Ninguém me contou eu vi, de Sebastião Nery

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Sebasti達o Nery


Copyright © 2013 by Geração Editorial Copyright da apresentação © 2014 by Sebastião Nery 1ª edição — Abril de 2014 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Produtora Editorial e Gráfica Priscila Hernandez Assistente Editorial Carla Anaya Del Matto Auxiliar de Produção Editorial Isabella Vieira Capa e Projeto Gráfico Alan Maia Diagramação Kauan Sales Preparação Valquíria Della Pozza Revisão Rinaldo Milesi Marcia Benjamim DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nery, Sebastião Ninguém me contou eu vi : de Getúlio a Dilma / Sebastião Nery. -- São Paulo : Geração Editorial, 2014. ISBN 978-85-8130-210-2 1. Brasil – Política e governo 2. Imprensa – Brasil 3. Jornalismo – Brasil 4. Repórteres e reportagens – Brasil I. Título. 13-12018

CDD: 079.81 Índices para catálogo sistemático 1. Brasil : História e imprensa : Jornais e jornalismo 079.81 2. Brasil : Imprensa e história : Jornais e jornalismo 079.81 GERAÇÃO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 — Lapa CEP: 05075-010 — São Paulo — SP Telefax: (+ 55 11) 3256-4444 Email: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil


Para Cláudio Leal, que abriu a gaveta desses alfarrábios

Para José Paiva Netto jornalista, escritor há meio século espalhando o bem desde nossa saudosa Rádio Mundial

Para Beatriz, sempre



Sumário

Livros do autor................................................................... 10 Crítica ................................................................................ 12 Antologia............................................................................ 14 PREFÁCIO 1 – Pelópidas Silveira .......................................... 17 PREFÁCIO 2 – Franklin de Oliveira...................................... 19 PREFÁCIO 3 – Joel Silveira ...................................................25 1953 e 1954 – Vargas e o PCB ......................................... 29 1954 – Vingança de Getúlio ............................................. 69 1955 – Juscelino, o sem medo............................................ 77 1959 – Jânio como ele era ................................................. 89 1961 – Jânio e os militares................................................. 91 1964 – Augusto de Souza: ajudante de caminhão ........... 95 1964 – Serviços secretos .................................................. 109 Ni ngu ém m e con tou eu v i

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1968 – Chão de sangue ................................................... 159 1969 – Maria do lixo ....................................................... 163 1969 – Um anjo chamado Filinto ................................... 167 1970 – Vieira de Melo: Democrata ................................. 169 1970 – A muriçoca de Jânio .............................................171 1971 – Rubens Paiva: um crime militar ..........................175 1971 – Nestor Duarte: plantão da resistência ................. 179 1972 – Politika – Denuncia tortura .................................. 183 1972 – O exército e a Tribuna da Imprensa ........................ 187 1972 – Cosme de Farias: Senhor do Bonim dos pobres..... 191 1972 – Oscar Pedroso Horta: contraponto de um líder ......201 1976 – Jango em Paris ..................................................... 215 1976 – Jânio no Rio ......................................................... 219 1977 – Hélio Fernandes: Guerrilheiro da notícia ........... 223 1977 – Delim Neto: Do poder, pelo poder, para o poder .... 277 1977 – Magalhães Pinto: Doutor do poder.....................295 1977 – Petrônio: o proissional ........................................ 313 1978 – Ruy de Castro: Coronel arrependido.................. 329 1978 – Dimas: o torturado .............................................. 345 1978 – Ulysses Guimarães: Presidente da oposição .......349 1978 – Prêmio Esso da Fransinopse................................ 353 1978 – Victorino: guerreiro do Maranhão ..................... 361


1978 – Vi a morte: na tarde azul ....................................365 1979 – O delírio de Gallotti ............................................ 371 1979 – Estrelas caídas ...................................................... 379 1979 – Arraes: ninguém cassa o amanhã .......................385 1979 – Theodomiro: o menino de olhos fortes ............... 391 1979 – Um menino chamado Cortázar.......................... 397 1979 – Brizola: na porteira da história ...........................403 1979 – Doutel e o suicídio de Vargas ...............................411 1979 – Lula: eu vi o PT nascer ....................................... 435 1980 – José Américo: ermitão de Tambaú ..................... 437 1982 – Histórias de José Aparecido ................................443 1982 – Caderno de viagem ............................................. 459 1985 – A vidente de Tancredo ........................................467 1989 – Itamar: o raio....................................................... 473 1989 – Novaes: o velho e o rio ........................................ 479 1992 – Balbino e a nova Bahia........................................483 2003 – Lula: eu vi o mensalão nascer .............................489 2010 – Quércia: o menino de pedregulho ...................... 493 2012 – O livro de Dilma ................................................. 501 2013 – A verdade de Pôncio Pilatos ................................ 507 Poema agrário para Ana ..................................................511

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Livros do autor

Sepulcro caiado (Salvador, 1962, Editora Jornal da Semana)

Folclore político 1 (Editora Politika, Rio, 1973)

Folclore político 2 (Editora Record, Rio, 1975)

Folclore político 3 (Editora Record, Rio, 1978)

Folclore político 4 (Editora Record, Rio, 1982)

Socialismo com liberdade (Editora Paz e Terra, Rio, 1974)

As 16 derrotas que abalaram o Brasil (Editora Francisco Alves, Rio, 1975)

Portugal, um salto no escuro (Editora Francisco Alves, Rio, 1975)

Pais e padrastos da pátria (Editora Guararapes, Recife, 1980)


Sebastião Nery na Sibéria e outros mundos (Editora Codecri, Rio, 1982)

O cavalo do carcereiro e o poder militar (Editora da Câmara Federal, Brasília, 1984)

Crime e castigo da dívida externa (Editora Dom Quixote, Brasília, 1985)

A história da vitória — Por que Collor ganhou (Editora Dom Quixote, Brasília, 1990)

A eleição da reeleição — Histórias, estado por estado (Geração Editorial, São Paulo, 1998)

Grandes pecados da imprensa (Geração Editorial, São Paulo, 2000)

1950 histórias do folclore político (Geração Editorial, São Paulo, 2002)

A nuvem — O que icou do que passou — 50 anos de história do Brasil (Geração Editorial, São Paulo, 2009)


Crítica “Se o jornalismo é a História do presente e a História o jornalismo do passado, Sebastião Nery reúne qualidades de historiador e jor‑ nalista. Portugal, um salto no escuro é um livro empolgante, fascinante. E são magníicas as crônicas sobre a Europa de hoje.” Tristão de Athayde

• “Sebastião Nery é brilhante colunista político e talentoso escritor. Completo proissional de imprensa, magníico repórter, ágil, bem informado.” Prudente de Moraes Neto

• “Sebastião Nery é admirável na improvisação, na agilidade, nos lagrantes. Associa o talento descritivo à visão política e social. Uma grande voz de jornalista, ou melhor, de escritor.” José Américo de Almeida

• “Sebastião Nery escreve com a marca do grande escritor que é. É hoje um dos escritores mais fascinantes do Brasil. Um mestre de encanta‑ mentos, com verdadeiras obras‑primas de sagacidade e clareza.” José Cândido de Carvalho

• “Sebastião Nery está na linha dos grandes jornalistas brasileiros. Não lhe falta, também, à prosa, o gosto literário, pois que há, nele, além do jornalista, o escritor que, pela cultura, dá profundidade aos fatos, interpreta‑os, antecipando as realidades do amanhã. É da nova geração dos homens da imprensa o que melhor preserva e enriquece a herança do jornalismo.” Austregésilo de Athayde


“Sebastião Nery é, antes de tudo, um escritor. Um homem que sabe dizer, precisamente porque sabe pensar. Há momentos, e não são raros, em que alcança níveis de pura beleza literária.” Franklin de Oliveira

• “Sebastião Nery é cronista por excelência, talvez o maior deles, de nossa petite histoire, a história dos tempos atuais, pequenina e atroz, casuística e ordinária, feita de emergências circunstanciais.” Joel Silveira

• “Sua coluna é genial. Lúcida, limpa, magniicamente bem escrita, desassombrada, com aquele tom que só os grandes jornalistas real‑ mente conseguem. E, infelizmente, grandes jornalistas é precisamen‑ te o que está faltando no jornalismo brasileiro. São raros os que sabem escrever, mais raros ainda os que têm alguma coisa a dizer, e pouquíssimos os que têm coragem de dizer o que sabem.” Hélio Fernandes

• “A Nuvem, o que icou do que passou – 50 anos de história do Brasil é uma obra notável sob vários aspectos, permeados todos eles por supe‑ rior qualidade literária que faz de sua leitura insuspeitada fonte de prazer. “Trata‑se, de fato, do magnum opus de um autor que chega ao apogeu do seu processo criativo já consagrado pela produção de dezesseis best‑sellers que continuam a encantar o país em sucessivas reedições, ao longo dos últimos quarenta e sete anos, tendo a polí‑ tica e a vida das pessoas e do povo brasileiro como temas centrais. “Não sei de outro brasileiro que tenha vivido de modo tão in‑ tenso, imprevisível e emocionante quanto a vida que Nery nos conta nesta obra ciclópica que instrui e diverte.” Joaci Góes


Antologia “Tomei por anos a minha pena e a palavra como armas de com‑ bate. Hoje vejo como sou impotente. Mas pouco importa. Faço e farei livros. É a maneira como posso resistir.” Jean‑Paul Sartre

• “Alguns homens veem as coisas como são e dizem: por quê? Eu sonho coisas que nunca foram e digo: por que não?” Bernard Shaw

• “Cada época tem as formas de ilosoia que é capaz de produ‑ zir. A ilosoia, que reletia sobre a eternidade, voltou‑se, na nossa época, para aquilo que somos, para a direção que seguimos. O jornalismo é a ilosoia dos dias atuais.” Michael Foucault

• “A imprensa não é para servir aos governos mas aos governados. Quando a imprensa não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala‑se o povo.” Blake

• “Nada reneguei do país em que nasci e no entanto nada quis ignorar das servidões do meu tempo.” Albert Camus


“Ver bem não é ver tudo. É ver o que os outros não veem.” José Américo de Almeida

• “Você falou de minha atividade de ensaísta, crítico. E agora fala do jornalista. Para mim, minha atividade literária engloba‑se na atividade do jornalista. O que sou, no fundo, é só isso. Eu me con‑ sidero, globalmente, em primeira linha, um jornalista.” Otto Maria Carpeaux

• “As coisas estão se reunindo por detrás da realidade.” Joaquim Cardoso

• “Eu nunca disse a um ilho meu: — Não vá! Ir nunca fez mal a ninguém.” Elvira Nery

• “Não basta um século para fazer a pétala que um só minuto faz ou não mas a vida muda a vida muda o rosto em multidão.” Ferreira Gullar



Prefácio 1 PE L Ó PIDAS S ILVE IRA

Sebastião Nery pede a este velho companheiro do Partido

Socialista Brasileiro palavras, à guisa de prefácio, para o novo livro que ora entrega ao público (Pais e padrastos da pátria — Editora Guararapes — Recife). Trata‑se de uma coletânea de artigos e depoimentos di‑ vulgados na imprensa, ao longo dos últimos anos, mas que conservam uma oportunidade fora de dúvida, tanto pela im‑ portância das iguras políticas que neles aparecem como pe‑ los próprios acontecimentos e suas conotações. Destaco, entre as crônicas‑depoimentos, como as melho‑ res, não só pela leveza do estilo, vibrante e corrente, como pelo jogo agradável dos diálogos e pela idelidade histórica, as intituladas “Eu vi a morte na tarde azul”, “Ulisses Guimarães, o presidente da oposição”, “Oscar Pedroso Horta, o contraponto

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de um líder”, “Cosme de Farias, Senhor do Bonim dos pobres”, “Arraes, ninguém cassa o amanhã”. Quanta força literária na expressão de Nery ao referir‑se ao insulto vascular que vitimou Pedroso Horta: “um pingo de fogo andou ameaçando queimar esse cérebro — fornalha de pensar e viver”! Como pontos mais altos as expressivas páginas em que aparece, inteiro, o escritor e jornalista, sério e preocupado com os problemas sociais da nossa gente: “Maria do lixo”, “Chão de sangue”, o “Poema agrário para 1980”, dedicado à memória de Rubem Paiva, e o registro candente de que as torturas da fase mais repressiva da ditadura eram dos alunos de “Um anjo chamado Filinto”. Louvo a obra de Sebastião Nery, seu estilo, sua bravura cívica e a grande contribuição que nos dá sobre aconteci‑ mentos e pessoas do nosso mundo político. Recife, maio de 1980


Prefácio 2 F RANKL IN DE O L IVE IRA

Um movimento insurrecional, que começou com uma can‑

ção popular — Grândola, Vila Morena —, e em que os cravos vermelhos substituíram os fuzis, fez desabar uma ditadura fascista de quase meio século. Um episódio lírico, se conside‑ rarmos que a queda de Hitler e de Mussolini exigiu uma guerra mundial, e a derrubada da camarilha direitista no Vietnã do Sul se fez em nível de inaudita tragédia humana. É a pré‑história e a história da insurreição portuguesa que nos dá Sebastião Nery. Neste livro (Portugal, um salto no escuro), de reportagem, é preciso, antes de tudo, colocar em relevo as qualidades literá‑ rias do texto. Num ensaio, publicado em Die Linkskurve, na Alemanha, em 1932, Georg Lukács conceituava a reportagem como método criativo, por não se contentar em reproduzir simplesmente os fatos — ela seria tanto mais verdadeira na Ni ngu ém m e con tou eu v i

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medida em que buscasse descobrir as causas dos aconteci‑ mentos e projetar suas consequências. E é assim que a con‑ cebe Sebastião Nery. Este jornalista é, antes de tudo, um escritor — um homem que sabe dizer, precisamente porque sabe pensar. São as suas qualidades inatas de escritor que lhe permitem ver o que os simples colecionadores de fato não intuem ou percebem. A essas virtudes literárias — clareza, ironia, agilidade de dicção, senso polêmico, riqueza argumentativa, Sebastião Nery alia ainda uma concepção da vida de timbre humanístico: para ele, o homem é a raiz de todas as coisas. Com essa visão ar‑ mada, jornalista e escritor puderam traçar, nestas páginas, o largo painel da insurreição portuguesa que se situa como um dos episódios capitais da história contemporânea não só da Europa como de todo o mundo ocidental. No desempenho de sua missão, de escrutinador do movi‑ mento que pôs im ao obscurantismo salazarista, Sebastião Nery tomou outro cuidado: não só o de ver com os olhos brasileiros os acontecimentos de Lisboa, mas, também, de transmiti‑los, na sua dinâmica, aos leitores brasileiros, de uma forma que se poderia dizer didática. Ministra, porém, a compreensão exata dos fatos sem assumir — como manda a sabedoria dos bons mestres — posição professoral. Há momentos, e não são raros, em que sua exposição alcan‑ ça níveis de pura beleza literária, como não é de estranhar em antigo leitor desta grande reportagem estética que se chama “A Holanda”, de Ramalho Ortigão. Só que em Sebastião Nery a presença do político é bem mais viva — viva e participante. As páginas em que recorda a pregação socialista de Antero de Quental e aquelas em que evoca a luta liberal de Alexandre


Herculano antes do exílio de Vale de Lobos — esse Alexandre Herculano que, já em 1842, mostrava discreta simpatia pelo socialismo — têm o mérito de mostrar ao leitor distra‑ ído que a tônica socialista da rebelião portuguesa enraíza‑ ‑se numa tradição que não começou com a insurreição antisalazarista. Fundou essa tradição a grande geração de 1852 — preci‑ samente aquela que antecedeu a de Antero de Quental e de Eça de Queiroz. E é de salientar que, sob o aspecto político, ela foi maior que a geração de Antero e de José Fontana. Basta lembrar que Amorim Viana, Oliveira Pinto e José Frederico Laranjo — este, professor da Universidade de Coimbra —, quinze anos antes de Antero e Eça se extraviarem no socia‑ lismo utópico de corte proudhoniano, já haviam realizado a crítica das contradições e debilidades de Proudhon apoiados no Marx de A miséria da ilosoia. O pensamento político da geração de Antero representou, na verdade, um recuo em face das posições assumidas pela geração de 1852. Outro capítulo importante deste livro, no sentido de apontar para as raízes mais profundas da insurreição de 25 de abril de 1974, é o que Sebastião Nery dedica à bela re‑ sistência dos escritores portugueses ao fascismo salazarista. De Ferreira de Castro a Aquilino Ribeiro, de Antônio Sérgio a Jaime Cortezão, de Hernani Cidade a Oscar Lopes, de Antônio José Saraiva a Alexandre Pinheiro Torres, a inteli‑ gência portuguesa se opôs, com bravura, à ditadura, não raro pagando sua coragem nas prisões ou vendo seus livros retirados do mercado. Mas não só os ensaístas mencionados por Sebastião Nery. Também um ilósofo da categoria internacional de Ni ngu ém m e con tou eu v i

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V. de Magalhães‑Vilhena. Críticos do porte de Augusto Dias da Costa, Victor de Sá e Joel Serrão. Romancistas como Alves Redol (A barca dos sete lemes); Orlando da Costa (Podem chamar‑me Eurídice); Augusto Abelaira (A cidade das lores); Yvette Centeno (Quem, se eu gritar); Manuela Gouveia Antunes (Alta tensão). Todo o romance neorrealista de Soares Pereira Gomes, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Afonso Ribeiro, Manuel do Nascimento, José Ferreira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, José Pereira Gomes, José Marmelo e Silva, José Rodrigues Miguéis e Castro Soromenho constitui um dos mais belos exemplos da chamada literatura de acusação em língua portuguesa. Também em Moçambique, em Angola e, sobretudo, em Cabo Verde, essa literatura de denúncia da miséria social e humana gerada pelo salazarismo ostenta magníicos testemunhos. O retrato de corpo inteiro da insurreição portuguesa está no livro de Sebastião Nery. Teme ele, apenas, que os rebeldes de 25 de abril de 1974, ou um segmento da insurreição, atro‑ pelem a História. Mas insurreição não é Revolução, e esta não se pode eniar em molduras reformistas, como não se pode meter o Atlântico numa piscina. Nas fases iniciais de um movimento libertador, sempre existem possibilidades de ação contrarrevolucionária ou restauradora. O perigo não está, portanto, na conversão da insurreição em Revolução, mas nas potencialidades articulatórias das forças revolucio‑ nárias, as quais nunca se deve desestimar. E esse risco — esse “salto no escuro” — existirá sempre, enquanto as arcaicas estruturas econômicas portuguesas não forem removidas, e um arcabouço social novo não for conferido a Portugal. E só depois disso se poderá falar em Revolução.


Mas este não é um livro dogmático. Seu grande mérito consiste lucidamente em criar ampla margem à relexão dos leitores. E outro não era o objetivo de seu autor, alcan‑ çando com o brilho que singulariza sua presença na im‑ prensa brasileira. Rio, 1976

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Prefácio 3 J O E L S ILVE IRA

Uma gripe morrinhenta não permitiu que eu estivesse

presente ao jantar com que os amigos de Sebastião Nery — não todos, é claro, pois não haveria churrascaria que cou‑ besse — festejaram o seu ingresso na casa dos cinquenta. Mas é como se lá eu estivesse estado, e desde já endosso tudo o que foi dito de Nery, pessoa que estimo e admiro. E até invejo: inveja de sua incomum versatilidade, da sua ciência (seria melhor dizer de sua mágica) em conseguir multiplicar indeinidamente o tempo, fazendo‑o conforme suas necessidades e conveniências. Pergunto‑me, vez por outra, quando o vejo simultanea‑ mente a bordo de um avião, dando entrevistas na TV, auto‑ grafando um livro (Sebastião Nery na Sibéria, El Salvador, Nicarágua e outros mundos — Editora Codecri) em Manaus ou fazendo uma conferência em Curitiba, como é possível a Ni ngu ém m e con tou eu v i

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uma pessoa um tal poder de mobilidade, um tal domínio sobre as horas. A que horas dorme o Nery?, me indago. Como jornalista, Sebastião Nery é sem dúvida o cronista por excelência — talvez o maior deles — da nossa petite histoire, a história dos tempos atuais, ao mesmo tempo pequenina e atroz, casuística e ordinária, uma história de h minúsculo, feita de emergências e circunstâncias. Não resta dúvida que no fu‑ turo será principalmente nas crônicas de Nery, no seu relatório diário dos fatos que se passam nos bastidores da política atual, que os historiadores vão encontrar o material melhor para a reconstituição exata dos tempos que estamos vivendo. Em Nery, nada é formal — ele jamais formaria no rol daqueles que veem a grandeza onde só existe mediocridade e drama onde só existe comédia. Seu estilo solto, célere, de incrível elasticidade, jamais poderia ajustar‑se aos padrões dos que, com raríssimas exceções (um João Ribeiro, um Sérgio Buarque de Holanda, um Faoro, um Carone, um José Honório Rodrigues), vêm escrevendo isso a que chamam História do Brasil — uma história condicionada, preconceituosa, quase sempre dirigida. Uma história onde tanto pigmeu vira gigante e tanto gigante é ignorado, ou simplesmente o maior deles, o povo, que nessa história só aparece como pano de fundo, nunca como elemento fundamental do processo histórico. O fato é que temos várias e alentadas Histórias do Brasil, mas ainda não temos uma História do Povo Brasileiro, a não ser amostras dela montadas com a ajuda das escavações que esporádicos “brazilianistas” fazem nos arquivos e biblio‑ tecas de Washington. Como político que iniciou sua carreira ainda jovem — já era deputado estadual antes dos trinta anos —, Sebastião


Nery passou por todas as vicissitudes e sobressaltos; e de 64 para cá sofreu o diabo: preso não sei quantas vezes, vivendo meses e meses na clandestinidade ou meia‑clandestinidade, hóspede compulsório de embaixadas, muitas vezes tendo que escrever com um intolerante censor a vigiá‑lo a cada adjetivo ou substantivo — como sofreu o nosso Nery! Nada disso, porém, lhe abateu o ânimo; nem sequer lhe arrefeceu o ritmo acelerado, difícil, senão impossível de se acompanhar, que imprime a tudo o que faz, diz e escreve. E, o que é mais importante, continua iel às convicções e ideias que sempre foram as suas — coisa rara nesses dias onde o trânsfuga espavorido é o símbolo melhor de uma política de primeiros socorros, sem grandeza nem ideias. Agora ele, Nery, quer ser deputado federal pelo Rio, cidade que ele ama tanto e que tanto lhe deve. E para isso pede o voto de todos nós, cariocas natos ou por adoção. O meu ele já tem. Mesmo com essa coisa execrável que se chama vinculação. Rio, 1982

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