Paralelos

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O ser humano vivencia a si mesmo como algo separado do resto do universo — uma ilusão de sua consciência. Uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos e conceitos. Nossa principal tarefa é nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza. Ninguém conseguirá alcançar completamente esse objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si parte de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior. Albert Einstein

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PRIMEIRA PARTE

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1 Quando morri, acordei com a pior ressaca que já tinha sentido — dos meus dezessete anos de vida. Morrer é fácil. É a única coisa que qualquer um é capaz de fazer. Mas eu posso garantir: acordar depois é bem complicado. Duvido que você conheça uma sensação pior. Eu não conhecia. Pra ser sincero, eu não tinha muita experiência com ressacas. Aos treze resolvi encher a cara pra ver como era. Fui com dois primos beber umas cervejas numa pizzaria no alto da avenida. Depois, fomos descendo e bebendo; umas caipirinhas num barzinho, outra latinha de cerveja num trailer de sanduíches e, enfim, bebemos o dinheiro do ônibus em doses assassinas de cachaça no centro — sempre brindando com fervor às nossas lindas namoradas. Erguendo os copinhos dos balcões de fórmica azul, descobri como a cachaça aumenta não só o teor de álcool, mas, principalmente, o teor de eu te amo no sangue. Naquele momento eu daria a vida pela namorada cujo nome nem sei mais, estava totalmente apaixonado pelos meus primos, e mesmo os velhos bêbados eram pessoas especiais e brilhavam diante dos azulejos encardidos das paredes. A cachaça era uma deusa que abria o mundo bizarro do amor feroz, fugaz e incondicional. Voltamos andando, praticamente sem sentir os pés, as pernas ou os braços. Ríamos de tudo e qualquer coisa, deslumbrados por haver encontrado o que procurávamos — uma nova dimensão, uma nova realidade. Atravessei o viaduto sentindo que podia voar, corri entre os carros, certo de que nada podia me atingir; andei pelo centro da cidade sem medo das suas sombras e dos seus cantos escuros, e chegamos em segurança à casa do meu primo. Levamos uma bronca do meu tio, vomitei no tapete, deitei, dormi e acordei no

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domingo de ressaca. Mas ela veio mansa. Posso dizer que era uma ressaca limpa. Talvez porque eu tivesse só treze anos, um corpo inocente, cabelos compridos e uma cabeça maravilhosamente vazia. Bom, não sei bem por que estou relembrando essas coisas de bebum adolescente. Claro, tem a referência à ressaca, mas acho que o que me fez lembrar esse primeiro porre, quando eu tento aqui começar a contar a história do dia em que morri, quatro anos depois, foi a descoberta de uma realidade paralela, que está tão à mão quanto um copo de pinga. Até então, pra mim havia o mundo real e o mundo dos sonhos. Mas aquela bebedeira me fez perceber que a realidade tinha muito mais camadas, e a cachaça abrira apenas uma delas, a mais vulgar talvez, mas ainda assim poderosa, quando se entra nela com tudo aos treze anos. Pensando aqui, agora, acho que o motivo pelo qual desviei da história foi o dia seguinte ao porre. Saí ainda muito cedo, porque minha mãe tinha me deixado dormir fora, “desde que você chegue em casa de manhã”. Não sei, não sou mãe, não consigo entender esse tipo de lógica, mas o fato é que levantei num domingo frio, tive que acordar meu tio pra pedir dinheiro e fui pegar dois ônibus pra chegar em casa. — Seu irmão se cortou feio. A informação da empregada me fez entender que eu não precisava me preocupar com os vestígios da noitada. Havia outros problemas. — Machucou muito? — Foi feio. Subi de três em três os degraus que levavam ao andar dos quartos, temendo que meu irmão gêmeo estivesse entre a vida e a morte. — Cadê a mamãe? — gritei, já do meio da escada. — Foi no supermercado. Desacelerei e só então senti o latejar das têmporas. Bom, minha mãe no supermercado significava que o Vitor não estava morrendo. Entrei no nosso quarto. — Por que vocês não me esperaram ontem? É... Legal, legal, o meu irmão não estava tão mal. Tinha um humor de cachorro. — Você se machucou? O curativo generoso na mão esquerda dele fazia da minha pergunta uma idiotice. Mas a gente sempre fala idiotices nessas horas.

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— Deviam ter me esperado. — Como foi que rolou isso aí? Meu irmão estava puto porque queria ter ido conosco. E nem sabia o que a gente tinha ido fazer. Mas, como ele tinha saído sei-lá-pra-quê, a gente foi sem ele, e ele foi abrir uma melancia. Agora cheguei ao ponto que queria. Na noite anterior, com o cérebro transformado numa esponja encharcada de álcool, e flanando por ruas, avenidas e viadutos na madrugada de uma metrópole, eu estava certamente correndo muito mais riscos que meu irmão, que ia passar a noite de sábado na frente da TV. Mas foi ele quem passou a faca a dois milímetros do tendão e quase ficou sem os movimentos da mão, enquanto eu apenas tinha uma leve dor de cabeça. Naquele dia não me veio nenhum tipo de reflexão, mas hoje eu sei que todas as vezes que a gente se machucava, ou rolava qualquer situação sinistra, sempre estávamos separados um do outro. Separados. Só um de nós parecia estar protegido, essa era a questão. Mas vamos voltar pro dia da minha morte.

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2 — Acorda, cara! No torpor delicioso entre o sonho e o despertar, eu sentia as mãos da Isolda pelo meu corpo. Ela montava em mim rindo, me sacudindo, me cavalgando. Naquela região fugidia da consciência, num limbo de sensações, eu tinha a pele macia e morena de uma bunda redondinha em cima de mim. Cara, uma coisa eu posso dizer, poucos caras tinham a sorte de ter uma namorada tão gostosa como a minha. Mas a lucidez invejosa sempre insiste em invadir a delicadeza de um sonho bom: a Isolda não tinha viajado conosco pro acampamento, portanto, não podiam ser as mãos dela me balançando. Só que foi justamente esse embalo carinhoso que empurrou a lucidez de volta pra sua caverna. Daí a Isolda, com suas muitas curvas, revestidas por sua pele caramelo-acetinada, com seus olhos redondos e cabelos castanho-escuros, se transformou na Cecília, branquinha, esguia, loura, de olhos claros. Sabe como são os sonhos, né? Os lábios dela se abriram em um sorriso e... Peraí. Tive um sobressalto. Cecília? Mas o que a namorada do Vitor estava fazendo no meu sonho, em cima de mim e me beijando? Mas, então, o prazer onírico do pecado forçou a consciência lá pro fundo de novo, e eu me entreguei àquela boca, que lambia, mordia, sugava. — Acorda logo, cara! Ah, substância frágil e inconstante! O sonho nos impregna o ser, nos embebeda o pensamento e, de repente, como uma mãe desalmada, nos abandona como a uma criancinha na chuva. Mas não era chuva. E nem era a boca úmida da Cecília. — Caralho, Homero! O que você tá fazendo?

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Meu amigo, que já tinha cansado de me sacudir, jogava grossos pingos d’água na minha cara. — Tá na hora. Vamo logo. Realidade bruta, mal-educada e grosseira. Nada pode ser mais doloroso que sair do acolchoado de um sonho e ser invadido pela verdade fria. De um segundo pro outro, não havia mais nada entre mim e a nitidez feérica do que tinha acontecido. Apertei os olhos, um pouco por causa da dor da ressaca, mas muito para tentar não ver a realidade. — Você tá melhor? — Agora não tinha sonho que pudesse me proteger. Sabia que estava num saco de dormir, dentro de uma barraca, ao lado do amigo que arrumava as mochilas. — Temos que ir. Tá todo mundo quase pronto. Todo mundo? O Homero falou inocentemente aquele todo mundo, mas foi como se tivesse me dado um choque. Meus colegas, amigos, professores, toda a turma da escola estava naquele momento andando de um lado pro outro lá fora! Como encarar o pessoal depois do que eu tinha feito na noite anterior? — E o Vitor? Homero não respondeu de imediato, talvez tentando distinguir a voz do meu irmão no burburinho lá fora. — Não vi. Decididamente, eu não tinha a menor condição de sair dali. Como é que eu ia olhar pro meu irmão? Não, nunca mais ia me mexer. Interpretando meus pensamentos, Homero puxou meu saco de dormir. — Olha aqui. O.k. Ontem você fez a maior cagada da sua vida. Puta estupidez imbecil do caralho. Mas tá todo mundo se arrumando. Daqui a pouco o ônibus começa a buzinar e aí... Num raio eu saí de dentro do saco e comecei a catar freneticamente minhas coisas, tentando não vomitar. A situação já era ruim, mas pior ia ser ficar por último. A humilhação já era grande demais pra eu ainda ter que passar por retardatário, deixando todos esperando e depois entrar com cara de otário no ônibus, desfilando sob olhares de reprovação enquanto tentava achar um lugar vago pra sentar.

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Como não precisava desarmar a barraca, que fazia parte do acampamento que a escola tinha contratado, e tomar café era a última coisa que me passava pela cabeça, só enchi a mochila, amarrei o saco de dormir, calcei os tênis, coloquei o boné e os óculos escuros e saí numa linha reta até o ônibus. Escorreguei até o último banco e me afundei na poltrona. Claro que, ao passar pelo meio da galera, todo mundo sacou que eu estava fugindo. Mas e daí? Pelo menos tinha conseguido arrumar um lugar tranquilo pra amargar sozinho a merda que eu tinha feito.

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