O Avião de Noé

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Copyright © 2014 by Fernando Vita 1ª edição — Outubro de 2014 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Produtora Editorial e Gráfica Priscila Hernandez Assistentes Editoriais Adriana Carvalho Carla Anaya Del Matto Capa Alan Maia Projeto Gráfico e Diagramação Kauan Sales Preparação Nanete Neves Revisão Marcia Benjamim Josias A. Andrade DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vita, Fernando O avião de Noé / Fernando Vita. -- São Paulo : Geração Editorial, 2014. ISBN 978-85-8130-248-5 1. Ficção brasileira I. Título. 14-07783

CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático 1. Ficção : Literatura brasileira

869.93

GERAÇÃO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 – Lapa CEP: 05075-010 – São Paulo – SP Telefax: (+ 55 11) 3256-4444 E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Para Marcos Vita. Outras histórias que não lhe contei.

Para Taís, Nanda e Gal, as minhas mulheres.

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N茫o sei o que vou escrever, mas, para mim, s贸 vale escrever coisas que contam. GRAHAM GREENE

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Destamanho pipoco em domingo incomum ... contudo, em Todavia, e até mesmo em alguns pequenos sítios não dela tão próximos, todos os que sabiam ouvir com os ouvidos ouviram um estrondo da porra, vindo das margens plácidas do rio da Dona, na manhã daquele domingo, 13 de junho do ano da graça de 1958, não tão plácido esse domingo, não pelo pipoco fenomenal do supracitado estrondo, mas porque, em tal domingo, a habitual placidez dos domingos locais já tinha ido pras picas, desde cedinho, por três motivos fundamentais e importantes, não necessariamente na ordem em que eles serão aqui listados: primeiro, era o dia maior da festa da padroeira dos todavianos, Santa Rita dos Impossíveis; segundo, o escrete de futebol do Brasil enfrentava o da Suécia — e era assim, de escrete, que se chamava, em tais tempos 9

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de dom corno, a Seleção —, em campo de nome difícil — Rasunda Stadium — numa cidade de graça estrambólica — Estocolmo — e num horário ainda mais inaceitável para os hábitos locais, onde já se viu jogar jogo de bola em matinas de domingo, jogo de bola se joga de tarde, sabem todos os que de fusos horários não sabem, já que as manhãs de domingo se prestam mais às missas e às visitas a doentes que às porfias da bola, que elas se deem aqui ou em que casa do caralho se deem; e, de quebra — deixo de divagar e ao que interessa, o terceiro dos motivos, volto picado — porque um formidável patrício, de nome de berço Noé, que vivia de consertar, em mal aprumada oficina de beco fedorento a cocô e a mijo de bebum, bicicletas e velocípedes, fogões e liquidificadores, ferros de engomar e motocicletas, violões e máquinas de costura, e tudo o mais que às suas mãos chegasse, sanfonas pé de bode e panelas de pressão inclusas, começara, o tal Noé, um baixinho troncudo e amulatado já passado dos trinta, a construir um helicóptero, à sombra de uma jaqueira centenária, nos fundos de sua casa, na rua das Queimadas, para pasmo de alguns, chistes de outros, inveja de outros tantos, sem falar dos que, pura e simplesmente, por pasmo, inveja ou chiste, decretaram “Este corno tá é doido”, e em assim sendo, o pipoco da porra, que ecoou lá pras bandas do rio da Dona, passou a ser, tão somente, a quarta e última razão da quebra da placidez daquele domingo, nada mais que isso, muito embora a explosão tenha sido das mais supimpas. ... entretanto — já disse acima, mas repito em favor de um melhor entendimento dos que não labutam com explosões — não foi coisa pouca, o pipoco! A ele seguiu-se, subindo aos céus, como um puta facho de incenso a pólvora, dinamite e a enxofre cheirando (será que por perto rondavam o Tinhoso, 10

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o Sete Pelos, o Cabrunco e todos os outros diabos do sétimo livro?) uma fumaceira fenomenal, era como se redivivos víssemos, nós todos, os que sabiam enxergar com os olhos, os tais cogumelos radioativos que sequenciaram dois outros estrondos famosos, aqueles, da Segunda Guerra Mundial, em Hiroshima e em Nagasaki, não sei em qual delas duas o bum se deu primeiro, certo é que os de Todavia ouviram o fantástico ribombo, e viram, não pela primeira vez, e que não seria, entretanto, a última, um resultante miserê e um acabamento tais, em vidas e danos materiais, que, até então, eles só se dariam a acreditar fosse possível se dar no estrangeiro, no Japão, em tempo de guerra, assim mesmo porque leram em O Cruzeiro, e, mesmo tendo lido nas páginas de O Cruzeiro, passaram a limpo o todo lido, ouvindo o rádio de Dodô das Bicicletas contar o que ocorreu com os japoneses, era o rádio de Dodô um Mullardão potente, que em ondas médias e curtas ia longe, pegava, de dia, até a Mayrink Veiga do Rio de Janeiro, quando não as emissoras de rádio dos quatro cantos do mundo nas noites ermas de Todavia. Ainda hoje não se precisam de forma exata a hora, nem os minutos, muito menos os segundos em que o pipoco se deu, até mesmo porque os todavianos nunca se ligaram muito em tais detalhes, sempre cagaram e andaram, solenemente, para essas coisas que os ponteiros dos relógios de marca ou os dos roscofes mais pebas insistem em apontar em seus mostradores, não seria na manhã daquele domingo, 13 de junho, do dito 1958, que o fariam diferente, de maneira tal que levou algum tempo até se saber, por relatos, variados nas fontes e inexatos nos detalhes, que mais um fabrico clandestino de fogos de artifício tinha ido pelos ares, levando junto algumas dezenas de vidas, entre os velhos, jovens e crianças, de todos 11

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os sexos e idades, os tais quais, sem nenhuma segurança mas com exímia técnica artesanal, davam forma final a cobrinhas, chuvinhas, espanta-coiós, rodinhas, rojões, estrelinhas e estalos bebês que, das margens plácidas do rio da Dona, ganhavam as cidades da Bahia e do Brasil, e quiçá do mundo todo, para alegrar as festas, iluminar as noites em cascatas de luz e subir aos céus, em cores e lágrimas, como aos céus devem ter subido, sem pedir licença a São Pedro, tantos e tantas de Todavia que em tais arapucas mambembes transformavam perigosos pós, pólvora, dinamite e argila nas pirotecnias das alegrias alheias, que viver era preciso, mesmo que morrendo fosse, isso se deixando por menos que no mesmo furdunço mudaram-se dessa para uma melhor uma porrada de galinhas, cachorros, porcos, passarinhos de gaiola e outros tipos de bichos de criação, desses que gostam de se achegar de onde tem gente, vieram abaixo e viraram entulho mais uma apreciável quantidade de casinhas e casinholas de adobe, em sua maioria as de morar dos que no fabrico davam duro, e se um Pablo Picasso às mãos ali tivéssemos, um outro Guernica pronto e acabado com certeza nós teríamos para dependurar em uma parede ou deslumbrar povos num museu. Dessa vez, foderam-se, de verde e amarelo, trinta e três pobres almas, sem contar uma multidão a mais de queimados, estropiados, aloprados, pernetas e manetas que restou viva para contar a história da desgraceira geral que se deu e do que sobrou da explosão do fabrico precário de fogos, um mero círculo de pequenos caramanchões, cobertos de sapé ou palhas de dendê, sem portas ou paredes, mafuás improvisados, a céu aberto, e bote céu aberto nisso, a esperar, no além das nuvens, em viagem sem retorno, os que laboravam ali na hora do solene pipoco. 12

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Corina, velha astróloga, cartomante, mandalista, taróloga, numeróloga e prendada na leitura das mãos alheias, sendo que em nenhuma dessas artes acertava qualquer prognóstico, apressou-se em contar nos dedos e vaticinar, com solene catilogência e acadêmica proficiência: — Hoje é o dia 13, do mês seis, do ano de 1958. Conte nos dedos, os que dedos tiverem e souberem contar: um e três, quatro. Mais seis, dez. Mais um, onze, com mais nove, temos vinte, com mais cinco, vinte e cinco, com mais oito, fechamos em trinta e três, a idade em que Cristo morreu na cruz, pregado a prego e martelo pelos judeus da Judeia, ou da Cananeia, estou eu velha a mais da conta para saber quais judeus foram os que bateram com martelo os pregos que pregaram Jesus Cristo na cruz. Mas, sei de sapiência certa, já que os números nunca me enganam, que foi um milagre de Jesus terem morrido tão poucos, só trinta e três, e que Deus seja louvado! Pelo pipoco do estrondo, eu que estava na sentina a obrar e a jogar as cartas do tarô, pensei que o mundo começara a acabar justo naquele momento e que o Pai Celestial escolhera Todavia para sediar o princípio do fim. — E depois, Corina, tu limpou o rabo? — perguntou João Galocha, seu constante interlocutor e vizinho de porta na comprida e esconsa rua do Espera Negro, um dos que, o Galocha em lide, mesmo num domingo tão novidadeiro quanto aquele, encontrara tempo para ouvir, meditar e pilheriar ante a numerologia abestalhada da velha, em roda de prosa de ponta de rua. — Se ela ariou a bunda ou não, eu não sei — intrometeu-se Ernesto Pical Bandeira, marido de Corina e compadre de João. — Mas que ela saiu do quartinho picada, ainda ajeitando a calçola e com a cara assustada de quem tinha visto o demônio, disso eu sou testemunha. 13

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No entanto, não passava das dez horas de relógio, hoje imagino, quando o estourão se deu, porque, quando do dito pipoco, monsenhor Galvani ainda oficiava a missa solene do dia maior, igreja lotada — sabem todos que os de Todavia apreciam muito rezar em missas, chorar em velórios, cantar em procissões e acompanhar enterros. E muitos enterros os esperavam, na segunda que vinha logo ali, na sequência daquele domingo de junho, em que o escrete canarinho atochou cinco a dois no fiofó dos suecos, Pelé deitou e rolou, Garrincha rolou e deitou, o Brasil se tornava, pela vez primeira, campeão do mundo no futebol, e até mesmo os de Todavia, com pipoco e tudo, se esqueceram do horror que se deu no Maracanã em 1950, ah! Ghiggia, inesquecível filho de uma puta, por que brocastes o nosso Barbosa goleiro, naquela porfia final, entre Brasil e Uruguai, protelando por mais oito anos a nossa histórica vitória? E quando ela se deu, era, então, Juscelino o presidente do Brasil, e uma voz de moço, docinha como o quê, som de violão de batida bem moderninha ao fundo, tomava os ares de Todavia, e era ele, um tal de João Gilberto, quem cantava pelas bocas do serviço de alto-falantes de seu Diguinha, levando alguns dos de Todavia que ouviam as suas canções a indagar: “Quem é mesmo esse filho da puta desafinado?” Quando se ouviu o estrondo afinado e uniforme, no entanto, estava monsenhor Galvani pomposamente sentado, em solene cadeira lateral ao altar, acompanhando aquela parte da missa em que frei Eliseu das Chagas de Cristo, sacro pregador franciscano, especialista na vida e na obra de Santa Rita dos Impossíveis, vindo da Cidade da Bahia tão somente para louvar, em prédica de improviso, os feitos da santa padroeira naquela solene celebração, dizia que Rita era isso e aquilo e aquilo outro. Então, com um sutil piscar de olhos, o monsenhor chamou 14

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um desarrazoado de nome Toninho do Padre, tido por todos, em Todavia, como seu ilegítimo filho, fruto de fornicação errada com uma beata descuidada nos controles das tabelinhas que regulavam as idas e vindas mensais das suas regras e paquetes, Toninho este que acolitava a celebração na função de operador de turíbulo, sendo o turíbulo aquela alfaia sagrada que, prenhe de carvão em brasa, atochada de incenso e mirra até a boca, faz uma fumaça cheirosa permear toda a ambiência das naves de igrejas, sabe lá Deus com que propósito, senão o de deixar alguns cristãos com os olhos ardendo e uns tantos outros a dar espirros esporrentos, mas eu dizia que monsenhor Galvani chamara Toninho, com um sutil piscar de olhos, e ao tal Toninho do Padre delegou a tarefa de, repassado o turíbulo a um subacólito, chamemos assim esse outro desimportante, fosse averiguar a que se deveu o pipoco ouvido. Teria sido uma bomba joanina um tanto ou quanto mais forte, a celebrar um gol do nosso escrete?, chegara a especular o homem de Deus, antes de liberar Do Padre para a cubagem. Não fora uma bomba, o Brasil já estava ganhando de três a um da Suécia, assegurou Toninho, na volta, aos cochichos, aos ouvidos já meio moucos do monsenhor. “E que porra foi então, seu pedaço de estrume?”, quis saber o vigário, ao que Toninho do Padre, com a concisão possível aos explicares de um reconhecido abestalhado, informou que fora uma explosão da zorra, lá pras bandas do rio da Dona, e que tinha gente morta e ferida para dar de pau, fora o que soubera, mais não pôde saber, as suas funções turibulares estavam a exigir a sua volta ao altar, e a elas não retornou sem antes ouvir, do monsenhor Galvani, uma imprecação pouco cristã e menos ainda solene para momento tão grave: “Dou o meu cu em praça pública se não foi outra fábrica de fogos que foi pelos ares!” 15

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E fora, mesmo. Clandestina, como tantas outras fajutas fábricas de fogos em Todavia, esta que acabara de explodir pertencia a um foguista de nome Antônio Trovão das Mortes, de todos conhecido como Bigorrilho Fogueteiro, ele próprio ali posto, aos pés de Santa Rita dos Impossíveis, naquele momento, a rezar contrito, sem saber missa metade nem missa inteira da desgraceira que se dera em seu mafuá, lá pras bandas do rio da Dona, não seria dessa vez que, por errar um mero palpite, nosso monsenhor vigário teria que arribar a batina para que um penitente qualquer lhe passasse em trolha o seu santo cu. Frei Eliseu concluiu seu longo sermão, e o coro, sob a regência do velho maestro Sóter Barros, mandou aos ares os seus cantares de subi, precioso incenso, antecipando tudo o mais que ainda se daria naquela santíssima missa, consagração, comunhão e ofertório incluídos, até o seu final solene, com hinos, palmas e vivas a Santa Rita, que mesmo sendo santa de alta reputação dentro do mundo da santidade, capaz de operar os milagres mais impossíveis, de seu altar nada mais poderia fazer para salvar as vidas dos que se foram na explosão. Nos fundos de sua casa, na rua das Queimadas, número de porta 77, Noé trabalhava, calmamente, na construção do seu helicóptero quando o pipoco se deu. Deu-se o pipoco, mas Noé, de tão enfronhado que estava nessa sua empreitada, não se deu pelo pipoco. Apertou mais uns tantos parafusos, demandou a um seu quebra faca, de apelido Ferramenta, um alicate torquês, aplicou mais uns pontos de solda em parte da estrutura daquela estrovenga mecânica que mal tomava as primeiras formas, depois limpou as mãos sujas de graxa numa ponta de estopa, abriu uma cerveja, bebeu em companhia do dito quebra faca, pediu mais outras geladas à sua patroa, as 16

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intermeou com algumas doses de uma crua de nome Sururu, vinda de bom engenho, elogiou a perder de conta a qualidade da caninha, comandou que sua consorte pusesse o trivial cozido dominical à mesa logo que pudesse, quando isto feito comeu como come um condenado, deu alguns arrotos, dispensou o doce de goiaba caseiro da sobremesa, tirou uma breve madorna numa rede de varanda, soltou alguns peidos e logo voltou às porcas e aos parafusos do seu engenho de voar, aproveitando o saldo de domingo restante, que amanhã é segunda-feira, dia dito de branco e de voltar aos parafusos e às porcas dos outros engenhos, estes, que ele tinha que consertar, por dever de ofício, para ganhar a vida, à vera, Ferramenta, o quebra faca, um pretinho de olhar esperto, ainda não chegado aos vinte, sempre ao lado. Foi o que se deu, sem tirar nem pôr, nesse tal domingo, 13 de junho de 1958, e mais não se deu porque, o que ainda tinha que se dar, não se daria mais. A solene procissão de Santa Rita dos Impossíveis, que à tardinha deveria percorrer as ruas da cidade, foi suspensa pelo monsenhor Galvani, em sinal de sentimento pelas mortes causadas pela explosão do fabrico de fogos. E se às ruas fosse a procissão — apresso-me logo a dizer —, por mais bonitas e enfeitadas estivessem as charolas, por mais afinadas e bem regidas desfilassem as nossas duas impávidas filarmônicas, a Sociedade Philarmônica Amantes da Lyra e a Sociedade Filarmônica Carlos Gomes, esta sem o ph do arcaico escrever por ser de fundação mais recente que aquela, poucos cristãos acompanhariam o sacro cortejo: assim que o juiz de bola de nome oblongado deu o apito final que findou o jogo do nosso escrete com o da Suécia, foi um tomar de cachaça sem alívio, bons de copo os de Todavia são, mais até que cristãos ou patriotas, só uns poucos cantaram o 17

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Hino Nacional, todos beberam e festejaram muito, de forma que o andor de Santa Rita, se fosse às ruas naquele domingo, a dar-lhe vivas teria uns poucos gatos pingados da Congregação Mariana, da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, da Cruzada Eucarística, e olhe lá. Amabílio Moreira Opobre, crítico contumaz dos costumes locais, o que fazia, com mestria e arte, por meio dos panfletos assinados que escrevia, mandava imprimir em gráfica e distribuir nas Quatro Esquinas — ponto central de Todavia —, ao saber que a solene procissão fora suspensa, aproveitou a deixa para baixar o malho, em conversa com amigos de birita, no monsenhor Galvani, com quem de há muito vivia às turras, por razões as mais diversas, notadamente pelo comportamento, digamos, pouco ortodoxo do padre, na condução dos chamados interesses paroquiais: “Esse sacana desse padre suspendeu a procissão por preguiça. Ele está clericalmente se lixando para os que morreram na explosão e muito puto dentro das batinas porque o escrete da Itália não chegou às finais da copa do mundo, quinta coluna que é este porra desse italiano de merda, vindo da mais baixa das itálias, lá do bico da botina, da Sicília, para tirar uma de porreta em Todavia, ah terra de cornos mansos, a nossa!”, determinou o mulato Opobre, bravo, pomposo, ajeitando no pau do nariz um par de óculos de aros finos, parente bem próximo de um solene pince-nez. Um domingo movimentado e tanto, aquele, tão diferente dos plácidos domingos de Todavia. E já na segunda-feira cedinho, os que gostavam de jogar no bicho — e entre os nossos conterrâneos não eram poucos os adeptos da jogatina! — apostaram, maciçamente, na dezena 18, a do porco. Fizeram a fezinha na expectativa de que, aquele outro bicho, 18

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o porco de Jessé Enfermeiro, que já na véspera fora prontamente acusado de ter sido o causador da tragédia e das tantas mortes, se verá lá na frente porque, por ironia do destino viesse a ser, na segunda, o bom palpite, o talismã da sorte, que os levasse a acertar na dezena, ou na centena, quiçá no milhar da loteria dos bichinhos, dando novo alento e esperanças a tantas outras vidas desimportantes, e que pelo menos para isso tivessem serventia o porco desastrado e o pipoco fatal. Foderam-se, também, os vivos, ainda de verde e amarelo vestidos, celebrando a taça Jules Rimet que Bellini levantara aos céus na Suécia. Apurado o resultado do outro jogo, aquele que o barão de Drumond em finais do século XIX inventara, foi avestruz, dezena 01, o bicho que deu, de primeiro ao quinto, como se quisessem os fados sinalizar, dizer mesmo com todas as letras, “Vai, povinho besta, desenterra a cabecinha das grotas que avestruz não és e descobre que boa sorte não tens, se boa sorte tivesses e em Todavia não estarias a vegetar!” Inocente parte do cenário do pipoco, o rio da Dona continuou o seu curso, saracoteando aqui e ali, bamboleando acolá, fazendo incríveis curvas e recurvas desde a sua nascente, então riachinho besta, nos sopés da serra da Jiboia, só para não ter que passar por dentro de Todavia, eta riozinho pirracento da porra, que até dentro de Santana, dita do rio da Dona, uma merdinha de povoado, passava, mas por dentro de Todavia não passava, aí eu vi pirraça das boas, pois pirraça era, já que depois que Todavia ficava para trás, sem o gostinho de ver a cor das suas águas, o da Dona seguia reto e correto, sem serpentear nem nada, driblava o Sururu, escanteava o Taitinga e ia desaguar no Jaguaribe, este que depois de banhar Nazaré das Farinhas vai dar ao mar, destino de todos os rios, que no dizer de um português da vila de Azinhaga, de quem me valho 19

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por ousadia, José Saramago chamado, “como os homens, só perto do fim vêm a saber para que nasceram!” E chega de saudade!

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