”; em seguida vêm os diferentes graus de mediações conceituais. Mas é muito importante reconhecer uma dupla desaderência, aquela dos conceitos e aquela dos valores. Na verdade, pensar significa não só produzir categorias e relações lógicos, mas também desvincular-se de preconceitos e preferências para se alcançar o caso geral. E esta crítica da interpretação se completa com a ruptura epistemológica: trata-se, então, de perseguir os valores residuais na modelização do real, de neutralizar tanto quanto possível o que resulta das escolhas humanas, a fim de fabricar modelos que abrem a novos horizontes da vida, porque o controle sobre a realidade terá aumentado. Essa é a aventura da ciência. Concebemos nosso esquema de tal forma que as oposições sejam explícitas: o registro do conceito, o quanto possamos aprofundá-lo, não vai se confundir com o registro da vida. Essas são duas direções solidárias, mas opostas. Porque os dois registros se distinguem fundamentalmente, o sonho taylorista de uma
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realidade perfeitamente dominada conceitualmente não pode ser defendido. Em compensação, os dois registros são inseparáveis: é a sua simultaneidade que produz a dinâmica do conhecimento e da história. Para o avaliador, é essencial capturar essa dinâmica, porque ele quer julgar o ator através de seus atos. O ato está na encruzilhada dos dois eixos, o horizontal e o vertical. Isso significa, primeiramente, que ele nunca é cem por cento livre, ativo – e nunca cem por cento alienado, passivo. O ato reflete uma interação com o meio ambiente: mas até que ponto? É, exatamente a isso que o avaliador deve tentar responder. É claro que o ato deve muito às circunstâncias, às interações com outros humanos, mas não se pode renunciar a qualificar, diferenciar e, então confiar tarefas às pessoas individualmente. É por isso que a avaliação é indispensável, mas deve levar em conta a dupla origem do ato que ela procura isolar e apreciar. De um lado, esse ato é o resultado de uma neutralização uma vez que manifesta um modelo profissional pensado na distância das escolhas; por outro lado, ele provém de uma desneutralização porque nenhuma apropriação de um modelo é feita de modo neutro; é necessário, ao contrário, afirmar uma decisão, uma preferência para dominá-lo e usá-lo. Contudo, a desneutralização é, também, um compromisso entre a tarefa (a regra) e o serviço (os outros). A avaliação deve qualificar esse compromisso, que pode ser muito profissional ou ao contrário, faltoso, no que se refere às prioridades coletivas das regras da arte, etc. Nossa abordagem de avaliação, sob a base da ferramenta que propusemos, é aquela que nomeamos: a localização e a ancoragem. A localização é um exercício conduzido junto com o avaliado para explicitar as normas antecedentes da situação de trabalho analisada. Trata-se de um meio de reconhecer esse em função de que agimos e, também, de recolocar no seu lugar – que é crucial – as normas que se querem neutras e anônimas, justamente para permitir uma personalização delas, uma atividade. Por exemplo, as normas do ofício são a expressão de um conhecimento teórico, portanto, desinteressado. O agir (mais ou menos conforme, segundo essas regras da arte) que o avaliador vai apreciar, é, ao inverso, a expressão de um saber, aquele de alguém que tem uma posição,
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que está interessado, que tem um ponto de vista: e felizmente, caso contrário, ele não seria eficaz. E, precisamente, isso corresponde à segunda etapa de nossa abordagem, a ancoragem. Entramos na atividade “aqui e agora”, retomando o relato situado e datado, exatamente na cronologia dos fatos. Parece-nos, então, fundamental adotar uma entrada coletiva na jornada de trabalho, porque a renormalização não pode ser compreendida de forma solipsista. Há desneutralização porque há um outro: não apenas um, mas “os” homens normativos. Cada um dos protagonistas será colocado, como o avaliado, na obrigação de escolher – e a iniciativa que se quer avaliar deve ser apreciada entre outras iniciativas que coincidem no tempo presente. Com a ancoragem, entramos na singularidade, mas sem nos afogarmos porque temos uma boia: a norma antecedente, em função da qual o protagonista da situação arbitrou. O terceiro tempo, depois da localização e da ancoragem, é aquele do debate. Certo número de fatos foi trazido à superfície: trata-se de interpretá-los e para isso o referencial tem seu papel. Ele pertence às normas antecedentes, e, a esse título ele autoriza a atividade, a dinâmica entre norma e renormalização. Por isso, é preciso lembrar sempre a necessidade de um referencial – e, sobretudo, não o tomar por evidente. Porque não é senão na medida em que o referencial aparece como uma norma, isto é, uma maneira privilegiada de fazer entre todas aquelas que são possíveis (resultante de uma escolha), que a pessoa no trabalho vai poder preferi-la. Pelo contrário, se o referencial é apresentado como uma evidência, ele é, de alguma maneira naturalizado, imposto como um fato e não abre para uma nova escolha. Mas o fato, que terá sido reconhecido graças ao referencial, não fala sozinho. Essa etapa é aquela do controle, mas a avaliação também deve se apoiar sobre ponto de vista de um ator, que não se contenta em ser apenas ator. A desneutralização significa que o avaliado tomou a iniciativa sobre a restrição: ele se coloca, mesmo modestamente, como autor de suas formas de agir, inclusive de acordo com as regras da arte. A norma é reinvestida por aquele que trabalha, ele a habita, ele a orienta, ele lhe dá todo o seu significado. Avaliar será, então, cruzar os pontos de
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vista, e nossa ferramenta busca provocar este debate: em que condições a tarefa se tornou “minha” tarefa? É essa reflexão que vai dar conta da subjetividade como uma atividade – um uso de si, por si e pelos outros. Na falta de dialetizar a avaliação a partir da atividade, corre-se o risco de tomar o potencial por algo mágico, em vez de ver nele o desenvolvimento de um domínio que começa a apontar; corre-se o risco de tomar a motivação como algo metafísico, ao invés de ver nisso um alerta sobre o estado dos debates efetivos de normas na pessoa em questão; corre-se o risco de considerar a competência como uma coisa, em vez de pensá-la como uma ferramenta, uma linguagem comum; corre-se o risco de finalmente tomar o referencial como uma camisa de força, ao passo deve ser o motor da relação norma/renormalização.
“Saberes científicos”
CONCEITOS OBJETIVOS
“Saberes experienciais”
CONCEITOS ORGANIZACIONAIS
HORIZONTAL: ADERÊNCIA
“Saberes experienciais”
CONCEITOS ORDINÁRIOS & OPERATÓRIOS
Ruptura epistemológica
Flecha da tomada de distância crescente
CONCEITUALIZAÇÃO
VERTICAL: DESADERÊNCIA
Flecha do tempo
“Saberes incorporados” ESQUEMAS
Ati vid ade
Esforço de conhecer
Zona do não formulado
RENORMALIZAÇÃO
Esforço de viver
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6.2. Ilustração a partir de um breve exemplo Com o Departamento de Ensino do Alto-Reno, conduzimos recentemente uma ação experimental em Seção de Ensinamento Geral e Profissional Adaptada (SEGPA). O objetivo era propor aos professores uma ferramenta de avaliação nascida da análise do trabalho, para ajudá-los a acompanhar melhor os períodos que os estudantes gastam nos meios profissionais. O estágio é efetivamente considerado como parte integrante de uma pedagogia que visa a restabelecer a autoestima e o sentimento de sucesso na aprendizagem. Segundo as recomendações ministeriais, a avaliação do estágio deve permitir apreciar “o nível de domínio, expresso pelas competências relevantes da vida social e profissional (se informar, analisar uma situação na globalidade, implicar-se em uma ação, comunicar)” (Circular no. 2009-060). Em resumo, nossa pesquisa teve como ponto de partida a constatação de que a abordagem atual das situações de trabalho pelos estudantes e professores é essencialmente centrada no que é antecipado, modelizado pelas organizações produtivas: em um sentido amplo, as tarefas a serem cumpridas e previstas nas condições de execução previstas. Esse aspecto das realidades em empresas é muito importante, porque se trata de um quadro lógico, colocado sobre o mundo a transformar. No entanto, o aluno não é encorajado a entrar no inédito de seu próprio trabalho a partir de uma compreensão mais perfeita das tarefas que lhe são confiadas. Por definição, essas podem ser conhecidas antecipadamente e podem ser objeto de uma descrição exaustiva. Em compensação, para ter acesso à atividade de trabalho e, portanto, à parte inédita, é preciso estar atento à dupla ancoragem das tarefas: a ancoragem na atualidade de uma realidade humana específica, um serviço reconfigurado sem cessar o aproveitamento da tarefa; ancoragem mais profunda ainda numa pessoa única, encarregada de realizar o trabalho em questão – uma pessoa que fará escolhas e terá uma perspectiva original sobre uma situação que se acreditava estereotipada. Quando do retorno da experiência depois da estadia na empresa, o aluno e também o professor vão modificar a sua maneira de ver o trabalho. A percepção da
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dupla ancoragem das tarefas (ou “aderência”) enriquece a seus olhos todas as situações, inclusive aquelas que, à primeira vista, parecem repetitivas, apontadas antecipadamente. A tomada das palavras e até mesmo o debate se justificam, ao passo que, anteriormente, falar sobre um trabalho confundido com as tarefas parecia chato, até absurdo, na medida em que tudo parecia já dito na descrição do trabalho. Eles percebem, daqui em diante, que as inumeráveis bifurcações contidas na atividade de trabalho não têm, jamais, uma solução única e indiscutível. E, sobretudo, a colocação da experiência em palavras vai transformar profundamente a relação do aluno no trabalho e, mais amplamente, com seu universo de normas: uma melhor conceitualização, um aumento na autonomia, um distanciamento nas escolhas profissionais. A abordagem de avaliação do trabalho que propomos foi muito apreciada pelos professores associados ao projeto. No eixo vertical de nosso instrumento pode-se ver funcionar uma abordagem de formação profissional que consiste em uma visão objetiva sobre o mundo, em aprender a observar os fatos com um espírito crítico, à distância dos julgamentos de valor muito ligados às situações singulares. Cada um aprende a se descentrar de si mesmo para chegar ao conhecimento de alcance geral. Mas, inversamente, retornando ao eixo horizontal do esquema, cada um deverá, em seguida, se recentrar sobre si mesmo para “fazer seu” o saber, e o descobrir-se portador de um ponto de vista singular sobre o mundo, ou seja, um centro de avaliação. Tal é a atividade humana, ritmada como a respiração: alternando “aderência” a uma situação de vida singular e “desaderência” relativa, isto é, descolamento em graus diversos (sucessivamente: a narrativa, a explicação, os modelos teóricos) em relação ao momento único da vida, aquele das escolhas a serem feitas, levando às renormalizações.
7. A função “formar” 7.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “formar” No mundo do trabalho, formar significa que se prepara alguém para enfrentar os desafios que o esperam na ação: é o que está em jogo. A formação é, portanto, mais
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focada, mais curta, mais formal e menos centrada sobre a pessoa que a educação – sem ser dela, no entanto, muito distante. Certamente, a formação no trabalho responde às preocupações técnicas e profissionais, mas, em nenhum caso, ela não se resume à transmissão de um corpus de saberes e saber-fazer. A formação profissional, porque ela visa diretamente à ação, está também preocupada com a postura do aprendiz, por sua relação com a norma, sua relação com o saber. Mais do que o professor pode fazer na sala de aula, o formador verifica o grau de apropriação dos conteúdos pela pessoa formada. No entanto, ele se choca com um paradoxo: a situação é, ao mesmo tempo, para ele um suporte e uma eventual armadilha. O objetivo a seus olhos é observar se o aprendiz domina as tarefas no serviço que ele está fazendo, assegurando que esse novato não se agarre ao molde, a ponto de ser dependente das circunstâncias profissionais. Nós diríamos, no vocabulário ergológico, que o formador deve apreender a competência como a maneira própria de alguém gerir a tensão entre aderência e desaderência. A ferramenta dos triângulos encaixados que nós propomos é aquela do “ergoformador”, um neologismo cujo interesse é de se dirigir à aderência, quando a profissão orienta sistematicamente os olhares para a desaderência. Compreende-se bem esse cuidado de ficar autônomo em relação às condições de um trabalho específico, contextualizado, uma vez que a transferência é o indicador de sucesso para o formador. Em contraste, a imagem da pessoa que terá conseguido se adaptar a seu posto é aquela que os profissionais de formação temem. Mas é precisamente para estimular a pessoa formada a relativizar o caráter único de sua experiência que pensamos ser útil entrar na singularidade e fazer descobrir, com nosso instrumento, uma estrutura que permite falar mais disso. O formador, com efeito, pede ao aprendiz que reconheça, na situação que ele vive um caso particular entre as configurações possíveis da profissão. O iniciante deve se apropriar dos saberes profissionais para mobilizá-los com o conhecimento de causa e também tirar ensinamentos de sua experiência, portanto, fazer disso um saber útil para ser reinvestido em outros lugares. Ora, se os saberes são imaginados como uma bagagem autônoma que a pessoa iria trazer com ela com mais
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ou menos felicidade, desliza-se em direção a um dualismo ineficaz, que separa o sujeito e o mundo, o sujeito que possui ou não “informações”. Não é, aliás, mais eficaz imaginar que a experiência seria para sempre revivida, que o sujeito não teria aí uma distinção a ser feita entre si mesmo e os saberes... Pensamos, seguindo a abordagem ergológica, que convém pensar a atividade de maneira sintética: o saber é uma perspectiva própria a cada um sobre uma realidade; essa perspectiva é uma interpretação subjetiva, um vivido – mas não somente: é, também, a interpretação de uma situação verdadeiramente real. Em outros termos, pela sua experiência de vida, cada um tem um ponto de vista sobre o mundo: e esse ponto de vista não interessa senão a ele. Porque a situação real, aquela do trabalho, por exemplo, não são unicamente os “fatos brutos”, são também as interpretações que orientam esses fatos atribuindo-lhes uma significação. Há duas maneiras de interpretar uma situação: pelo seu comportamento e por sua representação. Quanto mais a pessoa em formação terá podido voltar aos seus comportamentos e às suas representações no trabalho, mais ela será conscientizada, isto é, terá consciência do que a situação lhe pediu. E quanto mais ela for conscientizada, mais ela terá ganhado margens de liberdade e de singularidade, aliás, de controle da situação e de poder em novos contextos. A reflexão sobre a aderência vai, simultaneamente, consolidar o que pode valer “saber” na situação considerada e o que só se revela do ponto de vista do ator. O método preconizado nesse instrumento de ergoformação é representar, de início, a racionalidade lógica da tarefa: os objetivos, os meios e os resultados – tais como eles são programados pela organização e reconhecidos no exercício do enquadramento da ação. Visualiza-se, em seguida, graças a um recorte certamente artificial, mas pedagógico, o posicionamento da pessoa termo a termo. É esse posicionamento que vai representar seu ponto de vista, aquele a partir do qual ela verá sua existência em face da norma, que ela age “de alguma forma” – e isso terá um duplo efeito: liberar o que há de se saber sobre a situação, que pode se destacar do ponto de vista que permitiu extrair; fortalecer o ponto de vista da pessoa, desde que ela se reconheça como autor e não só como ator de seu trabalho.
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Há, no ato, matéria a ser conhecida e matéria relacionada aos pontos de vista a serem conhecidos. Ou melhor: porque há um ponto de vista no ato (e não simples realização de um tipo mecânico), há qualquer coisa a ser conhecida sobre a realidade. “O ato é uma aventura”, como disse muito bem G. Mendel (1998), o que significa que, no ato, desliza-se sobre seu próprio projeto intencional e, ao mesmo tempo, somos sacudidos pelas circunstâncias. Mas apega-se justamente a essas circunstâncias, de modo a não ser meramente sacudido: é o que significa o debate das normas, mostrando que não há ato e atividade senão na mediação de um dado, o retrabalho desse dado por alguém. Como cavar o posicionamento da pessoa em formação, em relação à sua experiência de trabalho? Propomos nossos dois triângulos encaixados: numa primeira antecipação, o triângulo da racionalidade lógica, que se pretende tendencialmente neutro (OMR, por objetivo, meio, resultado); Em seguida, na segunda antecipação, o triângulo da racionalidade axiológica, o que aparece nas escolhas, quando “a” tarefa se torna “minha” tarefa (FRE, para fins, riscos e desafios). a) De início, os fins: há várias entradas pessoais no objetivo que a organização me exige, porque nós não temos todos os mesmos “fins”, pelo fato de que nós temos um histórico e pontos de vista diferentes. Os fins, isso significa também até onde estou disposto a me engajar na tarefa. O leque de razões pelas quais “eu estou lá e não em outro lugar” vai desneutralizar o objetivo que se apresenta em uma lógica organizacional anônima e neutra. b) Em sequência, os desafios: é a maneira como vou interpretar os resultados, desde a perspectiva que eu adoto. Em que esses resultados não me deixam indiferente? Qual é a cor que eu lhes dou, para além da forma fria e neutra desenhada pela organização? Isso não é um caso privado, que diria respeito só a mim: é uma parte da realidade que eu percebo do meu ponto de vista – e é nisso que esse último interessa aos outros, para além de mim. Eu sou sensível às questões que os outros não veem e que dão uma outra aparência aos resultados das ações empregadas.
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c) Enfim, os riscos: são minha maneira de apreender os meios que a organização me dá para alcançar o resultado. Eu trabalho, então, eu me arrisco porque não é possível agarrar a um molde e não prestar conta de seus atos. Eu não sou nunca unicamente um ator, sou sempre (inclusive na obediência às “ordens”) igualmente também autor do que eu faço, em graus variados. Agir na situação é, então, sempre, mais do que seguir uma regra ou obedecer a uma prescrição: é fazer história. É claro que esse esquema não representa nada senão um artifício para se ser conduzido a extrair de sua experiência, ao mesmo tempo, seu ponto de vista e o que se estrutura em torno, no esforço da coerência do mundo o qual nós realizamos necessariamente, em nossos diferentes atos. À medida que se é consciente dos desafios, por vezes dos microdesafios, tais quais eles nos aparecem na situação, ganhamos em latitude intersticial, para tomar iniciativas a tempo, fazendo dos obstáculos oportunidades: é isso que conduz à transferência tão procurada pelo formador. FINS
Objetivos Triângulo exterior - racionalidade axiológica Triângulo interior - neutro racionalidade lógica
RISCOS
Meios
Resultados Desneutralização Uso de si
DESAFIOS
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Além disso, percebendo os desafios do ponto de vista dos outros, a pessoa se enriquece com o debate, com a controvérsia com outras formas de ver. Compreende-se melhor as contradições internas da situação, a qual nos aparece mais tridimensional (entre si, os outros e o mundo). Nossa própria vida se torna menos unidimensional, mais rica, mais variada, poderosa e vigorosa, mais pessoal também. Porque, bem longe de se fechar na mesmice, não se realiza verdadeiramente uma identidade pessoal a não ser na ipseidade, no seio do debate: ser “de qualquer parte” em um debate, colocando esse ponto do qual se fala no debate.
7.2. Ilustração a partir de um breve exemplo Na Escola de Segunda Oportunidade do Baixo-Reno, acompanhamos uma equipe de formadores em sua reflexão para aproveitar as situações de trabalho graças às ferramentas de ergoformação – e, para desenvolver aprendizagens em dupla tutoria (Durrive, 2016). Vamos tomar o exemplo de Adile, um jovem de 21 anos. Ele faz um curso de treinamento na indústria de alimentação e está realizando um estágio como ajudante de cozinha. O restaurante está instalado em uma casa da velha Estrasburgo. O cenário é não só típico, mas também muito restritivo pela antiguidade de sua arquitetura. A cozinha está ocupando o andar de cima em quatro salas, com diferenças de níveis que levam a patamares entre os setores. Adile percorre uma espécie de corredor e tem várias tarefas a realizar: a lavação dos pratos, a preparação de pratos frios, as tortas flambadas e o guichê de saída dos pratos. O guichê, nesse contexto, é um eixo ainda mais estratégico dado que as equipes de salão e de cozinha não se veem e devem aproveitar ao máximo esse vetor de comunicação. Aparentemente desimportante sob o ângulo das tarefas, o posto é, assim, na realidade do serviço, um tipo de pivô sobre o qual repousa o bom funcionamento do conjunto. Apesar de sua experiência, Adile vai investir nesse posto com uma notável capacidade de encarar o trabalho em função dos outros. Quando ele chega de manhã, ele dá uma revisada geral e busca preparar o que puder, buscando explicações dos menus. Ele jamais fala de sua carga de trabalho pessoal primeiramente, mas fala antes da carga de toda a equipe. Ele compreendeu perfeitamente que, em caso de grande fluxo, terá que sair de seu posto para dar uma mão no bar lavando os copos, no terraço
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onde ele precisa preparar as mesas, na câmara fria no momento das entregas. Na gestão cotidiana de seu posto, ele também consegue chefiar as prioridades graças à sua visão geral: ocupado na lavação, ele sabe como mudar suas prioridades se os pratos quentes forem anunciados, se o chefe não puder mais se ocupar das entradas frias, ou se for urgente fazer tortas flambadas. No final da jornada, Adile ainda está muito ativo para o armazenamento e limpeza das instalações, com o risco de chegar tarde à sua casa. A preocupação do formador do Adile é prepará-lo para o trabalho: ele tem distanciamento suficiente para transferir para outro lugar o que ele aprende neste restaurante, em que ele coloca toda a sua energia? Os retornos de experiência permitem distinguir o que lhe é solicitado a fazer (em termos de objetivos, meios e resultados) e a maneira de apreendê-lo com seu ponto de vista pessoal: em outras palavras, exercita-se em fazer a diferença entre a norma e a renormalização. Para ilustrar isso, tomaremos uma sequência durante a qual Adile comenta sobre a produção de tortas flambadas, esse prato alsaciano preparado com o uso de um retângulo de massa de pão, coberto com creme, cebolas e bacon, cozido no forno por cerca de três minutos. Como aprendiz, o jovem recebeu instrução sobre o procedimento. Mas ele não age como autômato, ele também tem sua ideia sobre a questão. “Quando cheguei, o chefe me enviou ao restaurante ao lado para pegar algumas cebolas picadas. Eu vi que eles as compravam descascados e depois as picavam. É três vezes mais barato. Então eu disse ao cozinheiro-chefe para pedir as cebolas descascadas, eu ia picá-las. Nós temos uma máquina que está lá, sem fazer nada! “.
Adile obteve um sinal verde do chefe, que inicialmente recusou e depois se rendeu com a condição de que o aprendiz assumisse a carga o tempo todo – e ele cumpriu o acordo por vários meses. Para o formador há ali a matéria para um debate sobre o posicionamento de Adile. A tarefa que ele pediu vem se somar ao resto de sua carga: é ele quem toma a
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iniciativa dessa nova obrigação. É interessante aprofundar o ponto de vista do jovem com ele. Na direção dos fins, ele deve pensar sobre o propósito da organização e suas próprias razões para estar lá: em que direção ele deveria ir? Em relação aos desafios, ele vai reconhecer o que é importante para ele por um lado, e, por outro lado, o que é uma prioridade para os outros na empresa, para evitar possíveis mal-entendidos sobre a hierarquia de restrições, mas de modo a não confundir suas próprias escolhas com as da empresa. Por fim, do lado dos riscos, o iniciante vai permanecer atento à mobilização razoável dos meios, embora seja claro que o prescrito está sempre para além porque se coloca aí nesse contexto. Precisamente, o interesse em debater essas microarbitragens com um iniciante é ajudá-lo a reconhecer a norma para melhor reconhecer suas renormalizações. A transferência, que é feita sempre graças a um ponto de vista forte, poderá, em seguida, se efetuar tanto mais facilmente quando se colocam, de um lado as exigências da empresa e, do outro lado, o que faz norma para o indivíduo.
8. A função “recrutar” 8.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “recrutar” Recrutar alguém para o trabalho é engajá-lo, interessá-lo para levá-lo a integrar um coletivo de trabalho. Procura-se completar uma equipe segundo uma necessidade determinada, localizada no ambiente do serviço que se quer prestar juntos. Quando se contrata, decidimos confiar algumas tarefas para o recruta, em função de um serviço globalmente atendido. O desafio consiste em reforçar o coletivo, conseguir renová-lo sem limitá-lo. O recrutamento é uma aposta – da mesma forma que a competência pode ser sempre uma inferência – porque não são os fatos que vão determinar realmente o recrutamento. É verdade que encontramos indícios, e estes são como ajudas na decisão: tal como a experiência profissão; tal como a formação; tal como o diploma; tal como o percurso... Mas se a adequação entre a oferta de emprego e a oferta de trabalho se realiza, não é segundo a única lógica “eis o que é necessário fazer no posto – é
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o que o candidato sabe fazer”. O recrutamento vai observar, finalmente, a respeito do encontro, a respeito dos argumentos e a respeito de um ponto de vista. A ferramenta que nós propomos ao recrutador é precisamente um provocador de argumentações, um agitador de posições. Ela repousa sobre o postulado da abordagem ergológica: a atividade é um encadeamento de debate de normas. Isso significa, de início, que o instrumento quer servir para colocar, em palavras, o ponto de vista do candidato ao emprego: encaramos o empregado-alvo a partir de sua perspectiva. Isso significa, em seguida, que se retomam os termos da contradição do uso de si: alguém é solicitado por outro para fazer alguma coisa: “Fazer alguma coisa é o eixo da tarefa a realizar, aquela que se presta bem a uma conceitualização, ou seja, a um enquadramento anterior. Além da tarefa, são encontradas, sobre o mesmo eixo, as regras de conformidade, as regras de arte, o ofício, então. “Solicitado por outrem” é o eixo do serviço a levar em conta. Esse não se presta senão parcialmente à antecipação, pois será levado pelo acontecimento, pela gestão das variabilidades cuja origem é essencialmente humana: se meu trabalho é, de fato, complicado, é, antes de tudo, porque outrem não cessa de interferir, de se misturar com o meu interesse pela tarefa, de perturbar a sua implementação. Além do serviço a realizar, achamos bem seguro o seu emprego. Com o ofício e o emprego, temos os dois termos, acreditamos, que caracterizam o uso de si pelos outros. É importante sublinhar, antes mesmo de encarar a contradição interna do uso de si, que esse uso de si “pelos outros” carrega nele os germes de um conflito. De fato, pede-se àquele que trabalha que se atenha ao ofício: mas, com bastante frequência, nas urgências do emprego, vai se pedir a ele que faça de outra forma, que faça mais rápido esquecendo a excelência da qualidade. O imperativo de conformidade e aquele de utilidade não convivem sempre em harmonia, e acaba sendo o titular do cargo que vai experimentar a situação. Trata-se de uma outra maneira de ilustrar a tensão entre o registro da desaderência e aquele da aderência. Mas isto não é tudo. De fato, o uso de si, que está no centro do esquema, no coração da atividade, não é decidido mecanicamente... Há aí uma polêmica
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interna quanto ao uso de si, é o projeto de agir. Ninguém deixa o projeto do outro substituir o seu em seu “foro íntimo”. Dizendo de outra forma, para que o problema a resolver seja problema para mim, é necessário que ele corresponda ao meu projeto. Pode-se certamente extorquir de alguém sua concordância, mas não podemos esperar de um ser humano que ele seja a tal ponto transparente que um outro senão ele poderia agir nele: “uma reação forçada, é uma reação patológica”, nos lembra Canguilhem (1947: 128). O uso de si é polêmico porque, se a solução dos seres humanos for fundamental enquanto oportunidade de existir, há uma posição prévia de contestação que deve permitir ao interessado encarar a possibilidade de recusar, o que abre para ele a possibilidade de preferir fazê-lo – e, portanto, se engajar. O projeto de uso de si por si faz, então, existir o problema do outro enquanto “problema para mim mesmo”. E é somente neste momento que a pessoa no trabalho vai procurar com seus próprios recursos o que poderia satisfazer a demanda e trazer uma solução. Este terceiro eixo não representa o trabalhador porque ele se encontra no centro do esquema. É o eixo dos “recursos a mobilizar”: e, de fato, o trabalhador “tem” tais recursos, e ele “não é” ele mesmo um recurso. Além das soluções imediatamente mobilizadas, podemos efetivamente chamar esta última faixa do esquema: o eixo do trabalho. É a resposta da pessoa às duas questões que lhe são colocadas pela tarefa/ofício de uma parte e pelo serviço/ emprego de outra parte: o que fazer – e por quem fazer? O interesse aos nossos olhos desse terceiro eixo – ‘trabalho’ – é o de problematizar a bagagem pessoal sem tratar o ator fora de seu ato. Fala-se de disposições da pessoa em função da tarefa e do serviço a realizar. O ator fica no centro do modelo que propomos, assim como seu ato. Segundo o projeto que terá por ele mesmo, esse ator vai procurar em si os recursos que lhe possibilitarão estar à altura disso que lhe está sendo pedido. Nosso esquema, intitulado “TOE” (trabalho, ofício, emprego), tenta ilustrar os três grandes eixos de um debate de normas, um agindo sobre os outros. Demonstrar competência será ao mesmo tempo: sobre o eixo “ofício” demonstrar um bom domínio das técnicas; sobre o eixo “emprego”, fazer prova de pertinência
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nas arbitragens impostas pelo outrem hit et nunc; sobre o eixo “trabalho”, manifestar uma real implicação, ter gosto pelo trabalho e soluções pessoais a fornecer. Mas não esquecemos que se mostrar competente, é globalmente “estar em atividade” de tal maneira que alcance a aprovação e o reconhecimento dos outros. A competência enquanto tal é uma convenção, uma maneira de falar da atividade: é por isso que o esquema é ligado ao julgamento que os outros vão fazer sobre si. Esse será um julgamento de beleza (Dejours, 1993) ou de conformidade para o ofício, aquele de utilidade para o emprego e, enfim, aquele de fiabilidade para o trabalho. Nossa ferramenta é pensada pela problemática do recrutamento no campo da inserção profissional. Ela deve incomodar não somente as representações do candidato à inserção, mas também dos operadores de recrutamento ou de acompanhamento, sobre o que é o objeto de sua reflexão comum: o emprego aberto à contratação. Esse alvo não deve ser considerado somente sob o único ângulo da lógica, da comparação de dados. Um emprego não é uma soma de informações, é uma situação de trabalho. Essa situação pode ser parcialmente conhecida por um esforço de documentação, mas, no fundo, ela será uma situação a ser vivida. Isso significa que o protagonista será mesmo o próprio candidato. Ele deve trabalhar seu próprio posicionamento graças a esta ferramenta. É ele quem tem encontro marcado com a situação de trabalho, que nós vamos definir como “uma realidade mediatizada pelos outros da qual ele será o piloto”. Nós vamos reencontrar aí nosso esquema de três eixos. No centro, aquele que está no comando da situação que ele está vivendo: ele deve negociar com o real do qual ele faz a experiência, e, de início, através do fracasso, como lembra Dejours (2003). É o nosso eixo da tarefa/ofício. Ele vai perceber igualmente, a partir da realidade que ele experimenta, que os conteúdos do emprego não são – nem de longe – resumidos pelas tarefas: o serviço pedido a ele é necessariamente tomado nas malhas das interações quotidianas no trabalho, e sua disponibilidade no serviço será tanto julgada quanto a sua destreza (pode o ser) nas
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tarefas. Enfim, uma vez estando no cargo quando contratado, o candidato à inserção vai medir pessoalmente tudo “o que isso lhe demanda”, segundo a expressão dos ergonomistas.
Tende ao ofício: CONFORME nas tarefas Polos atrativos: trabalho, ofício, emprego
Atividade = tensões
Tende ao trabalho: CONFIÁVEL no esforço
Tende ao emprego: ÚTIL no serviço aos outros
Ele deverá mobilizar muitos recursos pessoais, sem dúvida, mais do que ele imaginava – sobretudo se ele estiver há muito tempo distanciado do emprego. Vê-se que o debate de normas pode deslocar seu centro de gravidade nesse esquema: uma instabilidade do novo assalariado poderá parcialmente vir da relação com os outros (que, muito rapidamente, são, talvez, muito exigentes), ou ainda ter sua origem no sentimento de ser ultrapassado pela complexidade das tarefas, ou enfim, de ser provocado por uma imagem degradada de si mesmo a qual o impede de mobilizar recursos próprios, o impede de encontrar a energia para lutar e guardar a iniciativa frente a todas as obrigações. Entretanto, os três eixos interagem, uns fazem retornos sobre os outros – e não é, então, uma única explicação que prevalece.
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A ferramenta “TOE” é um provocador de debate que aponta em diferentes direções para solicitar uma tomada de decisão dos atores do recrutamento, a começar pelo candidato. Essa ferramenta foi retomada por uma abordagem mais global de ergo acompanhamento em um projeto de serviço de formação contínua da Universidade de Estrasburgo (ver o exemplo).
8.2. Ilustração a partir de um breve exemplo A originalidade de nossa abordagem TOE consiste em reunir as três fases da inserção profissional (mobilizar, qualificar, colocar) em torno de uma mesma pessoa. Trata-se de trabalhar simultaneamente sobre as obrigações (técnicas, sociais) que se apresentam e sobre a tomada de posição da pessoa referida. Essa abordagem foi retomada e enriquecida para confeccionar um instrumento de acompanhamento através do e/no emprego intitulado: “emprego-piloto”, projeto comum da fundação Jeunesse Avenir Entreprise3 (JAE), da Universidade de Estrasburgo – Serviço de Formação Continuada, em colaboração com o Laboratório Interuniversitário das Ciências da Educação e da Comunicação – LISEC). O emprego-piloto é definido não somente como uma linguagem comum não só entre os operadores e o candidato à inserção, mas também como uma ferramenta de mediação, na medida em que ele vai gerar verbalização e o cruzamento dos pontos de vista sobre as pressões de uma situação: sob o ângulo do trabalho, do ofício, do emprego. Cada uma das três dimensões é apresentada em uma dezena de itens, eles mesmos associados a grades que distinguem as obrigações, classificadas do grau mínimo ao grau máximo. Cada item é um fator decisivo de acesso ao emprego, ou inversamente à exclusão. Daí o termo de “ergo acompanhamento”: “No momento em que há um risco de ‘desligamento’, é importante analisar globalmente e objetivamente as razões dessa inadequação para estabilizar a pessoa no emprego. A comprovação das três dimensões ou tipos de exigências 3 Cf: www.foundation-jae.org, empresa de utilidade pública destinada a fornecer orientação e acompanhamento profissional aos jovens franceses.
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– trabalho, ofício, emprego – fornece um novo ponto de vista sobre as competências a valorizar e as dificuldades a ultrapassar. Uma vez o diagnóstico da situação estabelecido, as necessidades e os pontos a trabalhar são localizados e identificados” (Marc Poncin, Manual Pilot-Emploi, 201: 52).
Observam-se juntos os três desafios simultâneos que a pessoa deve necessariamente confrontar em atividade: aquele de se engajar no esforço, de mobilizar seus recursos (é o eixo do trabalho), a fim de se tornar disponível aos outros e de ser eficaz (é o eixo do emprego), graças ao seu domínio relativo das tarefas prescritas (é o eixo do ofício). O ponto de vista da pessoa, em relação à combinação de exigências do ofício oferecido, será cruzado com o ponto de vista do supervisor de inserção, de maneira a dispor da boa distância na elaboração do perfil. Enfim, vai-se ao encontro das expectativas de quem oferece o emprego, aquele que se prestou a entrar no jogo de definir seu posto em função de um candidato inicialmente virtual, depois real. O debate que vai surgir dessa confrontação com as grades TOE vai permitir encarar uma evolução, um deslocamento de pontos de vista de uns e dos outros e a sua eventual aproximação. “Certas dificuldades não podem ser resolvidas sem apelar para organismos de especialistas em seus domínios (Ex: adequação do nível em francês). Assim, atrás de cada distanciamento, uma ação específica pode ser realizada para reduzi-lo. As soluções podem tomar diversas direções: mediação, regulação, acompanhamento ou formação.” “A objetivação e a legibilidade definidas pela linguagem comum permitem dissolver os a priori e as representações das diferentes partes. É, então, uma maneira de otimizar os percursos mudando o olhar sobre a situação e sobre a pessoa” (idem:52).
Conclusão Nosso objetivo era mostrar como nossas atuais pesquisas, no campo aberto pela análise da atividade e mais particularmente pela abordagem ergológica, podiam contribuir para o aprofundamento do conteúdo do conceito de competência, muito solicitado hoje em dia, em todas as funções do manejo e na formação de adultos.
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Tratava-se para nós de apresentar o que pudemos experimentar em diferentes dispositivos, no prolongamento da abordagem ergológica – e de ver em que medida a integração de um debate entre os pontos de vista (próprios a todas as pessoas em atividade, na situação de trabalho) redimensionaria os modelos que inspiram atualmente o desenvolvimento, a avaliação e a gestão de competências nas organizações. Expusemos, de início, em uma perspectiva de problematização, os usos atuais da competência, seguindo o que nos parece como as cinco grandes funções associadas diretamente ou indiretamente à administração. Continuamos aprofundar essas cinco maneiras de se aproveitar da abordagem pela competência, para uma melhor conceitualização. Enfim, propusemos formalizar uma alternativa para cada uma das funções definidas, a partir dos modelos que construímos com a abordagem ergológica. Para a função “organizar”, analisamos um uso da competência que tende a se aproximar da qualificação. A competência é somente um meio suplementar para o organizador diferenciar as pessoas e estruturar as equipes. Com o instrumento ergológico (Grupo de Encontros do Trabalho, no meio hospitalar), o ponto de vista do gestor pode ser debatido, eficazmente, com o ponto de vista dos operadores. A condição é guardar, uma relação com as normas antecedentes e as renormalizações. Para a função “chefiar”, analisamos um uso da palavra competência, que cinde artificialmente uma abordagem sintética (aquela que se mobiliza quando se formam as equipes e quando as encorajam na gestão da distância prescrito/real) e uma abordagem analítica (aquela em que se adota durante as entrevistas anuais, por exemplo, quando se volta somente às tarefas). Com a ferramenta ergológica (tarefa-ofício-esforço), coloca-se em debate a relação entre a tarefa a realizar e serviço a fazer, a fim de articular os dois registros no lugar de os justapor. Para a função “avaliar”, nós analisamos o uso da competência em que se apoiava em fatos (provas), pesquisando também um meio de se dar conta da singularidade – o que se realiza com a reflexividade, ficando sobre o único plano cognitivo. Com o instrumento ergológico (diagrama de eixos ortogonais), coloca-se, em debate a
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aderência e a desaderência, a fim de construir o ponto de vista embasando a constatação dos fatos. Avaliam-se, assim, não somente a pertinência das arbitragens lógicas, mas também as escolhas argumentadas. Para a função “formar”, analisamos um uso da competência onde se hesitava pensar na singularidade de uma situação, para aí não se perder e, finalmente, reduzir a formação em uma simples adaptação. Com a ferramenta ergológica (triângulos encaixados: lógica/axiológica), pode-se, ao contrário, se aproximar o mais possível das microarbitragens, para melhor delas se desvencilhar e transferir em seguida. É possível isso, na medida em que esmiuçamos essas arbitragens, distinguindo a tarefa do ponto de vista sobre a tarefa. Para a função “recrutar”, analisamos um uso da competência em que ela era (tendencialmente) restrita tão somente aos aspectos da personalidade, como se o ato técnico fosse avaliado pela qualificação e pelo potencial através da competência. Com a ferramenta ergológica (trabalho-ofício-emprego e mediação), propõe-se, sobretudo, tomar em consideração toda a situação de trabalho à qual a oferta se refere, pedindo ao candidato tomar uma posição, entrar, então, em um debate de pontos de vista sobre as diferentes obrigações futuras. Propusemos ver por onde acontece a mudança nas práticas. Parece-nos que acontece por uma abordagem multilateral das situações de trabalho, mais do que por uma abordagem unilateral, como é ainda, majoritariamente, o caso. De fato, os modelos atuais de avaliação, de desenvolvimento e de gestão das competências encaram as situações somente pelas normas antecedentes. Ora, o julgamento de competência não pode ser justificado por um raciocínio lógico (esse não é o resultado de uma abordagem hipotético-dedutiva), e nem ser justificado de maneira simplesmente pragmática (se a verdade da competência era somente a eficácia, seria possível de performance). Conclui-se, então, que a única modalidade de julgamento de competência é uma avaliação que passa pelo debate (debate de interpretação) e se esforça por chegar a um consenso – sobre a base de fatos objetivos, mas que são eles mesmos sempre, em parte, reconstruídos pelas interpretações. A competência
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aparece, então, como o objeto de um debate necessário (em que os referenciais têm um papel de prova de toque), se quisermos escapar ao duplo obstáculo do arbitrário e do julgamento redutor.
Modelos para trabalhar com as competências Organizar
Chefiar
Avaliar
Formar
Recrutar
O uso atual da O uso atual da competêncompetência
O uso atual da competência tende a separar indevidamente uma abordagem global para o administrador e uma abordagem para as tarefas durante as entrevistas
O uso atual da competência tende a buscar, com apoio de provas (fatos), uma singularidade somente pela reflexividade (plano cognitivo unicamente)
O uso atual da competência tende a sobrevoar a especificidade de uma situação para evitar a adaptação e garantir a transferência dos aspectos gerais
O uso atual da competência tende a trabalhar somente com os aspectos da personalidade (potencial, etc.), a qualificação no âmbito do ato técnico
O modelo alternativo apresentado
O Grupo de encontros de trabalho (exemplo do hospital)
A ferramenta (exemplo relativo à empresa)
O diagrama dos eixos ortogonais (exemplo relativo aos colégios)
A ferramenta dos “triângulos lógico e axiológico” (exemplo de uma escola de segunda chance)
A mediação trabalho-profissão-emprego (exemplo de uma associação para a inserção)
O que esses modelos alternativos ensinam
O ponto de vista do administrador pode dialogar com os pontos de vista dos operacionais
Tarefas e serviço não são duas realidades mas uma só, eles estão em articulação
O ponto de vista pode fazer parte de uma avaliação quando é posicionado diante da norma
Aproximar-se das micro-mediações sem confundir-se. Diferenciar a tarefa e o ponto de vista sobre a tarefa para uma melhor transferência
Treinar o candidato em tomar posição sobre as diferentes restrições a vir integrar o técnico e o subjetivo
Contribuição da abordagem ergológica
O desvio pelos pontos de vista vai instruir a norma antecedente
A implementação é uma interpretação (a carta e a mente)
A colocação em debate relata o sentido das normas
O ponto de vista não engessa dentro do singular mas liberta
O debate dos pontos de vista auxilia a integrar em novos meios
cia tende a aproximar-se da qualificação para diferenciar o pessoal e estruturar as equipes
Conclusão geral
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Conclusão geral
Em seguida a nossa tese, A experiência das normas (2006), fizemos um balanço de nossos trabalhos e de nossas perspectivas de pesquisa. Nesse momento dos estudos, consideramos cinco funções associadas à gestão de pessoas no trabalho: organizar, chefiar, formar, avaliar e recrutar. Elas estão ao mesmo tempo em descontinuidade (são missões diferentes) e em continuidade, pois todas estão interessadas pela questão da competência. Todas estão preocupadas pela relação entre o saber e a ação e pela relação do homem com o trabalho: até onde será possível fazer coexistir um cruzamento de normas com um apelo constante à iniciativa? Nossos trabalhos tendem a mostrar o que seria, segundo a experiência de Yves Schwartz, uma “ergo gestão”. Dizendo de outra forma, em que a tomada da atividade como um encadeamento de debate de normas e a tomada da competência como “uma arte de gerir esses debates de normas”, permitem melhor compreender o que seguir uma regra significa para um ser humano. Acompanhamos nossas reflexões sobre a produção de instrumentos, que foram experimentados no quadro dessas cinco funções associadas à administração. O ponto de vista comum dessas funções é considerar que a situação de trabalho vá além de suas condições objetivas; ela é o lugar onde cada um dos protagonistas forma para si um ponto de vista
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Competência e atividade de trabalho
único sobre a realidade. Esse ponto de vista não só subjetivo, ele dá um esclarecimento original sobre a realidade, e, nisso, ele merece ser trabalhado, colocado em palavras, analisado e constituído como um saber de experiência. Tornando-se assim comunicável, ele pode ser submetido à confrontação de saberes, participar na instrução de normas antecedentes e dinamizar a experiência normativa, quer dizer, desenvolver a competência.
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Referências bibliográficas
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Fabrefactum Linha Editorial
A Fabrefactum publica obras que revelam como fatores sociais contribuem para a produção de fatos científicos e artefatos tecnológicos. Multi-disciplinar em sua proposta, a Fabrefactum acolhe trabalhos de uma ampla gama de disciplinas, tais como sociologia, filosofia, história, antropologia, ciências políticas, economia, psicologia e educação. Estudos de controvérsias científicas e da construção social da tecnologia descrevem o trabalho cotidiano da ciência e tecnologia em laboratórios e empresas. Evidenciam também as habilidades e saberes de cientistas, técnicos e usuários, que constróem e sustentam os fatos científicos e artefatos. Os estudos sociais de ciência e tecnologia se contrapõem ao modelos canônicos de ciência e tecnologia, que desconsideram o saber empírico e habilidades práticas dos atores sociais, as intuições baseadas na experiência, o conhecimento tácito e os juízos de valor implícitos em qualquer fazer humano. “Verdades científicas” e “ótimos tecnológicos” são sempre criados dentro de um contexto social: o que funciona é sempre julgado em relação às necessidades de uma comunidade particular e pode parecer bem diferente quando julgado por outra perspectiva. O “fechamento” de uma controvérsia científica ou tecnológica só ocorre quando o grupo vitorioso é capaz de estabilizar os mundos sociais e
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naturais e impor um paradigma dominante. O estudo de como as controvérsias são “fechadas” ilustram como que conhecimentos e práticas antes contingenciais são reificadas como o resultado inevitável do progresso científico e tecnológico. Pelo menos a este respeito, não existem diferenças essenciais entre a produção de fatos científicos nas ciências sociais e nas ciências da natureza. As obras publicadas pela Fabrefactum examinam como o conhecimento é acordado, disputado, modificado e transmitido. A produção de novos conhecimentos é a produção de novos acordos sociais sobre o que se deve considerar como sendo “certo” ou “errado”. Isso implica reconhecer as dimensões cognitiva e subjetiva da prática científica e o saber tácito dos agentes sociais envolvidos, sejam eles cientistas, tecnólogos ou cidadãos que detenham saberes específicos. Pretende-se questionar os mitos da ciência e tecnologia, sem com isso negar a importância do conhecimento especializado. As obras da Fabrefactum também aprofundam a compreensão da recorrente questão da natureza do trabalho humano e sua substituição por máquinas, em especial os limites e possibilidades do uso da inteligência artificial e de sistemas especialistas. Em termos práticos contribuem para o projeto de tecnologias orientadas para a atividade, ao mostrar o papel das pessoas em fazer possível o uso rotineiro, manutenção e atualização de qualquer tecnologia. A socialização e a imersão em “formas de vida” se tornam centrais na transferência de tecnologia e gestão do conhecimento tácito. A compreensão da natureza social do conhecimento científico e tecnológico tem implicações em outras esferas da vida. A desmitificação da ciência lhe retira a autoridade e o poder advindos de uma posição supostamente privilegiada de acesso à realidade absoluta. Abre-se assim um espaço onde indivíduos que detêm uma “expertise baseada na experiência”, mas não necessariamente titulações acadêmicas, possam contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas. A participação popular em questões científicas e tecnológicas passa a ter valor tanto epistêmico como político. Estas mudanças trazem um novo desafio: como
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definir critérios de inclusão, exclusão e de contribuição de cada grupo social – problema que se mostra ainda mais agudo quando se tem uma controvérsia que ainda não foi fechada. Por fim, as obras publicadas pela Fabrefactum pretendem transformar a educação em ciências e a compreensão destas pelo público. O modelo conônico de ciência se sustenta no mito da infalibilidade do método científico ao ensinar que a “verdade científica” é o resultado de um método impessoal e objetivo que iniciantes têm de aprender a valorizar e aplicar. Ao mesmo tempo em que não se nega a importância desta atitude como uma aspiração, os estudos sociais da ciência mostram que esta não é uma descrição fidedigna de como ciência e tecnologia são produzidas. O ensino de ciências só pode melhorar se as idéias tradicionais forem complementadas por uma compreensão das maneiras pelas quais controvérsias científicas e tecnológicas emergem, são fechadas e reabertas. Compreender a ciência e tecnologia como instituições sociais – e assim abrir a possibilidade de propostas alternativas – é um pré-requisito essencial para o desenvolvimento de um diálogo efetivo e crítico entre ciência, tecnologia e sociedade. A Fabrefactum espera, com suas publicações, contribuir para este movimento.
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Sobre o livro Formato: 16x23 cm Mancha: 12,4x19 cm Tipologia: Texto – Minion Regular (corpo 11 pt) Títulos – Minion Regular (corpo 30 pt) Subtítulo 1 – Minion Regular (corpo 14 pt) Subtítulo 2 – Minion Regular (corpo 12 pt) 1ª Edição: 2021
Referências bibliográficas
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