Revista Experiência - 2012/2

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REVISTA EXPERIร NCIA

Famecos | PUCRS | Dezembro 2012

Maternidade

no cรกrcere


ASSESSORIA E COMUNICAÇÃO DIGITAL ATENDIMENTO E RELACIONAMENTO FOTO PUBLICITÁRIA

ÁUDIO PUBLICITÁRIO CRIAÇÃO

FOTOJORNALISMO

TENDÊNCIA E PESQUISA

AUDIOVISUAL

EVENTOS

DESIGN EDITORIAL PLANEJAMENTO EDITORIAL J

O Espaço Experiência é um lugar onde os alunos podem colocar em prática o que aprendem em sala de aula. É um laboratório constituído por diversos núcleos relacionando as áreas de Publicidade e Propaganda, Jornalismo, Relações Públicas e Audiovisual. Esses núcleos dão oportunidade para que os alunos desenvolvam suas habilidades profissionais, dando-lhes base para o mercado de trabalho.

espaço experiência

Você pode experimentar desde cedo.


CARTA AO LEITOR Olá. O que você está segurando agora é a segunda edição de 2012 da Exp, revista produzida semestralmente pelos alunos de jornalismo da Famecos na disciplina de Redação e Produção de Revista. A disciplina é frequentada quase que exclusivamente por alunos prestes a se formar ou que pelo menos já têm alguma bagagem considerável em produção de texto, foto e design. Em resumo: estamos mais pra lá do que pra cá. Durante esses últimos meses, mais de 70 pautas foram criadas, discutidas, reformuladas, escritas (e rereformuladas, depois reescritas... você entendeu). Foi o caso também das fotos e do projeto gráfico (aliás, um parêntese: estreamos na edição passada o layout que você tem agora diante dos olhos, que sofreu [o projeto] somente pequenas modificações). Ao final, ficamos com essas 50 reportagens. Como não seria difícil de imaginar, os assuntos variaram bastante nesta edição. Olha só

isso: como matéria de capa, temos o texto de Sâmela Lauz sobre as apenadas do Instituto Madre Pelletier (presídio feminino de Porto Alegre) que desempenham o papel de mãe, mesmo estando atrás das grades. Daí passamos ao perfil do cartunista gaúcho Santiago, um dos mais premiados desenhistas do mundo. Ficamos também sabendo como os praticantes do jiu-jitsu não apenas se orgulham como também cultivam as famigeradas orelhas de couve-flor. O dia a dia dos índios residentes no bairro Lomba do Pinheiro foi assunto de outro texto. Descobrimos a cidade brasileira como maior número de indivíduos autodeclarados ateus. Soubemos da história do livreiro Bolívar, que vende volumes de porta em porta na capital gaúcha e que, agora, vai dar aulas no magistério estadual. Vemos como é a vida das crianças no Quilombo do Silva, incrustado num bairro nobre de Porto Alegre. Revelamos também por que talvez seja uma boa ideia você começar a pensar

em investir em tipografia se quiser ganhar dinheiro. Aproveitando o ensejo, fique aqui registrado também que duas das reportagens desta edição da Exp foram vencedoras da categoria Acadêmica do 29º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo: Índio quer mais que apito, do aluno Gerson Doval Raugust, conquistou o segundo lugar, enquanto que nossa capa, Filhos do Pelletier, de Sâmela Lauz, ficou em terceiro. Muitas vezes pensamos que aquilo que transparece no fim da leitura dos textos é que eles revelam mais sobre seus autores do que qualquer outra coisa. Ou melhor, as reportagens revelam o que esses mesmos autores consideram ser o ideal no jornalismo, seja em termos de texto, foto ou diagramação. Pensando bem, é possível ver a Exp como uma apresentação (nem tão) formal. Uma carta de intenções. De certa forma, ao ler, você vai nos conhecer melhor. Muito prazer. (Lucas Cunha)

Expediente Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor: Joaquim Clotet Vice-reitor: Evilázio Teixera Diretora da Famecos: Mágda Cunha Coord. do curso de Jornalismo: Vitor Necchi Realização da disciplina de Redação e Produção de Revista

Professores responsáveis: Flávia Quadros (Fotografia) Luiz Adolfo Lino de Souza (Projeto gráfico) Vitor Necchi (Texto) Foto da capa: Sâmela Lauz Projeto gráfico: Renan Sampaio Avenida Ipiranga, 6681 — Prédio 7 — Porto Alegre, RS, Brasil www.pucrs.br/famecos

Dezembro de 2012 Alunos: Allan Kuwer, Ana Paula Ramos, Ângela Correa Ferreira, Bruna Canani, Bruno Andreoni, Bruno Germer Moares, Carla Simon, Caroline Zanini, Crisitiano Varisco, Fernanda Cardoso, Fernanda Faria Correa, Fernando Lopes, Filipe Karam, Gabriel Ludwig, Gabriela Guadagnin, Gabriela Schiavi, Gerson Doval Raugust, Guilherme Tubino,

Jéssica Barbosa, Jéssica Mello, José Luiz Dalchiavon, Júlia Schwarz, Juliana Ramiro, Larissa de Bem, Liege Ferreira, Lívia Auler, Lucas Cunha, Manoela Ribas, Manuela Ferreira, Marcelo Coelho, Mariana Caldieraro, Matheus Schuch, Melissa Maciel, Natália Teixeira, Paloma Poeta, Priscila Vanzin, Roberta Mello, Sâmela Lauz, Sarah Souza, Stéfano Marcos de Souza, Thamys Trindade, Thiago Netto, Vanessa Pacheco, Vitória di Giorgio

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ex O livreiro andarilho

Bolívar Gomes de Almeida anda por Porto Alegre em busca de pessoas dispostas a ler um bom livro

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Novos espaços

Barbearias apostam em serviços e ambientes diferenciados para atrair o público masculino

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Eu sou o Constantine O sagrado e o profano coexistem em guerra no universo oculto do mago gaúcho, Antonio Augusto Fagundes Filho

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Índios urbanos

Kaingangues da Capital reclamam de falta de assistência e se preocupam com o futuro

Cidade em movimento

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Conheça os responsáveis por despertar a cidade todos os dias

Papai Noel da vida real

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Há 30 anos, o rastro natalino de João Domingues alegra crianças e adultos de Cachoeirinha

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FILHOS DO

Pelletier

Histórias de detentas-mães que cumprem duas penas: quando têm de conviver com os filhos atrás das grades e quando são separadas de seus bebês

MATERNIDADE NO CÁRCERE Sabrina deixou quatro filhos na rua e agora divide a rotina do presídio com a pequena Yasmin

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SÂMELA LAUZ

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aléria lembra de um sábado de visita em especial, ainda da primeira vez que esteve presa. Na época, a mãe, Cida, e o filho, Ubiratan, moravam na Rua Arnaldo Borba, perto do Pelletier. A avó havia deixado Birinha com uma vizinha e dito que ia até o mercado, buscar algo para comer. Ela sempre dava essa desculpa, para o neto não perguntar pela mãe. Enquanto aguardava a revista, as agentes penitenciárias comentaram que tinha uma criança a chamando na entrada do prédio. Espantada, Cida foi conferir. Birinha havia fugido de casa, atravessou a avenida Teresópolis e seguiu a avó até a penitenciária. Batia no portão do prédio, chamando por Valéria. Birinha tinha quatro anos. Valéria é uma entre as quase 35 mil mulheres presas no Brasil. Há uma década elas eram pouco mais de 10 mil e representavam cerca de 2% da população carcerária brasileira. Hoje, somam 7,3% dos 512.285 presos sob custódia da Justiça. O último relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), mantido pelo Departamento Penitenciário (Depen) do Ministério da Justiça, também aponta que o Brasil tem uma estrutura extremamente precária para atender às necessidades das mulheres encarceradas. Das grávidas e com filhos pequenos, muito menos. O Brasil, porém, tem uma legislação avançada, se comparado a outros países. A Lei nº 11.942/2009 torna obrigatória a convivência entre as condenadas e seus filhos. Estabelece que casas prisionais femininas ofereçam berçário para bebês de zero a seis meses e creche para os de até seis anos. No entanto, o que se vê é que cada estado cumpre a lei conforme a deterioração de seu próprio sistema carcerário. Como uma colcha de retalhos mal cosida, cada diretor de presídio estabelece suas regras. No Pará, por exemplo, a superlotação e as condições desumanas de alojamento não permitem o contato entre mãe e filho nem

35 mil é o número de mulheres presas no Brasil

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mesmo durante a amamentação, conforme recomendação do Conselho Penitenciário do Estado. O número de detentas que estão aprisionadas com os filhos no Rio Grande do Sul atualmente oscila entre 15 e 30 reclusas. Há cerca de dois anos o total chegou a 33 e seguia aumentando. Por conta disso, a Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre impôs, em setembro de 2010, limite de idade para a permanência das crianças nos presídios, o que estabilizou o número de crianças recolhidas com as mães, conta o juiz Sidnei Brzuzka, responsável pela decisão. A Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre, recebe apenadas gestantes de todo o Estado a partir do sexto mês de gravidez, pois é o único presídio feminino gaúcho que conta com estrutura para isso. Em novembro, havia 13 crianças e cinco gestantes na Unidade Materno-Infantil, que pode abrigar até 23 rebentos de apenadas. A VEC permite que a criança permaneça com a mãe no sistema carcerário até completar um ano, mas se a criança não necessita de cuidados especiais, ao completar seis meses, os dois são transferidos para a Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, até o menor ser encaminhado à família ou a um abrigo. A assistente social responsável pelo atendimento às mães e aos bebês do Pelletier, Marilene da Silva João, comenta que as apenadas do Interior não têm muita escolha, e a decisão de ficar ou não com o bebê durante o cárcere é mais complicada. “Se elas permanecem na Capital, têm melhores condições de atendimento médico e estrutura para o bebê, mas por outro lado, as visitas da família tornam-se raras”, revela. Além de bebês que são privados dos gradis dos berços para conviver com pesadas grades e cadeados, o drama se entende à família das condenadas. Na maioria dos casos as detentas-mães deixaram do lado de fora das grades outros filhos, que ficaram com a família. Avós, tias e comadres são obrigadas a assumir a criação das crianças. Os quatro filhos de Sabrina, 32 anos, estão com a avó paterna desde a primeira vez em que ela foi presa. Eles têm 15, nove, sete e quatro

Yasmin vai saber que nasceu aqui. Não adianta esconder. Ela chora, às vezes, de vontade de sair pra rua. SABRINA, apenada

anos e moram no bairro Mathias Velho, em Canoas, onde também cresceu a mãe, conhecida pelo envolvimento com o tráfico de drogas. Os menores não costumam visitá-la, mas ela recebe notícias regularmente. “Não deixo eles virem aqui porque já são grandes, entendem as coisas”, balbucia meio

desajeitada ao embalar Yasmin, sete meses. A pequena nasceu no Pelletier e vai acompanhar a mãe até completar um ano. Sabrina soma dois anos e três meses de detenção, entre fugas e reincidências, mas é a primeira vez que conta os dias passarem pela janela da cela com um filho. “Vou dizer que ela nasceu aqui, não adianta esconder”, enfatiza. Uns dias atrás Yasmin teve uma crise de choro. O coração de mãe constata: “Não era doença, ela só queria sair pra rua”. Olhos marejados, breve silêncio. Logo um suspiro e o anúncio, em tom de otimismo: no próximo mês a bebê vai começar a visitar o pai nos finais de semana. Pois Yasmin nem precisou iniciar o processo de adaptação com os familiares. Foi para casa junto com a mãe, que ganhou a liberdade no dia 17 de outubro. A notícia foi uma surpresa para Sabrina, que esperava por uma condenação que podia chegar a 15 anos de reclusão.

FUTURO Suellem não sabe qual será o destino da filha, Victória revista exp

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Passado inconstante, futuro incerto Suellem, 23 anos, ostenta uma enorme barriga de nove meses e uma fama de encrenqueira. A futura mãe de terceira viagem é um tanto arredia, tem a malandragem de quem foi criada na rua. E foi mesmo. Os olhos bem pretos e ligeiros não combinam com o ritmo de sua fala. Ela conta sua história aos retalhos, sem muita emoção, como quem descreve cenas desconexas. Cenas que refletem uma vida de exclusão, abandono e as consequências dessa mistura. Quando criança, Suellem ia ao presídio visitar a mãe, presa por roubo, que morreu quando a menina tinha seis anos. Sem ter onde ficar, Suellem foi encaminhada à Febem, antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, atual Fase, onde permaneceu até completar nove. Então a levaram para a casa de um tio, em Viamão. “A mulher dele dava em mim. Uma vez me bateu com um pedaço de pau e enfiou uma lasca na minha mão, daí fugi pra Porto Alegre e

comecei a usar drogas”, lembra com mágoa. Nessa época morava na antiga Vila Chocolatão, com outra parte da família, mas como não tinha muito espaço, “ficava mais na rua mesmo”. Ela alega que da primeira vez que “caiu”, portava um quilo de maconha do traficante com quem se relacionava desde os 13 anos. “Terminei com ele, pois não assumiu a droga nem os filhos”, justifica. A reincidência também se deu por conta de outro namorado. Dessa vez, 180 petecas de crack e R$ 500, dos quais R$ 200 eram dela, provenientes do tráfico. Assim como a maioria das mães e outras presas no Pelletier e em outras penitenciárias do Brasil, o motivo da prisão geralmente é tráfico. Levantamento do Ministério da Justiça revela que 61,8% das mulheres condenadas cumprem pena por isso, quase três vezes mais que o número de homens sentenciados pelo mesmo crime. A gestante que espera por Victória Gabriele soma três anos de detenção. Entre esse tempo, uma breve pausa. Ela foragiu quando estava no regime

semiaberto, em 2010. “Queria trabalhar, mas como não tinha recomendação, não consegui”, explica. Suellem queria ver os filhos, pois a irmã que cuida deles e mora em Viamão não os levava para visitá-la. O menino, que nasceu no Pelletier, ficou três meses com a mãe e quatro no abrigo, até ser buscado. A assistente social Marilene conta que ela nunca foi ver as crianças enquanto esteve na rua. A mãe com jeito de moleca voltou ao presídio em fevereiro de 2012, grávida de uma menina. Será o segundo rebento a nascer atrás das grades. Suellem não sabe qual será o destino do terceiro filho, pois não é procurada por ninguém da família há algum tempo. “Se eu tiver que ir pra Guaíba, mando o bebê embora”, sentencia. Marilene, que trabalha há três anos no presídio feminino, admite: “Às vezes é melhor o bebê ficar aqui, junto com a mãe, do que com a família, que não tem condições de manter um acompanhamento médico mínimo à criança”. Muitas vezes ela já saiu de casa no seu domingo de descanso para

Dizem que é exagero fazer essas coisas pelo filho de uma presa, mas essas crianças precisam de cuidado como qualquer outra. MARILENE DA SILVA JOÃO assistente social do presídio

atender a alguma emergência com um dos filhos do Pelletier. “As pessoas não entendem, dizem que é exagero fazer essas coisas pelo filho de uma presa, mas faço porque gosto, pois essas crianças precisam de cuidado como qualquer outra”, defende. O juiz Sidnei Brzuzka explica que quando a mãe não quer o bebê, o caso é encaminhado ao Juizado da Infância e da Juventude ainda na fase gestacional. Do contrário, o bebê fica com a mãe até os seis meses, quando começa a fase de adaptação da criança com algum familiar. “O menor fica dias na prisão e dias com a família substituta. O processo é acompanhado por avaliação social”, enfatiza. Com um histórico de infância e adolescência vividas sem paradeiro, usando crack e cheirando loló, Suellem suspira e viaja em pensamento para esboçar seu futuro. Enquanto aguarda o resultado do pedido de recurso da condenação de cinco anos e seis meses, planeja: “Vou sair daqui, trabalhar e juntar meus filhos, que nem se conhecem”, fala com um sorriso tímido. A respeito da dependência química, ela dispara: “Até oito meses atrás eu usava, então não sei se já larguei de mão. Mas já fiquei mais de dois anos limpa. Sou bem decidida, se eu quiser, eu paro”. O exemplo veio de casa. A mãe se injetava e o irmão usava crack. A convivência familiar sadia nunca fez parte da sua vida. E até então, de seus filhos também não.

Contando os dias

CONDICIONAL Andressa espera a liberdade para voltar a morar com a família, em São Leopoldo

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Os olhos azuis e os traços delicados do rosto de Andressa, 24, são meigos, não combinam com o ambiente hostil de um presídio. A barriga de nove meses

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se sobressai à seu corpo esguio. De costas, nem se nota que está prestes a dar à luz Natália. Andressa é de São Leopoldo, mas foi para Santa Catarina, em 2008, trabalhar como garota de programa em uma boate. “Me envolvi com o dono do negócio, mas como eu era usuária de crack, não mexia com as drogas”, garante. Logo depois de se desentender com o companheiro, buscou suas coisas na casa onde moravam. A polícia resolveu fazer uma batida naquele dia e a droga encontrada foi colocada sob sua responsabilidade. Ela ficou presa no estado vizinho por três anos. Quando ganhou a condicional, Andressa foragiu. Voltou para a casa dos tios, em São Leopoldo. A família nem sonhava com a fase nebulosa que passou lá. “Voltei e comecei a trabalhar. De dia numa firma e à noite na boate, tudo certinho. Então me acharam”. Andressa foi capturada em casa, em fevereiro de 2012. O tio debateu com a polícia ao ouvir que a sobrinha, criada como filha, estava em débito com a Justiça. “Morei com ele desde a morte da minha mãe, sempre contei tudo. Só não disse que tinha sido presa porque queria começar uma vida nova”, confessa. Andressa queria refazer sua história, mas deixou para trás duas partes: Rafaela e Maria Luisa, de seis e três anos. Falar nelas é sinônimo de lágrimas e um silêncio doído. Saudade. Elas estão com a irmã do pai. “São bem cuidadas, não as tiraria de lá. Só sinto falta mesmo”, choraminga. Andressa conta os dias para o semiaberto. Os parentes de São Leopoldo nunca a visitaram, mas mandam cartas e se mostram dispostos a perdoála e ajudar no retorno à vida normal. A menina que carrega no ventre não vai conhecer o pai, que nem sabe de sua existência, mas a mãe garante que não vai repetir o mesmo erro. “Minha família vai me ajudar. Vou seguir a vida e criar minha filha, esquecer tudo isso”, projeta.

Porto Alegre nunca mais

A paulista Valéria, 26 anos, não poderia imaginar que a vinda para Porto Alegre, em 2006, em busca de uma vida melhor, se transformaria numa vida de cárcere. A dois. Ela deixou Osasco com a mãe, o marido e o filho, Ubiratan, na época bebê de colo. Na capital gaúcha, o marido começou a traficar e, em 2008,

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os três adultos foram presos. Ubiratan ficou com uma tia. A mãe conseguiu a liberdade logo depois, em regime semiaberto. Depois, Valéria ganhou a condicional e retomou a guarda do filho. O marido continuou preso, mas ela não ia visitá-lo. “Ele acabou com o nosso futuro”, cospe com raiva as palavras. Do tempo que ficou no Pelletier da primeira vez, Valéria fez uma amiga, que foi transferida para a penitenciária de Guaíba. Com a amizade, a promessa: “Como ela não tinha família, prometi que a visitaria quando saísse”. E assim fez. Valéria conta que, por causa de uma birra, uma vizinha plantou droga em seu tênis, justamente no dia em que visitaria a amiga. Valéria foi presa novamente em dezembro de 2011, grávida de Davi. O menino, hoje com sete meses, é fruto de “uma aventura” e não tem o nome do pai. Nem terá, se depender da mãe. “Não conheço a família, não arriscaria deixar meu filho com eles”, afirma com um olhar vago de quem não sabe o que fazer com o bebê risonho que carrega pelos corredores da galeria creche. Mesmo com a saúde frágil, Cida, 64 anos, mãe de Valéria, aparece todos os sábados de visita, a não ser quando chove ou faz muito frio. Debilitada, não pode mais cuidar do neto. Os dois estão em abrigos. Valéria chora muito ao falar no primogênito, de seis anos, que não via há dois meses. A assistente social do abrigo alega que como ele já tem noção de que a mãe está presa, é pior vê-la. “Ele diz que estou no castigo”, soluça a mãe de Birinha. A psicopedagoga Rosa Maria Pulla explica que ficar longe do calor materno, em qualquer fase do desenvolvimento infantil, é fator determinante da personalidade humana. Em alguns casos, a inconstância na relação entre mãe e filho tem reflexos até mesmo na aprendizagem. Mirando o chão, Valéria resmunga: “O problema é quando o Davi tiver que ir embora, não vou aguentar”. Ela quer que a pena passe rápido, como qualquer pessoa presa, mas ao mesmo tempo, “seria bom se o tempo parasse”. A nutricionista que atende os bebês no Pelletier falou que Davi está forte, cresceu. As mães geralmente gostam de ouvir isso. Valéria não: “Minha vontade é diminuir ele e colocar

SAUDADE DE CASA Valéria só pensa em voltar para São Paulo de volta na barriga. Não quero ficar sozinha aqui”. Ela pondera que, na rua, muitas vezes, as mães sofrem, mas não tem comparação com a maternidade no cárcere. “Enquanto estão aqui, a gente cuida, dá carinho, mas depois não sabemos qual vai ser o futuro deles, nem com quem”, desabafa. Enquanto a mãe de Birinha e Davi chora, desconsertada, um breve silêncio. Na sala ao lado, outra detenta ouve uma música: “Meu advogado é o meu Senhor, ele me defende do acusador. Minha causa entreguei em suas mãos, posso descansar o meu coração. Minha audiência ele já marcou, me garantiu de novo que eu serei um vencedor..”, diz o refrão de

Minha vontade é diminuir ele e colocar de volta na minha barriga. Não quero ficar sozinha aqui. VALÉRIA, apenada

Advogado fiel, da cantora gospel Bruna Karla, uma das preferidas das presas do Pelletier. A cadeia é ruim, mas com filho, a pena se torna martírio. “Da outra vez eu chorava, mas agora parece que pesa mais, pois esse pedacinho de mim vai ser arrancado daqui uns dias”, tortura-se Valéria. E é essa a sensação do bebê, especialmente na idade de Davi. Rosa argumenta que por volta dos seis meses, a criança não apenas percebe que não faz mais parte do corpo da mãe como também entende que pode ser deixada sozinha. É nessa fase que se inicia um medo de abandono conhecido como ansiedade de separação, algo que pode durar até os dois anos de idade. Cada vez que são afastados, “é como se fosse um luto”, ressalta. Depois da segunda temporada no Pelletier, Valéria decidiu: quando sair, vai voltar para São Paulo. “Porto Alegre só me trouxe coisas ruins”, reconhece. Hoje seu sonho é poder planejar o futuro dos filhos, levantar cedo e trabalhar para criá-los. “Quero que eles tenham liberdade, pois mesmo o que está na rua, está preso a essa história”, conclui. Davi ouve atento a promessa da mãe: sair do presídio com a cabeça erguida e refazer a vida. revista exp

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O gosto das coisas simples

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SURPRESA A liberdade veio inesperadamente para Sabrina, que agora curte a filha em casa

abrina. pode arrumar as tuas coisas. Tu vais embora hoje”. As palavras, ansiosamente aguardadas, foram ditas com um sorriso de surpresa pela agente penitenciária Ilse Dias. Nem ela nem a própria apenada esperavam pela notícia. Sabrina acabara de se despedir da enteada, que foi ao Pelletier em mais uma das muitas visitas. De tão faceira, não queria nem esperar pela carona: “Eu ia de táxi, se precisasse. Queria sair de lá na mesma hora”. Desistiu até de tomar banho antes de ir embora. Juntou os poucos pertences e roupas e deu adeus à casa prisional onde esteve com a filha nos últimos 18 meses. Presa pela segunda vez por tráfico em junho de 2011, Sabrina voltou à penitenciária feminina Madre Pelletier com “um mês de barriga”. A rotina na Unidade Materno-Infantil era tensa. A convivência entre as mães apenadas incluía brigas e picuinhas quase diárias. A mãe de Yasmin esperava pela condenação, que poderia chegar a 15 anos de reclusão. Enquanto isso, se preparava para se despedir da filha, quando ela completasse um ano de vida, período limite para a permanência do bebê com a mãe no cárcere, segundo a Vara de

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Execuções Criminais de Porto Alegre. Ela sabia que seu caso estava difícil. “A promotora tinha se encarnado em mim”, reclama. Sabrina recebeu então um recado de seu advogado. “Ele falou alguma coisa sobre uma vitória, mas eu não entendi direito o que era”. Poucos dias depois, Sabrina recebeu a notícia de sua soltura. Comer churrasco foi a primeira coisa que quis depois de deixar o cárcere, no dia 17 de outubro. “Meu marido fez por três dias seguidos, de tanta vontade de comer que eu tava.” Os parentes do companheiro também festejaram a liberdade recém conquistada. Outro desejo era um tênis novo, comprado no centro da Capital. Mas o dinheiro deu apenas para isso. O andador para

Meu marido fez churrasco por três dias seguidos, de tanta vontade de comer que eu tava. SABRINA, apenada

Yasmin e os presentes que quer levar junto com uma visita aos outros quatro filhos, que estão em Canoas, terão que esperar. Sabrina garante que quer revêlos o quanto antes. Yasmin, sete meses, está mais ativa, apesar do estranhamento inicial com o ambiente e as pessoas da família. “Quando chegamos, ela não saía do meu colo, parecia ter medo, mas agora já acostumou. Dorme bem menos e só que ficar na rua. Faz até manha pra ver o movimento na calçada”, comenta. Sabrina não sente vontade de botar o nariz para fora dos dois cômodos no bairro Passo das Pedras. Prefere curtir a retomada da vida dentro de casa, com a filha. Há um motivo: “Se eu apareço ali na frente sei que vão me incomodar, então fico na minha”. Ela se refere aos antigos parceiros de tráfico, que costumam circular pela vizinhança. “Esses dias veio uma que se dizia minha amiga, tinha acabado de fumar uma pedra e queria pegar a Yasmin no colo. Não deixei, acho uma falta de respeito com a criança”, conta Sabrina. Usuária de crack, Sabrina atuava em um ponto de venda na Vila Jardim Planalto, próximo Ao local onde mora hoje. Os antigos companheiros vêm

pedir dinheiro ou qualquer coisa que possam trocar pela droga. “Sabem que eu estou bem, mas ficam na fissura e batem aqui”, reclama. Ela garante que deixou o vício e que vai continuar no Hospital Presidente Vargas o tratamento iniciado ainda durante a prisão. Da pena alternativa que deverá cumprir, Sabrina sabe que repassará três salários mínimos à Cruz Vermelha e que prestará 102 semanas de serviço comunitário, mas somente depois que Yasmin completar um ano, como estabelece a lei nesses casos. Enquanto isso, a mãe que não sabia como seria o seu futuro nem o da filha, agora planeja, sorridente: “Vou colocar ela numa creche e trabalhar. Meu marido não quer, mas eu vou porque não quero ficar com a cabeça vazia”. No futuro, talvez ajude o marido na criação de porcos, no sítio em Tabaí. “Não gosto muito de bicho, mas vou mesmo assim”, admite. Mãe ela continua sendo, mas agora, com mais gosto. A cada visita que chega, Sabrina faz questão de mostrar Yasmin e sua esperteza. A rotina, antes limitada ao ócio do Pelletier, agora é de uma dona de casa caprichosa. A cozinha com mesa, geladeira e micro-ondas e o quarto com cama de casal, berço, TV e roupeiro estão sempre cheirosos.

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A HISTĂ“RIA DO LIVREIRO

andarilho BolĂ­var, 63 anos, passa os seus dias ajudando as pessoas a encontrar o maior legado da humanidade: cultura.

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GABRIEL LUDWIG

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espreocupado com o futuro, Bolívar Gomes de Almeida se prepara para mais uma de suas jornadas. Seus pés e suas costas estão cansados do peso de uma aventura, que não tem início, meio e nem fim. Tem sacrifício e dedicação aos livros que tanto ama. Sua cabeça e mente, ao contrário, não poderiam estar mais aptas a realizar essa caminhada, afinal, os 63 anos de vida trouxeram experiência e paciência. Essa última necessária para controlar o nervosismo provocado pelo transporte público de Porto Alegre. Suas mãos estão como novas, pois os livros as mantiveram ativas e firmes, principalmente, para folhear e desfolhear páginas quase amarelas. Seus olhos negros, como a cor da tinta das obras literárias, evitam contato visual com qualquer pessoa. Na verdade, eles estão auxiliando a memória para melhor visualizar e contar suas histórias. Quando começa a falar dos títulos amados, não para nunca, a menos que seja interrompido ou sinta que está incomodando. São tantos contos e referências na ponta da língua, que impressionariam até mesmo os próprios autores. Bolívar é um andarilho cultural. Ele caminha pelas ruas e avenidas da capital gaúcha em busca de pessoas dispostas a comprarem seus livros. Ao contrário dos vendedores de enciclopédia, que vendem de porta em porta, ele prefere visitar seus clientes no trabalho. Cultiva uma grande amizade com eles, sempre mostra opções de literatura e discute ideias sobre o mundo. Às vezes, começa a dar uma aula para eles e acaba perdendo a noção do tempo. Contudo, seus alunos escutam cada palavras do vendedor professor. Uma vez, discutiu com uma cliente que insistia em pedir livros do Paulo Coelho. Por entender que esse tipo de literatura não presta para ninguém, divergiu e sugeriu um outro livro. Já dizia o ditado: “O homem com ideias é forte, o homem com ideais é invencível”. Bolívar é um deles, por isso, convenceu a leitora a desistir da compra do autor best-seller brasileiro. Seus ideais surgiram com

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a literatura. Com menos de dez anos, já amava a leitura. Na adolescência, descobriu as terras mágicas de Júlio Verne, assim como suas mensagens contra o imperialismo, leu livros revolucionários sobre socialismo e desvendou os mistérios da liberdade. Na juventude, aplicou esses conceitos ao lutar pelos direitos humanos na época da ditadura. Mais tarde, diluiu sua sabedoria com programas culturais com uma livraria. Esses ideais e gostos pessoais pela literatura convergem num ponto só, permitindo que seja muito mais do que um vendedor de livros, mas um agente cultural. Se os vendedores de enciclopédias estão praticamente extintos nas florestas urbanas, o que dizer de pessoas especializadas em vender livros? Bolívar talvez seja um dos últimos a aventurar-se nesse campo.

Livros, razão de viver

A paixão pelos livros aflorou ainda na infância graças aos quadrinhos de David Crockett. Como morava no interior de Osório, aquele ambiente faroeste de alguma maneira lhe era familiar e aconchegante. Contudo, os xerifes contra bandidos não eram suficientes. Era necessário complexificar a leitura. Decidiu buscar outras fontes de conhecimento e encontrou a fonte dos livros, na qual nunca deixou de beber. Ninguém sabe ao certo quando começou a ler, são tantas versões da mesma história, que essa poderia ser confundida com um mito urbano. Sua irmã contou que aprendera a ler por si próprio através de jornais e de HQs. Quando entrou na escola, já estava mais alfabetizado do que muitos adultos. O colégio na qual estudava ficava a três quilômetros de casa. De vez em quando, levava um livro ou gibi para o tempo passar mais rápido durante o trajeto. Nas aulas, sempre fora disciplinado. Respeitava os professores e os colegas. Nunca chegou a discutir às vias de fato com alguém, entendia que uma boa argumentação poderia evitar qualquer briga. Aos poucos, desenvolvia seu poder de argumentação, que viria a ser útil décadas depois, principalmente durante a ditadura militar, quando presidiu um diretório estudantil na UFRGS.

PAIXÃO Bolívar aprendeu a ler antes de entrar na escola

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SPRAY NO LUGAR DOS LIVROS 1972. Há três anos Médici assumia o controle do Brasil. É o momento de maior tensão da ditadura militar no país. Os gritos dos desaparecidos políticos eram abafados pelo chamado milagre econômico brasileiro no período. A oposição era torturada e esmagada. Os que escutavam fingiam ser surdos e os que não escutavam estavam, cegos pela cartase imposta pelo governo federal. Em Porto Alegre, dois anos antes, o único núcleo estudantil da cidade havia sido interditado. O local era fonte de possíveis manifestações contra o regime. Os estudantes estavam sem voz, sem casa e sem vida. Foi nesse contexto que Bolívar ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesse período, o preto e branco dos livros foram substituídos pelos sprays de tinta. O jovem rapaz de Osório, que na época estava com cabelo comprido no melhor estilo Che Guevara, era um dos indignados com a situação do país. Juntou-se com 15 amigos e fundou um centro acadêmico na UFRGS, no qual foi o primeiro presidente eleito. Durante o dia, os embates eram mais sutis, afinal, os estudantes sabiam que havia militares infiltrados na faculdade. Por isso, cartazes coloridos e chamativos eram a principal arma para mobilizar os alunos. Embora simplória, a estratégia trouxe um relativo sucesso entre os estudantes, que aderiram a uma greve em fevereiro de 1974. À noite, os protestos saíam dos muros da universidade e chegavam às ruas da Capital. Os sprays de tinta eram os objetos favoritos dos alunos para protestar. Como um dos principais membros do diretório, Bolívar precisava mostrar uma imagem forte e decisiva. “Abaixo à ditadura militar”, era o que costumavam escrever nas paredes dos prédios. Essas palavras não eram lá super criativas, mas eram diretas e representavam o desejo dos jovens daquela época. Contudo,

Nós tinhamos medo dos milicos, mas isso não impediu que protestássemos. BOLÍVAR DE ALMEIDA, livreiro

em sua mente, assombrava a ideia de que tudo poderia ir por água abaixo por causa da repressão. No final de 1974, teve que abandonar o movimento quando foi estudar na Costa Rica. No ano seguinte, retornou a Porto Alegre com o objetivo de combater a ditadura militar. A vontade não poderia ser maior, já que passara o ano inteiro lendo notícias sobre a situação política do Brasil. Na volta, passou a representar o Jornal Movimento no Rio Grande do Sul. O periódico ganharia respeito nacionalmente pela equipe formada por intelectuais brasileiros contrários à ditadura. Essa experiência foi fundamental para a formação de Bolívar, que passou a vender os jornais de porta em porta. A militância pela liberdade aproximou Bolívar da classe intelectual de Porto Alegre, o que abriu várias portas a ele no futuro. Foi assim que começou a vender livros de esquerda. Como tinha um conhecimento único de obras literárias e experiência com vendas graças ao jornal Movimento, passou a visitar seus conhecidos sugerindo obras. Os preços amigáveis e o bom gosto pela literatura o ajudaram no início de sua jornada como um andarilho cultural. No fundo, cultivava o sonho de abrir a própria livraria. Desejo que seria realizado apenas na década de 90, quando decidiria alugar um prédio na General Câmara, no centro de Porto Alegre. revista exp

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A livraria cultural

Desde criança, seu sonho era ter a própria livraria. Assim, graças à experiência no ramo de vendas no jornal Movimento, conseguiu realizar esse desejo em 1991. Como já trabalhava com livros há oito anos, acumulou mais de 4 mil volumes. No entender de Bolívar, a livraria teria que ficar num local próxima à rua Riachuelo, conhecida pela concentração de sebos. Entretanto, a locação dos prédios no famoso logradouro estava muito acima do que podia arcar. Optou por um prédio localizado na General Câmara. O local não era dos melhores porque não dispunha de vitrine. Uma placa com o nome da livraria era o único chamativo para atrair pessoas que andavam pela rua. No dia 12 de julho de 1991, Porto Alegre ganhava mais uma livraria, a Bolivros. O objetivo de Bolívar não era apenas vender livros. Surgiu a ideia de realizar um programa cultural toda sexta-feira à noite. O próprio Bolívar realizava a produção desses eventos, que variavam de palestras sobre o capitalismo até leituras dramáticas de peças de Shakespeare. Esses programas culturais fizeram sucesso. Frequentemente faltavam cadeiras para todos, por isso, era preciso pegar emprestado de um sindicato ao lado. Um dos eventos que mais chamou atenção do público não teve a presença de uma figura intelectual. José Adelmo Borges era um velho marinheiro. Depois da 2° Guerra Mundial, visitou portos japoneses e alemães. Durante a palestra, contou as dificuldades que esses dois povos passaram para se reconstruir. Ninguém piscou durante uma hora, todos queriam saber da vida desse ilustre desconhecido. Os programas ajudaram a criar um público fiel à livraria, mas ela durou pouco tempo. O amor pelas obras literárias era tanto, que Bolívar continuou comprando livros ao ponto de não ter onde mais colocá-los. A dívida foi crescendo aos poucos. Não se preocupou, pensou que tudo daria certo. Com a chegada de grandes redes à capital gaúcha, o negócio parou de dar dinheiro. Em 1997, o sonho acabou. Desistiu da livraria e passou a focar nas suas viagens como andarilho dos livros.

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ACERVO Bolívar ainda guarda em casa vários livros da antiga biblioteca e de suas jornadas

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POPULAR Ao andar pelas ruas do Centro de Porto Alegre, Bolívar é reconhecido por amigos que perguntam sobre livros e a vida

Eu confio totalmente no Bolívar. Ele indica ótimas músicas para colocarmos na rádio. DEMÉTRIO XAVIER, músico

80 é o número de exemplares que

Bolívar vendia, num dia, nos anos 90

10 é a media de livros que ele vende por semana atualmente

De volta aos livros

A segunda-feira amanheceu com vento e tempo nublado na Capital. Ainda se recuperando de uma viagem, Bolívar teve de acordar cedo. Tinha combinado com seus clientes que iria visitálos pela manhã. Sem pressa e com calma, teve tempo para tomar seu fiel cafezinho antes de sair. Os livros largados numa mesa de madeira na sala se perdiam aos montes. Era uma bagunça, mas uma bagunça organizada. Não sabia ao certo quantas obras conseguiria vender, porém o local de destino tinha um histórico favorável de compras, mas foi cauteloso. Levou apenas seis. Todo esse ritual evoca um sentimento de nostalgia para ele, afinal, não saía para uma jornada assim há dois meses, quando foi convidado a participar de uma série de palestras sobre cultura brasileira no centro do país. Porto Alegre é uma cidade de proporções do tamanho da sua cultura. Por isso, Bolívar prefere pegar um ônibus para deslocar-se aos seus destinos. De vez em quando, não nega uma caminhada para lembrar dos velhos tempos, quando percorria três quilômetros todos os dias para ir ao colégio estudar. Porém, ultimamente, seus pés e suas costas estão cada vez mais doloridos e cansados. Talvez seja o preço de carregar milhares de livros durante anos. Aguentar o ônibus não é nada fácil mesmo tendo privilégio de

sentar no banco reservado para idosos. Antes, quando carregava mais de 20 obras na mochila, preferia a lotação pelo conforto oferecido pelo transporte. Mas, nos últimos anos, a demanda pelos seus produtos diminuiu. Hoje, carrega no máximo cinco exemplares por vez. Eles são escolhidos a dedo conforme os gostos de seus clientes. Depois de sair do coletivo, ainda teve que subir um pedaço do morro Santa Tereza. Seu destino final era a Fundação Cultural Piratini, a qual visita desde a década de 90. Lá dentro, todos o cumprimentaram, era como se um mestre tivesse voltado de uma longa viagem. Dois de seus discípulos eram o escritor Luís Dill e músico Demétrio Xavier. Ambos ficaram felizes pelo retorno de Bolívar, que prontamente apresentou os livros. Sem nenhuma timidez, o andarilho começou a contar peculiaridades dos títulos que levou. Uma história conduz a outra e, quando todos se dão por conta, Bolívar estava dando uma aula sobre a história do Paraguai. A conversa ficou tão interessante que Luís Dill decidiu comprar um dos livros mesmo tendo dúvidas se já não o possuía em algum lugar de sua casa. Para Demétrio, Bolívar entregou os seis cds que recebera de sua última viagem. Ele quer divulgar essas obras na rádio. Demétrio sabe que uma dica cultural do andarilho dos livros não é de se jogar fora,

afinal, Bolívar já fora cantor de música sertaneja na década de 70 com seu irmão e dispunha de um senso crítico apurado para esse tema. O presente é aceito e cuidadosamente guardado. A viagem seria concluída após a venda de alguns livros para dois conhecidos da TVE. O respeito e a longa amizade dos funcionários com Bolívar certamente são aliados nas suas jornadas. Com um resultado acima da média, saiu de lá satisfeito, sem reclamar de suas costas. Afinal, a dor física é momentânea e suportável. A dor de ver um país sem cultura é eterna e vergonhosa. Por isso, continua.

Vida nova

Ao longo de suas caminhadas, Bolívar ganhou muitos amigos e conhecimento. Contudo, o mesmo não pode ser dito no aspecto financeiro. Vender livros não rende dinheiro suficiente e, por vezes, a vida pode ser difícil. Assim, decidiu ingressar no concurso do magistério estadual realizado no primeiro semestre de 2012. Passou com folga. Começou a lecionar em novembro para duas turmas do Ensino Fundamental da Escola Estadual Tancredo Neves, localizada no bairro Aberta dos Morros. Seu sorriso foi renovado. Agora, o andarilho também é professor. Porém, a nova vocação não significa que irá desistir de suas jornadas como vendedor de livros. Elas continuam. revista exp

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OPINIÃO ATRAVÉS

do lápis

Os traços que desenham a vida de Santiago, um dos maiores cartunistas do Brasil, ganhador de mais de 60 prêmios nacionais e internacionais

AMIZADES Cartunista Santiago e o também desenhista Renato Canini (E), em um encontro na nova sede do Tutti Giorni

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BRUNA CANANI

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eltair Rebes Abreu, conhecido mundialmente por Santiago, vai se tornar seu melhor amigo, se você deixar. O jeito acolhedor e ao mesmo tempo tímido torna este gaúcho de 62 anos um cara excepcional. Obsessivo por desenhos desde os três anos, Santiago começou a rabiscar as lajes das calçadas com carvão, cacos de telha e de tijolos. A vaidade começou a aflorar em seguida, quando percebeu os olhares admirados e cobiçados de quem via seus desenhos. Desde pequeno a família percebeu o progresso de seus traços. Enquanto as crianças paravam de desenhar aos dez anos de idade, Santiago continuava firme, melhorando a cada dia. Cartunista, ganhador de mais de 60 prêmios nacionais e internacionais, em 1969 partiu da cidade natal, Santiago do Boqueirão, rumo à Capital, a fim de cursar a faculdade de arquitetura. Um dos motivos para a escolha do curso foi a tentativa de se especializar em desenho, porém, com o início do trabalho no jornal Folha da Tarde, Santiago trancou os estudos e seguiu com a carreira de cartunista. Desde então não parou mais de trabalhar para a imprensa. Atualmente, faz trabalhos para jornais de circulação dirigida e livros de cartum para editoras. Toda sua trajetória foi marcada pela sua

fixação por desenhos. Quando está ao telefone, o cartunista começa a rabiscar o primeiro pedaço de papel em branco que encontra. A janela do escritório ilumina a prancheta de criação. No canto da mesa, a paleta de aquarela espera para ser usada. O mural, fixado na parede, pendura as fotos da família, desenhos de admiradores e uma foto de Che Guevara. Santiago tem grande respeito pelo guerrilheiro: “Admiro pessoas que renunciaram por um ideal, por um objetivo de vida. Pessoas oportunistas, que buscam as coisas por vaidade, que nunca renunciaram a nada, só com o objetivo de acumular, são pessoas que não admiro”,

exclamou. Quando peço um desenho, o cartunista age no mesmo instante. Pega a lapiseira, posiciona a folha A3 na mesa e começa a rabiscar. Em poucos segundos a figura já começa a aparecer. Macanudo Taurino, um de seus personagens mais conhecidos, começa a brotar a cada risco de grafite. Como afirma o amigo Edgar Vasques: “Neltair é objetivo e certeiro, tá tudo pronto na cabeça dele quando aborda o papel”. O companheiro de longa data destaca que, de certa forma ele só rabisca aquilo que está imaginando. “O resultado para o espectador é um trabalho limpo, preciso e que atende diretamente a narrativa que ele quer fazer”.

MACANUDO TAURINO Um dos personagens marcantes

O cartunista permaneceu na redação do jornal por quase dez anos, sempre trabalhando na área do jornalismo de opinião. Quando entrou, em 1975, a censura externa e estabelecida pela ditadura não existia mais, porém sofreu restrições internas. “Várias vezes o editor-chefe vetava alguma coisa porque a carga estava muito pesada. Geralmente eram críticas contra os militares. Uma coisa que eu senti e acho que existe até hoje, muito viva ainda, é a censura econômica. Se tu criticas algum setor, que é anunciante ou tem algum negócio com a empresa jornalística, aí as matérias geralmente não saem. A censura do anunciante”, resume. Para ele, a charge é o humor opinativo. Ela nasce a partir de uma indignação, uma opinião referente a um assunto. “A charge é um jornalismo opinativo desenhado. Quase podemos dizer que ela é uma crônica desenhada. O chargista é o cronista que comenta os fatos do dia, da sua comunidade, do seu mundo através da linguagem do desenho”, explicou. Edgar, que também é cartunista, afirma que Santiago é um dos pensadores de humor mais originais que existem: “A sacada que ele faz pra descrever de forma engraçada só ele tem, tanto que é difícil plagiálo, porque tu não consegues ter uma ideia à la Santiago”. Algumas de suas charges ofendiam determinados leitores, como deputados e senadores, que mandavam cartas reclamando.

Admiro pessoas que renunciaram por um ideal, por um objetivo de vida. Pessoas oportunistas, que buscam as coisas por vaidade, que nunca renunciaram a nada, só com o objetivo de acumular, são pessoas que não admiro.

CASAMENTO A união com Olga é sustentada por confiança e respeito e já dura 35 anos

SANTIAGO, cartunista

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MURAL No estúdio de criação, Santiago guarda desenhos e fotografias de pessoas queridas e também de sua admiração “Uma vez eu fiz uma gozação forte com o presidente dos EUA, Gerald Ford, que na época havia caído de bunda no chão numa escada. Depois disso o consulado americano me mandou uma carta, registrando um protesto contra a minha falta de respeito com o presidente. Essa foi a parte do meu currículo que mais me honra: o consulado americano me mandando uma carta”, brinca. Trabalhando atualmente por encomenda, Santiago afirma não poder se dar ao luxo de ter inspirações para desenhar. “A gente tem é transpiração: suar e forçar a mente a produzir um conteúdo interessante. Para mim, o que é mais importante que a inspiração é a indignação. Os fatos que deixam a gente indignado, como fome, pobreza, miséria, guerra, estupidez, prepotência, o latifúndio, isso tudo vai criando uma indignação que tu tens que botar pra fora de alguma maneira e termina acontecendo através do desenho de humor que é uma ferramenta poderosa”, exclama. O cartunista acredita que há outro motor que impulsa seus desenhos: a pressão do editor. “A maioria das coisas que eu fiz, se eu não tivesse alguém me pressionado por traz, no bom sentido, eu não teria produzido”, brinca. O dom para o desenho veio

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da família Belmonte de Abreu e as influências, das histórias em quadrinho. Sobre a mesa de desenho, há um bonequinho do personagem Obelix. Preso em cima da tela do computador, a figura de Tintin. Estes pequenos astros dos quadrinhos deixam esta influência evidente. Os desenhistas da revista O Cruzeiro, como Millôr Fernandes, Péricles de Andrade Maranhão e Carlos Estevão, também o influenciaram. “N’O Pasquim, eu tinha os grandes desenhistas do Rio que faziam o jornal humorístico. O Ziraldo foi uma influência definitiva na minha vida. Eu olhava e copiava e até levei um certo tempo para ter meu estilo porque eu era muito marcado por esses desenhistas que admirava”, lembra Batizado de Neltair, a alcunha Santiago, introduzido pelos colegas de faculdade, veio a calhar quando começou a assinar o pseudônimo. “Eu fiz do limão uma limonada. Achei que esse apelido era bom, já que meu nome não era muito sonoro nem fácil de memorizar”, explica. A esposa, Olga, acredita que a família toda já adotou o Santiago e que Neltair se tornou o apelido. O cartunista acredita que o nome lhe deu sorte. Em 40 anos de carreira, Santiago ganhou prêmios, oportunidades de

viagens e reconhecimento, mas afirma que não ficou rico, apesar de nunca ter-lhe faltado dinheiro. Edgar Vasques garante que Santiago é um dos grandes nomes do cartum internacional e isso se comprova através do respeito que tem em qualquer lugar que apareça. “Ele ganhou prêmios na Turquia, no Japão, no Canadá. Aqui, seu trabalho sofreu a acusação de ser regionalista, mas é um trabalho que o mundo inteiro reconhece, tanto que lhe garantiu todos esses prêmios. Não há duvida da importância da sua obra para o Brasil e para o Rio Grande do Sul. Ele é completamente universal”, defendeu. Entre seus personagens marcantes, está Macanudo Taurino, gaúcho que demonstra a perplexidade de um homem mais tosco, puro, admirado com as mudanças repentinas do mundo. Edgar garante que Santiago diz tudo com poucos traços. “Isso é parte integrante desse conjunto de qualidade, como a de economizar meios e ter um desenho sereno, que assina Santiago”, salienta. O cartunista transborda humor. Sua maneira de falar e agir com muitos gestos e sempre fazendo caretas, são engraçadas e originais. Contudo, ele afirma ser uma pessoa inibida. “O humor

foi uma coisa que eu sempre gostei. Sempre fui de contar piadas, mas se eu estiver numa sala com mais de cinco pessoas, fico meio amedrontado.” Edgar Vasques discorda e garante que o desenhista é um humorista irônico, sarcástico e um grande gozador. “Se ele tá debatendo com um cara que ele não gosta, ele vai dizer coisas irônicas que vão feri-lo. Assim como ele faz no desenho dele, quando pega no pé de um político corrupto. Eu já vi o Santiago enfrentar o político sem vergonha ao vivo e botar o dedo na cara dele. Se o cara tá de conversa fiada, o Santiago não engole essa, mete o dedo no ponto. O engraçado é quando ele inverte isso pra sua linguagem gráfica. Essa indignação, essa capacidade de enxergar o errado, de denunciar, ganha uma roupagem elegante, porque o desenho dele é elegante”, avalia. Santiago conheceu Olga em 1977. Um ano depois, ambos oficializavam a relação. A sintonia surgiu no primeiro instante, conforme as músicas, gostos e ideais apareciam e se combinavam. “Nossa relação se concretiza através do entendimento pessoal e pela falta de discussões. Não gosto de briga. Brigar se briga uma vez só. Brigar sempre é desgastante”, menciona. Pai de Bernardo

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Abreu e Catia Mena Barreto, o cartunista imagina que criou os filhos com base nos valores de caráter, confiança e no respeito pelo próximo. A relação da filha com o pai é de extrema confiança. “Ele é amigo para as horas boas e ruins. É pau para toda obra. Ligou, não tem horário, domingo, feriado, ele esta sempre disponível”, garante. A filha revela que a relação do pai com todos a sua volta é ótima. “O seu lado social é muito grande. E não por ele ser o Santiago, o cartunista, mas por ser o Neltair. Ele para e conversa com todo mundo. Considera todos seus amigos. Ele conquista até as crianças com o seu jeito espontâneo. Um mendigo uma vez quis dar o seu guarda-chuva para o meu pai por que estava chovendo muito, apenas por que eles haviam conversado num outro dia”, relembrou. Santiago mantém amizade com diversos colegas. Os encontros no bar Tutti Giorni, conhecido como QG de cartunistas, localizado na Cidade Baixa, reúnem estes célebres amigos em um ambiente com boas risadas, parcerias e confiança. Edgar Vasques considera o amigo uma pessoa leal e generosa. “Se ele vê que tu ta precisando dele, imediatamente ele se coloca à disposição. Na medida em que tu és seu amigo ele tá por ti, vai te ajudar.” Para o colega, Neltair também é um pouco teimoso, impulsivo e brabo. “Ele tem uma teimosia que eu acho limitante. Tu dizes uma coisa pra ele e ele discorda, aí tu provas que tu tá certo, mas aí ele já entrou numas e não volta atrás. Ele tem uma resistência psicológica muito forte. E como eu sou assim às vezes, a gente acaba se bicando. São dois bicudos que não se beijam”, brinca. Para Santiago, o humor é quase uma filosofia de vida, a capacidade de fazer piadas consigo mesmo. “A gente não deve se levar a sério. Eu não me levo a sério nem vou levar ninguém. E isso me faz feliz. Se eu tiver que falar um palavrão eu digo, tô cagando e andando”, ironiza. Edgar considera que o cartunista reúne uma grande originalidade de abordagem humorística por causa da sua vivência, que lhe ajuda a fornecer temas com uma grande precisão do desenho. “Então, juntando essas duas coisas, tu tens um dos

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maiores cartunistas do mundo”, garante O desenhista não se arrepende de nada. Afirma que não ficou nada para trás, porém, lamenta não ter viajado mais. “Quando tinha tempo, não tinha dinheiro, quando tinha dinheiro, não tinha tempo.” O cartunista não tem sonhos de consumo. “Nunca quis ser rico. Eu quero é viver bem, fazer o que eu gosto. Esse é meu fundamento de vida. Não quero ter um carrão, frequentar um clube grã-fino. Por que eu vou ter três carros se eu não posso usálos ao mesmo tempo?”, indaga. Entre seus afazeres favoritos estão desenhar, cerveja com os amigos, cinema, música, leitura e mate. Homem de poucos medos, Santiago teme a situação do planeta. “Tenho medo de que ele não aguente tanta barbaridade que fazem com ele”, admite. A indignação de Santiago com as diferenças sociais são perceptíveis. Se pudesse mudar alguma coisa no mundo, a primeira delas seria a distribuição das riquezas: “Essa concentração estúpida de riqueza na mão de meia dúzia é a esquizofrenia do ser humano”. Catia acha difícil o pai se chatear com alguma coisa, mas concorda que o que mais lhe tira do sério é a questão da discriminação. “Mas ao mesmo tempo a coisa tem que ser séria porque meu pai faz piada até de fratura exposta”, brinca. Neltair é um cara de muitos e bons amigos. Companheiros há 35 anos, Olga afirma que a maior qualidade do marido é a amizade. “Ele é amigo de todo mundo”, assegura. Na sala da casa, há imagens, cartuns, quadros e desenhos, presos na parede – a maioria presentes de admiradores, sendo um deles uma charge sua, junto a Edgar Vasques. A apreciação do colega Edgar Vasques pelo companheiro de trabalho é notável. O ilustrador não poupa elogios para descrevê-lo. Ambos se conheceram na faculdade de arquitetura, quando Santiago fazia ilustrações e charges para o meio universitário. A qualidade dos traços de colega chamou a atenção do ilustrador, por mais que ele fosse amador. Não era necessário evoluir muito para poder se profissionalizar e publicar, tanto que foi o próprio amigo que indicou Santiago para a vaga de chargista no jornal Folha da

Se eu tiver que falar um palavrão eu digo, tô cagando e andando. SANTIAGO, cartunista

Tarde. “Ele tinha não somente noção de desenho, mas também das ideias, da adequação, o que é a chave do cartum”, explica. Catia acha que o pai poderia ir mais além como chargista. “Ele é excelente, mas é muito crítico. Além disso, cai de pau em cima da Rede Globo, da RBS, do Jornal do Comércio. Onde tiver que botar banca meu pai bota, e nisso podia dar uma freada, uma segurada. Acha que se não o fizer, vai compactuar com as coisas erradas. As imperfeições da grande mídia que ele briga tanto”, ressalta. Para Olga, Santiago é uma pessoa franca e aberta. Sua sinceridade e espontaneidade fazem com que o cartunista

não seja capaz de camuflar nada. A autenticidade é sua principal característica. Entre suas manias, a esposa afirma que o marido morde a língua enquanto desenha. “Ele nem pode ser fotografado por que fica muito feio”, brinca. Entre causos engraçados vividos com o colega Edgar Vasques, tem a vez em que resolveram fritar um ovo num quarto de hotel, em Nova York. A fumaça acionou o alarme de incêndio e ambos fugiram apenas de cueca pelos corredores. “O Santiago é um cara espontâneo que reage sem cautela em relação às coisas. Então isso cria situações engraçadas”, conta. O ilustrador considera o amigo inestimável, para o qual tem o maior respeito pessoal e profissional. “Ele é um cara que faz parte da minha lista de grandes amigos e grandes artistas que eu tive a sorte de conhecer. E como desenhista, ele é um dos maiores do mundo. Eu sou invejoso da capacidade dele, do talento dele”, admite. Se deixar levar por Santiago, pelo seu jeito acolhedor, por suas brincadeiras e piadas, é inevitável. O cartunista lhe conquista sem precisar de muito, basta você deixar. Só não é seu amigo, quem não quer.

AMIZADE Santiago e Vasques (D) se conheceram na faculdade revista exp

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O PRECURSOR DO

samba-rock

Saiba como foi a vida de Bedeu, criador de um dos ritmos mais populares do país GUILHERME TUBINO

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oi no dia 4 de dezembro, de 1946, no bairro Azenha, em Porto Alegre, que ele nasceu. Um homem franzino, humilde, de jeito, simples que conquistava as pessoas pela sua simpatia. Talentoso por natureza, desde criança impressionava a todos quando fazia som num pandeiro que ganhará do avô. Começou muito cedo na música e com 12 anos já tocava bem bateria.

Percussionista de um ritmo incomparável, estudou violão para ajudar nas composições. Mais tarde, no início da década de 1960, criou uma obra inédita que mudou o cenário musical brasileiro. Influenciado pela Jovem Guarda, pelas rodas de samba e por Jackson do Pandeiro, que escutava pelo rádio, acabou por misturar, naturalmente, os acordes dos morros com o peso da guitarra. Assim como diversos artistas importantes, o rei do suingue sulista partiu de maneira

prematura, no momento em que o público gaúcho começava a ter noção de sua relevância. Esse foi Jorge Moacir da Silva, mais conhecido como Bedeu. Sujeito alto, mulato, alegre e exigente quando o assunto era produzir música, viveu entre Porto Alegre e São Paulo. Mergulhou em grandes romances e se mostrou ousado para inventar um novo ritmo dançante, com o balanço do samba tocado em compasso quaternário do rock’n roll, que hoje é conhecido por samba-rock.

LEGADO O primeiro casamento do músico foi com Iberi, com quem teve quatro filhos

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O apelido surgiu ainda na infância. Como era um menino inquieto, sempre batucando nos objetos que via pela frente, seu avô começou a chamá-lo de Bedeu do Carnaval. O nome pegou tanto que o acompanhou até o final de sua vida. Filho de mãe negra e pai branco, que nunca conheceu, o garoto foi criado pelas tias. Apesar de ter abandonado os estudos no 2º Grau, ele era uma pessoa de boa articulação das palavras. Enérgico, sabia animar o ambiente. Motivar os parceiros de banda, sempre quando preciso, também era uma de suas qualidades junto com o companheirismo. Dono de um instinto apurado para música, Bedeu andava sempre com seu violão nas costas. A qualquer momento poderia ter uma boa sacada e dela sair uma canção. Geralmente era isso que acontecia. “Ele Chegava em casa e começava a tocar, fazer uma música. Caso alguém não gravasse naquela hora, ele dizia: “Se não pegou, já era”, conta Iberi Jussara Rosa da Silva , primeira mulher de Bedeu, com quem teve quatro filhos: Janaína, Ayuri, Gerusa e Thiago. Não se limitava apenas com um estilo musical. Autodidata, ia do samba ao blues sem qualquer dificuldade. E assim ficava madrugadas adentro tocando e compondo, muitas vezes sozinho. Sempre em função de shows e projetos, tinha momentos que nem dava tempo de se alimentar direito. Dedicava-se ao máximo no que queria fazer. A única coisa que o tirava da música era quando o Sport Clube Internacional, seu time do coração, entrava em campo. Carregava a ideia de que o Rio Grande do Sul tinha muita cultura, mas faltava união entre público e músicos. E foi a partir desse pensamento que o músico decidiu ir para

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São Paulo, na década de 1970, tentar ganhar seu espaço. Juntou alguns amigos que conheceu tocando na noite porto-alegrense e montaram a Pau Brasil. Foram dois discos lançados pela banda, o LP O Samba e suas Origens foi o mais vendido. Líder nato, não demorou muito para que Bedeu comandasse a banda. “ O cara não era autoritário, mas dedicado e bastante determinado. Traçava metas mesmo sabendo das dificuldades de ter saído do Sul para se manter no estado paulista”, diz Alexandre Rodrigues, músico e amigo de Bedeu. O crítico de música na época, Juarez Fonseca acredita que a música apresentada por Bedeu e seus parceiros era novidade. “A Pau Brasil apresentou um som diferente pra época. Algo que Jorge Ben fazia de forma semelhante, mas não era o mesmo balançado do violão” explica Juarez. Bedeu, Alexandre, Leco, Nego Luís, Cy e Leleco Telles dividiram um quarto por anos e emplacaram dois LPs. Com o passar do tempo, a saudade da família veio à tona e a banda se desfez. Bedeu resolveu seguir carreira solo. Registrou diversas músicas regravadas por Wilson Simonal, Os Originais do Samba, Neguinho da Beija-Flor, Bebeto, e Dhema entre outros. Mas, no início dos anos 80, teve que retornar a terra natal, pois o mercado do centro estava difícil e não se sentia bem de saúde. Sofria de diabetes e enfrentou problemas de coluna. Tinha um gênio tranquilo, porém não aceitava que falassem coisas erradas de seu lado

musical ou íntimo. Tanto que uma de suas características mais salientes era a de falar tudo o que tinha vontade. Chegava ao ponto de ir até a rádio esclarecer as coisas que a imprensa falava com equivoco. Dava mesmo a cara a tapa. Não tinha medo disso. Um fato marcante foi quando a crítica paulista afirmou que em 1983, o músico gaúcho seguia uma linha criada por Jorge Ben ao avaliar seu primeiro disco solo África no Fundo do Quintal. Bedeu, inconformado, um dia retrucou dizendo que Benjor não tinha a mesma “pegada” e seu estilo era mais suingado. Gostava da boêmia e estabeleceu fortes laços com o Carnaval de Porto Alegre. Foi jurado de desfiles, compositor de samba enredo, diretor de harmonia e fundador da escola Academia de Samba Integração da Areal da Baronesa, da qual integrou a diretoria e outros departamentos. Não hesitava em falar que, em sua opinião, o Carnaval gaúcho era melhor que o carioca. Dizia que o samba do sul tinha uma cadência melhor definida, mas ainda salientava a perda de identidade desse samba, lamentando a juventude que estava escutando muito o ritmo carnavalesco do Rio. Não tinha o mesmo sentimento de orgulho quando o assunto em pauta eram movimentos negros. Achava tudo aquilo algo radical de mais, pois não aprovava a pregação que faziam contra os brancos. Chamava as manifestações de hipócritas, contendo mensagens negativas. Na questão amorosa, Bedeu também aproveitou a vida para

CRÍTICO Juarez Fonseca foi referência da crítica cultural à época

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DISCOS Mais vendidos de Bedeu e da banda Pau Brasil encontrar paixões pelo caminho. Casou-se duas vezes e teve uma namorada em São Paulo. No total, foram sete filhos com as três. Quatro com Iberi, Cassiano com sua segunda mulher e Juliana com a namorada de São Paulo. Sempre gostou de ter o seu espaço, caso contrário o relacionamento se tornava conflitante. Como aconteceu em seu segundo casamento. Pai amoroso com os filhos, não gostava de dar bronca nos pequenos. Essa tarefa sempre passava para as mães. “O Bedeu sempre foi Preocupado com o futuro dos filhos, respeitava o ambiente familiar. Tanto que não fumava maconha, a droga que consumiu até seus últimos anos de vida, perto de mim e das crianças”, revela Iberi. Bedeu nunca exigiu que seus filhos fossem músicos, porém ficou faceiro quando, na creche, viu o caçula tocar no prato depois do almoço como se fosse um pandeiro. A diabetes foi o que realmente o enfraqueceu. Em 1988 voltou de São Paulo debilitado pela doença que, até então, nem sabia que tinha. Ficou recolhido por um período e voltou à mídia apenas em 1993, temporariamente recuperado, para lançar seu segundo disco, o CD Iluminado que resgata alguns de seus clássicos, como Sossega Leão, Tribo Guerreira e Saudades do Jackson do Pandeiro. Com a típica energia em cima do palco, Bedeu ainda conseguia agitar o público como em tempos mais antigos. Com seu retorno, começou a reconquistar o seu espaço no centro do país. Só que em 1998 Bedeu ficou fraco de novo, por conta da doença. Sendo assim, resolveu se instalar definitivamente em Porto Alegre. O fato de não poder viajar para São Paulo lhe causava angústia, pois considerava que o mercado

Realmente foi um espetáculo lindo e do tamanho da grandeza de Bedeu. Foi algo de emocionar o público. ALEXANDRE RODRIGUES, MÚSICO

musical do Rio Grande do Sul ainda permanecia muito fraco. Nessa mesma época lançou seu último trabalho, chamado Swing Popular Brasileiro, apoiado pela prefeitura. Tinha diversos planos para o futuro, mas o tempo não deixou concretizá-los. Seu último show aconteceu em julho de 1999, na cidade de Pelotas. Quando retornou do Interior, Bedeu teve mais uma forte crise ocasionada pela diabetes. Foi internado no dia 18 de julho. O meio musical de Porto Alegre se reuniu para realizar um show no auditório Araújo Viana, com a intenção de arrecadar fundos para seu tratamento. O espetáculo contou com a participação de artistas como seu ex-parceiro de Pau Brasil, Alexandre Rorigues, Gelson Oliveira, Wilson Nei e a banda de reggae Produto Nacional. “Realmente foi um espetáculo lindo, do tamanho da grandeza do Bedeu. Foi algo de emocionar o público presente no teatro.” Lembra Alexandre. Tarde demais. Bedeu faleceu no dia 5 de agosto, deixando na história uma obra de grandes sucessos como Menina Carolina e Kid Brilhantina. Construiu um repertório alegre e despojado, deixando saudades e inspirações para a MPB, sem mesmo ter o merecido reconhecimento nacional de seu trabalho. revista exp

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A CENA DOS

bastidores

Artistas e crĂ­tico de teatro refletem sobre as montagens da capital gaĂşcha

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JÚLIA SCHWARZ

O O LINGUICEIRO DA RUA DO ARVOREDO Um dos diversos projetos de Daniel Colin

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teatro porto-alegrense sobrevive fora dos holofotes da cultura de consumo massivo. Apesar das críticas que se possa fazer à qualidade artística dos produtos oriundos desta fábrica espetacular, estar à margem dela dificulta que as artes dramáticas se profissionalizem e atinjam seu clímax. “Vivemos em uma sociedade capitalista, portanto, os grupos precisam oferecer produtos que sejam constantemente consumidos”, sentencia o professor universitário, crítico e pesquisador de teatro Antônio Hohlfeldt. O fato de ser consumível, não é intrínsicamente ruim, nem é sinônimo de qualidade ou da falta dela. É garantia de que haja um público e atraia patrocinadores, avalia o crítico. Há poucas empresas interessadas em promover a cultura local. “O patrocinador daqui adora dizer que foi a um espetáculo no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília, Nova York ou Paris, mas, na hora de apoiar a cultura local, eles caem fora”, sentencia. Inês Marocco é professora do Departamento de Artes Dramáticas (DAD) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e diretora do Grupo Cerco. Apesar de crer que sua arte “não visa ao lucro, não visa ao comércio, nem ao enriquecimento”, tem certeza de que ela carece de mecenato para poder progredir. Dos diversos grupos atuantes na Capital, ela recorda apenas dois que recebem patrocínio constante, o Oigalê e a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, sendo que boa parte das verbas são públicas. Além de insuficientes, as leis de incentivo acabam, muitas vezes, destinadas às produções culturais de artistas já consagrados, que seriam realizadas independentemente de financiamento público direto ou de incentivo de patrocínio via isonerações tributárias. Hohlfeldt critica a concessão de benesses do gênero: “Eles fazem shows sempre lotados, não precisam disso. É claro que um espetáculo desses é mais caro, mas uma empresa não precisa do apoio do governo, que abre mão do dinheiro do imposto, pra fazer um investimento cultural que tem retorno garantido”. Ele compara

o financiador cultural brasileiro com o da Europa, “onde tem patrocínio de verdade, ninguém pede troco”, e com o futebol local, onde “a empresa cola seu nome no produto porque sabe que vai levar sua marca”. Para melhorar a distribuição da concessão de incentivos, sugere que os governos montem comissões diferentes sob a orientação de distintos critérios a cada ano. O pesquisador aponta mais razões para as dificuldades do teatro local em manter seus expoentes na região. Apesar da carência de verba que impede a maioria dos grupos de estarem constantemente entre ensaios e apresentações, ele crê que, se esses atores conseguissem ser absorvidos também pela publicidade, isso contribuiria para que não fosse necessário emigrar para as capitais do sudeste. O Grupo Cerco é um exemplo das dificuldades de se viver de teatro e manter um grupo produzindo constantemente em Porto Alegre, mesmo quando se conquista o reconhecimento. A turma de artistas criada dentro do DAD venceu do 7º Prêmio Braskem em Cena nas categorias de Melhor Direção, Melhor Atriz e Melhor Espetáculo na escolha popular do júri com Incidente em Antares. Mas a divisão do dinheiro arrecadado entre mais de uma dúzia de pessoas remunera escassamente a equipe. Celso Zanini, um dos atores da trupe, enumera os diferentes trabalhos com os quais se sustenta: direção de um grupo musical, edição de vídeos, composição para comerciais e shows de música. “São todas tarefas ligadas às artes. Não sou, ainda, ao menos (e se os deuses continuarem querendo não serei) do tipo que precisa trabalhar de caixa de banco para pagar as contas”, comenta. Júlio Zanotta, dramaturgo e um dos fundadores da Ói Nóis Aqui Traveiz em 1977, enxerga na reclamação de falta de incentivos públicos um subterfúgio para um certo amadorismo dos novos grupos. “O teatro porto-alegrense é mais amador hoje do que nos anos 1960. Tem menos mercado e fica dependente dos minguados subsídios governamentais”, afirma. Ele acredita que falta contato entre os produtores jovens e de gerações anteriores, que mantinham a peça por mais tempo em cartaz para poder

Nunca se vai ficar rico com este tipo de teatro e nem é nossa ideia. Mas, hoje, nem pra sobreviver. INÊS MAROCCO, diretora de teatro

pagar as despesas das montagens e lucrar com elas. Para mostrar a viabilidade dessa maneira menos acomodada de fazer teatro, cita Jair Andrade, que fazia peças ficarem um ano em cartaz entre o circuito de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul, além de levá-las a outros estados. O Teatro Sarcáustico, também surgido no DAD, vencedor do prêmio de Melhor Espetáculo pelo júri do Braskem deste ano por Breves entrevistas com homens hediondos, tem como protagonista de sua trajetória Daniel Colin. Diretor, dramaturgo, ator e produtor de peças, ele possui o perfil do moderno artista das artes cênicas conhecido como dramaturgista. Discorda que seja difícil viver somente de teatro, desde que o artista não se limite à atuação.“ Há outras possibilidades, como dar aulas, fazer produção de espetáculos, montar espetáculos para empresas”, aponta. Envolvido em quatro diferentes projetos no momento, nenhum com o Sarcáustico, ele ensaia para a nova temporada da peça O Linguiceiro da Rua do Arvoredo; dirige os ensaios do infantil Música de Imaginar, de um grupo de São Leopoldo, e ainda participa de dois espetáculos do Natal Luz de Gramado, um como diretor de cena e outro como ator, motivo pelo qual passará os meses de novembro e dezembro na cidade serrana. O trabalho desenvolvido por Colin com o Teatro Sarcáustico é um dos poucos, na visão de Hohlfeldt, que consegue desenvolver um projeto artístico, uma trajetória sólida, em meio às dificuldades de se conseguir patrocínio. “Ele está conseguindo, em primeiro lugar, fazer um trabalho de dramaturgia muito interessante e, por outro, conquistar um público que lhe é fiel”, aponta o revista exp

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MULTI-TAREFA Além de ator, Celso Zanini trabalha com música e edição de vídeos crítico. Para Hohlfeldt, o possível motivo do sucesso de público do dramaturgista reside na alternância entre “espetáculos grandiosos como foi aquele do Michael Jackson [Wonderland e o que Michael Jackson viu por lá] e outros mais de câmara, como foi o espetáculo premiado no ano passado [Breves entrevistas com homens hediondos], e volta a um grande espetáculo como foi esse agora dos crimes da rua do Arvoredo”.

Exegese e dramaturgia

Colin nega que essa alternância entre espetáculos de grandes produções e outras mais enxutas seja proposital, mas a tradução das vontades de criação e experimentação do grupo. “Em Wonderland, senti a necessidade de montar num espaço grande, diferenciado. Em Breves Entrevistas queríamos fazer uma coisa mais minimalista”, explica. Desde o seu nascimento, há nove anos, o grupo faz experiências dramáticas, com montagens para não-palcos, como um quarto da casa do estudante, e novas apropriações de linguagens oriundas de outras artes. Inês vê a cena do teatro de Porto Alegre representar um “leque bem amplo de tipos de trabalho, de escolhas de textos. Vai desde a dramaturgia do ator, dessas pesquisas mais laboratoriais até o texto mais clássico, mais formatado, com uma estética desde a clássica até a mais arrojada”. Fala do circo-teatro, conduzido por Dilmar Messias no Circo Teatro

Girassol, do teatro performático. “Há uma busca também por lugares diferentes – como fez a Adriana da Cia. Stravaganza com o cenotécnico –, por poéticas espaciais diferentes da normal, da esperada do palco italiano.” Colin assiste ao mesmo multipalco em Porto Alegre, criado devido ao surgimento de grupos e coletivos. “Isso traz um frescor para a produção gaúcha, dá uma renovada no que temos na cena do teatro da cidade, com coisas diferentes, em termos de experimentação mesmo”, afirma. As inovações desenvolvidas apesar das dificuldades e a dramaturgia original (tanto novas histórias quanto novas formas narrativas) são os fatores que levam o público ao teatro, na opinião de Colin. Ele acredita que, mesmo não sendo uma proposta desenvolvida apenas por seu grupo, é o que atrai seus espectadores. A diretora do Cerco acredita que o diferencial deste é sua forma de produzir os espetáculos. “O fato de ser um projeto colaborativo autoral salta aos olhos. Todos os envolvidos são autores do espetáculo, não cheguei com um mapa pronto da peça. O espetáculo é nosso”. Apesar de partilhar da mesma crença de Colin quanto à relevância do texto no processo, ela opta por adaptações literárias, como fez seu grupo com O Sobrado e Incidente em Antares, ambas inspiradas na obra de Erico Verissimo. Ela justifica a escolha dizendo que a literatura é uma fonte que “dá mais material para desenvolver e

concretizar o imaginário do que o texto dramático”. Com uma postura mais crítica, Zanotta percebe em comum nas sortidas linhas dramatúrgicas dos palcos da Capital, especialmente entre os grupos jovens, um descaso com o texto teatral. “Há uma série de desprezos com o texto que tem levado a espetáculos horríveis, dramaturgias incompletas, mal elaboradas, argumentos confusos”, condena. Reclama ainda da falta de textos que reflitam politicamente a realidade ou interfiram sobre ela. Faz, porém uma concessão aos jovens grupos, ao reconhecer que apesar da pressa com a

qual “pulam de um espetáculo a outro”, conseguem produzir peças visualmente atrativas. O atual momento da dramaturgia porto-alegrense é um blackout na tradição gaúcha, que ostenta grandes nomes como Simões Lopes Neto, Qorpo Santo e Ivo Bender. Zanotta tenta como pode acender as luzes de um novo ato para o texto dramático, embora talvez se enquadre melhor no anterior ao atual hiato. Depois de quase quinze anos afastado das coxias, regressou a elas no início dos anos 2000 e produz no momento um espetáculo sobre a travesti Luiza Felpuda, supostamente assassinada por um amante, e aquele que chama de ópera, uma peça sobre “a morte de Che Guevara e sua ressureição como santo na Bolívia”, Don Ernesto de la Higuera. Hohlfeldt aponta ainda outros destaques, como Sérgio Ilha e Ronald Radde. “Depois disso você não tem muita coisa [em termos de dramaturgia]. Tem os criadores, como os do Falus e Stercus, mas eu não diria que são dramaturgos stricto sensu. Eu diria que são sobretudo grandes realizadores, dramaturgistas”, define.

SAN ERNESTO DE LA HIGUERA Leitura dramática do espetáculo de Zanotta

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eCrônica A BOLA DA VEZ Investidores do mercado artístico no país do futebol arte

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THAMYS TRINDADE

teoria de que o dinheiro investido anteriormente no mercado da arte migrou para o esporte é suposta em uma passagem de Animais, conto do escritor e jornalista gaúcho Michel Laub. Para ele, milionários preferiram apostar nos passes dos jogadores do que investir na comercialização das obras. Li e reli aquele curto e intrigante parágrafo que fugia um pouco do meu conhecimento do segmento artístico, mas implicava na minha realidade como idealizadora de uma mudança cultural. Com pesar, engoli aquelas linhas e logo relacionei com o que é nos enfiado goela abaixo diariamente: Brasil é o país do futebol. Futebol arte. Será que foi a partir daí que se deu tal confusão e dubiedade de significados? No momento em que um investidor, que antes rumava em alcançar cifras e supervalorizar trabalhos como Retrato do Doutor Gachet, de Van Gogh (arrematado por 80 milhões de dólares, em 1990), acredita em uma profissão que se aposenta da atividade

quando o profissional começa a beirar os 30, é de se pensar. Trocar ou simplesmente anular o futuro de artistas atemporais por “neymares” e “ronaldinhos” que são fabricados aos milhares e diariamente nos campos de várzea. É de se pensar. E não é uma discussão que desmereça o futebol. Longe disso. Sou praticante e amante do jogar bola. O fato é que a objeção dessa prática como um símbolo cultural imenso que ofusca a subjetividade artística acaba por afastar visionários que hoje procuram o imediatismo do retorno do capital investido e não uma compra que responde a longo prazo. Apesar de as estatísticas comprovarem um crescimento significante no investimento no circuito artístico do país, vivemos um momento de formação de público do mercado de arte, não de consolidação, apesar de ser essa a aparência. A brecha agora é aproveitar esse período para buscar uma renovação das investidas milionárias e não deixar as obras de arte no banco de reservas.

MUITOS TONS DE CINZA Literatura erótica e sexo na lista de tarefas diárias

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E

SHAYSI MELATE

m uma tradicional manhã de aula, surge da mochila de uma colega o livro Cinquenta Tons de Cinza. Meus neurônios fazem as devidas conexões e paro tudo o que estou fazendo para perguntar se ela o havia comprado. Sabe aquele ponto de interrogação seguido de um ponto de exclamação, que são usados no meio virtual, mas não fazem sentido algum na gramática? Pois eles resumem a sensação que tive naquele momento. “Tu comprou?!” Começo a rir sozinha só de lembrar da minha reação. Tive que engolir aquele “Me empresta quando tu acabar de ler?!”. Ainda bem. Não falei mais nada. Ufa! A reação que tive faz parte da influência momentânea que a propaganda do best-seller causou em muitas mulheres. A sinopse não me agradou. Rola um sadomasoquismo que não me atrai. Uma jornalista de 21 anos que se torna escrava sexual de um magnata, não sei não. A ideia não elevou meu estrogênio. Já se fosse a trajetória de uma linda estudante que agarra o professor de Educação Física na academia, aí sim!

Brincadeiras à parte, andamos virados em sexo. Nas novelas, sexo. Nos filmes, sexo. Nos seriados, sexo. Nos livros, sexo. Nas conversas entre amigos, sexo. Tenho minhas dúvidas se esse tipo de relação com outro indivíduo é tão essencial para nós. Já conversei com muitas pessoas e descobri que uma quantidade bem elevada de homens e mulheres sequer consegue dominar o próprio desejo. Parece um tanto animalesca essa enxurrada de hormônios. Uma figura muito estranha, mas divertida, que produz vídeos de sucesso no Youtube é Paulo César Siqueira. Ele inventou um termo que adoro, o nerdiossexualismo, que classifica aqueles que evitam sexo. Também não precisa exagerar. Confesso que prefiro quando o sexo é eventual. Sinto falta de sentir vontade. Sexo está tão corriqueiro, escrito na lista de coisas para fazer, que perde a graça quando se torna tarefa do dia a dia do casal. Porém, se eu disser em voz alta que estou achando muito chata a maneira como minha geração lida com isso, é capaz de ser expulsa do círculo de amizades. Na dúvida, melhor entrar na fila para pedir emprestado aquele livro da colega. revista exp

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MÚSICA

Indie POA

Experimentais, barulhentas, com ou sem vocais, banda completa ou só guitarra e bateria, muita distorção e puramente independentes

LIEGE FERREIRA

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ara descobrir o que as bandas independentes de Porto Alegre estão fazendo e o que acontece no movimento underground – e não cena, como sugeriu Liege Milk –, três power bandas que esbanjam distorção, microfonia, experimentalismo e até hipnose, contaram sobre suas investidas no mundo independente. Badhoneys, Medialunas e Dévil Évil. Se você faz parte da juventude órfã das bandas dos anos 1990 e não conhece esse pessoal, deveria conhecer, pelo menos se você diz que gosta de música boa. Em comum, além de todas as bandas serem daqui, elas fazem um som sincero e despretensioso, cheio de influências barulhentas, principalmente da década passada, do movimento Do it yourself, e, no caso da Dévil, do No Wave nova-iorquino. Outro dado importante é que três mulheres botam ordem na casa, no estúdio, no caso, e somam às bandas toda a delicadeza sem frescura que somente o modáfucka rock´n roll pode nos proporcionar. Ensaio da Badhoneys, duas horas de pura distorção. Como quem não quer nada o trio empunhou seus instrumentos e mostrou que é filho do Nirvana – Cobain certamente estava ali do ladinho ouvindo Giana Cognato (vocal e guitarra), uma Cat Power grunge quebrar tudo, junto com Rodrigo Souto

no baixo e Diego Maraschin na bateria e backing vocals. Durante o ensaio provavelmente fazia 40°C lá dentro e eles pararam de tocar uma vez apenas para Giana fumar um cigarro. Formada em 2009, a Badhoneys já fez shows nos festivais Grito Rock de Sorocaba/SP, GIG Rock de Porto Alegre, Roque e Pense do Rio de Janeiro, em Santa Catarina no Circuito Fora do Eixo e até uma mini turnê na Argentina, sem falar nos shows pelo interior do Rio Grande do Sul. No final do segundo semestre de 2012, a banda tocou no Morrostock, festival que reúne o biscoito fino da cena independente nacional e que acontece no estado na cidade de Sapiranga desde 2007. Somente nessa edição o Morrostock contou com mais de 1,3 mil pessoas. O trio tem 11 músicas gravadas, distribuídas em dois EPs, Restart to fail again, de 2010, e Harder, de 2011, além de fazer parte da coletânea Marlindo, lançada pelo selo indie carioca

Transfusão Noise Records, com uma faixa nova chamada Never Knew. “Estamos compondo mais cinco músicas novas agora pra tentar gravar mais um EP ou ainda um disco full, ainda não decidimos, mas as ideias estão pipocando”, conta Giana. A Medialunas é a dupla de ouro do alternativo nacional, composta por Andrio Maquenzi, vocalista e guitarrista da já extinta Superguidis, e a baterista Liege Milk – também baixo e vocal da Loomer e batera da Hangovers (isso mesmo, e além de ela dar conta de três bandas, ensaios e shows , Liege também tem um emprego em que precisa bater cartão!). O casal faz um som carregado de influências noventonas, com guitarras distorcidas, baterias pulsantes e vocais harmônicos. Ano passado o duo resolveu gravar em casa dois despretensiosos singles, Humming e Colorful, lançados logo em seguida pelo selo Trama Virtual. Os milhares de downloads deixaram a

Medialunas em primeiro lugar no Top 10 da Trama nos dias seguintes ao lançamento, o que motivou o casal, logo em seguida, a gravar e lançar mais dois singles Slo-Mo Dancer e Chunby. Desde então, shows, turnês e videoclipe – que obteve mais de 600 views no Vimeo somente no primeiro dia. Eles já tocaram no palco do Opinião, nos festivais independentes Macondo Circus e Pampastock e também no Festival Contrapedal em Montevidéu, no Uruguai. O currículo de shows da dupla é grande, somente de fevereiro a março de 2012 a banda já circulou pelos três estados do sul do país e São Paulo, fazendo 15 shows, sendo destes, nove Gritos Rock. Eles recém finalizaram seu primeiro filho, Intropologia, gravado de maneira bem caseira em meio aos gatinhos dos dois em casa. A versão física do disco tem lançamento previsto para o final do ano e será feita em parceria com um combo de selos

ENSAIO Giana Cognato no Estúdio Dub, local que concentra grande parte dos ensaios das novas bandas em Porto Alegre

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BADHONEYS Rodrigo Souto, Giana Cognato e Diego Maraschin independentes mas a versão virtual já está disponível para download no Trama Virtual. As outras duas bandas da Liege angariam fãs há tempos e já rodaram bastante em turnês. A Loomer têm dois EPs gravados e em breve pretende lançar seu primeiro disco que já está na fase final. Sobre a produção, Liege comentou: “Eu ultimamente tenho ido pouco às sessões de mixagem. Mas toda vez que chego lá, penso, CACETA! Eu sempre quis fazer um som assim! E ao mesmo tempo é a gente, sabe? Fico emocionada. É bem doido”. A outra banda da Liege é a Hangovers. O primeiro EP deles intitulado Bebendo Socialmente, permaneceu por duas semanas seguidas no topo das mais ouvidas no Trama Virtual em 2011. A banda foi recomendada pela Revista Rolling Stone brasileira no mês de abril do mesmo ano, e citada na Revista Billboard Brasil, na matéria Os 20 anos da Revolução Grunge. Os planos de Liege e de suas três bandas são continuar fazendo música, gravar discos, viajar, compor, fazer shows e se divertir. Não é só fazer música, mas vivê-la. Punk minimalista, rock experimental de vanguarda ou até mesmo conceituais. Hipnótica e bem humorada a Dévil Évil existe desde 2011 e faz um som compulsivo e cheio de microfonias. Os mantras, digo, as letras ficam na cabeça durante dias. O trio é formado por Luiz Bruno ou Lule (guitarra e vocal), Gabriella Tachini (bateria) e Cadu Peixoto (baixo), que tentaram durante alguns segundos posar sérios para a foto mas não deu certo porque, segundo a Gabriella, eles são uma banda muito feliz! O primeiro disco, Sorte foi lançado no ano passado e já angariou diversos fãs e atenção para a banda que, desde então, está sendo super elogiada. A Intro do disco mostra a que veio

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a Dévil, dois minutos em que é impossível ficar sem se balançar. Eu Não Acredito Em Nada repete o título do começo ao fim, a letra de Quem Sou Eu diz: “Não é fácil ser alguém como eu, se nem eu sei quem sou eu”. Das músicas, já tem uma que virou hino. “Eu sempre me frustro, eu me decepciono, que independente de quem ouve se identifica.” Durante o show, quando eles tocam Pega no Monstrão, todo mundo canta junto. O bacana é que as letras, o disco, os shows e a banda são aquilo mesmo que elas cantam. são tranquilos, de boa e alegres e o clima dos shows é assim também – os três inquietos arrebentam tudo e no final te deixam em uma minicrise existencial (como comentou Liege Milk em uma resenha sobre a banda no site Remix). Sobre as letras e a composição das músicas, a Gabriella disse que é tudo feito de forma coletiva: “Elas surgem de experiências vividas, de histórias que ouvimos, de algo que lemos, de alguma frase curiosa, de fenômenos astrológicos, e claro, das profundezas do nosso ser. Muitas vezes a frase já vem em um som demo, gravado pelo Lule ou o Cadu em casa, que depois a gente vai trabalhando em cima. Às vezes ela surge no ensaio mesmo. E todos colaboramos”. Agora, no final de 2012, eles irão lançar seu segundo disco, então fiquem atentos porque vem mais coisa boa por aí. Além das histórias, influências, planos e de como eles se divertem tocando juntos, as bandas contaram sobre como é ser independente hoje. “É tudo do it yourself. É aquela coisa: você mesmo imprime as capinhas, pega na gráfica, recorta, grava as faixas no CD, testa, esquece de testar... Bem como fazer as camisetas da banda, adesivos, blábláblá, a gente mesmo faz tudo. Quando dá”, completa Liege. Ou seja, sai tudo do bolso das bandas, pagar

estúdio, gravar, trasporte etc., e o que eles ganham nos shows reinvestem nas bandas. Segundo a baterista, Porto Alegre é uma cidade bem fria, como toda capital, mas que, aos poucos, eles foram descobrindo como fazer as coisas acontecerem. Ela conta que não adianta, por exemplo, organizar um show por mês em locais que só liberam dias de semana pra tocar, e tarde: “Quem mais vai se foder é você mesmo, que vai chegar no outro dia, no trabalho, de ressaca, cansado, não render e perigando perder o emprego que paga sua vida e seus ensaios e viagens com a banda”, salienta Liege. Ela conta que o negócio é ser menos afobado e ficar atento a tudo que acontece. “Esses tempos a Medialunas tocou no projeto Quindim da Quintana, na Casa de Cultura Mario Quintana, durante o horário de almoço, e deu super certo.” Outro local que abre espaço para as bandas independentes em Porto Alegre é o Beco 203 e o Entre Bar.

Giana também comentou sobre a dificuldade que ainda existe para fazer shows em Porto Alegre. “O que eu venho observando é que nenhum lugar dura muito tempo, com exceção do Garagem Hermética”. Para a Badhoneys a parceria entre as bandas é uma das melhores coisas do underground: “Tem muita gente se ajudando e isso dá força para as bandas continuarem”, conta a vocalista. Outra coisa que faz totalmente parte do independente é disponibilizar os sons gratuitamente. A internet, as facilidades de acesso, o compartilhamento de informações e todas as maravilhas da web vêm a calhar e também abrem espaço para um contato próximo e direto com quem curte as bandas, sem frescura. E, além de tudo, de fazer um som totalmente autoral, do fundo do peito mesmo. Eles são bacanas, sem pretensões de dominar o mundo, apenas de se divertir. Escute.

MEDIALUNAS Andrio Maquenzi e Liege Milk formam o duo

DÉVIL ÉVIL O trio é Gabriella Tachini, Luiz Bruno e Cadu Peixoto revista exp

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PRODUÇÃO Máquinas aumentam o potencial produtivo das fábricas e colocam o Brasil em destaque na confecção de têxteis

A TENDÊNCIA NÃO É

gaúcha

Os mercados de confecção e varejo de moda geram US$ 67 bilhões por ano e mesmo assim a indústria do Rio Grande do Sul está desaparecendo CAROLINE ZANINI

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ndia. Bangladesh. Vietnã. China. Culturas distantes dos costumes ocidentais, mas que conseguem assimilar de forma eficaz – e barata, os anseios consumistas locais. As araras estão recheadas de roupas ao estilo brasileiro, mas confeccionadas por mãos longínquas. Somente a cadeia têxtil e a confecção nacional arrecadaram no último ano

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cerca de US$ 67 bilhões. As cifras comprovam que a moda não é apenas tendência, mas negócio que gera lucro. Ainda assim, há uma indústria à beira da extinção engessada com processos burocráticos, imóvel pelos impostos, quase inexistente pela falta de mão de obra. É a confecção gaúcha fora de moda.

Números expressivos O quarto maior parque produtivo de confecção do mundo tem 1,7 milhão de pessoas diretamente empregadas,

8 milhões de atividades indiretas e 200 anos de história; somatório expressivo para um mercado ameaçado. A Associação Brasileira da Indústria Têxtil e da Confecção (ABIT) divulga números animadores, mas que poderiam ser ainda mais positivos se os produtos importados do Oriente não estivessem disputando os armários dos brasileiros. Na tentativa de minimizar o crescimento freado, a ABIT entrou com um pedido de salvaguarda para o setor de confecções.

Eriberto Fardo, proprietário da empresa Baduchi, confecção que fornece para grandes magazines, não acredita que o posicionamento da ABIT irá brecar a entrada incisiva dos artigos asiáticos, já que a própria indústria nacional não conseguiria suprir a demanda de solicitações pela falta de profissionais: “Não temos mão de obra para suprir os importados, nem em quantidade e nem em qualidade”. Peças mais bem acabadas e com acabamentos superiores fizeram com que a

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empresa diminuísse o número de vendas consideravelmente. A Baduchi tem uma capacidade produtiva de 190mil peças/mês, mas pela falta de costureiras este número cai para 100mil peças/mês e mais, com a impossibilidade de competir com os preços do Exterior, acaba vendendo em média 70 mil peças/mês. A ABIT reconhece o momento caótico pelo qual a indústria da confecção está sujeita, assim o pedido de proteção para 60 produtos foi uma tentativa de minimizar tal impacto. Mas para conseguir a aprovação do governo, ainda é necessário comprovar a ocorrência de um surto de importação que tenha acarretado em grave prejuízo para os fabricantes nacionais. Enquanto a ABIT estuda medidas protecionistas, a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex) não acredita que a participação dos produtos importados representa uma invasão. A entidade contabiliza que apenas cerca de 10% dos artigos são provenientes da importação e ainda alega que este baixo percentual é resultado da valorização da

indústria brasileira por parte dos varejistas. A entidade acredita que o segmento de confecção nacional deverá fechar o faturamento anual com alta de 12,4%. A previsão otimista e a defesa dos produtos importados se justificam: a Abvtex está atrelada aos varejistas e, para os mesmos, é interessante manter a alta taxa de importação, já que o valor pago aos produtos estrangeiros é drasticamente menor. Além disso, a instituição criou uma certificação para validar a qualidade de todo o segmento têxtil, até mesmo as pequenas facções com cinco costureiras vão precisar apresentar o selo da Abvtex, caso contrário serão barradas. Para conseguir este certificado, é necessário pagar vários tributos, o que diminuiu o número de fornecedores formais e informais e possibilita que mais produtos sejam importados do oriente, ainda que eles não apresentem nenhum selo de qualidade e boas condições de trabalho.

Indústria em declínio O empresário gaúcho Eriberto Fardo ingressou no ramo da

Estamos há seis meses no vermelho. Não sei se é má administração. LENI DE LIMA, confeccionista

confecção há 25 anos, desde então presenciou a desaceleração da indústria têxtil no Estado. Entre os motivos mais evidentes para a dificuldade dos fabricantes em se estabelecerem no Rio Grande do Sul está o alto valor do ICMS, que diminui a possibilidade de competir com regiões do Norte e de Santa Catarina – que recebem maiores incentivos fiscais por parte dos governos locais. Fardo também aponta que muitas empresas, na ânsia de atender aos preços que o cliente deseja pagar, acabam por diminuir a margem de lucro, a fim de fazer frente aos produtos importados, e acabam não resistindo.

Mesmo que os varejistas diminuam a compra de peças no exterior, Fardo ainda enfrenta o problema da falta de mão de obra qualificada. “Por trás de uma máquina precisa haver uma costureira”, enfatiza, revelando o quanto de artesanal ainda há na fabricação. A Baduchi trabalha com mão de obra terceirizada, na fábrica são cortadas as peças e distribuídas a empresas terceirizadas que são pagam para fechar as roupas. Leni de Lima é proprietária de uma destas facções. Ela trabalha nove horas por dia em um prédio alugado no Centro de Alvorada. As condições de higiene e segurança no trabalho, ainda que o local seja simples e pequeno, estão aprovadas pela Abvtex. Leni conseguiu o selo de aprovação, mas não sabe nem dizer quanto gastou para fazer o processo, já que o pagador de todo a fiscalização foi o próprio cliente Baduchi. “Estamos há seis meses no vermelho”, lamenta Leni, que mal consegue pagar as contas adquiridas com a abertura do negócio, aberto há quatro anos e ainda com dívidas, e que teria menos condições ainda de investir em certificações.

FACÇÕES falta de mão de obra especializada e aumento nos salários dificultam a sobrevivência de confecções como a de Leni revista exp p28,29,30.indd 3

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A faccionista lamenta a má sorte. Com fala calma, sorriso fácil, ela se pergunta - “Não sei se é a má administração, meu marido acha que são os preços baixos que cobramos”. Hoje, uma costureira da Leni ganha R$ 800 e mais um bônus por assiduidade de R$ 100, que nunca foi ganho, pois faltar ao serviço é uma prática quase habitual neste ramo. Só no dia da entrevista faltaram três das 12 funcionárias que trabalham no local. Leni nem pensa nos produtos importados, para ela o drama real é o vivido diariamente – mão de obra desqualificada e preços baixos. Em quatro anos, esta facção já teve mais de cem costureiras, a maioria não sabia usar a máquina de costura. Leni ensinou, apostou no funcionário, e 80% das que aprenderam com ela foram embora e montaram sua própria facção de costura. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Vestuário do RS, Almir D’Avila Pereira, argumenta que a mão de obra não é especializada porque ninguém mais deseja seguir a profissão de costureira. Ele estima que o número de associados ao sindicato diminuiu 60% em cinco anos, em decorrência da mudança de fábricas para outros Estados com maiores incentivos ou da quebra de empresas que não conseguiram fazer frente aos produtos importados. Pereira lembra que fábricas antes com 4mil funcioários, hoje possuem no máximo 140 pessoas trabalhando, pois deixaram de produzir peças prontas para apenas trocar etiquetas e botões de roupas produzidas no exterior. A criação na crise A briga por preços competitivos e peças bem acabadas inicia-se logo no nascimento da criação. Tecidos caros, com qualidade e preço superior, não entram na sala da coordenadora de estilo Janaína Turatti, que há quatro anos trabalha no ramo têxtil. Neste período, a designer descobriu que a realidade do desenvolvimento de produto é muito mais matemática do que glamorosa. A conversa com Janaína começa; e o telefone toca, uma, duas, três vezes - são colegas de trabalho, fornecedores de tecido, clientes acertando prazos de entrega e preços. Os croquis, os lápis coloridos estão cada vez

mais obsoletos. “40% do trabalho é desenvolvimento e pesquisa, os outros 80% são atendimento ao cliente, retrabalho de peças e solução de problemas”, revela a designer, descortinando o imaginário que cerca a profissão. Cabelos coloridos, roupas diferentes, tatuagens e piercings dão lugar a uma figura romântica e neutra, o lápis de desenho é substituído pela calculadora e o computador ganha o status máximo. Janaína acredita que muitos desconhecem a realidade do desenvolvimento de produto e por isso o mercado carece de mão de obra especializada para a função de modelista, costureira, já que o foco das pessoas é na criação da marca própria. Janaína faz parte de uma nova geração de estilistas, os designers por formação acadêmica. No currículo da coordenadora de produto, consta curso técnico do Senai, graduação na Feevale e pós-graduação na Unisinos, isto porque ela acredita na constante transformação do mercado e que um bom profissional necessita aliar o conhecimento teórico ao técnico. Ainda assim, admite que muitas pessoas tendem a negligenciar os recém-formados, pois ainda estão presos a um cenário retrógado. A ABIT contabiliza que, em todo o Brasil, já existem mais de cem cursos de graduação de moda, além de especializações e mestrados. O cenário de moda do Estado ainda é muito conservador, e as ofertas para esta área são escassas, ainda mais se comparados a São Paulo e Santa Catarina, onde chega a sobrar ofertar de emprego para funções como de modelista. “A dificuldade é ingressar no mercado”, pondera Janaína, que acredita que além de um bom currículo é preciso de contatos e experiência com estágios dentro da indústria têxtil para conseguir emprego no meio. Mesmo enfrentando preconceitos — o que mais odeia é quando alguém lhe pede para fazer reformas em roupas —, a estilista acredita no potencial da profissão e na possibilidade de crescimento da indústria no Estado. E ainda aconselha aos futuros estilistas a buscarem, além de formação acadêmica, uma experiência em chão de fábrica. “O conhecimento de toda a cadeia produtiva ajuda até mesmo na hora de negociar os preços com o cliente”, comenta a designer de moda.

ESTILISTAS Janaína equaciona custo e orçamento compatível

75% 67 dão mão de obra é bilhões de dólares é a feminina

1,7 milhão de pessoas

arrecadação do setor em 2012 empregadas no ramo

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COM O CINTO

apertado

Conciliação é alternativa para quem está com a vida financeira atrapalhada JOSÉ LUIZ DALCHIAVON

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prédio de número 1945 na avenida Borges de Medeiros parece ser mais um típico daquela área, conhecida pelas construções que abrigam diversos órgãos do governo estadual. Todas parecem iguais, altas obras da engenharia, algumas com aparência mais antiga do que outras, mas em essência, todas têm o mesmo aspecto sério que se espera de algo relacionado ao governo. Quem visita o oitavo andar do prédio 1945, onde se localiza o Instituto de Previdência do Estado sabe o porquê de estar lá. É nesse andar que são firmados acordos que, para muitas dessas pessoas, significam uma chance de organizar a vida financeira. A sala 802 parece um tanto mal-cuidada. Na porta, um aviso de “Entre sem bater”, ignorado pela maioria dos que esperam do lado de fora e que sempre dão duas batidinhas antes de adentrar. Nas prateleiras de ferro encostadas nas paredes, centenas de pastas e milhares de páginas, cada uma com detalhes do porquê de seu dono estar visitando o lugar. Essa é a sala da Junta de Conciliação do Tribunal de Justiça do Estado. Quase todos os que se dirigem ao local têm algo a pagar (ou a receber). Em muitos casos, a conciliação é o único jeito de o devedor conseguir saldar suas dívidas. O fenômeno é chamado por especialistas de superendividamento. A pessoa que se encaixa nessa descrição tem perfil diferente do devedor comum. Como o próprio nome diz, o super-endividado tem uma dívida a pagar muitas vezes maior do que a sua capacidade financeira aguenta. Na definição do economista Alfredo Meneghetti, uma pessoa super-endividada é aquela

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que, após pagar as prestações mensais de suas compras, não consegue ter dinheiro para adquirir necessidades básicas do ser humano, como alimentação e cuidados com a saúde. Desde 2007, o tribunal conta com um programa voltado especialmente para quem está nessa situação. Através de um cadastro, existe a possibilidade de a pessoa se aproximar do credor, a fim de renegociar suas dívidas. Na análise de Meneghetti, o resultado é satisfatório. “Muitas dessas dívidas acabam sendo reduzidas entre 85% e 90% do valor original.” Nos cinco anos do projeto, mais de 3 mil conciliações foram realizadas. Para somas menores, aquelas que não chegam a atrapalhar a vida da pessoa (ou o fluxo de caixa das empresas), as negociações acontecem rapidamente. Dentro de um dos vários cubículos do lugar, sentam-se o devedor e seu advogado, um conciliador com um auxiliar e o representante da empresa credora. Em algumas ocasiões, pode-se encontrar algum especialista em finanças, como Meneghetti, que se voluntariou para ajudar a organizar a vida financeira da pessoa. A empresa que tem algo a receber oferece uma proposta, e o devedor a analisa com o advogado. Em casos de somas que comprometam a vida do devedor, uma audiência é marcada para resolver o problema, mas esses são casos excepcionais. Normalmente, meia hora de conversa é o necessário para diminuir bastante a dívida. Os super-endividados não diferem muito do devedor comum. A situação financeira deles tem pontos semelhantes. O principal vilão é o parcelamento. Compra-se algo em centenas de suaves prestações e, no dia seguinte, faz-se a mesma coisa

DINHEIRO 30% da população brasileira tem dívidas impagáveis com outros produtos. Isso age como uma bola de neve, e quando a pessoa se dá conta, não tem mais capacidade de honrar as dívidas. O segundo motivo de uma pessoa se endividar não tem nada a ver com o consumismo. Os imprevistos também podem ser responsáveis por destruir a vida financeira das pessoas: problemas de saúde são as queixas mais comuns, assim como desemprego. E existem também os temíveis empréstimos, principalmente os pessoais, aqueles feitos de amigo para amigo. Mesmo uma pessoa com uma vida econômica equilibrada pode se ver em uma dessas situações e, dependendo das somas envolvidas, se complica. Hoje, Meneghetti estima que aproximadamente 60% da população brasileira tenha algum tipo de dívida. Desses, 30% caem na categoria de dívidas impagáveis. São quase 36 milhões de pessoas com contas muito acima do que o orçamento permite. Por mais que pareça estranho, ter uma população com dívidas

não é algo ruim para o país. Para o cidadão comum, existem três tipos de endividamentos “do bem”: dívidas contraídas para a compra da casa própria, as que surgem graças ao investimento na educação, e as firmadas quando se começa um empreendimento próprio. Essas são as dívidas justificáveis, que, em longo prazo, ajudam a se pagar, seja através de uma formação melhor (e portanto, melhores salários) seja através do lucro obtido pela nova empresa. É esse o caso do empresário Carlos Alberto Minozzo, proprietário de uma fábrica de urnas funerárias. Com o empreendimento funcionando há mais de um ano, investiu aproximadamente R$ 1 milhão. Esse valor teve um financiamento de 70%. Para Minozzo, o grande problema é a inadimplência. A falta de pagamento por parte dos clientes já leva o empresário a negociar as dívidas. Afinal, receber um pouco é melhor do que não receber nada. E é justamente este o papel da conciliação. revista exp

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O EXCLUSIVO

nos pés Únicos na concepção e na execução, o sapato deixa de ser um objeto convencional e torna-se uma obra de arte MANOELA RIBAS

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or, forma e experimentação. Em meio aos pares de sapatos iguais circulando dentro do mercado, há mulheres que optam pela exclusividade. Eles não acompanham as tendências da moda, assumem características próprias e ganham destaque na multidão. Diferente do sapato comum, o artesanal é feito a mão, um a um, e não leva o procedimento de maquinários. Os modelos são únicos e exclusivos, diminuindo o risco de encontrar outros iguais ao seu. Por isso, a sua venda tem crescido cada vez mais no mercado brasileiro. Essas obras de arte não surpreenderiam se, por trás, estilistas não dedicassem tempo e inspiração para tornar mais fascinante o objeto que seduz o sexo feminino. A jovem Pam Magpali é um destes profissionais. Aos 24 anos, ela encontrou satisfação em enfeitar os pés das mulheres. Pam nasceu e se formou em moda em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Durante a faculdade, o desejo de criar sapatos despertou. A falta de profissionais focados neste segmento foi determinante para que a jovem investisse na área. A sua primeira criação apareceu em um desfile futurista que as alunas do curso tiveram que criar. “Fiz uma bota que era metade preta, metade dourada. As pessoas adoraram, já queriam encomendar. Até o dono de uma fábrica perguntou se eu queria criar uma coleção. Foi aí que

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eu percebi como o mercado calçadista estava carente em Mato Grosso”, relembra. A estilista passou por São Paulo, Santa Catarina e Igrejinha, mas é em Novo Hamburgo que vive atualmente. Após trabalhar em fábricas na cidade, Pam Magpali sentiu falta de inserir arte no seu cotidiano. “Eu pensei: será que somente eu gosto de sapatos diferentes? Fiz um projeto para abrir a minha empresa e resolvi largar tudo, fazer o que eu gosto. Se tiver dez pessoas que gostem do meu trabalho, essas dez terão onde comprar daqui pra frente”, explica. É em um apartamento no centro da capital do calçado que a estilista cria juntamente com os clientes, de forma colaborativa, os mais diferentes pares da marca MAG-P. “A ideia é que as pessoas criem. Não quis ter uma marca apenas para que vejam os meus sapatos, mas para, junto de meus clientes, bolarmos algum modelo, uma nova combinação de cores”, diz. São botas e mocassins coloridos e estampados que revelam um novo olhar para vestir os pés. Entre as estampas, uma floreada com tecido de sofá e outra com galinhas. Parece estranho, mas muita gente aderiu à proposta. Uma mesa de madeira bagunçada e cheia de materiais, uma máquina de escrever no chão em frente a uma janela iluminada pelo sol e um varal com as fotos do primeiro catálogo da marca penduradas no teto. No atelier dentro de sua casa, torna-se perceptível a mistura entre artesanato e profissionalismo de quem busca

SATISFAÇÃO Criativa, Pam Magpali aposta na mistura de estilos explorar um novo caminho dentro do mundo da moda. Os mocassins custam, em média, R$ 220, e as botas, R$ 250. O preço ainda é considerado salgado para algumas pessoas que desconhecem o processo de criação. Segurando um molde na mão, Pam mostrou passo a

passo como é feita a modelagem: primeiro o projeto é desenhado em um papel, depois, um molde tamanho 35 é revestido com fita crepe grossa, chamado de técnica de crepagem, e por fim, redesenhado por cima com lápis, o sapato. “Esse procedimento serve para que o modelo, na

PARCERIA Clientes participam da criação das peças da MAG-P

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Não acreditamos que o diferente precisa ser caro. Ele deve ser acessível e atingir o máximo de pessoas possível. ALINE FENKER, assistente de estilista

e estampas variadas para criar suas coleções personalizado até a embalagem e a etiqueta. Envoltos em um jornal, com uma corda, uma etiqueta de couro e uma tag de papel com o nome do cliente digitado na máquina de escrever, as encomendas são levadas ao destino desejado. Diferentemente da criativa

EXCLUSIVIDADE Recortes e cores identificam a marca Louloux

FOTOS DIVULGAÇÃO

hora em que for levado para outro atelier, seja confeccionado e compreendido nos mínimos detalhes”, explica Magpali. A jovem acredita que o grande diferencial da marca se deve ao fato de tudo ser feito a mão. O cuidado na criação dos sapatos artesanais vai desde um ilhós

Pam Magpali, o gaúcho Cristiano Bronzatto, idealizador da marca Louloux, tem em seu DNA a arte de fazer sapatos. Seu avô paterno, Vergilio Bronzatto, veio da Itália, onde já atuava como sapateiro, para trabalhar na área, no município de Silveira Martins, no Rio Grande do Sul. Sua mãe, Therezinha, desde os oito anos trabalhava com confecções. Dando continuidade à paixão de sua família, em 1999, Cristiano mantinha uma loja na capital gaúcha. Como nesta época não havia as facilidades das câmeras digitais, ao fazer os pedidos para o seu negócio, tinha o hábito de desenhar os modelos para lembrar mais tarde. Aos 26 anos, decidiu que era isso o que queria para a sua vida e teve no já falecido José Maria Carrasco Mena, estilista espanhol, o ensinamento que precisava para se aperfeiçoar. Durante três anos Cristiano viveu na Espanha. Lá, aguçou o gosto pela arte e a uniu com o fascínio pelo sapato. De volta

ao Brasil em 2004, começou a trabalhar em uma companhia de exportação e a desenvolver cada vez mais o desenho e a técnica. O aprendizado adquirido ao longo da sua trajetória foi a base para que, em 2005, a marca Louloux ganhasse destaque no mercado mundial. Em 2008, Cristiano voltou para o Brasil e apostou em uma loja virtual. Hoje, permanece utilizando o e-commerce (comércio eletrônico) e lojas temporárias. Assistente do estilista, Aline Fenker explica que o objetivo da marca é fazer sapatos diferenciados, independentemente do poder aquisitivo das pessoas. “Não acreditamos que o diferente precisa ser caro. Ele deve ser acessível e atingir o máximo de pessoas possível. Afinal, quem não quer ter um produto bacana por um preço que possa bancar?”, argumenta. O processo de criação da Louloux é livre. Aline conta que se for possível produzir determinado produto dentro do orçamento, e que possa ser vendido a um preço justo, a ideia é válida. “A identidade da marca é bastante forte, por isso não trabalhamos com inspirações ou temáticas. Tentamos fugir do que está sendo feito no momento, afinal tudo que não queremos é ser mais um produtor de cópias no mercado”, comenta. Amor pelo sapato. Este é o segredo para que estilistas dediquem tempo e vontade à criação dos pares. Um trabalho personalizado cada vez mais presente no mercado calçadista.

LEGADO Cristiano herdou do avô a habilidade em criar sapatos revista exp

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A SÍNDROME DA

centopeia

Para muitas mulheres, o mundo começa de baixo para cima GABRIELA GUADAGNIN

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PAIXÃO Luciaine tem 135 pares enfileirados em seu closet

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esde criança amante de sapatos, ela lembra exatamente do seu primeiro par: “Foi aos seis anos. Era branco, de verniz e com salto, é claro, o que dificultou, pois não queriam me dar, mas foi amor à primeira vista”. Recorda também de como o usava: “Com uma mini saia pregada branca, ficava lindo”. O amor por sapatos cresceu junto com o número de aquisições. Hoje, a técnica em contabilidade Luciaine Martinelli Pomatti, tem 135 pares guardados em seu closet. “Todos eu uso muito, não compro por impulso ou para deixar guardado”, conta. Os preferidos continuam sendo os de salto alto, a maioria em seu armário. Para Luciaine, o melhor momento para comprar é no início das estações, quando chegam as novidades. Fã das marcas Colcci e Schutz, ela afirma que o limite máximo que chegou a pagar foi cerca de R$ 500 por um par. Não há dúvida de que os sapatos são uma das grandes paixões femininas e não é de hoje que mulheres enlouquecem por causa deles. Essa paixão já tem milhares de anos e teria surgido na Espanha, onde há pinturas rupestres registrando figuras humanas usando botas. Há pesquisadores que afirmam que eles foram inventados na Mesopotâmia, onde atualmente fica o Iraque, e eram feitos de couro macio para que os antigos pudessem atravessar trilhas montanhosas. No Egito Antigo, apenas nobres usavam sandálias de couro. Os faraós tinham calçados assim, mas adornados com ouro. Os etruscos passaram a usar botas – altas, amarradas e com pontas viradas. Os gregos fizeram das sandálias

um símbolo de poder e posição social. Na tradição anglo-saxã, o pai da noiva entregava ao noivo um pé de sapato da filha simbolizando a transferência de autoridade no casamento. Lidiane Rovea é outra aficionada. Ao contrário de mulheres que compram quando estão deprimidas ou estressadas, a professora adquire seus sapatos quando está de bem com a vida. Apaixonada por saltos, ela conta que preza pela qualidade e pelo conforto dos calçados. Lidiane já cometeu algumas loucuras. Uma vez comprou seis pares de uma única vez e possui alguns que nunca usou, devido ao tamanho do salto, de mais de 15 centímetros. A professora, fã de botas, tem 74 pares de calçados distribuídos em seus armários. “A mulherada é louca, gosta muito de comprar”, diz. Dependendo do momento, ela paga até R$ 400 por um novo par, mas admite ter alguns mais caros. Para ela, não adianta a mulher caprichar na roupa se os pés não estiverem bem calçados. “O sapato ajuda muito na produção”, comenta. A paixão é antiga. Josephine, a primeira esposa de Napoleão Bonaparte, desfilava com diversos pares diferentes todos os dias. Maria Antonieta jamais usava o mesmo sapato duas vezes. Ela acumulava mais de 500 pares, catalogados por cor, modelo e data. Alguns eram tão delicados que podia usálos somente sentada, pois não serviam para caminhar. Imelda Marcos, ex-primeira dama das Filipinas, ficou famosa por ter mais de 3 mil pares. Marilyn Monroe também adorava sapatos, todos de salto, bem provocantes, e os considerava mais importantes que a lingerie. Greta Garbo, que não tinha um pé delicado, dedicava especial atenção aos seus sapatos, sempre

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discretos para não sugerirem o tamanho de sua base. Algumas curiosidades marcam a história dos calçados. No século 14, na Inglaterra, os sapatos eram tão pontudos que se tornaram um perigo. O rei Eduardo III precisou baixar um decreto limitando os bicos a cinco centímetros. Ignorando a lei, os sapatos no país chegaram a ostentar até 50 centímetros de comprimento. Para andar, era preciso prendê-los à cintura com cordão de seda. Na França, no século 16, eles ficaram tão estreitos que, para calçá-los, as pessoas precisavam mergulhar os pés por uma hora em água gelada. Na China, o culto aos pés exigia o uso de sapatos de no máximo 15 cm. Para usálos, as mulheres tinham os pés praticamente amassados, enfaixados em um cilindro para não crescerem. Em Veneza, por volta de 1600, as plataformas ficaram tão altas que quem usasse precisava de criados para se movimentar. O sapato atravessou décadas, sociedades, culturas, pensamentos e ideologias. Com o tempo, virou um símbolo de beleza para as mulheres. Independentemente das tendências, exerce fascínio até os dias de hoje. Antes escondidos debaixo das saias e vestidos, hoje sempre em evidência, eles nunca deixaram de ser reveladores. Para o psicólogo Eduardo Lomando, o sapato exerce uma função performativa da ideia de gênero feminino para as mulheres. “Muitas vezes é nele que a diversidade pode se expressar e diferenciar as mulheres, ao mesmo tempo em que também pode aprisioná-las em estereótipos sexistas”, afirma. O sapato expressa a liberdade do feminino nas suas formas e cores, como as escraviza na esfera rígida e sexista da beleza que desvaloriza outras áreas, como a inteligência ou outras capacidades. “Entendo que antes de comprarmos alguns objetos, principalmente de vestuário ou tecnológico, possamos pensar sobre a relação deles com nosso momento histórico e nossas necessidades para ficarmos mais conscientes de nossas compras”, explica Lomando. Para muitas mulheres, o impulso da compra nada tem a ver com a necessidade e sim com o desejo pelo novo par. Vera Marli Brazeiro Falcão é uma

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amante assumida de sapatos. A funcionária pública aposentada tem dezenas de pares – alguns, inclusive, que nunca usou. “Eu me realizo com meus sapatos”, orgulha-se. Os preferidos de Vera, dispensando qualquer surpresa, são os de salto alto. Ela mostra um novo, na caixa, que ainda está com a sola limpa. “Gostei e levei, sem saber quando ia usar”, conta. Aliás, caixa é o que mais tem na casa de Vera. Cuidadosa e ciumenta com seus pares, ela chega da rua e a primeira coisa que faz é limpar seu sapato e guardar na caixa da compra, para conservá-los. Pesquisas indicam que as mulheres têm pouca afinidade às marcas e que a qualidade prevalece. Apesar de ter suas favoritas, Vera confirma que o essencial é o calçado ser bom, mas garante que seu limite é investir no máximo R$ 300 – “espichando um pouquinho” – em um par. “Fui em uma feira em Santa Catarina em que os preços estavam ótimos, só não trouxe uma pilha porque no tamanho 35 tinha apenas aquele”, conta apontando para um de seus mimos. Em datas comemorativas, como o Natal, a escolha do acessório é sagrada. “Você pode estar com uma roupa simples, mas tem que estar com um bom sapato”, afirma. Um detalhe que aflige Vera é andar de pés no chão. Para ela, calçados são indispensáveis até dentro de casa. “Quando chego da rua, guardo o meu sapato e já pego outro, não gosto de andar descalça”, conta. Mesmo comprando muito, por vezes vários pares em uma única compra, se não usar logo, Vera os passa adiante para amigas ou parentes. Fã dos modelos mais clássicos e das cores neutras, acredita que o sapato deixa a mulher mais atraente e dá uma boa aparência. “Quando estou cansada, estressada, compro um sapato, me harmoniza”, confessa. Em suas viagens, não dispensa várias opções na mala e sabe quando usar cada uma. Em um passeio na Argentina, foi dançar tango com seu marido e fez questão de mostrar o detalhe na foto que trouxe: um sapato vermelho, de salto alto, com uma flor bordada em pedras na parte de cima. O amor de Vera por seus sapatos é visível, ela cuida deles como se fossem obras de arte valiosas. “Acho difícil alguém que não goste. Toda mulher tem esse deslumbre”, comenta.

Eu me realizo com meus sapatos. Acho difícil alguém que não goste. Toda mulher tem esse deslumbre. VERA MARLI , funcionária pública

O ato da compra envolve muitos sentimentos. Algumas sentem prazer, gostam de voltar para casa com o produto e planejam logo usá-lo. Para outras, o poder e o fato de terem dinheiro para fazer a aquisição falam mais alto. Há mulheres que têm a autoestima elevada quando adquirem. Outras compram como um ato de merecimento. Para Karen Medeiros, gerente da loja Mezzo Porto, no centro de Porto Alegre, nem um, nem outro: o sentimento que fala mais alto na compra é o de independência. Ela conta que a maioria de suas clientes são fiéis à loja e não levam menos de dez pares cada uma por mês. “Normalmente são mulheres com boa aparência, educadas, de 30 ou 35 anos”, descreve.

Chanel, escarpins, mocassins, sandálias, sapatilhas, rasteiras e botas. Assim como nas roupas, os sapatos também têm seus diversos modelos. Karen conta que na loja em que trabalha sai de tudo – tanto os confortáveis, para trabalhar, quanto os mais elegantes, que exprimem personalidade. “Hoje em dia, não é mais importante combinar com bolsa ou roupa, por exemplo. A moda hoje é descombinar, com bom senso, é claro”, indica. Mas qual a melhor forma de escolher este acessório tão bem quisto no mundo feminino? Para Karen, a vitrine é o cartão de visitas da loja. Normalmente não há um planejamento prévio de necessidade para a compra, elas seguem o instinto e são estimuladas pelas vitrines. É inegável que os sapatos fazem parte da vaidade feminina, algo que vai muito além do consumismo, chega a ser uma relação de afeto. A paixão não se explica, e enquanto os homens se empenham para entender, elas se esforçam para não comprar mais um. Amor que vem de infância, quando começam a calçar os saltos da mãe e dormem ouvindo histórias de conto de fadas. Aliás, a Cinderela é a maior culpada por tudo isso, pois é a prova que um sapato pode mudar a vida de uma mulher.

AUTOESTIMA Lidiane compra quando está de bem com a vida revista exp

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tendências

GABRIELA GUADAGNIN

MERCADO CALÇADISTA BUSCA

A economia do setor gira em torno do amor das mulheres pelos sapatos e o poder que eles emprestam ao dia a dia VANESSA PACHECO

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ão é qualquer crise econômica que abate as mulheres. Elas continuam a comprar cada vez mais pares de sapatos. Quem comemora são os calçadistas, que não sentem impactos causados por possíveis recessões no mercado. Apesar de este ano não ter sido dos melhores e apresentados números abaixo do esperado pelos especialistas, as importações registraram elevação de 19,6%, em relação ao mesmo período de 2011. As exportações, também apresentaram queda de 19,1% sobre o acumulado dos sete meses do ano passado, o equivalente a US$ 628,3 milhões. Entre as exportações, o Rio Grande do Sul manteve a liderança no faturamento, com US$ 228,8 milhões. Porém, Ceará e Paraíba tiveram o melhor desempenho em relação ao volume de pares embarcados para o Exterior durante os sete primeiros meses de 2012. Os cearenses exportaram 25,5 milhões de pares, 3% a mais em comparação com o mesmo período do ano passado e a Paraíba elevou em 21% a quantidade de calçados exportados, totalizando 17,1 milhões de pares. Umas das maiores ameaças de todos os setores da economia do mundo é a China. No entanto, não foi ela quem enviou mais calçados ao Brasil. Em primeiro lugar ficou o Vietnã, com um volume físico de 7,9 milhões de pares de sapatos. Os chineses tiveram um acréscimo de 11% sobre o volume exportado em comparação com janeiro a maio de 2011.

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Enio Klein, consultor da Associação Brasileira de Calçados, explica que a China já não representa mais um perigo para o setor calçadista. “O Brasil passou pela crise e a China foi só mais um fator, agora não é mais um perigo para o segmento”, ressaltou Klein, lembrando-se da crise que forçou o fechamento de várias fábricas em 2009. As incertezas da economia fazem o ritmo das encomendas diminuir em algumas indústrias, especialmente de calçados, que já reveem para baixo as projeções de crescimento no ano, embora a desvalorização do real alimente expectativas de melhor desempenho das exportações. Fábricas já registram uma considerável diminuição nos pedidos de lojistas e a previsão é de estabilidade na produção em relação ao ano passado. Essa é uma das previsões da Cristofoli, fabricante de calçados femininos de Novo Hamburgo. A marca decidiu reduzir o volume de produção por questão de mercado, quando, logo em seguida, a fábrica foi atingida por um incêndio causado por um curto circuito, em agosto deste ano. O principal motivo para a decisão foi a entrada do comércio eletrônico ou e-commerce, que prejudicou a venda de sapatos diretamente nas lojas da Cristofoli. As pessoas preferem comprar sem sair de casa e acabam optando por lojas virtuais. Mesmo que parte de seu site seja dedicada a comercialização de seus próprios sapatos, os produtos da marca são vendidos em outras lojas online, o que faz os números da empresa referentes à venda cair significativamente. “O e-commerce representou, na

Cristofoli, uma queda de quase 7% em seis meses, sendo que a previsão de crescimento para o setor gira em torno dos 6%. É como se a gente não tivesse crescido nada”, conclui o gerente de mercado da empresa, Daniel Keller. Atualmente, a empresa produz de 900 a mil pares por dia e vende 120 mil pares de calçados por coleção – são duas por ano. Apesar de ter sido obrigada a reduzir a produção, Keller estima que a marca irá comercializar 200 mil pares no próximo ano.

Visões de mercado

Para atender aos desejos das consumidoras sempre muito exigentes, as marcas apostam em especialistas que viajam pelo Brasil e para o Exterior em busca de tendências e analisar o comportamento das pessoas, em diferentes culturas. Além disso, procuram o diferente, o que as mulheres estão usando, mas não está nas previsões da moda. O caçador de tendências ou cool-hunting, tem a obrigação de identificar o que a mulher procura a cada estação. Analisar o que diferentes culturas e etnias usam para adaptar ao gosto da uma maioria. Buscar materiais novos, com texturas diferentes e novas tecnologias para agregar mais valor a um produto já tão amado pelo público feminino. A busca por diferenciação dos modelos fabricados pelas empresas brasileiras começa pelo setor de componentes para calçados. As indústrias investem em pesquisa e desenvolvimento de novos materiais para atender a esse pedido do mercado. Essa tem sido uma preocupação constante para conseguir se

NOVIDADE NO MERCADO Desejos

19,6% de elevação nas importações, em relação ao ano passado

6% é a projeção de crescimento do setor para este ano

US$ 628,3 milhões

foi o acumulado das exportações em sete meses

US$ 228

milhões

foi o faturamento do RS em exportações

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das mulheres são atendidos por lojistas e cool-huntings, profissionais que estão sempre em busca de tedências e comportamento manter na competição e sair do tradicional. Considerar o dia a dia das mulheres, observar e entender como se comportam é uma das atividades dos coolhuntings. Para 2013, o setor promete estar bem aquecido. Entre as tendências, estarão as cores lavadas e inspirações étnicas. Para o mercado, o principal desafio é evitar a antecipação de liquidações, devido ao recebimento de calçados de verão no inverno, por exemplo. A queda nas exportações também é apontada por profissionais do setor como um dos fatores determinantes para a antecipação das coleções e, consequentemente, das liquidações. Para aumentar a lucratividade no varejo calçadista e alavancar o setor, a alternativa seria regulamentar a temporada de liquidações, o que acontece em alguns países europeus, como é o caso da Itália. Enquanto isso, movidas pelo desejo, as mulheres continuam consumindo novos pares a cada estação.

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TRABALHO Funcionários da Cristofoli produzem 120 mil pares de sapatos a cada nova coleção revista exp

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HORA DE ESTUDAR

idiomas

Cenário de tradutores e intérpretes no Brasil cresce mais que a média mundial e empresários miram eventos esportivos como chance de ouro ALLAN KUWER

N

unca foi tão acessível aprender idiomas. Cursos, sites e até aplicativos em celulares ensinam diversas línguas estrangeiras. O que poucos sabem é que seu uso em eventos ou em documentos de empresas representa uma grande quantia financeira ao redor do mundo. Conforme um estudo da empresa americana Common Sense, o mercado de tradução e interpretação vale mais de 33 bilhões de dólares em 2012. Mesmo com a crise econômica, ele manteve seu crescimento. O aumento de demanda para os profissionais do ramo atinge uma forma significativa no Brasil. Entre os anos de 2009 e 2011, o setor cresceu 57,3% no país segundo a consultoria americana. O fortalecimento da economia e a proximidade com grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo são alguns dos motivos que proporcionaram esse aumento segundo a presidente da Associação de Tradutores e Interpretes do Brasil (Abrates), Liane Bacellar. “Nosso país está no centro da mídia mundial e isso influencia diretamente o mercado. Muitos membros de governos estrangeiros visitam o Brasil devido aos eventos esportivos e todo esse trabalho necessita diretamente de um intérprete” explica Liane. “Nunca nossa profissão foi tão valorizada”, complementa a presidente. Guilherme Ghiggi, gerente de projetos da Traduzca, acredita que os próximos eventos esportivos não alteram o mercado de trabalho. Ele defende que o impacto maior passa pelos anos anteriores: “Durante a Copa do Mundo, nosso trabalho não será

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afetado. Somente uma empresa vence a licitação e trabalha no campeonato.” informa Guilherme. “A grande parte do trabalho envolve eventos anteriores como a visitação de delegações e possíveis empresas que desejam investir no país devido à maior visibilidade”, reforça o gerente de projetos da Traduzca. Flávio Antunes é empresário de moda. Ele se reuniu com mais um amigo para criar a empresa Fale, no ramo de interpretação. Sua empresa trabalha especialmente em eventos que envolvem entrevistas de esportistas estrangeiros com jornalistas. A Copa do Mundo é tratada como a chance de ouro: “ Um campeonato que envolve jogadores e jornalistas de todos os países é tudo que sempre sonhávamos. É a chance de mostrar que nosso investimento

está no caminho certo”. Antunes enxerga a Copa como um teste para outro evento: “ As Olímpiadas mexem com o meu coração como torcedor e gera mais possibilidades profissionais”. A valorização da profissão causa um maior interesse em se tornar interpréte. Ele pode ser visto no número de cadastrados na associação de Tradutores e Intérpretes. A associação está realizando visitas em eventos de todo o Brasil para incentivar o cadastramento na organização. O resultado da ação é muito positivo. ”150 pessoas se registraram na Abrates somente na 3° Conferência do Proz,evento que reúne tradutores de diversos países.” esclarece a presidente. Ela argumenta para todos os indecisos que o principal motivo para se registrar está ligado a uma boa

resposta do mercado de trabalho: ”Se a pessoa está registrada, as empresas ou eventos já consideram o profissional diferenciado. Não existe uma lei que a obrigue a fazer isso, mas é algo ótimo para quem deseja prosperar no mercado profissional”. Carlos Jochims entrou na profissão de intérprete devido a uma ação de divulgação realizada pela Abrates na faculdade de Letras em Pelotas. Ele trabalhava em um banco e estava descontente. Paralelamente, cursava Letras e ensinava alemão e francês para iniciantes. Quando recebeu o panfleto da associação, encontrou a felicidade em sua vida profissional. “ Sempre fui apaixonado por línguas, mas nunca tinha percebido que era possível ganhar dinheiro com essa habilidade. Atualmente, tenho prazer

INALTERADO Ghiggi acredita que a Copa do Mundo não interfere diretamente no setor da tradução

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FELICIDADE Carlos Jochims (D) encontrou a felicidade na área profissional após se demitir do banco e iniciar nas interpretações em trabalhar o que não ocorria no ambiente estressado do banco”, conclui Jochims. A receita das empresas brasileiras de tradução e interpretação registrou alta de 27,8% no período entre 2010 e 2011, maior que a média mundial (15,08%). A consequência direta é a contratação de novos funcionários como, por exemplo, na Traduzca. “Contratamos cerca de 150 funcionários em dois anos. Nunca tivemos tanta demanda com diferentes idiomas e esses profissionais trabalham com as línguas mais difíceis como russo”, explica Ghiggi. Além de novos funcionários, a empresa cresceu em termos de estrutura física e comprou novos equipamentos para a tradução durante grandes eventos. Profissionais da área como Bacellar e Ghiggi apontam um imenso problema na grande demanda de tradutores: sistema ruim de qualificação no país. Existem poucos cursos na área acadêmica para eles. A maioria estuda as diferentes técnicas e conceitos sobre o assunto no exterior. Marcos Guirado, dono da Simultânea Traduções, decidiu se

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aperfeiçoar na Alemanha. “Cursei especialização na Alemanha devido ao péssimo sistema de ensino de tradução no Brasil. As pessoas acreditam que é só conhecer um idioma que já está apto a trabalhar e as universidades colaboram com essa opinião”. O foco de sua crítica está na falta de oportunidades que qualifiquem o estudante durante a faculdade. No Rio Grande do Sul, a UFRGS oferece o bacharelado em tradução. Nos últimos anos, ocorreu um aumento na procura pelo curso, explica a coordenadora do bacharelado em Tradução em alemão, Beatriz Neves: “Cada vez mais alunos pretendem seguir carreira na área. Houve um crescimento de 30% de inscrições no bacharelado em relação à licenciatura”. A professora não concorda com as críticas de Marcos Guirardo. ”A faculdade não têm condições de oferecer estágios,mas proporciona palestras e semanas acadêmicas. Segundo a coordenadora, os estudantes estão optando pelo bacharelado visando aos jogos de 2014. “Eles querem trabalhar durante a Copa pelo contato com os estrangeiros e o apren-

Nunca nossa profissão foi tão valorizada como agora. LIANE BACELLAR, presidente da Associação Brasileira de Tradução e Interpretação dizado de novas culturas”. Ela acredita em um aumento ainda maior de estudantes interessados no curso devido à criação do Centro de Produção Audiovisual em Canoas . O local será responsável pela produção de filmes e outros conteúdos. “A área de tradução audiovisual irá se desenvolver muito devido a criação do centro” A empresa de tradução em jogos de computador e videogames Synthesis é um exemplo da força do setor na área do entrenimento. Ela mantém escritórios em diversas cidades do mundo como Chicago, Roma e Berlim. Atualmente, ela está investindo no Brasil reunindo uma equipe de

20 empregados. Os motivos que levaram a companhia a investir no país são econômicos. “Com o fortalecimento da economia brasileira em relação aos outros países,o mercado de entretenimento vem crescendo. Esse crescimento decorre de um maior poder aquisitivo da população em geral aliado a diminuição dos preços dos jogos que resulta em um maior interesse em games”, explica Mauro Boretti, presidente da companhia. Ele identificou no país um mercado promissor. “ A maioria não tem acesso ou interesse a outros idiomas, o que torna a tradução de games uma ótima oportunidade”,esclarece Mauro. Maria Inês Luks, 55 anos, nem sabia que existia esse ramo na tradução. Ela é professora de inglês e cursa especialização de Estudos em Tradução na PUCRS. Assistindo a palestra realizada pelo curso sobre a Raiar, incubadora de empresas localizada na faculdade, surgiu o sonho de montar um negócio próprio: “Desejo criar minha empresa de tradução. Quero reunir a paixão pelas línguas e o gosto pelo relacionamento humano”. revista exp

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CABELO,

maquiagem!

No backstage do glamour, cabeleireiros e maquiadores unem talento e sorte para sair do anonimato e conquistar uma identidade no meio da multidão PALOMA POETA

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PONTE AÉREA A maleta carimbada de Kássio Lucas mostra que o talento atravessou fronteiras

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apresentadora Fátima Bernardes conta que, certa vez, escutou algo que lhe surpreendeu. Ainda se acostumando a andar pelos corredores do Projac enquanto se preparava para sua nova atração, o Encontro com Fátima Bernardes, ouviu o desabafo conformado de uma das tantas cabeleireiras e maquiadoras que circulam pela cidade cenográfica da Rede Globo. A mulher contava que, quando alguém grita “cabelo, maquiagem!”, ela e os colegas correm para atender. Não precisam mais ser chamados pelo nome para atender ao pedido. Inclusive, nunca são chamados pelo nome. Havia perdido a identidade dentro dos sets de gravação, como tantos outros colegas do ramo. Nos bastidores dos desfiles de moda, a história é parecida. Modelos correm de um lado para o outro tentando trocar de roupa o mais rápido possível. A produção cuida de cada detalhe e, em meio a toda correria, o fôlego se supera para um único grito que pode resolver tudo: “Cabelo! Maquiagem!”. Todo mundo parece igual, como em um exército de soldadinhos de chumbo alertas para, no primeiro comando, entrar em cena e fazer qualquer retoque que seja considerado necessário. Xico Gonçalves já vivenciou essa realidade de perto, mas quem gritava era ele. Idealizador do Donna Fashion Iguatemi, o produtor de moda sabe bem como funcionam os bastidores do mundo do glamour. Em meio a memórias, relembra quem já viu sair do anonimato. “O Mauro (Freire), por exemplo, saiu do Rio Grande do Sul e foi ganhar

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méritos em Paris. Retornou como o preferido da Xuxa, dono do próprio salão e consultor de uma marca de shampoo internacional”, conta. Além dele, Duda Molinos, também gaúcho, e Marco Antonio de Biaggi, que virou dono das capas por emplacar tantas produções em revistas. Ainda que um grande contingente de profissionais do mundo da beleza atenda apenas por “cabelo e maquiagem”, alguns se destacam da maioria para ganhar o direito da identidade e um nome no meio do grande grupo. Qualquer um nessa multidão poderia ser Kássio, gaúcho de 26 anos, vindo de Uruguaiana, que um dia embarcou para muito mais do que Florianópolis. Ao entrar no avião, suas histórias despertaram o interesse de Fernando Torquatto, alguém que não atende mais por somente “cabelo e maquiagem” há algum tempo. Fotógrafo e maquiador, Torquatto é responsável pelos editoriais das mais famosas revistas brasileiras e tem seu próprio salão e linha de maquiagem, a Make B., do Boticário. Celso Kamura já saiu do grande contingente faz tempo. No mercado há mais de 30 anos, um corte de cabelo com o “mãos de tesoura” pode custar R$ 350. Ele deixou a pequena cidade de Bela Vista do Paraíso e caiu nas graças da então deputada Marta Suplicy e do renomado estilista Alexandre Herchcovich. Depois de lançado pela dupla, se encaixou no mundo do glamour como ninguém. Garantiu uma vasta clientela de celebridades, dois salões e a própria marca de cosméticos. Mas a relação de intimidade que desenvolveu com Marta Suplicy acabou lhe rendendo uma conquista muito maior. Durante a campanha de Marta para a prefeitura de São Paulo,

Kamura conheceu o marqueteiro João Santana que, anos mais tarde, lhe apresentaria a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, ainda durante as eleições de 2010. João Santana conhecia o trabalho de Kamura e não conseguia pensar em outro nome se não o dele para suavizar o visual de Dilma. Foi em uma das idas mensais ao Palácio do Planalto que Celso Kamura se viu refletido no espelho pela primeira vez. ”Até aquele tempo, eu achava que já estava realizado. Atendia atriz, apresentadora, modelo... Mas eu nunca tinha imaginado arrumar uma presidente. Foi aí que me dei conta que era famoso”, diverte-se. A dedicação que João Santana enxergou, impossível de passar despercebida, é apenas um dos traços marcantes do oriental de madeixas longas que entende tanto de cabelo, quanto de maquiagem. Enquanto descansava em um dos bancos do Projac, refletiu sobre o caminho trilhado, onde sorte e talento não são estradas diferentes. Ele reconhece que, para ser bom, precisa ter talento, mas afirma também que o muito mais que é necessário para ser descoberto ARQUIVO PESSOAL

Eu nunca tinha imaginado arrumar uma presidente. Foi aí que me dei conta que era famoso. CELSO KAMURA, cabeleireiro e maquiador

poderia ser definido pela palavra sorte. Sorte levou o Kássio até uma entrevista informal com Torquatto em São Paulo, mas foi o talento que o guiou até um destino bem mais além. Às vésperas da São Paulo Fashion Week, Torquatto perguntou o que ele poderia fazer no cabelo das modelos para imprimir a ideia futurista da coleção nas passarelas. Prontamente, Kássio montou um penteado simples e exatamente como o fotógrafo e cabeleireiro havia imaginado. O gaúcho não fazia ideia, mas acabara de desclassificar diversos candidatos em um teste não só

desafiador, como definitivo. O talento ainda seria posto à prova na São Paulo Fashion Week, quando teria que ensinar à equipe de cabeleireiros como fazer de forma rápida e prática o penteado. Acostumado a uma clientela fiel em um salão de Porto Alegre, ele estava acostumado a ser Kássio. Mas foi perdido no meio de uma multidão de corre-corre, cheio de outros iguais a ele, que, pela primeira vez, Kássio era apenas cabelo. “É um mundo muito diferente, fiquei apavorado no início. Mas aí pensei: não tenho nada a perder mesmo”, conclui. Aos poucos, ele vai assinando o nome de batismo em fichas técnicas de capas de revista. Usa a sorte para mostrar o talento a personalidades como Sandy, Camila Morgado, Sabrina Satto, Flávia Alessandra e top models internacionais. Divide-se em uma ponte aérea extensa, que pode ir da Bahia ao Rio de Janeiro e de São Paulo a Porto Alegre. Não há cabelo que Fernando Torquatto não entregue de olhos fechados ao cabeleireiro que um dia conquistará o direito de atender novamente por Kássio Lucas, o Kássio.

É um mundo muito diferente. Fiquei apavorado no início. KÁSSIO LUCAS, cabeleireiro

O QUERIDINHO A top model Izabel Goulart é uma das celebridades que não largam o Kamura revista exp

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BARBA, CABELO, BIGODE

e um pouco mais

Barbearias estão se reinventando para atender a novas exigências do mercado LARISSA DE BEM

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NA LOJA Enquanto uns compram, outros fazem a barba

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smaltes e cremes de barba agora dividem o mesmo balcão em salões de beleza. O ambiente, que antes era exclusividade do público feminino, tem a presença constante de homens que procuram por serviços que, muitas vezes, vão além do tradicional barba, cabelo e bigode. Hoje em dia, eles cuidam da saúde, da pele e do corpo. Dados da agência Euromonitor, líder mundial em pesquisa estratégica em mercados consumidores, mostram que 37% das categorias de produtos como desodorantes, sabonetes e cremes são consumidas pelo público masculino. E mais, 15% é o incremento por ano no mercado de cosméticos voltado exclusivamente para os homens. Há oito anos no mercado, a barbearia e salão de beleza Sevilha, localizada no Moinhos Shopping, em Porto Alegre, exemplifica essa realidade. No espaço, homens e mulheres se submetem a, praticamente, os mesmos tratamentos de beleza como corte de cabelo, hidratação e manicure. A gerente Márcia Noal conta que o movimento diário fica em torno de 50 clientes e, muitas vezes, o número de homens se sobrepõe ao de mulheres. “Esse fluxo se deve à praticidade do homem. Por mais que eles façam tratamentos de beleza é tudo muito mais rápido. Para 20 cortes masculinos, são cerca de dez horários femininos”, compara. Antes o salão tinha um ambiente masculinizado, mas há cerca de um ano uma reforma fez com que a estética ganhasse um ar unissex. O público masculino não se importou. “Todos se sentem bem a vontade. Hoje não tem mais aquela história de vergonha. Fazemos muitas

promoções em sites de compras e os homens adoram”, conta. A vontade dos homens de se cuidar e o desejo de se manter jovem contribuíram para essa mudança. Dados da Indústria Brasileira de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos comprovam que o mercado nacional de estética é o segundo maior do mundo e teve um crescimento de 20% nos últimos cinco anos. Com a grande demanda, tornaramse necessárias estratégias de segmentação. A principal linha líder masculina da Natura, por exemplo, cresce o dobro ou 100% acima da marca Natura, considerando os produtos em geral. De olho neste desenvolvimento, a empresa tem investido no segmento. Em 2011, a Natura Homem foi relançada com novo design de embalagem e uma linha de produtos para o rosto. Hora de se reinventar De olho nas exigências do público masculino, as barbearias estão se reinventando para não perder espaço no mercado. No centro de Porto Alegre, os proprietários da cinquentenária barbearia Elegante optaram por unir barba, cabelo, bigode e gastronomia. O filho dos proprietários, Rafael Schambeck, é quem toca o bistrô Del Barbieri. Formado em gastronomia, o chefe de cozinha propôs aos pais uma remodelação do ambiente que hoje é referência na cidade. “A barbearia que antigamente ocupava todo o espaço foi reduzida a metade para a criação do bistrô. Procuramos manter o estilo clássico e tradicional da barbearia. A ideia foi de criar o contraste entre o moderno e o antigo”, explica Schambeck. Na barbearia o espaço se divide entre pentes, navalhas e playboys. Fazer a barba custa 10 reais e um corte 15. Lá,

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trabalham cinco funcionários e cada um atende de dez a 15 pessoas por dia. Apenas uma funcionária é mulher e ela garante que não sofre preconceito por isso. “Só uma vez um homem se recusou a cortar o cabelo comigo. A clientela é bem tranquila”, diz. Ao lado dos cortes de cabelo, o bistrô serve almoços diários Janelas permitem que clientes de ambos os lados se vejam. Enquanto algumas pessoas terminam suas refeições, Paulo Ricardo da Silveira corta o cabelo com um dos barbeiros. “Acabei de chegar de viagem. Na minha cidade tenho um cabeleireiro de confiança, mas como estou fora, resolvi vir aqui porque gostei do ambiente. Acho que é importante preservar esse lado tradicional das barbearias”, afirmou Paulo que também confessou ter apreço por cremes. “Há 20 anos, passo creme no rosto todos os dias depois que acordo. O cuidado com a beleza é fundamental”. Barbeiro na loja Eles entram para fazer compras e saem de barba feita. Na loja de roupas masculinas Hemb, em Porto Alegre, é assim. Um barbeiro vai ao local três vezes por semana. O serviço é gratuito, uma espécie de mimo à clientela. A gerente Carmela Moraes conta que a ideia é se aproximar ainda mais do universo masculino. “Percebemos a tendência de resgate de barbearia e então decidimos recriar o ambiente. A ideia deu tão certo que hoje ele só atende com hora marcada”, afirma. O serviço é uma parceria com o salão de beleza Sexton. O movimento é constante. “Os clientes fiéis, que conhecem o serviço, costumam vir até a loja no horário que o barbeiro está aqui. Além disso, muitos ligam interessados em dar um “vale barba” de presente para alguém”, disse. Em meio as loções de barba fixadas na parede, uma cadeira tradicional de barbearia e um espelho arredondado na frente deixam o ambiente ainda mais charmoso. “Os clientes mais novos acham legal e procuram experimentar, pois nunca tiveram esse tipo de contato com um barbeiro. Já clientes mais velhos tem um olhar nostálgico. As reações são as mais diversas, mas as opiniões sempre positivas”,

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reconhece. Estética só para homens O nome já fala por si. Lá, mulher pode até entrar, mas o atendimento é exclusivo para eles. “As namoradas e esposas acompanham e adoram”, conta a empresária e dona do estabelecimento, Lúcia Pereira. Com 20 anos de atuação no mercado da beleza, há oito se dedica ao trabalho exclusivo com homens, serviço pioneiro no Rio Grande do Sul. A estética oferece tratamento facial, manicure e pedicure, maquiagem corretiva, massoterapia, nutricionista, entre outros. A ideia era trazer algo diferente para Porto Alegre. “No início foi difícil pelo preconceito dos homens, mas de uns anos para cá, nossa, eles adoram. Aqui se tornou, inclusive, um ponto de encontro entre amigos”, conta. O principal diferencial em relação às barbearias comuns são os produtos e o tratamento utilizados, explica Lúcia. “Quem vem fazer a barba aqui, não vem apenas pela barba, mas pelo mimo em si. Usamos os produtos que têm a mesma qualidade dos utilizados nas estéticas femininas”. Fazer a barba no local sai em torno de 35 reais, pois o serviço acompanha hidratação da pele para fechar os poros. Já um corte de cabelo, por também acompanhar hidratação, varia entre 30 e 50 reais. O espaço também oferece pacotes para noivos e formandos. A empresária conta que, quando abriu o local, colocou um barbeiro, mas o preconceito masculino não deixou a ideia vingar. Ao todo, apenas mulheres trabalham na estética: 15 ao total para atender uma média diária de 40 clientes. A estética atende ao público de todas as idades. No entanto, homens acima de 30 anos é que utilizam todos os serviços do local. “Acontece aos poucos. Primeiro eles vêm cortar o cabelo, depois fazem uma limpeza de pele e assim por diante”, afirma. A Estética para Homens tem um cadastro com 5 mil clientes, graças à perseverança da empresária ao longo dos anos. “No início foi mais difícil. Há muito machismo. Muitos homens que frequentavam aqui tinham vergonha de contar que faziam tratamento de beleza. Mas hoje a situação melhorou. O retorno é a longo prazo”.

ESTÉTICA Os tratamentos são feitos por uma equipe de mulheres

BARBEARIA BISTRÔ Almoço de um lado, atendimento do outro

UNISSEX No salão há dias que os homens são maioria revista exp

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PROFISSIONALIZAÇÃO Produtores viram referência no cultivo de tomate-cereja orgânico, um dos mais valorizados do mercado

MST TRAVA DISPUTA PELO

consumidor

Movimento perde peso na luta pela reforma agrária, mas valoriza a qualidade de produção dos assentamentos e se organiza em diferentes cooperativas 44

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MATHEUS SCHUCH

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334 é o número de assentamentos no Rio Grande do Sul

1,2 mil famílias ainda esperam pela reforma no Estado

20% dos membros não permanecem nas áreas conquistadas

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os 29 anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra já se tornou a organização social mais antiga do país. Mas, a exemplo de um jovem que está prestes a entrar na casa dos 30 e vive um período de transição, ainda procura afirmação diante das transformações no Brasil da última década. Ao contrário de estados do norte e nordeste do Brasil, no Rio Grande do Sul a luta pela divisão de terras deu lugar à busca por qualificação dos assentamentos. O sonho de uma reforma agrária ampla não foi esquecido, mas os esforços são dedicados à tentativa de garantir a qualidade de vida das famílias que já possuem uma área para trabalhar. Se nas décadas de 1980 e 1990 as marchas e invasões de propriedades deram visibilidade ao movimento, atualmente as mobilizações mudaram de foco, e por isso têm menos exposição. “Antes, havia a necessidade de se tornar conhecido, mostrar a que veio. Agora, os sem-terra já estão mais consolidados. Entraram no movimento a sustentabilidade, a agroecologia, são mudanças de paradigma”, avalia o economista Nilson Gomes, professor do Programa de Política Social da Universidade de Brasíla (UnB). Nas primeiras manifestações, o MST recrutou pessoas de origem urbana, quando a situação era de um público desempregado e sem perspectiva de crescimento. Agora, o boom na oferta de trabalho da última década quase eliminou a capacidade de arregimentação. “A condição de país em desenvolvimento diminui os pleitos sociais”, complementa Gomes. O enfraquecimento na luta pela terra também é justificado por alguns estudiosos a partir da relação política que se estabeleceu com as organizações desde a primeira vez em que o Partido dos Trabalhadores venceu as eleições presidenciais. Os assentamentos criados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cresceram 73,2% de 2002 até 2011, segundo dados do próprio órgão. O número de áreas destinadas a membros do movimento passou de 5.115 para 8.863 em todo o país. No Rio Grande do Sul, são 334,

sendo que metade foi criada nos últimos 15 anos. Ainda assim, a política estabelecida junto aos pequenos agricultores ficou longe da expectativa criada inicialmente pelas mobilizações, quando o PT era considerado um grande aliado político. O doutor em sociologia da UnB Sérgio Sauer acredita que a espera por uma reforma ampla venceu os membros do MST no cansaço. “Um assentamento ou ocupação leva muito tempo das famílias. Se o governo não sinaliza com novos assentamentos, isso reflete na capacidade de mobilização”, sustenta. Considerando a demanda de distribuição de propriedade, a situação dos integrantes do MST no Rio Grande do Sul é uma das melhores do país. Atualmente, cerca de 12,5 mil famílias estão em locais cedidos pelos governo, o que representa uma média de 50 mil pessoas. Os acampamentos improvisados representam 10% deste total. Trata-se de um grupo que espera o cumprimento de um acordo feito com o executivo estadual, que prometeu finalizar todos os assentamentos até 2014. A falta de terras para desapropriação torna o processo mais lento. Diante da ameaça de perderem as propriedades, os fazendeiros que não cumpriam os índices de produção aumentaram a área plantada e a criação de animais. O fenômeno também mudou o foco dos conflitos. “O latifúndio improdutivo, que era o inimigo posto naquela época, se uniu às grandes multinacionais. Hoje, a luta do MST não é mais com os grandes fazendeiros, mas com os grupos econômicos no campo da soja, eucalipto”, explica o dirigente do movimento no Rio grande do Sul Cedenir de Oliveira. O momento de transição e busca de amadurecimento trouxe novas exigências para os semterra. Além de garantir o próprio sustento nos assentamentos, a evolução desses locais sem um forte investimento público obriga os pequenos agricultores a entrar na competição de mercado ao lado de grandes empresas. Na Grande Porto Alegre, funciona um dos modelos mais desenvolvidos de agricultura familiar dentro do movimento. A partir da criação de cooperativas, os agricultores deixaram de atender somente

às feiras populares e comércios de bairro. Em 13 cidades, são plantados 3 mil hectares de arroz orgânico. O grão é o carro-chefe da produção. Recentemente, o plantio de hortaliças também vem ganhando força nas propriedades. O impulso do desenvolvimento da região foi dado pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal, que isenta de licitação os produtos de agricultura familiar. Há dois anos, os alimentos produzidos no local também são encaminhados a entidades de uma rede de assistência formada por restaurantes populares, cozinhas comunitárias, escolas, creches e bancos de alimentos. As estruturas que compõem a Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul ficam responsáveis pela produção, venda e distribuição dos alimentos na Grande Porto Alegre. Em Eldorado do Sul, o casal Daniel e Lúcia Audibert recebeu um terreno de dois hectares há 20 anos. Eles trabalham sozinhos em uma horta orgânica nos fundos de casa. Antes, quase toda a produção precisava ser vendida em Porto Alegre. Hoje, os caminhões da cooperativa buscam os alimentos no local diariamente. Enquanto prepara as estruturas que sustentam a plantação de tomate-cereja, Lúcia, 42, comemora o fato de a família ter construído uma casa de alvenaria, na parte frontal do terreno, e conseguir manter dois carros novos na garagem. O trabalho é puxado. São pelo menos seis dias de produção por semana, com uma carga horária de 12 horas, para renovar as plantações de morango, pimentão, alface, brócolis e couve. Em outras áreas do estado, no entanto, o ritmo de desenvolvimento é bem menor. As lideranças do MST reconhecem avanços importantes, como a construção de escolas e cooperativas, mas ainda consideram as medidas insuficientes. A falta de estrutura nas áreas cedidas aos sem-terra é apontada entre as principais causas do abandono de terras. Em média, 20% dos assentados saem do campo nos primeiros anos, seja pela falta de sucessão ou mudança de interesses. revista exp

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CRÉDITO FOTO

EU SOU O

Constantine Antonio Augusto Fagundes Filho, possível ovelha negra da tradicional família Fagundes, encena em um cenário de anjos e contracena com demônios 46

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JÉSSICA BARBOSA

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desconhecido que ultrapassa a porta coberta de fitas coloridas decorada na noite de São João adentra em uma casa rodeada de instrumentos de proteção. Antonio Augusto Fagundes Filho veste camisa branca e calças pretas. Sob a luz vermelha do hall, convida para conhecer o apartamento que consiste em um quarto, uma cozinha e um banheiro. Moreno e de cabelos curtos, recolhe de cima da escrivaninha um lenço vermelho e o amarra sobre a testa. Horas depois, já sem o artefato, indagado sobre o significado daquele gesto, o mago confessa: “Como eu vou saber se vocês não são de uma seita ou de uma ordem secreta? Ou espiões de magos satanistas que vieram disfarçados de jovens simpáticos, bem falantes?” O lenço comprado para visitar a Ilha dos Maragatos, a fim de agradar os fantasmas que rondavam o local, o acompanha desde 2003 e simboliza para ele uma forte proteção contra as forças das sombras. Embora conhecido como “bruxo Fagundes”, apelido carinhoso dado pelos amigos, considera-se um mago, um xamã, um sacerdote. Explica que tecnicamente o bruxo é um “pentelho”, um “elemento agressivo”, “traiçoeiro”. Para o místico, os membros desta categoria da ordem mágica são capazes de fazer pacto com o diabo, matar animais e até mesmo enfeitiçar seres inocentes para alcançar objetivos individuais. “Eu não sou competitivo, eu não posso ser um bruxo”, elucida. O homem de 51 anos diz que nunca “babou ovo” de jornalistas e executivos de televisão. Assegura que, se fosse um bruxo, já teria feito um feitiço para abrir os caminhos, assinaria um contrato com Lúcifer e hoje estaria no programa do Luciano Huck, em um quadro místico. O mestre da magia que nunca fez parte de organizações ou religiões se considera um lobo solitário: “A minha maçonaria sou eu, o meu filho, a minha mulher e o meu gato”. Feitiço, gato de pelos negros e olhos perspicazes, se esconde entre os móveis enquanto o escritor acende outro cigarro e dá longas baforadas entre passos rápidos pelo quarto

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AGUERRIDO O sobrevivente ensina defesa contra as forças das trevas

UÍSQUE Entre cigarros, Fagundes abre uma garrafa às 14h e animados gestos teatrais. Tradutor da língua espanhola, ganha a vida anunciando o futuro de meros mortais nas cartas do seu tarô, cujas ilustrações foram delineadas pelo também mago Salvador Dalí. Em troca do serviço sobre-humano recebe a quantia de R$ 100 reais por hora. “Eu sou um pragmágico”, brinca, ao inventar o neologismo de sua profissão. As janelas da percepção foram abertas após sucessivas experiências quase morte. A primeira delas veio com a meningite adquirida na infância. Vítima de uma explosão de uma garrafa de álcool, aos 14 anos viu seu corpo pegar fogo em um incêndio. Antes disso, já enxergava seres misteriosos e ouvia ruídos do além em seu cotidiano. Carrega na testa uma aparente mancha vermelha. Ele diz que é o seu terceiro olho. Conforme o estado e a sensibilidade para se aproximar no mundo sobrenatural, a marca pode enfraquecer ou se tornar ainda mais nítida. O xamã urbano, como costuma

referir-se a si mesmo, diz que já esteve em cinco prédios em chamas, escapou de cinco atropelamentos, sobreviveu a duas tentativas de assassinato a base de tiro e desviou as duas vezes em que lhe atiraram facas. Sem nunca ter cultivado um inimigo, atribuiu a perseguição às forças malignas, que, por sua vez, tentavam liquidar com a sua vida antes que O Livro dos Demônios fosse definitivamente escrito. “É um livro que ajuda as pessoas a se defenderem das forças do mal. É claro que eles não ficaram felizes comigo. Os demônios não iriam colocar uma placa de bronze com o meu nome sobre a cruz virada de cabeça para baixo”, brinca. O “catálogo de observador de pássaros”, como ele costuma definir a sua primeira obra, apresenta os hábitos, preferências, as características e a definição de cada demônio. Antes da concepção do guia contra demônios, morava em um prédio de pequenos e solitários apartamentos, onde os conflitos eram constantes. O advogado

especializado em criminologia ouvia o barulho dos socos e dos tapas no apartamento ao lado. Era noite de São João Batista, o “São João sem cabeça” e protetor dos magos do bem, uma noite mágica para Antonio Augusto. Meditava solitário em posição de lótus no momento em que escutou a ameaça. Foi quando uma mulher gritou: “Ele tem uma faca, ele vai me matar”. O guerreiro do mundo espiritual levantou feito uma onça, apanhou uma espada e vociferou: “Tu não vais matar ela, eu é que vou te matar”. As paredes estavam sujas de sangue. A vítima e o agressor desceram as escadas no instante em que a polícia chegara. “Eu ia matar ele. Tu não ameaças matar ninguém, tu vais e mata”, pondera. Em casa, aliviado por não ter se tornado um assassino, deparou com uma luminosidade mais forte que o sol, acompanhada de uma súbita onda de paz. “É um anjo que veio me punir porque eu queria matar um cara em uma noite de São João”, pensou, envergonhado. Curvado como um “muçulmano”, viu o teto se abrir para dar espaço a um anjo quilométrico, cujo rosto e corpo o mago não ousou fitar. “O que manda, chefia?”, disse o místico porto-alegrense. “Antonio Augusto”, recitou o anjo com voz de dragão chinês. A figura vinda do alto aprovou a coragem do homem que há poucos minutos tentara salvar uma mulher e a ele sentenciou a torturante missão. O incumbiu de ir ao inferno todos os dias, da meia-noite às 3h, período conhecido culturalmente como o horário do demônio em zombaria a Cristo, que morrera às 15h da tarde. A saga duraria nove meses. A exceção ocorreria somente aos domingos, no dia do Senhor. Ao final da viagem revista exp

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para debaixo da terra deveria escrever um livro sobre tudo o que viu. Antonio Augusto aceitou. “Eu não tinha nada melhor pra fazer. Eu cumpria uma missão na qual eu vi um anjo. Eu não tomei LSD nem nada para ver anjos”, pondera, com um copo de uísque na mão, às 14h de um dia ensolarado de outubro. Iniciado nos mistérios subterrâneos, datilografou um livro no qual revelava somente aquilo que não iria “semear pesadelos em demasia”. Navegava sobre os alicerces do inferno à noite e vomitava na janela do quarto durante o dia em que datilografava a obra. “Ganhei uma úlcera com esta aventura. Quando eu terminei o livro eu já estava vomitando sangue”, revela. “Vivi muitas aventuras que deixariam o Indiana Jones parecendo o Cebolinha”, narra, ao erguer as mãos e mostrar as cicatrizes deixadas pelo fogo e as tatuagens simbólicas que carrega no corpo. No pescoço, leva consigo um dente de jacaré com uma pedra de âmbar trazidos da África. Entre os seus apetrechos mágicos, guarda um ovo de avestruz, uma bola de cristal, pedras mágicas, uma imagem de São Jorge. Entre outros ícones, mostra uma casa de João de

barro encontrada na rua. Para o pai de um jovem estudante de Jornalismo da UFRGS, de 23 anos, encontrar uma residência como esta só acontece para homens amorosos e pais que cuidam da sua família. Ainda apontando para alguns objetos se adianta: “Antes que me perguntem, esta caveira é falsa, viu”. Garante que violação de sepulturas e sacrifícios de animais passam longe do tipo de magia que cultiva. Além do tarô, o exorcismo é também uma das suas tarefas para proteger os humanos. “Em geral são as casas que estão endiabradas”, esclarece. O único exorcismo feito com pessoas foi aplicado à distância quando ligaram para ele de Cruz das Almas, da Bahia. Em questão de uma hora o demônio havia ido embora e a filha do senhor encapetado fez questão de agradecer o favor incluindo o mago em suas orações. Reside em uma casa onde os objetos se mexem sozinhos e onde as energias ruins são depositadas em um local especial no corredor de entrada. A luz rubra ilumina um móbile decorado com um tarô egípcio. Abaixo disso se concentram objetos abissais, onde devem morar os demônios e as energias

AMOR A esposa, Ana, vê objetos se moverem na casa

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ruins para que não se alastrem para o resto do lar. Ali se asilam em uma pequena gaiola, onde recebem água e comida, e assim são mantidos amordaçados para não causarem perigo. Antonio Augusto alerta sobre a periculosidade das alegorias diabólicas e avisa para não fotografá-las, a não ser que o fotógrafo queira ter sua vida prejudicada e ameaçada. Quando o assunto tange o bem e o mal, cita Mario Quintana: “Ninguém é tão ruim quanto parece, nem tão bom quanto se julga ser”. Defende que o livre arbítrio funciona como uma balança. Ao longo da vida, um dos lados acabam por pesar mais e a dirigir as atitudes do homem. Acusado de maniqueísmo barato, insiste em apostar no dualismo como a essência do universo, e perfaz uma lista de oposições entre dia e noite, homem e mulher, vida e morte. Assim, considerase um dualista “dialético”, que aprecia o equilíbrio das forças contrárias para que o mundo possa girar. Tira sarro do Deus judaico-cristão, que esculpiu criaturas para depois condenálas ao sofrimento eterno. “Tira uma criatura do nada. Dá 70 anos de dor de dente, colégio, imposto, chega às 8h e sai às 18h do trabalho, divórcio, filho doente, conta pra pagar. E depois de tudo o cara vai pro inferno por não ter ido à missa aos domingos”, ironiza. Antonio Augusto acha que deveria ter um programa de rádio ou televisão. No entanto, para aparecer nas telas da mídia gaúcha teria que assumir um visual ridículo, usar um turbante, uma roupa repleta de franjas, 17 colares de pedras falsas e anunciar que traria a pessoa amada em três dias. O membro mais inquietante da família Fagundes disserta que para ele, tudo é mágico e todo homem é um mago, entretanto a sociedade do homem branco direcionou a percepção humana para uma única dimensão e, assim, evita com que os seres regressem a uma sabedoria que sempre esteve com eles. Mesmo assim, prefere não suscitar a magia nos outros. “Perto da minha concepção de mundo, eles são como crianças cegas. As crianças estão no berçário fazendo gugu dadá. Não vou ir até lá falar que a inflação está subindo”, ilustra. Quanto a essas

“crianças” confessa que já sentiu vontade de ver o mundo da maneira delas. Gostaria, de por um momento, poder preocuparse apenas com a defesa do Grêmio, com o carnê ou com a promoção que permitirá pagar o silicone da esposa. Porém aceita com afeição a singular visão que lhe foi atribuída pelo universo. “Se vocês soubessem o que eu sei, não dormiam mais, não iam conseguir apagar a luz”, intimida. O letrista das composições da banda de rock Rosa Tatuada, gosta de música étnica do norte da África, assim como a russa e a cubana. Passa longe de filas, aglomerações e casas noturnas. É em casa que ele se diverte, bebe e vive com a esposa Ana, de 25 anos. Para agradá-la, em certas ocasiões, comete a infelicidade de sair de casa e partir para um evento tão hostil ao combatente das outras dimensões: “Não é porque eu sou um velho neurastênico, uma pessoa completamente irritável que eu não vou sair com a minha mulher”. Para vê-lo realmente irritado, basta ligar a TV. É quando o homem, na maior parte do tempo controlado, que gosta de viver baixinho e se comove com reportagens de cachorros salvadores de vidas, assume uma face aguerrida. Além da falta de respeito, não tolera locuções de rádio e televisão. O auge da cólera costuma culminar em uma apresentadora da Band, de sotaque baiano, ou ainda, em um grito de gol. Após cinco décadas entre vários mundos, o autoconhecimento foi uma virtude adquirida, mas, para o homem que não compra roupas e as usa até desmanchar, a percepção da idade de sua alma alcança a margem dos milênios. Tendo vivido de tudo um pouco, conhece o sofrimento sentido em situações distintas, nas quais poderia ter sido cego, perneta, anãozinho, ou até mesmo gigante: “Assim como que fui o idiota da vila em quem todos apedrejam, também fui grande, forte e malvado, com uma espada deste tamanho. Eu sofri todas as feridas do mundo e por isso eu não rio de ninguém”. Na noite em que preparou feijão branco, o pai e marido que se considera um “diabólico na culinária”, volta a discorrer sobre o inferno. Conta o modo como as forças das trevas marcam em suas planilhas a

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conquista de mais uma maldade semeada no mundo dos humanos. Na empresa chamada inferno não há qualquer tipo de solidariedade, somente uma hierarquia resultante do poder que uns exercem sobre os outros. Ao brigarem entre si, em suas rebeliões e golpes de estado, promovidas nas chamas subterrâneas, os demônios perdem em eficácia, o que facilita e protege a vida dos homens terrenos: “Sorte a nossa. Senão já estávamos ferrados”. Ao traçar uma radiografia política do inferno, explica que o domínio das trevas não pertence mais ao binômio Satã/Lúcifer, mas sim a Belzebu. Após uma mudança no padrão da humanidade em decorrência da primeira guerra mundial, o ex-anjo do céu, que dava-se por satisfeito em ser idolatrado, frustrou-se com tanta destruição e passou o bastão ao demônio regente da putrefação. “Essa nova administração belzebística é mais empresarial. O objetivo dele é destruir tudo mesmo. Drogas novas, poluições novas”, explica e esclarece que há diversas novidades contemporâneas vindas direto das oficinas infernais, como algumas ideias científicas e a própria indústria bélica. Coberto da capa preta que o protege de influências espirituais indesejadas, retira da estante um livro vermelho de suposta autoria de Nelson Leano. Em torno de cem páginas, revestidas de uma capa com tipografia característica dos anos 1980, o livro transborda satanismo. Este seria, segundo Antonio Augusto, o livro proibido de Paulo Coelho, o qual ele teria pago uma fortuna para recolhê-lo de circulação e ainda contratado um hipotético autor para aparentar que o livro não era do mago autor de best-sellers. “Tão mal escrito que dá pra ver em algumas partes que foi o Paulo Coelho que escreveu. Tu reconhece o estilo mixuruca dele. Só causa dano ao leitor”, comenta e após gargalhadas salienta que o mago “bonzinho” teria vendido a alma ao diabo e hoje pede perdão aos pés da Virgem Maria. Em 1997, a Câmara Riograndense do Livro promoveu um debate entre os dois magos. O velho amigo de Raul Seixas alegou na mídia que não debateria com o gaúcho e declarou aos jornalistas que ele era um “mago negro”. “A vida não é em preto e branco.

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Pelo contrário, ele é um sínico, um hipócrita, se alguém é um mago negro, este alguém é ele”. O desentendimento se agravou no dia do debate, quando o morador de um castelo na Suíça desembarcou em Porto Alegre rodeado de seguranças munidos do retrato de Antônio Augusto. Um tempo depois do incidente, Paulo Coelho o convidou para um almoço em um hotel. Afirmou que teria se equivocado sobre a índole do vidente gaúcho e não quis se encontrar com ele pois acreditava que tratava-se de um mago malvado e poderoso que iria atrapalhar os seus caminhos. Antonio Augusto Fagundes recusou-se a comer, pediu uma garrafa de Chivas e, por sua vez, bebeu metade dela enquanto seus olhos faiscavam de raiva do mago que manchara a sua imagem como escritor e profissional da cultura proibida. “Por pouco não pulei na goela

Tão mal escrito que dá pra ver em algumas partes que foi o Paulo Coelho que escreveu. Tu reconhece o estilo mixuruca dele. ANTONIO AUGUSTO, “Pragmágico”

dele. Ele ficou todo querido, queria saber quantas tatuagens eu tinha. Foi horrível”. Depois disso escreveu um texto em que esclarecia os fatos, afinal, se há uma tarefa que ele acredita que faz bem, esta tarefa é escrever. No momento em que os internautas manifestaram apoio ao mago dos pampas, Paulo Coelho retirou o texto do ar. “Ele usa a coisa mais típica do satanista que é a hipocrisia de passar-se por iluminado. E as tiazinhas colecionam os livros dele”, debocha. O devoto de San La Muerte, entidade implacável e sorrateira, cultuada pelos povos da América Latina, acredita que a terra é como uma FASE do universo, onde cada um deve cumprir uma missão. “Eu conto com a

ENERGIA Móbile feito com um tarô egípcio recepciona convidados

FUTURO Tarot do mago gaúcho contém ilustrações de Salvador Dali

ALEGRIA Porta coberta de fitas leva diversão aos moradores da casa benevolência de San La Muerte, de me preservar, para que eu possa escrever o que eu tenho que escrever, contar as histórias que eu quero contar”. Já os anjos, não precisam passar pela terra. Não possuem alma para evoluir pois são seres feitos de amor. “Por isso que os anjos leem o pensamento da gente. Quem ama conhece, compreende. Já os demônios não”. Observa que há uma nova consciência do sagrado e uma religiosidade espontânea, mais plural e mais sincrética, na qual as pessoas cada vez mais deixam as igrejas e se voltam a Deus. A criança silenciosa que não despertava a atenção dos pais, passava o tempo concentrado nos seres extraterrenos, ao passo, em que esquecia-se dos mortais. Na adolescência, adaptava-se ao planeta Terra e inclusive praticava ginástica olímpica no Grêmio Náutico União. “O mundo perdeu um atleta e ganhou um bruxo”, zomba. O jovem calmo que se adequava à normalidade perdurou até os 14 anos. O fogo fez com que fisicamente carregasse a aparência de um monstro. “As crianças ficavam me torturando. ‘Monstro, mostro’...”. estranhamento que provocava nos outros o isolou em livros proibidos e nas suas assombrações. O filho, Ariel, detentor de um nome de anjo para que assim estivesse protegido, estudou crenças orientais e astrologia por influência da mãe. Orgulha-se da sua família nada convencional que o permitiu ter uma visão

transcendente: “Eu sempre me senti extremamente protegido, de uma forma sobrenatural.” Se define frio e estranho aos homens comuns. Os amigos o evitam. A própria mãe sente medo dele. “Até o Nico tem medo de mim”, afirma referindo-se ao pai, Nico Fagundes, apresentador e cantor tradicionalista. “Eu quase não seria humano senão fosse o afeto que me prende ao meu filho e à minha esposa”, desabafa. Gosta de falar de ideias, de fatos e de sentimentos. Possui o entendimento das religiões comparadas. É um homem que entende da Bíblia e sabe a teoria e a prática da invisibilidade. Espera que, no dia 21 de dezembro de 2012, data do apocalipse do calendário maia, as pessoas percebessem a si mesmas como entidades espirituais e passassem a relutar em morrer nas guerras. Diz que possui um alto grau do sentimento do sagrado. Sua paixão são as religiões. Seu lema é “sem respostas prontas e sem perguntas proibidas”. Fala que em cada olhar estão guardados todos os pores-do-sol, todas as vivências de cada um. E, por este motivo, os seus olhos dizem ao mundo que ele é um mago. “Às vezes, eu entro em um lotação e é como se tivessem jogado uma cobra lá dentro. As pintas ficam farejando o lobo em mim, farejando o estranho, farejando o mistério”. Ao despedir-se, faz uma síntese de si, referindose ao protagonista da série de quadrinhos Hellblazer, de Alan Moore: “Querem saber o que eu sou? Eu sou o Constantine”. revista exp

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DEFESA

sem regras Porto Alegre é uma das cidades brasileiras que têm instrutores e um centro autorizados a ensinar a arte de proteção pessoal israelense Krav Magá

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GABRIELA SCHIAVI

É A TÉCNICA Bokowski (no chão) treina alunos de diferentes idades e sexos

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final de tarde em Paris. Jason e Marie conversam na sala de estar de uma casa. Ele se aproxima da janela, enquanto ela pergunta se há algo errado. De repente, um homem armado atravessa a vidraça atirando. Marie foge, enquanto Jason se posiciona para interceptar o invasor. Jason derruba o homem e, com uma cotovelada, consegue desarmá-lo. Os dois lutam. Uma sucessão em alta velocidade de chutes, joelhadas, imobilizações, sufocamentos, esquivadas e socos marca a disputa dos dois. Até que, da bota esquerda, o invasor tira uma pequena faca e ataca. Jason torce o braço do homem, mas ele não solta a faca. Jason recua até uma mesa e recolhe uma caneta. Ele desvia dos golpes do invasor e consegue perfurar sua mão. Agora, ambos estão desarmados. Em uma última tentativa, o invasor se lança em direção a Jason, que apara o impacto do golpe, e com dois movimentos precisos, quebra a perna e o braço do homem. A luta acabou. E em poucos segundos, a cena vai terminar também. A descrição acima se refere a uma sequência de pouco mais de três minutos do filme A Identidade Bourne, de 2002. No longa, Jason Bourne, interpretado por Matt Damon, é um homem sem memória. Ele não sabe quem é, de onde veio ou por que está sendo perseguido. Porém, descobre muito rápido uma coisa: sabe defender-se. Ao assistir a um filme como esse, parece improvável que alguém, fora das telas, chegue ao mesmo nível de especialização em luta. A violência contemporânea, entretanto, é real e ultrapassa a ficção. Por mais implausível que seja tornarse um Jason Bourne, pelo menos é possível conhecer o que deu destreza ao personagem. Das inúmeras formas de arte marciais empregadas por Jason em sua busca, se destacam as técnicas de defesa. E, entre elas, o Krav Magá. Criada em meados dos anos 1940, a técnica, em um primeiro momento, tinha como propósito impulsionador a necessidade de preservação do povo de Israel. Na época, a comunidade judaica sofria forte repressão. O berço dessa forma de luta são os grupos de resistência

dos judeus. Durante a Segunda Guerra Mundial, o método foi desenvolvido a fim de solucionar situações de violência, com envolvimento ou não de armas, e até mesmo para libertação de reféns. Com a criação do Estado de Israel, em 1948, o Krav Magá foi escolhido como a filosofia do serviço militar israelense. Os movimentos são desenhados para que os praticantes consigam se desvencilhar até mesmo de posições de desvantagem. São variações de socos, torção de membros, cotoveladas, chutes e imobilizações. A técnica se divide nos ramos militar e civil. Para forças de segurança, como exércitos e batalhões de operações especiais, os golpes ensinados focam o desarme de arma de fogo e faca, e no uso do bastão, além de estratégias contra ataques terroristas. Para a população comum, a técnica prioriza prevenção, fuga e evasão para agressões de curtas e médias distâncias e combate corpo a corpo. Em uma situação de assalto, por exemplo, em que a vítima esteja caída no chão, a técnica oferece opções de chutes para repelir ou derrubar o agressor. O impacto desses golpes, se bem aplicados, é suficiente para dar tempo de fuga à vítima. A técnica hoje é reconhecida como uma “arte de defesa pessoal”, pois objetiva a preservação da vida frente a potenciais agressões, tanto pela capacidade de prevenção de ataques, quanto por meio de uma resposta ativa. Em simulações de combate armado ou desarmado, contra um ou diversos agressores, em pé ou no chão, o Krav Magá ensina a racionalizar golpes. A ideia é, por meio da simplicidade, da rapidez e da objetividade, neutralizar a ameaça. Baseada na motricidade natural do corpo, a técnica combina transferência de peso e força explosiva para potencializar as respostas defensivas. A força bruta não tem vez no Krav Magá, por isso, qualquer pessoa pode praticar a modalidade, independentemente de sexo, idade, porte físico, condicionamento ou conhecimento prévio em lutas. Dessa forma, o Krav Magá atrai desde pessoas ligadas ao ramo de segurança a donas de casa. Princípios como coragem,

Não é arte marcial nem esporte. Não temos competições, pontuação ou regras. ROBERTO BOKOWSKI, instrutor

equilíbrio, paciência e respeito regem a técnica, ainda que essa forma de luta não se balize em normas. “Não é arte marcial nem esporte. Não temos competições, pontuação ou regras”, explica o instrutor Roberto Bokowski, representante da Federação Sul-Americana de Krav Magá no Rio Grande do Sul. Os pontos mais sensíveis do corpo são os principais alvos dos golpes, algo que não seria aprovado no boxe ou no MMA. Contudo, em uma situação de violência, atingir zonas como olhos e órgãos genitais pode ser imprescindível. O princípio básico da técnica é a prevenção. Pela perspectiva da modalidade, caso não seja possível impedir a agressão, qualquer golpe (mordidas, inclusive) se torna legítimo, quando a sobrevivência está em jogo.

Rotina de aulas

Manhã de sábado. Faz sol em Porto Alegre. São 10h e, aos poucos, 29 alunos chegam ao Centro de Krav Magá, na rua General João Telles. É um grupo diversificado. “A prevalência é de homens, mas temos entre 15% a 20% de mulheres frequentando o centro”, conta Bokowski. Na aula do dia, quatro alunas se juntam ao grupo, entre elas Shana Weber, 30 anos. A bióloga faixa amarela começou no Krav Magá por influência do namorado, mas decidiu continuar por perceber mudanças em sua atitude. “Nunca precisei utilizar os golpes, mas já consigo identificar o perigo. E, às vezes, me pego imaginando quais movimentos eu poderia usar para me safar das ameaças que eu descubro. Essa confiança é a melhor parte”, conta Shana. “Em pouco tempo, o aluno já se sente pronto para dar uma reação a uma agressão”, garante Bokowski. O que não quer dizer que seja tão fácil assim. revista exp

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A rotina das aulas começa com um aquecimento que, por si só, já é uma lição. São vários minutos de corrida, alongamento, abdominais e rolamentos (técnica que ensina como cair e como levantar em situações em que é necessário ter controle sobre a direção em que o corpo irá rolar no chão). “O Krav Magá prima por movimentos naturais do corpo, e o rolamento não é natural. É preciso prática para torná-lo instintivo. E por isso faz parte de todos os treinos”, afirma Bokowski. A turma de final de semana é dividida em grupos, de acordo com as cores das faixas. O grupo branco, com 17 alunos, recebe as instruções básicas. O amarelo, com oito, reveza exercícios de chutes e quedas. E o laranja, com quatro, foca sua atividade nas “pegadas”. Nesse estilo de golpe, o agressor segura pela gola da camisa a vítima, e esta, então, repele o ataque através de um afastamento brusco de seus braços por entre as mãos do agressor. Todos os exercícios simulam situações reais de violência urbana. Movimentos de percepção de ataque e contraataque e de controle do corpo são esmiuçados e repetidos à exaustão. O advogado Adaílton Monson, 29 anos, já passou pela esgrima, mas escolheu o Krav Magá como alternativa para condicionar o físico e preparar-se para a vida. “Com o Krav Magá, a gente passa a ser mais calmo. Aprende a ter autocontrole, a não utilizar os conhecimentos que recebemos em vão”. A meta de Monson é

Origem militar

ENRAIZADO Brodacz orgulha-se de praticar o método histórico aperfeiçoar sua técnica e mudar, o mais rápido possível, da faixa branca para a amarela. O ambiente do Krav Magá, a primeira vista, não parece muito apropriado a crianças. Na aula, as instruções são diretas quanto à razão dos golpes e seus alvos, como os órgãos genitais. Porém, com autorização e acompanhamento dos pais (em caso de menores de 12 anos), crianças podem praticar. “A criança não está acostumada. Então, nós pedimos a supervisão da família”, pontua Bokowski. A segurança dos alunos é prioridade no centro, assim como orientações sobre o emprego fora da academia. “A postura e a observação são muito importantes. Se a pessoa

aparentar fraqueza, se ficar em uma posição de submissão, estará vulnerável a ataques”, aponta Bokowski. Opinião compartilhada por Fernando Hayashi Sant’Anna, 28 anos, faixa amarela. Para o aluno, o Krav Magá é mais efetivo do que qualquer arte marcial, pois prepara para inúmeras situações. Sant‘Anna defende que fica a cargo do indivíduo desviar do conflito ou se engajar em uma luta com um agressor. “O Krav Magá ensina sobre os nossos próprios limites. Não encorajamos ninguém a reagir ativamente a um assalto, por exemplo, mas o aluno sabe que tem a opção de tomar uma atitude efetiva. A decisão é de cada um”, completa Bokowski.

Um sinônimo para defesa é resistência. Quando vítima de um ataque, qualquer pessoa, seja ela agente secreto ou florista, precisa resistir ao impulso mais básico da sobrevivência: o medo. O que não significa sair por aí golpeando suspeitos, mas estar preparado para controlar a si e a situação. Esses foram os ensinamentos do mestre que criou o Krav Magá, Imi Lichtenfeld. Eram os anos de 1940, período que compreendeu a Segunda Guerra Mundial. Época de grande perseguição a minorias, entre elas o povo judeu. Nascido em Budapeste, Lichtenfeld era filho de um instrutor de defesa da polícia secreta local. Engajado em técnicas de luta, fez parte de um grupo de resistência à perseguição antissemita. Em 1942, recebeu permissão para ingressar no território que seria reconhecido como o Estado de Israel. Lá, passou a ensinar um método novo de defesa pessoal, desenvolvido por ele a partir de sua experiência em guerras e estudos sobre o corpo humano. “Por ter sido o único a conseguir transmitir a técnica com consistência a cada nova turma de adeptos, Imi Lichtenfeld é reconhecido como o criador do Krav Magá”, conta Roberto Bokowski. Inicialmente, o Krav Magá fora direcionado à elite das forças militares israelenses. Em 1964, foi liberado para a população civil de Israel e, em 1990, chegou a academias em todo o mundo. A Confederação Sul-Americana de Krav Magá já autorizou 14 estados brasileiros a montar centros voltados à técnica. Ligado desde sua origem a preservação da nação israelense, o Krav Magá também abriga em suas academias pessoas para quem o significado dessa arte de defesa transcende a prática física. Yaron Brodacz, 39 anos, faixa laranja, define: “O Krav Magá é como se fosse o futebol para nós. Está enraizado. Está no sangue”.

Por cores

tO Krav Magá tem um sistema de graduação por faixas coloridas. A primeira vai da branca à verde e leva, geralmente, dois anos.

INSTRUMENTOS DE LUTA Turmas avançadas utilizam réplicas de armas brancas e de fogo

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tA segunda fase, que perdura por no mínimo quatro anos, engloba as faixas azul, marrom e preta.

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DIVULGAÇÃO

TODA HISTÓRIA DE TERROR

é uma história de amor Trabalhando com parcos recursos, cineastas brasileiros mantêm vivo um gênero que historicamente jamais gozou de muita popularidade no país: o terror fantástico

A

LUCAS CUNHA

ntes de começar, a primeira coisa que você precisa saber é: jamais, sob hipótese alguma, ouse fazer menção da palavra trash para se referir ao assunto desta reportagem. É uma gafe imperdoável. É mais ou menos o equivalente cinematográfico a tomar um cálice de espumante com o mindinho em riste. É tão errado que os seus interlocutores meio que vão ficar com um misto de vergonha e pena de você. Acredite, falo por experiência própria. O.K.? Muito bem, podemos começar: Você sabia que rondando o circuito do cinema nacional de

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grande porte, longe das leis de incentivo à cultura, existe um gênero pulsante de filmes, com seu universo próprio repleto de mitos e lendas, que contam com festivais, mostras e revistas especializadas? Sabia que existe toda uma categoria de filmes realizados por pessoas que não pretendem receber nada em troca deles, além da satisfação de homenagear seus ídolos? Você pelo menos sabia que existe um cinema nacional de grande porte? Cristian Verardi, 37 anos, é um desses realizadores. Ele é, atualmente, um dos principais críticos e produtores de cinema de terror e fantástico do Brasil. Entre outras coisas, produziu (e atuou) em clássicos recentes e ocultos do cinema de terror

nacional, como Mangue Negro, A Noite dos Chupacabras e Porto dos Mortos. Verardi nasceu em Encantado, interior do RS. “Desde criança acho que sou interessado por essas coisas. Lembro de ter uns seis, sete anos e já ficar lendo aquelas revistas de terror”, conta. Verardi está se referindo a um gênero estranhamente popular na imprensa nacional em meados da década de 1970/80 — revistas como Cripta, Cova, Macabro e outros títulos pouco convidativos que apresentavam em suas páginas basicamente histórias em quadrinhos e contos de terror. “Acho que o que me fascinava naquilo, pelo menos naquela época, era a possibilidade do

inusitado. Isso é muito forte numa criança. A tua atenção fica magnetizada por essas coisas bizarras e grotescas”, considera. Um dos meios mais férteis para se corresponder com mentes semelhantes era o correio. Logo na adolescência, Verardi já estava trocando revistas e fitas VHS com amigos de todos os cantos do país. “A gente tinha uma rede de correspondência muito parecida com o que a internet é hoje pra essa gurizada. Com uma diferença: naquela época a gente realmente acabava vendo os filmes, eles não ficavam mofando numa pasta esquecida do computador”, brinca. De mero espectador e difusor dessa cultura, Verardi logo passou a produzir. Naquela revista exp

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época, as subculturas tinham um só meio para se expressar: os fanzines. A vantagam é que estes eram relativamente baratos (podia-se encomendar o material necessário pelo correio) e, através dessas redes de correspondência postal, alcançavam um público relativamente grande. “Fiz vários fanzines nessa época. Tu conseguia um alcance muito amplo com eles. Além disso, o engajamento era maior, as pessoas realmente participavam, sabe? E, porra, eu era um guri do interior, jamais que eu ia ter acesso àquela quantidade de informação que os fanzines me traziam”, constata. Outra área na qual o jovem Verardi se aventurou foi a produção cinematográfica, por assim dizer. Com 16 anos, filmou seu primeiro curta — com a câmera roubada da irmã. “Nem lembro do roteiro direito, mas devia ter muita coisa copiada ali. O interessante é que, com o filme pronto, deixei a fita na locadora da cidade. Tinha bastante saída até”, ri. Já com 20 anos, Verardi veio para Porto Alegre para estudar Letras na UFRGS. Logo engatou uma carreira de crítico de cinema de terror em duas revistas de São Paulo, a Cinemonstro Horror Magazine e a Planeta Proibido. Isso foi por volta de 2003, e, um pouco em razão de suas colaborações com imprensa, Verardi acabou conhecendo dois porto-alegrenses que mais tarde se tornariam uns dos principais diretores da nova cena de terror nacional: Dennison Ramalho, que chegaria a trabalhar com o príncipe das trevas do terror nacional, Zé do Caixão; e Davi

O atraso de Porto dos Mortos foi todo resultado de questões técnicas. Percebi que realizar um filme satisfatório pode ser um processo demorado. DAVI DE OLIVEIRA, cineasta

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Na verdade, acho que muitos fãs prezam essa qualidade de sociedade secreta da coisa toda. CRISTIAN VERARDI, crítico e curador

de Oliveira, que anos mais tarde realizaria o cultuado e pouco visto Porto dos Mortos. Verardi também veio a trabalhar num dos prováveis marcos da expansão comercial do cinema de terror do RS: o festival Fantaspoa. Participou da mostra por três edições, de 2007 a 2010. “Saí porque comecei a me envolver cada vez mais com a produção de filmes, daí não achei ético julgar filmes nos quais estava envolvido”, explica. Mas o que se nota é que ele não concorda totalmente com a atual liberdade de gênero nas produções exibidas. “É, acho isso meio estranho”, confessa. “Talvez o festival tenha se aberto a outros gêneros sem muito aviso. Já vi gente sair meio decepcionada das sessões, porque foi esperando uma coisa completamente diferente. Na última edição, por exemplo, até dramas foram exibidos, algo que seria meio que impensável no passado.” Verardi também trabalhou na produção do supracitado Porto dos Mortos, de Davi de Oliveira, um filme que, à época de seu lançamento, gerou um burburinho bastante grande na imprensa local. Muito se comentou da qualidade do filme, de como ele não devia nada aos blockbusters americanos. No fim, o longa, que começou a ser anunciado em 2002, teve uma produção conturbada e um lançamento frustrante nas mostras competitivas. “Eu conheço o Davi, fui amigo dele de longa data, pra dizer a verdade. E ele é um perfeccionista. Esse é o problema. Ele simplesmente não largava a edição do filme. Foi um tal de burilar que não acabava mais. Acho que o Davi deve ter feito mais de vinte cortes [versões finalizadas de um filme]”, relata.

Para Verardi, a recepção fria que o filme recebeu nas mostras de que participou é, em parte, resultado dessa preocupação quase anal de Davi com os detalhes. A outra parte seria o fato de o diretor ter frustrado a expectativa de seus fãs. (Fãs de terror devem ser a espécie mais exigente e xiita e sectária do espectro nerd. O segundo lugar, obviamente, ficaria com os fãs de metal. Você simplesmente não frustra a expectativa dessa gente e espera que as coisas fiquem por isso mesmo.) “No fim das contas, tu acabava notando que Porto dos Mortos não era um filme de zumbi. Ele não cumpria o que prometia”, Verardi analisa. “Do meio pro fim, você nota essa diferença: os planos vão ficando mais contemplativos, o ritmo vai desacelerando. É uma pena.” Segundo Davi (um diretor que, nas palavras do próprio, não prima pela clareza; “prefiro enigmas”, ele diz), a demora para lançar Porto dos Mortos foi oriunda “de questões técnicas, que criaram um cronograma mais extenso de pós-produção”. Ele complementa: “A espera não ocorreu num nível de produção, pois estávamos

sempre em movimento. Se algo me dá medo é que o tempo passou tão rápido. Percebi que fazer um filme satisfatório, mesmo que temporariamente, é um processo demorado”. Numa tentativa de recuperar algum lucro, Davi conseguiu vender seu filme para o serviço de aluguel online Netflix, antes mesmo de lançá-lo oficialmente no Brasil. Com essa estratégia comercial em perspectiva, a pergunta agora parece inevitável: por que o terror não consegue se estabelecer como gênero rentável no Brasil? Mais a fundo, por que parece que filmes desse tipo estão sempre à margem do diálogo cultural, ao contrário de países como, digamos, os Estados Unidos ou o Japão? Quem é o Edgar Allan Poe brasileiro? Quem é o Stephen King nacional? “Olhando desse jeito parece uma coisa negativa, mas não é”, revela Verardi. “Acho que até muitos fãs prezam essa qualidade de sociedade secreta da coisa toda. É um lance que sempre foi de nicho e, pelo que eu consigo ver, sempre vai ser. Mas a gente não quer mudar. A gente tá bem assim. Só é foda quando dizem que os filmes são trash.” Eu não disse?

LUCAS CUNHA

TERROR Cristian Verardi, ex-curador do Fantaspoa

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A SOCIEDADE DAS

LETRAS

Uma ideia na cabeça e 256 caracteres rendem uma poupança gorda e vitalícia para o sujeito que estiver a fim de formar uma família diferente: a tipográfica

TIPOS Eles demoram uma semana para serem contruídos e podem render ao criador, além de prestígio, royalties para a vida toda THAMYS TRINDADE

C

om serifa, sem serifa, arredondada, achatada. Poucos atentam a isto, mas, enquanto estiverem lendo estas palavras, impressas na fonte Cambria, consomem o produto de um extenso trabalho de design. O universo da escrita é específico, conflitante e tão poderoso que pode tomar uma importância visual equivalente à da imagem

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que acompanha a própria publicação textual. A tipografia é a escrita com letras pré-fabricadas que dão ordem estrutural e forma à comunicação impressa. A habilidade em traçar letras e símbolos se centraliza, boa parte, no profissional chamado designer de tipos. É ele quem desenvolve novos desenhos tipográficos e produz. Muitos criadores de fontes clássicas, desenvolvidas há mais de 500

anos, são até hoje apreciados e comercializados. Exemplo dessa prática acontece com a linha de cosméticos Neutrogena, que usa no logotipo dos produtos da marca, a fonte do francês Claude Garamond, criada no século 15. O surgimento da computação gráfica nos anos 1990 tornou a tipografia uma sopa de letras disponível para designers gráficos em geral e até mesmo leigos. O designer Pedro Biz ainda

não finalizou os projetos tipográficos iniciados, mas já publicou uma fonte batizada de Monk, criada a partir de uma ferramenta de construção de tipos online chamada Fontstruct e disponível gratuitamente. Ele acompanha o mercado de perto e afirma que existem fontes para varejo e fontes personalizadas. Dois mercados diferentes que se distinguem também nos valores de compra e venda. As personalizadas são projetos

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encomendados através das type foundries, empresas que fabricam e comercializam tipos ou fontes tipográficas. Quando uma empresa busca alinhar a tipografia padrão com o projeto atual da marca, ela busca esse tipo de plataforma de venda. Isso pode acontecer também no momento em que uma grande empresa não quer pagar licenças para diferentes fontes e acaba orçando um projeto específico.

Valores O preço das fontes de varejo é determinado pelo designer de acordo com a estratégia de venda de cada profissional. Nesse caso, o site escolhido para a comercialização da fonte fica com uma porcentagem sobre a venda. Segundo as últimas atualizações de Biz, as vendas “geralmente variam entre 29 a 99 dólares por estilo, sem calcular o lucro royalties”. À frente da Dalton Maag no Brasil, o designer gaúcho Fábio Haag recebe financeiramente os direitos sobre a primeira fonte que criou, no início dos anos 2000, até hoje. Ele confirma que fontes de varejo são de baixo custo, mas as mais lucrativas. A compra desse tipo de fonte é feita por empresas de design e algumas agências de publicidade para fazer as identidades visuais dos clientes. Somente na America do Sul, a Dalton Maag fatura R$ 2,5 mil mensais com esse tipo de comércio que, antes de se inserirem no mercado brasileiro, era nulo. O designer diz que essa é uma das quatro assistências que a empresa oferece. Refinamento de logos é um dos serviços de maior quantidade, modificação de fontes não é muito comum, mas o retorno financeiro é expressivo, custando mais de R$100 mil, e, por fim, a criação de fontes que garante exclusividade do uso para o cliente comprador do serviço. “Tudo começou como um hobby, mas eu queria fazer disso um negócio”, lembra Haag a respeito do primeiro contato com o universo da tipografia. Originalmente publicitário, entrou na área de desenho como designer gráfico, cuidando da identidade visual de empresas. Mas o universo cheio de cores do segmento passou a dar lugar ao desenho de letras, quase que desprovido de cores, mais monótono e nem por isso menos criativo. “O mais difícil na

Existem fontes para varejo e fontes personalizadas. Dois mercados diferentes. PEDRO BIZ, designer transição entre essas profissões é o aspecto visual: você sai de um mundo colorido para um mundo preto e branco o dia inteiro”, exemplifica. A Dalton Maag é uma das maiores empresas independentes de tipografia no mundo,

idealizada pelo proprietário e sócio de Haag, o sueco Bruno Maag. A matriz do estúdio de fontes, em Londres, é composta por um quadro de funcionários importados da Áustria, do Japão, dos Estados Unidos, do Brasil e da Suíça. Vinte anos de atuação no mercado nacional e internacional garantiram a ela trabalhos para marcas como BMW, Toyota, Nokia, HP e, recentemente, foi oficializada a criação da tipografia dos Jogos Olímpicos Rio 2016. A Dalton é conhecida e reconhecida por ser uma empresa onde as etapas de

design e de produção tipográfica são bem divididas e todos os projetos feitos em equipe. Haag, como diretor de criação, acompanha essa estrutura do início ao fim e contextualiza o processo criativo que dura, em média, três meses: “A primeira semana é destinada à construção das primeiras letras e, nesse período, já se estabelece o design. Nos últimos dois meses, a preocupação é em expandir a letra em pontuações e acentos, por exemplo”, descreve. Há quatro anos, Haag é a imagem da empresa no Brasil e responsável pelos negócios que

DESIGNER Pedro Biz alia teoria e criatividades na busca por um mercado cada vez mais ativo

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A partir da nossa ignorância nós conseguimos vislumbrar alternativas. FÁBIO HAAG , designer

incluem toda a América do Sul. Com o escritório estabelecido em um dos cômodos da casa onde mora com a esposa e o filho Gabriel, em Sapiranga, o designer consegue cumprir com uma rotina de oito horas de trabalho diárias com a mordomia do café passado e intervalos que começam com o choro do garoto e acabam quando ele volta a dormir. Depois do convite irrecusável para a sociedade com Maag, Haag viaja mensalmente para outros estados e até carimba o passaporte no Exterior, mas, ao mesmo tempo, consegue se fazer um pai presente no conforto do ambiente montado com “um bom computador, uma boa impressora e muita força de vontade” – itens que ele acredita serem indispensáveis para a investida na profissão. Identidade Inicialmente, o mercado tipográfico era voltado para a produção de livros, exigindo, portanto, pouca variedade de tipos. Depois da Revolução Industrial, no século 19, surgiu a necessidade de promover a venda de artigos produzidos em larga escala. No mercado brasileiro, as grandes empresas de design, de acordo com Haag, “não tinham muito conhecimento e uma exposição a essa realidade”. Ele acredita que hoje “aproximadamente 50 pessoas trabalham com o comércio de tipos no país atualmente”. Como o Brasil é desprovido de uma tradição tipográfica, diferente do que acontece na França e na Itália, na Inglaterra, onde é mais fácil identificar a origem medieval das letras e traços do século 15, não se tem uma tipografia genuinamente brasileira. “A nossa história com o desenho de tipos surgiu no final dos anos 1980, quando estávamos expostos a uma série de referências externas”, contextualiza o designer. Pode soar estranho, mas essa distinção mercadológica

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garantiu bons resultados para os brazucas. O ponto positivo dessa falta de ligação com os primórdios do segmento é que designers brasileiros arriscam sem medo e sem o peso da tradição nas costas. Até o próprio Bruno Maag abstraiu o orgulho nórdico e se rendeu a essa relevância dizendo que admite brasileiros “porque eles repensam coisas que nós não repensaríamos”. Haag acredita que “a partir da nossa ignorância, conseguimos vislumbrar alternativas que eles não conseguem”, e exemplifica com uma realidade do segmento: “Há duas grandes faculdades de tipografia no mundo: uma na Inglaterra e a outra na Holanda. Pelo menos um brasileiro, por ano, vai estudar lá. Quando esses estudantes voltam para o Brasil, lançam muita pouca fonte, pois eles vêm com uma carga e uma responsabilidade de criar algo tão grande, como os europeus, que o fato freia a criação”. E para começar, é importante lembrar que não há um número específico para um conjunto de caracteres em uma fonte tipográfica. “O tamanho do alfabeto determina a abrangência de línguas que a fonte alcança”, afirma o estudante Pedro Biz. O alfabeto é composto de 26 sinais, mas uma fonte, entre letras e sinais não alfabéticos, costuma ir bem além disso. Para uma fonte de qualidade, o básico de caracteres para o alfabeto latino são 256, aproximadamente, especifica Biz. Então, a partir do estilo e das proporções das letras, esses sinais devem ser projetados para se encaixar visualmente no texto e cumprir, assim, sua silenciosa, e nem por isso anônima, missão. A criação de uma família tipográfica pode ser comparada ao planejamento familiar. Em busca de qualidade de vida para a posteridade, ambos nascem a partir de um projeto. Após o ideal sair do papel, é estipulado um período dedicado à confecção e construção dos elementos que compõem a prole. Depois de constituída, é opcional a expansão ou não da turma. Quem decide é quem começou a produção na busca pelo aperfeiçoamento da espécie e inserção na sociedade - aqui, a das letras.

A loja

O evento

A maior loja online de compra e venda de fontes do mundo se chama My Fonts. Idealizada por Charles Ying, em 1999, a plataforma comercial tem a missão pioneira “de fazer o simples para que todos possam encontrar e comprar fontes”. O Sky Fonts é um site que comporta aluguel de fontes e foi desenvolvido para experimentar. A plataforma fornece acesso a milhares de modelos em pleno funcionamento para uso em todas as suas aplicações e estações de trabalhos licenciadas. É possível experimentar qualquer fonte de graça ou alugar uma por um mês ou até um dia.

A Bienal de Tipos Latinos é um evento tipográfico internacional, composto por 13 países da América Latina, entre eles Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. O evento promove, anualmente, o desenvolvimento de atividades que complementam e enriquecem as conversas, palestras, workshops e disputadas visitas guiadas. A exposição é apresentada simultaneamente em todos os países da região e realiza uma jornada extensa por diversas cidades, incluindo algumas fora da América Latina.

VIDA Fábio Haag administra mais de uma família fora de casa revista exp 57

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FOTO ANTÔNIO CARLOS MAFALDA / JORNAL ZERO HORA

LIBERDADE Depois de cinco anos presa no Uruguai, a militante Lilian Celiberti é recebida pelo abraço da filha Francesca

SOBREVIVENTES DA

Condor

Duas histórias interligadas por uma operação que serviu às ditaduras militares no Conesul e separou muitas vidas SARAH SOUZA

G

aby nasceu em 1978 e foi adotada por um casal de classe média alta, Roberto e Alicia, em Buenos Aires. Ele, empresário. Ela, professora. Uma família comum para a época que desconhecia as tragédias pessoais vividas por argentinos no período da ditadura militar. Certo dia, Alicia recebe a visita de Ana, uma amiga que estava exilada, e descobre os horrores praticados contra os opositores do regime. Entre as histórias, Ana fala sobre mães que foram presas e afastadas de seus filhos, em muitos casos poucas horas após o nascimento. A partir daí, Alicia começa a questionar a origem de Gaby e a descofiar que seus

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pais tenham sido presos políticos assassinados. O desfecho dessa história não chegou a ser contado pelo diretor Luis Puenzo, nos 113 minutos do filme A História Oficial (1985). A cerca de 220 quilômetros de Buenos Aires, onde se passa o filme, mais precisamente na capital Uruguaia, Montevidéu, uma história parecida ganha destaque. Nesse caso, com um desfecho conhecido. É a história de Macarena Gelman, que dispensa roteiristas e diretores. Trata-se do relato da vida de uma mulher que é considerada uma filha da Operação Condor. Aos 23 anos, em 2000, Macarena descobriu que não era filha legítima dos pais que desde 1977 a criavam. “Encontrei minha mãe chorando em casa e

perguntei o que se passava. Ela falou que tinha a ver comigo, com ela e com meu pai. Não sei por que, mas diante das lágrimas, questionei se não era sua filha e ela perguntou quem tinha me contado”, lembra. Os pais verdadeiros da jovem chamavam-se Marcelo Gelman e Maria Cláudia Garcia. Ele era filho do poeta argentino Juan Gelman, responsável por encontrar a menina. Mesmo do México, onde reside desde a época do exílio, o avô nunca desistiu de procurar a neta. Além de contratar investigadores, realizou campanhas tanto no Uruguai quanto na Argentina. Em agosto de 1976, Marcelo e Maria foram sequestrados em Buenos Aires e levados ao Centro Clandestino Automotores Orletti.

Poucos dias depois, os militares assassinaram Marcelo. Sua mulher estava grávida de sete meses e foi levada para Montevidéu na chamada Operação Condor. A operação compreendia um acordo de cooperação político e militar, entre as ditaduras do conesul (Brasíl, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai). Após o nascimento da menina, Maria foi morta e nunca encontraram seu corpo. A recém nascida acabou deixada na porta de um militar uruguaio que a criou, mantendo o sigilo durante mais de 20 anos. “A última vez que viram minha mãe biológica foi em 22 de dezembro, e eu fui deixada na casa dos pais que me criaram em 14 de janeiro de 1977”, destaca Macarena. A maternidade e a sexualidade eram o foco dos ataques dos militares contra as mulheres no período da ditadura. A afirmação é da uruguaia Lilian Celiberti, vítima da mesma operação que separou Macarena Gelman de seus pais biológicos. Lilian foi presa em Porto Alegre, em 1978, e ficou cinco anos afastada de seus filhos Francesca e Camilo. Na época, as crianças tinhas três e sete anos, respectivamente. Em 1976, ela e o companheiro, Universindo Días, militantes do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), no Uruguai, vieram ao Brasil com o propósito de denunciar os desaparecimentos

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permaneceram sob os cuidados dos avós maternos, mas Celiberti teve notícias deles apenas muito tempo depois. “Nas prisões, eles atacavam diretamente os vínculos familiares, no meu caso, a minha relação com meus filhos”, ressalta. Lilian lembra que conseguiu se livrar da morte porque um de seus colegas percebeu o que estava ocorrendo e telefonou para o chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, Luiz Cláudio Cunha, denunciando o sequestro. O jornalista e o fotógrafo João Baptista Scalco se dirigiram ao apartamento da Botafogo, comprovaram e divulgaram o ocorrido. A partir daí, uma série de ações levaram à identificação concreta da cooperação entre as ditaduras dos países do sulamericanos. A Operação Condor estava comprovada. Universindo também foi preso e torturado. As constantes violências sofridas no Palácio da Polícia em Porto Alegre e depois, quando chegou ao Uruguai, o deixaram com sequelas, principalmente nos joelhos. Morreu ao 60 anos, em setembro de 2012. Assim como Universindo, Macarena e Lílian são sobreviventes de uma Operação que não consegue contabilizar com precisão o número de vítimas. Quase 30 anos depois,

Nas prisões, eles atacavam diretamente os vínculos familiares, no meu caso, a minha relação com meus filhos. LILIAN CELIBERTI

as duas mulheres seguem mobilizadas. Celiberti é diretora da ONG feminista Cotidiano Mujer. “Coordeno atividades de debates políticos e redes de articulações com a temática feminista”, descreve. Logo após descobrir sua verdadeira história, Macarena entrou na justiça uruguaia para ter o direito de usar o sobrenome Gelman, de seu pai. Não deixou a mãe adotiva de lado e vive com ela até hoje. Largou a faculdade de biologia e passou a militar pela memória, a verdade e a justiça, como ela mesmo define. “Primeiro foi um grande choque. Depois fui encontrando outras pessoas que passaram pelo que passei. E percebi que o problema de um era o problema de todos.

Segui por esse caminho”, justifica. Casos como o de Macarena eram comum no período da ditadura militar na Argentina. As buscas, que ocorrem até hoje, estão concentradas na Associação Civil Argentina Abuelas de la Plaza de Mayo. De acordo com dados da entidade, aproximadamente 400 crianças levadas durante a ditadura ainda não foram encontradas. Acredita-se que muitos outros casos seguem sem registro. Até metade de 2012, as abuelas já encontraram 107 desaparecidos.

Las putas comunistas

De acordo com a historiadora Ana Colling, além de opositoras ao regime, as mulheres militantes eram enquadradas em categorias morais. “Eram tratadas como prostitutas, putas comunistas. Para o regime militar e para uma grande parcela da sociedade, as mulheres que militavam eram desvios do feminino”, afirma. Ana também fala que, além da militância de resistência, as mulheres se destacaram como mantenedoras da vida familiar na ausência do pai ou do marido, muitas vezes desaparecido; como protagonistas na luta pela anistia; e como mães que não se amedrontaram com ameaças e seguiram na busca por seus filhos presos e desaparecidos.

FOTO GOVERNO DA REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI

de companheiros na Argentina e no Uruguai. A ditadura militar imperava nos países do Cone Sul. Eles acreditavam que em terras brasileiras estariam seguros para denunciar, na imprensa, o sumiço de muitos companheiros de militância. “Queríamos tornar público para que mais pessoas soubessem, no Uruguai, que havia campanhas em busca desses desaparecidos. Escolhemos Porto Alegre pela proximidade física com nosso país. Em todo a América Latina, o Brasil parecia ter uma liberdade de imprensa maior, mesmo em um contexto de ditadura militar”, relembra. Sete meses após se intalarem na capital gaúcha, Lilian foi sequestrada enquanto esperava uma amiga na rodoviária. A uruguaia lembra que logo após ser abordada por um policial e entregar seu passaporte, a levaram para uma delegacia. Ao chegar, no que descreveu como um escritório, um homem uruguaio a cumprimentou. Logo reconheceu a face do militar: “Era o capitão Giannone. Ele tinha fama de cruel, e eu logo percebi que era uma ação de repressão”. Em pouco tempo, Lilian estava nua na delegacia, com cabos elétricos nos ouvidos e nas mãos. Durante a sessão de tortura, a militante conseguia pensar apenas nos seus filhos. “Camilo e Francesca esperavam para ir a uma partida de futebol com Universindo. Eu só conseguia pensar no perigo que eles corriam e em histórias que eu já conhecia, como a dos filhos de Sara e Emília (companheiras de militância), que tinham desaparecido”, relembra. Em seguida, Lilian conduzida para seu apartamento na rua Botafogo, em Porto Alegre. Universindo e as crianças preparavam-se para ir ao estádio Beira-Rio assistir à partida entre Internacional e Caxias. Todos foram levados para o Palácio da Polícia. Durante todo o trajeto, crescia a preocupação com as crianças. “Ninguém falava. Somente Francesca, que na inocência de uma criança de apenas três anos brincava com os policiais. Eu me sentia igual há alguns anos antes, quando Camilo esteve muito doente e eu não saía de seu lado. Queria protegê-los de tudo, como se isso fosse possível”, descreve. Pouco tempo depois, levaram Lílian para o Uruguai, onde ficou presa por cinco anos. Durante esse período, as crianças

REENCONTRO Macarena recebe o afago do avô, que a procurou durante mais de 20 anos revista exp

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O SEGREDO DA ANTIGA

FRAUDE

Considerado o maior desvio de dinheiro público da história do Estado, o caso das licitações da CEEE permanece sem desfecho e omisso da opinião pública THIAGO NETTO

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o cartório da 2º Vara da Fazenda de Porto Alegre encontramse mais de 50 mil processos armazenados. Em meio às inúmeras prateleiras de metal, uma das ações mais antigas e bem guardadas do Estado ganha destaque. Trata-se da maior fraude da história do Rio Grande do Sul, que tramita há mais de 16 anos na mão da Justiça sem previsão de desfecho. Esta Ação Civil Pública permanece até hoje em primeira instância e corre atualmente em segredo. Além do processo, que está omisso na Justiça, este caso também permanece escondido da opinião pública em um curisoso segredo de imprensa. Jornais como Zero Hora e Correio do Povo, que estamparam manchetes sobre o escândalo da CPI da CEEE na época, acabaram esquecendo desta pauta após sucessivas trocas de governos. Ao ser questionado sobre o porquê desta pauta não entrar em grandes redações, o colunista de política do Jornal do Comércio, Fernando Albretch, acredita que se deve ao fato deste caso ter forte conotação política. “Na época da CPI, inclusive, jornalistas foram afastados por divulgar determinadas informações sobre este episódio”, afirma Albretch.

A fraude

A história teve início em março de 1987, durante o governo de Pedro Simon, quando Lindomar Vargas Rigotto era empossado como assistente da diretoria financeira da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Germano Rigotto, presidente da Assembleia Legislativa na época, foi quem recomendou a posse de seu irmão ao cargo. Afundada em dívidas, a estatal enfrentava

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JUSTIÇA Ação Civil Pública permanece em primeira instância e tramita atualmente em segredo dificuldades financeiras, quando uma licitação manipulada para a compra de 11 subestações desviou da empresa um valor que, corrigido, corresponde a cerca de R$ 840 milhões. Isto equivale a seis vezes o valor do mensalão e cerca de 20 vezes o montante apurado no escândalo do Detran, que expôs a ex-governadora gaúcha Yeda Crusius a um pedido de impeachment. A denúncia na época levou à criação de uma CPI na Assembleia. Lindomar Rigotto foi apontado em 13 depoimentos como figura central do esquema. O relator da CPI era o deputado Pepe Vargas, do PT, primo de Lindomar e Germano Rigotto. Apesar do parentesco, o primo Pepe concluiu em sua acusação final que estava comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar. Antigo proprietário de uma das casas noturnas mais badaladas do litoral gaúcho, o

Ibiza Club, Lindomar acabou sendo executado com um tiro na cabeça ao resistir a um assalto na manhã da Quarta-Feira de Cinzas do Carnaval de 1999. Na época, ainda respondia a processo por homicídio, devido ao fato de ter supostamente empurrado uma garota da janela de seu apartamento, na Rua Duque de Caxias.

A censura

Em maio de 2001, o jornalista e sócio-proprietário do Jornal Já, Elmar Bones, resolveu regatar esta história e publicou uma reportagem intitulada “Caso Rigotto — um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”. Vencedora de um prêmio ARI e um valioso Prêmio Esso, a matéria detalha em quatro páginas do tabloide a vida polêmica e conturbada do falecido irmão do ex-governador do Estado Germano Rigotto. Com base em documentos públicos e

R$ 44 milhões é o valor desviado no escândalo Detran

R$ 141 milhões é o valor desviado no mensalão

R$ 840 milhões é o valor desviado na fraude da CEEE

inquéritos policiais, o jornalista Elmar Bones descreveu em detalhes todos os fatos obscuros que havia por trás da morte do empresário. Antes da publicação desta reportagem, o jornal inclusive ligou para o então candidato a

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governo do estado na época, Germano Rigotto. Segundo Elmar, esta atitude foi tomada ao identificar que a publicação pudesse prejudicar a imagem do político. “Ao contar o conteúdo da reportagem, Germano demonstrou descontentamento e alertou que sua mãe, Julieta Rigotto, possivelmente iria entrar com uma ação na Justiça”, relembra Elmar Bones. Com 27 anos de existência, o Jornal Já chegou a ter uma tiragem de 5 mil exemplares e uma redação composta por 22 profissionais. Hoje, com sua redação reduzida a dois jornalistas, o jornal vem sendo asfixiado financeiramente devido a um processo judicial que acusa seu sócio-proprietário pela prática dos crimes de calúnia e difamação à memória do falecido empresário. A ação, movida por Julieta Rigotto, cobra uma indenização por danos morais em um valor atualmente superior a R$ 50 mil. Em agosto de 2005, o juiz responsável pelo processo, decretou a penhora dos bens da empresa Já Editores, responsável pelo Jornal Já. Bones ofereceu seu acervo de livros, que por sua vez não foi aceito pela Justiça. Após esta decisão, Bones resolveu fazer uma edição especial contando os fatos citados acima. O episódio não gerou repercussão na grande imprensa, mas foi muito comentado nas mídias alternativas. O jornalista Luiz Cláudio Cunha publicou uma série de artigos no Observatório de Imprensa que chamou a atenção de um grande número de jornalistas do Estado. Em setembro de 2010, um grupo com cerca de 50 pessoas, composto por jornalistas e representantes de entidades sindicais, se reuniu na Associação Rio-grandense de Imprensa (ARI) e criou um movimento intitulado Resistência Já. Contando com o apoio do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, a iniciativa teve como objetivo ampliar ao máximo a divulgação dos fatos e buscar recursos emergenciais para garantir a circulação do jornal. A grande visibilidade que os fatos ganharam na internet levou os advogados de Julieta Rigotto a procurarem o jornalista Elmar Bones para fazer propostas de acordo. Os advogados

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Já Editores, o título traz na íntegra o texto da reportagem publicada em 2001. Além disto, a obra descreve detalhes dos processos judiciais e ainda exibe os documentos que serviram de fonte para a realização da matéria.

A omissão

RESISTÊNCIA Elmar Bones contou a saga do Jornal Já em livro exigiram primeiramente que o jornal publicasse uma nota de retratação. Bones negou o pedido, alegando que não tinha o que retratar, tendo em vista que a própria Justiça havia determinado, em uma primeira ação criminal, que a matéria era correta, precisa e de notório interesse público. A segunda proposta foi declarar que Julieta Vargas Rigotto nunca havia tentado fechar o jornal. Porém, todas as consequências do processo estão levando o jornal ao fechamento, o que fez com que o editor do Já negasse novamente o pedido. A terceira e última exigência feita pelos advogados era recolher a edição especial do jornal de todas as bancas da

cidade. Elmar Bones negou todas as propostas de acordo que, em sua opinião, são totalmente descabidas. “Ao aceitar, estaria atestando minha culpa sobre algo que não cometi”, explica o jornalista. Em 2011, uma organização internacional de direitos humanos, chamada Article19, entrou em contato com Bones demonstrando interesse em ajudar no caso. A entidade independente atua em vários países na promoção e proteção do direito à liberdade de expressão. Em novembro de 2012, o jornalista Elmar Bones lançou o livro chamado Uma Reportagem, Duas Sentenças – O Caso do Jornal Já. Lançado pela própria

REPERCUSSÂO ZH mostrou os casos envolvendo o empresário

O processo referente à CPI do Detran também tramitava em segredo de Justiça quando a grande imprensa de Porto Alegre estampava manchetes com informações sigilosas sobre o caso. O jornal Correio do Povo solicitou na época, mediante seu advogado, acesso ao conteúdo da ação devido ao fato da mesma tratar-se de interesse público. Uma cópia do processo foi cedida e distribuída na redação. A editoria política do jornal publicou uma séria de reportagens após ter obtido as informações sigilosas. A fraude da CEEE, apesar de 20 vezes maior que o caso Detran, permanece sem o interesse dos grandes jornais. A colunista de Zero Hora Rosane de Oliveira acredita que a ausência desta pauta seja uma falha da editoria Política de seu jornal. “Acabamos dando ampla cobertura a determinados assuntos e depois o deixamos cair no esquecimento”, comenta Rosane. A publicidade dos atos processuais é uma regra e uma garantia importante para o cidadão, pois permite o controle dos atos judiciais por qualquer indivíduo. O artigo 5º da Constituição Federal garante este direito, desde que o mesmo não afete a intimidade do réu. O professor do curso de Direito da PUCRS Plínio Melgaré acredita que este processo entrou em segredo quando o Ministério Público decretou a abertura de contas das empresas envolvidas. “Esta é uma justificativa válida, entretanto, todo conteúdo do processo produzido antes desta sentença de sigilo ainda é público e deve ser disponibilizado para consulta”, salienta Em vigor desde 16 de maio de 2012, a nova lei de acesso a informação permite que qualquer pessoa tenha acesso a documentos e informações que estejam sob a guarda de órgãos públicos. O requerente não precisa justificar o pedido, mas é obrigado a se identificar no Tribunal de Justiça. revista exp

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TRANQUILIDADE As crianças da família Silva brincam em um ambiente ainda visto por muitos como ilegal

A INFÂNCIA NO QUILOMBO DA

Família Silva

A primeira comunidade urbana a receber a titulação no Brasil colhe os frutos de anos de luta e ensina às crianças a importância de valorizar suas raízes ROBERTA MELLO

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ais do que um lar, o Quilombo da Família Silva é um espaço de valorização da cultura afro e resgate da trajetória dos negros no Estado e em Porto Alegre. Localizado em uma zona nobre da Capital, no bairro Três Figueiras, a comunidade agora colhe os frutos de anos de luta pelo reconhecimento do espaço como legítimo. Os primeiros habitantes chegaram ao terreno no início dos anos de 1940 . Naquela

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época, a região era bem diferente do que é hoje, localizada no subúrbio da capital, não atraia o interesse das famílias abastadas da cidade. A partir da década de 1960, a áres começou a ser valorizada e a comunidade começou a sofrer com a especulação imobiliária. Atualmente, 15 famílias, todas aparentadas entre si, habitam as casas simples que circundam a árvore localizada no centro do espaço, oferecendo sombra à comunidade. A placa na entrada marca o início das terras pertencentes às famílias, essa é apenas uma das muitas

conquistas apontadas pela vicelíder comunitária Rita de Cássia da Silva. “Agora as pessoas sabem o que é um quilombo. Antes nem a gente sabia. Tínhamos até medo de ser alguma coisa que viesse a nos prejudicar depois. Por isso eu digo que é importante essas crianças aproveitarem o estudo que têm, o acesso à informação de hoje em dia”, confessa Rita. As crianças e jovens são um pilar fundamental na sustentação do primeiro quilombo urbano a receber tal titulação no Brasil. Os moradores contam que continuam sendo vítimas do descaso de alguns setores e

vistos como empecilho para o desenvolvimento da região pelos vizinhos. Porém, órgãos públicos, como o Ministério Público, e entidades, como a Fundação Palmares, seguem trabalhando para garantir o respeito aos direitos da população. Assim como a propriedade da terra, os ensinamentos passam de pai para filho. Com uma estrutura ancestral, no Quilombo dos Silva temas como valorização da identidade, das raízes afrobrasileiras e do espaço territorial onde vivem, são repassados pelos mais velhos dentro de casa e no pátio. Para complementar,

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o terreno cheio de verde com ares de interior serve de palco para reuniões e apresentações artísticas promovidas por parceiros. Alguns dos principais acontecimentos acontecem durante a comemoração do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, quando é organizada uma semana inteira de atividades. Nessa data, oficinas, peças de teatro, espetáculos de dança e palestras enchem o quilombo de cor. As crianças participam dos eventos voltados para sua idade. O que mais gostam é do teatro. Rita explica que as peças contam as histórias dos ancestrais, como foi a chegada dos escravos ao Brasil. “São personagens lutadores, que nem a gente”, compara. Paralelamente, as escolas próximas frequentadas pelos

garotos Silva vêm incluindo no currículo conteúdos sobre cultura afro. No Brasil, inclusive, uma lei estabelece que todos os colégios abordem o tema e, ao que tudo indica, essas atividades funcionam. “Antes eu tinha vergonha de dizer que era quilombola. Depois que a professora explicou pra turma toda o que era e por que o lugar virava um quilombo comecei a ter orgulho de dizer”, revela Luciane, de 16 anos. Acostumadas com a curiosidade dos visitantes e com a movimentação de estudantes, professores e até mesmo estrangeiros, as crianças não sentem vergonha de conversar. O mais falante de todos é Maurício, que apresenta os amigos e chama duas meninas para tirar uma foto de todos juntos. O que eles mais gostam de fazer nos

DIVERSÃO Gustavo e Vitor brincam em uma casinha

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RESPEITO A placa demarca o início das terras quilombolas finais de semana é jogar futebol e Maurício convida para ver o jogo. O esporte tão democrático é uma das muitas semelhanças da garotada quilombola com qualquer outra criança, mesmo que os vizinhos não participem da atividade na praça. Gustavo e Vitor são mais calados e preferem se divertir em dupla. Dentro de uma casinha de bonecas os dois começam a se sentir mais à vontade para conversar e soltam os sorrisos até então escondidos. Gustavo estranha quando é questionado se gosta de viver ali: “Mas é claro que eu gosto. É a minha casa, onde tenho os meus brinquedos”. Para os Silva é muito claro o gosto pelo lugar onde vivem desde que nasceram. Ali eles têm espaço de sobra para correrem livres entre os adultos, protegidos por tios, primos e irmãos. A vida dentro de qualquer comunidade carente, principalmente em uma de metro quadrado tão valorizado, nunca é fácil. Os jovens chegaram a presenciar algumas das ações de repressão sofridas por familiares, também protagonizadas pela polícia e encaram todos os dias sinais de hostilidade por parte dos vizinhos. Há 11 anos, enquanto eram elaborados os estudos antropológicos realizados por estudantes da UFRGS para comprovar a origem do local, houve a emissão de uma ordem de despejo de parte das casas do local. A situação foi contornada, mas a lembrança das barricadas organizadas para proteger suas próprias casas continua na memória. Mas o Quilombo da Família

É claro que eu gosto daqui. É minha casa, onde tenho meus brinquedos. GUSTAVO SILVA, estudante

Silva contornou a violência e o preconceito e hoje é um exemplo de sucesso. Todas as crianças estão na escola, gostam de andar de bicicleta, brincar de correr e de boneca, comer doces. Graças à luta travada diariamente pelos moradores, os quilombolas são valorizados e veem que o olhar de grande parte da sociedade sobre eles mudou. “As pessoas nos visitam para conhecer a nossa história. A gente recebe até estrangeiros que vêm até aqui para saber o que é um quilombo e como vivemos. É uma pena que, mesmo assim, muitos dos nossos vizinhos ainda não nos olhem com respeito”, diz Rita. Grande parte das mulheres trabalham como empregadas domésticas, já os homens desempenham atividade de jardineiro ou segurança. Todos garantem o sustento da família com o próprio suor. “O quilombo é nosso por direito. O governo não fez um favor nos dando a posse dessas terras”, finaliza a vice-líder comunitária, orgulhosa. revista exp

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XXIX PRÊMIO DIREITOS HUMANOS DE JORNALISMO 2º lugar na categoria acadêmica

Índio quer MAIS DO QUE

apito

Kaingang significa “homem do mato”, mas famílias dessa tribo optaram por trocar o verde das matas pelo cinza do concreto e enfrentam os problemas característicos das grandes cidades GERSON RAUGUST

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URBANOS Aldeia fica na parada 25 da Lomba do Pinheiro

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ais de uma família por casa, um único médico a cada 15 dias e uma escola de Ensino Fundamental incompleto. Esse é o cenário da aldeia kaingang Fág Nhin, no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Mesmo contando com legislação própria e órgãos específicos como a Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça, e a Secretária Especial da Saúde do Índio (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, os índios que vivem em áreas urbanas acabam por enfrentar os mesmos problemas das populações carentes nas grandes cidades. A dificuldade em conseguir casa própria, emprego que garanta seu sustento, escola para os filhos e atendimento de saúde de qualidade faz parte da realidade dos kaingangues. O cacique Samuel da Silva se mostra preocupado com o futuro. Assumiu o cargo em maio de 2012 no lugar do irmão, vítima fatal de um acidente automobilístico, e procura dar continuidade ao trabalho iniciado por seu antecessor. Na pauta estão a construção de mais moradias, reforma e ampliação da escola e formação de uma equipe de saúde. Por estar na Capital, acaba por dar apoio a comunidades do Interior que não têm acesso a grande parte dos órgãos públicos

e também acompanha internos em hospitais da Região Metropolitana ou hospeda parentes destes. Soma-se a isso a expansão imobiliária na Capital, que reduz as áreas para obtenção da matéria prima e aumenta a apreensão sobre o destino dos indígenas, dependentes dos recursos oriundos da venda do artesanato. A fala calma, mas segura, contrasta com sua pouca idade. Aos 21 anos, Silva é o líder indígena mais jovem do país. Para administrar a comunidade, conta com o apoio de uma espécie de conselho formado por índios anciões que possuem grande conhecimento em áreas específicas. Kaxu é o mais velho. Com 94 anos, é o único chamado pelo nome kaingang. Assessora nas questões históricas e culturais. Jair Ferreira, 63 anos, é uma espécie de curandeiro. Chás, emplastos e infusões são suas especialidades. Jaime Alves, 56 anos, faz a consultoria jurídica. Mesmo tendo estudado somente até a 4ª série, domina a legislação indígena e grande parte da Constituição Nacional. Apoiado pelo pequeno grupo, o cacique tenta dar uma nova perspectiva à aldeia. Reclama da burocracia para que projetos de melhora da estrutura da comunidade sejam tocados. O único momento em que Silva altera o tom de voz é justamente quando fala sobre o último censo

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realizado em 2010. Conforme o IBGE, a população indígena teve uma redução de 6,3% na capital gaúcha. “O IBGE postou que a população indígena de Porto Alegre tinha diminuído. Isso é uma grande mentira! Aqui na minha aldeia, triplicou”, reclama. Acontece que na aldeia kaingang ocorre um fenômeno oposto ao das outras, localizadas nas regiões metropolitanas. Enquanto há uma migração para o Interior, fato que gerou um estudo específico do IBGE, Silva não para de receber pedidos de famílias que desejam se mudar para o local. A indignação de Silva decorre das consequências que esses números podem trazer. Com a redução dos indígenas na cidade, a aldeia perde força e, consequentemente, as verbas pleiteadas para a execução de projetos ficam ameaçadas. Principalmente a construção de novas casas, luta que dura mais de quatro anos e que ainda não tem prazo para concretização.

Muito índio, pouca casa

O cacique compara a realidade da aldeia com a de localidades mais pobres e populosas da Capital, como a Vila Mapa, também na Lomba do Pinheiro. Em sua criação, a comunidade contava com 23 famílias, atualmente são 36 e já existem mais dois casamentos marcados até janeiro de 2013. A grande preocupação é onde alocar tanta gente. Além do crescimento

O IBGE postou que a população indígena de Porto Alegre tinha diminuído. Isso é uma grande mentira! Aqui na minha aldeia, triplicou. SAMUEL DA SILVA Cacique Kaiguang

natural da população, existem frequentes solicitações de índios que desejam se mudar para a Capital e que acaba sendo negadas por Silva pela total falta de estrutura. Há oito anos foi firmado um convênio entre a prefeitura de Porto Alegre e a Fundação Paz y Solidaridad de Euskadi, da Espanha, que gerou a construção de 23 casas, suficientes para atender ao número exato de famílias na ocasião. As residências são de alvenaria e contam com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. A instituição espanhola financiou as construções executadas pelo município. Conforme Silva, a administração pública seria responsável por erguer mais 23 residências, entretanto o projeto não saiu do papel. “Estamos esperando o resto das construções das casas, a contrapartida que o prefeito até

hoje nos deve. Já tentamos chegar nele, mas não conseguimos”, reclama. O cacique informa que existe um projeto para a construção de 13 casas com o custo estimado de R$ 50 mil cada, realizado pela própria prefeitura. O Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), confirma que o projeto está em processo de análise, mas ainda não existe prazo para sua aplicação. Enquanto as obras não se iniciam, mais de uma família dividem o mesmo teto. Em alguns casos chegam a ser três. “Os filhos casam e não têm para onde ir e acabam ficando com os pais. Se tem mais de um filho, todos vão para a mesma casa”, explica o cacique. Outro desejo da tribo consiste na ampliação da área da aldeia. Atualmente são 5,8 hectares, e a pretensão é de adicionar mais 10 hectares nos fundos do terreno. O espaço é propriedade particular, e os kaingangues aguardam os trâmites de aprovação do pedido e indenização do proprietário, responsabilidade da Funai. A justificativa para a expansão é dada pelo jovem líder. “A busca por mais espaço é porque nunca se verá um único índio ocupando uma área, sempre vai ter uma família. Essa família vai crescendo, vai tendo mais família. Onde é que vou botar essa gente? Eles querem saber de uma resposta minha, eles querem casar e ter todos os direitos de uma família indígena, mas eles querem moradia também”, salienta.

ESTRUTURA O Cacique Samuel da Silva comanda as negociações para melhorias na comunidade

Matéria prima escassa

Mesmo que a área física da comunidade aumente, um problema está longe de ser solucionado. Os kaingangs têm como base de sua economia o artesanato. Sua produção consiste basicamente em cestos, cerâmicas, bijuterias e arte decorativa. Através do Núcleo de Políticas Públicas para os Povos Indígenas (NPPPI), da Secretaria de Direitos Humanos de Porto Alegre, todo o material produzido pela tribo é comercializado no Brique da Redenção e na Loja de Arte Indígena do Mercado do Bom Fim, junto com as peças dos mbyáguarani. Porém, a dificuldade em encontrar matéria prima, como cipós e sementes é cada vez maior. O cipó-imbé utilizado na cestaria já está extinto em Porto Alegre. O entorno da aldeia também sofre as consequências da expansão imobiliária. Condomínios e loteamentos são construídos cada vez mais próximos e reduzem os locais para a obtenção dos materiais necessários para a confecção das peças. O artesão Jaime Alves, um dos conselheiros do cacique, é um dos atingidos por essas mudanças. “O problema é que não existe mais lugar, as áreas onde a gente ia buscar matéria prima agora têm dono. Temos autorização somente no campus da agronomia da UFRGS e no morro São Pedro”, lamenta. Apesar do morro ser área de preservação ambiental, os índios têm autorização para extração dos itens necessários para seus trabalhos garantido pelo Estatuto do Índio. Mas o privilégio não é suficiente para atender à demanda. Alves explica que o material utilizado demora muito até chegar ao ponto para ser colhido novamente, e como os locais de captação são escassos, a sequência da produção acaba comprometida. Assim surge a preocupação com o destino dos mais jovens. Para o cacique, “o futuro das crianças está nas mãos de cada família que devem conversar com elas para que continuem com os estudos e não fiquem dependentes só do artesanato, elas precisam se formar e trabalhar lá fora, sem nunca esquecer sua cultura”, sentencia. Rosa Maria Rosado, Coordenadora do NPPPI, explica que a ideia de formação para os kaingangs é diferente daquela da maioria. “Eles não pensam em estudar para ter uma carreira e melhorar de vida. Eles pensam na comunidade, de revista exp

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que maneira a formação pode melhorar a vida da aldeia. É por isso que a maioria que segue os estudos acaba escolhendo a área da saúde”, revela. Para ela, o artesanato não deve ser visto unicamente como atividade econômica dos índios. “É muito mais importante que isso, é uma questão de manutenção de cultura e uma ferramenta de integração. Nos locais de venda, reúnem-se membros de todas as aldeias da cidade. É lá que eles se conhecem, conversam, namoram e casam. E também é o lugar onde eles se encontram com o resto da população”, informa. Rosa explica que são os órgãos oficiais que devem viabilizar o sustento econômico através de políticas públicas que viabilizem a atividade com apoio e subsídios.

Ensino incompleto

Um obstáculo surge na garantia de um amanhã melhor aos mais jovens. A falta de professores e de estrutura, comum na rede pública de ensino, também atinge a aldeia. A escola local vai até o 8º ano, antiga 7ª série, o que impossibilita a conclusão do Ensino Fundamental na própria comunidade. O cacique destaca outra reinvindicação antiga: há dois anos foi solicitada reforma e ampliação do prédio do colégio. Além de aumentar o número de salas, pretende recuperar as atuais, inclusive uma que funciona de forma improvisada na pequena biblioteca. Mesmo havendo outras escolas próximas, salienta que as crianças sofrem preconceito nessas instituições. “Há muita discriminação com os indígenas nas escolas lá fora.

Temos costumes diferentes no ponto de vista deles, e isso cria perseguição”, comenta. A esperança é que seja possível concluir ao menos o Ensino Básico na comunidade. Silva acredita que assim os jovens conseguirão dar continuidade aos estudos. Mais velhos, eles administrarão melhor as diferenças. “A preocupação maior é com o Ensino Fundamental e o preconceito nas escolas. No Ensino Médio estarão maiores e saberão lidar com essa questão. Eles vão conseguir dar a volta por cima e mostrar que não são nenhum bicho do mato, que são seres humanos”, prevê. Atualmente a escola conta com quatro professores indígenas, que ministram aulas em português e kaingang na própria comunidade e em outras aldeias, como a situada no Morro do Osso, zona sul da Capital. Além deles, há mais três professores não indígenas. Seriam necessários mais dois educadores para atender a atual demanda e mais quatro quando a ampliação acontecer. Com a realização da obra e aumento do quadro docente, a esperança é melhorar o nível de escolaridade da população. Atualmente a maioria dos adultos da aldeia não possui formação básica. Entre as exceções está Paulo Sérgio Trindade. Com curso superior, é o secretário da escola e acompanha o diretor nas negociações com a Secretaria de Educação do Estado. O primeiro encontro com a 1ª CRE (Coordenadoria Regional da Educação), responsável pela área de Porto Alegre aconteceu em outubro deste ano. “Já fizemos a previsão das obras e levamos

IMPROVISO Enfermeiro Paulo Trindade trabalha na escola ao coordenador pedagógico que irá avaliar e dar retorno”, informa. Mas Trindade está distante de sua área. É formado em enfermagem e conforme o Estatuto do ìndio, ele tem a preferência para ocupar a vaga disponível na equipe sanitária da aldeia, ainda inexistente. Realizou provas específicas para o cargo e foi aprovado, agora aguarda a nomeação.

Consultório vazio

ECONOMIA Artesanato ainda é a principal fonte de renda

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Em um primeiro olhar o posto de saúde da comunidade aparenta não ter problemas. Diferentemente das outras unidades de atendimento, onde enormes filas são constantes, a sala de espera fica vazia na maior parte do mês. A razão é que o único clínico geral que o posto tem atende uma vez por quinzena, e sua atividade acaba prejudica pela estrutura disponível. O consultório tem uma maca, uma cama para exames ginecológicos, uma balança para bebês e um pequeno armário com alguns

medicamentos. Sobre a mesa do médico, um receituário e um estetoscópio. A sala destinada ao serviço odontológico aguarda há quatro anos por equipamentos, mas segue sem uma previsão concreta. O posto fica ao lado da escola, junto da entrada da aldeia e em frente ao seu centro cultural, onde são realizados os festejos e cerimônias. Logo em seguida vêm as casas, uma pequena praça e um campo de futebol e ao fundo fica o cemitério. Nenhum morador precisa caminhar mais de 200 metros para chegar até a unidade de saúde. Mesmo assim, boa parte de atendimentos especializados, como o ginecológico, acabam realizados fora da aldeia. O pré-natal da esposa do cacique, com previsão para o parto no final de 2012, e o de outras cinco gestantes são feitas na unidade que fica na parada 6 da Lomba do Pinheiro, cerca de 10 quilometros da aldeia. A criação de uma equipe médica exclusiva para o local era impedida por uma regra

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O índio é uma moeda valiosa, mas o dinheiro nunca chega na aldeia. KAXU, Índio kaingang da Secretaria Municipal da Saúde: somente comunidades com população superior a 400 habitantes tinham esse direito. Assim, o cacique procurou os líderes de outras aldeias na cidade. Kaingangs, mbyáguarani e charruas se uniram, totalizando o número necessário. A implementação será através da Sesai, e a administração do serviço fica ao encargo da Secretaria Municipal da Saúde. A espera não é somente do enfermeiro Trindade, e a expectativa toma conta da aldeia. “Disseram que depois das eleições (municipais em outubro) eles iriam ver melhor, estamos ansiosos pra isso”, comenta Jaime Alves. Conforme o projeto, a unidade será volante, atendendo a todas as comunidades indígenas da Capital, mas a sua base será na aldeia Fág Nhin, que conta com uma estrutura física melhor.

SAÚDE Posto da aldeia que atende a 36 famílias fica fechado na maior parte do tempo

Moeda valiosa

“O índio é uma moeda valiosa, mas o dinheiro nunca chega na aldeia.” O primeiro a falar foi o veterano Kaxu, mas a frase é repetida por quase todos, com pequenas alterações. O cacique explica que a constatação decorre do grande número de estudos envolvendo indígenas. “É muito dinheiro para pesquisa em cima dos índios, mas se eles pegassem

um pouco dele e aplicassem nas comunidades, melhoraria muito coisa aqui dentro”, reclama. Isso não significa que eles não gostem ou recebam mal pesquisadores. Alves fala que essa relação pode ser benéfica para ambos. “Nós recebemos qualquer um que queira conviver com os indígenas. Hoje em dia, sem parceria fica mais difícil conseguir o que se quer. Por exemplo, várias

MUDANÇAS A vida na aldeia kaingang em Porto Alegre se assemelha a da perfiferia na cidade

pessoas se formaram graças a essa aldeia, são nossos parceiros e muitas vezes, em alguma causa, elas nos ajudam”, reconhece. “Eu acho bom ter esse relacionamento entre indígenas e não indígena, porque é o que faz as políticas públicas acontecerem”. Os principais motivos das queixas são a descontinuidade de atividades e projetos iniciados, a distorção de informações e a grande concentração de verbas para esses estudos, enquanto a aldeia acumula carências. “Há órgãos que têm dinheiro apenas para pesquisas. E tem casos em que falamos pros pesquisadores uma coisa aqui e chega diferente lá fora pela boca deles, pela escrita deles. Isso atrapalha muito nossa vida aqui dentro. Pra nós fica ruim, nossa imagem já não é bem vista pela população. Qualquer coisa que um pesquisador bote em um jornal, TV ou rádio faz a gente parecer pior”, desabafa. Mas o cacique reforça que tem apoio e encontra muita gente disposta a ajudá-los dentro e fora dos órgãos públicos. Ele reitera sua preocupação com as futuras gerações e garante que a sua luta para as melhorias seguirá e espera a compreensão e apoio dos não indígenas. “Nós tentamos ser amigos de todos, nós não estamos brigando por nada, a não ser pelo nosso direito, não estamos brigando pra tirar coisas de outras pessoas”, afirma. revista exp

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CIDADE EM

movimento

Os primeiros motoristas de ônibus têm um papel essencial no despertar da cidade. São eles que a põe em circulação FERNANDA FARIA CORREA

O

locutor da rádio anuncia a hora e o tempo: 5h20min, 13 graus. Neblina na cidade. Previsão do tempo é de sol. “Bom dia, trabalhadores do meu Brasil!” A essa hora, o ônibus 476, linha Petrópolis/PUC, já está estacionado na frente da Pontifícia Universidade Católica. Isso porque hoje é sábado. Nos dias de semana, começa no Mercado Público, às 5h. É o início da linha e de mais um dia de trabalho. Duas horas mais cedo, a cidade começa, devagarinho, a abrir os olhos. Talvez não para a maioria da população, mas, para alguns trabalhadores, o despertador toca anunciando um novo dia. É o caso dos motoristas e cobradores de ônibus das primeiras linhas que circulam por Porto Alegre. Com eles que a cidade entra em movimento. Antes deles, apenas poucos carros circulam pelas vias. Paira uma dúvida no ar: e os motoristas de ônibus, como vão trabalhar? Como irão até a garagem, se são eles que dirigem os primeiros meios de transporte público do dia? Fransisco Eloi Nunes acorda com o despertador. 2h40min. Desde 1988, ele é motorista de ônibus da Companhia Carris Porto- Alegrense. Desde 1990, dirige o primeiro horário da linha 476. Dá um beijo na mulher e pula da cama direto para o banho. Se veste e bebe o café preto que Tânia, sua namorada há oito anos — e por isso considerada mulher - acorda especialmente para fazer. Eloi tem 54 anos, pele escura, é voluptuoso e esbanja simpatia. Tem cinco filhos que, na

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separação, “ganhou de presente” da ex-mulher. Por um bom tempo, teve que se virar para cuidá-los sozinho, mesmo com os horários confusos que a profissão o obriga a ter. Hoje em dia, todos maiores de idade, a preocupação é menor. Do outro lado da sua rua, no bairro Restinga, a linha Especial da Carris o espera. Quase 20 quilômetros dali, em Viamão, Paulo Ricardo Crystobal chega à parada do seu Especial, 20 minutos depois. Paulo se levanta às 3h. Ele é cobrador da mesma linha, 476, junto com Eloi, a quem apelidou carinhosamente de Ursinho. Sua rotina matinal é uma variação sobre o mesmo tema: banho, café, veste a roupa e vai para parada às 4h. Nos sábados, ambos se dão alguns minutinhos a mais na cama, afinal, a linha começa 20 minutos mais tarde. Paulo, que também tem um apelido carinhoso dado por seu colega – é o Cabeça - tem um ano a mais que Eloi. É branco, com feição um pouco enrugada e cabelos castanhos. Quem trabalha como rodoviário tem uma vantagem sobre outras pessoas que iniciam sua rotina diária antes mesmo dos ônibus estrearem seus trajetos pela cidade: uma linha especialmente para pegá-los em casa e leva-los até o trabalho – no caso deles, até a garagem. Na verdade são cinco linhas que fazem diferentes caminhos. Há quem prefira ir de condução própria. Dos 178 colaboradores da Carris, entre motoristas e cobradores, que tem seu primeiro horário entre 5h e 6h, em média metade deles chegam à garagem de ônibus especial. Os rodoviários de outras empresas especializadas em transporte público também têm a sua vez. A fim de facilitar a condução,

todas as companhias colaboram entre si. Quando o trajeto de um Especial da Carris é mais conveniente para um motorista da Unibus, ele é bem-vindo a bordo e vice-versa. Mas a linha especial não começa às 4h, e sim bem antes: 1h30min, deixando os últimos motoristas e cobradores em casa e, sem parar, começando o trajeto que pega os primeiros. Eloi e Paulo chegam à garagem. Um às 4h30min, o outro às 4h35min. Preparam-se para embarcar na primeira viagem do dia. Estão há 13 anos juntos na mesma linha. “É quase um casamento”, brinca Eloi, que diz passar mais tempo com o parceiro de 476 do que com a própria mulher. O outro é solteiro, “graças a deus”. Na garagem da Carris, as linhas organizam suas saídas, entre elas as transversais – ou T’s, como são conhecidos: T1, T2, T3, T4... 74 linhas da Carris fazem seu primeiro trajeto entre 5h e 6h. Os motores começam a ser ligados. Passarinhos ensaiam seus primeiros cantos. 4h40min, o céu está negro. Despachantes e monitores acompanham e orientam os motoristas e cobradores. É o setor de Operação, que fica aberto 24 horas por dia, sete dias por semana. A Carris não para. Eloi e Paulo dirigem-se ao seu carro (é assim que eles chamam os ônibus). Linha Petrópolis/ PUC, número 476. O trajeto é o seguinte: Ipiranga, Cristiano Fischer, Salvador França, Protásio Alves, Osvaldo Aranha, Rodoviária e Mercado Público, no Centro de Porto Alegre. E é claro, vice-versa. Ainda está escuro. 4h45min. Os enormes faróis dos ônibus começam a se acender. Desafio: 25 minutos pra chegar ao final

DESPERTAR 5h é o horário da primeira viagem do dia

76% das linhas da Carris começam a circular entre 5h e 6h

74 motoristas da companhia trabalham nesse horário

364 ônibus formam a frota da Carris

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da linha e embarcar os primeiros passageiros. O início da linha, aos sábados, é às 5h20min, na frente da PUC. Sem trânsito, a tarefa fácil. O ônibus sai da garagem da Carris às 4h55min com o letreiro de RECOLHE. Depois de fluir pelas ruas da cidade, chega ao seu primeiro destino. Somente aí o letreiro muda: 476, Petrópoils/PUC. Os primeiros passageiros entram e aguardam o horário de saída. Poucos. A linha é calma e seu público consiste em trabalhadores e estudantes que começam bem cedo a sua rotina. Postes de luz estão acesos na cidade na qual paira uma neblina. Não demora até que os primeiros raios de luz apareçam pelas grandes janelas frontais do ônibus. 5h40min e o céu, apesar de nublado, começa a clarear. Aos sábados Eloi tem uma passageira especial: Tânia, sua mulher, trabalha cedo e aproveita a carona. Na Protásio Alves,

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Tânia dá um beijo de despedida no motorista e segue para o seu destino. Eloi e Paulo falam sobre seu gosto em conduzir a linha. “Sempre gostei de trabalhar cedo. Gosto de levar pessoas que têm compromisso. Trabalhar cedo é assim, todos possuem obrigações, seja com o trabalho, escola ou faculdade” explica Paulo. Eloi concorda: “Tem umas linhas que são insuportáveis. A nossa é calma. Não pega baile e nem jogos de futebol”. 5h57min. Apesar de nublado, o céu brilha mais, contrastando com os postes de luz ainda acesos. O número de carros nas ruas aumentou e o termômetro aponta 18 graus. Passarinhos cantam mais alto. O locutor de rádio não tinha razão, não há sinal de sol por aqui. De forma alguma isso altera o humor do motorista, cobrador e usuários da linha, que parecem felizes em

ESPERA Passageiros aguardam ansiosamente no início da linha revista exp

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vê-los àquela hora da manhã. A maioria dos passageiros são conhecidos de Paulo e Eloi. O cobrador lembra que uma vez, atipicamente, entrou um bêbado e começou a xingar todo mundo. Eloi perguntou qual era o problema. O bêbado pediu desculpa e, minutos depois, continuou xingando. Eloi parou o carro, disse que o senhor estava incomodando quem o carregava e levava para onde ele precisava. Chorando, o sujeito pediu desculpa novamente e contou o drama: sua melhor o deixou e levou filhos e tudo da casa. No fim, Eloi ganhou um amigo. Nos dias úteis, o bêbado – agora sóbrio - pega o ônibus para ir trabalhar. E agora está bem, conta Eloi. Solteiro, sem nada, mas bem.

O dia em que os rodoviários fizerem greve, o país para. Mas até desenvolver essa consciência, alguns levam anos. FRANSISCO ELOI NUNES, motorista de ônibus

Barulho de motores começam a imperar na cidade agora oficialmente acordada. São 7h. Mais gente nas paradas e nas calçadas. Na linha 476, entram cada vez mais passageiros. Quase todos cumprimentam o cobrador e o motorista. Velhos conhecidos, alguns já viraram amigos. “A gente sabe quem é casado, quem tem filhos, acaba conhecendo todo mundo mesmo”, acrescenta Paulo. Às 9h, o caminho é de volta à garagem. Está na hora do intervalo de almoço (!) dos protagonistas desta história. “A primeira coisa é chegar aqui. A segunda é perguntar pro bar se tem almoço a essa hora!” diverte-se Paulo, o cobrador. Às vezes não tem, não dá tempo. Hoje, Eloi se contentou com um salgado e um refri e Paulo, com a única coisa que já estava pronta para o almoço: a salada. Muito bem humorados, amam o que fazem. Eloi fala com emoção da sua profissão: “Primeira coisa,

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a pessoa deve gostar daquilo que faz. Se não gostar, larga, vai plantar batata, vender melão. Eu já nasci com vontade de fazer o que eu faço. Procuro tratar todo ser humano, seja magro, gordo, preto, branco, de idade – “Feia, bonita”, acrescenta Paulo, rindo - todo mundo igual”. O motorista tem orgulho do que faz e da empresa que trabalha. “Sempre almejei trabalhar aqui. Dou meu melhor”. A rotina é diferente: acordam às 3h, almoçam às 9h, voltam a trabalhar às 10h30min e vão para casa às 14h. Claro, de ônibus. Fazem um lanche de tarde e às 20h Paulo já está dormindo com a TV ligada na novela e o timer preparado para o desligamento automático. Eloi sem TV, mas com o despertador para meianoite, horário em que sua mulher vai dormir e ele acorda para, segundo ele, “não deixar ela dormir”. Afinal, esse é o único horário que sobra, antecedendo mais um dia de trabalho com um papel imprescindível e insubstituível para a cidade: movimentá-la. Ciente de sua importância, o motorista pensa que todos que trabalham na área deveriam exercer seu papel com o mesmo comprometimento que ele se esforça em praticar. “Todo rodoviário deveria levantar para ir trabalhar com vontade, porque só dele dependem mais de mil pessoas que, diariamente, precisam ser levadas para trabalhar, estudar. Tem que ter responsabilidade com aquilo que se faz. Somos uma classe que movimenta o país. O dia em que os rodoviários fizerem greve, o

A LINHA O motorista Eloi (acima), o cobrador Paulo Ricardo (meio) e uma das passageiras assíduas do 476 pela manhã. país para. Mas até desenvolver essa consciência, alguns levam anos”, conclui o motorista. O Ursinho ainda dá exemplo de respeito e civilidade: “Se tu dependes do meu carro, não importa se tu estás na parada ou vejo que tu estás correndo para embarcar, eu vou te esperar.

Não vou deixar ninguém para trás e fazer outro trabalhador se atrasar, seja pedreiro, arquiteto, jornalista, banqueiro. Somos todos trabalhadores. É tudo uma engrenagem só. Vou procurar auxiliar, para quando eu precisar dele, ele me auxiliar. E ainda ganho mais um amigo”.

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PACOTE Português Fernando Meirinho aproveita vinda a Porto Alegre para visitar pontos turísticos da cidade

PORTO ALEGRE DO TURISMO

de eventos

Na capital gaúcha, belezas naturais e atrativos culturais são complemento para atividades como congressos e convenções, principal fonte de turistas FERNANDO FELIX LOPES

B

elas praias, calor o ano todo e Carnaval. Atrativos turísticos infalíveis para um país tropical como o Brasil. Se levadas em conta essas características, Porto Alegre fica a quilômetros de distância de cidades naturalmente belas como Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza. No entanto, pensar em turismo para a capital gaúcha é possível se dado o foco certo, garantem especialistas. Se não atrai visitantes por exuberâncias naturais, a Capital os traz por outras vias. Porto

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Alegre figura hoje entre as quatro primeiras cidades do país no que diz respeito ao turismo de eventos, que compreende a realização de congressos, seminários, festivais, feiras, entre outros acontecimentos das mais diversas áreas. As primeiras posições são ocupadas por São Paulo e Rio de Janeiro. A capital dos gaúchos disputa a terceira posição com Salvador, havendo uma oscilação entre elas. “Turismo é mais do que sol, praia e mar. É uma atividade eminentemente econômica e de contribuição tributária para a cidade”, garante o secretário municipal de Turismo, Raul

Mendes da Rocha. O 2º vice-presidente executivo do Convention Bureau da cidade e diretor de marketing do Hotel Plaza San Rafael, Abdon Barretto Filho, acredita que a segmentação em eventos é essencial para uma cidade com menos atrativos naturais. “Quem mais ganha no setor no Brasil é São Paulo, líder no segmento. Não tem como não abrir os olhos para esta realidade”, sentencia. Barretto condena a visão antiquada que se tem da atividade, que a relaciona única e exclusivamente a lazer. “Estamos em um mercado altamente competitivo, que requer

investimentos em estrutura”, reforça. Centros de evento não são, no entanto, suficientes para a realização de atividades na cidade. “Quando o turista chega, ele tem tempo livre para passear e o faz também na folga dos congressos”, argumenta Barretto. Assim, se trabalha o conceito de turismo receptivo, que envolve atividades de visitação, gastronomia, entretenimento, compras e hospedagem. “Mesmo com o foco nos eventos, não podemos descuidar do lazer até porque ele é consagrado como o setor mais forte no país”, complementa o secretário revista exp

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5º CIPA Congresso realizado na PUCRS em outubro atraiu visitantes de outras partes do Brasil

4ª É a posição que POA ocupa no Brasil em turismo de eventos

R$ 5,7mi foi o total em impostos arrecadados no setor em POA

14 mil é o número de leitos disponíveis em hotéis de Porto Alegre

47 mil foi o número de passageiros da linha-turismo até setembro

88,5% foi o pico da taxa de ocupação de hotéis da cidade em 2012 72

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Mendes da Rocha. Outras atividades entram no pacote da cidade. Turismo na área cultural, náutica, rural e médica — que consiste em trazer pessoas para a cidade para fazerem tratamentos de saúde — se tornam complementares ao segmento eventos e são oferecidas a estes visitantes. Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) dão um ponto de vista diferente à questão. Participantes do 5º Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica (Cipa), realizado na PUC entre 16 e 19 de outubro, Rita Alves, 47, e Marlos Alves, 39, acreditam que não houve estímulo à visitação da cidade durante o evento. “No nordeste estamos acostumados a ver uma marca cultural nas atividades. Comida, folclore e movimentos artísticos fazem parte da programação de congressos realizados lá”, aponta Marlos. Rita destaca a estrutura do centro de eventos da universidade, mas pensa que falta interação cultural. “Poderia haver inclusive uma equipe para dar esta complementação. Acabamos fazendo tudo por iniciativa própria”, argumenta. Entre as apostas da iniciativa pública para a visitação de Porto

Alegre está o ônibus linhaturismo, veículo de passeio pago. Com dois itinerários, um perfazendo o Centro Histórico e o outro a zona sul da cidade, transportou cerca de 47 mil pessoas nos oito primeiros meses do ano, segundo levatamento quadrimestral do Bemtur. Entre os turistas que fizeram o passeio, está Fernando Meirinho, 47, morador da Ilha do Faial, no arquipélago dos Açores, em Portugal. O funcionário público chegou a Porto Alegre no dia 23 de outubro sem saber nada da cidade, tampouco do Rio Grande do Sul. Na tarde seguinte, pode ter uma noção maior da Capital e deu mostras de ter gostado do que viu. “Lisboa não tem um terço do verde daqui”, comparou. Com uma volta “bem informativa” pelo Centro Histórico, o português, que viajou ao Brasil acompanhando uma orquestra sinfônica em turnê pelo Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, considera a hipótese de voltar a Porto Alegre. “Estou tendo uma oportunidade única, mas voltaria se tivesse possibilidades”, explica. Outra iniciativa recente da Secretaria de Turismo é a criação de uma rota para pedestres em locais históricos de Porto

Alegre. “Estamos implantando 141 placas em pontos do Centro que indicam para as pessoas as direções que devem tomar para conhecer prédios, praças e instituições”, complementa o secretário. A sinalização, composta por placas marrons retangulares que indicam as direções de prédios históricos, praças e parques, teve a instalação concluída em fins de setembro.

Números do turismo

De acordo com o último Bemtur, o mês de agosto teve a melhor ocupação hoteleira do ano em Porto Alegre, em média 68,36%. Atividades fixas no calendário configuraram os picos do mês. Na 31ª Convenção Gaúcha de Supermercados (Expoagas), de 21 a 23, a taxa foi de 88,5%. Durante a 33ª Expointer, realizada em Esteio, a média foi de 82,93%. A segunda melhor taxa média de ocupação hoteleira do ano foi em março, 62,78%. A Feira Internacional de Couros, Produtos Químicos, Componentes, Máquinas e Equipamentos para Calçados e Curtumes — Fimec — fez com que 83, 82% dos leitos da cidade ficassem ocupados, ainda que tenha sido realizada

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em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana. O show do músico britânico Roger Waters, ocorrido em 25 de março no estádio BeiraRio, elevou novamente a média para 76,99%, enquanto que nos outros domingos do mesmo mês o índice foi de 38,18%. Maio e julho também tiveram taxa superior a 62%. No caso de julho, eventos como o Fórum Internacional de Software Livre contribuíram para manter os índices elevados. Focada no setor de turismo de negócios, a rede hoteleira InterCity administra três hotéis em Porto Alegre. Este número deve aumentar para cinco até 2015. “O mercado permite. Estes hotéis abririam em Porto Alegre de qualquer forma”, garante o diretor de marketing da rede, Marcelo Marinho. Com taxa média de ocupação acima de 65%, as unidades da capital gaúcha tem seu pico durante os dias da Expointer, tradicional feira de agropecuária e agronegócio realizada na cidade de Esteio. Nos finais de semana, por outro lado, os hotéis se esvaziam. Para ajudar a reverter o quadro dos sábados e domingos, a rede hoteleira trabalha com tarifas diferenciadas nestes dias e alternativas como pacotes românticos. “Porto Alegre ainda tem o desafio de se mostrar um destino de lazer”, salienta. O que Marinho diz não é problema exclusivo da InterCity, apontam os dados do Bemtur. Se por um lado congressos, fóruns e shows alegram os profissionais do ramo hoteleiro portoalegrense, feriados e fins de semana são vistos com tristeza. O mês de abril, por exemplo, registrou uma taxa semelhante à de janeiro, 56,24%. Os picos de ocupação foram entre os dias 16 e 20, com 71,38%, e entre 23 e 27, com média de 74,44%. Nesses dois períodos a cidade recebeu o Fórum da Liberdade, o 23º encontro da União Gaúcha dos Operadores e Representantes de Turismo do Rio Grande do Sul (Ugart), o Congresso Nacional de Direito Eleitoral e o Simpósio Internacional de Fonologia. Por outro lado, o feriado da Páscoa, celebrado de 6 a 8 de abril, derrubou a taxa abaixo dos 30%. Entre os destinos preferidos no estado nesta época estão a Serra. Cidades como Gramado e Canela contam com eventos específicos para a época,

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COMPARAÇÃO Pesquisadores da UFRN usam exemplo nordestino para avaliar Porto Alegre que atraem turistas de todo o Brasil. O secretário Mendes da Rocha entende esta realidade e atesta que não é objetivo de Porto Alegre competir com as cidades serranas pelo turista. “De qualquer forma, para ir até lá, o visitante tem que passar por aqui. Nosso objetivo é fazer com que ele aproveite a passagem pela Capital para conhecer a cidade”, argumenta. A professora mato-grossense Suely Pires, 40, também participou do 5º Cipa. Ela esteve no Rio Grande do Sul por cinco dias, um dos quais em um passeio pela Serra. Suely se hospedou em Porto Alegre para o congresso, que terminou em uma sexta-feira. No sábado, passeou por Gramado, Canela e Igrejinha. A professora afirma ter gostado da Capital. Passeou pelo Barra Shopping Sul, viu danças típicas do estado em uma churrascaria e visitou o Centro Histórico. O que mais gostou? De gente. “O povo é muito receptivo, gentil e educado”, avalia. Mas, se for para escolher um destino para as próximas férias, elas não tem dúvidas: “A Serra, com certeza. É mais calmo, mais tranquilo e tem mais opção para turismo. Porto Alegre é um grande centro, mais voltada para negócios e estudos”. Apoiado nos dados do Bemtur e na bandeira do turismo de eventos, Abdon Barretto Filho

comemora o momento turístico de Porto Alegre. “A sociedade tem que compreender o que estes dados significam e perceber que o turismo existe na Capital”, declara. Na mesma linha de pensamento, o secretário Raul Mendes da Rocha sentencia que

com os eventos no primeiro plano, a cidade apresenta potencial turístico e promete ainda mais. “Para quem pensa do jeito antigo, ainda não é perceptível que Porto Alegre é turística. Cabe a nós dizer que sim”, pontua.

COMPRAS Eventos são complementados por outras atividades revista exp

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A SOLIDÁRIA MISSÃO DOS

Bici-Anjos

Grupo de voluntários dedica seu conhecimento para ajudar pessoas a se sentirem mais seguras em pedalar pelas movimentadas ruas da Capital BRUNO ANDREONI

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medo de pedalar pelo trânsito movimentado de Porto Alegre não serve mais como desculpa para quem quer usar bicicleta. Ao menos isso é o que buscam os bici-anjos, grupo de ciclistas que se dedica a realizar uma rota de bicicleta com pessoas interessadas em se sentirem mais seguras em trafegar pela Capital. Atualmente, são dez voluntários que disponibilizam seu tempo e conhecimento para ensinar diversas artimanhas e normas de segurança durante o trajeto, sem custo algum. A idéia de formar o grupo surgiu de Melissa Webster, que soube da existência da iniciativa em São Paulo e decidiu seguir o exemplo. A divulgação é feita através do blog do grupo. O serviço existe também em outras cidades brasileiras. Em Porto Alegre, começou a funcionar em maio do ano passado. Além de dar orientações de como evitar acidentes durante a pedalada, os bici-anjos buscam mudar uma tendência que os demais ocupantes das vias têm de discriminar o ciclista. Para o funcionário público Eduardo Carrini, que pratica o esporte há mais de dez anos, isso se deve principalmente a uma questão cultural. “Em outros países, principalmente da Europa, as pessoas veem o ciclista com muito mais respeito. Aqui elas costumam achar que a rua é feita só para carros, o que é um absurdo. O próprio Código Brasileiro de Trânsito determina que a via pode ser usada tanto por bicicletas como por carros,

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só que mesmo assim os ciclistas sentem que estão invadindo o espaço alheio”. lamenta. Motivos como este acabam intimidando as pessoas a deixar o carro em casa e usar bicicleta. Muitos já se conscientizam de que o uso desse meio de transporte pode ser mais saudável e ecológico, mas acabam esbarrando na questão da segurança ou na intolerância dos motoristas. Esse era o caso de Luciano Annes, 38 anos,morador do bairro Monte Cristo que contatou a Bici-Anjos assim que soube do serviço. Ele trabalha como caseiro em um condomínio na zona sul de Porto Alegre há 13 anos. No início, utilizava transporte coletivo para se deslocar até o serviço. Com o tempo, conseguiu juntar dinheiro e comprou um carro, mas os gastos com a manutenção o assustavam: “Fiz as contas e me apavorei. Precisava encontrar outra alternativa”. Annes utilizava a bicicleta apenas para lazer e em locais sem movimento. Foi aí que ele soube dessa iniciativa pela divulgação na mídia e não pensou duas vezes. Acessou o blog e se cadastrou. “Sempre achei a bicicleta melhor do que o carro. Além de ajudar o ambiente e sair bem mais barato, estou me exercitando e não me preocupo em estacionar. Isso sem falar que não pego engarrafamento. Mas a falta de estrutura e o medo de pedalar próximo aos carros me deixavam apreensivo. Com o aprendizado que obtive na Bici-Anjos, descobri que pedalar em Porto Alegre pode não ser tão assustador. Hoje , só uso o carro quando realmente é necessário”, afirma.

NOVA OPÇÃO Luciano perdeu o medo e pedala até o serviço

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CRÉDITO FOTO

ANJO DE DUAS RODAS Cadu Carvalho é um dos dez experientes ciclistas que ensina técnicas e normas de segurança Antes de iniciar o trajeto, que pode ser escolhido pelo interessado, o bici-anjo passa algumas instruções rápidas de segurança. Ensina como sinalizar com a mão quando for fazer uma conversão, as partes da rua mais seguras para se locomover e de que forma dialogar com os motoristas para que o respeito seja recíproco e se evitem acidentes. Saber como o trânsito funciona é fundamental, assim melhora a comunicação com os demais ocupantes e o o respeito tornase maior. O uso do capacete também é importante. No entanto, as orientações não se limitam aos ciclistas. Os condutores de automóveis também devem fazer a sua parte. A lei de manter a distância de 1m50cm ao fazer a ultrapassagem de uma bicicleta está sendo cada vez mais fiscalizada e muitos motoristas já foram multados. Apesar de concordar que a valorização do ciclismo deveria ser maior, o bici-anjo Cadu Carvalho acredita que isso já vem melhorando: ”A

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As pessoas testam o nosso serviço e depois vão divulgando para os outros. Assim ele vai se expandindo. CADU CARVALHO, bici-anjo

tolerância dos motoristas está aumentando. Sinto que a nossa iniciativa está produzindo resultados. As pessoas testam o nosso serviço e depois vão divulgando para os outros, assim ele vai se expandindo. Tem gente que nos contatou e depois se voluntariou”. No momento, o bici-anjos não tem nenhuma sede. Os voluntários apenas são cadastrados no blog e são informados pela coordenadora

quando surge um interessado. Para solicitar o serviço, basta acessar o blog do grupo (bicianjo. wordpress.com) e preencher um formulário. Assim que receberem o pedido, o voluntário mais próximo e com o horário que mais se encaixe com o do interessado marca um local e uma hora para o início da rota. Caso, mesmo após um trajeto, a

pessoa ainda não se sinta segura, poderá solicitar o serviço outras vezes. Ciclistas com interesse em se tornarem um bici-anjo devem enviar um e-mail para bicianjoporto-alegre@googlegroups.com Basta ter experiência em transito movimentado e passar por um teste.

Algumas dicas

t Use iluminação. Os motoristas precisam vê-lo. E, à noite, o ciclista se torna ainda mais invisível. t Ande sempre pela direita e na mão dos carros. Andar na mão aposta pode ser perigoso e a faixa da direita é justamente destinada aos veículos de menor velocidade. t Cuidado com as portas dos carros parados. Muitos motoristas não enxergam a bicicleta chegando, principalmente à noite. Procure ficar pelo menos a um metro dos carros parados, tentando imaginar até onde iria uma porta aberta. t Não trafegue muito na direita,, senão os carros vão tentar passar na mesma faixa. Você pode se desequilibrar e cair só com o susto. t Use capacete, principalmente se está começando. Você ainda não terá o equilíbrio e a habilidade como fatores naturais, aumentando suas chances de cair. t Sempre sinalize o que vai fazer, com sinais de mão. Avise quando você for precisar passar à frente por causa de um carro parado e espere para ver se ele vai parar mesmo. Agradeça se ele parar ou te der passagem. Respeite e será respeitado. revista exp

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sustentável

A MODA

A consultora de moda Itiana Pasetti reutiliza roupas que seriam descartadas MARIANA CALDIERARO

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abe aquela camiseta de algodão que já não combwina com o restante das roupas mais modernas do roupeiro? Essa é a característica de matéria-prima perfeita que a estilista Itiana Pasetti precisa para transformar roupas usadas em peças novas com a cara do dono. O método consiste em utilizar tinta, sobras de tecidos, broches, além de diversos outros materiais que tornam as peças novos modelitos fashion. A ideia da gaúcha surge com o objetivo de prolongar a vida útil das peças, evitando que sejam descartadas no ambiente. Além disso, esse tipo de trabalho realizado por oficinas pode ser uma fonte de renda para as pessoas envolvidas no processo. Formada em moda, Itiana está há três anos no ramo da moda sustentável. “Percebi que a moda convencional gera um lixo muito grande e que não me adaptaria trabalhar dessa forma. Encontrei uma maneira de ser feliz no mundo que eu amo. Percebi que precisava me identificar com a moda de uma forma diferente”, recorda a estilista de 26 anos. Vinda de uma família do ramo têxtil, conta que desde pequena, comprava tecidos com a mãe e sempre esteve envolvida com a moda. A mudança do mundo da moda convencional para o sustentável foi descoberto e aprimorado, depois da leitura do livro do arquiteto austríaco “Hundertwasser: o pintor-rei das cinco peles”. Itiana explica que, por meio da leitura, conseguiu identificar alguns pontos essenciais que trabalharia com a roupa. “Conforme Hundert, a nossa

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primeira pele é o corpo, o intelecto, a mente, a carne. A pele em si mesmo, a epiderme. A segunda pele é a roupa. Aí entra a singularidade. Se a pele é muito importante para o ser humano, comecei a encarar a moda com muito mais expressão. Se a ela é a segunda pele, comecei a ver a moda por uma questão mais psicológica”, esclarece. Baseada nesta conclusão, começou com o trabalho que chama de Consultoria de Moda Consciente. “Eu posso ajudar as pessoas a se vestirem a partir do que elas realmente acreditam, do que realmente são, a partir da segunda pele delas. Ou seja, é algo que está dentro delas. Não é o que encontro na vitrine. Percebi que eu poderia reinventar aquilo que já existia, para tornar mais próximo da realidade”, apresenta o trabalho. Ao explicar, apresenta o consumismo excessivo do mundo capitalista, como um sistema que faz com que as pessoas comprem a moda das revistas sem saber o que realmente combina com o corpo. Entretanto, enfatiza que sai às compras com as clientes que contratam o serviço de consultoria e que se adquirem

somente o necessário. “A minha cliente já sabe o que precisa. Se tornará uma compra pontual e consciente”, esclarece. Junto com o cliente, inicia-se um processo de consciência de si, do modo como se veste, com encontros regulares. O cliente vai provando as roupas e o rumo para cada peça vai sendo direcionado: doar, reinventar a peça ou seguir usando como está. Vão surgindo verdadeiras relíquias, como o caso de uma cliente que tinha uma mala cheia de lençóis e toalhas de renda renascença. Resultado: vestidos e jardineiras. O processo de reinvenção é todo supervisionado por Itiana que conta com o trabalho de mais três costureiras que ajudam a encontrar o melhor caminho para chegar ao resultado final. Assim que a peça fica pronta, retorna ao dono. Como as consultorias geralmente são longas, este processo é constante. Além da consultoria, oferece oficinas de Reinvenção que começaram em seu atelier, localizado no bairro Bom Fim, na cidade de Porto Alegre, e agora já ministradas em diferentes locais. A ideia rendeu até edições

REINVENÇÃO Colar de correia de bicicleta é uma reinvenção que agrega ao modelito básico. Pode ser utilizada tanto para a noite como para o dia

ALMOFADA? Bolsa feita a partir de uma almofada. A peça foi reinventada e franjas foram agregadas ao look

TROCAS Casaco de cetim. Peça para ser trocada na Arara

CRIAR Pulseira feita por restos de tecido foi produzida em uma das oficinas de Itiana. A técnica é chamada de “macramê”

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para crianças que ficaram encantadas com a atividade. “As aulas são teóricas e muito práticas. O pessoal leva uma peça de roupa e cada um fala da história vital de cada peça. Tu tratas a roupa como uma extensão de ti. O que representa, com momentos, história, as memórias. Na hora de reinventar a peça, todos opinam e trocam ideias entre si”, conta eufórica. Não apenas as oficinas são a forma que Itiana encontrou de expandir a ideia sustentável. Criou junto com amigas o projeto Restrolho, que visa juntar cinco toneladas de roupa, através de doações, para chamar a atenção ao descarte e ao consumo excessivo. “Depois de conseguirmos as peças, vamos expor em um local público, fazer uma montanha de roupas para chamar a atenção da população. Reuniremos voluntários para fazer uma grande oficina de reinvenção coletiva na Redenção”. As roupas serão reinventadas coletivamente e depois doadas. O ponto de “colheta”, que une colheita e coleta, é no próprio atelier, localizado na Rua São Manoel, 337, sala 9. Para aqueles que curtem trocar roupas, a Arara de Trocas, localizada no atelier, tem como objetivo trocar uma peça por outra. “Se houve interesse por uma peça da arara, tu trocas por outra. As peças precisam se equivaler em preço. Já fizemos até um evento que chamamos de Arara Aberta, na qual reunimos pessoas que trouxeram roupas para trocarem entre si. É bem democrático, bem interessante”, revela. Para fazer a troca, basta acessar o site www.itianapasetti.com e deixar um email para Itiana informando dia e hora que vai ao atelier. “A sustentabilidade no meu caso, hoje entra muito na questão de tratar a roupa como algo que diz respeito a pessoa. É um ato muito mais orgânico de se vestir. Para se ter uma ideia, são jogados na China 200 toneladas de resíduo têxtil por dia, ou seja, restos de aviamento, de linha, de tecido. Todo esse material vai pra onde?”, indaga.

LOOK Itiana está vestida com roupas e acessórios do atelier

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DO COMPORTAMENTO À

tendência

Como funciona o trabalho de quem aposta no que vai ser bacana num futuro próximo? Pesquisadores contam como é o dia a dia da análise de comportamento do consumidor PRISCILA VANZIN

E

m Mate-me por favor, livro que relata o nascimento do movimento punk na costa leste dos Estados Unidos no fim da década de 1970, os autores Legs McNeil e Gillian

McCain dedicam a obra ao executivo, empresário e jornalista Danny Fields. O motivo? Conforme eles, e tantos outros, Danny seria o cara mais “cool” do pedaço. O termo em inglês, que designa algo como “legal”, aparece por diversas vezes na obra como forma de validar

manifestações culturais e até hoje serve de norte no trabalho do “caçador” de tendências. Assim como Fields, que acabou sendo contratado pela revista Rolling Stones por ter o poder de identificar comportamentos capazes de transformar uma sociedade, há inúmeras empresas que hoje fazem este mesmo trabalho. O que mudou foi a metodologia e a seriedade que ganhou o trabalho do pesquisador de comportamento. “Coleta de dados, discursos verbais e visuais, descrição do ambiente e características do território, além da análise de dados subjetivos e brutos são algumas das etapas fundamentais da pesquisa”, explica Maria Carmencita Job, analista cultural de macrotendências e pesquisadora de grupos urbanos, que coordenou no sul do país o projeto especial da BOX 1824 intitulado “O sonho brasileiro” e fundou sua própria empresa, a [Ox]igênio, em 2011. Thais Reali, diretora da Reali Estratégia e Marketing – que já atendeu clientes como Grendene, Colégio Farroupilha, Seven Boys, Lojas Gang e Cyrela —, faz a parte do atendimento. Como sou eu que filtro as informações que serão levadas para quem vai a campo, costumo não entregar todo problema da pesquisa, até para não cercear a percepção das informações coletadas”, explica. No planejamento, conta Thais, o processo de pesquisa se inicia com um mergulho na realidade, que ela chama de “serendipity”. Esse momento acontece em um ambiente externo ao escritório, de modo a viabilizar algumas percepções. “Toda equipe vai para um lugar diferente por um

BOM FIM O bairro que reflete diversos comportamentos, explica Carmencita

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turno ou um dia inteiro para sentir e avaliar a região onde será feita a pesquisa de campo, como o trajeto que será feito, se é necessário ir de carro... é o momento de flanar, para montar todo o projeto”, descreve. Carmencita, que já vendeu pesquisas para grandes marcas como Renner, Grendene, Pepsi, além de agências de publicidade como DCS e Paim, e da agência digital Grafia, conta que o princípio de seu trabalho passa pelo mapeamento de território. “Ao chegar ao cenário, o pesquisador deve fazer todo o planejamento dos hotspots [pontos significativos] da cidade que tenham relevância com o seu objeto de estudo”, esclarece. A partir disso, os verdadeiros interesses, sonhos, desejos, gostos, necessidades gerais e específicas são definidos com perguntas abertas, permitindo desvios, a fim de buscar emoções e vínculos por afinidades. “Entender o lugar em que os nossos pesquisados vivem se faz necessário para conhecer seus espaços de convivência, onde e o que consomem.” Em Porto Alegre, um bom exemplo do chamado hotspot é o bairro Bom Fim, por tratar-se de um espaço antigo e representativo para Porto Alegre. Houve uma migração de judeus para o bairro a partir do final da década de 1920, que foi transformado pelo comércio e espaços de convivência. “Há uma liberdade muito grande no Bom Fim, aqui as pessoas podem ser quem quiserem, não existe um pensamento engessado, estruturado”. Avistou-se no momento da entrevista, que se deu em frente a uma das confeitarias mais famosas da região, um casal de meninas se beijando ao lado do ponto de ônibus, sem que qualquer pessoa demonstrasse espanto, o que talvez não ocorresse em outros lugares. O Parque da Redenção

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proporciona um cruzamento de estilos e dá sincretismo cultural e religioso à cidade. Carmencita lembra que, na década de 1990. acontecia uma das maiores representações dessa liberdade: “Ao lado do parquinho de diversões, existia um lugar conhecido como fumódromo onde mais de mil pessoas de todas as idades e estilos se encontravam regularmente, grande parte para consumir maconha”. Sua memória é também afetiva, já que na adolescência Carmencita transitava livremente entre esse espaço e a Igreja Santa Terezinha, logo em frente, assim como vários jovens na época. Quem fumava também ia cantar e procurar, talvez, algum sentido maior nas missas. Sua vontade de estudar pessoas veio a partir do estranhamento dessa harmoniosa convivência. Esses lugares onde há grande inovação cultural e comportamental nem sempre são eternos. Prova disso é que Thais e sua equipe perceberam em uma pesquisa realizada em outro bairro da Capital, o IAPI. “Acreditamos que pode ser o Bom Fim da zona norte. Daqui a pouco pessoas estarão migrando. Percebemos um pouco de poética crescendo naquele local, observada através de aspectos como a presença de skatistas, rodinhas de música, pichações e uma considerável leva de artistas se mudando para o bairro.”Essas características são consideradas insumos da pesquisa, que unidos se transformam em um grande contexto. As vivências do pesquisador também constituem uma parte importante do trabalho. Diferentemente da versão clássica, que trabalha com os “nativos”, na antropologia contemporânea utiliza-se a ideia de “multivíduo”, que se traduz como uma polifonia identitária do sujeito depende do meio onde ele está inserido (ruas, símbolos, arquitetura, música, amigos, moda), além dos códigos sociais. “A pesquisa é uma dança entre o sutil e o pragmático. Ao mesmo tempo em que é necessário construir uma metodologia e segui-la, também é preciso ter uma equipe que tenha anteninha ligada para saber se não devemos fazer um desvio de curso ou pensar em outro ponto que não tenha sido cogitado”, adverte Thais. O pesquisador precisa

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estar aberto à subjetividade enquanto o campo estiver acontecendo. “Se você percebeu que existe uma sutileza que não foi percebida e existem condições de encaixar no escopo, o projeto será adaptado para abranger essa abordagem”. Durante a pesquisa, os assuntos vão ficando mais claros e os pesquisadores obtêm mais subsídios para trabalhar. As pessoas pesquisadas são agrupadas por grupos de identificação, levando em conta os gostos e não a idade ou classe social. Intimidade, poder econômico, vida pessoal e perfil de consumo são filtros utilizados pelos estudiosos do comportamento. O pesquisador é um analista cultural, seu papel é ligar os pontos. Para isso, não raro, buscam entender e explicar o mundo por meio de alguma expressão artística, social ou tecnológica. A habilidade de acessar os seus próprios sentimentos e capacidade de se autoavaliar também são fundamentais nessa caminhada, já que se passa muito tempo pensando os porquês das coisas. É fundamental, portanto, ter curiosidade e capacidade de refletir sobre o mundo. Inteligência interpessoal. Mas afinal, como são escolhidos os pesquisados? Carmencita os divide em três grandes grupos: alfas, betas e mainstream. Os alfas têm autenticidade e vivem em eterna busca pelo novo. São pessoas exóticas que têm papel criador e constituem de 1% a 5% de um segmento estudado. Informação profunda, mentalidade individual, espírito natural de inovação e criatividade, além de interesses focados, são algumas de suas características. O primeiro interesse não é a popularidade, mas a autenticidade e busca pelo novo. Os betas seriam os influenciadores, que disseminam aquilo que é criado pelos alfas. Eles têm interesse e informação acima da média e, sendo fontes intermediárias, permitem um maior filtro das informações. “Questionadores, os betas têm a capacidade de fazer cruzamento de informações a partir de sua curiosidade e extroversão, que dão margem a uma comunicabilidade fora do comum”, explica Carmencita. Aqueles descritos como mainstream têm por característica o ecletismo, seu

Entender o lugar em que vivemos se faz necessário para conhecer seus espaços de convivência, onde e o que consomem. CARMENCITA JOB, pesquisadora

papel é generalista. São a maioria — constituem 80% do segmento estudado. Absorvendo a moda de massa, esse tipo precisa que seu gosto seja endossado, o que é feito geralmente pelos betas. As informações básicas são obtidas com fontes muito acessíveis, como televisão, rádio e sites de grande popularidade. Geralmente absorvem, mas não questionam. “Se uma marca atingir os betas, ela atingirá o mainstream”, aposta Carmencita. “A gente acredita que moda é o que está transbordando, o que está aí para todo mundo ver. Mas existem plataformas de raiz (arte, música, gastronomia, arquitetura e cinema), são nossas bases de contato que vão nos dar nossos referenciais culturais, que são trabalhados em sincronicidade, com ondas de conexão. Ou seja, o procedimento de pesquisa se aproxima ao trabalho do jornalista, é preciso apurar diferentes informações para

então compilá-las, de modo a transformar em dados efetivos e utilizáveis pelo mercado”, afirma. No entanto, para Carmencita, a palavra tendência deve ser questionada. O conceito trata de movimentos de cenário e comportamento. “Há muita gente fazendo futurologia, o que me parece caça-níquel. Como saber o que vai acontecer daqui a 25 anos se as coisas estão acontecendo tão rápido?”, indaga. O trabalho é feito a partir do presente para entender o que acontecerá num futuro próximo, que pode ser seis meses, um ano. Os movimentos vão se desdobrando, não são fixos. Nada é tão simples. “As pessoas não são mais somente uma coisa. Essa é a grande diferença da década de 1980 para cá. Hoje não existem mais subdivisões para cada pessoa. Mais do que indivíduo, hoje tratamos do “multivíduo”, define. Num primeiro momento, uma pessoa pode aparentar ser uma coisa, mas a conversa e o inconsciente indicarão um diagnóstico de quem é a pessoa”. Na antiguidade, os filósofos estudavam astronomia, arte, sociologia e filosofia para ter entendimento e eram considerados meio loucos por serem multidisciplinares. E hoje, quem consegue ter uma visão além do que se vê acaba se destacando. A moda é o que está transbordando, é onde a sociedade toca, monitoramento constante”, diz.

ESQUEMAS são importantíssimos na pesquisa, acredita Thais revista exp

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ORGULHO Após oito anos à frente do Bar Preliminar, Faísca se tornou ícone da torcida gremista e faz parte da história do time gaúcho

A HISTÓRIA DE UM

Gigante da Azenha

A trajetória de Edimilson Davi, proprietário do mais conhecido ponto de encontro da torcida tricolor da capital gaúcha, e suas conquistas desde que deixou o interior do estado NATALIA BITELLO

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or trás do nome mais conhecido quando o assunto é o ponto de encontro antes dos jogos do Grêmio em Porto Alegre, está Edimilson Davi. Esse cara humilde e boa praça tem o destino como responsável pelo sucesso profissional que conquistou ao longo dos últimos anos. Mais – ou somente – conhecido como Faísca, o proprietário do Bar Preliminar, o mais movimentado e lembrado por torcedores tricolores, já está sentindo falta dos dias agitados que as partidas de futebol no Olímpico proporcionaram estes 8 anos a frente do bar, mas garante:

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“Quem é meu cliente continuará vindo aqui, o que vou sentir falta é da simbologia que tudo isso ganhou com o passar do tempo”. A história de Edimilson começa em Putinga, no interior do Rio Grande do Sul. Mesmo com nome de jogador de futebol, o esporte não teve grande importância nos tempos de criança. Sem grandes planos, a decisão de rumar para a Capital surgiu quando completou 18 anos. Ele foi tentar a sorte, ou o azar, como ele mesmo diz. “Quando a gente decide fazer uma coisa dessas, tem que estar ciente de que a sorte e o azar são que nem o amor e o ódio, eles vivem muito perto e, na busca de um, podemos acabar encontrando o outro”, alerta.

Edimilson ganhou o apelido quando trabalhava em um bar no centro da cidade, onde exercia a função de ‘faz tudo’. Atendia, servia, limpava e recolhia com tanta eficiência que, em poucos dias, era chamado apenas de Faísca. No início dos anos 2000 ficou desempregado e, na procura por trabalho, um dia pensou: “Hoje vai ser diferente”. Simples Assim. E foi nesse momento que o tal destino resolveu se manifestar. Edimilson, mesmo sem saber para onde, pegou o primeiro ônibus que passou. “Não fazia diferença eu saber para onde a condução ia, eu não tinha para onde ir, então fui para lugar nenhum”, conta entusiasmado.

Mas o embarque despretensioso o levaria para o lugar certo. O ano era 2003, e o ônibus, ele nem lembra, mas ao desembarcar nos arredores do estádio Olímpico, a primeira coisa que lhe saltou aos olhos foi uma placa de “vende-se”. Era um barzinho, pequeno, mas que lhe quebraria o galho. “Eu fiquei com medo, mas eu trabalhava em bares desde que deixei Putinga, alguma coisa eu entendia.” Negócio fechado com o pouco de dinheiro que tinha e uma nova fase começava para Faísca. Poucos metros à frente de seu bar havia um estabelecimento fechado há algum tempo, o que despertou a curiosidade do putinguense. Fazia um ano

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que Faísca observava aquele que seria o lugar perfeito para ampliar os negócios. Ele então iniciou uma busca pelo proprietário do já denominado Bar Preliminar. Quando o encontrou, lançou a proposta: “O dono me pediu R$ 30 mil e eu disse que dava sete – tudo que eu tinha – de entrada e parcelava o resto. Ele aceitou”. O que Faísca não contava era que o suposto proprietário simplesmente nunca mais aparecesse para cobrar o restante do dinheiro. O susto ficou por conta do momento em que descobriu que aquele não era o verdadeiro dono do bar. Quando o esperado encontro aconteceu, uma surpresa: “Eu não assinei nada, fiz o acordo no ‘fio do bigode’. Contei a verdade e ele só pediu pra retirar o que era dele do local e o bar era meu”, revelou colocando, novamente, o destino como guia para uma vida melhor. Hoje, aos 40 anos, esse baixinho de jeito tímido e simples se transformou em um dos principais nomes que se ouve quando o assunto é Grêmio e torcida. Ponto de encontro de torcedores, Faísca mantém o lugar como encontrou: simples. “Meu público se reúne aqui pra beber e divagar sobre o esporte. O bar tem a cara da minha gente”, assegura. Ao longo desses oito anos à frente do Preliminar, Edimilson colecionou histórias e amizades, presenciou o que poucas pessoas já viram e se tornou um exímio conhecedor de futebol: “Se me dizem o jogo, o dia, o horário e o adversário, eu sei dizer direitinho o público que vai ter dentro e fora do estádio”. Orgulhoso, Faísca conta que, no Museu da Arena, preparado para ser inaugurado junto com a nova casa tricolor, haverá uma maquete do Olímpico e a única referência de fora do estádio apresentada é o Bar Preliminar. Ele ainda não viu a tal obra de arte, mas não precisa. Os vários anos tendo como ‘vizinho de porta’ o elenco gremista o permitiram fazer amizades que lhe adiantaram a novidade Faísca não é nada modesto ao contar os fregueses que já serviu, pelo contrário. “Aquela churrasqueira ali foi o Renato Gaúcho que fez com as próprias mãos. Eu não estava aqui ainda, mas ele voltou para visitar e me contou essa história”, orgulhase. E as histórias não param por

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O Grêmio não me dá, nem nunca me deu, nada. O que eu represento hoje devo aos torcedores e amigos. EDIMILSON DAVI, proprietário do Bar Preliminar

aí. Faísca se gaba ao contar que por muito tempo levou cerveja escondida para jogadores que moravam perto e faziam o pedido pessoalmente, pois não podiam ser vistos bebendo por ali durante a semana. E foi ela – a cerveja – que fez com que o Bar Preliminar se consagrasse, em 2005, como o segundo bar que mais vendeu a bebida na Capital. Hoje, em média, são vendidas 160 caixas de cerveja por jogo, o equivalente a mais de 2 mil litros consumidos pelos cerca de 5 mil torcedores que marcam presença no bar a cada jogo. Durante esses anos, muitos entraram e saíram. Muitos também permaneceram, mesmo que pela lembrança, como por exemplo, o ex-zagueiro gremista Airton Pavilhão, morto em março deste ano. “Me dava muito bem

com ele”, conta Faísca enquanto aponta para um quadro raro, do time tricolor de 1956, presente de Airton. Junto com essa raridade, há dezenas de outros quadros, pôsteres e flâmulas que mostram a história do Grêmio. O local faz qualquer gremista se sentir em casa e lembrar de nomes que fizeram história no time gaúcho, como a equipe de 1983, estampada em um grande pôster. E um dos maiores orgulhos de Faísca é que nenhum foi comprado por ele. “Os clientes e amigos me deram tudo, ganhei muitas coisas de ex-jogadores, dirigentes e funcionários. Eu tenho coisas aqui que a Arena do Grêmio nunca vai ter.” O mesmo acontece com a coleção de camisetas do time que hoje somam 46 peças e, mais uma vez, ele garante: “Nunca comprei uma sequer. O lado ruim é que eu não compro nenhuma roupa e acabo sempre fardado com o uniforme tricolor”, afirma aos risos, revelando que, fora essas 46 camisetas, tem mais três, que servem de pijama. Os amigos que fez nesses oito anos são os troféus de Faísca. “Se eu me aperto em algum dia de jogo, eu sei que não estou sozinho e que um que está bebendo vai largar o copo e me ajudar a servir. Já aconteceu muitas vezes”, revela. As palavras de Faísca são confirmadas por Elmor Balchi, gremista, frequentador do Preliminar e, acima de tudo, amigo. “Se eu fosse o Faísca, não dava conta. É muita gente e muita coisa pra

se incomodar. Não tem como não se tornar amigo, ele nos faz sentir parte dessa grande família que, a cada jogo, se reúne por uma mesma causa”, emocionase Elmor, que há quatro anos passa todos os dia no bar, nem que seja para cumprimentar o amigo querido. O mesmo diz João Carlos Souza, que vem de Caxias do Sul para a Capital duas vezes por semana e sempre faz questão de assistir aos jogos na televisão do Preliminar. “Se torcidas de times paraguaios, quando jogam no Brasil, fazem um quilômetro a mais de viagem apenas para passar nesse bar, como eu vou fazer diferente?”, questiona. Faísca esclarece: “Fiz amizade com torcidas de outros times também, como Vasco, Atlético Mineiro e de times do Paraguai que, além de esticarem a viagem para passar aqui, vão embora com uniforme tricolor”. Não bastasse todo esse reconhecimento, na última visita, os amigos paraguaios anunciaram que havia sido inaugurado, em Assunção, capital daquele país, um Bar Preliminar além da fronteira. “O Grêmio não me dá, nem nunca me deu, nada. O que eu represento pra eles, como eles dizem, eu devo aos torcedores e amigos. Nesses oito anos nunca me desentendi com ninguém. O bar mudou minha vida, se vivo uma situação confortável hoje, é por ele. Talvez eu vá para a Arena, mas daqui eu não saio. Lá nunca será a mesma coisa”, justifica Faísca.

RELÍQUIA Faísca ganhou de Airton Pavilhão, que faleceu este ano, a foto da equipe tricolor de 1956 revista exp

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MARCAS DA

arte suave

As pancadas e os atritos ocorridos diariamente no treino criam deformidades no praticante de jiu jitsu, conhecidas popularmente como orelha de couve-flor

ESTRANGULAMENTO Durante o treino, o professor Psico demonstra a posição, uma das responsáveis por lesões na orelha FILIPE KARAM

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entro do tatame, as ações são automáticas. Depois que os dois competidores se cumprimentam, o som se torna mais abafado. A concentração é total e o público se torna uma nuvem de vultos. Quando o juiz grita “lutem”, a velocidade aumenta. Nesse momento, não importa força, peso, graduação, apenas a vontade de vencer, mas, basta que um dos lutadores deixe o pescoço “dando sopa” para que o adversário encaixe uma guilhotina. Aí não tem volta. E, após duas sutis batidas no chão, a luta termina. O vencedor, já com mais tempo de esporte, tem a orelha muito deformada, resultado de diversas lesões ocorridas no passado.

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O atleta derrotado acaba de estourar a orelha. Durante os próximos dias, será mais difícil treinar, ela ficará dolorida e provavelmente vai precisar de proteção. Daqui a alguns meses, porém, caso não seja tratada, essa fratura proporcionará ao atleta uma orelha deformada igual à do vencedor da luta. Esse é o dia a dia de quem pratica jiu jitsu e é pela orelha que se reconhece um bom lutador. Ou não é? A prática de artes marciais proporciona diversos benefícios à saúde. Além de manter um excelente preparo físico, ajuda a reduzir o estresse, melhora a coordenação motora e incentiva, principalmente entre os jovens, valores como respeito, humildade e coragem. O atleta, porém, nunca fica livre de sofrer alguma lesão.

É muito comum o praticante de alguma luta aparecer no trabalho com um olho roxo, um dedo quebrado ou mesmo mancando. Mas a orelha de couve-flor é, até hoje, considerada marca registrada do praticante de jiu jitsu. Mas, afinal, por que os lutadores são conhecidos por terem a orelha deformada? O professor João Alberto Martins, faixa marrom, explica que, devido à própria natureza do jiu jitsu, arte suave em japonês, que é de contato corporal constante, a orelha acaba por sofrer pancadas, além do atrito constante que ela tem, tanto com o tatame como com o gi (quimono). João, conhecido pelos alunos como Psico, diz que não se importa em ter as orelhas deformadas. “Para mim, elas fazem parte do esporte,

é normal e não é vergonha nenhuma ter orelha de couveflor”, explica. O hematoma auricular, popularmente chamado de orelha de couve-flor, é o resultado de todas essas pequenas fraturas do dia a dia do lutador. A orelha é formada por uma lâmina de cartilagem elástica de formato irregular, recoberta por uma fina camada de pele. Entre a pele e a cartilagem existe ainda uma camada de tecido conjuntivo chamada de pericôndrio, que é responsável pela “nutrição” da cartilagem. A otorrinolaringologista Inesângela Canali afirma que a lesão ocorre quando forma-se um hematoma entre a cartilagem e o pericôndrio, provocando inchaço e dor. Caso o sangue que se acumula

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na orelha do atleta não seja drenado, forma-se uma nova cartilagem no local. A soma de muitos hematomas auriculares não tratados, ao longo de vários anos de treino, acaba deformando a orelha do atleta. Após a consolidação da lesão, quando uma nova cartilagem se forma onde ocorreu a fratura, a única opção é a cirurgia plástica. Porém, a orelha nunca mais volta a ser a mesma, comenta Inesângela. “Ela até dá uma melhorada, mas é quase impossível fazer a orelha ficar exatamente como era antes.” Muitos atletas, além de considerarem normal a deformação da orelha, a veem como um troféu, uma representação de todas as conquistas adquiridas no esporte. Parece incrível, mas há, também, aqueles que utilizam alicates para provocar a lesão, a fim de ficarem com o típico visual de lutador. “Nós sabemos que existem muitos atletas que querem a orelha deformada, mas não esperam ela ficar lesionada com os treinos. Eles pegam um alicate e vão quebrando”, explica Inesângela. “O problema é se depois eles se arrependerem.” Ao contrário do que pensa Psico, há pessoas que acham muito feio ficar com a orelha deformada. Além disso, há aqueles que, devido à profissão que escolheram, simplesmente não podem apresentar esse tipo de lesão. É o caso do advogado Daniel Urruth, faixa azul, praticante há 11 anos. Pelo fato de a advocacia exigir da sua imagem e apresentação, ele não tem como se reunir com um

cliente apresentando um par de orelhas de couve-flor. “Posso vir a ser prejudicado, pois, na minha profissão, as pessoas dão muito valor para a aparência”, afirma. “Iniciei no jiu jitsu em 2001, mas desde o começo de 2011 tenho treinado quase todos os dias, quando passei a ter essas lesões”, confessa Urruth. O atleta tratou das lesões imediatamente, motivo pelo qual hoje não apresenta resquícios da fratura. “Mas mesmo após a melhora da lesão percebi que aquela região havia ficado muito mais grossa do que as outras partes da

Ela é do esporte, não tem como saber quando ou se a fratura vai aparecer. PSICO, professor de jiu jitsu

orelha”, admite. Além disso, comenta o advogado, a sociedade ainda associa os praticantes de artes marciais e, principalmente os de jiu jitsu aos pitboys, esteriótipo que surgiu no Rio de Janeiro relativo a jovens que vivem na academia e gostam de se envolver em brigas por diversão. “Ostentar essa deformidade na orelha faz com que o lutador seja

LESÕES Fazem parte da rotina do praticante de jiu jitsu

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visto como marginal, arruaceiro, preconceito é automático, mesmo estando de terno e gravata”, expõe Urruth. Para os atletas que não podem correr o risco de sofrer a fratura ou mesmo os que acham o hematoma auricular anti-estético, existe proteção para orelha, feito de espuma e EVA, que absorve o impacto e protege uma fratura já existente. No entanto, além de não ter uma aparência muito agradável, semelhante a um capacete, o protetor traz desconforto ao usuário durante as lutas. Há também o fato de que, mesmo em clima de amizade, o atleta que utiliza o protetor pode ser motivo de piadas durante os treinos, apesar de esse fato não ser regra. “Onde eu treino o ambiente é de muito respeito, não tem essa de rir da cara do outro porque está de protetor”, ressalva Urruth. Além da questão estética, muitos praticantes de jiu jitsu preocupam-se com os danos que o hematoma auricular pode causar à saúde. Inesângela afirma que os golpes e pancadas na região da cabeça podem originar zumbidos e tontura no atleta. Porém, as deformidades no pavilhão auricular por si só não provocam perda na capacidade de ouvir. “A audição pode ser prejudicada nos casos em que o trauma, além de causar deformidade na orelha externa, ocasiona danos à orelha média, onde encontram-se os ossículos da audição, ou à orelha interna, onde encontra-se a cóclea e o nervo auditivo, responsáveis pela formação do som e pelo equilíbrio”, detalha. Não é regra que o atleta acabe com a orelha estourada. Exemplo disso o faixa preta e campeão mundial absoluto de jiu jitsu de 2009 e 2010, Roger Gracie, que possui um par de orelhas sem nenhuma lesão. Já os vencedores de 2011 e 2012, Rodolfo Vieira e Marcus Vinicius “Buchecha” de Almeida, respectivamente, ostentam um par de orelhas de couve-flor. “Ela é do esporte, não tem como saber quando ou se a fratura vai aparecer”, garante Psico. Não são apenas homens que encaram esses problemas no tatame. A medalhista do Mundial de Jiu Jitsu de Abu Dhabi de 2012, Thanise Casarin, também tenta ao máximo cuidar da estética durante a prática do esporte. “O jiu jitsu coloca em

COUVE-FLOR Comparação entre as orelhas de dois atletas: a normal e a deformada risco para se sofrer esse tipo de lesão, e o atleta que pratica tem que estar ciente disto”, explica. Para os praticantes que deformam a orelha de propósito, Casarin recomenda uma consulta ao psicólogo. “Esse tipo de pessoa tem algum problema e acaba estragando a imagem dos atletas”, lastima a atleta. O jiu jitsu, após se popularizar no Brasil, hoje é febre ao redor do mundo. Nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, o esporte tornou-se disciplina obrigatória nas escolas. Reúne, entre os praticantes, crianças, jovens, adultos e até mesmo idosos. O esporte sempre carregará esta ambiguidade: a orelha deformada trata-se de uma lesão ou um troféu dos treinos e parte da arte? Para os praticantes, isso não importa. “O que vale é treinar”, convida o professor Psico. revista exp

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RESÍDUOS

urbanos

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A cidade com seus grandes e pequenos detalhes. Com suas cores, formas, sombras e paradoxos. A rua é lugar de passagem e de movimento, mas também guarda, em silêncio, surpresas e destroços. FOTOGRAFIAS DE LÍVIA AULER

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A CIDADE ONDE DEUS É

forasteiro

Localizado no extremo sul do Brasil, o município gaúcho de Chuí, na fronteira com o Uruguai, tem a maior proporção de pessoas sem religião no país BRUNO MORAES

VAZIOS Templo no Chuí com baixa procura e rotatividade

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É tudo uma grande mentira”, sentencia um funcionário de hotel. “Religião? Não, não tenho”, afirma uma farmacêutica. “Sou ateu mesmo. E, se o senhor não está com muita fome, recomendo o prato do dia, com chuleta, arroz, ovo e salada”, segue, naturalmente, a vida o garçom de um restaurante na Avenida Uruguai, no município de Chuí, no Rio Grande do Sul. Localizada no extremo sul do país, a cidade gaúcha é famosa pela expressão que a contrasta com a amapaense Oiapoque, no ponto mais ao norte do Brasil. Agora, o reconhecimento é por sua religiosidade – ou falta dela. Com a divulgação, em 29 de junho de 2012, de dados do Censo 2010 sobre a religiosidade dos brasileiros, Chuí se destacou por mais uma característica extrema: é, entre os 5.564 municípios do país, aquele com a maior proporção de pessoas sem religião, com 54,24% da população. O Chuí – assim, com artigo definido, como preferem seus habitantes – não tem igreja, nem sinagoga. Existem lá, contudo, uma mesquita, uma capela e alguns templos evangélicos pentecostais, que ocupam pequenas salas comerciais durante um certo tempo até serem substituídos por uma lojinha de roupas ou bugigangas. A principal via da cidade de 5.917 moradores, a Avenida Uruguai, é tomada por lojas, mercados, atacados, farmácias, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais. Nas ruas próximas, residências e hotéis competem por espaço com alguns comércios. Do lado uruguaio, ela recebe o

nome de Avenida Brasil, e é um paredão de free-shops, margeado por banquinhas de camelôs. Roupas, bebidas, eletrônicos, brinquedos, artigos esportivos, perfumes e cosméticos estão expostos nas vitrines das lojas, enquanto que nos cestos de metal e nas bancadas de madeira, cobertos por lonas pretas ou azuis, estão brinquedos luminosos e barulhentos, CDs piratas e cuias de chimarrão. Em algumas esquinas, sentados sobre caixotes, há senhores de chapéu, colete de lã e barba por fazer oferecendo vantagens cambiais. A rotina do lugar é feita de turistas brasileiros e uruguaios, que circulam pelas calçadas dos dois lados da fronteira com a mesma tranquilidade com que circulam as notas de real, peso e dólar. Nas listas de compras estão uísques, vinhos, brinquedos, tablets, aparelhos de som automotivo, queijos e alfajores. Aos fins de semana, o número de visitantes se multiplica, de acordo com variáveis como época do ano e previsão do tempo. Enquanto isso, a capela Santa Teresinha segue fechada até as 18h de todos os domingos, os templos evangélicos pentecostais abrem com periodicidade esquizofrênica e a mesquita recebe alguns fiéis apenas à noite, em quantidade proporcional à temperatura. Na cidade onde mais da metade dos moradores não crê, a vida não é muito mais do que comer, dormir, vender.

A mesquita

Em uma sala com cerca de 120 metros quadrados, dentro do Clube Árabe, que fica numa rua sem asfalto, a cinco quadras da avenida principal, foi montada

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a mesquita do Chuí. O lugar tem diversos tapetes, uns grandes, outros pequenos, sobre um carpete marrom que reveste o chão. Na parede do lado para o qual supostamente fica a cidade de Meca, foram pintados pilares, arco e lajes, como a entrada de um templo, aos moldes da arquitetura árabe tradicional. Mesmo que os muçulmanos sejam obrigados a rezar cinco vezes ao dia, a mesquita costuma receber fiéis somente às 20h. Sentado sobre um tapete junto à parede, Yasser Asal, 39 anos, lê uma passagem em árabe do Alcorão. Em seguida, traduz o sentido geral do trecho, que explica como o homem muçulmano deve tratar a mulher muçulmana antes e depois do casamento. É permitido que ele tenha até quatro esposas, desde que as reconheça socialmente, as honre e as sustente. Em seguida, Asal – que é uma espécie de xeque informal do Chuí, já que não tem a devida formação religiosa para isso, mas é tido como o maior conhecedor dos ensinamentos do livro sagrado do Islã – começa a dirimir dúvidas dos quatro patrícios sobre como os homens devem se comportar, sobre o que é, na prática cotidiana, aceitar o islamismo “de coração”. No início da reunião, havia oito pessoas

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além de Asal, que comandou as rezas em conjunto. Ao fim das preces individuais, quatro tinham ido embora. Para ilustrar o tema, Asal conta uma história, que diz ter ocorrido na França – país que proibiu o uso de burcas em locais públicos. “Uma vez, a polícia deteve uma mulher que usava a burca na rua. Então, ela disse ao policial que avisasse o marido dela. Ele acessou um computador e viu, no registro do marido, que ele era casado com outra mulher. Na delegacia, ele disse que era casado com as duas e ainda com uma terceira. O que aconteceu? O muçulmano foi processado por poligamia, que é proibida na França. No julgamento, o juiz perguntou ‘essa é a sua esposa?’ e ele respondeu ‘sim’. ‘E aquelas duas?’, ‘Não, aquelas são minhas amantes’. E ele foi declarado inocente. Se ele assumisse as três como suas esposas, dentro da moral do Islã, seria crime. Mas, assumindo uma imoralidade, aí fica tudo bem”, narra Asal aos três adultos e ao adolescente de 13 anos Nawaf Dantas Khalil Moreno. Todos balançam a cabeça negativamente, diante da falta de lógica do princípio jurídico francês. Acompanhando o pai, Nayif Khalil, Nawaf é o único jovem

Se assumisse as três esposas, seria crime. Mas, assumindo uma imoralidade, fica tudo bem. YASSER ASAL, comerciante muçulmano

a frequentar a mesquita regularmente. Ele se diz tranquilo e satisfeito, pois sabe que está encaminhado. “Tem muitos meninos da minha idade que não querem seguir o Alcorão, porque ele não deixa isso, não deixa aquilo. Mas não é bem assim. Há algumas regras, como tudo na vida. Tem gente que se ajusta”, pondera. Para Asal, a mera presença de Nawaf na mesquita já deve ser considerada uma vitória. “No Chuí, o Islã é como um peixe fora d’água. Dos 300 e tantos árabes que vivem aqui, uns 200 nasceram no Brasil e não tiveram uma formação muçulmana. Tirar um praticante daí é quase impossível”, diagnostica. Sobre o Censo, Asal é taxativo: “Nunca

me perguntaram minha religião”.

A capela

Desde abril de 2012, por volta das 16h30min de cada domingo, padre Cleomar, 41 anos, sai de sua paróquia na cidade de Santa Vitória do Palmar em direção à rodoviária. De ônibus, percorre os 70 quilômetros que separam o município onde vive do Chuí. A pé, desloca-se por duas quadras na cidade dos sem fé e abre a capela Santa Teresinha, em torno de 17h30min. Na meia hora seguinte, os fiéis vão chegando. Às 18h, começa o serviço. Eram 21 pessoas na capela, sem contar o padre. Dez haviam comparecido por ocasião da missa de sétimo dia de uma parente. De todos os presentes, 14 comungaram. Embora conteste os dados do Censo sobre a religiosidade dos moradores do Chuí, afirmando que a comunidade católica no município “é maior do que parece”, padre Cleomar reconhece que são tempos difíceis para o catolicismo. “Nossa comunidade não passa mais a cestinha, e temos um

XEQUE Asal (C) é a “autoridade informal” entre palestinos

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COMÉRCIO Templo mais imponente da região, igreja mórmon do Chuy uruguaio destoa da paisagem de fachadas dos free-shops mercado religioso com várias alternativas. Mas só uma traz o caminho, então convidamos as pessoas que se entreguem a Deus, seja com dinheiro, seja com a vida, vindo até o altar”, sugere. Diante deste cenário, o pároco deposita suas esperanças na quantidade de batizados. Ele garante que três ou quatro crianças são batizadas por mês no Chuí. Por fim, padre Cleomar se confessa intrigado com o percentual de 54% de pessoas sem religião, e se contradiz ao anunciar estar preparando uma missão para averiguar por que poucos católicos apostólicos romanos frequentam a capela.

Os templos pentecostais

Não passamos mais a cestinha. Temos um mercado religioso com várias alternativas. PADRE CLEOMAR, pároco do Chuí

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Não há estatísticas sobre o número de templos pentecostais no Chuí. Nem os moradores têm noções claras sobre eles. Naquele que é provavelmente o maior dos templos, os sinais são de que o lugar não é aberto há um bom tempo. Localizado na Rua Peru, ao lado da Casa Carioca, mercado do muçulmano Yasser Asal, no templo há cartazes com a impressão gasta, anunciando cultos em dois horários, num domingo. O anúncio traz imagens do pastor evangélico R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, mas não diz se ele estaria presente. “Faz pelo menos uns três meses que não vem ninguém aí. Qualquer dia, eles voltam”, cogita Asal, que mora num apartamento no piso superior de sua loja. No início da tarde de domingo, dois times infantis de futebol do Uruguai disputam uma partida no campo do Clube Árabe. Na torcida, está a mãe de um dos jogadores, a brasileira evangélica Elisângela Vieira, 37 anos. Membro da igreja Campanas Del Cielo, aberta havia menos de um mês, ela diz que naquele mesmo domingo seria ministrado um culto, às 19h30min. Localizado na Rua Colômbia, o novo templo não foi aberto no dia em que a fiel havia informado.

Porteiro de um hotel a poucos metros da Campanas Del Cielo, Antonio Calabria, 62 anos, testemunhou apenas uma celebração no templo, na inauguração, duas ou três semanas antes. A fachada do prédio não indica que ali funciona um templo religioso. “Aqui é assim. As igrejas vêm e vão, como as pessoas. Isso é fronteira. Quem vive aqui é porque nasceu no Chuí – e um dia vai tentar ir embora – ou porque veio parar aqui, sabe-se lá por que motivo. Fui casado com uma uruguaia e tenho três filhos que nasceram lá do outro lado. Nenhum deles acredita em Deus. Afinal, é tudo mentira. Sou católico, mas sei que é tudo mentira”, conforma-se Calabria. Durante todo o último fim de semana de agosto, dias 24 e 25, a reportagem não localizou nenhum templo evangélico aberto.

As igrejas uruguaias

A duas quadras da fronteira com o Brasil, em frente à praça que homenageia os fundadores de Chuy-Chuí, ficam a igreja da paróquia Nuestra Señora de La Asunción e a Iglesia de Jesus Cristo de los Santos de los Últimos Días. O templo dos católicos permanece fechado a

maior parte da semana, abrindo apenas às quartas-feiras e aos domingos, para missas às 18h. Em compensação, na igreja mórmon, as atividades se iniciam logo às 9h nos domingos. Único brasileiro entre os fiéis, Calney Pereira, ou Élder Pereira, como apresenta o crachá, tem 19 anos e deixou a cidade da Paranaguá (PR), onde nasceu, em missão religiosa ao Chuy. Na mesma situação está o norte-americano Kevin Tolman, também de 19 anos, de Farmington, Utah – berço da religião mórmon. O trabalho dos dois é, aos domingos, ministrar atividades para jovens e tentar cativar novos fiéis durante a semana. Pereira admite que a tarefa não é fácil de ser executada no Uruguai. “Bem mais da metade das pessoas não quer nem me ouvir quando bato na porta. Dos que me escutam, uns 40% pedem que eu volte outro dia. Quando volto, uns 20% me recebem. Mas desses, pouquíssimos aderem à igreja”, calcula. Responsável pelo templo, o bispo Carlos Daniel Recurt, 30 anos, vem de uma família de ateus. O trabalho dos mórmons pela religião não é remunerado, assim, Recurt se sustenta consertando automóveis em sua

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oficina mecânica. “Meus pais sempre me criticam. Perguntam ‘por que vais, se não te pagam?’. Ignoro o que dizem porque tenho fé”, persevera.

A culpa é deles

O muçulmano Yasser Asal refuta a tese de que o alto índice de pessoas sem religião no Chuí seja reflexo de um tipo de “esconderijo” muçulmano. Chegou-se a cogitar que o índice de 54% de pessoas sem religião no município tivesse sido gerado por seguidores do Islã que, temendo represálias, teriam optado por dizer que não têm religião alguma. Este raciocínio tentava se sustentar com o argumento de que, na época da pesquisa, o serviço secreto norte-americano suspeitava que muçulmanos residentes na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai estariam ajudando grupos terroristas, enviando cotas do dinheiro ganho com o comércio na região. Asal acredita que residam no Chuí cerca de 300 pessoas de origem islâmica (5% da população) – que podem ter se declarado religiosas ou não. O Censo apontou que os muçulmanos representam 3,77% dos 5.917 habitantes, isto é, são 223. Assim, segundo Asal, a população muçulmana é muito pequena na cidade para ter efeito significativo no Censo. Para ele, a responsabilidade é dos uruguaios que vivem do lado brasileiro. “Essa coisa de o Chuí não ter religião é influência uruguaia. Eles não creem”, atesta. A tese de Asal ganha força quando considerados os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística do Uruguai (INE) sobre religião, divulgados em 2006, no Levantamento Nacional Domiciliar Ampliado (Encuesta Nacional de Hogares Ampliada). Na pesquisa, 16,25% dos uruguaios se declaram ateus ou agnósticos e 24,2% afirmam ser crentes sem confissão religiosa. Para o padre Cleomar, além da proximidade com os uruguaios, a fronteira acaba trazendo muitas pessoas que ficam na cidade temporariamente, o que dificulta a criação de vínculos comunitários. E esse fator prejudica a consolidação de uma rotina religiosa. Em resumo, a culpa é dos forasteiros. O porteiro de hotel chuiense

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ROTINA Igreja católica do Chuy abre às terças e aos domingos

Essa de o Chuí não ter religião é, sem dúvida, influência uruguaia. Eles não creem. YASSER ASAL, comerciante muçulmano

Antonio Calabria tem uma visão mais definitiva sobre o assunto. “O problema é que contrataram um monte de uruguaios para fazer esse Censo. Uruguaio é pior do que brasileiro. Eles entrevistavam em uma, duas,

talvez três casas em cada rua e inventavam o resto das respostas. É tudo mentira”, sintetiza. No entanto, pelas ruas do Chuí, entre donos de lojas, vendedores de cuias de chimarrão, balconistas de ferragens, garçons que recomendam parrijadas, cozinheiros que salgam carnes, camareiras que arredam camas e sacodem fronhas, turistas que pechincham e riscam itens da lista de compras e forasteiros que chegaram à cidade sabe-se lá quando, como e por que, para todas essas pessoas, qualquer teoria que se predisponha a explicar a razão que levou mais da metade da populadação do município a dar de ombros para a espirituosidade é tão sem propósito quanto receber uma hóstia, curvar-se em direção a Meca ou dar glória a Deus.

54,24% é a porcentagem de pessoas que não têm religião no Chuí

8% é a proporção de brasileiros que declaram não ter religião

3,7% ou 223 dos 5.917 moradores do Chuí são muçulmanos

3,2 mi é a população total do Uruguai

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TRABALHO Em 30 anos como funcionário do Exército, Silva percorreu muitos lugares e hoje carrega consigo as recordações

QUILOMETRAGENS E

vivências

A história de um motorista que dirigiu para presidentes da República MANUELA FERREIRA

E

m 1978, Edson Luiz Bitencourt da Silva, com 16 anos, saiu do município de Alegrete em busca de emprego. Na localidade, era peão de fazenda e domava cavalos. Adorava o que fazia, mas tinha consciência de que ali não teria condições de permanecer, já que faltavam oportunidades de crescimento profissional e sonhava com uma vida melhor. O jovem deixou seus pais e a irmã mais nova. Trocou a Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul pela Capital. Em Porto Alegre, chegou sem conhecer ninguém e sem ter nada, “com uma mão na frente e outra atrás”, costuma dizer. O primeiro emprego foi de garçom em um restaurante no bairro Santa Cecília. Um ano depois, ingressou no Exército, o que considerava a melhor opção e que, portanto, era uma grande conquista. Na instituição, permaneceu

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durante 30 anos. No início fez a segurança de um comandante, passando a morar na residência do oficial. Depois, tornou-se motorista e cuidava da proteção de autoridades. Foram 25 anos de atuação nesse sentido. Dirigiu para comandantes, presidentes da República, como Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, e ministros, entre eles José Veiga Simão e Nelson Jobim. Isso porque os integrantes do Exército são acionados quando personalidades deste tipo vêm para o Estado. Nestas circunstâncias, o trabalho inicia-se cerca de dois dias antes, quando é feito um mapeamento das áreas em que irão circular. A partir daí, montam pontos sem perigo. Silva dirigiu o carro em que os políticos estavam. Compunham os acentos do automóvel: ele, o representante do poder público, um segurança e um assessor. Conta que todos são muito

discretos, evitam falar perto de estranhos. As únicas palavras ditas eram bom dia, tchau e obrigado. Certa vez, aos 20 anos de idade, foi chamado à casa do Comandante do 3º Exército, atual Comando Militar do Sul, para servir o jantar e cafezinho para o então presidente João Figueiredo. Ele, que foi o último presidente militar, tentou descontrair, perguntando qual era a naturalidade de Edson. A partir daí, trocaram algumas palavras sobre o Interior. “Mas, foram poucas, porque eu era muito jovem e estava com vergonha”, relembra. O Exército lhe proporcionou conhecer vários lugares, entre eles Timor Leste, Haiti e Rio de Janeiro, onde integrou as forças de paz. Comenta que o objetivo dessas missões é auxiliar o policiamento local, buscando soluções para a população que não tem condições de viver dignamente.

No Haiti, a atuação aconteceu após o terremoto que devastou o país, em 2010. Metade das construções da Capital, Porto Príncipe, foram destruídas. Cerca de 250 mil pessoas ficaram feridas, 1,5 milhão de habitantes foram desabrigados e o número de mortes ultrapassou 200 mil. A fatalidade agravou os problemas sociais. Silva era apenas um em meio aos 3 mil soldados brasileiros responsáveis pelo processo de recuperação do país. Desses, 50% eram de Campinas e a outra metade, gaúchos. O caos estava instaurado no lugar. Os moradores ficaram sem nada e lutavam até por comida. As atividades desenvolvidas visavam combater à violência, os roubos e restabelecer a dignidade. Lula, então presidente do Brasil, foi até lá acompanhado da esposa, Marisa. Além de prestar solidariedade à população, a primeira dama quis saber como estava sendo o trabalho dos brasileiros e colocou-se à disposição deles. Neste período, aconteceu a eleição presidencial. Os traficantes não deixavam os moradores irem votar, pois não queriam que colocassem ordem no país. Por isso, a tropa permaneceu dois dias fazendo segurança nas ruas e conduzindo os eleitores às urnas. Assim, foi possível eleger o ex-cantor Michel Martelly como representante do maior cargo nacional. A diferença cultural ficou evidente. Estavam no Haiti

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De todas as missões em que estive, a mais perigosa foi no Rio de Janeiro. Lá teve mais tiros, prendemos mais gente e circulava mais drogas. EDSON DA SILVA, motorista em caso de confronto com a polícia. Todas as ações eram fotografadas para compor um álbum de prestação de contas do serviço, que, posteriormente, foi entregue aos comandantes do Exército. O motorista ainda guarda em um pen-drive fotos de vítimas fatais e dos conflitos. Ao longo da carreira, aprendeu a ter disciplina, confiança nos chefes, ser leal, trabalhar corretamente e manter a cordialidade. Aposentou-se como sargento do Exército em junho. Agora atua como motorista de um deputado estadual. Continua fazendo aquilo que mais gosta: conhecer pessoas, lugares e percorrer estradas do Rio Grande. Dos 497 municípios, poucos são os que ainda não esteve. O novo patrão, deputado Lucas Redecker (PSDB-RS), vê no motorista um cara responsável, dedicado, pontual, fiel, obediente e amigo. “Ele é pau pra toda obra, um profissional versátil. Se fora do expediente precisar lavar uma louça, ele

SEGURANÇA Revólver 38 acompanha o militar aposentado

lava. É capaz de me auxiliar em qualquer circunstância, mesmo se não corresponder ao seu serviço. Tem boa vontade e não se sente menos por ajudar”, comenta. Redecker diz que o funcionário tem estilo bruto: “Xucro, como ele mesmo diz, mas busca sempre fazer o melhor e satisfazer. Ao mesmo tempo, ele cativa, porque é parceiro e muito comprometido com o trabalho. Arrumador da casa, faxineiro, garçom, motorista, não tem frescura, sabe fazer qualquer coisa. Sempre conta que tinha tudo para ter ficado no meio do mato, sendo peão de estância, mas pode conhecer o mundo”, compartilha. Eles foram apresentados por intermédio de um coronel do Exército. Devido à sua trajetória, Silva é cuidadoso, atento e preocupado com a segurança e bem estar dos que estão a sua volta. Anda diariamente armado, pois tem permissão para o porte. Possui o maior revólver, um 38, de seis polegadas, marca Taurus. Confessa não largar o objeto nem para ir ao banheiro. No entanto, só precisou atirar uma vez, em 2008, durante tentativa de assalto na avenida Carlos Gomes, em Porto Alegre. Fisicamente é o típico gaúcho e gosta de vestir-se como tal. Na Semana Farroupilha, faz questão

de andar pilchado. Usa bigode, adora comida caseira preparada pela esposa, especialmente carne gorda. Nas horas vagas, gosta de ir para o seu sítio, em Taquara, e lidar com cavalos, reflexo da infância. Considera essa uma maneira de resgatar lembranças dos tempos em que viveu na zona rural. É casado há 27 anos e, com Maria, tem dois filhos, Jefferson e Jéssica. O rapaz, de 24 anos, seguiu a carreira do pai e é cabo do Exército. A caçula, de 18, cursa a faculdade de Direito. “Família de milico geralmente tem que ser meio independente, já que ele fica pouco tempo em casa. Minha esposa se vira. Meus filhos cresceram com ela levando ao médico, resolvendo as coisas. Sinto que às vezes eu teria que estar mais presente, mas agora eles já cresceram”, conforma-se. Seus pais e irmã continuam no Interior. O patriarca está com câncer há mais de dois anos e se negou a fazer tratamento de quimioterapia. Por isso, seu estado de saúde é grave. Silva reconhece que a atitude se deve à falta de informação. Apesar de não ter conseguido fazê-lo mudar de ideia, fica satisfeito por ter saído do campo e, depois de 30 anos trabalhando fora, conseguir pensar diferente. Hoje, o motorista tem outra visão.

ARQUIVO PESSOAL

soldados de diversas partes do mundo. O motorista conta que os naturais da Jordânia andavam de mãos dadas, porque é costume no país de origem. Os gaúchos ficavam constrangidos, “estranhavam e não queriam ficar muito perto deles”, lembra, dando risada. Ele classifica os americanos como arrogantes e individualistas, os paraguaios, humildes, os chineses com boa relação com os brasileiros e os peruanos e japoneses, extremamente dedicados. No Rio de Janeiro, em 2011, o governo federal colocou as tropas nos morros para buscar a pacificação. Atuaram nos morros do Alemão, da Penha, da Misericórdia, da Merendiba e da Fazendinha. Foram três meses e 20 dias de trabalho, uma rotina intensa e cansativa. A ação era contínua, as patrulhas ficavam 24 horas na rua prendendo pessoas que agiam de forma não regular, isto é, tráfico de drogas e de armamento. Trabalhavam 12 dias consecutivos e descansavam seis, em casa. Os traficantes estavam dominando a área e impediam que serviços como entrega de gás e correspondências chegassem até os moradores. No início, a comunidade tinha receio de ajudar os fardados. Mas, com o passar do tempo, fornecia informações e fazia denúncias, o que contribuía com as atividades desenvolvidas. “De todas as missões em que estive, a mais perigosa foi no Rio de Janeiro. Lá teve mais tiros, prendemos mais gente e circulava mais drogas”, lamenta. Ele conta que não se vê tanta arma de fogo, mas, por outro lado, os traficantes conhecem toda a extensão dos morros, o que é um ponto favorável a eles

EXPERIÊNCIA Silva (D) durante ação no Haiti, em 2010 revista exp

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ENSINO AGRÍCOLA

abandonado Escola Técnica de Cachoeirinha sofre com a escassez de recursos e utiliza o trabalho dos alunos para continuar em funcionamento STÉFANO MARCOS DE SOUZA

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s letras C, A, D, O, P, dispostas em uma placa de madeira acima de um portão enferrujado podem não significar nada para quem passa pela Avenida Bonifácio Carvalho, em Cachoeirinha. Para quem convive no local, entretanto, a sigla representa muito mais do que o nome: Colégio Agrícola Estadual Daniel de Oliveira Paiva. No caminho até a sede da instituição, o chacoalhar do carro na estrada de chão batido, envolto à penumbra da noite, denuncia problemas. Uma das

60 escolas técnicas agrícolas do Rio Grande do Sul, o Cadop pena com a escassez de recursos. Para garantir a manutenção do prédio, a compra de materiais e a alimentação dos animais e dos alunos, a administração recebe do governo do Estado R$ 5.380 por mês. O equivalente a R$ 0,62 por aluno para cada refeição.Se ficasse restrita ao valor concedido pelos órgãos públicos, a instituição poderia oferecer poucas opções aos estudantes: uma fruta ou uma barra de cereal. Responsável pela distribuição de recursos das escolas técnicas, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul não quis se manifestar.

As dificuldades reverberam na sala de aula. Há bem pouco tempo os armários continuavam quebrados, as mesas riscadas. A caridade do pai de um dos alunos possibilitou a reforma. Marceneiro, o homem brindou os alunos com a melhoria. As portas enferrujadas e riscadas cederam lugar aos cadeados individuais. Há um lugar adequado para guardar os livros. Mas não é o bastante. O prédio, o mesmo desde a inauguração, em 1947, clama por conservação. Os desenhos e os retratos de turmas antigas escondem rachaduras, tentam enganar o tempo. Dele ficaram apenas as memórias. No campo

as diferenças se acentuam. Os animais, hoje próximos a mil exemplares, ultrapassavam os 5 mil. Tempos de fartura, relembram os educadores na sala onde ficam os quadros com os seus retratos. As atividades práticas reduziram, assim como o número de estudantes também minguou. Onde sentavam quase 900, há 650, sendo 111 na graduação técnica. Sueli da Rosa Farias tem 47 anos. Há oito transita pela sala dos professores da escola, há dois pela direção. Sente-se mais à vontade na primeira. E avisa: “O número de instituições no Interior cresceu. Os garotos não

DEPREDAÇÃO Problemas de infraestrutura, falta de recursos e materiais escolares se repetem nas instalações da escola todos os dias

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têm necessidade de viajar para estudar. Há oferta”. Mas em vez de reclamar da diminuição no número de alunos, da falta de recursos e da indiferença das autoridades, a diretora se orgulha. “O sustento da casa vem do trabalho. A venda dos produtos derivados das criações de suínos, bovinos, caprinos e galináceos que temos engorda o orçamento, contribui para as aulas práticas dos estudantes. Superamos as dificuldades”, elogia. A alternativa para continuar funcionando são as parcerias. O colégio mantém relações com Instituto Rio-Grandense de Arroz (IRGA) que sustenta no espaço o melhor laboratório de análise de solo da América Latina. Muitos garotos já saem daqui com um emprego, enaltece Manoel Leal, 61 anos, professor de Educação Física e vice-diretor do internato. A formação técnica em agropecuária também não movimenta procura. A área tem limitações. Conforme o Sindicato dos Técnicos Agrícolas do Rio Grande do Sul (Sintargs), o ramo tem variáveis. Crises financeiras, safras ruins e até problemas em regiões específicas dificultam a contratação dos profissionais. Entretanto, há opções. O presidente da entidade, Carlos Coelho, salienta que os concursos públicos são um revés cabível, mas reclama: “O ensino é ruim. Apenas as escolas mais tradicionais dão o embasamento adequado”. Mesmo que estejam nesta lista, os professores reconhecem que o Cadop apresenta deficiências. A força de vontade não diminui os problemas. Ainda existem muitas maçanetas sem fechadura.

Uma história diferente

Em outros tempos, as coisas não eram assim. Fundada por um grupo de agrônomos brasileiros vindos dos Estados Unidos, a área de 52 hectares tinha como objetivo. recuperar e educar jovens: o Serviço Social de Menores (SESM), e nela funcionou por quase dez anos. No lugar de plantações, muros. No lugar de portas, grades. De lembrança, apenas fotografias e as fugas dos “infratores”. Nilson Martins, desde 1978 professor de Matemática, recorda as histórias de surras e lamentações contadas pela já falecida sogra,

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Loíde Borges, funcionária da instituição. “Eles vinham pegar comida comigo e fugiam pela margem do Rio Gravataí, que costeia as terras da escola”, repete Martins, a fala daquela que tinha como segunda mãe. O nome também gera discórdia. O professor de Educação Física Luiz Alberto Fossari 62 anos, 49 de Cadop, dispara: “Foi uma homenagem a um antigo professor que morreu. Na verdade deveria se chamar Bonifácio Carvalho Bernardes, homem que doou as terras para a construção do edifício”. O retrato do fazendeiro, colaborador do projeto inicial, estampa uma das paredes do prédio principal, já envelhecido pelos 65 anos de existência. Ao lado, as fotos de todos os 15 homens e mulheres que já dirigiram a escola. Entre eles está a imagem de Fossari. É nesse momento que seus olhos se iluminam.

O carcereiro

Luiz Alberto Fossari pede para que escrevam seu nome com z. A justificativa é simples, “sou antigo”, e vem procedida de uma eloquente gargalhada. Professor de Educação Física e advogado, ele chegou à escola ainda pequeno, aos 13 anos, vindo de um passado do qual prefere não falar. Das experiências seguintes, entretanto, fala sorrindo. Relembra um tempo em que projeções de filmes nacionais em um dos galpões da escola atraíam centenas de moradores da região, na época ainda distrito de Gravataí. “Hoje, todos tem Iphone, notebooks. Quando estudei aqui, o nosso divertimento era o futebol” compara o professor. Os tempos mudaram, mas Fossari permaneceu. Retornou como educador, aposentou-se e hoje caminha pelos corredores como se eles o pertencessem. Supervisor do internato por dois dias da semana, ele dorme com os 25 jovens alojados nos dormitórios. Supervisiona e protege. A formação profissional, a família e o convívio com os colegas são motivos de felicidade. Mas nada se equipara ao carinho que tem pelo local que o acolheu quando criança, o Cadop. Ao qual sentencia: aqui é a minha primeira casa.

Alguns ainda dão uma fugidinha. LUIZ ALBERTO FOSSARI, professor

O cárcere

Como prisioneiros. Para se precaver de possíveis asssaltos, a direção exige que os alunos do Colégio durmam como detentos. A escola fica em uma região afastada do centro da cidade, próximo a vilas e zonas de criminalidade intensa. Irremediavelmente, às 22h30min, um dos supervisores fecha a grade que os isola do mundo. A escuridão ultrapassa os olhos. Eles ficam sozinhos, pelo menos até o sol aparecer nas janelas, também suspensas por uma proteção de ferro. Uma porção de arroz, uma porção de feijão, salada, dois pedaços de bife. A refeição que os internos reclamam é servida impetuosamente todos os dias, duas vezes. A rotina dos 25 jovens que se dividem nos beliches é descrita com desdém. Deitados ou sentados em seus dormitórios repetem quase que em coro suas aspirações, dificuldades e funções cotidianas. Enquanto conversam, desviam o olhar para os laptops e celulares. O despertar ocorre às 7h. Exceto para as duplas em plantão,

quando o amanhecer vem antes do sol. São os dois responsáveis semanais pelo tratamento dos porcos e ordenha das vacas. Estes acordam às 6h. Duas horas mais tarde, todos se amontoam na entrada das salas. As aulas de Ensino Médio começaram. Durante a manhã, Matemática, Português e Ciências preenchem o tempo dos alunos. À tarde, o cenário é outro. Entram as amostras de solo, manuseio de grãos, tratamento de animais. O ensino agropecuário ainda invade a noite. Às 18h, o retorno para os quartos, o cumprimento das tarefas escolares e a descontração. “Alguns ainda dão uma fugidinha para a cidade”, conta Fossari, como se falasse de algo proibido. A origem deles é variada. Filhos de agricultores, de pecuaristas ou mesmo de técnicos, os internos vêm de Uruguaiana, Charqueadas, Nonoai, para citar apenas alguns lugares. Muitos ficam aqui por dois ou três anos, período para a conclusão do curso. Como Jorge Souza e Luis Henrique, ambos com 18 anos, e Gaspar Vinícius, com 17. O motivo para desembarcarem na cidade soa unânime: a qualidade do ensino. Mas assim que chegam, o pisar na estrada é procedido por um susto. O esforço dos educadores, e a tentativa de superar a escassez de recursos não escondem os problemas. Há complicações para estudar. A instituição precisa de socorro.

MEMÓRIA Fossari lamenta as condições atuais da escola revista exp

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ORQUESTRA VILLA-LOBOS

Além das aulas Projeto implantado há 20 anos na rede municipal de Porto Alegre beneficia mais de 700 crianças e adolescentes na Zona Leste

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FERNANDA CARDOSO

emanalmente acontecem, em diversos pontos da zona leste de Porto Alegre, oficinas de musicalização de crianças e adolescentes. O projeto, que se iniciou na Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor VillaLobos, na Vila Mapa, beneficia atualmente mais de 700 pessoas das comunidades da região. As oficinas são patrocinadas por empresas como a Petrobras, o Instituto São Francisco e a própria Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed). Iniciada em 1992 e hoje com 20 anos, a Orquestra de Flautas Villa-Lobos é o resultado de um sonho da professora e regente Cecília Rheigantz Silveira, depois que ela participou de um concurso para dar aulas de música nas escolas da rede municipal da capital gaúcha. Na época, foram-lhe oferecidas três opções de escola. Cecília escolheu o “Villa”, como é carinhosamente chamado o colégio, por uma questão de comodidade. “Acabei escolhendo o Villa-Lobos pela proximidade com a minha casa. E não me arrependo”, destaca. A professora lembra com alegria das primeiras aulas, quando eram apenas 12 crianças da 4ª e da 5ª séries que, muitas vezes, eram obrigadas a ensaiar no pátio, no laboratório de ciências e no refeitório, pois a esolha não dispunha de uma sala adequada. Cecília descreve as crianças ao ar livre, “sentadas como indiozinhos”, usando pequenas pedras para manterem as partituras no lugar. Foi um tempo em que também faltava uma máquina copiadora e, então, as reproduções precisavam ser feitas a partir de matriz. Hoje, ao relembrar do início do trabalho, Cecília se emociona.

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O Instituto São Francisco é o grande parceiro da orquestra e disponibiliza espaços que garantem a realização de outras oficinas. Além das atividades oferecidas na sala de música da escola, a iniciativa, por meio de companhias, ajuda a gerar empregos, com postos para monitores e professores que, em sua maioria, foram estudantes que antes haviam participado da orquestra. O mais interessante é que não se trata apenas um projeto desenvolvido pela escola. É uma iniciativa que já faz parte da comunidade. O interesse das pessoas em se juntarem às oficinas e às própria orquestra é muito grande, salienta Cecília, que ainda destaca que, todos os anos, sempre há lista de espera para ingressar no grupo.

Música e vida

Um exemplo de êxito do projeto se torna nítido na trajetória da aluna Keliézi Severo, que se aperfeiçoou nos estudos e hoje é mestre. Keli, como prefere ser chamada, começou na orquestra em 1996, quando ainda estava na 5ª série. Incetivada por familiares, e também pela falta de outras opções de lazer e cultura no bairro em que morava, a estudante começou a participar das aulas de flauta doce. Foi quando a música se tornou parte de sua vida. As aulas, que ocorriam duas vezes por semana, pareciam pouco para ela, que se empolgava quando o som das flautas se reunia no pátio da escola e nas salas de aulas. Com o aumento da frequência das apresentações, a música passou a envolvê-la cada vez mais. Talvez pelo “faro” de professora, Cecília percebeu em Keli uma facilidade para lecionar. Assim, convidou a aluna para ser monitora na oficina de iniciação à musicalização.

AULAS As aulas de músicas acontecem duas vezes por semana

ORQUESTRA O grupo tem mais de 20 apresentações por mês

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INICIAÇÃO As oficinas também acontecem na Creche Municipal Maria Marques Fernandes com aulas de musicalização para crianças Anos depois, já em 2002, Keli ingressou na oficina de violoncelo. Para ela, aprender um instrumento de tão difícil acesso à sua realidade foi um momento marcante e difícil. Tambpém foi muito importante para sua vida profissional. Ao concluir o Ensino Médio, Keli prestou vestibular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas não passou. O fracasso não a fez desistir de cursar uma faculdade e tornar-se professora de música. Em 2005, ganhou uma bolsa de Ensino Técnico em Música da Escola Sinodal de Educação Profissional (Esep), de São Leopoldo. Era a chance que faltava para que aperfeiçoasse ainda mais seus estudos. Na nova escola, Keli ingressou no Octeto de Flauta Doce, quando gravou o CD o Brasil Meridional. A experiência permitiu que a estudantes enxergasse como era viver de música. Dedicada, Keli é, hoje, licenciada e mestre em Música pelo IPA Metodista. Além de lecionar nas oficinas da Orquestra de Flautas, dá aulas na Colégio Marista Champagnat. Outro aluno que serve de exemplo é Fernando Israel. Ele participou por cerca de nove

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anos das oficinas e conheceu um mundo completamente diferente. Fernando entrou no projeto influenciado por amigos e porque dispunha de tempo livre. O melhor ensinamento que recebeu foi a organização, necessária para quem deveria cuidar do material de estudo e dos instrumentos durante as apresentações. Ser assíduo nos ensaios e nos concertos fez com que ele, ainda adolescente, criasse uma disciplina muito grande. Lamenta por ter tido que sair do projeto, em decorrência do trabalho. “Chegou uma hora que não deu mais para conciliar.” Hoje em dia, ele não trabalha na área, mas segue amando a música. Envolvido com a cultura tradicionalista, ajuda nas apresentações musicais do CTG de que faz parte.

Um violino em casa

Thamires Lemos teve uma trajetória um pouco diferente da dos outros alunos do projeto. Ela participou das aulas de flauta doce, mas não chegou a fazer parte da orquestra. A jovem, que atualmente toca na Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul, é uma aluna que se interessa por ser musicista.

A entrada na Orquestra Jovem foi um pouco inusitada. Ela tocava flauta doce há anos, mas nunca havia manifestado interesse em participar do grupo. Um dia, teve a atenção chamada por uma tia, que lera uma reportagem no jornal Diário Gaúcho sobre a Orquestra Jovem. A partir da curiosidade em tocar violino, resolveu se inscrever e entrou. Curioso é que ela tinha um violino em casa, que pertencia à sua irmã, também estudante de Música.O instrumento estava esquecido dentro de um armário. Então, ao se inscrever, vislumbrou uma oportunidade para usar o violino que “estava lá, largado”. Hoje, gosta muito de música erudita. Thamires também entrou, mais tarde, para a orquestra de flauta. Seu objetivo agora é se juntar ao grupo de cordas. Com 16 anos, mantém uma rígida rotina de ensaios diários. Nas segundasfeiras, participa da Orquestra de Flautas. De terça a sexta-feira, está com a Orquestra Jovem. Thamires ainda divide o tempo com o colégio. Para o futuro, mantém o desejo de trabalhar com música. A professora Cecília lembra, com orgulho, dos alunos e

garante que, em nenhum momento, idealizou as aulas de música para criar musicistas. Ela pretendia que as crianças e os adolescentes tivessem acesso a música, por meio de aulas, mas nunca imaginou que o projeto tomaria uma projeção como está, de apresentações fora do país, reconhecimento de alunos que saíram das oficinas e uma spérie de vidas transformadas.

DEDICAÇÃO Thamires toca violino na Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul revista exp

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DESCOBERTA DE UMA

nova dança

A eliminação de barreiras físicas e psicológicas em favor da arte. É assim que pode ser resumida a história de uma bailarina que não desistiu da sua paixão

A BAILARINA Trajetória no balé clássico oportunizou Sílvia a se apresentar em diversos países, como EUA e Suíça

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LÍVIA AULER

A

música clássica, os passos ritmados e delicados seguindo as melodias, uma professora gritando e sempre repetindo termos como “plié, arabesque, grand jeté”. Tudo isso faz parte do cotidiano de Silvia Wolff desde a infância, quando, aos seis anos de idade, iniciou aulas de balé na academia da professora Maria Cristina Fragoso. Na adolescência, a jovem bailarina, por ser boa aluna e estar dentro dos padrões estéticos, foi encaminhada para a carreira profissional e rumou para a School of American Ballet, em Nova York. De volta a Porto Alegre, sua cidade natal, Silvia passou a integrar o grupo de dança do Ballet Concerto, com direção de Victória Milanez, ao mesmo tempo em que cursava a faculdade de Publicidade e Propaganda. No meio acadêmico, decidiu se especializar em dança e, para isso, voltou aos Estados Unidos para fazer mestrado nesta área em Nova York. Mas foi em São Paulo, quando fazia doutorado na Unicamp, que Silvia passou a ter novos questionamentos e a criticar alguns aspectos do balé clássico, como os ideais de perfeição e o culto a um corpo padrão, com estética totalmente inflexível. Foi em meio a todas essas inquietações que aconteceu um fato marcante, que redefiniu de uma forma bastante drástica a vida da bailarina. “Vivi no corpo aquilo que eu já questionava internamente e na minha pesquisa”, relata. Num final de semana do mês do julho de 2007, Silvia estava na capital gaúcha para rever a família e amigos. No sábado, havia saído para uma festa, e domingo foi tomar café com um amigo. Após, algumas

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coisas estranhas começaram a acontecer. Uma dor de cabeça fortíssima, uma sensação de formigamento e um cansaço que a fez deitar. Silvia pediu ao amigo um copo de água e, no momento em que não conseguiu segurar, ela percebeu que estava tendo um acidente vascular cerebral (AVC). O lado esquerdo do corpo estava se paralisando enquanto ela pedia ao amigo que a levasse ao hospital. O amigo, incrédulo, pedia para que ela “parasse com a brincadeira”. “E assim, em um período de aproximadamente 30 minutos, fui observando meu corpo esvairse bem em frente aos meus olhos”, comenta Silvia. Chegando ao hospital, ainda ciente de tudo o que estava acontecendo, chegou a sensação do vazio. Ficou desacordada por três dias.

Lutar em meio ao luto

Em decorrência do acidente, o doutorado de Silvia foi interrompido e, portanto, sua tese ficou dividida entre o antes e o depois do ocorrido. Em alguns trechos do texto de introdução ao assunto, que foi escrito apenas alguns meses após o AVC, é possível observar profundos desabafos: “Carrego o peso de meio corpo diariamente. E choro a perda de uma dança que não é mais e nunca mais será a mesma. Em meio a este luto, eu luto em busca de forças para fazer aquela que talvez seja a mais primordial e difícil escolha deste novo eu, deste novo corpo, que é a escolha que já venho fazendo há muito tempo de continuar dançando”. A partir desta nova condição que Silvia teve a oportunidade de observar mais de perto a dança e o desafio de criar movimentos

diferentes. Nestes dias estranhos, o livre curso das lágrimas permitiu o acesso à própria essência, e lá ela descobriu que a arte ainda habitava e estava intacta. A pergunta que ela sempre se fazia era: “Como todos esses anos trabalhando com a dança poderiam me ajudar na construção deste novo corpo?”. Pois ajudaram, e muito, no momento em que a bailarina percebeu que o aprendizado motor feito na reabilitação não é tão diferente daquele realizado na dança. Algo dentro dela ainda vibrava, pulsava, gritava! É a vontade, e essa não tem obstáculos. E por isso, para aprofundar os conhecimentos nas técnicas de reabilitação, Silvia foi complementar o doutorado na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e posteriormente, a convite de um neurologista, foi para a Suíça, no ano de 2009. Em ambos os lugares, a bailarina fez muitas pesquisas na área da neurociência, mas também pode colocar a dança como instrumento de reabilitação em prática, pois teve a oportunidade de dar aulas a pacientes que sofreram AVC. Em Zurique, onde ministrou os cursos Dance Rehab Workshop e Dance Rehab Creative Workshop, veio a oportunidade de voltar aos palcos. “Hesitei, a princípio, mas aos poucos fui compreendendo que não me faltava vontade de voltar à cena e que o momento e o lugar não podiam ser mais propícios”, argumenta Silvia. E assim foi, com o solo intitulado Neue Schwann, que a bailarina reiniciou as atividades perante o público, no início de 2010. “Consegui me sentir bailarina de novo, mesmo com as minhas limitações e com um novo corpo”, explica. Ainda no país europeu, a nova bailarina teve a oportunidade revista exp

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de participar de mais uma apresentação, desta vez com um grupo que tinha um projeto envolvendo a dança e a limitação física. Naquele momento, Silvia via o seu corpo como uma dicotomia ambulante, como pode-se observar em um trecho de sua tese: “Enquanto o lado direito é altamente treinado e refinado dentro dos princípios da técnica do ballet, o esquerdo alerta para os pesares do cotidiano contemporâneo, no qual corpos e indivíduos encontram-se em constante negociação e redefinição de espaços, tempos e identidades”. Com a tese finalmente concluída, Silvia volta ao Rio Grande do Sul, onde atualmente faz seu pós-doutorado na UFRGS, e ministra aulas no curso de Licenciatura em Dança em Pelotas. Em julho deste ano, ela também voltou à cena gaúcha, desta vez como coreógrafa, com o espetáculo Em meio a este luto eu luto. Nesta peça é feita uma crítica aos rigorosos modelos do balé clássico tradicional, por meio de uma apresentação focada na personalidade e no universo particular dos bailarinos. Afinal, perfeição é apenas questão de ponto de vista. Hoje, o collant e as sapatilhas do clássico dão espaço para os pés no chão e roupas mais confortáveis. Os moldes rígidos do balé se transformaram em movimentos livres e espontâneos, em que, em primeiro lugar, é preciso sentir. Silvia se aproximou muito da Educação Somática e da dança contemporânea, por terem uma forma mais inclusiva e centrada nas expressões de cada indivíduo. Ela segue com a proposta que escreveu ainda na época da sua tese: “Atualmente, estou interessada em ter pessoas reais em cena, que possam me dizer algo sobre si mesmas através de seus gestos e movimentos, não no que seus corpos podem fazer tecnicamente ou em como podem se mover para personificar alguém que não a si mesmos”. A história de Silvia não se trata apenas de superação, mas sim de continuidade à arte, à paixão, mesmo com todas as dificuldades e desafios que a vida pode apresentar. “A vida só é viável reinventada. A dança, ouso propor, também”, assegura a bailarina.

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MUDANÇAS Do clássico ao contemporâneo, os movimentos foram redescobertos e redefinidos

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DEZ ANOS À PROCURA DA

explicação

Em busca de uma justificativa para as mortes devido ao câncer de mama, o governo investe no Projeto de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS

CÂNCER A tecnóloga em radiologia Andreia Guasso realiza cerca de 20 mamografias por dia revista exp 99

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VITÓRIA DI GIORGIO

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cenário oferecido pelo Sistema Único de Saúde para a saúde da mama da mulher não é o ideal e nem o que a população espera. São filas longas, demora no atendimento e descaso de inúmeros hospitais. Às vezes falta médico, equipamento, remédio e atitude. Em busca de melhorias, o Ministério da Saúde implantou um programa específico chamado Projeto de apoio ao desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS). O Proadi é um projeto que permite a participação de hospitais privados no desenvolvimento do SUS. Ele visa transferir conhecimento e práticas a partir da parceria público-privada. Com esta colaboração se torna possível realizar estudos sobre a área da saúde, capacitações humanas, técnicas e operação de gestão em serviços de saúde. Um dos hospitais que adotou este projeto é o Parque Belém Velho, localizado na zona sul de Porto Alegre. Ali se encontra o Núcleo Mama POA, centro que está diretamente ligado ao Hospital Moinhos de Vento, mas que atua pelo SUS. Nele foi montada a melhor estrutura de computadores e mamógrafos de Porto Alegre. Todo o equipamento doado pela empresa de aços Gerdau. Em 2004, quando o projeto foi implantado, a ideia era reunir 10 mil mulheres de 21 postos

Câncer de mama mata

de saúde da Zona Sul para acompanhá-las durante dez anos. A partir disto, seria possível controlar a frequência com que as pacientes faziam a mamografia e o quadro clínico de cada. Hoje, oito anos depois do início, já são 9.218 mulheres cadastradas, de 15 a 69 anos. Todas as pacientes são alertadas, ano após ano, da importância da mamografia. “Nós fazemos uma busca ativa em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Os agentes comunitários ligam e visitam estas mulheres para conscientizá-las da importância dos exames”, afirma Andreia Guasso, tecnóloga em radiologia do Núcleo Mama POA. “Além disso, damos palestras todos os dias na sala de espera para as mulheres que aguardam pelas consultas. É muito importante que elas repassem a informação para conhecidos e familiares”. Ainda assim, com toda esta infraestrutura, Porto Alegre segue como a capital brasileira com o maior número de mortes devido ao câncer de mama. Por quê? A resposta ainda não existe e é, inclusive, uma das razões do projeto existir. A mastologista que atende às pacientes e que realiza pesquisas no centro, Gabriela Herrmann, afirma que os motivos ainda são desconhecidos, mas há algumas suspeitas. “A mulher gaúcha sofre mais. Nós acreditamos que isso esteja relacionado ao fato de nós comermos mais carne vermelha e gordura do que o resto do país. Isto leva à obesidade, que é um

dos fatores de risco do câncer de mama. Além disto, o número de fumantes cresce diariamente. Nós também achamos que este número pode ser explicado com os mamógrafos de outros hospitais que não estão regulados”, explica Gabriela. Apesar de Porto Alegre não sofrer com falta de mamógrafos como em outras regiões do país, não se sabe se a radiação exposta dos hospitais do SUS é correta e se há manutenção dos aparelhos. De acordo com Andreia Guasso, o mamógrafo requer manutenções semestrais e anuais, realizadas por físicos-médicos. Uma das outras funcionárias do hospital, que pediu para não ser identificada, disse que algumas colegas de trabalho de outros centros não recomendam que amigos e familiares se consultem nestes locais: “Ela diz que os aparelhos são velhos e não estão regulados. Graças a isso, a mamografia não fica legível para o médico. A imagem fornecida é tão alterada que eles não podem dar o parecer exato. Muitos deles acabam dando B2 (diagnóstico de que não há nódulos) para as pacientes não seguirem no hospital”. Devido a este sistema de saúde problemático, Marli Simm enfrentou dificuldade ao ser diagnosticada com câncer de mama em 2005. Como não tinha plano de saúde nem dinheiro para pagar um tratamento, prosseguiu os exames pelo SUS. O início do tratamento ocorreu em abril, mas depois de três meses de espera ela continuava

na fila para ser operada, já com câncer avançado. Ela precisou ir para uma cidade do interior para conseguir atendimento. “Eu fiquei muito preocupada. Não conseguia dormir bem nem comer. Graças à ajuda de uma amiga, me indicaram um médico em Lajeado que teria como me encaixar na fila das cirurgias. Como eu estava desesperada, peguei o primeiro ônibus e fui. Consegui ser operada e hoje estou bem. Mas eu não desejo que ninguém passe por esta angustia”, desabafa. Além do Proadi que atua em Porto Alegre, existem outros 111 projetos em curso, todos desenvolvidos pelos hospitais de excelência, Ministério da Saúde e gestores municipais e estaduais. O projeto do Parque Belém Velho foi inspirado em técnicas norte-americanas. O mastologista americano Philip Kivitz viaja a Porto Alegre de dois em dois anos para implantar inovações que ajudam a organizar o sistema. Ele também avalia o resultado das mamografias que estão sendo realizadas e capacita os funcionários a realizarem o melhor exame possível. Daqui dois anos, a pesquisa será finalizada, mas não encerrada. Os dez anos de buscas possibilitarão entender porque uma doença tão fácil de ser tratada se descoberta precocemente ainda mata milhares de wogramas de apoio como este ajudam as pessoas a enfrentarem uma doença que muitos já consideram uma batalha perdida.

40% das mulheres diagnosticadas 1 em cada 3 mulheres nunca fez mamografia

95%

éa chance de cura se descoberto cedo

230.480 novos casos surgem por ano TECNOLOGIA O sistema do Hospital Belém Velho é o mais avançado de toda a capital gaúcha

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O IRREMEDIÁVEL

preço da cura Com muita criatividade e cooperação, o jeitinho e improvisos que os brasileiros criam para conseguirem bancar um tratamento medicamentoso contínuo MARCELO COELHO

O

s medicamentos representam um custo elevado mensal para bilhões de pessoas no mundo inteiro. Pesquisa feita pelo Ibope, estima que os brasileiros gastarão R$ 63 bilhões em remédios em 2012. Custo médio per capita de R$ 386,43 por ano, valor que corresponde a mais da metade do salário mínimo nacional. Portanto, a população se vira como pode para conseguir manter um tratamento medicamentoso. Seja usando os benefícios do governo ou criando os seus próprios meios. Dámaso Macmilann é transplantado renal há 28 anos. Depois de sofrer no próprio corpo todos os efeitos e limitações da cirurgia e necessitar tomar diversos medicamentos, “mais do que a maioria das pessoas”, garante, ele criou o Banco de Remédios, localizado no térreo do Mercado Público de Porto Alegre. Um braço da SOS Rim, que iniciou com um enfoque maior nas questões dos transplantados renais. Hoje a iniciativa cresceu e criou um sistema amplo de conscientização para evitar o desperdício de medicamentos. Montando uma logística de captação e distribuição em torno de perda e demanda, ou seja, “a entidade capta remédios em desuso e redistribui a quem precisa”, explica Dámaso. A entidade é guarnecida por doações que são feitas majoritariamente pelos próprios cidadãos, pessoas que encerraram um tratamento e preferem ceder os remédios que

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sobraram. Algumas farmácias e laboratórios também doam os fármacos que empacaram e necessitam ser retirados das prateleiras antes do vencimento. Com cinco anos de existência, o Banco de Remédios fornece medicamentos para 1.500 pessoas por mês e mantém um estoque que gira em torno de R$ 15 milhões. A meta principal do Banco de Remédios é disponibilizar para todos que precisam qualquer tipo de remédio, independente de valor ou renda. “Há tratamentos que chegam a custar R$ 5.000 por mês, não existe renda para isso”, constata Dámaso enquanto mostra uma doação recente, duas caixas de Myfotic 360mg, um medicamento imunossupressor usado contra a rejeição de órgãos transplantados. Cada caixa pode chegar a R$ 2.000, “é por isso

que eu digo que a saúde é uma das poucas coisas que obriga as pessoas a se nivelarem”, analisa o fundador. A diarista Carmen Regina Lameira, 58 anos, sofre de depressão e segue um tratamento contínuo para controlar seu distúrbio bipolar. Algumas vezes ela consegue amostras grátis com os próprios médicos que consulta, mas não é algo garantido, pois, ademais dos moderadores de humor, Carmen também toma remédios para tratar a osteartrose nas articulações do joelho: “Se fosse comprar todos os remédios que necessito gastaria mais de R$ 200 por mês”, contabiliza. Através de uma assistente social a diarista procurou o Banco de Remédios. Para poder usufruir dos serviços da organização é necessário fazer um cadastro e

Há tratamentos que chegam a custar R$ 5 mil por mês. Não existe renda para isso. DÁMASO MACMILANN, fundador do Banco de Remédios

apresentar as receitas médicas. O serviço, sem vínculos públicos, mantém-se cobrando um valor de R$ 20 mensais dos associados e garante os remédios necessários para cada usuário, “nós corremos atrás

INICIATIVA O Banco de Remédios fornece medicamentos para cerca de1.500 pessoas por mês revista exp 101

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SOLIDARIEDADE Sonia e sua filha, através de recursos oriundos de um bingo, conseguiram comprar os remédios necessários para tratar um AVC dos medicamentos, buscamos e enviamos para outros municípios e até para fora do Estado”, conta o fundador. Em último caso partem para a via judicial. O trabalho da entidade é multidisciplinar envolve ainda serviços jurídicos, administrativo, apoio psicológico e promove campanhas de conscientização. “O desperdício de remédios não é uma perda governamental, mas sim da população, do indivíduo”, chama a atenção Dámaso. “Os medicamentos são o tendão de Aquiles da medicina.”, finaliza. O programa Farmácia Popular, criado em 2004 pelo governo federal, visa baratear o custo de remédios para doenças mais comuns entre os cidadãos brasileiros, como o diabetes e a hipertensão As farmácias conveniadas ao programa Aqui Tem Farmácia Popular oferecem descontos subsidiados de diversos remédios, além de disponibilizarem alguns de forma gratuita. Conforme Marcos Antônio Gomes, gerente da Farmácia Mais Econômica, localizada

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na Rua Voluntários da Pátria, em um dos pontos mais movimentados do centro de Porto Alegre, e credenciada ao programa, os medicamentos gratuitos, principalmente o Atenolol, Sinvastatina, Captopril e Metformina são os mais procurados: “Representam 70% das vendas”, estima Marcos, que ainda explica que para as farmácias é vantajoso se vincular ao programa, pois o dinheiro é ressarcido às lojas. As listas de farmácias credenciadas e medicamentos fornecidos podem ser encontradas no endereço: www.saude.gov.br/ aquitemfarmaciapopular.

Bingo Solidário

Os moradores da comunidade da Ilha da Pintada criaram seus próprios meios para conseguirem manter o tratamento das pessoas que necessitam de medicamentos. Beatriz Gonçalves Pereira é líder comunitária e presidente da associação Escola de Samba Afro Cultura Unidos do Pôr do Sol, da comunidade Ilha da Pintada. Muitas pessoas a procuram em busca de ajuda para compra de medicamentos. Para conseguir angariar fundos, a associação promove rifas e bingos. “Fazemos bingos para tudo, desde remédios, que são os mais recorrentes, até despesas de velórios, que são os mais tristes”,

Fazemos bingo para tudo, desde remédios, que são os mais recorrentes, até despesas de velórios. BEATRIZ GONÇALVES, líder comunitária

consterna-se Beatriz. Em 2011, aos 74 anos, Sonia dos Santos Araujo sofreu um AVC que a deixou com sequelas irreparáveis que lhe comprometeram os movimentos do lado esquerdo do corpo. Desde então, permanece a maior parte do tempo sobre a cama ou é guiada em cadeira de rodas, necessitando de cuidados 24 horas por dia. Entre antidepressivos, anticonvulsionantes e outros, ela toma mais de seis remédios diários, além de necessitar de fraldas geriátricas. Diante do mal súbito, a família de Sonia foi pega de surpresa e se viu economicamente impotente em dar continuidade

ao tratamento da mãe. Através de um chá bingo realizado com ajuda da comunidade no espaço improvisado do terreiro de umbanda Reino de Iemanjá e Oxossi - uma vez que a comunidade da Ilha da Pintada ainda luta para erguer uma sede própria- os moradores conseguiram arrecadar quase R$ 500 para auxiliar no tratamento de Sonia. Os prêmios são doados pelos próprios participantes: baldes, batons, biscoitos, sombrinha, dentre outros símbolos necessários para o desenvolvimento do jogo da cooperação. As cartelas são vendidas a três reais e são 20 rodadas. Para contribuir ainda mais à causa, o chá e o refrigerante também são vendidos por preços baixos; e, ainda, os brindes que sobram são doados para a familia necessitada ou são guardados para promover um próximo jogo. Angela Araujo Ribeiro, de 53 anos, filha de Sonia, conta que o dinheiro recebido pelo bingo solidário serviu para pagar as radiografias e a tomografia, além de fraldas geriátricas, pomadas e óleos corporais para conter as escaras da sua mãe. Com lágrimas nos olhos, Angela desabafa: “O bingo foi o que nos salvou. Se a gente tivesse que comprar tudo sozinho iria ser duro”.

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Caça-níqueis

GERAM RIQUEZA SOCIAL

Jogos de azar estão proibidos em todo o Brasil, porém são apreendidas cerca de 60 máquinas por dia no Rio Grande do Sul. Mas e depois, o que acontece? MELISSA MACIEL

A

té 2008, as máquinas caça-níqueis apreendidas pela Polícia Federal eram totalmente destruídas, gerando assim uma grande quantidade de lixo eletrônico. Atualmente, organizações sociais e comerciais começaram a participar de projetos relacionados com o reaproveitamento dessas máquinas, buscando diminuir o descarte de componentes e possibilitando uma maior inclusão digital, visto que, com o reaproveitamento, tais máquinas podem ser transformadas em computadores de uso pessoal

com grande facilidade, uma vez que são constituídas pelos mesmos materiais utilizados na produção desses artefatos. No Rio Grande do Sul, a forçatarefa do Ministério Público (MP/ RS) de combate aos jogos ilícitos realiza, periodicamente, vistorias em estabelecimentos comerciais que praticam ilegalmente jogos de azar. As máquinas recolhidas, em vez de ir para o lixo, são destinadas ao projeto Alquimia: transformando caça-níqueis em inclusão social, iniciativa do MP. O promotor José Francisco Seabra Mendes Júnior explica que as organizações sociais parceiras no projeto Alquimia recebem o material apreendido para ser

destinado principalmente a atividades profissionalizantes para pessoas de comunidades em vulnerabilidade social ou, especificamente, em processo de tratamento contra dependência química. “Todo o material pode ser reaproveitado”, afirma Fabiano de Castro Flores, coordenador geral do Polo de Tecnologia do Centro Social Marista – Cesmar, localizado no bairro Mario Quintana, região com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo de Porto Alegre. “A madeira da carcaça é transformada em móveis e utilizada em oficinas de artesanato, e a parte eletrônica

é utilizada na montagem de computadores e em oficinas de robótica”, explica

O caminho

Quando as máquinas caçaníqueis foram autorizadas no Brasil, em 1998, pela Lei Pelé, acabaram se popularizando através de sua disponibilidade em estabelecimentos destinados a jogos, e até mesmo em bares comuns, espalhados pelas cidades. O fácil acesso e o aumento de casos de pessoas e famílias viciadas no jogo, que acabavam por se endividar ou até perder tudo o que tinham, levou à criação da Lei Federal Nº 12.519, de 2 de janeiro de 2007.

ALQUIMIA Máquinas de jogos ilícitos são revitalizadas em projeto social

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“Essa lei proíbe a instalação, utilização, manutenção, locação, guarda ou depósito de máquinas caça-níqueis, de vídeo bingo, vídeo pôquer e assemelhadas, em bares, restaurantes e similares”, esclarece o promotor Mendes Júnior. Operações são realizadas sistematicamente em regiões previamente identificadas por estratégias de inteligência da Polícia Federal. A região metropolitana de Porto Alegre destaca-se como área com mais apreensões no estado. “Dentre as cidades com o maior índice de jogos ilícitos estão Gravataí, Esteio, Guaíba, Alvorada e Eldorado do Sul. Também no Litoral Norte tem aumentado as incidências de apreensões, como em Capão da Canoa, Tramandaí, Imbé, Torres, Cidreira, Xangri-Lá e Arroio do Sal”, alerta. Somente no primeiro semestre deste ano, registramse 6.894 máquinas caça-níqueis apreendidas, 39 bingos fechados e três locais de fabricação e armazenamento de máquinas desativados. Depois de confiscados, os caça-níqueis ficam guardados em depósitos. A Força-Tarefa de Combate aos Jogos Ilícitos alcançou a marca de 30.082 máquinas caça-níqueis apreendidas entre 1º de janeiro de 2010 e 31 de outubro de 2012. No mesmo período, foram apreendidos R$ 1.589.354,20 em dinheiro. Do depósito da Polícia Federal até as organizações sociais, há um caminho longo a se percorrer, pois as máquinas podem ser encaminhadas aos projetos somente após determinação da Justiça sob a alegação de perda dos bens dos proprietários das máquinas.

A transformação

Quem chega ao Cesmar, localizado no coração de uma comunidade vulnerável socialmente, é como se encontrasse a esperança perdida. Uma região em que a falta de oportunidades, pobreza e violência se sobressaem. Uma imensa área verde, com lago, aves e animais domésticos traduzem a vida que teima em renascer e transforma-se todos os dias. Um enorme pavilhão concentra o Polo Tecnológico, que recebe em média 800 máquinas caça-níqueis por ano. No local, jovens entre 14 e 20 anos têm a oportunidade

APRENDIZAGEM Educadores dedicam-se para a transformação de máquinas e de histórias de vida de cultivar a sensibilidade de transformar máquinas em aprendizagem, trabalho, arte e benefício social, que perpassa a sua própria comunidade. Exatos seis minutos foi o tempo que Renan Gomes, 19 anos, levou para desmontar uma máquina caça-níquel. Com a habilidade de quem se dedica ao projeto há mais de um ano, separa cada componente e peças de madeira para a reutilização. Uma máquina padrão é composta de sete placas de madeira, um monitor de computador, um teclado, botões eletrônicos, uma placa mãe de computador e uma ceduleira,

A lei proíbe a instalação, utilização, manutenção, locação, guarda ou depósito de máquinas caça-níqueis, de vídeo bingo, vídeo pôquer e assemelhados, em bares e restaurantes. JOSÉ MENDES, promotor do MP/RS

OPORTUNIDADE Renan é um dos 30 jovens capacitados por ano

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O que aprendi no projeto serviu para o que tem de mais importante, a minha vida e a convivência com a minha família. ANDRÉ SANTOS, educando

equipamento responsável pela entrada de dinheiro nas máquinas, componente muito contrabandeado no país. Ao final do desmanche, todos os artefatos que formavam a máquina de jogo são destinados às diversas oficinas realizadas no projeto. André Santos, 19 anos, foi um dos 30 aprendizes responsáveis por transformar máquinas caçaníqueis, componentes eletrônicos e placas de madeira em móveis, artesanato, brinquedos e robôs. Desde a construção do Polo Tecnológico do Centro Social Marista-CESMAR, em 2006, com uma área de 1.500 m², trabalharam aproximadamente 300 jovens no recondicionamento de mais de 2 mil equipamentos de informática. Os computadores revitalizados são encaminhados principalmente a entidades e telecentros do Rio Grande do Sul e dos estados do Amazonas, da Bahia, do Ceará, de Goiás, de Mato Grosso, da Paraíba,

do Paraná, de Pernambuco, do Piauí, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte, de Santa Catarina, de São Paulo, de Sergipe e de Tocantins. Máquinas que um dia tinham por função o jogo ilícito, hoje destinadas a projetos sociais como o Alquimia, geram riqueza social para jovens que veem no projeto uma oportunidade de aprendizagem e capacitação profissional. A mudança não se dá apenas nos materiais, pois os jovens envolvidos sentem-se transformados. “Quando entrei aqui, eu tinha muito problema com a minha mãe. Eu não ajudava em casa. Minha mãe trabalhava o dia inteiro. Eu era agressivo. O pessoal aqui do projeto me ajudou muito. Sou outra pessoa”, confessa André. “Com peças de madeiras, componentes eletrônicos, placas dos jogos das máquinas caça-níqueis e softwares livres criamos uma central de game musical. É um barato”, explica Rafael de Vasconcelos, educador social do projeto. A central de game musical é uma máquina caçaníquel plugada em uma guitarra feita com restos de máquinas e que toma nova forma em um jogo, o qual ao se tocar o instrumento, além de produzir música, ganha-se pontos. E ao som da guitarra reciclável, a trilha sonora da solidariedade compõe a história de máquinas e vidas que são transformadas como ouro no projeto Alquimia. A alteração iniciada com restos de materiais chega a proporcionar a reciclagem

CRIATIVIDADE Carcaças transformam-se em móveis de escritório

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LUCRO Ceduleira é o item mais cobiçado das máquinas de jogos também de ideias, fazendo com que jovens repensem suas trajetórias de vida e percebam que podem mudar algo ilícito em música. “Quando o André entrou no projeto, logo percebemos que o envolvimento com ele deveria ultrapassar os muros do Centro Social. Isso não faz parte do currículo do projeto, mas quando percebemos que um jovem possui muitas limitações, principalmente na convivência com outras pessoas da família ou do projeto, não dá para ser indiferente”, explica o educador social Júnior Meneguetti. Uma postura de educador que, sensibilizado pelas dificuldades de seu educando, busca compreender a fundo como modificar também as pessoas. “Convidei um colega e fomos fazer uma visita ao garoto. Chegando à casa dele, não foi surpresa encontrá-lo num ambiente sujo, envolto ao lixo, numa casa que era difícil conceber que ali uma família vivia”, lembra. Um jovem agressivo, perdido e desmotivado estava cercado por um ambiente que necessitava ser também modificado. “Tudo o que fui aprendendo aqui no projeto, mas principalmente pelos professores que acreditaram em mim e são meus amigos, me ajudou a mudar de vida”, reconhece o jovem. “Foi emocionante perceber que conforme o André ia se envolvendo e deixando se envolver com o projeto e o grupo, também a sua casa e a relação com a família foi sendo transformada”, afirma o educador. “Hoje estou desempregado, mas logo vou voltar a trabalhar. Embora eu não tenha conseguido trabalhar com tecnologia, o que

aprendi no projeto serviu para o que tem de mais importante, a minha vida e convivência com a minha família,” acredita André. Jovens que transformam máquinas em desenvolvimento social, que transformam suas vidas e seu olhar sobre o futuro. Atualmente várias organizações estão ligadas a projetos que reaproveitam caçaníqueis apreendidos, sendo que algumas iniciativas reutilizam as máquinas preservando sua aparência física, mantendo o visual original, mudando somente a sua função e utilizando o mínimo de material extra para o reaproveitamento.

O bairro

tRegião de reassentamento de populações removidas na cidade. tA origem do povoamento da região data de 1896, com 144 hectares. tLimite com municípios de Alvorada e Viamão. tOcupação recente. tBaixo investimento público. t97 mil habitantes. t38% são jovens carentes. tMortalidade infantil chega a 24,78%. tPiores indicadores sociais da Capital. tLocal de conflito entre facções do narcotráfico. Fonte: Prefeitura de Porto Alegre

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Papai Noel DA VIDA REAL

Há 30 anos, João Domingues escolheu levar uma vida de doação e não deixar que se apague o brilho natalino em Cachoeirinha ANA PAULA RAMOS

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rotina começa cedo na casa do Papai Noel de Cachoeirinha. João Domingues, 69 anos, funcionário público aposentado, é conhecido como João Noel, Joãozinho ou Pobre João. A hora de levantar é por volta das 7h, quando começa suas atividades de bom velhinho. Sua esposa, Hilda Domingues, o acompanha. Juntos preparam o trenó – um fusquinha – e, nas primeiras horas da manhã, Joãozinho sai para fazer doações. Muito conhecido na cidade, o personagem chama atenção por onde passa. Vestido de Papai Noel, encanta as crianças, participa de festas e leva doces em todos os lugares. No dia a dia, Joãozinho tem aparência comum. Bigode escuro – bem diferente da barba branca –, pouca estatura e marcas da idade no rosto. Sempre muito humilde e “chorão”, como dizem os vizinhos, honra o seu apelido de Pobre João. Apesar da aparência humilde, Joãozinho não esconde a sua vaidade. Hilda costura uma roupa natalina nova todos os anos. “Ele sempre põe algum defeito, então faço outra.”, revela Hilda. As roupas antigas foram doadas para pessoas que queriam ser Papai Noel. Joãozinho guarda quatro fantasias no guardaroupa, e todas são usadas nas festas de fim de ano. “Quando chega o Natal tenho muitos eventos para ir, preciso voltar para a casa várias vezes para trocar de roupa”, comenta. Para os moradores de Cachoeirinha, a bondade do Pobre João deixa o seu rastro por onde ele passa. “Em dezembro, a prefeitura é um dos lugares em que ele

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BOM VELHINHO O personagem já é reconhecido como o papai noel oficial de Cachoeirinha visita, entrega balas nas salas e conta as suas histórias, sempre muito choroso. É difícil alguém não conhecer ele”, comenta a jornalista Magda Vargas, assessora de comunicação da prefeitura. Apesar da popularidade, Joãozinho é conhecido por muita gente apenas como o Papai Noel ou só como Joãozinho, para quem recebe doações durante o ano, e não sabe da sua personalidade natalina. “Visto a fantasia no Natal e não chego aos lugares dizendo meu nome. Há quem não saiba a identidade do Papai Noel. Não preciso me identificar para fazer caridade. Durante o ano,

sou apenas o João”, ressalta. Para Domingues, não importa muito se é Natal ou não. É preciso ajudar as pessoas necessitadas todos os dias, e não somente no fim do ano. Por causa do seu espírito natalino, o Pobre João já virou referência na cidade, principalmente na vizinhança. “Recebemos doações quase todos os dias. Muita gente passa aqui só para largar alguma coisa, porque sabem que se deixar em nossas mãos, os pertences terão um bom destino”, explica Hilda. Os presenteados pelo Papai Noel não têm nome e nem se quer endereço. “Não precisa, gosto de andar pelas ruas e

encontrar as pessoas que estão passando necessidade. Perguntar o que elas precisam e, de repente, tirar um cobertor, uma roupa ou um alimento do carro e entregar. Gosto de ver o sorriso no rosto delas”, emociona-se, com os olhos cheios de gratificação. A casa do Papai Noel não esconde a sua identidade. Por todos os cantos há potes de balas, adesivos de Natal e fotos de festas com crianças, que guardam anos de recordações. A decoração da fachada permanece durante o ano todo, mas não necessariamente a rigor natalino. “Temos enfeites de todos os tipos. Páscoa, Dia de São João, Ronda Crioula, Dia das

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Crianças. Nenhuma data passa despercebida. Mas o Natal, com certeza, é a mais importante.” conta Hilda. Os preparativos para o dia 25 de dezembro começam ainda em Novembro. E m 2012, Joãozinho resolveu deixar o fusca de lado e enfeitar sua bicicleta – o novo trenó, veículo que usa para fazer visitas. O casal ainda é responsável por enfeitar a rua toda, e não apenas a própria moradia. Em cada casa, um saco é pendurado no quintal com uma palavra, visível da fachada, e as palavras juntas formam uma mensagem natalina, cuja leitura começa no início da rua e terminar na última casa. A carreira natalina de Joãozinho já dura 30 anos. Há 18, Domingues se tornou o Papai Noel oficial de Cachoeirinha. Durante o Natal Luz, o Corpo de Bombeiros passa na casa do bom velhinho, e o leva para o Centro, onde ocorre a cerimônia festiva. Papai Noel chega com a chave da cidade, joga bala para a plateia, tira foto com as crianças e o prefeito. Em alguns anos, ainda voa. “Vou com o helicóptero da Polícia Federal, de Porto Alegre até o Parcão de Cachoeirinha. É sempre uma emoção muito grande ser recebido pelas crianças na chegada”, comenta.

As tragédias do Papai Noel

Apesar do espírito caridoso, nem tudo é recompensado na vida de Joãozinho. Domingues fez a escolha de se tornar o personagem Natalino para agradar aos filhos dos outros, pois, na época, a esposa não conseguia engravidar. Mesmo quando finalmente pode ter um filho, não largou a fantasia de fim de ano. O menino Jonas acompanhou durante a infância e a adolescência a vida natalina do pai, sempre muito contente e orgulhoso de ser o filho do Papai Noel da cidade. “Jonas fazia questão de ir comigo nas festas das crianças pobres, sempre muito empolgado”, recorda-se. Aos 20 anos, o único filho do casal faleceu em um acidente de carro e deixou marcas profundas em Joãozinho e Hilda. “Paramos nossas atividades durante um ano. Não queríamos fazer nada, nem comer. Os vizinhos entravam na nossa casa, cozinhavam para a gente e nos ajudaram durante o primeiro ano. Foi graças a todo o apoio que conseguimos voltar

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DOAÇÕES O casal Domingues separa roupas e outros objetos para as doações diárias a nossa rotina.” relata Joãozinho, com os olhos cheios de lágrimas. Hoje, cinco anos depois do acidente, o casal superou a perda. Domingues afirma que o filho foi um presente e só pode agradecer. “Tenho certeza de que não era para ter um filho, não estava no meu destino. Por isso sou grato por ele ter nascido e principalmente pela oportunidade de conviver com o Jonas por 20 anos”, revela. A perda do filho não foi a única tragédia da vida do Pobre João. Há sete anos, quando trabalhava no gabinete de um vereador, Joãozinho foi preso por ser o assessor do político. “A polícia entrou na minha casa de repente, disse que eu precisava acompanhar eles até a delegacia, que o vereador tinha envolvimentos com fraude do INSS. Fui preso sem nem saber o que fiz de errado.” lamenta, lembrando-se dos dias cruéis que passou na cadeia. Foram sete dias no xilindró, onde conviveu com traficantes, ladrões e criminosos de todos os tipos, mas nem nesses dias deixou de ser Papai Noel. “Hilda trazia balas e eu distribuía na prisão. O que mais me magoou foi que, começaram a me acusar de tentar comprar as pessoas. Eles não me conheciam”, explica. Hoje, ainda responde a um processo judicial que o impede de sair do estado. Quando voltou para a casa, Joãozinho foi recebido por amigos, familiares e vizinhos, que lotaram a residência do Papai Noel. “Ele chegou fedendo a maconha que fumaram na cela, debilitado, mal conseguia caminhar. Estávamos todos muito ansiosos e preocupados com ele”, comenta Sandra Ribeiro, vizinha do casal.

Apesar da boa notícia de poder sair da prisão, outra tragédia chegou no mesmo dia. A morte de Ana Domingues, mãe de Joãozinho, que já estava doente. Hilda não conseguiu contar ao marido na chegada. Porém, depois de passar a primeira noite confortável em casa, Domingues recebeu a notícia do falecimento da mãe. “Foi terrível, quando finalmente me senti bem por estar de volta em casa, a morte da minha mãe veio como mais uma onda do tsunami. Não conseguia acreditar”, recorda-se. Todo o sofrimento enfrentado por Joãozinho deixou uma aflição que permanece até hoje: o medo do dia 17. “A minha mãe morreu em um dia 17, o meu filho também”, explica. Para o casal Domingues, quando chega o dia 17 de cada mês, é dia de rezar e as atividades param, em memória dos que já se foram.

Muitas faces de Joãozinho

Domingues já foi palhaço na adolescência, antes de ser Papai Noel. Comediante, Joãozinho tem outros hobbies além de se vestir de bom velhinho. “Gosto de pregar peças na vizinhança. Tenho uma caixa de fantasias, e quando as pessoas menos esperam, incorporo um personagem e bato na porta delas. Conto alguma história e peço ajuda”, anima-se. Das fantasias de Joãozinho, a favorita dele é de uma senhora idosa. Domingues se veste de velhinha, põe a máscara que o deixa irreconhecível e vai até a casa dos vizinhos, com alguma história de cobertura. Pede para entrar e diz que precisa de comida, que não tem para onde ir. “Os vizinhos ficam com medo, mandam a velha embora e batem a porta de casa. Quando descobrem que é o Joãozinho, querem matar ele”,

conta Hilda, rindo da situação. Outro Hobby de Joãozinho é um pequeno museu, montado em uma peça na garagem, onde coleciona máquinas de costura, fotográficas, e de escrever, além de ferros de passar roupa. Artigos do século passado, alguns com até cem anos, lotam as prateleiras do pequeno quarto. “Muitas máquinas foram doações, outras pertenciam a minha família e algumas eram de Hilda. Recebo máquinas antigas de todos os tipos, sempre passo tempo lixando, pintando e transformandoas em novas de novo. Adoro o que faço”, orgulha-se. Os trabalhos voluntários trouxeram muitas alegrias ao casal. Uma delas é a gratificação por ter conquistado o carinho e a confiança de tantas pessoas na cidade. “Alguns vizinhos deixam aqui a chave de casa quando vão sair. Somos quase uma portaria! (risos). Ás vezes os moradores também deixam seus filhos com a gente enquanto vão fazer compras, as crianças adoram ficar aqui”, explica Hilda, com muito orgulho. Além disso, a creche Chapeuzinho Vermelho, perto da residência do casal, leva as crianças para passear na casa do Papai Noel. Apesar das tragédias enfrentadas e das marcas que ficaram, Joãozinho sente-se recompensado por conseguir fazer a alegria de muitas crianças e por ter o apoio e carinho da esposa e dos amigos. Depois da morte do filho, chegou a pensar em largar a fantasia natalina, mas hoje, essa ideia soa absurda para Joãozinho. “Passei momentos difíceis, mas sempre tive pessoas ao meu lado que me mostraram que preciso seguir em frente. Sou muito feliz por fazer o que faço e pretendo ajudar os outros até o fim”, projeta. revista exp

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FOTÓGRAFA DANIELA VILLAR É IDEALIZADORA DO GRUPO E LÍDER DAS MAIS DE 1,7 MIL SAPATAS QUE O COMPÕE

Sapataria

SINÔNIMO DE MOVIMENTO SOCIAL

Grupo criado pela fotógrafa Daniela Villar é composto por mais de 1,7 mil lésbicas de Porto Alegre (RS) e redondezas. Meninos? Nem mesmo o melhor amigo gay. XX revista exp

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JULIANA RAMIRO

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m Porto Alegre, a palavra Sapataria, popularmente associada ao local de trabalho do profissional sapateiro, tem outro significado. Sapataria por aqui é um grupo no Facebook — e fora dele —, com mais de 1,7 mil meninas que têm algo em comum: ser sapatão. O grupo é um mundo paralelo, onde essas lésbicas podem conviver apenas com iguais, longe de preconceitos. Meninos? Nem mesmo o melhor amigo gay é aceito nos eventos do grupo. Há mais de um ano, a busca por privacidade acabou virando movimento social. E assim nasceu o Sapataria — grupo na rede social Facebook, e fora dele, hoje com mais de 1,7 mil meninas sapatão. Num primeiro momento, a expressão sapatão soa agressivo, no entanto, Daniela Villar, criadora e líder do grupo, que existe desde julho de 2011, afirma: “Eu sou sapatão mesmo, é verdade, a maldade da palavra está na boca de quem diz. Minha mãe fala para as amigas sem nenhum receio que eu sou sapatão”. Daniela Villar, mais conhecida pelo seu sobrenome, é fotógrafa, estudante de jornalismo, tem 29 anos, uma filha e é gay. Embora diga com certo orgulho que é sapatão, Villar, nas classificações que rolam dentro do próprio grupo, está mais para sapatilha — nunca sai sem maquiagem, é louca por sapatos de salto alto, vestidos, decotes e, claro, meninas. O jeito feminino de Villar confunde, mas suas atitudes não. Terezinha, mãe de Villar, apresenta a filha sapatão para as amigas. A reação é unânime — olham para ela do salto alto a escova recém e sempre bem feita nos cabelos e disparam boquiabertas e em coro a seguinte frase: “Mas ela é tão feminina”. A impressão dura até passar uma menina que agrade a filha de Terezinha, que nem tenta disfarçar, vai acompanhando os passos da moça, sem perder o foco. Quando volta a cena inicial, com um olhar de malícia, aperta os lábios, como quem segura um comentário que está na ponta na língua em respeito às amigas da mãe. Entre as suas, Villar solta os lábios, o verbo e o sorriso. A expressão “vem cá, sua linda” já

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virou seu slogan oficial no grupo que, com o passar do tempo, vem adquirindo vocabulário próprio.

Grupinho virou grupão

O Sapataria nasceu despretensioso. Villar sempre utilizou seu perfil no Facebook para lazer e trabalho. Porém, em alguns momentos, acabava obrigada a deletar postagens de amigas, que expunham muito mais do que sua orientação sexual na rede, revelavam coisas de sua intimidade. O equilíbrio entre os papos profissionais e as amigas veio com o grupo, que começou como um grupinho de meninas mais chegadas, umas cinco, livres para falar o que quisessem, a hora que bem entendessem. O grupinho virou grupão. Este universo particular, em uma semana, já estava com mais de 200 meninas postando fotos, músicas, links, dicas de festas, eventos, livros e, claro, muitas cantadas. Ali, das mais acanhadas as mais assumidas, das sapatilhas aos sapatões, todas estavam livres para tratar dos seus assuntos de menina - lembrando o famoso título de um clássico filme que trata sobre a temática lésbica. No grupo, os temas do universo feminino foram entrando em pauta — cabelo, maquiagem,

Eu sou sapatão mesmo, é verdade, a maldade da palavra está na boca de quem diz.” DANIELA VILLAR, jornalista e fundadora do grupo Sapataria

roupa, filhos, casa, cinema, literatura. Mas, o que deixaria qualquer mesa de bar composta por homens de boca aberta é quando o assunto em pauta é mulher. Mulher, gostosa, mulher, delícia, mulher, tesão, mulher, p... duro. Não, isso não. Sim, lésbicas falam de mulheres, como o clã defensor da virilidade masculina talvez nem tenha imaginado. Esse ambiente de liberdade atraiu cada vez mais meninas e, por consequência, houve uma crescente tentativa de homens e lojas de sapato de participar do grupo. Assim, a mediação tornouse inevitável. É mulher? Pode pedir para entrar, ser convidada por uma amiga que é membro, no entanto, será aceita somente após autorização do CSS — Conselho Superior do Sapataria

—, composto por Daniella Villar e uma amiga, que prefere não ser identificada.

SA[pa]RAU e FutSapa

Por muito tempo, a descrição do Sapataria tinha, em letras de forma, a seguinte frase: PROIBIDO PARA MENINOS. Hoje, a frase não existe mais, no entanto, a regra se mantém. Mesmo com a moderação, a cada semana, um número maior de meninas pedia acesso e participava mais assiduamente das enquetes e papos que surgiam por ali. Em meio a dicas de livros, filmes lésbicos, lugares aonde ir, cantadas que colaram, relatos de “contei para meus pais”, posições sexuais, a clássica dúvida do “ativa ou passiva”, surgiu o desejo de organizar um evento para que todas pudessem se conhecer no meio offline. Um mês depois da criação, decidiram se encontrar em grande estilo. O grupinho de Dani Villar organizou uma festa de boas vindas para as novas companheiras de grupão. Escolheram o PUB 66, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, e já nesta primeira edição vieram meninas de outras cidades do Rio Grande do Sul. O lugar estava lotado, e o sentimento de liberdade pairava no ar. “Sempre quis um lugar legal onde pudesse

EVENTOS Cartazes e flyers de divulgação das festas são ilustrados com temas lésbicos revista exp

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levar uma namorada, ou amigas, e não tivesse ninguém me olhando, ou que eu não fosse alvo de preconceito. Ser uma pessoa comum, mais uma. Na nossa primeira festa, percebi que mais 200 meninas sentiam a mesma necessidade que eu”, conta Villar. Em Porto Alegre, existem outros estabelecimentos e eventos voltados ao público LGBT, porém, para Villar, não são lugares exclusivamente para meninas e o consumo de drogas não é controlado. Ela sentia falta de uma festa mais “família”. A partir desta necessidade, apontada também por outras meninas do grupo, Dani idealizou um objetivo maior para o Sapataria, o de formar uma onda lésbica na cidade, promovendo festas, encontros e eventos sociais onde só meninas lésbicas pudessem participar, sem preconceito. E um dos eventos, fruto dessa onda cultural, foi o SA[pa]RAU, que está na sua segunda edição. “O nosso sarau serviu para reunir as meninas, e foi pensado para não sermos rotuladas como um grupo de festas e só. Temos meninas

com conteúdo, que gostam de literatura e querem compartilhar as suas leituras”, resume a líder. A casa escolhida para a realização do evento, o Espaço Meme, também no bairro Cidade Baixa, não é um local que atende exclusivamente o público gay, mas recebe-o com respeito e naturalidade. Famoso por seus pratos de preço acessível, todavia com certo requinte, o chef do Espaço preparou uma sobremesa especial para receber as meninas. Por um real, as sapatas comiam no local ou levavam para casa “as bucetinhas do Meme”. De massa doce, recheadas com geléia avermelhada de goiaba, o chef buscou o melhor formato, que fizesse jus ao apelido do prato. “Melhor que a sobremesa em si, foram os comentário pós-evento, a sapataiada toda comentando das bocetinhas do Meme. Lembro que os meninas da cozinha, na sua maioria gays, entregavam a sobremesa fazendo cara de nojinho”, recorda com animação, Camila, participante do grupo desde sua criação. O SA[pa]RAU teve duas edições e só não passou disso por falta

de tempo. “As meninas seguem pedindo o terceiro, mas, por causa das minhas tarefas diárias, não dou conta”, lamenta Villar, que só tem retorno financeiro com o grupo quando promove os eventos, tendo, assim, a profissão de fotógrafa como fonte de renda. Atendendo a novos pedidos, foi organizado o FutSapa, torneio de futebol de salão exclusivo para meninas. A regra é clara. Os times inscritos tem que ter mais de 80% das atletas vinculadas ao grupo. No torneio, que tem duração de um dia, recebem medalhas as três primeiras equipes colocadas, goleira menos vazada e goleadora. O FutSapa já teve três datas e, na sua última edição, em abril deste ano, promoveu a eleição da Musa do Sapataria. Ela, necessariamente, tinha que pertencer a um dos times do torneio e ser a mais votada entre as jogadoras e as torcidas. O nome dos times é algo curioso, que chama a atenção. As mais velhas jogam no Chanel, as cervejeiras no Cevada, as mais humildes no Sem Parquê, as que realmente levam o torneio a sério e são mais competitivas

jogam no Fênix, no Atari, no Lésbicas Futebol Clube e, as mais assanhadas e criativas compõe o time do Mashup. “Desde que o FutSapa começou, nosso time participe e sempre tentamos buscar um nome engraçado, que seja concenso entre todas as atletas, e que carregue nosso alto astral para dentro das quadras”, sugere Bruna, ala esquerda do Mashup.

#Sapamá e #BoraSapatear

A criatividade das meninas não fica restrita ao futebol, integrando os eventos, o dia a dia do grupo e os assuntos que ganham destaque. Na primeira festa surgiu a expressão #BoraSapatear, influenciada pelo meio — as redes sociais — e por mais uma tentativa de identificar as meninas com o nome do grupo que pertenciam. A expressão pegou e, conforme vem chegando o final de semana, vai ganhando menções nas redes das sapatas. O #Sapamá surgiu para fazer aquilo que, mesmo que as mulheres neguem, já está impregnado no seu universo: fofoca. As meninas do Sapataria fofocam e aliviam o peso do ato utilizando no final a tag #Sapamá ou, ainda, em mais uma das suas intermináveis classificações intragrupo, organizam suas colegas entre #Sapaboa e #Sapamá. “O #Sapamá resume muito coisa e, ao mesmo tempo, alivia o peso da afirmação. É aquela história, a gente diz as coisas, mas diz brincando, fazendo graça no final. Afinal, quem nunca fez uma fofoca na vida? Todo mundo, em algum momento da vida, teve uma atitude digna de uma #Sapamá”, garante Vanessa, que no grupo é uma das que mais usa a expressão.

RESPEITO No grupo, existem as meninas mais tímidas e aquelas que vestem a camisa, apoiam a causa e lutam por respeito

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conectados CORPO E MENTE

A Integral Bambu surgiu em Brasília há 12 anos unindo o exercício físico com um estilo de vida simples com o objetivo de cada um cuidar de si e do grupo

HARMONIA Praticantes investem no contato do corpo com o bambu, por meio de aparelhos, para seu bem estar físico e espiritual

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JÉSSICA MELLO

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tividade física em meio à natureza transforma o exercício em uma ocasião prazerosa. No momento em que a música é agregada ao ambiente, o simples alongamento acompanha o compasso da melodia de forma a determinar o ritmo do relaxamento. “Conhecer o seu corpo é se autoconhecer”, afirma Hélène Bitencourt Sperandio, 22 anos, praticante de Integral Bambu, prática de exercícios em pirâmides feitas de bambu e material reciclado que exige força, concentração e muito controle. A estudante de Biomedicina conheceu a atividade com amigos e começou a frequentar os treinos neste ano. Para ela, o ambiente e a prática são diferenciados pelos efeitos. “A energia se espalha pelo corpo e isso é muito bom”, revela. As aulas, guiadas por Filippo Cauac, são realizadas em frente à orla do Guaíba, no bairro Ipanema, zona sul de Porto Alegre. Local em meio a uma grande cidade, porém presenteado por um significativo pedaço de mata nativa, o que ajuda na desconstrução do cenário urbano. Os exercícios imitam o movimento natural, podendo até resgatar lembranças da infância de quando subir em árvores era algo comum. No entanto, cada um realiza em seu tempo superando desafios e receios. E, para isso, Cauac adverte: “é importante buscar as sensações do corpo.” Ouvindo o professor e namorado, a designer de interiores Luciana Vicente, 21 anos, aprendeu o que é superação. “Sinto que venci várias barreiras que tinha me imposto, achando que não conseguia fazer tal movimento. Vi que é um processo gradual, você vai conseguir é só continuar tentando.” Para a prática, são utilizados aparelhos feitos com o bambu por Cauac, o mais comum é a pirâmide. Cada aluno se posiciona em uma para iniciar um alongamento completo a partir de movimentos perfeitamente interligados. Embalados pelo ritmo terapêutico de um som ambiental, o praticante, além de preparar o corpo para o exercício, concentra energias

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PRINCÍPIOS Cauac tem como objetivo passar aos amigos simplicidade e socialização para tranquilizar a mente. Então, com o corpo entregue e reenergizado, iniciam-se os exercícios que exigem esforço físico do praticante. Boa parte desse segundo momento, a força abdominal é o alento para a conquista do equilíbrio. Porém, o empenho não é apenas de uma parte do corpo. Aprendendo o que é cada movimento, o praticante percebe qual a melhor forma de realizá-lo, o que pode variar de corpo para corpo sem sobrecarregar nada.

Integral é o todo

O Integral Bambu não é apenas um exercício físico. Para muitos integrados – como os participantes são chamados, pode ser considerado um estilo de vida. “É o contato com um material incrível e vivo, o bambu, uma troca que nenhum ferro de academia vai poder te proporcionar. Vai muito além de perder peso ou ter um corpo bonito. A busca está relacionada a ser saudável, flexível e forte como o bambu em todos os aspectos da sua vida”, reflete Luciana. O ambiente propicia um respeito à natureza a partir da construção sustentável e dos acessórios utilizados na prática. O acabamento dos aparelhos,

feito de garrafas PET, dá outro destino ao plástico inutilizado. O chamado Domo Geodésico forma a cobertura do local. Feito também com bambu e lonas de propaganda doadas por empresas que não utilizariam mais o produto. Feito com raspas de pneu desprezadas pelas borracharias, o piso fica macio para se adaptar aos impactos da atividade. Qual é o valor da vida? Para Cauac: “O valor da vida somos nós quem damos. Podemos viver bem com menos preocupações”. Ele utiliza uma frase do criador do Integral Bambu, Marcelo Rio Branco, para complementar a resposta: “Reconheço o custo da vida. Reconheço que o custo é minha responsabilidade”. Os praticantes Com o Integral, instrutores e demais pesquisadores aprendem a cuidar um do outro por meio da socialização e do pensamento coletivo. Longevidade, funcionalidade e sobrevivência são os três pilares que permeiam a constante busca dos praticantes. “Nosso plano de saúde não é Unimed, nem Golden Cross, e sim através da prevenção das doenças”, reflete o instrutor.

Integrando o Brasil O Integral Bambu é cria

brasileira. Nascido na capital da política em 2000, o método busca a simplicidade oposta à vida dos representantes do país. O idealizador, Marcelo Rio Branco, iniciou uma pesquisa prática sobre os movimentos corporais. No início, o estudo foi de contato direto com as árvores e, quando mais pessoas começaram a acreditar em sua filosofia, ele iniciou a busca por materiais flexíveis que acompanhassem o movimento. O bambu, mesmo sendo oco, é forte e maleável, ou seja, ajustase à pressão do exercício. A atividade está aliada a princípios de criatividade, autonomia, liberdade e socialização. Além de desenvolver a coordenação motora, também tonifica os músculos, fortalece a autoestima e ajuda a equilibrar a mente. “Os treinos provocam a harmonia entre o físico e o mental, acabam com aquela automaticidade da rotineira, tu passa a te movimentar ciente do limite do corpo e da cabeça”, conta a praticante Inaê Iabel Barbosa, 17 anos. Os participantes devem estar abertos a um novo estilo de vida e utilizar suas habilidades para superar os desafios da prática.

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NOS CAMINHOS DA

Rota Mística

Sítios de comunidades alternativas desenvolvem trabalhos espirituais no Distrito do Espigão, interior de Viamão, impulsionando o turismo esotérico CRISTIANO VARISCO *

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os confins da Lomba do Pinheiro, onde a Zona Sul se volta para Viamão, o progresso desemboca desde Itapuã à Branquinha. Em direção à Capororoca, os largos campos logo revelam a estrada do Espigão, onde um trecho especial da RS-118 de chão batido atrai os peregrinos mais atentos. A rota mística consiste em três assentamentos de trabalhos espirituais consecutivos, no raio de 3 kilômetros, sítios vizinhos utilizados para rituais com Ayahuasca, Santo Daime, Meditação Indiana e outros rituais xamânicos que compõem um peculiar caleidoscópio politeísta. Envolta à violência suburbana da Grande Porto Alegre, jovens conscientes fazem sua parte por um mundo melhor, organizandose em comunidades, próximo às vilas Universal I e II, Martinica e Santo Onofre, donde violentos estampidos ecoam pelas noites, interferindo no canto mágico do Urutau, o pássaro sagrado na cultura indígena, junto a uma sinfonia de cães danados. Entre a ventania ensurdecedora que varre o imenso vale perto demais da Capital, sob a rota de aviões, o lixo suburbano já toma os becos e barrancos cuja placa sinaliza Sítio da Amizade. Uma sociedade de jovens firmados na verdade e no amor, dividindo o mesmo espaço, cada qual em um nível de vibração evolutiva, com suas personalidades e traços marcantes, desfilam papos cabeça, serenidade, vozes em tons puros, confortáveis, a fim de viver a essência da real felicidade humana, sem personagens ou tipinhos inúteis, filosofia de

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buteco. Vide a humildade com postura MPB e atitude rock nacional, rebeldia consciente no liquidificador cultural de uma irmandade engajada. Esqueça a exploração do mundo do além, misticismo barato dos anos 80, repleto de falsos profetas, terapeutas da nova era em crise. Uma nova geração voltada a uma consciência cósmica maior, exilados à orla do Guaíba durante os Fóruns Sociais Mundiais, agora vivem junto à sabedoria da mata o seu silêncio auspicioso, a perfeição engarrafada de maturidade astral, dar-se conta da rede em alto mar, pescando pessoas nos verdes morros de Viamão, entre sítios esquecidos pelo tempo. Aldeões da paz, estudantes recém formados que preferem sujar os pés na lama, erguendo tipis e yurts, a entrar no mercado capitalista, no esquemão. Nadismos, anarquistas, biólogos surfistas, sannyasins, arte-educadores, cantores mambembes, videntes malvistos, massoterapeutas degredados, garotos perdidos, junkies em reflexão, eternos sonhadores da cidade grande. Se você espera encontrar criaturas enfiadas em roupas coloridas, exalando incenso, queimando as retinas enquanto olham fixo para o sol, não se engane. O brilho dos olhos destas pessoas é contagiante, guerreiros decididos, com fogo interior, brincam nos campos do Senhor e vivenciam na prática do dia a dia o Naturalismo dos livros da academia, rastafáris, bruxos, santos, neohippies e intelectuais da permacultura, espécie de agricultura holística. A alimentação vegana e o banheiro seco acompanham terra, firmando valores como o amor e a gratidão eterna pela

CAMINHOS O mapa astral cruza almas na sincronia divina vida. Aplicar o rapé consagrado, o ciclo natural das coisas. A reciclagem, o sabão caseiro e a esponja vegetal usada para lavar louças, mesas, cadeiras, o próprio chão, mosaico lisérgico de azulejos reaproveitados. Entulhos de materiais depositados na espera de outra utilidade, querendo limpar a Terra. Fezes misturadas com cinza e serragem compostam ótimo adubo orgânico para depois ser utilizado no pomar. O sítio também apresenta uma biblioteca de volumes místicos rodeados de paredes de barro, serpentes em frascos, amostras de laboratório entre teias de aranhas. Trabalhos científicos, tratados eco educativos, manuais de bioconstrução, sonhos de adolescentes em últimas páginas de cadernos. A arte, a arte-educação, a arte-terapia e

todas as outras formas de arte, livres na concepção de suas diversas linguagens no ar, na centelha criativa, nas “partilhas”, espécie de reunião onde cada participante sorteado tem determinado tempo para se expressar, sem direito à réplica, ou qualquer conversa informal durante a ceia na cocô (cozinha coletiva). A enxada na lavoura, pela manhã, responsabilidades compartilhadas em um canteiro inteiro de feijões e inhame, senhor de todo o processo: preparar a terra, semear, colher, separar, dividir. Plantar seu próprio tabaco, sem obsessões, a cada golpe descarregado na a roda de cachimbo depois de um dia de trabalho na horta comunitária do Sítio Sol, Lua & Estrela, o Carijo, produção de erva mate em parceria com

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OCULTISMO O caminho da cura interior através de rituais xamânicos tem em seu seio o fogo sagrado e a percepção do inusitado os índios do Canta Galo, o Palo Santo, as pomadas medicinais, bálsamos sagrados. A divisão de tarefas é rascunhada no painel, nem sempre cumprida conforme o cronograma. A regra é não ter regras. Um irmão de diferente crença conhece gente nova a cada fim de semana, o próximo a segurar sua mão em uma roda de oração e mantra AUM antes das refeições. Aí o ecumenismo da nova era dá seus suspiros na hora de colher os frutos do trabalho.

O tratamento da planta

O ritual do chá une os moradores e também atrai gente de fora, conforme calendário lunar com divulgação nas principais redes sociais. Afinal, de mãos dadas a morte é mais doce. Ayahuasca, a alquimia maldita, a botânica marginal de Castaneda, o cipó dos mortos, purifica com o fel da lua cheia, sonhando acordado, insurge dentro de cada um e leva ao lugar comum, enquanto padres e pastores da selva dão graças à chuva que purifica durante as três horas e meia de ritual. Não

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só a julgar, mas apenar ser, e não o querer; estar, ciente, “let it be”, é uma das tantas lições durante a peculiar meditação, como respirar fundo e viver 100% o presente momento. Reaprender a conversar, ter prazer nas pequenas coisas, ligar-se à outra natureza, esmagada pelas botas da cidade. Na destruição do ego, garotos urbanos calejam a lida no campo com seus cabelos esvoaçantes, tênis esportivos e jaquetas jeans e a rebeldia jovem está no ar, no movimento, sorria você está sendo firmado por ervas exóticas da Amazônia, amargo conhecimento milenar indígena, apropriado pelo colonizador. Pensamentos embriagados de Ayahuasca, morte de nossa alma, deparar consigo mesmo em outras dimensões, com outras entidades e valores ancestrais, presentes em todas as religiões: amar e ajudar o irmão, modificando o DNA, é dar-se conta que pertencemos a algo maior, “todos somos um”. Mas ainda somos humanos com suas imperfeições em um alto

fluxo contínuo de energias e alteridades, e achar a cura e o guia espiritual ideal é lembrar que cada um de nós é o seu próprio xamã. É fácil entender este panteísmo de harmonia entre todas as crenças, difícil é elencar qual linha filosófica a ser adotada no momento, sob diferentes dicções. Problemas no paraíso. A vida em comunidade é baseada em regras de convivências imprescindíveis para o bom desenvolvimento do trabalho de permacultura e manutenção do sítio. As coisas podem apertar nas reuniões harmônicas debatidas sazonalmente conclamadas pela família e seu Xamã. Daí lembro os longos monólogos de Marlon Brando em Apocalypse Now, como o renegado Coronel Kurtz declamando dogmas criados na solitude imposta por sua deserção junto à selva e sua tribo de loucos rebeldes como Dylan, Kerouak, Fitzcarraldo, James Dean, Santos Dummont, Joquim... Esqueci de alguém? Você pode enxergar coisas que não mais notamos na cidade, graças à

visão soterrada pelos mitos do sistema. Aqui, cosmopolitas e seus xamanismos são tão sutis como tomar chimarrão no parque ou torcer pelo seu time de futebol aos domingos. Ao retornar à babilônia das grandes cidades, lembre-se que o caminho espiritual não tem volta, mas sempre é tempo de pegar a RS-40 novamente até Viamão e curtir o tempo correto, natural das coisas, e não os ponteiros enganosos dos relógios urbanos. Aquelas pessoas que vivem do lado de dentro das porteiras estão certas e nós somos os loucos. E se você tiver neurônios dispostos ainda em chegar ao final, o impagável festival de vaga-lumes com seus bumbuns flamejantes de uma rica energia, quiçá a energia elétrica que tanto falta por essas bandas, é o último suspiro da Mata Atlântica nativa em frente a real grande fuga da capital. *Cristiano Varisco passou 120 dias morando em uma comunidade nos arredores do Vale Verde, Distrito do Espigão em Viamão/RS.

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“Cheguei aqui sem conhecer ninguém e em pouco tempo me vi rodeado de amigos diferentes, pessoas inquietas, curiosas e divertidas. Às vezes, só ficávamos aqui, jogando conversa fora no saguão ou reunidos na biblioteca pra terminar algum trabalho. Foi aí que percebi, assim como tantos outros que passaram por aqui ao longo de 60 anos, que tinha me tornado famequiano. E ser famequiano é aplicar no mercado toda a qualidade do aprendizado adquirida na Famecos.”

espaço experiência

Um anúncio para famequianos, feito por famequianos e dentro de uma revista produzida por famequianos.


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