Nick N ICK Lake L AKE NA ESCURIDÃO TRADUÇÃO
Petê Rissatti
Título original: In Darkness Copyright © 2013 by Nick Lake 1ª edição — Outubro de 2013 Graia atualizada segundo o Acordo Ortográico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Produtora Editorial e Gráica Priscila Hernandez Assistente Editorial Carla Anaya Del Matto Capa, Projeto Gráico e Diagramação Alan Maia Imagem da capa © Smandy | Dreamstime.com Revisão Rinaldo Milesi Marcia Benjamim
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lake, Nick Na escuridão / Nick Lake ; tradução Petê Rissatti. -- São Paulo : Geração Editorial, 2013. Título original: In Darkness. ISBN 978-85-8130-186-0 1. Ficção inglesa I. Título. 13-11420
CDD: 823 Índices para catálogo sistemático 1. Ficção : Literatura inglesa
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GERAÇÃO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 – Lapa CEP: 05075-010 – São Paulo – SP Telefax: (+ 55 11) 3256-4444 Email: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br twitter: @geracao Impresso no Brasil Printed in Brazil
Para o povo do Site Solèy
Quando os problemas no Haiti começaram, senti que estava destinado às grandes coisas. Quando recebi o chamado divino, estava com cinquenta e quatro anos e não sabia ler nem escrever. Toussaint l’Ouverture, em carta a Napoleão Bonaparte
Mesmo que caído, a nunca mais se levantar, Vivas e te tranquilizas. Deixaste para trás Poderes que por ti agirão, céus, terra e ar; Não existe, pois, um vivente sequer capaz De te esquecer; com bons aliados a contar, Teus amigos são exultações, a agonia-capataz O amor, e do homem o inconquistável pensar. William Wordsworth, para Toussaint l’Ouverture
AGORA
Sou a voz na escuridão, pedindo sua ajuda. Sou o sussurro que você espera não virar silêncio, a voz que deseja continuar a ouvir, pois signiica que alguém ainda está vivo. Sou a voz pedindo para que venha e me arranque daqui. Sou a voz na escuridão, pedindo pra que me desenterre, me leve da cova para a luz, como um zumbi. Sou assassino e fui assassinado também, várias e várias vezes. Nasço a todo momento. Perdi mais coisas do que encontrei. Des‑ truí mais do que construí. Vi nenês abandonados no lixo e vi mor‑ tos voltarem à vida. Aos doze anos dei o primeiro tiro num homem. Não tenho nome. Não há nomes na escuridão, pois não há ninguém, apenas eu, e já sei quem sou (sou a voz na escuridão, pedindo sua ajuda), e não tenho perguntas pra mim mesmo e não preciso pedir nada pra mim mesmo, a não ser lembrar. Estou sozinho. Estou morrendo.
Na escuridão, conto minhas bênçãos, como manman me ensinou. Um: estou vivo. Dois: não existe dois. 11
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Não vejo nada e não ouço nada. Esta escuridão, ela é como algo sólido. É como se estivesse dentro de mim. Eu costumava gritar por ajuda, mas então, depois de um tem‑ po, não conseguia dizer se estava falando pela boca ou apenas na cabeça, e isso me assustou. De qualquer forma, gritar me dá sede. Então, não grito mais. Apenas toco e cheiro. É como sei o que está aqui comigo, na escuridão. Há uma luminária, mas não funciona. No entanto, posso dizer que é uma luminária, pois sinto o vidro suave da lâmpada, e lembro como icava em cima da mesinha ao lado da minha cama. Essa é outra coisa — existe uma cama aqui. Era minha cama antes de as paredes caírem. Posso sentir o colchão macio e o estrado quebrado. Nem todo o sangue é meu, mas um pouco é. Costumava tocar os corpos, mas não faço mais isso. Eles chei‑ ram também. * Não sei o que aconteceu. Estava na cama, pensando nos meus próprios zafè, então tudo sacudiu, eu caí e a escuridão começou. Ou talvez tudo o mais tenha caído. Estou no Hospital Canapé‑Vert, disso eu sei. É um hospital particular, então acho que os blancs devem estar pagando por isso. Não sei por que me trouxeram até aqui depois de terem matado Biggie e eniado uma bala no meu braço. Talvez tenham se senti‑ do mal por isso. Ontem — ou é possível que foi há mais tempo — Tintin veio me ver. Foi antes de o mundo desabar. Tintin deve ter usado aquele passe que Stéphanie conseguiu pra ele sair de Site Solèy e passar pelos postos de controle. Me pergunto como Stéphanie está se sentindo agora que Biggie está morto, porque ela é da ONU e não devia estar dormindo com um gângster. Deve ter amado ele de verdade. 12
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Tintin assinou no meu curativo. Disse pra ele que as pessoas assinam apenas em gesso, não em curativos, mas ele não sabia a diferença. Tintin não sabe muita coisa sobre anyen. Por exemplo: você está pensando que ele assinou o nome dele no meu curativo, mas não foi isso. Assinou Route 9, como escreve em todo lugar. Tintin não escreve apenas. Também gosta de gri‑ tar Route 9 quando estamos andando nas ruas — Route 9 até morrer, besteiras desse tipo. Eu olhava pras pessoas pelas quais a gente passava e dizia pra ele: — Não sei quem são essas pessoas. Podem ser de Boston. Po‑ dem acabar com você. — Esse é o ponto — ele dizia. — Não tenho medo deles. Sou Route 9. Eu achava Tintin um cretino, mas não falava isso pra ele. Os velhos, como minha manman, dizem que Route 9 e Boston costu‑ mavam signiicar alguma coisa lá pra trás. Tipo, Route 9 era de Aristide, e Boston os rebeldes. Agora não signiicam nada mais. Eu estava na Route 9 com Tintin, mas não escrevia em todo lugar, nem gritava isso. Se alguém me matasse, eu queria que fosse por um bom motivo. Não porque eu disse um nome errado. De qualquer forma, quando eu dava um giro com a galera da Route 9, não queria que os brutamontes da Boston me conheces‑ sem. Não queria que me conhecessem até eu estar com eles na ponta da minha arma, e eles teriam que devolver minha irmã. No im, foi o que tentei. Não funcionou do jeito que eu queria. No hospital, depois de Tintin ter escrito Route 9 no meu cura‑ tivo, ele balançou minha mão. Doeu, mas ele não percebeu. — Como você tá? — ele perguntou. — Tomei um tiro — eu disse. — Como você acha que eu tô? Tintin deu de ombros. Tomou um tiro uns anos atrás, e Biggie e Stéphanie conseguiram que ele viesse pra cá pra ser costurado. Para ele, óbvio, não foi grande coisa. Mas é Tintin. Ele é, tipo, tão cheio de buracos, tão fácil de se machucar, que impede o mundo 13
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de machucá‑lo machucando o mundo primeiro. Se encontrasse um cachorrinho, ele o estrangularia pra evitar gostar dele. Sabe que tomei tiro também, antes, quando eu era menor. Mas nem me lembro disso muito bem. — Todo mundo na vila te respeita, blud — Tintin disse em inglês. Tintin era desses gângsteres que falam o tempo todo em inglês, como se fossem da vila ou algo assim, a vila real, como Nova Iorque ou Baltimore. — Você icou cruel lá fora. Vre chimère. Não sabia o que dizer, então eu disse apenas: — Isso aí. É o que os gângsteres americanos dizem quando querem con‑ cordar com alguma coisa. Disse isso de um jeito que ainda soaria como um malandro, mesmo que eu não desse mais a mínima para esse negócio de gangue, por motivos que você vai icar sa‑ bendo por si mesmo. Mas parece que foi o.k., porque Tintin con‑ cordou com a cabeça, como se eu tivesse dito algo profundo. — Vai sair daqui, ter seu quarteirão, sem problem. Talvez ser chefe um dia de você mesmo — Tintin disse. — Você matou aqueles malditos da Boston bem matado. Naquele momento, eu dei de ombros. Não quero um quarteirão. Quero que todos os mortos não sejam mais mortos, mas é pedir mui‑ to, mesmo no Haiti, onde os mortos nunca estão realmente mortos.
Vre chimère. Um fantasma de verdade. Chimère é gângster no Site. Chimère porque nós desaparecemos do nada e voltamos depois do nada. Chimère porque morremos tão jo‑ vens que já podemos ser fantasmas. Você deve estar pensando, coisa estranha se chamar assim; coisa estranha ter um nome que signiica que vai morrer jovem. E, sim, é um nome que os ricos inventaram, as pessoas que vivem fora do Site, mas pegamos o nome e tomamos conta dele. O mesmo com criminoso. O mesmo com bandi. 14
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Quer me chamar de chimère? Tarde demais. Já dei esse nome pra mim mesmo. Não importa, agora acho que é, tipo, um bom nome. Ago‑ ra, eu penso, talvez eu seja um fantasma de verdade. Não um gângster, mas um morto. Em algum momento, hoje ou outro dia, ouvi pessoas gritando de longe, longe na escuridão. Era algo como: —…sobreviveu? — …vivo… aí? — …ferido? Eu gritei de volta. Consegue imaginar o que gritei. Eu gritei, sim. Eu gritei “me ajuda”. Eu gritei essas palavras em francês e inglês. Gritei em crioulo pra dizer a eles que tinha acontecido um acidente e eu estava machucado. Então, pensei que era estúpido gritar, por‑ que estou num hospital, então, claro, eu estava machucado, e deve ter sido anpil óbvio que aconteceu um acidente, com tudo caído. Mas ninguém respondeu, e as vozes foram embora. Não sei quando foi isso. Não sei quando é dia e quando é noite, ou mesmo se ainda existe noite e dia. Se consigo ouvir as pessoas gritando, mas elas não podem me ouvir, isso faz de mim um fantasma? Eu acho, talvez sim. Não posso me ver. Não posso provar que existo. Mas, então, eu penso: Não, não posso ser um fantasma. Um fantasma não tem sede, e, como estou deitado aqui no hospital desmoronado, é como se mi‑ nha boca fosse maior que eu, maior que a escuridão. Como se o mundo estivesse na minha boca, não o contrário. Está seca e dolorida e não consigo pensar em outra coisa. Meu pensamento, por causa da minha sede, é assim: …ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA. Estou morto? ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA. O que aconteceu? ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA. É o im do mundo? ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA… É assim que minha boca engole tudo o mais. Talvez minha boca vá me engolir, e então acabará. 15
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Decido rastejar, medir o espaço da minha prisão. Conheço os es‑ combros e a mão à minha esquerda. Não preciso ir lá de novo. Não quero tocar naquela pele pegajosa. À minha frente e à minha direita e atrás de mim é só escuridão, mas talvez eu deva parar de chamá‑la as‑ sim, porque não tem luz nenhuma; é mais negridão. Sigo para a frente com as mãos e os joelhos, grito quando meu pulso pende um pouco e a ferida se abre. O grito ecoa em todo o concreto ao meu redor. Eu me confundo e sinto como se não fosse mais uma pessoa, como se tivesse me transformado em algum animal. Ando talvez a distância de um corpo e então bato numa parede de blocos. Estico minhas mãos e levanto, e sinto que encosto no teto. Ape‑ nas o teto é mais baixo do que me lembro, o que não é bom. À minha direita, a mesma coisa — uma cama quebrada, então uma parede de escombros. E atrás de mim. Estou num espaço, talvez, de um corpo para cada direção. Estou num caixão. Seguro minha metade do colar, e é pontudo na minha mão onde o coração é partido em dois. Penso na minha irmã, que ti‑ nha a outra metade do coração e quem eu perdi quando eu era um garoto piti‑piti. Tento dizer a invocação, as palavras dos Marassa, porque elas podem trazer minha irmã de volta pra mim, mas estou com mui‑ ta sede e não me lembro delas.
Ouça. Ouça. Você é a voz na escuridão, então o mundo todo não pode ter sumido. Deve ter sobrado pessoas. Você é a voz na escuridão, então ouça, mwen apè parlay. Vou falar com você. Vou te dizer como cheguei aqui, e como tomei essa bala no braço. Vou te falar da minha irmã, que foi levada de mim por gângsteres, 16
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pelos chimères. Foi há 2531 dias, quando meu papa foi morto. Ao menos, acho que foi. Costumava saber quantos dias eram, porque eu marcava na minha cabeça. Agora, não sei se faz dois ou três dias que estou na escuridão, então não sei há quanto tempo meu pai foi picado em pedaços piti‑piti e minha irmã foi levada. Mas eu sei que dói todos os dias, dói no último como doeu no primeiro. Dói agora, até, e você pode pensar que tenho outras coisas pra me preocupar, que estou preso sem água nem comida, e sem saída. Talvez, talvez, se eu te contar minha história vai me entender melhor, e as coisas que iz. Talvez, não sei, talvez me perdoe. Talvez. Minha irmã, ela era minha gêmea. Era metade de mim. Você precisa entender: um gêmeo no Haiti, isso é maji séria; é algo po‑ deroso. Éramos Marassa, cara. Sabe, Marassa? São lwa, deuses, os deuses dos gêmeos — superfortes, super‑hardcore, mesmo que pareçam três criancinhas. São os deuses mais velhos da África. Mesmo agora, no vodu, os Marassa podem te curar, podem trazer boa sorte, podem fazer as pessoas se apaixonarem por você. Os Marassa podem ver seu futuro, dobrar seu dinheiro, dobrar sua vida. As pessoas de onde venho, elas acreditam que gêmeos hu‑ manos podem fazer o mesmo e podem falar um com o outro em silêncio também, porque dividem a mesma alma. Então, veja você. Eu e a minha irmã, nós éramos mágicos. Estávamos marcados para nascer. Éramos especiais. Dividíamos a mesma alma. As pessoas nos davam presentes, cara — desconhe‑ cidos, sabe? As pessoas paravam a gente na rua, queriam que a gente desse nossa bênção a elas. Dividíamos a mesma alma, então, quando ela sumiu, eu me tor‑ nei meia pessoa. Queria que você se lembrasse disso para não me julgar mais tarde. Lembre‑se: mesmo agora, enquanto estou deita‑ do neste hospital em ruínas, sou apenas metade de uma vida, metade de uma alma. Eu sei disso. É por isso que iz as coisas que iz. Mas você ainda não sabe delas, claro — as coisas que iz, as razões por que sou uma pessoa pela metade, o motivo por que eu 17
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estava neste hospital quando tudo despencou. Você não sabe a dor que eu causei. Então, vou te contar tudo. Primeiro, preciso explicar o sangue. Um pouco é meu. Meu curativo icou todo rasgado quando rastejei, procurando pela metade do meu colar, e me cortei no vidro quebrado, eu acho. Já tomei tiro, você sabe disso, e tem san‑ gue vindo de lá também. O jeito que o hospital caiu não foi muito conveniente pra minha cura. Mas não posso explicar todo o sangue. Acho que um pouco vem dos cadáveres. Essa era uma enfermaria pública antes de o teto e as paredes caírem. Tinha uma cortina ao redor da minha cama que as enfermeiras podiam puxar se eu quisesse ir ao ba‑ nheiro, mas isso era por privacidade. Aqueles corpos são das ou‑ tras pessoas que estavam aqui. Quando as paredes caíram, elas caíram em cima dessas pessoas. Posso falar, pois tem aquela mão perto de mim, e eu estiquei o braço e a toquei, e segui até o pulso e então o braço, sentindo para ver se era um homem ou uma mu‑ lher. Não sei por quê. E não poderia dizer de qualquer jeito, por‑ que depois do braço não havia ombro, apenas escombro. Pra mim, eu tive sorte. Estava no inalzinho da enfermaria, e as paredes não despencaram aqui. Mas talvez eu não seja tão sortudo, porque ainda estou soterrado. Talvez eu só vá morrer mais lentamente.
Após ter pensado em morrer por um longo tempo, eu paro e como o sangue do chão. Eu imagino que seja comida e ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA, ÁGUA ao mesmo tempo. Eu puxo com meus dedos e o lambo. É nojento, mas, como eu disse, um pouco é meu, e isso chega a amenizar a fome no meu estômago, e minha boca ica um pouco menor, talvez do tamanho de uma cidade. Só agora 18
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que eu comi o sangue não penso tanto na minha boca; penso mais em como estou faminto. No Site Solèy, quando você está com fome, diz que tem ácido de bateria no estômago, porque a queimação é muita. No Site Solèy, você pode comprar um bolo feito de lama e água, assado no sol com gordura. Bem agora, eu penso, no Site Solèy eles não sabem nada sobre a fome. Se me desse um bolo de lama, eu te beijaria. Mas, então, começo a pensar. Se estou com fome, signiica que não posso estar morto. Fantasma come sangue? Acho que não. Um zumbi, talvez. Espero que eu não seja um zumbi. Espero que eu não seja… Não. Enterro minhas unhas na palma da mão. Não acredito em zum‑ bis e a escuridão não pode me transformar. Zumbis me dão medo. E, como estou com medo, canto algumas palavras de uma música pra mim mesmo. São de MVP Kompa, do Wyclef Jean, que era a canção que estava tocando no carro de Biggie quando eu o conheci. Wyclef Jean era do Haiti, mas agora ele é um grande igurão nos Estados Unidos — grande rapper, produtor, empresário. Biggie estava sempre ouvindo as músicas do Wyclef. Era um herói pra mim — um menino do Haiti que conseguiu entrar no mundo da música. Acho que Biggie pensava que poderia acontecer com ele um dia, o que mostra como Biggie podia ser estúpido. De qualquer jeito, tem um pedaço da música no qual Wyclef Jean diz que seu amigo, Lil’Joe, voltou como zumbi. É meia‑noite, e Lil’Joe devia estar morto, mas não está. Ele volta e é um zumbi, e tem todos os seus amigos zumbis com ele. Wyclef canta esse re‑ frão, no qual ele diz pra todo mundo pegar os zumbis, enterrá‑los. E isso é bom na música, porque é possível pegar zumbis, é possível machucá‑los, e eles não podem machucar você. Gosto dessa ideia, com a mão morta perto de mim. Então, na escuridão, grito para quaisquer zumbis que vou pegá‑los. Grito até minha garganta doer ainda mais com a secura e a sede. E, sim, me sinto um pouco melhor. 19
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Sim. Não acredito em zumbis. Não acredito em toda aquela merda de vodu. Isso é, tipo, uma mentira, porque eu vi um houngan virar o Papa Legba bem diante dos meus olhos. Então, sim, talvez eu acredite em vodu. Mas não signiica que tenho que acreditar em zumbis, não é? Não. De qualquer jeito, eu acho, o que o vodu fez para me ajudar? Vodu é a antiga religião do Haiti. Os escravos a trouxeram da África. No vodu, você recebe os lwa, que são como deuses, mas às vezes podem ser ancestrais também. Os haitianos, eles acreditam que os lwa podem descer e possuir seu corpo durante as cerimô‑ nias, falar através deles. Chamamos a isso de montar — o lwa mon‑ ta em você e usa seu corpo. Entende? Não é como na religião kretyen, cristã. Falamos com nossos deuses; nossos deuses falam por intermédio de nós. Manman falava com nossos deuses, eu devo dizer. Pra mim, eu não tive muito a ver com eles, a não ser quando eu e minha irmã costumávamos ingir nas cerimônias que manman organizava. Não pareciam muito interessados em mim também. Mas manman amava tudo e acreditava em tudo, mesmo sabendo que eu e minha irmã, a gente era fraude, era mentira. Tinha um houngan que ela procurava. É um tipo de padre que sabe todas as cantigas pra trazer os lwa para a Terra, e as comidas que eles gostam de comer, e os veves — os símbolos pintados no chão para chamá‑los pra você. Tipo, se quiser ser possuído pelo Baron Samedi, o lwa da morte, precisa dar uísque e charutos pra ele, coisas assim. Agora mesmo eu icaria feliz se o Baron Samedi aparecesse pra mim e me levasse pra longe deste lugar, pra terra embaixo do mar pra onde os mortos vão. Ao menos eu não teria mais sede nem fome. Mas o Baron Samedi não está vindo. Manman costumava ir até o houngan, mas nada daquilo evitou que a gente perdesse a casa e acabasse em Site Solèy. Nada disso impediu que meu papa fosse picadinho com facões, que minha irmã, Marguerite, fosse levada. 20
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Biggie disse que seu houngan pegou um osso de Dread Wilmè depois que ele foi baleado pelos soldados da ONU. O houngan moeu aquele osso e salpicou em Biggie, e isso faria com que as balas não pudessem tocá‑lo, pois Dread morreu pelo Haiti, como Toussaint. Então, Biggie era à prova de balas, imortal, porque tinha nele o pó do osso de Dread. Era o que ele pensava, de qualquer forma. Eu mesmo vi a poeira do osso numa jarra quando Biggie me levou pra ver o houngan. Claro, vi Biggie sobreviver a merdas que nenhuma pessoa poderia. Mas também vi Biggie tomar um pente inteiro de metralhadora na cara e aquelas balas, no im, picotaram‑no até vi‑ rar comida de cachorro, com pó de osso ou sem pó de osso. Não vejo por que agradecer ao vodu. De qualquer forma, Dread Wilmè não morreu pelo Haiti. Ele morreu porque atiraram nele. Não acho que ele queria morrer mesmo. Eu também não quero morrer.
Nasci no sangue e na escuridão. Foi assim que manman falou quan‑ do me juntei à Route 9, quando comecei a andar com Biggie. — Ele nasceu no sangue e na escuridão, e assim que ele vai morrer — o houngan disse a ela. Talvez estivesse certa. Talvez eu morra no sangue e na escuri‑ dão. Talvez ela icasse feliz se me visse aqui. Provavelmente não. No ano em que nasci, manman tinha acabado de se mudar para Porto Príncipe. Disseram pra ela que havia trabalho lá, eletricida‑ de, água encanada. Bem, ela conseguiu eletricidade de uma linha que alguém puxou do cabeamento público, mas a única água en‑ canada era o esgoto no meio da estrada, e não havia trabalho, não pra qualquer um. Fui trazido ao mundo como um símbolo; fui marcado desde o início. Algumas pessoas, mesmo antes de o mun‑ do despencar, acreditavam que eu estava destinado a ser algo es‑ pecial. Começou bem no momento em que nasci. 21
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Era 1995. Então, tenho quinze agora. Entende? Sei matemáti‑ ca e também sei ler. Meu papa me ensinou os dois antes de ser as‑ sassinado. Depois disso, Dread Wilmè me botou na escola, deu uma casa pra gente viver, também, porque manman era dos Lavalas até o osso. Às vezes eu acho que se não fosse por Dread Wilmè, nada dessa merda teria acontecido. Mas, então, eu digo pra mim mesmo: “Não. Dread Wilmè não estava lá quando mataram seu papa e levaram sua irmã embora. Ele tentou ajudar”. De qualquer forma, manman estava num comício do Lavalas. Estava com um barrigão grande e naquela barriga tinha nós. Di‑ zia que mal conseguia se levantar, estava muito grande. Estava assustada com o que poderia sair dali. Mas foi para o comício de qualquer jeito, pois pensou que o Lavalas mudaria tudo no Haiti. Era o novo partido de Aristide, daqueles que iriam mantê‑lo no poder. Manman amava Aristide — era um comunista e signiicava que acreditava que todos deviam ter dinheiro ègal, casas ègal e em‑ prego. Naquela época, Aristide estava no poder fazia mais ou me‑ nos cinco anos, e ninguém no Site tinha emprego, mas manman disse que era porque estava difícil pro Aristide. Os norte‑americanos e os franceses tinham feito tamanha bagunça no país que levaria um bom tempo para ele arrumar tudo. Pra mim, eu acho que tal‑ vez Aristide fosse apenas um mentiroso, mas eu não disse isso para manman — ela teria icado anpil chateada se me ouvisse dizendo isso, mesmo depois, quando tudo parecia uma merda, icou claro pra todo mundo que Aristide não era mesmo um cara legal. Papa estava em outro lugar, trabalhando, eu acho. Por isso, manman foi ao comício sozinha, mesmo grávida de oito meses e com barrigão, como uma burra inchada, faminta. Foi ela quem disse, não eu. Aristide estava em pé, na frente de uma cadeira, no fundo da‑ quela pequena sala de reunião. Tinha sido pregador, então estava acostumado a gritar pras pessoas. Ele dizia: — Desde que foi descoberta por Cristóvão Colombo esta na‑ ção tem sido escravizada. Colombo era um feitor de escravos. Os 22
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franceses, e depois os norte‑americanos, são seus sucessores, e mais que iguais a ele em crueldade e injustiça. Mas não suporta‑ mos seu jugo com alegria! Por 500 anos eles nos roubaram, mas por 500 anos nós os desaiamos! Ele continuou: — Os norte‑americanos queriam que o povo do Haiti votasse num novo governo. Gostariam de se livrar de mim, pois me tornei um inconveniente para eles. Queriam controlar nossas empresas e nos tornar escravos novamente para seu próprio lucro. As pessoas vibravam. Minha manman vibrava. Trabalhou numa empresa norte‑americana e eles pagavam a ela piti‑piti dinheiro, e então a mandaram embora quando perdeu um dia porque estava doente. Sei no que você está pensando. Está pensando, como eu sei disso? Como minha manman lembrava das palavras de Aristi‑ de? E eu respondo — ela não lembrava. Mas Aristide escreveu essas palavras num livro, e eu ainda tenho esse livro. Manman jogou‑o fora, e eu o tirei do lixo porque pensava que ele poderia ter algum poder. Aristide autografou para minha manman, sabe. Colocou seu nome nele, e isso é um vodu sério. Eu costumava olhar para esse autógrafo e pensar como era triste que um homem com ideias tão boas tenha se transformado naquele monstro. Biggie era assim também, eu acho. E eu... Eu tinha a grande ideia de trazer minha irmã de volta, mas tudo que iz no im foi matar um monte de gente, tomar um tiro no braço. Mas eu estava falando para você do dia em que nasci — des‑ culpe, me distraio o tempo todo. É maluco — não tem nada aqui pra me distrair. Então, na sua cadeira nos fundos da igreja, Aristide disse: — Coloquem o Lavalas no poder e vamos lançar os norte‑ ‑americanos ao mar. Vamos mandar para a França e para os Estados Unidos a conta de tudo o que eles roubaram de nós. Tomaram nossa liberdade, nossa força de trabalho, os frutos da nossa terra. Precisam pagar essa conta! Duzentos anos atrás, nossos grãos de café e nossa 23
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cana‑de‑açúcar viraram ouro nos cofres de mercadores de Paris, en‑ quanto os capatazes franceses aqui no Haiti transformavam nosso povo em animais, agrilhoados em correntes, açoitados por chicotes. O povo gritava: — Sim! É verdade! Nos transformaram em animais. Aristide gargalhava. Ele sempre soube como fazer com que as pessoas gritassem e cantassem, mas, quando estava no im, elas gritaram pra ele ir embora, pra sair do país sozinho, pra impedir que seus chimères matassem seus inimigos. — E o que aconteceu quando conseguimos nossa independência? — Fale! Fale! — Quando nos livramos das correntes, quando paramos seus chicotes e nos erguemos sobre nossas próprias pernas, não mais animais de carga, os franceses mandaram uma fatura para nós, exigindo que pagássemos por nossa liberdade com impostos e ár‑ vores. Fomos forçados a derrubar nossas lorestas para abastecer a França com madeira para construção, e as chuvas que seguiram acabaram com nossa terra produtiva. Tudo o que foi deixado está sendo tirado de nós até agora. Aristide tocou na mesa barata de madeira que servia como altar. — As forças coloniais desfrutaram de um banquete a nossas expen‑ sas — ele disse. — Sentavam à mesa, que era posta com toalha de ín‑ digo exportada do Haiti, montada com tigelas de açúcar tirado do Haiti, e xícaras de café roubadas do Haiti. E onde estão os haitianos? — Onde estão? Onde estão? — gritavam as pessoas na igreja. — Os haitianos estão embaixo da mesa, comendo as migalhas, como ratos! As regras da ONU, do FMI, são criadas para manter os ratos embaixo da mesa, impedir que eles se juntem ao banque‑ te. Mas não podemos ser feitos de animais novamente. Precisa‑ mos virar a mesa! Precisamos nos rebelar! Nesse momento, Aristide pôs as palmas das mãos embaixo da mesa de madeira e a tombou. — Precisamos virar a mesa! — ele gritou, enquanto ela ba‑ tia no chão. 24