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A VOLTA POR CIMA DA G
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A GERAÇÃO ESMAGADA PELA DITADURA DE 1964
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Copyright © 2014 by Ayrton Centeno 1ª edição — Setembro de 2014 Graia atualizada segundo o Acordo Ortográico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor e Publisher Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial Fernanda Emediato Produtora Editorial e Gráica Priscila Hernandez Assistentes Editoriais Adriana Carvalho Carla Anaya Del Matto Capa Raul Fernandes Projeto gráico e Diagramação Alan Maia Preparação de Texto Nanete Neves Revisão Rinaldo Milesi Marcia Benjamim DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAçãO NA PUBLICAçãO (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Centeno, Ayrton Os vencedores : a volta por cima da geração esmagada pela ditadura de 1964 / Ayrton Centeno. -- São Paulo : Geração Editorial, 2014. ISBN 978-85-8130-218-8 1. Brasil - Política e governo - 1964-1985 2. Ditadura - Brasil 3. Golpes de Estado - Brasil 4. Histórias de vida 5. Memórias 6. Militarismo - Brasil 7. Perseguições políticas 8. Repressão política 9. Testemunhos 10. Tortura I. Título. 14-00519
CDD: 320.98108 Índices para catálogo sistemático
1. Brasil : Ditadura militar, 1964-1985 : Memórias, histórias de vida e testemunhos : História política 320.98108 GERAçãO EDITORIAL Rua Gomes Freire, 225 – Lapa CEP: 05075-010 – São Paulo – SP Telefax.: (+ 55 11) 3256-4444 E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br www.geracaoeditorial.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil
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Muito Obrigado Antes de tudo a Luiz Fernando Emediato, que teve a ideia, convidou-me para realizá-la e emprestou seu apoio para materializá-la. Ao Luiz Lanzetta, que nos apresentou e aproximou. Também a Willian Novaes e a todo o pessoal da Geração Editorial que, de uma forma ou de outra, ajudaram a colocar o projeto nos trilhos nas fases de concepção, captação, redação, edição e distribuição. À Cris Pozzobon que alcançou textos importantes. A todos os entrevistados e entrevistadas que cederam parte de seu tempo para contar suas memórias de alegrias ou horrores. Especialmente a Frei Betto, José Genoíno, Raul Ellwanger, Calino Pacheco Filho, Ignácio de Loyola Brandão, Nair Benedicto, José Celso Martinez Correia, José Dirceu e José de Abreu, que cederam livros e/ou compartilharam sugestões. A Tania, Lúcio, Vlad, Raquel e Carolina pela compreensão e paciência. A todos os amigos e amigas pelo estímulo.
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“Na aurora, armados de uma paciência ardente, entraremos nas esplêndidas Cidades” (Adieu/Arthur Rimbaud)
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Na propaganda oicial, o futuro era a ditadura 8
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FOTOS
© Jean Manzon
O “futuro que chegou” 9
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ÍNDICE
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A vitória dos vencidos .......................................................... 15
2
Encarando a morte e a solidão ............................................ 35
3
Fugindo de algo pior do que a morte ................................... 77
4
Taturana vai ao paraíso ........................................................ 97
5
Vítor e os muitos caminhos para o exílio ........................... 131
6
O 11 de Setembro chegou na véspera ............................... 165
7
Da VPR à Portobello Road .................................................. 187
8
Das teclas da IBM aos braços do PCdoB ........................... 209
9
As muitas voltas da vida .................................................... 257
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10 Sartre, Glauber e Bertolucci na guerrilha .......................... 309 11 Ouviu? Estamos torturando o seu ilho .............................. 343 12 Hormônio, radicalidade e felicidade .................................. 359 13 Do bangue-bangue ao Big Bang......................................... 385 14 O guerrilheiro que veio da UDN e o último dos tenentes......................................................... 429 15 Os amores na mente, as lores no chão ............................. 471 16 Quem é vivo sempre desaparece ....................................... 511 17 Vomitando o pecado, o medo e tudo mais ......................... 529 18 Da rua vêm os gritos: “Vamos te matar!” .......................... 551 19 A contribuição milionária de todos os erros ...................... 569 20 Manda ele pro Itamarapau! ............................................... 599 21 Com a ajuda de Kafka e Marighella................................... 613 22 Parabéns.Você está preso .................................................. 631 23 A gente corre e a gente morre na BR-3 ............................. 647
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24 Gaspar, Rosa, Renato e os brancaleones ........................... 667 25 Na correnteza da vida ........................................................ 691 26 Meio século de silêncio ..................................................... 703 Notas ......................................................................................... 731 Entrevistas ................................................................................. 805 Siglas ......................................................................................... 806 Filmograia/ Videograia ............................................................ 809 Jornais/ Revistas/ Sítios ........................................................... 810 Bibliograia ................................................................................ 812 Índice Onomástico ..................................................................... 819
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Além dos militares, a mídia colocou batalhões de manchetes marchando contra Goulart
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CAPÍTULO 1
A vitória dos vencidos “Hoje nossos adversários são Excelências e nós não somos nada” (Capitão Lisboa, do DOI-Codi)
“Tantas veces me mataron/ tantas veces me morí/ sin embargo estoy aqui/ resucitando” (Maria Elena Walsh, em “Como la Cigarra”)
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Q
uem perdeu, ganhou. Nas últimas duas décadas, os perdedores de ontem têm governado o Brasil. Primeiro, um ex‑exilado, de‑ pois um ex‑preso político e, inalmente, uma mulher, ex‑presa políti‑ ca e torturada. Quem ganhou, perdeu. Nas últimas duas décadas, os vencedores de ontem perderam poder como nunca acontecera na vida política nacional desde o advento da República, obra sem povo ou voto, fruto de um levante militar no longínquo ano de 1889. Quem ganhou, perdeu. Quem perdeu, ganhou. Simples assim? Não, nada é tão simples. Ainda mais que os derrotados — no caso da luta armada — também contribuíram para a debacle: a avaliação equivocada da conjuntura, o vanguardismo, o isolamento, o milita‑ rismo e, na fase agônica do enfrentamento, atiçados pelo desespero e tentando somente sobreviver, devorados pelos erros: traições, iniltra‑ ções, justiçamentos e assassinatos. Foi uma derrota devastadora inligida a algumas centenas de carbo‑ nários por um inimigo que somava 150 mil homens do exército, ma‑ rinha e aeronáutica, mais toda a estrutura e o efetivo das polícias civis e militares estaduais. No cômputo geral, meio milhão de brasileiros 17
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foram investigados, 50 mil presos, 11 mil acusados, 10 mil tortura‑ dos, cinco mil condenados, 10 mil exilados, 4.862 cassados — rol que abarcou presidentes, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores — e 475 mortos ou desaparecidos. Mais de 1,2 mil sin‑ dicatos sofreram intervenção, o Congresso Nacional foi fechado três vezes, juízes, militares e funcionários públicos foram acossados e de‑ mitidos. Os vencedores de então impuseram a censura, a perseguição, a cassação, o exílio, a tortura, a prisão e, não raro, a morte aos seus adversários. O que aconteceu à margem das próprias leis do arbítrio. Todos os limites foram rompidos, inclusive o da ocultação ou mesmo a destruição física dos cadáveres — práticas que ecoam o descarte das ruínas humanas nos fornos dos campos de extermínio nazistas. Onde o Estado, depois de matar a vida, também matou a morte. Mas é possível airmar que os vencidos de ontem, por caminhos distintos, coletivos ou individuais, derrotaram a derrota que lhes foi imposta na luta armada ou desarmada contra a ditadura, enquanto os vitoriosos de outrora habitam os subúrbios da memória nacional. Os dois percursos são melhor divisados com o distanciamento que o tempo propicia para a percepção mais clara dos fatos como se deram, como a poeira se assentou e a narrativa se decantou. Para ver, sobretu‑ do, aquilo que cada lado fez com seu triunfo ou sua derrocada perante o olhar mordaz desta sábia senhora chamada história. Vencedores aqui não, segundo o critério raso e restrito que in‑ crustou a palavra nos anos de predomínio da novilíngua neoliberal, como alguém que “venceu na vida”, expressão de corte arrivista, sig‑ niicando, quase sempre, sucesso proissional. Vencedor aqui é quem, partindo de condições difíceis ou mesmo duríssimas, se refez nas cin‑ zas da derrota. Antes disso, muitos dos personagens tiveram de iludir a morte. Dois deles, na democracia, hoje brigam por sua biograia. Ironicamente, condenados à prisão. “Os que perderam ontem, são hoje os vencedores”. A frase é de Jacob Gorender no que talvez tenha sido a sua derradeira entrevista quan‑ do conversamos num dia morno da primavera de 2012, numa saleta 18
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empanturrada de livros na Vila Pompeia, oeste paulistano. Debilitado pela carga dos noventa anos que se aproximavam, o historiador expuse‑ ra esta compreensão em 2001, quando o quadro não possuía evidência tão nítida como na última década1. “Ninguém se envergonha — es‑ creveu — de assinalar, no currículo, o fato de ter pertencido à ALN, à VPR ou ao PCBR. Do ponto de vista do curso histórico, os militantes de esquerda se situam entre os vencedores”, reiterou o autor de Combate nas trevas, visão referencial sobre o período 1964‑1985. Dilma Rousseff sobreviveu a vinte e dois dias na máquina de moer carne da Operação Bandeirante, a OBAN, tétrica parceria público‑ ‑privada avant la lettre. Amargou quase três anos de cárcere e dez anos de suspensão dos direitos políticos. Impulsionada por 55 milhões de votos, a Joana D’Arc da Subversão, como a tratam documentos da ditadura, converteu‑se na primeira mulher presidente do Brasil. Luiz Inácio da Silva viu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema posto sob intervenção. Removido da presidência, foi encarcerado durante trinta e um dias quando o regime agonizava. Condenado a três anos e meio de prisão, tornou‑se duas vezes presi‑ dente do Brasil; na segunda delas, em 2006, a bordo de 58 milhões de votos, recorde histórico no país. Fernando Henrique Cardoso, exilado no Chile e na França, foi destituído, em 1968, por razões políticas, de sua cátedra na Universidade de São Paulo (USP); viria a ser, por oito anos, presidente do Brasil. Quem conferir o comando dos ministérios sob os dois governos Lula encontrará, pelo menos, dez ex‑ministros com passagens pelos calabouços. Sete deles combatentes em organizações de luta armada contra o regime. Outros dois trancaiados por comandar greves. E um por ousar compor e cantar acordes dissonantes aos ouvidos das autoridades de plantão. Mais oito transitaram por grupos marxistas clandestinos entre 1964 e 1985. Os sindicatos foram fechados ou amordaçados e suas lideranças reprimidas. Mas Lula foi à forra: teve onze ex‑sindicalistas cheiando ministérios2. Nos mandatos de FHC, quatro ministros haviam sido ativistas de grupos extralegais e três 19
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deles provaram o exílio3. No ministério de Dilma, quatro titulares passaram pela prisão e nove integraram siglas clandestinas ou tive‑ ram sua formação na militância estudantil4. Exército, marinha e aeronáutica são ministérios extintos. Desde 1999, as forças armadas estão subordinadas a uma pasta, a da Defesa, comandada por um civil. Há somente um militar no ministério de Dilma. Sob Costa e Silva, para comparar, oito ministros tinham ori‑ gem castrense, sem contar o todo‑poderoso chefe do Serviço Nacional de Informações, o SNI, com status ministerial, sempre um militar e sempre um possível presidente do país. Na interpretação do general Luiz Cesário da Silveira Filho, último dos cadetes da turma de 1964 a seguir para a reserva e, até 2009, chefe do Comando Militar do Leste, “afastar‑nos da mais alta mesa de decisão do país foi uma estra‑ tégia política proposital”, o que teria permitido “o aparelhamento do Estado brasileiro rumo à socialização (...)”, queixou‑se5. Desde 1985, os militares estão ausentes do poder. É um hiato in‑ sólito na história republicana. Apenas entre o advento da República em 1889 e a Revolução de 1930, o brasilianista Alfred Stepan listou dezoito levantes nos quartéis6. De 1930 em diante, houve mais seis rebeliões, culminando com aquela que derrubou João Goulart. Em 2011, outra novidade: o governo determinou o im das comemora‑ ções do golpe nos quartéis. Nas eleições presidenciais de 2010, os quatro principais candida‑ tos tinham raízes na resistência clandestina ao poder militar. E três deles vinculados a organizações que encararam a ditadura de armas na mão: Dilma Rousseff, José Serra e Plínio de Arruda Sampaio. Dilma atuando no Comando de Libertação Nacional (Colina) e na Vanguarda Armada Revolucionária — Palmares (VAR‑Palmares), Serra e Plínio na Ação Popular (AP). A quarta candidata, Marina Silva, procedia do Partido Revolucionário Comunista (PRC). Embora no subsolo da campanha eleitoral Dilma tenha sido a única a receber o epíteto de terrorista — exatamente o termo que a máquina ditatorial de propaganda assestava contra seus adversários situados fora 20
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do jogo político consentido — em algum momento de suas vidas todos os quatro concorrentes tiveram como meta desmantelar a ditadura por meios ilegais. Todos devem algo de sua formação política à militância em agrupamentos ilícitos que a repressão perseguia, prendia e punia. Eram, outro adjetivo do jargão punitivo do período, subversivos. Na descrição do Dicionário Houaiss — obra do cassado e portanto subversivo Antonio Houaiss — subversivo é “aquele que prega ou executa atos visando à transformação ou derrubada da ordem estabelecida (...)”. Ao inal do escrutínio, mais de 100 milhões de brasileiros izeram de um deles a sua escolha. Juntos, somaram 99,7% dos votos válidos. Em outras trincheiras do front eleitoral, os humilhados e ofendidos de antes tornaram‑se prefeitos, deputados, senadores, governadores. Perseguidos, presos ou banidos reincorporaram‑se à batalha política no bojo de partidos com espectro do centro à esquerda. Alojaram‑se primeiro no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB. Quando retornou o multipartidarismo, ingressaram sobretudo no PT, cuja icha número um traz a assinatura de Apolônio de Carvalho, míti‑ co guerrilheiro que afrontou o fascismo na Espanha, o nazismo na França e duas ditaduras no Brasil. Adensada pelos trabalhadores das categorias mais organizadas e as comunidades eclesiais de base, além da intelectualidade acadêmica, a sigla serviu como desaguadouro da nova esquerda, não dogmática e avessa ao socialismo soviético ou chinês. Outra parcela encontrou acolhida no PDT, PCdoB e PSB. Um punhado optou por permanecer no MDB já metamorfoseado em PMDB, de onde um bloco se desgarraria para fundar o PSDB. Depois de 1964, ou mais notavelmente após 1968 e a edição do Ato Institucional número cinco, milhares de livros, peças, jornais, revistas, novelas de rádio e de televisão, músicas, ilmes, espetáculos, eventos, cartazes e até jingles foram mutilados ou proibidos. Desfechado o golpe dentro do golpe, com todas as formas de expressão subjugadas, transformou‑se o ofício de censor em carreira de Estado. Ignora‑se a extensão do processo, retendo‑se somente fragmentos do sinistro. No caso do cinema, por exemplo, sabe‑se que 444 ilmes brasileiros 21
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estão citados em processos de censura do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), a polícia política de São Paulo7. Mais de 500 livros caíram no índex da Censura Federal8. No palco, Shakespeare, que veio à luz 400 anos antes do gene‑ ral Olympio Mourão Filho colocar seus tanques a caminho do Rio no dia 31 de março, não escapou da censura. Ano em que vivemos em perigo, 1968 submeteu o teatro brasileiro ao tacão da Polícia Federal. Lá reluzia Juvêncio Façanha, general que não desperdiça‑ va seu sobrenome: “A classe teatral só tem intelectuais, pés‑sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo, menos de tea‑ tro”9, zurrou certa vez. E intimou: “Ou vocês mudam, ou acabam”. Nem mudaram, nem acabaram. Artistas, diretores de teatro, escrito‑ res, publicitários, jornalistas, cineastas, músicos e cantores há muito retomaram o percurso estorvado ou interrompido no pós‑1964. Mesmo com demora além da conta, cumpriu‑se, de alguma ma‑ neira, o vaticínio implícito na torrente de canções engajadas ou, ao menos, discordantes do status quo, surgidas entre 1964 e 1968. A qua‑ dra mais prolíica da MPB dos últimos cinquenta anos permitiu uma sintonia — nunca antes vista e nunca depois repetida — entre música popular e ativismo político. Entre a juventude insurgente e sua tra‑ dução por uma nova geração de letristas, entre o espírito das ruas e a expressão de suas esperanças, entre revolução e canção. Reiterava‑se, então, a promessa do “dia que vai chegar”, que dis‑ solveria uma segunda metáfora, a da “noite” e da “escuridão” opres‑ sivas. Nelas, a aurora equivalia à ressurreição. Talvez nenhuma música entoe tão exemplarmente este mantra ses‑ sentista, embora já de 1970, quanto “Apesar de você”. Mal‑camulada como dor de cotovelo de um amante ressentido, resultou em invasão da gravadora pela polícia e a destruição das cópias. Passou a circular em itas cassete. No hino buarqueano não existe um redentor, mas uma vitória a caminho para enim nos redimir: “Apesar de você/Amanhã há de ser/ Outro dia”. Com direito até a zombar do opressor: “Você vai se amar‑ gar/Vendo o dia raiar/Sem lhe pedir licença”. Mas num ponto — “Que 22
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esse dia há de vir/Antes do que você pensa” — o político quis mais do que o poeta e errou a mão. Mas e quanto a quem “inventou esse estado/E inventou de inven‑ tar/Toda a escuridão?”. “Muitas vezes se tem dito e repetido que a Revolução é irrever‑ sível e eu sinto a razão dessa verdade na nova consciência do Brasil que nestes anos se formou.” Era assim, deinitivo e categórico, que o general Emílio Garrastazu Médici, terceiro dos presidentes militares, captava o 31 de Março no sexto aniversário do movimento10. Seu ministro do Exército, Orlando Geisel, não deixou por menos: “E a história há de registrar, em sua verdadeira dimensão, na perspec‑ tiva do amanhã, o que ela representou para os destinos do Brasil e a preservação da democracia e da paz universal”11. Para Geisel, a ruptura da ordem constitucional encarnara um re‑ púdio a “uma minoria corrupta e subversiva”. Erigindo um pedestal para 1964, aiançou que se tratava de uma das “grandes vitórias” e um dos “marcos indeléveis na vida dos povos”. “Montamos na crista da onda e não desceremos mais”, jactou‑se, no mesmo tom e no mesmo ano, o general Abdon Senna, comandan‑ te da 6ª. Região Militar. Para não icar atrás, o governador Paulo Pimentel, do Paraná, surfou junto: o governo militar era, sem dúvida, “irreversível”. A visão do novo regime como algo que viera para icar não era apanágio das mentes militares ou de civis, caso de Pimentel, que frequentavam os altos es‑ calões. Antes daquele sexto aniversário, vozes na mídia manifestavam afeição pela ideia da ditadura ininita. No dia 1º de setembro de 1969, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, publicou o artigo de fundo “A pre‑ servação dos ideais”, no qual exalta a “autoridade e a irreversibilidade da Revolução”. Ademais, a chegada dos militares ao poder fora sauda‑ da com estrépito pela maioria da imprensa. Nela, pulsava um consenso granítico, embora excêntrico: a ditadura viera para salvar a democracia. “Ressurge a Democracia”, refulgiu o editorial de O Globo em seu títu‑ lo de 2 de abril de 1964. “Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam 23
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unir‑se todos os patriotas, independentemente de vinculações políti‑ cas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem”, festejou. Nesta cabriola se‑ mântica, o golpe era legal, ilegais eram os legalistas: “Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade”, mancheteou o Jornal do Brasil no 1º de abril. “Lacerda anuncia volta do país à democracia”, reiterou o Correio da Manhã. “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabe‑ lecida”, bradou O Globo. “O ato de posse do presidente Castelo Branco revestiu‑se do mais alto sentido democrático, tal o apoio que obteve”, explicou o Correio Braziliense em 16 de abril. Em êxtase, O Globo enxertou um elemento metafísico na descrição da epopeia. Fardou Deus para entronizá‑lo ao seu lado e com desfecho favorável: “Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto (...)”. Porém, em que pese a adesão da Providência Divina, da impren‑ sa, da maioria dos grandes proprietários de terras, industriais, co‑ merciantes e banqueiros e de fração hegemônica da classe política e da classe média, a revolução irreversível murchou. Enquanto Médici saía e entrava Ernesto Geisel, irmão do Orlando que elevou a dita‑ dura à condição de patrimônio imemorial da humanidade, a retó‑ rica da revolução eterna arrefecera e iniciara‑se a distensão lenta, segura e gradual para pavimentar a saída dos militares da ribalta. Um desenlace alternativo e tímido se confrontado com o discurso de poucos anos antes e a expectativa de perpetuar legado mais atraente ao imaginário nacional. Ainal, a guerrilha fora destroçada, a Aliança Renovadora Nacional, a Arena, recebia montanhas de votos nas eleições permitidas — a pon‑ to de seu presidente, Francelino Pereira, erguê‑la ao pedestal de maior partido político do Ocidente. A economia bombava crescendo 10% ao ano, a mídia era simpática, rasgava‑se a Transamazônica, nascia a maior ponte do mundo entre Rio e Niterói e a maior hidrelétrica do planeta na tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina. O general‑ ‑presidente, com 80% de aprovação popular, aparecia distribuindo 24
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sorrisos e chutando bolas, o Brasil era tricampeão mundial de futebol e ninguém segurava aquela corrente pra frente. O que deu errado? Ex‑chefe do Estado Maior do III Exército, o general Carlos Alberto da Fontoura sustentou12 que os militares jamais poderiam ter perma‑ necido vinte e um anos governando e sim, no máximo, cinco. Falta de timing, portanto. E também talento para aproveitar uma oportunidade histórica: “Estou convencido de que se o Médici tivesse uma centelha de estadista e não fosse apenas um ‘capitão de cavalaria’ teria promovido a normalização ainda no im de seu governo”13, las‑ timou outro general, Octávio Costa. Cabia a ele manejar a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), que maquiava a catadura do regime e turbinava a euforia nacional com o “Milagre Brasileiro”. No ocaso do governo Médici, a economia, em expansão desde 1968, perdera ímpeto. Em 1973, o combustível que alimentava a crise era o primeiro choque do petróleo. No ano seguinte, o preço do barril, antes a US$ 2,90, foi catapultado para US$ 11,65. A inlação anual mais que dobrou de 1973 para 1974: saltou de 15,5% para 34,5%. No canto do cisne do regime, em 1985, atingiria a estratosfera: 220%. A conta da importação de petróleo roía as divisas. Quando o regime soprou suas primeiras dez velinhas, deu‑se uma vi‑ rada política. Criada para executar a coreograia civil do governo mili‑ tar, a Arena sofreu um baque nas eleições para o Senado: elegeu apenas seis senadores para as 22 vagas em disputa. Quatro anos antes, patrola‑ ra o MDB, concebido como seu sparring nestes embates. Em 1970, das 46 cadeiras em disputa, os arenistas sentaram‑se em 41. Somando 21% dos votos, com o MDB apanhando até dos brancos e nulos, que bate‑ ram nos 30%. Médici, não sem razão, descreveu o pleito como “uma surra”. Fracasso tão acachapante que os emedebistas cogitaram dissol‑ ver o partido. A par da turbulência econômica, a segunda metade da década veria outro fenômeno: a sociedade civil começava a se organi‑ zar. E duas palavras, redemocratização e anistia, tornaram‑se cada dia mais insistentes na imprensa, nas tribunas e nas conversas. Em 1979, a distensão política no plano interno coincidiu com o segundo choque do 25
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petróleo. Após a vitória da revolução islâmica, o Irã, um dos maiores exportadores mundiais, interrompeu sua produção e o preço do barril bateu nos US$ 40. Os gastos do Brasil com petróleo importado subiram de US$ 4,1 bilhões em 1978 para US$ 10,6 bilhões em 1981. No ano seguinte, o ministro Ernane Galvêas, da Fazenda, comuni‑ caria ao derradeiro presidente do ciclo militar que o país estava fali‑ do. João Figueiredo reagiria com um desabafo: “Largaram os Quatro Cavaleiros do Apocalipse em cima do meu governo! Eu não mereço isso! Só falta uma praga de gafanhotos!”14. Galvêas pediu‑lhe que se acalmasse. Era possível dar um jeito. Saiu da reunião e, ao entrar no carro, saltou‑lhe à vista a manchete no jornal de seu motorista: “Nuvens de gafanhotos da Bolívia invadem o Mato Grosso”. Voltou, exibiu o jornal para o presidente e comunicou‑ ‑lhe: “Agora não falta mais nada”. Figueiredo achou graça15. Achou bem menos engraçado o tsunami das Diretas Já16 atrain‑ do as maiores multidões desde a queda do governo João Goulart. Os protestos de 1983 e 1984 eram, a seu ver, subversivos. As Diretas foram enviadas às calendas na Câmara, mas o humor do presiden‑ te azedou ainda mais com a dissidência de José Sarney, Aureliano Chaves e Antonio Carlos Magalhães, até então parceiros no Partido Democrático Social, reciclagem da antiga Arena. Acomodada na Frente Liberal, embrião do PFL, a trinca rachou o PDS ao bandear‑ ‑se para a candidatura de Tancredo Neves. Em agosto de 1984, Paulo Maluf bateu o ex‑ministro Mário Andreazza na convenção pedessista e levou a indicação para disputar a sucessão de Figueiredo. No colégio eleitoral, Tancredo teria 480 votos contra 180 de Maluf. A partir de então, desatava‑se um processo de volatização de eleitores no PDS que, como resposta, trocava compulsivamente de identidade. Tornava‑se PPR, depois PPB e hoje é PP. Em 1986, nas primeiras eleições após a redemocratização, dos vinte e três governos estaduais em jogo não ganhou nenhum. E emplacou dois senadores em quarenta e nove cadeiras disputadas. Sua costela extraviada, o PFL, obteve melhor fortuna: um governador e sete senadores. Hoje, 26
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porém, no avatar de DEM, após sofrer no próprio couro aquilo que impôs ao vetusto PDS, também minguou: tem um governo estadual, quatro senadores e vinte e oito deputados. Durante vinte e um anos, o direito de escolher presidentes foi exclu‑ sivo das cúpulas do Exército, Marinha e Aeronáutica. Ao Congresso, enfeitado como colégio eleitoral, cabia abençoar o ungido17. Pela força da reiteração, o processo adquiriu certo ar de normalidade, reproduzin‑ do‑se de tempos em tempos à semelhança dos ritos do mundo natural como o voo dos cupins, a troca da pele das serpentes ou o suceder ine‑ xorável das estações do ano embora, no caso, o clima permanecesse ins‑ titucionalmente o mesmo. Assim, quando Geisel entronizou Figueiredo na condição de seu herdeiro, os civis izeram o que lhes cabia como meros igurantes da mise-en-scène: icaram observando. Porém, um deles, o maior dos poetas brasileiros, chiou. Ex‑simpatizante do golpe, Carlos Drummond de Andrade informou18 não ter sido “nem cheirado, nem sondado, nem ouvido, nem prevenido”. Embora maior de idade, con‑ tribuinte, “de proissão confessável” e portador de título eleitoral ad‑ vertiu não ter “nada a ver com isso que está aí, portanto sem a mínima declaração a fazer. Boa‑noite”. Figueiredo seria o último. Com sua escolha, exatamente 1.649 votos, distribuídos aos vencedores em cinco eleições, deiniram os rumos do país. A performance eleitoral mais modesta coube a Médici, preferido de 239 eleitores. Castello Branco recebeu a unção de 361 apoiadores, Figueiredo de 355 e Costa e Silva de 294. Geisel ostentou o desempe‑ nho mais vistoso, cativando 400 eleitores. Foi uma bela votação, mas não seria bastante para sobrepujar Luiz do Açougue, que somou 783 sufrágios em 2012. Ele se elegeu prefeito de Borá, no Oeste paulista, pelo PT, na coligação O Progresso Continua. Borá é o menor muni‑ cípio do Brasil. E o de menor eleitorado. Tinha somente 924 eleitores em 2008 ou 0,003% do total de São Paulo. Por uma destas pilhérias da vida, 1964 foi o ano em que Borá virou município. Enquanto estavam entretidos no seu clube privê do prazer de votar, os militares não extraíram da caserna nenhuma liderança que sobrevivesse 27
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ao regime. Andreazza, coronel da reserva, tocador de obras de olhos ver‑ des e pele bronzeada, pinta de galã maduro da Cinecittá, talvez pudesse ser este nome. Porém naufragou no ostracismo com a derrota para Maluf. Dois rebentos do regime, mas oriundos da vida civil, saíram‑se me‑ lhor. Duas vezes prefeito paulistano e uma vez governador de São Paulo, deputado federal de três mandatos, ex‑candidato à Presidência da República, Maluf não repetiria, na democracia, seu desempenho do período discricionário. Desde sempre, enrolou‑se num rosário de denúncias de corrupção que lhe valeram, inclusive, uma temporada na cadeia. Fernando Collor de Mello converteu‑se no ilho de 1964 mais bem‑sucedido eleitoralmente pós‑1985. Gestado no ventre da velha Arena, virou prefeito nomeado de Maceió. Eleitor de Maluf no colégio eleitoral, pulou para o PMDB e chegou ao governo de Alagoas. Com o respaldo inicial de uma sigla nanica, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), subiria a rampa do Palácio do Planalto em 1990. Um impeachment o afastaria dois anos depois, processo desen‑ cadeado com as investigações sobre suas contas de campanha. Collor foi antecedido por outro antigo arenista, José Sarney, que aterrisou no Planalto por artes do acaso, devido à doença e a morte de Tancredo. Mas não é uma cria de 1964. Quando o regime se instalou, era um político rodado, com dez anos de atuação partidária. Tanto Sarney quanto Collor deixaram a presidência sofrendo im‑ ponentes índices de rejeição. Sarney com 56% de ruim ou péssimo e Collor, repelido por 68% dos eleitores19. Nos cinquenta anos da dita‑ dura, Sarney é senador pelo Amapá, após migrar para o PMDB de seus antigos adversários. Collor é seu colega de casa, mas pelo PTB. Maluf ocupa as cadeiras de deputado federal e de presidente do PP paulista. Os três convivem, como coadjuvantes, na espaçosa coalizão que prestigia o governo da ex‑guerrilheira Dilma Rousseff. Para Octávio Costa, as ditaduras produzem, além do “vazio da vida política”, uma “safra de demagogos e de líderes populares sem substân‑ cia”. Em 1992, o general opinou que a única novidade política no Brasil era o retorno dos sindicatos e o surgimento do PT, que “deve agradecer 28
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aos erros dos militares no poder tudo o que hoje é”, desabafou em de‑ poimento a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares20. Flagra‑se um tom que mescla lamúrias e, às vezes, desilusão ou mesmo rancor nas entrevistas dos generais. “Que ique registrado: só quem cumpre missão nesse país e quem tem amor à missão são as forças armadas. O resto é um bando de irresponsáveis!”, remordeu‑se o ex‑ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. “Neste país tudo presta, mas o povo ainda não está à altura do país que Deus lhe deu”, reverberou um acabrunhado Fontoura21. No papel, a ditadura inou‑se na manhã de sexta‑feira, 15 de mar‑ ço de 1985. Haveria até certa justiça poética nisso: ao mês que pariu o arbítrio tocaria atarraxar‑lhe os parafusos do caixão. Na prática, não aconteceu. Não se morre de uma vez só, ao menos no Brasil das tran‑ sições negociadas. No seu leito cinquentenário, a ditadura continua morrendo. O que é uma outra maneira de dizer que continua viven‑ do — e disso se tratará no inal deste livro. Naquele dia, Figueiredo recusou‑se a transmitir a faixa presidencial a Sarney e saiu do poder literalmente pela porta dos fundos. Parece justo dizer que os militares saíram do mesmo jeito que entraram. Ao partir, Figueiredo pediu que o esquecessem. Mas, em se tratando daqueles idos de março, é importante — obrigatório até — que nada se esqueça. Sobretudo as lembranças de travo mais amargo que são as mais impressionantes desta história sem im. Na disputa pela memória, os perdedores venceram. Rechaçaram as velhas palavras que o imaginá‑ rio do autoritarismo impusera — revolução, terrorismo, subversão — e, no lugar delas, colocaram as suas: golpe, tortura, resistência. Repisada a sério anos a io, a expressão “Revolução Redentora” é lida hoje apenas pelo viés da galhofa. Mesmo a imprensa que quase sempre perilou‑se com os militares, agora refere‑se a 1964 como golpe, sem nenhuma ce‑ rimônia. Sob a ação do tempo e dos fatos, a fachada esboroou‑se. Ironicamente, aqueles que, na ditadura, se enfurnavam em aparelhos, usando nomes falsos e ocultando o que faziam de seus amigos, parentes e vizinhos, circulam de cara limpa na democracia e falam abertamente 29
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sobre sua militância. Em contrapartida, seus algozes, que lanavam na ditadura, buscam o anonimato na democracia e escondem seu passa‑ do. O ex‑guerrilheiro Waldir e ex‑ministro Franklin Martins22 balizou a diferença entre os dois grupos: “Eu posso contar tudo o que eu iz para os meus ilhos. E quem icou do outro lado em geral não pode contar”. Alcunhado nos porões como Capitão Lisboa, o delegado Davi dos Santos Araújo Araújo se arrependeu23. No ato ecumênico em memó‑ ria do jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI‑ ‑Codi em 25 de outubro de 1975, retiniram nos ouvidos dos policiais as palavras de dom Paulo Evaristo Arns. O cardeal deiniu como “maldito quem mancha suas mãos com o sangue do seu irmão”. E será “maldito” não somente na lembrança dos homens, mas “também no julgamento de Deus”. A sucessão de infartos, cânceres, cegueiras, acidentes e outros reveses faz o Capitão Lisboa desconiar de uma maldição carcomindo as masmorras. “Se eu soubesse que o Brasil re‑ sultaria nisso, não teria ido pra lá (o DOI‑Codi). Hoje nossos adversá‑ rios são Excelências e nós não somos nada24.” Com a palavra, novamente, o general Octávio Costa: “(...) a longo prazo, aqueles remanescentes praticamente derrotados vieram a ser os verdadeiros vitoriosos e hoje tem a sorte do país em suas mãos25”. Quem assaltou os céus e foi castigado por tanta audácia lambeu as feridas e retornou ao jogo político em outro tempo e de outro modo. Uma dessas trajetórias de vertigens desceu ao fundo do abismo numa tarde inesquecível de verão no centro de São Paulo.
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Derrubado o governo, as capas de O Globo explodiram em exaltação ao golpe
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No Estadão, o inal da liberdade era a vitória das “armas libertadoras”. No JB, marcha defendia o regime democrático quando ocorria o inverso
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Dois dos arquitetos da deposição de Goulart: o governador mineiro Magalhães Pinto e o general Mourão Filho
Na capa de Veja, o ainda candidato Médici. Para ele, como para boa parte da imprensa, a “Revolução” era “irreversível”
Mais bem-sucedido eleitoralmente entre os presidentes militares, Geisel recebeu 400 votos. Menos do que o prefeito do menor município do país 33
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Vanda, já Dilma, diante dos auditores militares nos tempos de chumbo. Antes, três semanas de tortura e promessas: “você vai virar um presunto e ninguém vai saber”
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