Meu caso de amor com Caio Fernando Abreu

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r o m a e d o s o a d c n a u n e r e M F o i a C m u co e r Ab

Por

L U I Z

F E R N A N D O

E M E D I A T O


MEMORIAS

Meu caso de amor co, Q

uando conheci Caio Fernando Abreu. em 1976, eu tinha 24 anos, pensava em derrubar a ditadura militar pelas armas e fazia parte de um grupo de jovens candidatos a escritores, músicos e artistas plásticos que imaginavam provocar uma revolução na arte brasileira e mundial, com seus textos críticos, contos. romances. poe­ mas, canções. ilustrações e manifestos. Em 1984, nós nos reencontramos em Gramado, no Festival de Cinema. Os gaúchos Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil tinham filmado um conto meu. Verdes Anos. Outro gaúcho. Sérgio Amon, filmara um conto de Caio, Aqueles Dois. Verdes Anos falava de jovens alienados vivendo na ditadura sangrenta do general Médici. Aqueles Dois falava da amizade entre dois homens. O· socialismo ainda era uma idéia na qual se podia acreditar; usávamos. drogas alucinógenas para ficar cara a cara com o Deus no qual não acreditávamos; defendía­ mos e praticávamos o amor livre; tínhamos toda a coragem do mundo. mas também todas as inseguranças, incertezas e paranóias. Foi neste mundo imperfeito, em que militares ainda matavam jornalistas e operários, a imprensa e as artes estavam censuradas e o Brasil descobria ter sido falso o "milagre econômico" do general Médici e do econo­ mista Delfim Neto que comecei uma relação muito intensa, criativa e comovente, mas também decepcio­ nante e amarga, com o escritor Caio Fernando Abreu. Começou por meio de cartas, com a descoberta de pontos comuns em nossas idéias e anseios, cresceu com a relação pessoal e a consolidação de uma grande ami­ zade e só não virou um caso de amor porque, heteros­ sexual convicto, não pude amá-lo como queria, esfriou com a maturidade e se deteriorou completamente quando, assumidamente homossexual e caminhando para a morte pela Aids. o sombrio e amargurado Caio passou a ver nos heterossexuais e nas pessoas razoavelmente equili­ bradas e felizes seres imperfeitos e indignos de contar com sua amizade. Ao longo de cinco anos, num tempo em que não h_avia e-mails, trocamos uma vasta correspondência, interrompida

quando ele deixou o país e nunca mais retomada depois que ele voltou, principalmente, claro, depois que passou a viver em São Paulo e pudemos conviver pessoalmente, numa relação conflituada e quase sempre absurda. Paranóico, emocionalmente instável, hiper-sensível, comoventemente frágil e absolutamente infeliz, Caio parecia sofrer todos os dias. Quase nunca sorria. Odiava quem não gostasse de seus amigos e ídolos, como, já nos anos 80, Cazuza, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Miguel Falabella, Rita Lee, Antonio Bivar. Quatro anos depois, em 1988, Caio vivia extremas dificuldades financeiras. Chamei-o então para trabalhar comigo no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, que eu diri­ gia na época. Foi um desastre. Desaparelhado para o exer­ cício do estafante jornalismo diário, vivia às custas de pílulas e cada texto a ser editado parecia pesar uma tone­ lada para seus ombros frágeis e magros. Convidei-o para escrever uma crônica todas as quar­ tas-feiras e fez grande sucesso: era, segundo as pesquisas, um dos autores mais lidos no Caderno 2. Mas, chocado com minha agitação, meus gritos diários para editar o jornal no prazo determinado, minha falta de sensibilidade para entender melhor as pessoas de sua condição, passou a ver-me como o chefe careta que usava gravata, enquanto ele usava brinco. Olhava-me todos os dias com olhos de mágoa e desalento. Eu já tinha fundado a Geração Editorial, no início dos anos 90, quando ele, que convivia dramaticamente com a doença que haveria de matá-lo, pediu-me ajuda. Quis traduzir um romance de Will Self cujos direitos tínhamos comprado e dei-lhe o trabalho e um adiantamento, mas um ano e meio depois devolveu o livro sem uma só página traduzida. Justificou estar estafado por causa da doença, mas continuou escrevendo sua crônica semanal e textos para revistas. Queria devolver o adiantamento, em par­ celas. Disse que não era necessário. Nossa editora publicou um texto dele. reminiscências de sua vida em Londres, no livro Viagem Inteligente, cujos direitos pertencem à Editora Abril, que autorizara a publicação do texto, ao lado dos de Antonio Callado,

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