Polos DE CIDADANIA
curso de iniciação à
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
PROGRAMA POLOS DE CIDADANIA FACULDADE DE DIREITO E CIÊNCIAS DO ESTADO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
CURSO DE INICIAÇÃO À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS Belo Horizonte 2018
EQUIPE DO PROGRAMA POLOS DE CIDADANIA Coordenação Geral do Programa Profa. Dra. Miracy Barbosa de Sousa Gustin Profa. Dra. Sielen Barreto Caldas de Vilhena Prof. Dr. André Luiz Freitas Dias Prof. Fernando Antônio de Melo Coordenação Administrativa do Programa Fernanda De Lazzari Cardoso Mundim Claudia Maria Perácio Rezende Coordenação Acadêmica da equipe Acaba Mundo Profa. Dra. Maria Fernanda Salcedo Repolês Coordenação Técnica da equipe Acaba Mundo Vivian Barros Martins Estagiários da Equipe Polos Acaba Mundo Débora de Araújo Costa (Direito) Júlia Candelária Dias Batista (Arquitetura e Urbanismo) Marina Mendes Amorim (Psicologia)
Rafael de Oliveira Wanderley Fagundes (Direito) Rafaella Alcântara Reis Mendes (Psicologia) Rogério Lucas Gonçalves Passos (Arquitetura e Urbanismo) Stephany Santos Miranda (Psicologia) PARCEIROS ENVOLVIDOS Associação Querubins Magda Coutinho Taciana Ramalho Associação de Moradores da Vila Acaba Mundo Laerte Gonçalves Pereira Rita de Cássia Aragão Fórum de Entidades do Entorno da Área de Influência da Mineração (FEMAM) Valdinei Edson De Souza (Nei) Clínica de Direitos Humanos da UFMG Camila Silva Nicácio
1. APRESENTAÇÃO O Curso de Iniciação à Mediação de Conflitos pretende apresentar a Mediação como prática alternativa de resolução de conflitos. A mediação, enquanto método não-adversarial de resolução de conflitos, está sendo utilizada com frequência em diversos setores sociais, sejam eles judiciais ou não, culminando em experiências positivas e apresentando resultados efetivos. Isto em razão da sociedade começar a perceber, ainda que de forma incipiente, que a solução de conflitos realizada na esfera judicial estatal, por via do sistema judicial tradicional, não resolve, em grande parte das vezes, suas questões de forma adequada e eficaz. A mediação aparece como uma forma alternativa de solução de conflitos, em que os envolvidos, auxiliados por uma terceira pessoa – o mediador – buscam, por meio do diálogo, da criatividade e da intercompreensão, a melhor maneira de solucionar a questão sem que 1
uma das partes saia prejudicada ou insatisfeita com o resultado alcançado . Trata-se de um processo essencialmente participativo, em que se pretende aproximar, sem confundir; distinguir, sem separar. A mediação pretende preparar as partes para um reconhecimento mútuo, em que diferentes possam manter suas identidades, salvaguardar suas diferenças, e, ainda assim, conviverem pacificamente, ou solucionar questões de modo a manter suas boas 2
relações . De acordo com Luis Alberto Warat,
A mediação seria uma proposta transformadora do conflito porque não busca a sua decisão por um terceiro, mas, sim, a sua resolução pelas próprias partes, que recebem auxílio do mediador para administrá-lo. A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos. Tampouco, tem como única finalidade a obtenção de um acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar as partes a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que determinaram um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas. (WARAT, 2001)
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SILVA, Nathane Fernandes da. Resolução Não-Adversarial de Conflitos: a Mediação como Instrumento
Pedagógico para a Promoção de uma Cultura da Paz. In: DIAS, Maria Tereza Fonseca Dias (Org.). Mediação,
Cidadania e Emancipação social: a experiência da implantação do centro de mediação e cidadania da UFOP e outros ensaios. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2010. SIX, Jean François. Dinâmica da Mediação. Tradução de Águida Arruda Barbosa, Eliana Riberti Nazareth e Giselle Groeninga. Belo Horizonte, Del Rey, 2001. 2
Nesse contexto, foi apresentada a metodologia da mediação, não só como forma dialógica de resolução de conflitos, calcada na intercompreensão e na participação dos sujeitos na busca da melhor solução para suas questões, mas principalmente como uma via de acesso cidadão aos Direitos Humanos. Acreditamos que, por meio da mediação, é possível traçar novas possibilidades para a concretização dos Direitos Humanos e que ela deva ser utilizada para além da resolução de conflitos entre indivíduos. Essa metodologia pode e deve ter aplicação ampliada, sendo uma efetiva via de acesso aos direitos e, consequentemente, à justiça. Soma-se a isso a característica marcante de tal metodologia, no que diz respeito ao envolvimento e responsabilização de todos os interessados na solução de determinada questão, inclusive o próprio demandante.
2. CONVIDADOS
André Luiz Freitas Dias Professor e pesquisador-extensionista do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador geral e acadêmico do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Polos de Cidadania da UFMG.
Antônio Eduardo Silva Nicácio Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi coordenador de Projetos do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Polos de Cidadania da UFMG. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Humanos.
Camila Silva Nicácio Professora Adjunta do Departamento de Direito do Trabalho e Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora do Programa de Pesquisa e Extensão Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFMG.
Lívia Furtado Borges Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional pelo IDDE. Graduada em Gestão de Projetos Sociais pela
UEMG. LLM em Mediação de Conflitos em curso. Pesquisadora-Extensionista do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Polos de Cidadania da UFMG.
Maria Fernanda Salcedo Repôles Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora do Projeto de Pesquisa Tempo, Espaço e Sentidos de Constituição. Coordenadora do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Polos de Cidadania da UFMG.
3. OBJETIVO O Curso de Introdução à Mediação de Conflitos pretende criar espaços de trocas de experiências a partir das noções de Mediação de Conflitos e Mediação Coletiva. A partir dessas trocas, pretendemos discutir sobre os processos de mediação como facilitador do diálogo entre as partes para que melhor entendam seus conflitos, busquem seus interesses a fim de alcançar soluções criativas e possíveis.
4. MARCO TEÓRICO
Os marcos teóricos adotados são os referentes aos utilizados pelo programa Polos de Cidadania, sendo estes: a cidadania, entendida como um processo construído e realizado por meio da organização e da autonomia; a subjetividade que compreende a responsabilização e autocompreensão individual que propicie uma personalidade autônoma e crítica; a emancipação, como capacidade de reavaliar as estruturas sociais tendo como propósito a ampliação “das condições jurídicodemocráticas de sua comunidade e de aprofundamento da organização e do associativismo com o objetivo de efetivação das lutas políticas pelas mudanças essenciais na vida dessa sociedade para sua inclusão efetiva no contexto social mais abrangente” (GUSTIN, 2005), e o reconhecimento, tendo em vista que as formações identitárias, tanto individuais quanto coletivas, requerem mútuos reconhecimentos, que aspirem à ética, respeito moral e jurídico e responsabilidade política.
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MEDIAÇÃO: TRANSFORMANDO CONFLITOS E PREVENINDO VIOLÊNCIAS Adriana Maria da Costa. Socióloga. Coordenadora Metodológica do Projeto Mediar, da Polícia Civil de Minas Gerais. Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o estudo da mediação de conflitos como instrumento adequado e satisfatório para os participantes em situação de contenda transformarem seus conflitos e prevenirem a violência e a criminalidade. A Mediação de Conflitos possibilita a abertura de possíveis respostas às controvérsias por meio dos próprios participantes do processo. O Mediador de Conflitos deve se instrumentalizar de técnicas e procedimentos que facilitem a transformação do conflito, e uma boa alternativa seria por meio da Teoria da Transformação de Conflitos, apresentada por Lederach.
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INTRODUÇÃO
A nossa sociedade não difere de tantas outras no que se refere à violência e à criminalidade, bem como ao seu aumento, muitas das vezes decorrente da complexidade, instabilidade e intersubjetividade das interações sociais. A violência possui várias formas de manifestação e nem todas podem ser influenciadas pela ampliação do acesso à justiça. Entretanto, aos conflitos multicausais manifestados no âmbito comunitário, como brigas entre vizinhos, desavenças familiares, pequenos furtos, lesões corporais leves etc., podem ser aplicadas práticas de administração pacífica de conflitos para sua solução, como importante fator de influência dentre aqueles que atuam na prevenção de manifestações de violência. Acesso à justiça, aqui, é entendido não apenas como a mera admissão formal aos tribunais, e, sim, que, para a efetivação do Direito, é necessária a viabilização do acesso a uma “ordem jurídica justa” – como defendido por Watanabe (1996), a fim de garantir a segurança dos cidadãos, a qualidade de vida e o desenvolvimento do país. São várias as conceituações de violência, mas, no presente contexto, torna-se interessante a perspectiva de alguns autores, a exemplo de Santos (1993, p. 79 e 108), para o qual o excesso de regulação não garantindo o exercício do Direito, faz com que seja violado o princípio da credibilidade da lei. Isso conduz à fraqueza do indivíduo em afinar-se ao mundo por reconhecer que a retribuição da sociedade, ou seja, dos outros, independe de sua contribuição individual. O indivíduo passa a não se sentir ocupando um lugar seguro, pairando sobre ele uma incerteza, já que “se percebe sem lugar, num lugar incerto ou, quando muito, num certo lugar” (VASCONCELOS, 2008, p. 26). Essa incerteza do mundo social é seguida pela erosão das normas de convivência social, pela tendência ao encapsulamento individual (ambas potencializadoras do conflito interpessoal) e, de forma mais dramática, ao retorno ao estado da natureza e à anomia.
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Arendt (1994) propõe a distinção entre violência e poder. A autora argumenta que o cerne da violência está aliado à ineficácia instrumental e simbólica do Estado, ou seja, a impotência gera violência. Nessa perspectiva, o Estado passaria a representar no imaginário coletivo a ilegitimidade para administrar os conflitos interpessoais. Indivíduos em conflito elegeriam um campo paraestatal na resolução de suas lutas interpessoais (muitas vezes com recurso à violência), renunciando, portanto, às regras universais e impessoais do Estado de Direito. A Justiça, ao não ser capaz de solucionar satisfatoriamente os conflitos no tecido social, abre espaço para a penetração de meios alternativos de resolução de conflitos. No que concerne à insuficiência dos mecanismos de regulação disponíveis e sua relação com a violência, Adorno (1999, p. 140) destaca as consequências da crise vivenciada pelo sistema de justiça criminal, ou seja, pela incapacidade do Estado em aplicar as leis e garantir a segurança da população: elevação das taxas de criminalidade muito além da capacidade de resposta por parte das agências encarregadas do controle repressivo da ordem pública; crescimento do sentimento coletivo de impunidade; aumento da seletividade dos casos a serem investigados, aumentando-se o arbítrio e a corrupção, além do elevado número de casos arquivados por impossibilidade de investigação; e burocratização dos procedimentos, contribuindo para acentuar a morosidade judicial e processual. Por não confiarem na intervenção do Poder Público, consequência mais grave desse processo, os cidadãos buscam saídas que vão desde a segurança privada até a “proteção” de traficantes locais ou a resolução de conflitos por conta própria. “Tanto num como noutro caso, seus resultados contribuem ainda mais para enfraquecer a busca de soluções proporcionada pelas leis e pelo funcionamento do sistema de justiça criminal” (ADORNO, 2001, p. 99). Essa conceituação possibilita a ênfase no fato de que o sucesso do Estado em prevenir e controlar a violência depende, em grande medida, da forma como os conflitos são administrados, ou seja, o estímulo à adequada administração de conflitos (seja pelo sistema formal ou pelo fomento a sistemas alternativos, do qual a mediação é parte integrante) é papel fundamental do Estado na prevenção da violência. O Estado Democrático de Direito, no Brasil, foi instituído a partir da Constituição Federal, promulgada em 1988, que elegeu como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como o pluralismo político. Assim, ao adotar esses fundamentos e buscando assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos, orientou e abalizou instrumentos para uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica dos conflitos. O método alternativo de solução de controvérsias denominado Mediação de Conflitos seria, pois, um desses instrumentos, por possibilitar a transformação na visão que as pessoas têm sobre os conflitos, assim como fomentar a comunicação pacífica. A mediação possui potencial especial para os conflitos oriundos de relações continuadas ou cuja continuação seja importante, como as relações familiares ou de vizinhança, porque permitirá o restabelecimento ou aprimoramento dessas interações. Nesses casos,
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a mediação possibilita a compreensão do conflito pelas partes, para que possam melhor administrá-lo e evitar novos desentendimentos no futuro. Como a mediação é um processo por meio do qual as próprias partes chegam a uma solução para o conflito em questão, ela apresenta chances muito maiores dos envolvidos considerarem satisfatória a solução adotada. A participação direta dos interessados na construção do acordo para determinada contenda – ao contrário das soluções tradicionais, geralmente impostas por um terceiro “imparcial” – também aumenta a legitimidade da solução perante as partes e, consequentemente, a probabilidade de que cumpram voluntariamente o acordo estabelecido (acordo moral).
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CONFLITO E MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
O ser humano sempre esteve e estará em conflito, e a humanidade, não raras vezes, buscou solucionar seus conflitos, utilizando-se da guerra ao diálogo. Mas o que é o conflito? São várias as definições possíveis na Mediação e nas Ciências Sociais (COSTA, 2009). Entretanto, utilizaremos, brevemente, os conceitos de Moore (1998), Simmel (1983), Elias (1994) e Lederach (2003). Segundo Coser30 (apud Moore, 1998, p. 29), os conflitos envolvem lutas entre duas ou mais pessoas com relação a valores ou competição por status, poder ou recursos escassos. Os mediadores intervêm em conflitos que diferem segundo seu grau de ordem, as atividades das partes e a intensidade da expressão das preocupações e das emoções. Assim, tem-se 1) o conflito latente, caracterizado por forças implícitas que não foram reveladas de forma plena e não chegaram a um conflito polarizado (exemplos: mudanças nos relacionamentos pessoais em que uma parte não tem consciência da seriedade da discórdia ocorrida, tais como: perspectiva de cortes de pessoal em uma organização ou perspectiva do cônjuge sair de casa); 2) o conflito emergente, que é quando a disputa em que as partes são identificadas, a disputa é reconhecida e muitas questões estão claras, entretanto não ocorreu uma negociação cooperativa ou um processo de resolução de problemas, tem, portanto, potencial para crescer (exemplos: disputas entre colegas de trabalho, empresários e governos em que ambas as partes reconhecem que há uma disputa, havendo troca áspera de palavras, mas nenhuma das duas sabe como resolver o problema, que adia-se); 3) o conflito manifesto é aquele em que as partes envolvidas em uma disputa ativa e contínua começaram a negociar, mas chegaram a um impasse. Nos três tipos de conflito, o mediador pode ser chamado a auxiliar os participantes a identificarem as pessoas que serão afetadas por uma mudança e a desenvolverem um processo de educação mútua em torno das questões e interesses envolvidos; a estabelecer o processo de negociação e comunicação; e, ainda, a mudar o procedimento que ora tenha se iniciado por conta dos participantes ou por intermédio de outro profissional (MOORE, 1998, p. 29 e 30). Simmel (apud Moraes Filho, 1983, p. 122) nos mostra que o conflito reproduz-se em todas as ações interativas e relacionais produzidas no interior da sociedade, possibilitando 30
COSER, L. Continuities in the Study of Social Conflict. Nova York: Frre Press, 1967.
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construções, reconstruções e destruições às estruturas, arranjos, instituições, processos, relações e, sobretudo, interações sociais. “Admite–se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações.” Sendo assim, é “uma forma de sociação31”. O importante, aqui, aos moldes da mediação transformativa, é a possibilidade de construção ou reconstrução das relações, ou seja, o aspecto positivo do conflito. Simmel (1983) aponta que, de uma contenda, pode surgir uma base, uma plataforma análoga a um tablado, espaço no qual as partes podem se encontrar em um mesmo nível situacional, ou seja, em conflito. Sobre esse tablado, os participantes não serão julgados por terem mais poder ou melhores chances de saírem vitoriosos da discórdia. O conflito, segundo ele, possui a capacidade de constituir-se num espaço social, em que a própria confrontação é um ato de reconhecimento entre as interações e as relações sociais que daí resultam. Outra característica positiva atribuída ao conflito, pelo autor, reside no fato de que este pode superar as desigualdades sociais estruturadas e reproduzidas pelas consequências das interações sociais. Já para Elias (1994, p. 17), o conflito social se apresenta quando há a sobreposição entre as necessidades e inclinações pessoais e as exigências da vida social, ou vice-versa. Ele argumenta que as duas coisas só são possíveis juntas: só pode haver uma vida comunitária livre de perturbações e conflitos se todos os indivíduos dentro dela gozarem de satisfação suficiente; e só pode haver uma existência individual satisfatória se a estrutura social for mais livre de tensão, perturbação e conflito. Lederach (2003) nos diz que tanto o conflito quanto a mudança são parte normal da vida humana. O conflito está sempre presente nas relações humanas e o tecido dessas relações está em constante mudança. Existem quatro modos em que os conflitos provocam impacto nas situações e mudam as coisas: pessoal, relacional, estrutural e cultural. Além disso, podemos pensar essas mudanças em resposta a duas perguntas: do ponto de vista descritivo, o que o conflito muda? E, do ponto de vista das respostas que surgem ao conflito, que tipo de mudanças buscamos? Na primeira pergunta, estamos simplesmente buscando reconhecer os padrões comuns e impactos do conflito social; na segunda, buscamos reconhecer a necessidade de identificar como nossos valores e intenções podem ser tão ativos para responder, intervir e criar mudanças. É o que veremos a seguir.
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MEDIAÇÃO: TRANSFORMANDO CONFLITOS
A mediação de conflitos é um método alternativo para a resolução de contendas32, em opção ao sistema de justiça tradicional. Segundo Moore (1998, p. 28), a mediação é definida como a interferência em um conflito de uma terceira parte aceitável (os mediados 31 32
Segundo Simmel (1983, p.122), toda interação entre os homens é uma sociação. Apesar de, no Brasil, não haver uma lei específica para a regulamentação da mediação, sua prática e fundamentação tem-se estruturado de acordo com a experiência e formação do profissional mediador sob o olhar técnico do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – CONIMA.
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aprovam a presença e intervenção33 do mediador), tendo um poder de decisão limitado ou não autoritário, e que ajuda os participantes envolvidos a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente cabível. A mediação pode estabelecer ou fortalecer relacionamentos de confiança e respeito entre os participantes ou encerrar relacionamentos de uma maneira que minimize os custos e os danos psicológicos. Na maioria das vezes, a mediação se depara com relações em que as pessoas encontram-se de forma desigual no que diz respeito ao poder de solucioná-lo. Segundo Sampaio e Neto (2007, p. 21 e 22), a natureza do conflito e a capacitação do mediador definem os diferentes estilos de prática da mediação. Assim, temos o modelo tradicional, que tem como foco o acordo e a satisfação individual das partes; o modelo transformativo, fundamentado na teoria sistêmica, que busca antes a transformação das pessoas, a revalorização pessoal e o reconhecimento da legitimidade do outro – o acordo é apenas consequência; e o modelo circular-narrativo, que se fundamenta na comunicação e causalidade circular, cuidando-se dos vínculos e fomentando a reflexão, a fim de resultar em uma história colaborativa. Neste artigo, daremos ênfase ao modelo transformativo. O modelo de mediação transformativa, desenvolvido por Bush e Folger, busca o crescimento moral dos participantes do processo de mediação por duas vias: na capacitação, ou seja, no autorreforço que ocorre quando os participantes conscientizam-se de seus próprios objetivos, interesses, opções e recursos, na sua capacidade para organizar e apresentar argumentos, e na sua capacidade de tomada de decisão consciente; e segundo, no empowerment34 conjugado com o reconhecimento da situação e do outro ou livre reinterpretação da sua ação. Para Bush e Folger, a mediação transformadora alinha-se com a emergência de um novo paradigma da sociedade, o mundo relacional, que apela para o desenvolvimento integrado de dois importantes valores humanos: o autoatendimento e a empatia. Na medida em que a mediação de conflitos promove um diálogo voluntário por meio do qual os participantes têm a possibilidade de compreender as razões do outro e da própria origem do conflito, abre-se um espaço de reconhecimento mútuo, ao mesmo tempo em que permite compreender a estrutura desigual e injusta, à qual, muitas vezes, estão ambos submetidos. Essa percepção pode conduzir a uma igualdade de direitos e deveres sociais, que se constrói dialeticamente no processo de comunicação não violenta e, consequentemente, à prevenção à violência, criminalidade e processos de vitimização. Mesmo nos casos em que os participantes se encontram em desigualdade de classe ou gênero e um deles não se submete à mesma estrutura do outro e/ou, em casos 33
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Intervenção, segundo Argyris (1970, p. 15 apud Moore, 1998, p. 17), significa “entrar em um sistema contínuo de relacionamentos, ficar entre pessoas, grupos ou objetos, com o propósito de ajudá-los”. O termo empowerment deve ser entendido aqui, deixando-se de lado as discussões do ponto de vista linguístico e de classe, como um processo dinâmico no qual o sujeito, a partir de suas ações, é parte de um processo em permanente construção. Empoderar significa muito mais do que “transferir” ou “tomar posse” de elementos que permitam aos sujeitos transitar nos meandros decisórios de sua coletividade, mas, sim, fornecer subsídios a estes para que possam tornar-se cidadãos críticos e conscientes de sua posição enquanto indivíduos históricos, libertos dos diversos tipos de desigualdade. A esse respeito, conferir BAQUERO, 2005.
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mais extremos, quando um deles agiu claramente com má-fé para a satisfação de seus interesses próprios, o diálogo é viável e pode ser emancipatório através da mediação de conflitos. Isso porque, havendo um desequilíbrio de poder entre as partes, seja originário da desigualdade social ou econômica, a mediação pode proporcionar empowerment capaz de esclarecer os direitos que os participantes possuem, de forma a proporcionar-lhes um lugar35 para a igualdade e o equilíbrio de diálogo. Nesse caso, mesmo não havendo um consenso possível, mesmo que não consigam chegar a um acordo, os participantes tiveram a oportunidade para um aprendizado que será valioso, caso decidam buscar seus direitos por meio do sistema judicial, ou mesmo para prevenir futuras desavenças. Dentro desse modelo, complementar à visão de Bush e Folger, encontra-se a perspectiva desenvolvida por Lederach (2003), denominada de Teoria da Transformação do Conflito, que descreve essa transformação como uma lente e uma estratégia para abordar o conflito. De acordo com Lederach36 (apud SALES, 2010, p. 12), a transformação de conflitos é mais do que um conjunto de técnicas específicas. É uma proposta diferente de observação dos fatos a partir de diversas lentes para se compreender o conflito no âmbito individual e social. Primeiro, são usadas as lentes para examinar a situação imediata; em seguida, outras lentes são utilizadas para ver o passado dos problemas imediatos e os padrões das relações que demarcam o conflito (avaliação aprofundada da situação vivida); e, por último, é utilizada a lente para encontrar um marco de convergência com o qual se possa criar uma base de atuação para que os indivíduos envolvidos possam discutir o conteúdo, o contexto e as estruturas das relações de forma cooperativa – aqui eles começam a buscar respostas ou soluções criativas. O conceito da transformação de conflitos, de Lederach, compreende a evolução dos conflitos sociais a partir de mudanças nas dimensões pessoal, relacional, estrutural e cultural da experiência humana. O objetivo é promover processos construtivos de cada uma destas. A dimensão pessoal refere-se às alterações efetuadas no que é desejado pelo indivíduo, incluindo o aspecto cognitivo, emocional, perceptível e espiritual da experiência humana ao longo do conflito. De uma perspectiva descritiva, a transformação sugere que os indivíduos são afetados pelo conflito de modo negativo e positivo37. A dimensão relacional descreve as mudanças afetadas e desejadas nas relações face-a-face, em que as questões emocionais, de poder e de interdependência são fundamentais. No aspecto descritivo, refere-se à transformação de como os padrões de comunicação e interação nos relacionamentos são afetados pelo conflito. O conflito torna explícito o quão perto ou distantes as pessoas desejam ser, como vão usar e compartilhar o poder, o que percebem de si mesmos e dos outros, bem como quais padrões de interação desejam ter. 35 36
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Entenda-se lugar, aqui, menos espacial, e mais social. LEDERACH, John P. Construyendo La Paz: Reconciliacion sostenible em sociedades divididas. España: Gernika-Gogoratuz/Centro de Investigación por La Paz, 1998, p. 118-119. O conflito, por exemplo, afeta o nosso bem-estar físico, a nossa autoestima e estabilidade emocional etc.
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A dimensão estrutural destaca as causas subjacentes do conflito e destaca as maneiras pelas quais as estruturas sociais, organizações e instituições são construídas, sustentadas e alteradas pelo conflito. Em um nível descritivo, refere-se à análise das condições sociais que dão origem ao conflito e à maneira como o conflito afeta a mudança estrutural e social existente em instituições sociais, políticas e econômicas. Em um nível prescritivo, a transformação representa os esforços para fornecer informações sobre as causas subjacentes e as condições sociais que criam e fomentam as expressões violentas do conflito, e para promover mecanismos que reduzem a interação da controvérsia e minimizem a violência. A dimensão cultural, por fim, refere-se às formas de conflito que mudam os padrões de vida em grupo, bem como as formas como a cultura afeta o desenvolvimento de processos que tratam e respondem ao conflito. Em um nível descritivo, a transformação visa compreender como o conflito afeta e muda os padrões culturais de um grupo e como os padrões acumulados e compartilhados afetam a forma como as pessoas em um dado contexto compreendem e respondem ao conflito. No nível prescritivo ou normalizador, a transformação visa descobrir os padrões culturais que contribuem para a violência em um dado contexto, e identificar e desenvolver os recursos culturais existentes e os mecanismos para lidar com o conflito. Mas como podemos transformar os conflitos? Lederach desenvolve um mapa investigativo da transformação que parte da situação presente e chega ao futuro desejado, a partir do desenvolvimento de processos de mudança que ligam esses dois pontos. Não se trata de uma linha reta, mas de um conjunto de iniciativas dinâmicas que definem os processos de mudança em movimento e criam uma plataforma sustentada para prosseguir à mudança a longo prazo. O mapa representa o desafio de como terminar algo não desejado e como construir algo que é desejado. Uma visão transformadora da situação – o primeiro ponto de investigação – levanta duas questões: quais são os problemas imediatos que precisam ser resolvidos? Qual o contexto global que precisa ser resolvido de forma a alterar os padrões destrutivos? Essas questões ligam o presente com o passado. Os padrões de como as coisas têm sido no passado fornecem um contexto no qual as questões em disputa aumentam em direção à superfície. As questões presentes não têm o poder de mudar o que já transcorreu. O potencial para a mudança está na nossa capacidade de reconhecer, entender e corrigir o que aconteceu e criar novas estruturas e maneiras de interagir no futuro. O segundo ponto de investigação do conflito é o horizonte do futuro, a imagem do que queremos criar. O horizonte do futuro aponta para a possibilidade do que poderia ser construído, e, não, simplesmente para mudanças lineares. A seta da transformação aponta não só para o futuro, mas também se volta para situações imediatas e para uma gama de processos de mudanças que possam surgir. A transformação, então, é tanto circular quanto linear – o que Lederach denomina de processos de mudança. O inquérito final é a concepção e apoio aos processos de mudança que exige que pensemos sobre a resposta a um conflito como o desenvolvimento de processos de mudança que atendam a uma rede de necessidades, relações e padrões interligados. Os processos de mudança não devem apenas promover soluções de curto prazo, mas tam-
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bém construir plataformas capazes de promover a longo prazo uma mudança social, e devem, ainda, apresentar adaptabilidade e finalidade. Uma plataforma de transformação é a construção de uma contínua e adaptativa base no epicentro do conflito, do qual é possível gerar processos que criam soluções para necessidades de curto prazo e fornecer uma capacidade de trabalho em estratégias de mudança construtiva de longo prazo no contexto relacional. Esse mapa de Lederach fornece uma lente que nos permite vislumbrar as possibilidades de resposta imediata e de longo prazo de uma mudança construtiva. Para ele, a transformação de conflitos é uma viagem circular com um propósito, que pode ser desenvolvida a partir das seguintes práticas da abordagem transformacional: Prática 1: desenvolver a capacidade de ver as questões que se apresentam como em uma janela, ou seja, a capacidade de ver a situação de imediato, sem se deixar levar pelas exigências em que se apresentam as questões, pela urgência que nos empurra para soluções rápidas, e pelas ansiedades que muitas vezes elevam o conflito. Essa é a capacidade de ver a diferença entre o conteúdo de um conflito e do seu contexto emocional e relacional; Prática 2: desenvolver a capacidade de integrar vários quadros de tempo, ou seja, pensar sobre a mudança sem estar condicionado a uma visão de curto prazo. A chave é a capacidade de reconhecer que tipo de processos e prazos podem ser necessários para lidar com os diferentes tipos de mudança; Prática 3: desenvolver a capacidade de representar as energias de conflito como dilemas. Como podemos abordar “A” e ao mesmo tempo construir “B”? a capacidade de reformular o conflito dessa forma nos permite identificar mais claramente os objetivos e procurar opções inovadoras para a ação; Prática 4: desenvolver a capacidade de fazer da complexidade um amigo, e, não, um inimigo. Uma das grandes vantagens da complexidade é que a mudança não está ligada exclusivamente a uma coisa, ação ou opção. A primeira chave é a confiança que temos que ter na capacidade dos sistemas em gerar opções e caminhos para a mudança; a segunda é que devemos buscar as opções que parecem ter a maior promessa de mudança construtiva; e a terceira estabelece que não devemos bloquear rigidamente uma ideia ou abordagem, pois os caminhos potenciais de mudança gerados em sistemas complexos são numerosos. É aqui que a atenção cuidadosa à multiplicidade de opções pode criar novas formas de olhar para velhos padrões. Prática 5: desenvolver a capacidade de ouvir e falar a voz da identidade e do relacionamento. A identidade é uma dinâmica relacional que está sendo constantemente redefinida – é como as pessoas estão vendo a si mesmas no relacionamento que têm com os outros. É importante estarmos atentos às percepções das pessoas sobre como a identidade está ligada ao poder e à definição dos sistemas e estruturas que organizam e regulam as suas relações. De acordo com Lederach, isso é particularmente importante para as pessoas que sentem a sua identidade desgastada, marginalizada ou sob ameaça. Quando as preocupações baseiam-se em identidade, os processos devem se esforçar para compreender as raízes das percepções das pessoas e combater as mudanças sistêmicas necessárias para garantir o acesso e a participação respeitosa.
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Comissão Técnica de Conceitos do Programa Mediação de Conflitos 2010 - (Org.)
CONCLUSÃO
A sociedade preconizada pelo Estado Democrático de Direito, no Brasil, é uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica dos conflitos. O sucesso do Estado em alcançar essa sociedade condiciona-se, muitas das vezes, na forma como os conflitos são administrados, ou seja, no estímulo à adequada administração de conflitos, seja pelo sistema formal, seja pelo incentivo e implementação de sistemas alternativos. O instrumento da mediação de conflitos pode possibilitar o reconhecimento, por parte das pessoas, de que a retribuição da sociedade depende de sua contribuição individual e que seus valores e intenções podem ser ativos para responder, intervir e criar mudanças. Assim, entendemos que, nos casos em que os indivíduos em situação de controvérsia compartilham de um extenso passado em comum e têm potencial significativo para futuros relacionamentos, e nas situações em que os episódios surgem em uma comunidade, organização ou contexto social amplo, a abordagem da Teoria da Transformação de Conflitos possibilita mudanças significativas e deve ser utilizada também, em contextos com ciclos repetidos e profundos de episódios de conflito que criaram padrões destrutivos e violentos. Essa abordagem utiliza-se de lentes para examinar o conflito vivenciado: primeiro, são usadas as lentes para examinar a situação imediata; em seguida, lentes para ver o passado dos problemas imediatos e os padrões das relações que demarcam o conflito; e, por último, é utilizada a lente para encontrar um marco de convergência com o qual se possam buscar respostas e criar soluções criativas. A mediação transformadora proporciona a substituição dos padrões de violência e coação pelo respeito, pela resolução criativa de problemas e pelos mecanismos de mudança social não violenta. Aqueles que se dedicam à mediação de conflitos devem acreditar nas mudanças, devem acreditar que as pessoas são capazes de transformar os seus conflitos, mesmo que, em determinadas situações, essas transformações sejam pequenas e passem despercebidas; acima de tudo, devem dar oportunidade a essas pessoas de se transformarem para mudarem a visão que têm de seus conflitos. “Para conseguir isso, uma complexa teia de processos de mudança delimitada por uma compreensão transformadora da vida e da relação se faz necessária” (LEDERACH, 2003).
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Mediação e Cidadania
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Capítulo 2 MEDIAÇÃO PARA A AUTONOMIA: ALTERIDADES EM DIÁLOGO
Camila Silva Nicácio
Sumário: 1 A contemporaneidade e os deuses caídos; 2 A mediação: um prelúdio possível; 2.1 Nas asas do conceito; 2.2 Sobre a natureza da mediação; 2.3 Para fazer operar o conceito: a mediação em alguns exemplos; 3 Conclusão: a terceira margem; Referências
1 A contemporaneidade e os deuses caídos
Uma característica marcante da época contemporânea é sua capacidade de desdobrar-se e de abarcar neste movimento uma multiplicidade indelével de estilos, crenças, estéticas, ideologias, enfim, de culturas. Cada cultura, por sua vez, imprime à vida social seu ritmo, pretensões e contornos próprios, concomitantemente em que se modifica sob a influência destes mesmos fatores e sob a inspiração/imposição de outras culturas. Daí podermos falar de sociedades polifônicas e altamente diversificadas. Se é evidente a constatação da heterogeneidade de tais sociedades e, por conseqüência, a existência de projetos de vida ou de visões de mundo também distintos que delas se extraem, não menos evidente é a dificuldade de harmonizar todas essas perspectivas1.
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Em Multiculturalismo: diferença e democracia, Charles Taylor, ao afirmar o duplo princípio do reconhecimento e da identidade como constituintes basilares da discussão sobre o multiculturalismo, argumenta que «[…] nos tempos pré-modernos, as pessoas não falavam de «identidade» ou «reconhecimento» - não porque não tinham o que chamamos hoje de ‘identidade’ ou porque não dependiam de reconhecimento - mas porque elas tinham poucos problemas para serem sistematizados como tais». Para Taylor, a época moderna (e o que dizer então da pós-moderna?) não inventou uma necessidade de reconhecimento, mas propiciou o ambiente para que a tentativa de se fazer reconhecer pudesse fracassar. Cf. TAYLOR, Charles. Multiculturalisme, différence et démocratie. Princeton: Champs Flammarion, 1992, p.53.
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Tal dificuldade se encontra em dois níveis diversos, pois, além de se dirigir à troca entre culturas diferentes - presentes, no entanto, em um mesmo plano espaçotemporal - o desafio por uma inter-compreensão autêntica e respeitosa se impõe também no interior de uma sociedade específica, altamente diferenciada dentro de seus próprios limites, ainda que disponha de uma matriz cultural e societária mais ou menos homogênea2. Essa diferenciação não deixa camuflar, contudo, a unicidade de fonte em que tanto um quanto outro registro estão calcados: a aversão ao outro, a dificuldade de compreendê-lo e respeitá-lo segundo os seus parâmetros, a intolerância, enfim. No que concerne o mundo ocidental, o desafio inaugural da suposta harmonização de que falamos data dos avanços científicos e tecnológicos que romperam com a visão de um mundo centrado e ordenado pela vontade divina e por isso mais previsível e equilibrado. Se a presença e a referência a deus e aos deuses fazem ainda parte intrínseca da nossa construção e percepção de mundo, fato incontornável é que as sociedades contemporâneas não mais se reconciliam sob o marco de uma justificativa metafísica à sua existência e ao curso de seu desenvolvimento. Deus pode não estar “morto”, mas já esteve mais na moda. De uma maneira prática, tal ruptura abre a possibilidade de um espaço de liberdade incomensurável, em que todos e cada um, inscritos no contexto de sociedades hipercomplexas e plurais, podem apostar em projetos de vida altamente diferenciados uns dos outros. Em outros tempos, criaria escândalo, por exemplo, a moda punk de adolescentes e seus corpos ornados de piercings e toda sorte de tatuagens, visão de mais a mais assimilada e dissolvida nos grandes centros urbanos como marca de uma heterogeneidade inegável e nem por isso mais perturbadora. De outro lado, as legislações que acordam direitos aos casais 2
Conflitos entre flamencos e francofônicos na Bélgica; marroquinos e franceses na França; evangélicos e católicos no Brasil apontam para conteúdos e graus diversos de uma mesma variante, segundo a reflexão de Boaventura de Sousa Santos: a dificuldade (ou improbabilidade) de se compreender uma determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura. Para o autor, «topoi» são os lugares retóricos de uma dada cultura, que não carecem ser discutidos ou explicados, posto que funcionam como um pano de fundo implícito, evidente àquela cultura. Se cada cultura fundamenta seu universo de sentido tendo em vista topoi específicos, estes ficam frágeis se deslocados para outras culturas que não aquela de origem – o que dificulta a compreensão entre elas. Ao considerar, no entanto, que tal compreensão é possível, embora complexa, o autor propõe um procedimento hermenêutico o qual apelida de «diatópico», ou seja, «um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra». Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. As tensões da Modernidade: Direitos Humanos, globalização, culturas, interculturalidades, multiculturalismo, ocidente e islamismo. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, a. 5, n. 10, 1995, p. 8.
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homossexuais ganham gradual e notavelmente mais espaço, mesmo em países de tradição fortemente católica - a Espanha sendo seu mais expressivo exemplo – o que, longe de representar uma aceitação unânime, depõe de uma diversidade genuína e, sobretudo, declarada3. Tal liberdade, no entanto, só não é maior porque - gregária a natureza - vivemos sob o jugo de comungar de valores mínimos (ou máximos?) à existência e reprodução social4. Face a um imperativo desse quilate, a possibilidade de confronto e de dissenso é igualmente ampliada a dimensões não imaginadas outrora. Como, afinal, conciliar o respeito à integridade e unicidade de culturas diversas (a princípio antagônicas) e a necessidade de partilhar de um mesmo contexto de mundo, cenário no qual tais culturas se negam, se boicotam e se reconhecem? De outra parte, no microcosmo, qual meio-termo entre a tolerância a subjetividades inequivocamente distintas e a premência de eleger marcos de igualdade que evitem discriminações? Essas questões, integrantes centrais do debate em torno do multiculturalismo, evocam, a nosso ver, o tema da mediação, seja ela consubstanciada no diálogo intercultural, societário ou interpessoal. O próprio termo ‘multiculturalismo’ deixa inspirar, como que num exercício metalingüístico, um primeiro desafio à mediação: ou seja, para além do que ela pode eventualmente operar na tensão entre uma cultura e outra, está o fato de, simplesmente, ser entre tais culturais, de estar ou de sempre ter estado entre elas, como uma pré-condição para que tanto uma quanto outra existam. Um medium, um ponto de precário contato, um liame, ainda que tênue, para que as diferenças e similitudes se marquem e possam - cientes delas próprias - construir pontes mais maciças.
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«Dois homossexuais têm o direito de andar de mãos dadas nas ruas, tanto quanto dois carecas, com suas cabeças raspadas, roupas e bijuterias exóticas […]», assertivo em sua decisão, o juiz Luís Fernando de Barros Vidal Paulo prenuncia um olhar institucional atento à diversidade social e interpessoal, ao qual se somou um clamor público igualmente sensível à barbarie ocorrida em fevereiro de 2000 na cidade de São Paulo, quando Edson Néris da Silva, ao sair de um bar na companhia de seu companheiro, foi espancado e morto por um grupo de skinheads. Em www.social.org.br/relatorio2002/relatorio027.htm, acessado em 18 de julho de 2008. 4 Boaventura, na esteira do debate aberto pela questão dos direitos humanos como política emancipatória, acredita no envolvimento das diversas sociedades em torno de «valores e exigências máximos, não valores e exigências mínimos». SANTOS, Boaventura de Sousa. As tensões da Modernidade: Direitos Humanos, globalização, culturas, interculturalidades, multiculturalismo, ocidente e islamismo. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, a. 5, n. 10, 1995, p.6.
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2 A mediação: um prelúdio possível
A mediação é um termo muito rico e igualmente controverso. Utilizada historicamente por chefes tribais, pajés, anciãos e conselheiros como método de pacificação e integração social, ela é retomada, nos anos 70 e 80, primeira e principalmente nos Estados Unidos, como forma “novidadeira” de resolução de controvérsias. O conceito mais usual é, aparentemente, simples e se impõe de maneira mais ou menos homogênea onde quer que se pratique: a mediação é um processo que busca a resolução de situações de conflito, através do qual uma terceira pessoa neutra - o mediador - auxilia as pessoas envolvidas a resgatarem o diálogo e construírem uma solução. É um processo voluntário, no qual as decisões negociadas são de autoria das partes, sendo o mediador um facilitador5. Nesta perspectiva, a mediação ganhou terrenos antes insondados e firmou-se como vedete dentre os meios ditos “alternativos” de resolução de disputas, segundo a nomenclatura norte-americana (Alternative Dispute Resolution - ADR). Pode-se falar hoje de um movimento em duplo sentido: a mediação está arraigada no meio social, mas tem ganhado espaço também nas próprias estruturas judiciárias, evidenciando uma dinâmica mais ampla em direção a uma ordem jurídica e social que se quer cada vez mais negociada6. Inscrita no contexto das estruturas judiciárias, a mediação é, de regra, alvo de uma série de desconfianças: tanto em relação à segurança jurídica que deixaria eventualmente de proporcionar aos jurisdicionados, segundo aqueles que a consideram como a negação de “direitos” e/ou de “procedimentos corretos”; quanto à sua efetividade, conforme a crítica que a julga como um procedimento a mais, e por isso infértil, pois que objetivada como seqüência natural de mecanismos já existentes, tal como a conciliação - um rito de passagem obrigatório antes de um
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Sobretudo no registro norte-americano, cf. COOLEY, John W. A advocacia na mediação. Tradução René Loncan. Brasilia, Editora UnB. 2001; MOORE, Christopher W. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Tradução Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1998; FISHER, Roger et al. Como chegar ao sim: negociações de acordos sem concessões. Tradução Vera Robeiro e Ana Luiza Borges, 2 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994. 6 ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Sistemas Jurídicos: elementos para un análisis sociológico. Madrid: Universidad Carlos III, 1996, p. 292.
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processo a priori inevitável7. Alguns resultados recentes podem, melancolicamente, confirmar tanto uma como outra suspeita8. Igualmente vítima de questionamentos e detratações, é portanto no primeiro terreno, o social, em que a mediação tem oportunidade de multifacetar o conceito que lhe é normalmente atribuído e desvelar potencialidades marcadamente surpreendentes. Também nesse sentido, é a observação concreta que permite afirmar que uma plêiade incomensurável de ocorrências, dissolvidas nos vários contextos da experiência social, faz da mediação uma prática que atualiza (e harmoniza) no dia-a-dia pretensões diversas de direito, capturadas na emergência das situações que a ela se apresentam, seja na cena associativa, diplomática, política, comunitária etc. Neste quadro, o sentido de ‘direito’ a que se afilia é aquele descrito por Hespanha, em seu Le droit au quotidien, em que ‘direito’ “[...] corresponde a todas as normatividades produzidas em permanência pela vida sob a forma de sistemas normativos espontâneos e autônomos [...]”, dos quais faz parte, inclusive, o direito oficial ou do Estado. Segundo o autor: A vida quotidiana constitui de fato um mundo de vários níveis e formas de organização, uma organização ao mesmo tempo não reflexiva e aceita como evidente. A vida quotidiana é considerada como o mais autêntico dos mundos humanos, precisamente porque espontâneo, não mediatizado por projetos culturais heterônomos e porque enraízados em condições concretas de existência. As normas que produzem e informam (mais do que orientam) os comportamentos consitutem assim o direito mais 7
Jacques Faget, ao preconizar o acesso ao direito como um acesso à cidadania, chama atenção para esses dois riscos: a multiplicação inescrupulosa de práticas de sub-justiça («sous-justice») que ameace direitos fundamentais e a submissão da mediação à racionalidade jurídica e judiciária, esvaziando-a de sentido. FAGET, Jacques. Accès au droit et médiation. In: YOUNES, Carole; LE ROY, Etienne (orgs.). Médiation et diversité culturelle. Paris: Karthala, 2002, p. 41. 8 Remetendo-se à Pesquisa Nacional sobre os Juizados Especiais no Brasil, da qual foi sua coordenadora executiva, Léslie Sherida Ferraz colaciona argumentos segundos os quais a mediação/conciliação nos juizados podem desequilibrar a relação entre as partes, subjugando os direitos dos economicamente desfavorecidos, o que empiricamente se demonstrou na pesquisa no tocante às relações de consumo. Um dos argumentos é o de Maria Tereza Sadek, que evoca a diferença entre os advogados contratados pelas partes e os advogados dativos, que, ainda que incumbidos de assisti-las na mediação, mostram-se apáticos e desinteressados. Por outro lado, Ferraz explica como o despreparo profissional dos mediadores, a falta de cooperação dos juízes e o caráter obrigatório das mediações contribuem igualmente para desprestigiar e desconfigurar o instituto, relegando-o ao papel de simples primeiro passo em direção ao processo judicial propriamente dito. A essas críticas, soma-se o julgamento severo de Owen Fiss, para quem as mediações atomizam os conflitos, concentrando-os na ótica de indivíduos, mesmo quando se tratam de pretensões claramente coletivas. Tambem Faget, citado supra, denuncia o risco da «individualização e privatização dos conflitos», o que sufoca a emergência de combates sociais eventualmente oportunos. Sob o argumento de que «mediação» e «conciliação» se distinguem conceitualmente, mas se assemelham na prática verificada nos Juizados Especiais, a autora justifica o uso indiscrimado dos termos. FERRAZ, Léslie Sherida. Efetividade nos Juizados Especiais Cíveis brasileiros: uma análise empírica. Social Science Research Network, 2008. Disponível em <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1133662>. Acesso em: 22 de julho de 2008.
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autêntico e mais efetivo, justamente porque ele é aproblemático, não 9 reflexivo e perfeitamente adaptado às situações .
Porque o quotidiano é cenário onde a vida social se descortina e essa, de mais a mais, apresenta formas particulares e diversas de regulação, a noção de direito do quotidiano pressupõe a emergência da internormatividade de que nos falam autores como Sousa Santos [1988, na ocorrência, “interlegalidade”, utilizada como sinônimo], Arnaud e Fariñas Dulce [1999], Macdonald [2002] e Le Roy [2002], como a relação entre ordens jurídicas distintas10. A internormatividade pressupõe reciprocidade, embora não pressuponha equilíbrio: trata-se de um caminho de mãodupla, da ordem estatal em direção às ordens informais e vice-versa, além do trânsito entre as informais elas mesmas. Ao nos apresentar a interlegalidade como a contrapartida fenomenológica do pluralismo jurídico, Sousa Santos, esclarece: O pluralismo jurídico é um conceito chave para uma concepção pósmoderna do direito. Não se trata do pluralismo jurídico da antropologia jurídica tradicional, que concebe como entidades autônomas as diferentes ordens jurídicas que coexistem em um mesmo espaço político, mas preferencialmente de uma concepção de diferentes espaços jurídicos sobrepostos, combinados e misturados em nossos espíritos e nossas ações, seja nos momentos de saltos qualitativos ou crises profundas nas trajetórias de nossas vidas, seja na modorra da rotina e na monotonia da 11 vida quotidiana .
Não seria, então, oportuno reafirmar que o próprio termo internormatividade evoca na sua raiz mediações que se sucedem em planos diferentes da vida jurídica12? Achamos que sim e é esse o pano de fundo e justificativa da nossa 9
Palestra proferida por Antônio Manuel Hespanha na Ecole des Hautes Etudes des Sciences Sociales, EHESS. HESPANHA, Antonio Manuel. Le droit du quotidien. XIXe Conférence Marc-Bloch, juin 1997. Disponível em: <http://cmb.ehess.fr/document123.html> Acesso em: 15 de julho de 2008. 10 Na obra The law of the opressed: construction and reproduction of legality in Pasargada, em que estuda o pluralismo jurídico em uma favela brasileira, Santos demonstra como expedientes absolutamente informais e tradicionais podem dialogar e coexistir com práticas consagradas dos Tribunais no que concerne à gerência da vida jurídica. Um contrato de compra e venda de bens imóveis pode prescindir do instrumento público, como de fato o «direito do asfalto» ou do Estado prescreve, mas não concederá certamente a que se deixe de reduzir a escrito (ainda que em uma folha de jornal) o conteúdo de um tal negócio jurídico, assim como o «direito do morro» reconhece. SANTOS, Boaventura de Sousa. The Law of the opressed: the construction and reproduction of legality in Pasargada. Law & Society Review: The Journal of the Law and Society Association. v 12, n. 1, Fall, 1977. Trechos recolhidos de tradução livre e não autorizada do texto feita pelos pesquisadores do Programa Pólos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais, para uso interno de suas equipes de trabalho. 11 SANTOS, Boaventura de Sousa. Droit: une carte de la lecture déformée. Pour une conception postmoderne du droit. Droit et Société, n° 10, p. 379-405, 1988, p. 403. 12 Etienne Le Roy, ao identificar pelo menos quatro tipos de ordens jurídicas passíveis de serem encontradas na vida social (a saber: a ordem imposta, negociada, aceita e contestada), afirma que
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reflexão. Da pretensão das Luzes de forjar uma normatividade única, centrada no Estado e operando em seus limites, visando à generalidade e coerência de um sistema racional, passa-se gradual mas diametralmente à constatação de que, não sendo mais singular, a normatividade se desdobra em normatividades várias, que pululam em diversos contextos sociais, da maneira mais pontual, concreta e caótica que se poderia supor. Ou seja, no contexto de um Estado que vê em xeque seu poder regulador; de aparelhos judiciários submetidos a um julgamento rígido quanto a sua legitimidade; de sociedades cada vez mais descentradas que se produzem e se reproduzem em um ambiente de pluralidade e transição, a internormatividade é mais do que uma intuição crível a nos despertar para novas luzes sobre uma certa dimensão da mediação.
2.1 Nas asas do conceito
Tal dimensão – até então negligenciada e preterida pelo discurso oficial – remove o núcleo do seu conceito para além do aspecto da resolução de conflitos, em que se encerra a maior parte das definições praticadas atualmente. Diante de inúmeras classificações e concepções possíveis, apresenta o mediador francês Jean-François Six uma que, dentre outras, parece atender à riqueza de possibilidades abertas pela mediação. Segundo ele, um conceito de mediação tem que considerar preliminarmente que existem pelo menos quatro tipos de mediação: uma mediação criadora, outra renovadora; uma preventiva e outra curativa. As duas primeiras dedicam-se a fazer nascer ou renascer laços relacionais, enquanto as duas outras se destinam a administrar uma situação de conflito (seja ele eminente ou já deflagrado). As quatro visam estabelecer ou restabelecer a comunicação entre pessoas ou grupos: “[...] a natureza da mediação é, inequivocamente, relacional [...]”13. Esses quatro tipos de mediação realçam, portanto, uma de suas propriedades «[…] cada sociedade é uma mistura mais ou menos bem dosada e controlada dessas quatro ordens e que, na época contemporânea, nenhuma sociedade pode ser considerada como aquela que reproduz um modelo que lhe seja próprio ou que se mantenha na sua pureza, nem na França, nem na Africa, nem na China.» LE ROY, Etienne. La médiation comme ‘dialogie’ entre les ordonnancements de régulation sociale. In: YOUNES, Carole; LE ROY, Etienne (orgs.). Médiation et diversité culturelle. Paris: Karthala, 2002, p.85. 13 SIX, Jean-François. Le temps des médiateurs. Paris: SEUIL, 1990. p.164 e ss.
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centrais, qual seja: aliar a eventual resolução de um conflito à preservação dos laços relacionais em questão. Podem-se, além disso, pressupor quatro elementos indissociáveis do conceito de mediação, a saber: a terceira pessoa, o não-poder, a catálise e a comunicação. O terceiro, legitimamente credenciado a atuar, pode ser uma pessoa ou um grupo, a quem se franqueia a palavra, o tempo e a autoridade para intervir. Esse terceiro não tem nenhum poder além da mencionada autoridade franqueada, auferida e legitimada no processo e pelos procedimentos segundos os quais a mediação opera14. A mediação implica uma catálise na dinâmica das relações interpessoais ou intergrupais, vez que, como um catalisador, sem se desnaturar, altera os componentes e o produto final de uma determinada solução, acelerando o seu processo de transformação. O que se espera como resultado de tal processo não é outra coisa senão o estabelecimento ou a retomada da comunicação. Six ressalta ainda que, ao contrário da parte majoritária das experiências em mediação, a resolução do conflito não está necessariamente vinculada ao conceito de mediação. Segundo ele, o conflito, ao invés de ser ‘resolvido’ ou ‘expurgado’ por soluções artificiais, pode ser aceito e gerenciado pelas partes e adverte, lembrando Hannah Arendt, que “[...] é próprio do pensamento totalitário conceber o fim dos conflitos [...]”15. O que se deve evitar, porém, é que a violência se imiscua numa determinada relação, pois ela pode perverter o conflito, transformando adversários normais e legítimos em inimigos que não querem mais gerir seus problemas, mas, sim, dominar o outro. Esse conceito, tal como desenvolvido, interessa-nos sobretudo porque, ao liberar a mediação da cantilena há muito conhecida da “resolução de controvérsias”, reforça seu potencial preventivo, o que, conforme dizíamos mais acima, enfatiza a mediação como algo que pré-existe ao conflito, como um lugar de encontro, que é estado latente, intermediário, em que duas realidades (intersocietárias, interpessoais, intergrupais etc.) se esbarram e se redefinem ininterrupta e quotidianamente16. A
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Ibidem. p. 176. Sobre a questão, cf. Arendt (1989) apud Six. Op. Cit., p. 155 e ss. 16 Se afirmarmos com historiadores e antropólogos que não existe um período pré-cultural e que toda cultura vem de uma outra cultura, reafirmamos também o lugar da mediação na tensão entre uma cultura e outra como possibilidade de inspiração, confronto e mudança. O mesmo se diz para o indivíduo que desenvolve sua identidade com os olhos também voltados para sua alteridade, do que o conceito de autonomia é bastante elucidativo: “[...] ser autônomo é saber que se está agindo com
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mediação revela-se, então, considerada especialmente em sua faceta preventiva, como um ambiente propício e concreto para que uma hermenêutica diatópica possa se desenvolver. Ao tentar estabelecer ou restabelecer a comunicação, na troca de impressões, de silêncios, palavras e gestos que possibilita, a mediação veicula tanto valores quanto pretensões de direito dos atores implicados em um contexto específico. Essa troca pode tanto se consubstanciar num “leva e traz” ordinário, de todos os dias - em que se passa a maior parte da nossa sociabilidade - mas também ser qualificada, com a intenção de decifrar, de traduzir códigos de cultura e de interesse que a princípio não se conciliam ou não se entendem entre si.
2.2 Sobre a natureza da mediação
Segundo esse conceito ampliado, a mediação, além de 1) contribuir para a administração de um conflito e 2) para o incremento de práticas individuais e coletivas mais autônomas e cidadãs no gerenciamento da vida em sociedade, estaria igualmente apta a 3) abrir possibilidades para que um equilíbrio se estabeleça entre, de um lado, a busca comum de nos fazermos reconhecer e compreender - expressa na pretensão de sermos respeitados como iguais - e, de outro lado, a necessidade de, ao fazê-lo, sermos identificados e respeitados como únicos e singulares - na diversidade de nossas subjetividades e culturas17. Esse caráter multifacetado depõe sobre a natureza da mediação. Uma natureza singular, relacional, que definitivamente não mais se deixa confundir com as Marc’s (modes alternatifs de règlements de controverses) a que nos referimos acima. Três
um caráter autônomo em relação aos valores do outro. Nesse sentido, entende-se que a autonomia é uma necessidade humana que se desenvolve de forma dialógica. Especialmente a autonomia crítica desenvolve-se – e nesta acepção é que é própria do humano – tão-somente quando a pessoa é capaz de justificar suas opções e as formas escolhidas para orientar sua vida perante o outro e frente aos valores e regras de seu grupo ou de sua cultura.” Cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 32. 17 Taylor chama atenção para o fato de como o reconhecimento entrou para a agenda de várias correntes políticas como uma necessidade humana vital, a ponto de a negação do reconhecimento ser interpretada como uma forma de opressão. TAYLOR, Charles. Multiculturalisme, différence et démocratie. Princeton: Champs Flammarion, 1992. p. 41 e ss.
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fatores distintos, porém harmônicos entre si, justificam essa particularidade e tornam crível a hipótese hercúlea de uma tal tarefa tripartite. O primeiro, de caráter estrutural, refere-se ao fato de que uma mediação nestes termos tem seu espaço retórico alargado, em que parte e outra constroem, no processo, segundo regras por elas mesmas estabelecidas, balizas com as quais poderão viver. Para além de uma eventual resolução de conflitos, o que se busca é a permanência – ainda que reinventada – ou a criação de laços de afeto, de solidariedade ou de confiança, para poder seguir. Essa lógica parece atender e abarcar tanto uma simples relação de vizinhança, quanto uma parceria comercial ou um diálogo entre culturas aparentemente antagônicas18. O aumento do espaço retórico a que nos referimos se expande em proporção inversa à diminuição do potencial de violência impresso na comunicação, deixando supor, pois, que uma situação mediada possa apresentar um patamar de violência menor do que uma situação em que regras e soluções são impostas por terceiros autorizados a agir, como na hipótese de processos adjudicativos19. O segundo fator, digamos operacional, é uma conseqüência direta do primeiro: tendo em vista que esse espaço retórico se define e se fortalece a contrario sensu da lógica utilizada pela justiça dos tribunais e representa um giro copérnico em relação ao sistema silogístico que é, por excelência, naquele contexto desenvolvido, mais vozes (e vozes diversas) se habilitam para o discurso, apresentando-se como protagonistas (individuais ou coletivos) nesse mesmo espaço. A partir do protagonismo cidadão, a mediação vai se pautar pela legitimidade auferida (ou não) pelos argumentos e pretensões de validade trazidos ao discurso e não por um procedimento previsível de adaptação de uma lei geral a um caso específico20.
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Reafirmando o que se disse acima, tal lógica opera, por outro lado, como a alegoria de um processo anterior, em que, sempre se referindo à sua alteridade, o indivíduo constrói, a partir de uma série de negociações, mediações e conciliações, sua própria identidade – aquela mesma que, quando de um revés ou de uma hesitação, pode voltar à mesa das negociações e reivindicar por reconhecimento. 19 Espaço retórico é utilizado por Santos em referência aos discursos jurídicos. Neste sentido, argumenta o autor que: “[...] a amplitude do espaço retórico do discurso jurídico varia na razão inversa do nível de institucionalização da função jurídica e do poder dos instrumentos de coerção a serviço da produção jurídica.” SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1988. p. 59. 20 Esse argumento lastreia-se na compreensão da mediação como procedimento adequado ao modelo paradigmático do Estado Democrático de Direito, em que o resgate da autonomia dos participantes em decidir sobre um conflito é seu escopo maior. A mediação, ao resgatar a autonomia dos sujeitos, trazendo-os à cena pública para o exercício de uma autonomia privada, torna-os co-
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Assim, esse modo de operar é compatível (e mesmo a reverencia) com a noção de direito e de internormatividade que evocamos mais cedo, pois atualiza quotidianamente e na presença de todos os interessados a diversidade das normatividades
produzidas
ou
co-produzidas
por
esses
mesmos
atores,
normatividades estas prontas a se agregarem a sistemas normativos espontâneos, autônomos e marcadamente dialogais. Por outro lado, o protagonismo cidadão de que falamos vem se coadunar também com a idéia de que diferentes saberes, diferentes maneiras de conhecer e experimentar o mundo, vão ser removidos de seu cantão de marginalidade, onde a ciência, por princípio, os confina. Noutras palavras, tal protagonismo, podendo trazer a lume a experiência ao mesmo tempo quotidiana e milenar do senso comum, contribui para a criação/reinvenção de pequenas e novas tecnologias (coincidentes ou não com novos direitos), adaptados sob medida ao viver diário21. Simetricamente à lei e à ciência que conformaram e conformam nossa visão de mundo até aqui, a partir de um monopólio restrito a poucos credenciados, confrontam-se essas novas e pequenas tecnologias, engendradas em um contexto amplo, emancipador e desdobrável22.
autores de direitos, o que atribui legitimidade - e por isso validade - a este mesmo direito. Essa reflexão, baseada no marco teórico-metodológico de Jürgen Habermas, pode ser encontrada nos seguintes registros: ROMÃO, José Eduardo Elias. Justiça Procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva do Direito de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005; NICÁCIO, Camila Silva. La médiation sociale: une expérience brésilienne. Tese de mestrado defendida na Universidade Paris III, Sorbonne Nouvelle, outubro de 2005 e NICÁCIO, Camila Silva; OLIVEIRA, Renata Camilo de. A mediação como exercício de autonomia: entre promessa e efetividade. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Org.) Cidadania e inclusão social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 111-120. 21 Faz-se referência expressa à Boaventura de Sousa Santos que, ao denunciar o fascismo epistemológico com que a ciência moderna (traduzida pelo “pensamento ortopédico” e pela “razão indolente”) tem subjugado os outros saberes, aponta para a “ecologia dos saberes” como o reconhecimento da pluralidade de saberes existentes no mundo e da impossibilidade de que eles existam (todos e cada um) sem referir-se aos demais, numa relação de comparação que, embora “limitada” (já que é também ilimitada a diversidade epistemológica do mundo), pressiona ao extremo os limites entre um saber e outro, podendo ultrapassá-los ou deslocá-los. Santos, 2008: 28. 22 Outras referências contempladas pela noção de mediação ora apresentada são a “sociologias das ausências” e a “sociologia das emergências”. Ao contrapor-se à ciência moderna, de que a supremacia da lei é um dos corolários, tais noções denunciam que sua “[...] racionalidade indolente [...] não reconhece e, por isso, desperdiça muita da experiência social disponível ou possível no mundo. Muita da realidade que não existe ou é impossível é activamente produzida como não existente e impossível. Para a captar, é necessário recorrer a uma racionalidade mais ampla que revele a disponibilidade de muita experiência social declarada inexistente (sociologia das ausências) e a possibilidade de muita experiência social emergente, declarada impossível (sociologia das emergências).” SANTOS, Boaventura de Sousa. «A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal». Revista Critica de Ciências Sociais. Coimbra, n° 80, p. 11-43, 2008. p. 20.
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Para inserir o terceiro e último fator, este ontológico, que denuncia igualmente a natureza singular da mediação e viabiliza sua tripla tarefa, vale-se da pergunta seguinte: se a mediação não visa apenas resolver um conflito, o que de fato outra coisa ela pretende? A que anseio ou procura ela responde? Tal questão é, no nosso entendimento, o principal diferencial desta prática. A mediação quer integrar. O que ela propõe é um esforço vigiado, um exercício de tolerância, que tente não somente evitar as derivas como também representar um canal aberto em que um manancial de cooperação e cuidado recíproco possa emergir. Algumas pistas são trazidas a esse contexto: Etienne Le Roy, ao perscrutar sobre novas funções da mediação, faz corresponder-lhe a noção de boa governança, como um valor fundador da pósmodernidade; ao passo que Younes, vislumbrando no mediador um arquétipo do sujeito pós-moderno, pois que consciente de sua própria visão de mundo e capaz de perceber outras visões diferentes da sua, pergunta-se se a mediação, para além de consagrar um certo modo de socialização, é suscetível de favorecer o alinhavo de laços sociais baseado nos princípios do respeito e do reconhecimento23. Ao pensar nas características que atribuímos à mediação (o testemunho ao pluralismo e à internormatividade; o caráter dialogal; o campo retórico alargado; o protagonismo cidadão), acreditamos que sim, que não só ela possa fazer frente ao desafio de integrar, como que tal integração faça parte constitutiva e central do seu conceito e se refira a uma integração no sentido forte, qualificada em reconhecer e tolerar, pois atenta tanto às diferenças quanto às semelhanças. A mediação, como canal integrador, poderá, nestes termos, ao invés de perguntar se é possível a igualdade na diferença (acentuando a improbabilidade da igualdade), afirmar ser possível algumas diferenças na igualdade (reforçando a possibilidade e premência do respeito, do reconhecimento e da tolerância). A observação concreta de alguns exemplos deixa sondar e augurar essa possibilidade.
2.3 Para fazer operar o conceito: a mediação em alguns exemplos
23
LE ROY, Etienne. La médiation comme ‘dialogie’ entre les ordonnancements de régulation sociale. In: YOUNES, Carole; LE ROY, Etienne (orgs.). Médiation et diversité culturelle. Paris: Karthala, 2002, p. 95 e YOUNES, Carole. «Médiation, subjectivisation de la norme et décentrage du sujet», In: YOUNES, Carole; LE ROY, Etienne (orgs.). Médiation et diversité culturelle. Paris: Karthala, 2002, p. 62 ss.
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O Brasil é um país de um sincretismo religioso indiscutível. Em Olinda, por exemplo, no nordeste de seu território, a população é quotidianamente confrontada com todo o tipo de manifestação de fé: pela manhã tem-se o carrilhão das igrejas católicas, à tarde, as pregações e palmas evangélicas e, à noite, ressoam na velha cidade os tambores da umbanda24. Neste contexto de antagonismos, movimentação e barulho, os fiéis de uma determinada crença facilmente se exasperam com os das outras. Sem falar nos ateus, que imunes ao feitiço das religiões, amaldiçoam todas elas. Entre a igualdade de poderem todos celebrar e o direito de cada um expressar sua fé específica, há que se encontrar um meio caminho para que toda uma população se beneficie e possa continuar. Já que estarão lá, como sempre estiveram, as gentes. Testemunhas ideais, líderes comunitários, os próprios representantes desses diferentes credos são todos e cada um potenciais agentes em torno de um compromisso que torne mais viável e harmonioso o viver comum25. Em um outro contexto, evoca-se o exemplo de algumas escolas francesas, em que, não raro, crianças, filhas de franceses, convivem com outras crianças - não menos francesas que as primeiras - filhas de imigrantes. Ainda que estas estejam inseridas e educadas em um contexto sócio-cultural bastante diverso daquele de seus pais, há que se resguardar a expectativa e direito legítimos (ainda que possam parecer rarefeitos e supérfluos aos olhos de alguns se comparados a direitos mais “importantes”, com mais “pedigree,” como a cidadania ou o trabalho) de terem o passado paterno/materno evocado e reconhecido como um momento decisivo de suas histórias, em que se buscou uma vida melhor, em que se enfrentaram dificuldades e separações, enfim, em que foram, homens e mulheres, muito mais do que simples invasores, usurpadores da cultura ocidental26. Os professores, por
24
O texto do autor Dias Gomes, O pagador de promessas, conta como Zé do Burro, depois que uma tragédia lhe ocorre, faz uma promessa à Iansã, pretendendo pagá-la na Igreja de Santa Bárbara, católica, a quem a divindade do candomblé é normalmente associada no registro sincrético. Em <http://educacao.uol.com.br/cultura-brasileira/orixas.jhtm>. Acesso em: 26 de julho de 2008. 25 Como «testemunha ideal» nos referimos à pessoa ou instituição que, conhecedora de um determinado contexto local (social, político, econômico, religioso etc.) e depositária de legitimidade junto à sua comunidade, fosse capaz de chancelar um processo de comunicação em torno de interesses comuns. Normalmente, em pequenas comunidades, essa testemunha coincide com o líder comunitário ou presidente da associação do bairro. Metodologia de Pesquisa do Programa Pólos de Cidadania, documentação interna. 26 O «direito à memoria» (digamos assim, esse direito de «luxo») foi pungentemente evocado pelo historiador e ensaísta búlgaro-francês Tzvetan Todorov, quando da abertura do Ano Europeu do Diálogo Intercultural, na sede da UNESCO em Paris, março de 2008. Ainda sobre a questão dos «novos direitos e novos atores de direito», cf. NICÁCIO, Camila Silva. «Violência na televisão: a juventude colonizada». Revista Outro Olhar. Belo Horizonte, n. 6, 2007. p. 17 e ss.
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exemplo, mas não somente, seriam legítimos caucionadores de um gesto educacional sadio de troca e integração, que envolvesse pais, alunos, comunidade escolar enfim. Ainda neste diapasão, é de se recordar do ocorrido na Nova Caledônia, indicado por alguns como das mais bem sucedidas mediações na história francesa recente27. Colônia desde meados do século XIX e hoje território anexado à França (segundo um status sui generis), este arquipélago cravado na região Melanésia no Pacífico Sul, viu-se, sobretudo a partir dos anos 80, às voltas com uma disputa que dividiu ao meio a região e desencadeou uma onda de violência de parte a parte. De um lado, os que clamavam por autonomia e se posicionavam pela independência do jugo francês; de outro, os que, leais à bandeira tricolor, reivindicavam a manutenção do vínculo. A região, embora mergulhada em uma guerra civil, acolheu o que se chamou de a “Missão do diálogo”, levada a cabo por um grupo bastante heterogêneo, formado por representantes da sociedade civil francesa (dentre os quais um padre católico, um protestante, um maçom e três políticos). Todos, por um motivo ou outro, concernidos pela questão caledoniana, para lá foram na tentativa de identificar o que estava em jogo e tentar contribuir para que os habitantes conseguissem responder a duas questões centrais: “Como vocês vêem a situação?”; “Um futuro é possível? E em que condições?”28. Tais negociações estariam à origem do Acordo de Matignon de 1988, que, ao tentar impedir o recrudescimento de ódios raciais, visou propiciar uma descolonização gradual durante um período de dez anos, ao final de que a população votaria contra ou a favor de sua autodeterminação29.
27
Ao brindar o acontecido em terras melanésias, o mediador Jean-François Six relembra que «[…] dois meses mais tarde (de assinado o acordo), Mikhail Gorbatchev mandava investigar sobre a maneira pela qual foi realizada a « Missão do diálogo » em Nova Caledônia. A missão torna-se um modelo de mediação política». SIX, Jean-François. Le temps des médiateurs. Paris: SEUIL, 1990. p. 52 . 28 Quando perguntado por Jacques Lafleur (líder não-independentista) sobre o «que a França quer » ?, o padre católico Paul Guiberteau responde: « Não sabemos. Não estamos aqui para dizerlhes o que a França quer: estamos aqui para saber se há uma solução aos problemas que ocorrem na Nova Caledônia. Vocês nos dirão qual será a solução ». LEMPEREUR, Alain Pekar (Org.), Modèles de Médiateurs, médiateurs modèles. Paris, ESSEC –IRENE, 1998, p. 16 ss. 29 Apesar de ter sido, à época, considerado como um passo importante em direção à paz local, acontecimentos futuros quebrariam a harmonia precária estabalecida pelo acordo. A seqüência é dramática e conhecida de todos: em 1989, Jean-Marie Tjibaou, líder independentista, é tido como traídor por ter avalizado Matignon e é assassinado pelo também independantista kanak, Djubelly Wéa. O referendum previsto para 1998 seria adiado por um novo acordo, o de Nouméa, deixando entrever que uma paz continuada (bem como as mediações que lhe servem de alicerce) merecem um zelo e trabalho diários, sob pena de serem apropriadas por políticos e conjunturas de poder de
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Do outro lado do mundo, mas nem tão longes assim da Nova Caledônia, dois vizinhos de uma favela brasileira se desentendem em função de uma razão mais trivial, mas não menos incômoda: o volume do som. A vida em favela obriga a uma coexistência muito próxima, quase fusional, entre famílias diferentes que se amontoam em pequenas casas geminadas umas às outras. Para o vizinho do primeiro andar, que trabalha doze horas diárias durante o turno da noite, o dia e a tarde são períodos de descanso e refazimento. Para o vizinho de baixo, que mantém um bar logo na entrada de casa, esse horário é precioso para, de outro modo, garantir o ganha-pão e alimentar a família: o bar vende mais quando os clientes se embalam pela música e se esquecem dos revezes do dia-a-dia. Sem mais, a animosidade está armada. Encantoados lado a lado, cada um com sua razão justificada e sua fúria incontida se vêem obrigados a alinhavar um compromisso, antes que as descortesias e as pequenas violências diárias se degringolem em uma ruptura intransponível30. Tais exemplos, sejam os mais vultosos, sejam os mais corriqueiros, testemunham igualmente sobre uma face escondida da mediação, que reafirma a natureza singular e pouco investigada desta prática. Não mais confinada à questão do acesso à justiça, a mediação quer responder a questões que não se colocariam à justiça dos tribunais ou não se responderiam por ela (ou somente por ela)31. Os casos abrem margem, cada um à sua medida, para que a mediação tente cumprir com a tarefa tripartite que anunciamos mais acima, qual seja, a de aliar à administração de um conflito, o potencial autônomo de indivíduos e grupos e o plantão. Por outro lado, quinze anos após o assassinato do líder Tjibaou, o perdão e a reconciliação entre as famílias, desde então inimigas – os Tjibaou e os Wéa – vieram em forma de procissão, oferenda e cânticos, demonstrando que se a ameaça à paz nos segue de longe, a possibilidade do perdão não está menos atenta. Cf. Tijbaou, le pardon – réconciliation en terre kanake, documentário realizado por Gilles Dagneau e produzido por AAA productions, 2006. 30 Caso concreto recolhido dos atendimentos feitos à população do Aglomerado Santa Lúcia, Belo Horizonte, Brasil, pelo Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Documentação interna. 31 No norte do Brasil, precisamente no Estado do Amapá, algumas iniciativas suscitam curiosidade e reflexão. Dentre elas, destacamos o projeto do Juizado Itinerante Fluvial, que tem por objetivo levar a conciliação/ mediação às populações ribeirinhas. O barco leva a bordo juiz, escrivão e outros, funcionários por um percurso de 200 quilômetros ao longo do rio Amazonas. As questões normalmente tratadas são divórcios, casamentos, guarda de menores, pequenas cobranças e briga entre vizinhos. Poder-se-ia dizer que se trata de mais uma tentativa «juridicizante» da parte do direito do estado. Mas, na realidade, esse encontro acontece de maneira diferente. Respeitoso dos costumes locais, tal ritual faz pensar no inesquecível Juge Feng perambulando com seu burrinho pelos platôs chineses. Embora representantes do direito dos tribunais, os dois juízes, o da realidade e o da ficção, estão atentos a uma expectativa maior que é preciso atender: manter a unidade do grupo social, sobretudo quando tudo ao redor parece tão inóspito e selvagem. Disponível em: <http://www.tjap.gov.br>. Acesso em: 29 de julho de 2008.
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equilíbrio entre pretensões que se justificam tanto sob o espectro da igualdade como da diferença. Os casos dos vizinhos na favela ou das diferentes igrejas em Olinda, além de exigirem o exercício e a mobilização cidadã em torno de um interesse comum, podem levar os envolvidos a transigirem e negociarem tanto sobre os topoi vigentes (como o da eqüidade, da boa vizinhança ou da justiça), quanto sobre as regras formais de direito, tal como a que proíbe estritamente o barulho desmesurado após as 22 horas. Podem, sobretudo, inspirar uma fórmula intermediária, em que se levem em conta as duas argumentações, sem que nada lhes pareça estranho ou inapropriado. Se um consenso se anuncia improvável, tais ferramentas tendem a arrefecer a conflituosidade e convidar os moradores a um pacto renovado. O contexto dos filhos de imigrantes nas escolas francesas ou o sucedido em Nova Caledônia expõe igualmente a premência da participação de parte a parte, enquanto reclama que uma tal participação seja qualificada a ponto de identificar respeitando-as - igualdades diferentes e diferenças iguais. Entre kanaks e caldoches, entre filhos de imigrantes e filhos de franceses, um lugar de mediação comunica tanto as proximidades quanto as distâncias culturais; este lugar, por si só, alerta para o fato de que se a erva ultrapassa para o lado vizinho é porque existe um muro em comum. E todos os muros e cortinas que já se construíram até hoje entre os homens trazem essa dimensão intrinsecamente paradoxal. Os exemplos pululam em todos os contextos e culturas e o desafio de compreendê-los se impõe inevitavelmente.
3 Conclusão: a terceira margem
O mediador Six afirma que a mediação evoca um código ternário (e isso também testemunha sobre sua natureza singular), diferente daquele em que opera a justiça tradicional,
este
binário,
em
que
necessariamente
haverá
vencedores
e
perdedores32. A contemporaneidade ela mesma, imersa em seus cenários plurais, polifônicos e heterogêneos, parece ter hoje a marca distintiva do 3 e não mais do 2,
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SIX, Jean-François. Le temps des médiateurs. Paris: SEUIL, 1990. p. 165 ss.
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pois que os reducionismos só fizeram até aqui separar, onde se poderia unir; discriminar onde se poderia reconhecer. Se pensarmos no conto A terceira margem do rio do escritor brasileiro João Guimarães Rosa, poderemos igualmente imaginar um lugar médio, que não se conhece, nem se pode de maneira clarividente ver ou tocar. Que é só risco e promessa, mas implacável, como o próprio curso do rio. Ao perguntarmos, pois, sobre o lugar da mediação entre igualdade e diferença, é sem hesitar que responderíamos que seu lugar é aquele intermediário – metalingüisticamente calculado e justificado – em que o Outro é também um Mesmo33. Em meio à infinitude de definições e classificações, tentamos neste espaço explicitar um conceito de mediação propício à realização não só de um diálogo intercultural, mas social e interpessoal. Essa prática, tal como apresentada, assemelha-se à época contemporânea, para alguns pós-moderna, que, marcada por toda sorte de questionamentos, fraturas e ruínas de velhos parâmetros, é, sobretudo, um lugar intermediário, de transição entre um momento histórico e outro, e por isso, também aposta e construção do que é novo, do que é renovado. Atenta aos riscos e dificuldades que se anunciam, a mediação, contudo, tem diante de si um arsenal de ferramentas capazes de, eventualmente, realizar seu potencial integrador a partir de, em meio à cacofonia, atender à necessidade global de
enriquecer
processos
de
comunicação,
inclusão
e
reconhecimento
(homogeneidade) e uma busca constante - em meio ao uníssono do imperativo de viver em sociedade - pelo respeito à subjetividade e identidade, seja ela ideológica, cultural ou religiosa (diversidade). Referências
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Como citar este artigo : NICÁCIO, Camila Silva, “Mediação para a autonomia, alteridades em diálogo”, in Maria Tereza Fonseca Dias (org.), Mediação, cidadania e emancipação social, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2010, p. 151168.
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Introdução à Comunicação Não Violenta (CNV) reflexões sobre fundamentos e método Marcelo L. Pelizzoli1 (Artigo Publicado em Pelizzoli, M.L. (org.) Diálogo, mediação e cultura de paz. Recife: Ed. da UFPE, 2012.) Introdução Pretendo aqui refletir em torno do cerne filosófico e do cerne metodológico da CNV, numa visão ético-prática, a fim de despertar para a importância do tema e de como ele pode ser uma prática revolucionária para as relações humanas, com base na comunicação. A CNV é hoje uma das “ferramentas” mais poderosas para lidar com conflitos negativos, em escolas, em famílias, ou no âmbito da justiça – visto que, por exemplo, tornou-se uma das bases fundamentais das Práticas Restaurativas. Comunicar-se é nada menos que o ápice do fato da vida estabelecer-se como relação. Somos seres num mundo vital, sistêmico, onde os indivíduos encontram sentido apenas em relação, relacionados desde seu corpo e alma, a ponto de não se poder identificar um indivíduo de modo isolado a não ser por uma operação artificial. Tal como nosso corpo é entendido como organismo, conjunto de membros, órgãos, tecidos, células, moléculas e energia, tal como construímos identidade apenas e desde sempre como família, parentalidade, sociabilidade e cultura, assim mostra-se o todo da comunicação em nossa vida. A comunicação, como linguagem, deve ser entendida primeiramente como dimensão ontológica (essencial, constitutiva), e não apenas instrumento para o ser humano entrar em contato com outrem por meio da fala. Comunicação é o fato de exercer a vida sistêmica, e tal como a linguagem, constitui o que somos a cada momento, a nossa historia, as narrativas, memórias, feitos, sonhos, ideais, textos, discursos, enfim, signos. Somos seres de significação, desde quando um nosso ancestral símio emitia sons em cima de uma árvore para avisar ao grupo sobre um animal predador, até chegar às idiossincrasias informáticas em que um sujeito torna-se um blog ou um apêndice de signos multifacetados e de multimeios. Somos seres da identidade, grupo, e também da alteridade, da estranheza. Qualquer teoria ou método que ignore o fato da identidade interdependente, familiar, comunitária, ecossistêmica, em que podemos observar a dimensão dos vínculos gregários e afetivos, ou ainda, que ignore o Desejo, ou que ignore a alteridade e a estranheza da vida – o fato da vida como conflito que nos compõem e que o somos - está fadada à superficialidade. Algumas em nome da matéria, e do materialismo, outras em nome do idealismo, algumas em nome de uma natureza humana egoísta, outras em nome de uma natureza humana boa. A CNV será apresentada brevemente por nós em aspectos filosófico-comunicacionais relevantes e ao mesmo tempo como ferramenta metodológica. No entanto, devemos advertir que se alguém entende a mesma como uma filosofia, a qual gravita em um corpo especulativo como centro, e que exige grandes estudos e discussões lógicas, não entrou de fato no espírito desta visão-ação. De igual modo, se alguém 1 PhD. Pós-doutor em Bioética. Professor de Resolução de Conflitos, CNV e Práticas Restaurativas no ME em Direitos Humanos e na Especialização em Direitos Humanos da UFPE e nos cursos da AMANE. Prof. do ME em Saúde Coletiva da UFPE. Formado em Constelações Familiares – Hellinger Institut. www.curadores.com.br Contato: opelicano@gmail.com
pensa que entenderá do assunto e o dominará a partir de um esquema metódico, feito receita de bolo ou manual de instruções, estará com uma forma vazia nas mãos. A intuição (conteúdo) sem conceitos carece de formas; os conceitos sem a intuição, sem o recheio, são vazios, kantianamente. De tal modo que, para entrar no mundo da compreensão e da linguagem, seu sentido inter-humano profundo, bem expresso na palavra diálogo, é preciso aceder ao ser-no-mundo, aos valores comunitários fundamentais que nos constituem como seres sociais. Quando li o chamado de curso sobre Comunicação Não-Violenta e tive a oportunidade de fazê-lo com seu criador Marshall Rosenberg, em 2003, eu tinha a ideia de uma metodologia algo dentro de uma ética comunicativa convencional, ou mesmo utilitarista norte-americana, ministrada por um sujeito alinhado, ar de bonzinho; por outro lado poderia ser um sonhador das pombas de paz, quiça vestido de branco, com uma aura espiritual nobre. Mas para minha surpresa, encontrei um sujeito forte, assertivo, com uma expressão quase irada em alguns momentos; e que por vezes tomava nas mãos alguns bonecos de animais, como girafas confrontadas com lobos, e ensinava as pessoas a falarem como seres humanos de verdade, e que olhava de modo penetrante e familiar. Foi uma aula de comunicação, de simplicidade, assertividade, confronto de afetos e dores em jogo ou ocultas, formas corretas e diretas de se dizer o que se quer e deseja, de si e dos outros. Do mesmo modo, não era apenas uma aula, mas um modo de acessar uma inteligência relacional em forma de linguagem, que toca virtudes fundamentais da vida social e dos grupos. “Caiu mais uma vez a ficha”. Mais do que qualquer outra coisa, a CNV é a tomada de consciência de nossas necessidades, nossa humanidade, nossa capacidade de conexão e nossa capacidade de comunicação, para além de qualquer linguagem rebuscada ou especulações gramaticais e lógicas. Igualmente, colhe sua força não de um constructo artificial utilitarista que vem sanar algo, mas sim das vontades prementes de entendimento, relação e superação de conflitos que habita em todo ser humano, salvo casos patológicos ou sociopatias empoderadas de modo incontornável. É esta consciência, com roupagem de teoria e de prática, que agora, de modo reducionista e livre2, trago à tona, alertando que o que vale são os processos vivos, pois as palavras são arremedo tateante do que ocorre no encontro humano, sempre “ím-par”, momento único, kairós ou graça humana, instante em que fulcros de vida plena podem se abrir, ou passar desapercebidos. 1 – (Ato I - O sujeito) Quem somos nós se não um ponto em conjuntos infinitos de uma teia de interdependência, vulnerabilidade e responsabilidade ? Quando o sujeito pergunta por si mesmo, encontra apenas elementos os quais une num conjunto, e que de fato não pode ser pensado separadamente. Ele busca compor sua identidade no meio desta multiplicidade, porém é absolutamente impossível encontrar-se como um objeto definível; ele precisaria apontar tudo aquilo que não é ele mesmo para então restar o que é ele mesmo. Em geral, nos definimos por nomes, os quais são dados dentro de um grupo, ou significam algo, ou já existem, ou estão dentro de uma 2 Trata-se de uma exposição mais própria da questão das relações e conflitos, em que insiro outros elementos além da teoria pura da CNV; somente no Ato IV foco mais diretamente no seu método.
língua e cultura, ou mesmo, produzem algum som ou signo. No entanto, mesmo sem saber bem quem se é, o sujeito “sabe” de coisas que são necessárias e importantes para sua vida. Digo isto, pois quando olhamos a fundo os caminhos (métodos) ou concepções em torno das relações e conflitos, e o que a CNV traz, nos vemos a refletir sobre quem somos e o que buscamos; “quem somos” não é uma essência metafísica, racional ideal e pronta, ou um falso ego idealizado, mas como nos relacionamos, como nos afetamos e atingimos outrem – bem como nosso ambiente vivo. Neste sentido, cabe bem a pergunta sobre qual o grau de consciência que possuímos a cada momento em que vivemos o mundorelações. De igual modo, se há conflitos “lá fora”, de algum modo eles tem a ver comigo, e me atingem. E, se entro em conflitos negativos, preciso olhar sistemicamente, e ver em profundidade a parte que me cabe; mesmo aquilo que não me cabe, na medida em que acontece passa a fazer parte do que me cabe, de minha historia; e assim, preciso lidar com eles, resolvê-los de algum modo, dentro e fora de mim. Aqui podemos trazer a energia da interdependência e da visão sistêmica. Se mudo algo em mim, mudo algo no mundo, mesmo que seja pouco. “Quando me movo, o mundo sai um pouquinho do lugar”, diz o cancioneiro pernambucano. De outro modo, trata-se do que chamo de circulação do pathos: a vida social é regida por trocas de coisas e de energias, de climas emocionais, de estados mentais, de dívidas e direitos, num verdadeiro jogo sistêmico com algumas regras e com muita complexidade e possibilidades em aberto; circula entre nós essencialmente amor e ódio, ligação e repulsão. Fundamentalmente, a circulação da afetividade (e os vários níveis em que ela ocorre, como amizade, companheirismo, sexo, amor, sentimentos, filantropia, luta e outros) é a “liga” ou a energia básica que interconecta os sujeitos. Tal pode ser dito pela noção física de campo, ou ainda com a noção biológica de campos mórficos, ou mesmo a ideia de paisagem mental ou mandala em que atuamos3. Encurtando os termos, pensar os conflitos exige indagar como o meu “ser no mundo” tem se exercido, o que me cabe diante da vida conflitiva, que envolve a mim e a meus próximos; como tenho ferramentas para lidar com eles, como me preparei emocionalmente para lidar com eles, como posso ajudar outrem a lidar com eles ? Igualmente, entender que lidamos com um campo de relações complexo, delicado, conflitivo, frágil, mas que ao mesmo tempo visa ao equilíbrio, satisfação, resolução; campo este em que Sujeito e Objeto (ou Eu e Outro) são profundamente codependentes, numa teia viva que nos ultrapassa, vem antes de nós (tempo, história, antepassados, tradição), e vai além de nós (futuro, novas gerações). Com isto, colocamos em causa a ideia de sujeito como ego controlador, dominador, senhor de si independente do que ocorre com outrem, pretensamente consistente e isento de máscaras e fragilidades, supostamente imortal e inatingível, fora do sistema ou do jogo da vida, do amor(dor) e da morte. Portanto, focar a justiça em termos opositivos simples de “culpados X inocentes”, pode ser um método e olhar bastante arcaico e violento; pode ser uma forma de apoiar sutilmente a teoria do “olho por olho, dente por dente”; pode ser um modo reducionista de positivar (positivismo) a complexidade humana, “juridificando” dogmaticamente os conflitos humanos e as relações sociais (ou ainda homogeneizando as disparidades); pode ser a reprodução de um dos maiores esquemas mentais viciados e esquizofrênicos do ocidente: o Bem contra o Mal tout court. E assim, afirmar o modo de projeção da Sombra sobre os 3 Vide Pelizzoli, 2010. Cabe aqui, entre outros autores, ver o pensamento de Marcel Mauss na questão da Teoria do Dom, a ideia dos campos mórficos de R. Shaldrake, e a ideia de inseparatividade e mandala, do budismo tibetano.
diferentes, vulneráveis, loucos, prostitutas, excluídos e congêneres.4 A CNV se arrisca a usar a palavra compaixão para falar de nossa natureza humana basilar – portanto relacional – no sentido daquilo que mais nos toca: o sofrimento e a busca da felicidade5. Deste modo, não se trata de “ter pena de alguém” - o que em geral oculta nossa dor, tanto quanto a humanidade do outro, e nos colocando num estatuto acima dele. Não se trata de ser “bonzinho”; não se trata ainda de ser religioso, ou de ceder sempre, de apiedar-se propriamente, e de ser sempre emotivo. Trata-se de entender e sentir profundamente que estamos no mundo da vulnerabilidade e que todos queremos ser felizes, todos fazemos muitas coisas boas e ruins em nome disso. Por vezes, somos levados pela ignorância de nossos valores e anseios mais profundos. Em geral, estes anseios tem a ver com a desgastada palavra amor; queremos ferozmente ser amados, queremos amar, ser úteis, realizar a sociabilidade, nem que seja direcionada basicamente a familiares e amigos. Quando este processo relacional é afetado/ferido – visto que não somos apenas um sujeito racional, material, objetal, frio e calculista – e ocorre o que chamamos de violência, minha ou de outrem, então nós sofremos. Em tempos de desagregação e crise do sujeito (altos índices de depressão, estresse, suicídio, ansiedade, tristeza crônica, fadiga emocional, traumas de várias ordens, consumo enorme de psicofármacos etc.) mais do que nunca precisamos e queremos a todo custo nos conectar com a nossa natureza afetiva, cuidadora, de valores humanos, tais como amizade, generosidade, solidariedade, apoio e outras. Mas, por vezes, erramos o caminho, e acabamos por tomar vias que aumentam o sofrimento e que violentam. Por exemplo: dependência de drogas e uso abusivo de álcool, vinganças, consumismo desenfreado, “esportes” violentos, adicção
de todo tipo, culto narcisista da imagem, culto do poder e do
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dinheiro, fama e sucesso a todo custo . Tomar consciência, estar presente e cultivar o âmbito da compaixão, remete a esta conexão com valores os mais importantes de nossa vida social e da nossa natureza ontológica, relacional. Pontualmente, se olho o outro pelo ângulo da vulnerabilidade em comum, por mais que ele exiba força e violência, consigo ter uma compreensão mais profunda das conexões, bem como tomar posição mais assertiva nos conflitos7. Posso, por exemplo, ancorar em mim uma paisagem mental propícia à relação, o que favorece energeticamente os momentos de encontro e pacificação de conflitos. Ich bin du wenn ich bin ich8 Por fim, este contorno inicial apresentado vale fundamentalmente para que nos demos conta, no conflito, do que ocorre conosco, e com o outro; de qual complexidade humana se trata quando vemos de fato um sujeito, o que ocorre quando estou diante de algo que é mais do que um objeto capturado por meu olhar egoico. 2 – (Ato II - O Outro) A Ética como qualidade relacional, comunicação e não-violência “Por que entramos em atrito ? Por que nos desentendemos ? Por que brigamos ?” Este é um modelo 4 Vide Pelizzoli, 2009, cap. 11. 5 Tanto para Aristóteles quanto para os Budas, escapar do sofrimento e buscar a felicidade é a motivação básica dos seres humanos, compondo a base última de todo projeto, toda meta, todo esforço. 6 Cf. Pelizzoli, 2011, cap. 4. 7 Vide Rosenberg, 2003, cap. 1. 8 “Eu sou tu quando eu sou eu”. CELAN, P. Lob der Ferne. In: Sete rosas mais tarde: antologia poética. Lisboa: Cotovia, 1996.
de frase que utilizo nos cursos de resolução de conflitos, interpondo, depois da pergunta, um dose grande de silêncio e de olho no olho com os membros do grupo. Mais do que constrangedor, este silêncio e olhar têm a capacidade de despertar tons inaudíveis por trás das conversas que acontecerão no decorrer de um trabalho que tem uma característica psicossocial importante: acessar alguns obstáculos – emocionais, afetivos ou relacionais – que todos nós queremos superar em prol de nossas necessidades de bom relacionamento com a vida. Para além da visão de culpa de um ofensor ou de vitimização de uma pessoa, o que se procura é a superação das condições de condicionamento ao “modelo defesa-ataque”, ou “modelo do lobo”, como diz Rosenberg, para então acessar a escuta fundamental e as palavras positivas, geradoras - como pede a Terapia Comunitária, reconstruindo com honestidade algumas causas e efeitos psicossociais de violência. No âmbito da regulação social, seria como acessar a uma ética fundamental, entendida para além dos moralismos formais, legislativos, normativos, religiosos. Ética vem de ethos, e diz da morada, de como habitamos um espaço-ambiente, portanto, sempre relacional. Ética, entendo aqui como capacidade de relações concertadas e consertadas com a vida, capacidade para lidar com conflitos de modo positivo. Entendida assim, a CNV é uma ótica e uma ética prática, em que devemos - sem negar valores e responsabilidades - nos colocar para além do bem e do mal, além da moral dicotômica. Eis porque uma das frases essenciais e que resume muito desta visão diz: “Para além do certo e do errado, existe um lugar: somente ali nos encontraremos”9. De igual modo, falar em ética remete à questão da alteridade. Alteridade é a característica de algo ou alguém ser outro de fato, permanecer na diferença; ou seja, ele não se dobra à identidade, ao Mesmo, à domesticação, ao familiar, ao gueto10. Ter em mente este “princípio de realidade” é essencial para uma das tarefas mais importantes da vida: aceitar a vida como ela se manifestou, o outro com seu ser próprio. Para a CNV, dá-se um acontecimento salutar quando aceitamos outrem como tal: ocorre algo dentro dele, e dentro de mim; por exemplo, ocorre um sutil despertar de compaixão, ou ainda, ocorre um vislumbre de que a vida tem algo de adequado mesmo diante da inadequação, há beleza, há algo maior que nos supera, e que para além de nossa normose forçada, há possibilidade de amar e de ser amado. Há um aspecto curativo na aceitação de outrem como tal. Isto não significa que necessariamente eu precise aceitar o ato feito ou certos comportamentos dele, mas sim aceitá-lo como pessoa que tem um lugar no mundo. Para a Cultura de Paz, como diz o conhecido mestre brasileiro Lama Padma Samten, trata-se de “dar nascimento social” a alguém; fazê-lo nascer para você e para um grupo, olhando-o verdadeiramente; nos casos de crianças e adolescentes, especialmente em conflitos com a lei e em desagregação familiar, isto é absolutamente necessário e básico para qualquer recomposição e medida social educativa. Para a CNV, viver em comum é viver na base de relações e conflitos, tanto quanto para a Ética da Alteridade – uma das fontes que inspiram minhas obras11. Ou seja, não temos uma igualdade na base, mesmo que tenhamos muitas coisas semelhantes e necessidades em comum. Habitamos um mundo de muitas formas, da biodiversidade, do múltiplo, das muitas faces, línguas, sexualidades. Ao fundo de tudo há tempo e mudança, insuperáveis: nada permanece igual. Portanto, a questão não é como evitar a mudança, a diferença,
9 Krishnamurti, apud Rosenberg, 2003. 10 Cf. Pelizzoli, 2009, cap. 11, e 2011, cap. 8. 11 Cf. Pelizzoli, 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012.
mas como lidar bem com ela. No discurso da CNV fala-se de conflitos negativos e de conflitos positivos, para expressar aqueles que geram mais dor, mágoas, estrago, sinergia negativa, etc., ou os que geram sinergia positiva, mudanças criativas, renovações e novos estágios de relação ou comunicação – e assim reparação e alguma afetividade. A tarefa da CNV é ajudar a entender os conflitos negativos, atuar em suas causas (atuar até certo ponto, pois muitas questões ultrapassam sua esfera, como questões econômicas ou psicológicas mais graves), e promover as estratégias positivas, resolutivas e de relacionamentos saudáveis, por meio do encontro e da comunicação sem bloqueios, como veremos. De algum modo, trata-se de recuperar a capacidade para o diálogo, curando a sua incapacidade, como diria Gadamer. Comunicação como relação vital Sobre o aspecto comunicacional, percebe-se que muitos estudiosos da área se restringem a dimensões gramaticais, análise de discursos, linguística e pesquisas do gênero, muitas vezes sem uma análise pragmática – sem implicações em termos de violência e pacificação, por exemplo, e o aspecto resolutivo da comunicação. Por outro lado, a população em geral não olha criticamente e lucidamente para o modelo de comunicação utilizado, tanto que sofre de manipulações de todo tipo via discursos e mídias. Se os acadêmicos quase não se debruçam sobre dimensões resolutivas e ético-práticas da linguagem, mais que instrumento de trabalho e pesquisa, se a população presta pouco atenção ao modelo (pouco resolutivo) de comunicação utilizado, como dar-se conta de que a linguagem é nosso medium, como diz Gadamer, e que a comunicação é a base da vida social, dos conflitos e das suas resoluções ? Por outro lado, muitos textos na área de resolução de conflitos buscam cada vez mais esta dimensão da comunicação e do discurso, mesmo que, por vezes, tomem isso numa dimensão instrumental e não ontológica - fundante da sociabilidade e ética. Comunicação não é apenas jogo de signos e significantes, não é apenas falar, escrever e sinalizar, não é um mero instrumento, não é um corpo de estudos ou uma ideologia, não é um jogo gramatical e de léxicos, mas linguagem vital, e como tal, ambiente/meio da vida humana como sociabilidade. Para a CNV, infelizmente, recebemos ou construímos um tipo de comunicação grotesca, pouco transparente, pouco conectada com o que nos afeta e o que afeta o outro12. É preciso urgentemente cuidar disso. Da não-violência Em termos gerais, a não-violência é uma tradição teórica e prática muito longa, que tem em Gandhi um de seus nomes consagrados. A CNV inspira-se filosoficamente nesta tradição, aurindo também outros saberes de modelos comunicacionais de paz, tanto quanto do saber da psicologia social e de grupos. Para entendê-la, é preciso questionar e alargar o conceito de violência, no sentido de tirá-lo do âmbito extremamente reduzido da violência criminal “do bandido e do assassinato”, e pensá-lo sistemicamente, dentro de campos sociais conflitivos, dentro de necessidades feridas, dentro de perdas de dignidade e da 12 Cf. Rosenberg, 2003, cap.4.
humilhação, dentro da produção de “bodes expiatórios” sociais, dentro da violência estrutural e seu apartheid social. A vantagem da CNV é que, haurindo valores, necessidades, emoções e pedidos essenciais que os seres humanos têm para viver, além de necessidades materiais, ela faz-se essencial em qualquer âmbito social e mesmo em contextos de crise e desestruturação - pois todo sujeito quer ser entendido, respeitado, quer algo de alguém e precisa pedir, tem vulnerabilidades, depende dos outros, quer algum tipo de laço social, e assim por diante. A filosofia da não-violência aponta justamente para estes valores fundantes do social, e mostra que a violência não faz parte deles (o conflito positivo sim)13. Um desequilíbrio social (por exemplo, um assassinato, ou um dano moral causado a alguém) tende sempre a um novo equilíbrio, seja ele pela reprodução de nova dor (castigo, vingança, etc., na economia das trocas de danos), ou ainda pela produção de reparação, restauração, regeneração de laços, responsabilização de ofensores, reconciliação, pedido de desculpas, arrependimento, confrontação com a comunidade e autoridade e outros meios mais positivos. A filosofia da não-violência tem, portanto, um sentido realista, e não pede necessariamente que nos amemos, mas que evitemos algo que sempre tememos e queremos evitar: a violência, a violação de outrem, a qual, em geral, reverbera pelo tempo e pelo espaço familiar e social14. O desafio é o como fazer isto. O que ocorre é que a CNV, como outras visões resolutivas, foca em um momento-chave nos encontros e conflitos: a capacidade, o modo e os efeitos do diálogo. 3 – (Ato III - A intersubjetividade) Introdução ao diálogo real É comum ouvir pessoas relatarem que “tiveram um diálogo” quando na verdade tiveram um embate, sem troca ou compartilhamento real; ou então, vivenciaram um conflito negativo gerador de efeitos entrópicos e relatam que foi uma “conversa ruim”. A palavra diálogo, como tantas outras do nosso rico vocabulário, sofreu despontencialização e desvios. Diálogo deriva da palavra logos; seu sentido primeiro é dizer, falar. Ao mesmo tempo, sabe-se que quem diz algo quer produzir um significado, quer dar a entender algo, mundo, ou seu modo de ver o mundo a outrem. A linguagem, e aí dentro o falar, encontra seu sentido primeiro e último em dizer algo a alguém; alguém está sempre no fundo em referência, o que pode incluir a nós mesmos enquanto somos partes e personalidades em uma única pessoa. Cantar, sinalizar, gesticular, fazer poesia, fazer caretas, expressar com o corpo (o corpo é uma das maiores verdades da expressão, o que menos sabe mentir !), emitir um suspiro, bufar, pular, dançar, fazer silêncio diante de algo, olhar, fechar os olhos, gritar, chorar, rir, vestir-se de tal modo, usar tais cores, encolher-se, empertigar-se, curvar-se, empinar-se etc. São algumas das formas de ser linguagem, significação num mundo de significados e relações entre seres. A partícula dia tem o sentido de atravessar, passar a bola, cruzar para o outro lado, interpenetrar. Compreendida deste modo, não se deveria usar a expressão “diálogo” quando não houve esta troca real de sentidos, com uma via de encontro. O diálogo tem um poder humanizador, pois está calcado na escuta e conexão com outrem; toca inclusive em algo da ordem da cura, da participação no coletivo, mysterium coniunctionis, tão bem expresso nos mythos e histórias das tradições em suas vidas comunitárias. Quais são os pilares do diálogo para que seja diálogo ? A escuta, a pergunta, e o que está pressuposto 13 Cf. Muller, 2007. 14 Cf. Hellinger, 2007.
nestes fatores: a presença. A escuta é a capacidade talvez a mais importante para nossos dias de conflitos negativos. Não é estar com os ouvidos abertos, mas colocar-se com corpo e mente na dimensão ou no campo o qual se necessita instaurar para haver a circulação, a troca, o dia. Para termos uma ideia da peculiaridade deste fato, aponto aqui o que pode impedir, de algum modo, a real presença acompanhada da escuta, segundo Rosenberg: Dar conselhos (“creio que deverias... Como é que não...?”) Tratar de animar o outro (“isto não é nada, vou contar o que me ocorreu”) Tentar instruir Tratar de consolar (“não é culpa sua; fizestes o possível”) Contar alguma história parecida Desviar a questão (“anda, anima-te. Isso não é nada...”) Compadecer-se (“oh! Coitado...”) Interrogar (“quando começou isso?”) Dar explicações Corrigir o outro (“não, isto não ocorreu assim”)15 Uma mediação, nos moldes jurídicos que conhecemos no judiciário do país, e mais ainda uma conciliação, em geral não contemplam um diálogo aberto e reparativo, como propõem por exemplo os círculos restaurativos e a Justiça Restaurativa16, como propõe a CNV. Mediar pode ser fazer o meio termo simples entre duas vontades contrárias, em que se deve ceder sem aceder ao núcleo do conflito, ou em que se deve engolir certas injustiças, ou ainda por força maior devo mediar para não entrar em processos mais desgastantes. Dialogar é mais que mediar, é trazer à tona efeitos humanos e psicológicos dos malfeitos, é abrir-se ao outro, é tentar entender e ouvir de fato – não apenas para logo atacar. Num diálogo, mediadores podem ser obstáculos, podem dirigir, determinar e impedir o espírito em jogo de se manifestar. Mediar pode ser forçar o outro a um acordo pré-determinado ou a restrições dentro de um trilho apertado ou judicativo. Pode atropelar, pode calar, pode criar soluções artificiais e de consenso superficial. A CNV propõe, tal como nos círculos restaurativos (pré-círculos, círculos e pós círculos) na Justiça Restaurativa, diálogo aberto, com voz e vez respeitada, com tempo, com novas rodadas se preciso, trazer dores envolvidas à tona se for preciso, pedidos de responsabilização, com apoio social e ressonância, e observar as dignidades em jogo, como lidar com as humilhações, como não retraumatizar quem foi vitimizado, como interrogar de modo construtivo, como trazer valores positivos à tona. Enfim, como preparar um campo intersubjetivo de encontro. Quando atentamos acuradamente e sistemicamente para a potencialidade do diálogo, percebemos que muitas vezes ele começa a ocorrer antes do encontro efetivo. No momento em que um sujeito começa a permitir que uma motivação e intenção resolutiva de algum modo viceje em sua mente, ele cria um campo emocional ou uma paisagem mental propícia para a resolução. O estado mental tem um potencial ainda 15 Rosenberg, 2006, p. 109. 16 No Brasil, tenho em mente aqui em especial o que ocorre na Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e Juventude do RS. Veja também BOYES-WATSON, C. & PRANIS, Kay, 2012, e ZEHR, 2002 e 2008.
pouco explorado, apesar de que o uso de visualizações positivas, ou da visão de rede e inseparatividade da psicologia (budista por exemplo), ou da realidade do poder do pensamento sobre as ações, o sugestionamento, a atenção focada, o efeito placebo etc. são cada vez mais estudados e levados a sério. Isto retoma axiomas antigos, de que ao mudar algo em mim, mudo algo no mundo; ou ainda, “seja a mudança que você quer ver no mundo”(Gandhi); “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda” (Jung). Enfim, no mínimo, os mediadores sabem que a predisposição para o diálogo é fundamental para o funcionamento de uma mediação, conciliação ou diálogo construtivo; de igual modo, uma das tarefas mais fundamentais deles é criar (ou melhor, despertar, propiciar...) a ponte ou o campo de “solução” ou de encontro num ambiente conflitivo em que justamente isto é rompido. Na minha concepção do campo sistêmico das tecnologias psicossociais, este ponto é fundamental, e depende do bom contexto de receptividade para a circulação do pathos, ou como diz Hellinger, da “circulação do amor”, onde antes existia um dano ou perda, um bloqueio, uma grande dor17. A escuta, a pergunta verdadeira e o pressuposto disso, a presença como a base de todo diálogo autêntico, como defendemos, pode ser exercitada, aprendida. Exige paciência, autoconsciência, apoio, cuidado de si quando atacado, respiração consciente, centramento psíquico, resgate de valores humanos essenciais e sentido de vida. Um dos métodos que podem ser utilizados frequentemente é o cultivo do silêncio individual, as formas de meditação, o uso de intervalos de silêncio em grupos para fazer brotar sentimentos e consciências ocultadas pela máscara das caras e bocas (razões, retóricas, desculpas, tegiversações, fugas...); o uso de certos tipos de músicas é útil também. A escuta é uma arte; dificilmente quem não se escuta poderá escutar bem o outro; o cuidado de outrem é ligado ao cuidado de si. Precisamos ter o mínimo de consciência de nossa Sombra para lidar com a Sombra do outro; por conseguinte, o âmbito da mediação e da resolução de conflitos traz por vezes uma carga pesada, de energias negativas que buscam uma válvula de escape, buscam reprodução e solução18. Portanto, não cabe ter uma visão idealizada do diálogo sem a abertura para o real, sem a prioridade do momento, das dores em jogo e dos pressupostos que nunca saberemos o quanto estão envolvidos num embate, num conflito; a vida dança sem uma regra fixa, tal como o jogo inusitado das falas e conversas. Muitas vezes, com nossa visão moral e idealizante, impedimos de vir à tona aspectos mais verdadeiros e menos morais dos conflitos. Esconde-se o jogo, entra-se em jogos de não-transparência, passa-se por cima de dores, bloqueia-se o difícil, o que pode ser vergonhoso, o que dá medo. Sobre o aspecto da pergunta, cabe lembrar que a mesma sempre abre, enquanto a resposta fecha, define. A pergunta torna-se essencial, pois, se ela não é verdadeira, apenas serve para combater o outro e não ouvi-lo, servirá para ironizar, para negar, para contradizer, para desviar o assunto, para confundir, em vez de servir para entender melhor junto com o outro aquilo que de fato está ferindo, faltando, incomodando, reprimido, ou sendo desejado. A pergunta bem feita torna-se a chave para abrir o diálogo autêntico. 4 – (Ato IV - Caminhos de Intersubjetividade) O esquema simplificado da CNV 17 Cf. Hellinger, 2007. 18 Cf. Pelizzoli, 2009, cap.11 e Pelizzoli, 2010 (b). Aí vale tb. ver o conceito de Corpo de Dor, de Eckhart Tolle, no livro O despertar de uma nova consciência. Ainda, a obra Ao encontro da sombra, de Zweig, C. & Abrams, J.
Expressando honestamente como eu estou, Acolhendo com empatia como o outro está, sem queixa ou crítica sem queixa ou crítica OBSERVAÇÕES 1. Expressando honestamente a ação concreta 1. Acolhendo com empatia a ação concreta que eu estou observando (vendo, ouvindo, que o outro está observando (vendo, ouvindo, lembrando,
imaginando)
que
está lembrando,
imaginando)
que
está
contribuindo ou não para meu bem-estar
contribuindo ou não para o bem-estar dele
Na prática:
Na prática:
-
dizer o que observo, sem julgar, sem -
ouvir atentamente sem julgar, sem fazer
fazer inferências, sem relacionar com
inferências, sem relacionar com outra
outra situação;
situação;
-
não generalizar;
-
usar sempre EU
-
aclarar por meio de perguntas, pontos que não compreendeu bem
SENTIMENTOS 2. Expressando honestamente como eu estou 2. Acolhendo com empatia como o outro está me sentindo com relação ao que observo
se sentindo com relação ao que observa
Na prática:
Na prática:
-
usar a expressão “eu me sinto...”
-
-
relacionar meu sentimento às minhas -
ajudar a relacionar o sentimento do outro
próprias expectativas e não à ação do
às expectativas dele e não à minha ação
usar a expressão “você se sente...”
outro NECESSIDADES 3. Expressando honestamente a energia vital 3. Acolhendo com empatia a energia vital na na forma de necessidades, valores, desejos, forma de necessidades, valores, desejos, expectativas ou pensamentos que estão expectativas ou pensamentos que estão criando meus sentimentos
criando os sentimentos do outro
Na prática:
Na prática:
-
nomear com clareza minhas próprias -
confirmar com o outro sua verdadeira
necessidades,
necessidade,
sentimentos,
expectativas, etc. DEMANDAS 4. Expressando honestamente,
valores,
sentimento,
valores,
expectativas, etc. sem 4. Acolhendo com empatia sem inferir
imposição, o que eu gostaria de receber do imposição, o que o outro gostaria de receber outro que melhoraria a minha vida
de mim que melhoraria a sua vida
Na prática:
-
Na prática:
usar palavras, expressões e gestual de -
acolher com interesse e confirmar a
solicitação, nunca de comando, coação
solicitação (você gostaria que eu...; você
ou imposição (eu gostaria que; você
está me pedindo para...)
poderia...) (Fonte: Rosenberg, 2003) No aspecto mais pragmático, propomos olhar a CNV como um softwear bastante aprimorado, no qual as possibilidade de ruídos, interferências, travamentos e vírus são muito menores, pois trata-se de um “softwear livre”, transparente e basilar, que aponta para fontes mais elaboradas de tradições comunitárias e de grupo no que têm de excelência comunicacional. Em nossas sociedades, mais ainda naquelas mais desestruturadas em termos sociais como no Brasil, adotamos amplamente alguns programas ou inteligibilidades (softwear) que carregam em si muitos “vírus e cavalos de troia” (batalha) sempre prontos a combater o outro, ou seja, são programas que rodam na base da força, coação, estratégias de poder, mentiras, enganações, falsas promessas, sorrisos amarelos, puxadas de tapete, ofensas, diminuição do outro. Operam ainda pelo antigo Si vis pacem, para bellum. Operam na lógica do ataque-defesa, sendo que é neste contexto que se entende a frase “a melhor defesa é o ataque”, ou ainda, “quem não bate, apanha”; ou ainda, “não levar desaforo pra casa”, e assim por diante. Na medida em que entro num contexto enrijecido, ou numa paisagem mental tomada como sólida e imutável, sou tomado por aquele âmbito de linguagem, a fim de inserir-me num mundo, ter identidade. Na medida em que o padrão de comunicação é violento, acaba-se por adotar a violência como funcionalidade, dotando-a aos poucos de certa normalidade (daí a normose). E assim passamos a ver o que consideramos como sendo de fato “o mundo”, “é assim”, “não muda”. “É importante ressaltar que a CNV não é uma técnica que irá levar as pessoas a fazer o que queremos ou a aceitar nossos posicionamentos; o objetivo de conseguir das pessoas o que se deseja deve ser totalmente abandonado, pois o real objetivo da CNV é pacificar as relações e encontrar uma forma de atender às necessidades de todos os envolvidos na relação. 'A cooperação genuína é inspirada quando os participantes confiam que seus próprios valores e necessidades serão atendidos' ”.19 O softwear CNV mapeia as violações e obstáculos da comunicação e, por conseguinte, da boa, clara, honesta, delicada e factual relação com o outro, e ensina os passos formais para uma troca de paradigmas, ou como diz Zehr, uma troca de lentes. A pergunta agora é: se eu troco as lentes e o outro não trocou, como fica? O que a CNV ensina é que, mesmo que o outro não troque, as possibilidades positivas ainda são vigentes com o uso da comunicação correta, pois ela tem capacidade construtiva, e de lembrar ao outro, no exercício, valores fundamentais que mantém a boa relação e o que garante a atenção, a escuta e as necessidades em jogo. Ou seja, quando o outro percebe minha disposição de evitar entrar na paisagem contaminada, e ao mesmo tempo o oferecimento de uma paisagem construtiva e cuidadosa, é muito provável que se possa
19 Moraes, in Pelizzoli, 2011, cap. 8. E Rosenberg, 2003.
“rodar este programa” e colher seus benefícios, desejado em geral por todos os que entram num diálogo ou no jogo comunicacional. A isto acrescente-se que as pessoas, em que pese a força e contaminação da vontade de poder, egocentrismo, estratégias e retóricas maquiavélicas, têm em boa conta elementos como a transparência, a consideração, o respeito, o ser ouvido, a abertura ao afeto. No fundo, todas querem ser amadas, ouvidas e precisam do outro, da comunidade. Precisam de sentido social e simbólico em suas vidas. A CNV chama este ponto de “abertura para a compaixão”, em que pese a má compreensão deste termo no ocidente, no sentido de pena, fraqueza, bondade mole, ou seja, como perda de seu sentido de interconexão básica à vida. Basicamente, como podemos ver no quadro acima, esta visão e método prega o saber ouvir e o saber falar, como me expresso e como recebo o que é expressado por outrem. E, em termos dos quatro passos: “Quais as ações concretas que estamos observando que estão afetando nosso bem-estar; Como nos sentimos em relação ao que estamos observando; Quais as necessidades, valores, desejos, etc., que estão criando nossos sentimentos; Quais as ações concretas que estamos demandando de modo a enriquecer nossas vidas.”20 Como citamos antes, uma das frases resumo da CNV é tomada de Krishnamurti (“para além do certo e do errado, existe um lugar: somente ali nos encontraremos”), e pode melhor ser destrinchada assim: Quando conseguimos acessar o campo (instante e espaço) em que percebemos a realidade da vulnerabilidade humana e sua base na sociabilidade/afetividade/pathos, campo em que nos assemelhamos e ligamos, é somente nele que podemos encontrar um outro ser humano efetivamente, como tal. Podemos até estabelecer relações utilitárias, objetais, do “Isso” como diz Buber; mas ainda não conseguiremos ver, tocar ou sentir, entrar na presença, no que significa o encontro. É por isso que, para esta tradição em que se insere a CNV, o encontro é salutar, é curativo, é elucidativo, é uma verdade para além das razões visíveis, e dos argumentos egoicamente e dolorosamente centrados. Comentário direto a partir do esquema da CNV Neste esquema ou quadro apresentado, precisamos compreender que é importante haver em uma das partes envolvidas ao menos - ou então num terceiro, um mediador por exemplo - a disposição prévia necessária para o funcionamento sistêmico de circulação da relação, ou seja, da conexão. Quando os indivíduos já vêm por demais contaminados com suas dores, seu “corpo de dor”, suas frustrações e suas marcas mentais, as quais revelam um grau perdido de inteligência emocional, consciência emocional e então comportamento ético, se assim é, torna-se mais difícil acessar as necessidades envolvidas e a resolubilidade a que o conflito tenderia. Perceba que, no quadro, são duas colunas, a do Eu e a do Tu, pois preciso olhar para mim mesmo, o que está ocorrendo comigo quando o outro me atinge, o que estou falando, como estou reagindo – ou seja, como está o grau de reatividade e qualidade da resposta em mim -, e se há uma boa capacidade minha de cuidar de mim quando sou atingido ou não. Reação aqui é diferente de resposta e responsabilidade, pois 20 Cf. Rosenberg, 2003 cap. 1.
reage-se em geral dentro da paisagem violenta, de modo automático; falta um delay, ou seja, espaço, atraso, desaceleração para perceber que algo dentro de mim se move (emovere – emoção) e que é a parte que mais contribui para o agravamento do conflito. Resposta consciente é diferente de reação automática. Neste sentido, o saber popular tem alguns dizeres importantes que o denotam: “conte até 10” (ou até 100, as vezes é melhor...); “respire”, “tome um copo de água”; “vá dar uma volta”, “senta um pouco”, “muda de assunto”, “deixa disso” etc. È importante perceber que, no fundo, sabemos algo do porquê de não nos entendermos, ou como podemos nos entender. O primeiro passo deste “método”, é saber observar, ou seja, saber falar, fazer observações corretas, fruto de um saber ver a situação de modo mais amplo e também as necessidades que estão por trás das falas nossas e de outrem. Costumo dizer que esta é a porta de entrada principal do encontro, pois se errarmos aí, todo o resto começa a ficar prejudicado. Neste sentido, deve-se diferenciar entre “juízos de fato” (ex. “você chegou mais tarde ontem em casa”); ou ainda “juízos de valor” (ex.: “para mim é importante que haja tal e tal coisa”; “isto vale para mim...” etc.); de juízos moralistas, que catalogam o outro ou sua ação (ex.: “você é egoísta...”). Os juízos moralistas fazem parte de uma estratégia comunicativa trágica e enganada de expressão de necessidades e emoções do sujeito que o utiliza. Como obstáculos neste passo, podemos citar: generalizar um comportamento de alguém; rotular de qualquer modo; ironizar; diminuir e subestimar a posição ou necessidades do outro; ofender e xingar; gritar e ameaçar verbal e fisicamente; fazer medo ao outro; falar de modo grosseiro e com estupidez; não deixar o outro falar; evitar e usar de indiferença recusando a escuta - para citar os principais obstáculos. “Julgamentos moralistas são péssimas expressões de necessidades, pois estes bloqueiam os indivíduos de ter consciência das necessidades suas que não estão sendo atendidas no relacionamento com o outro. Através desta cultura de julgamentos, os seres humanos são educados para pensar que necessitam de aprovação. Tanto julgamentos negativos quanto elogiosos levam a um distanciamento entre o que as pessoas são e desejam realmente”21. Observar ou expressar-se corretamente é não apenas uma questão ética, mas de objetividade e possibilidade de alcançar aquilo que queremos, tanto quanto, ponto de partida para entender os outros, sem o que não temos como estabelecer relações efetivas, o que gera maior incompletude e solidão. “A CNV é um sistema de linguagem que rechaça as generalizações estáticas; em lugar disso, as observações devem basear-se em coisas específicas do momento e contexto”22 Quando trazemos coisas do passado, distante ou próximo, para uma discussão, tendemos a piorar as coisas criando mais problemas e reavivando fantasmas, perdendo o momento pontual. Igualmente, quando começamos a comparar coisas, comportamentos, qualidades e defeitos de pessoas e nossas, trazemos mais obstáculos, diminuímos o outro, ou nos sentimos inferiores com coisas e qualidades que “não temos”. Devese, no conflito, evitar comparações, evitar voltar a questões passadas, evitar interpretar e catalogar o outro, até porque não somos o seu psicólogo, nem o seu professor. Para a CNV, precisamos riscar de nosso vocabulário o sempre e o nunca, pois generalizam e marcam 21 Moraes in: Pelizzoli, 2011, cap. 8. 22 Rosenberg, 2003, cap. 3.
o outro: “você nunca faz o que eu te peço”; “você sempre chega atrasado”. São em geral afirmações inverídicas, pois em algum momento não é assim; e além do mais, tragicamente (em especial com as crianças) reforçam e criam um pacto de identidade do comportamento de alguém, dando margem para que ele aja assim pois não é estimulado em seus comportamento otimizados. Ou seja, eu reafirmo que ele não tem capacidade para fazer algo diferente e melhor, e ele assina embaixo e, inclusive, defende-ataca por este modo. O segundo passo proposto pela CNV, é o mais delicado, em vista de que nossa cultura não nos ensinou a ter transparência com nossas emoções e sentimentos, pois cremos em geral que é sinal de fraqueza tê-los ou expressá-los, como o medo e a raiva, nossos companheiros mais encarnados. A situação se configura ainda pior para muitas pessoas, pois não chegam a ter consciência da sua vida emocional, aquilo que ocorre com seu corpo, emoções e fala (o trio inseparável pelo qual trabalho as possibilidades de resolução de conflitos, inspiradas na CNV, nas Constelações Familiares e na psicologia budista23). Portanto, quando recebem uma fala agressiva, ou interpretam uma situação de modo meramente negativo e que consideram que não é certa, o fazem às cegas, ignorando que são os pressupostos que se tem – a própria vida emocional e a geração de preconcepções sobre o outro e sobre o mundo – o grande mote da reação violenta. O mais difícil para alguns, em contato com essa metodologia, é aceitar que o outro não é o responsável pela minha vida emocional, ou seja, ele pode ser o estímulo de meu sofrimento quando ele comete algo grave contra mim ou meus próximos, mas nunca é o responsável pelo modo como reajo emocionalmente às situações de conflitos negativos, perdas e assemelhados. Neste sentido, a CNV estimula os comunicantes a expressarem algo de seus sentimentos envolvidos num conflito, mas alertando que se tome a responsabilidade em termos de vida interna emocional para si em relação ao conflito. Por exemplo, em vez de culpar o outro pela minha vida emocional dizendo “você me faz infeliz, ou “você é o culpado pela minha dor”, ou “eu me sinto frustrado porque você não veio me ver”, precisamos dizer “me dói o que você fez e não consigo lidar bem com isto”, ou “me sinto infeliz porque tenho a expectativa de viver bem com você e isto não tem acontecido”; ou “me sinto frustrado porque esperei você naquela noite e fiquei só”. O que parecem detalhes são na verdade muito importantes pois trazem honestidade, responsabilidade pelos próprios sentimentos, sem no entanto deixar de pedir algo a outrem ou confrontá-lo se agiu de modo danoso. Se por um lado a expressão dos sentimentos envolvidos num conflito aponta para a exposição e vulnerabilidade humana, de todos nós, por outro lado demonstra um tipo de coragem de expressão e transparência que faltam a muitas pessoas. De fato, é preciso exercer uma boa dose de coragem para iniciar um processo de comunicação desse tipo em meio ao modelo viciado, uma forma também de desafiar a nós mesmos para além de nossos medos. A vantagem para a pessoa que usa este modelo, é que começa a criar um grau maior de confiança junto a seus próximos ou em seus grupos, e agora não tem mais tanto a necessidade de esconder certas coisas. Pode operar com mais transparência, dizendo não quando precisa dizer não, e dizendo sim quando quer de fato dizer sim, com o diferencial de que sabe ouvir os sentimentos 23 Vide Pelizzoli, 2010 (b) e 2011, cap. 3.
seus e do outro. O fato de a CNV ter posto como essencial a questão dos sentimentos envolvidos no conflito, representa um ganho de consciência na questão; as pessoas brigam basicamente motivadas por emoções, negativas em geral, chegando até a escravizar-se pelas mesmas (tendo o medo e a raiva como fundos prementes). Hoje sabemos que somos bastante guiados pelos condicionamentos e “disparos emocionais” de nosso cérebro “reptiliano”; temos dimensões bastante primitivas e sombrias que são partes de nossa natureza. Lidar bem com elas é apontado como a mais importante das inteligências. O terceiro passo. Para a CNV, os sentimentos estão colados às necessidades. Ou seja, temos muitas necessidades básicas, materiais, sociais, e todas elas em maior ou menor grau estão ligadas à possibilidade de satisfação, sendo que o mecanismo principal que as regula são os sentimentos, mais do que a razão. Se nossas necessidades importantes são negadas, podemos facilmente ficar com medo, raiva, tristeza, frustrados, magoados, irritados e tomados por emoções negativas. Sabemos todos de nossas necessidades básicas como alimentação, moradia, vestimenta etc. Devemos lembrar também o quanto outras necessidades imateriais são muito importantes, tais como: escolher nossos próprios ideais, objetivos e valores, comemorar a criação da vida e os ideais alcançados, celebrar as perdas dos queridos, dos ideais, Harmonia, Beleza, Inspiração, Paz Integridade, Autenticidade, Criatividade, Propósito, Valia, Interdependência, Aceitação, Afeto, Amor, Apoio, Apreciação, Comunidade, Compreensão, Confiança, Consideração, Empatia, Proximidade, Respeito, Segurança emocional, Sinceridade, Tranquilidade...24 Quando usamos uma comunicação violenta, não construtiva, estamos ferindo necessidades e sentimentos do outro, e criando problemas para nós mesmos; estamos lhe negando aquilo que desejamos para nós e que é condição básica para o entendimento. Mesmo que eu não possa satisfazer um desejo ou necessidade do outro, ou por exemplo ele se choque com o meu, não sendo possível fazer um meio termo, ceder, devo ainda mais usar o diálogo pois estarei dando ao outro valores e necessidades importantes, os quais não são propriamente o objeto em jogo, mas contam. E, como vimos, muitas vezes brigamos em torno do sentimento ferido ou a humilhação causada e coisas semelhantes, menos do que pela perda ou negação de algo do mundo material. Na comunicação, preciso entender que as expressões negativas ou ameaçadoras do outro estão coladas às necessidades não satisfeitas, de toda ordem. Preciso, por conseguinte, contatá-las através da abertura, do diálogo real. Como último passo, temos o pedido, ou demanda. O que queremos pedir aos demais que é importante para nós. E o primeiro ponto aqui é saber diferenciar entre pedido e exigência. A segunda, traz em geral em si elementos de violência, de humilhação, indiferença, de não escuta, de não participação. Exigência é ordem, mandato, pela qual se usa o modo imperativo, como em frases bem conhecidas: “você deve... fazer isto ou aquilo; eu estou mandando; você é obrigado a...”. Podemos até conseguir o que queremos desse modo, porém, a CNV avisa que o custo pode ser muito alto; podemos, logo em seguida, ser boicotados, gerar clima de insegurança, receber “o troco”, criar instabilidade emocional, estresse, falta de 24 Cf. Rosenberg, 2003, cap. 5.
transparência, cultura do medo e coisas do gênero. Quando alguém exige de imediato conseguir o que quer, à custa do respeito ou consideração aos outros, a custa dos três primeiros passos apresentados, as possibilidades de conseguir são bem menores, pois ele gera um foco de violações que vão, em tese, ser respondidas de modo semelhante, ou de modo ainda pior. Trata-se de saber pedir o que se quer sem rodeios, sem desvios, mostrando aquilo que é importante na relação ou na comunicação; de igual modo, aclarar por meio de perguntas, confirmações, o que o outro quer. Por vezes, ele não acessa de fato outros elementos que ele mesmo precisa, os quais estão colados ao foco da discussão, necessidades como as citadas acima, de ordem imaterial e social. Igualmente, pedir requer igual consideração de interesses, os meus e os de outrem25. Trata-se de solicitar, antes que mandar; algumas línguas sabem disso quando dizem quando pedem: “je voudrait...” (eu gostaria...); “can i have...” (posso (ter)... algo...); “me gustaria...”. Sabemos bem o quando certas palavras são importantes, tais como: por favor, obrigado, eu te agradeço, como você se sente com isto?, você concorda?, como você vê isto?, eu gostaria que..., de que você necessita... . Breve conclusão A CNV é uma filosofia prática, um método, e um modo de ver as relações humanas que tem como veículo principal a boa comunicação, e como inspiração a sociabilidade\compaixão básica que orienta a vida humana\social para sua realização e satisfação. Expandiu-se pelo mundo nestes 40 anos de existência, sendo usada em vários setores e lugares, e se destaca como modelo para as metodologias de resolução de conflitos, mediação e diálogo, como nos círculos restaurativos. Na prática, trata-se de uma mudança difícil pois exige, em muitos casos, reaprender a comunicar-se, mudar as lentes, ou mudar de paradigma, deixando o softwear violento por um programa não-violento. As possibilidades de conseguir o que se quer, além de não fazer inimigos, e de se sair bem usando de maior transparência, conseguir entender o que o outro quer, um pouco mais de seu mundo, perceber a si mesmo no conflito e no diálogo, perceber o outro, enfim, estas possibilidades relacionais-comunicacionais são muito maiores quando se usa um modelo como o da CNV do que quando não se utiliza nenhum. Se assim for, temos uma ferramenta resolutiva muito poderosa para usar em âmbitos de grupo, família, círculos, encontros, resolução de conflitos, reparação de danos, mediação, conciliação, conversações, colóquios e assemelhados. Cabe dizer ainda que, em termos de trabalho no campo dos Direitos Humanos, este modelo resolutivo é fundamental e mostra-se promissor; é uma filosofia prática bem fundamentada, e um método amplamente testado que vem se expandindo aos poucos no país26. Bibliografia BOYES-WATSON, C. & PRANIS, Kay. No coração da esperança – guia de práticas circulares. Porto Alegre: TJ do Estado do Rio Grande do Sul, 2011. 25 Há vários aspectos da CNV que não poderemos entrar aqui por falta de espaço. Por exemplo: o uso protetor da força; o erro das comparações, o poder da empatia, a expressão plena da raiva, como liberar a nós mesmos e aconselhar os demais, e outros. Veja Rosenberg, 2006. 26 Ver Pelizzoli, 2011, cap. 7 e 8.
GAMA, Márcia. Comunicação construtiva (texto inédito não publicado). HELLINGER, Bert. Conflito e Paz – uma resposta. SP: Cultrix, 2007. MORAES, Maria Carolina Fernandes; PELIZZOLI, Marcelo. Comunicação não-violenta (CNV): uma ética prática pela resolução de conflitos e empatia. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/22270801/CNV-Carol-e-Marcelo>. Acesso em: 23 fev. 2012. MULLER, Jean-Marie. O princípio de não-violência: uma trajetória filosófica. São Paulo: Palas Athenas, 2007. PELIZZOLI, Marcelo L. Homo ecologicus. Caxias do Sul: EDUCS, 2011. ________(Org.). Cultura de paz – educação do novo tempo. Recife: EDUFPE, 2008. ________(Org.) Cultura de paz – alteridade em jogo. Recife: EDUFPE, 2009. ________(Org.) Cultura de paz – Restauração e direitos. Recife: EDUFPE, 2010. ________(Org.) Os caminhos da saúde – integração mente e corpo. Petrópolis: Vozes, 2010.(b)
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RESGATE DOS DIREITOS HUMANOS EM SITUAÇÕES ADVERSAS DE PAÍSES PERIFÉRICOS
Miracy Barbosa de Sousa Gustin*
1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A finalidade precípua desta comunicação é discutir a situação de países periféricos frente à internacionalização das relações – corriqueiramente denominada “globalização” – que, na atualidade, não deve ser compreendida apenas como um processo econômicofinanceiro ou comunicacional, este último propiciado pela expansão ilimitada da era digital. O processo de globalização das relações será apresentado nesta comunicação como uma sucessão de mudanças que geraram exclusões diversas: desde grandes regiões geográficas e de nações, até grandes aglomerados urbanos e grupos sociais diferenciados. As estatísticas sócio-demográficas e econômicas e os estudos especializados têm demonstrado que os países da América Latina – uma das grandes regiões geográficas excluídas, em especial as condições brasileiras nas últimas décadas – tendo em vista as políticas internas e globais, persistem como espaços de extrema pobreza e de grande degradação humana. Já afirmava Celso Furtado que: “a globalização é um imperativo tecnológico, não é nela em si que está o problema. A globalização é uma força acima de tudo, como foram a invenção da roda ou a Revolução Industrial do século XVIII. O problema é a maneira de se integrar a ela”1. Em razão desse processo ocasionado pelos novos padrões tecnológicos e econômicos prevalecentes, grande quantidade de indivíduos foi conduzida ao desemprego e subemprego, ao isolamento nas cidades e a todo tipo de exploração. Após demonstração dessas condições vigentes dever-se-á apresentar, neste trabalho, experiências e alternativas bem sucedidas de atuação concreta em áreas de grande exclusão social e de alto nível de violência e de risco. Serão enfocadas, em especial, a “Metodologia de Constituição de Capital Social para a Minimização de Situações de Risco e Violências” e a noção de “Mediação para a cidadania.” Essas propostas têm como orientação à emancipação dos grupos socialmente excluídos.Apesar das demonstrações sócio-demográficas e econômicas que serão apresentadas, esta é uma comunicação com um sentido teórico-conceitual e, por esse motivo, deve-se adiantar que aqui se entende como cidadania um processo gradual que se constrói e se realiza a partir da organização e da autonomia, seja esta, elemento constitutivo de macro-agrupamentos até aos próprios indivíduos que os integram. Supõese, pois, que em condições adversas e de exclusão, quando as políticas neoliberais geram injustiças sociais evidentes, torna-se inevitável uma nova lógica ou a revisão da lógica
anterior das reações locais de proteção aos direitos fundamentais e humanos. A apresentação dos novos parâmetros que devem fundamentar essa nova lógica de inclusão e de preservação dos direitos humanos será o núcleo temático primordial desta comunicação.
2. BREVES DEMONSTRAÇÕES ESTATÍSTICAS SOBRE A AMÉRICA LATINA.
Antes, porém, serão apresentadas as condições latino-americanas no tocante aos níveis de pobreza e de indigência. Entenda-se, contudo, que essas condições estão inseridas em um quadro sócio-econômico de grandes contradições. Conforme o “Balance preliminar de las economias de América Latina y el Caribe”, de 2004, organizado pela CEPAL, ”...a economia da América Latina e Caribe cresceu em torno de 5,5% em 2004, superando os prognósticos mais otimistas, embora que o PIB per cápita da região seria incrementado em torno de 4%”2 A apresentação do relatório continua a afirmar que o bom desempenho da economia dessas regiões vinculou-se à economia internacional que acelerou, estimando-se que o PIB global cresceu algo menos que 4%, ao contrário dos 2,6%, de 2003. Isto veio beneficiar as regiões periféricas pelo aumento dos preços dos produtos básicos. Isto é, entretanto, ilusório e contraditório com as características do desenvolvimento sócio-econômico das populações de maior exclusão dessas regiões. O desenvolvimento da economia, ao contrário, em razão das políticas neoliberais internas e externas, não obteve os mesmos resultados positivos. A oferta de trabalho, por exemplo, cresceu moderadamente e o desemprego da mesma forma. Em vista disso, os níveis de pobreza da região diminuíram “de 44,4% da população em 2003 para 42,9% estimado para este ano [2004]”3. Esta estimativa não parece, contudo, corresponder à realidade dos paises, apesar de toda crueza que apresenta, ou seja, na América Latina e Caribe, em torno de 43% da população estão em estado de pobreza. A CEPAL, em ficha técnica de sua Divisão de Estatística e Projeções Econômicas, define essa porcentagem do total da população como sendo aquele “cuja renda média per cápita está abaixo da linha de pobreza e indigência (extrema pobreza)”4. A CEPAL realiza as estimativas da magnitude da pobreza e indigência a partir do método de custo das necessidades básicas, isto é, trabalha com a renda mínima necessária para que os membros de um domicílio possam satisfazer suas necessidades essenciais. A linha de pobreza estaria abaixo desse mínimo ou igual a ele e o de indigência (extrema pobreza) corresponderia àqueles domicílios cuja renda é tão baixa que se destina apenas à cobertura de alimentação e, mesmo assim, esta não corresponderia à satisfação das necessidades nutricionais mínimas de todos os seus membros.
Pois bem, a mesma organização – CEPAL – que demonstra o grande salto positivo da economia dos países latino-americanos, também apresenta dados estarrecedores em seu “Panorama Social de América Latina 2004”. Esse documento, em sua “Sintesis” inicial afirma que o processo de superação da pobreza latino – americana encontra-se paralisado desde 1997, apresentando, inclusive, uma deterioração em 2003. E afirma, algo bastante óbvio para aqueles que conhecem a região, porém não deixando de ser estarrecedor : ”com respeito à distribuição de renda, a América Latina continua sendo a região do planeta com piores indicadores (...) no ano de 2002 viviam 221 milhões de pessoas pobres (44% da população), das quais 97 milhões se encontravam em condições de pobreza extrema ou indigência (19,4%)”5. É bastante estranho imaginar que paises podem ter suas economias consideradas como em crescimento bastante razoável, apresentando índices inclusive um pouco acima – em termos percentuais – daqueles obtidos para a economia global, quando praticamente metade de sua população encontra-se em estado de pobreza e de indigência. Para quem se destinou esse desenvolvimento? Não se pode nem mesmo se ater a puros dados relativos. Pode parecer, por exemplo, que a região obteve um decréscimo da pobreza em 2004 ao se comparar aos índices obtidos em 2003. A pobreza e a indigência em 2003, respectivamente, apresentaram-se com os percentuais de 44,3% e 19,6%. Em 2004, esses índices decrescem para 42,9% e 18,6%, respectivamente.Este dado é, contudo, mais uma ilusão. A população pobre, em verdade, ascendeu para 222 milhões e para 96 milhões de indigentes. Ressalte-se, ainda, que a maioria dos paises latino-americanos, dentre eles o Brasil, com taxas de pobreza/indigência superiores a 40%, apresentam outros fatores sociais e ambientais que tornam mais severa essa condição, ou seja, às grandes aglomerações urbanas, em geral de favelamentos (aglomerações de grande pobreza urbana), a falta de esgotos, de água potável, de coleta de lixo, de luz elétrica nos domicílios e nas vias públicas, os altos índices de violência , dentre outros fatores que tornam mais severos os índices de pobreza. E, se não bastasse, afirma o mesmo relatório: ”Nos últimos anos, a distribuição de renda na América Latina não mostrou evolução alentadora. A aguda concentração de renda converteu-se em um dos traços mais distintivos da região, o que lhe valeu ser considerada a mais atrasada do planeta em matéria distributiva”6. Em relação ao Brasil a fragilidade da recuperação econômica é evidente. Desde a década de 90 a renda per cápita da população ficou praticamente estacionada. Nas metrópoles, o desemprego alcançou o nível de 20% e a concentração de renda acelerou: o rendimento médio dos 10% mais ricos alcançou a marca de 48 vezes o rendimento médio dos mais de 40% mais pobres. Estudos apresentados pela CEPAL demonstraram que essa situação, com algumas diferenças – caso do Chile, por exemplo – multiplicou-se por todas as economias da América Latina que foram signatários do “Consenso de Washington”, seguindo todas o
mesmo padrão neoliberal. Com relação à proposta de desenvolvimento auto-sustentado brasileiro, é necessário lembrar a recomendação de Plínio de Arruda Sampaio Jr: “A noção de desenvolvimento diz respeito à capacidade de o Homem controlar o seu destino (...) o desenvolvimento requer como condição sine qua non um mínimo de eqüidade social (...) e combinar aumento progressivo da riqueza da Nação e crescente elevação do bem estar do conjunto da população”7. A partir de 2002/2003 exigia-se que a política econômica brasileira garantisse a capacidade de monitoramento da economia , por um lado, e de outro, a constituição das condições imprescindíveis para um crescimento sustentado do país. Conforme Dedecca8, ao final de 2003 a política econômica implantada obteve controle da inflação, restabelecimento do fluxo de capitais externos e superávit comercial. Este último, obtido a partir de um mercado interno contraído e uma situação favorável da economia internacional. Não ocorreram, contudo, apenas resultados positivos. Ao lado desses aspectos, foi mantida uma taxa de juros real elevada que, segundo o autor, alimentou o caráter financeiro de valorização da riqueza no país e a necessidade de um superávit obtido com uma contração sem precedentes do gasto público.Acompanhando, ainda, o mesmo autor, os efeitos sociais foram nefastos, ou seja,crescimento do desemprego com redução dos níveis de renda real e diminuição de gastos com as políticas sociais. Alem disso, o gasto efetivo do governo cresceu 3% a .a., da década de 90 até 2001, enquanto o gasto financeiro teve incremento de 21% a .a. Com relação a 2004 e anos seguintes, Dedecca se pergunta: “é possível esperar uma melhora significativa do mercado de trabalho?(...) um crescimento do PIB de 3,5%[previsto para 2004],com um aumento da população brasileira de 1,7% deverá permitir uma elevação de 2% da renda per cápita em 2004. Esse mesmo crescimento deverá viabilizar um incremento máximo do emprego formal de 1,5% contra um crescimento da População Economicamente Ativa, ao redor de 2,4%”9. E, completa: “qualquer modificação positiva do quadro atual do mercado nacional de trabalho exige um crescimento do produto superior a 5% a .a., por um período prolongado”10. Ora, como já analisado para toda América Latina, esse quadro é compatível com os estudos e prognósticos da CEPAL. É quase impossível obter o crescimento do produto nesse patamar, como já antes afirmado. Assim afirma Singer: “A economia brasileira se encontra, pois, numa corrida contra o tempo “11. E os dados demonstram a situação perversa de sujeição de toda América Latina, e não só do Brasil, às políticas externas do neoliberalismo que têm provocado efeitos lastimáveis sobre as condições sócioambientais. Como se vê, pela tabela 1, a seguir, a concentração de renda na região não é apenas alta, porém crescente. Entende-se que a melhoria dessa distribuição é um imperativo, não só de impacto econômico-social mas, sobretudo ético. Se, se deve entender os direitos humanos como direitos morais, diz-nos Garcia Añón que:
“isso não implica afirmar que todos os direitos morais podem ser considerados direitos humanos, mas somente aqueles direitos morais que constituem razões éticas justificadas ou importantes e fortes razões de ordem moral e política e tais razões são proporcionadas, precisamente, pelas necessi-dades. Isto é, somente os direitos morais que podem justificarse com referência a bens ou necessidades do ser humano são dignos de proteção”12 Quando aqui se refere a necessidades humanas básicas deve-se entender que elas se concentram no limite da dignidade humana, ou melhor, de sua degradação. Isto porque, o ser humano em estado de necessidade plena – de pobreza ou de indigência – está em risco, não apenas material como moral e ético, bem como coloca em risco todo seu grupo social. Assim se refere Añón Roig quanto às necessidades fundamentais ou básicas: “...têm um caráter irresistível, que provocam um estado de sofrimento ou dano grave (...). Os critérios relevantes são pois:sofrimento ou dano, irresistibilidade e ausência de uma situação alternativa ou impossibilidade de uma situação futura substitutiva”.13 Pode-se depreender que para a autora, com o que se concorda, as necessidades fundamentais relacionam-se de forma direta ao princípio da igualdade material. Sendo assim, políticas públicas deveriam considerar como imperativo humano de primeira ordem à igualdade de acesso a bens e serviços, ou seja , sem a realização das necessidades humanas mínimas não só estão descumpridos os direitos fundamentais e humanos, bem como estão sendo diminuídas todas as possibilidades de uma sociedade que, mesmo não convivendo na abundância, se dedica a distribuir os bens disponíveis àqueles que mais necessitam deles. É bastante visível que há nos países periféricos uma desesperança em relação a mudanças efetivas que possam recompor o bem-estar social e atribuir maior dignidade à população como um todo, em especial àquela em condição de pobreza e indigência. Com isso, a eticidade do acordo político fica abalada e, com ela, também a manutenção das relações democráticas e solidárias para o funcionamento da economia e a sustentação da governabilidade. Assim, ficam minadas as possibilidades de expansão dos direitos humanos e fundamentais. Relembre-se que, desde 1995, já afirmava José Eduardo Faria: “...Além disso, de que modo estender os direitos humanos do plano tradicional dos direitos civis e da segurança patrimonial para o plano dos direitos à vida, ao trabalho,à saúde, educação,à alimentação e à moradia em países estigmatizados por ‘dualismos estruturais’ altamente perversos (...)?14.” Para o autor, esse é um desafio que pressupõe Estados modernos, dotados de poder para a promoção de transferências fiscais e previdenciárias, além da execução de políticas sociais que tenham a previsão de prioridades que eliminam privilégios e preconceitos tradicionais da sociedade brasileira. A condição ideal seria alcançada quando o Estado fosse capaz de responder às reivindicações coletivas para uma inclusão sócio-econômica eficaz dos grupos marginalizados. Sobre essas questões, já àquela época, comentava Faria:
“até que ponto isso é possível num cenário mundial caracterizado pelos fenômenos da globalização econômica, da transnacionalização das estruturas de poder (...)? Como obter uma correspondência entre a competitividade internacional e a redução das desigualdades sociais por meio da ação de estados eficientes (...) e submetidos a uma ordem constitucional democrática e pluralista?”15 Após as demonstrações sobre a pobreza crescente na América Latina, incluindo-se o Brasil, e a suposição cada vez mais presente de que grandes esforços deverão ser feitos para reversão dessa situação, deve-se entender que, por todas essas razões, é indispensável considerar que as necessidades concedem aos indivíduos e aos grupos sociais argumentos sobre a justiça e a justeza dos fatos e das relações. Portanto, também sobre os fundamentos de sua legitimidade. Sendo assim, a constituição dessa legitimidade deverá ter, igualmente, conteúdo social e cultural, obtido a partir de consenso discursivo amplo e expandido inclusive às camadas populacionais excluídas, para se possa realizar um exercício efetivo de uma democracia onde a participação se estruture de forma solidária e emancipada. Pelas demonstrações, razões e conceitos expostos até o momento, é que se acredita, neste trabalho, que uma metodologia eficaz de constituição de capital social e humano para a minimização de violências, dentre estas a situação de pobreza e indigência, poderia gradualmente reverter em parte esse quadro de desenvolvimento social negativo.
3. CAPITAL SOCIAL, POBREZA E MINIMIZAÇÃO DE VIOLÊNCIAS: A VISÃO DA CEPAL
Pode-se deduzir, pelo exposto, que o desenvolvimento econômico não deve estar desconectado de sua organização social e de suas formas culturais de mudanças e de seu próprio modo de entender e de realizar essas transformações. Ou seja, o desenvolvimento econômico não pode se realizar por si, como um ente sobrenatural que dita as regras e normas de uma sociedade, como seu algoz, e sim como um dos elementos de parceria para o desenvolvimento dessa sociedade como um todo. Afirma Stiglitz que: “as relações econômicas não provêem de um modelo próprio, mas que estão embedded, ou seja, incrustadas em um tecido social e cultural que permite estabelecer conexões dos fenômenos econômicos com a esfera sociocultural”16 O documento final da “Conferência Regional sobre Capital Social y Pobreza”, realizada em Santiago do Chile, na sede da CEPAL, de 24 a 26 de setembro de 2001, traz anotações importantes sobre a relação capital social e pobreza que merecem ser analisadas para, em seguida, se apresentar a Metodologia de Capital Social, um dos fulcros desta comunicação e cuja proposta surgiu da experiência de campo dos vários projetos do Programa “Pólos de
Cidadania “, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, do qual a autora deste trabalho é uma das coordenadoras.
3.1. O conteúdo da proposta
Um dos produtos da Conferência foi a discussão sobre o melhor conceito de capital social. De início, sustentou-se que o conceito teria surgido de campos disciplinares diferenciados, como uma aproximação para a abordagem das conexões entre as relações econômicas e as relações sociais em um único sistema e identificar, segundo esse marco, as forças sociais que interagem com os processos de desenvolvimento. Segundo os integrantes e especialistas que participaram da Conferência esse conceito destacou: “...um aspecto importante do comportamento sócio-econômico, qual seja, o papel das relações que não são de mercado na determinação do comportamento individual ou coletivo e, por essa razão, o conceito de capital social tem participado fortemente das análises sobre a pobreza e, por conseqüência, do desenvolvimento “17. Pode-se verificar que o documento trabalha com sinergias entre as relações econômicas e sociais entendendo-se que seus efeitos poderão contribuir para melhorar as políticas contra a pobreza. O conceito final de capital social que foi selecionado é o que se segue: “O conjunto de normas, instituições e organizações que promovem a confiança e a cooperação entre as pessoas, as comunidades e a sociedade em seu conjunto”18. O documento ressalta a diferença entre “instituições” e “organizações”. O conceito de instituições é ali entendido como uma interação entre dois campos, os efeitos normativos por um lado e os papéis, relações e condutas, por outro. Tudo isto incluído no termo “instituição”. E explica que o objetivo dessa definição é distinguir capital social de capital cultural, apesar de que esses dois tipos de capital interagem e não são excludentes ou determinantes um quanto ao outro. O capital social está relacionado mais diretamente à esfera das condutas e o capital cultural às esferas abstratas e normativas. Ambos pertencentes ao sistema sócio-cultural. Há, ainda, um terceiro plano, que corresponde à base material, possivelmente às relações econômicas(o documento não deixa explícito este terceiro plano), que também interage com as outras esferas, todos eles se retro-alimentando. O que se deseja aqui é ressaltar que os integrantes da conferência concluíram que capital social é um paradigma que não se restringe ao capital social tradicionalmente conceituado. Refere-se, porém, ao sistema complexo da sociedade humana: “que pode expressar-se em qualquer nível territorial: a comunidade local, o bairro, a região ou (o que é mais difícil de se analisar) uma nação, um país, uma sociedade nacional”.19
Uma outra definição de grande valor metodológico do documento é aquele que se relaciona à noção de “capital social individual” e o “capital social de um conjunto”. O primeiro resgata a noção de confiança e solidariedade, de redes ”ego-centradas”. Este capital está vinculado à noção de reciprocidade difusa que é muito comum em ambientes de exclusão e de risco e que, na metodologia a ser aqui exposta será denominada “intercompreensão”, como uma variável de grande valor para a constituição de capital social em determinada comunidade. O segundo, “capital social de um conjunto”, conforme o documento, é definido como aquele que se expressa em instituições complexas. Nesta acepção, o capital social não se encontra nas relações interpessoais mas, em suas estruturas normativas, gestionárias e sancionarias. Também quanto a esta noção, a metodologia a ser exposta neste trabalho diverge, ou seja, a rede para a constituição de capital social forma-se tanto por relações interpessoais como pelas relações de grupamentos ou conjuntos, sejam eles familiares, comunitários ou institucionais Este último no sentido correlacionado às estruturas administrativas-estatais. Também em nossa metodologia a noção de rede tem um papel importante. Ela não é vista, contudo, como apresenta o documento, um simples “associativismo”. Além desse enfoque, essas redes devem ter também os componentes da autonomia e da emancipação e devem ser do tipo misto, ou seja, constituem-se de organizações comunitárias, da administração estatal, além de lideranças inescusavelmente legítimas dessas comunidades. O documento - síntese da Conferência apresenta quatro utilidades que são próprias ao enfoque de capital social e que contribuem para um conjunto de benefícios: · “Reduz os custos de transação, ao reduzir ou evitar a necessidade de se firmar contratos, controlar fraudes e os altos custos dos pleitos judiciais. ·
Produz bens públicos (...) ou benefícios para o conjunto da sociedade.
· Facilita a constituição de organizações produtivas e de gestão efetiva de base: empresas associativas de todos os tipos. · Facilita o surgimento de novos atores sociais e de sociedades civis saudáveis,nos níveis dos sistemas nacionais.Indiretamente, este processo de empoderamento é um elemento chave para a superação da pobreza material”20 Da mesma forma que a metodologia a ser apresentada, o documento conclui que, em primeiro lugar, “é crucial investir na capacidade organizativa dos pobres”21. E isto se deve dar em dois níveis: no micro, em que se investe na criação de associações e, no macro, atuando na mudança de regras e leis para o apoio e sustentação da atividade associativa. A diferença entre as duas metodologias é que aquela a ser apresentada contém maior heterogeneidade de ações tanto no nível micro quanto no macro.
Sobre a utilidade do capital social o documento afirma, de forma bastante adequada e salutar em termos da erradicação da pobreza, que : “o capital social não está igualmente distribuído na sociedade (...) Uma das causas da pobreza mais extrema é justamente a destruição ou perda de redes de apoio das pessoas e das famílias”.22 Isto não significa que o capital social seja patrimônio dos pobres. Freqüentemente, diz o documento, as classes sociais superiores são ricas em capital social, como o associativismo dos empresários, por exemplo, que constituem verdadeiras redes de cooperação e reciprocidade. O documento reitera, entretanto, a necessidade de potencializar as capacidades dos pobres para a formação de seu capital social, sem paternalismos ou assistencialismos. É indispensável entender que o conceito de capital social ajuda à compreensão da reprodução das desigualdades sociais, ou melhor, o desempenho de papéis que tradicionalmente foram descurados, tais como: o papel da educação, das relações sociais e familiares, dentre outros. Citando Durlauf23, o documento mostra como, inevitavelmente, na sociedade moderna formam-se grupos sociais excludentes que conduzem a uma estratificação que se reproduz por gerações. Para as argumentações que se seguem, na próxima seção, é de grande valor a afirmação final do documento que declara ser importante o debate sobre capital social em vista de que “permite entender melhor por que alguns programas anti-pobreza tiveram êxito e outros fracassaram e dá pistas sobre a maneira de evitar a repetição dos erros passado”24
4. UMA METODOLOGIA DE CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL SOCIAL PARA MINIMIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE RISCO E DE VIOLÊNCIAS EM SEGMENTOS POPULACIONAIS EXCLUÍDOS.
Como já se afirmou no início desta comunicação, a sociedade globalizada, o “sistemamundo”, acelera-se não apenas em termos econômicos, mas sobretudo em seus aspectos de informação e comunicação. Os intercâmbios, sejam na áreas científico - tecnológica, sóciocultural ou mesmo de interesses individuais, ocorrem de forma instantânea e a todo momento. Esses intercâmbios já fazem parte do cotidiano das pessoas. Para Elenaldo Teixeira: “Tudo isso acarreta mudanças nas formas de pensar , informar, produzir, consumir, gerir, fazer política, levando a uma sociedade cada vez mais organizada em torno da produção, distribuição e manipulação de símbolos, e a uma cultura construída em torno do audiovisual, com a crescente digitalização das mensagens”25
Esse sistema-mundo, que ao mesmo tempo informa, comunica e inclui camadas intelectuais e as elites política e econômica, além das camadas médias das sociedades, é, também, um fenômeno que acarreta grandes exclusões e que distancia de forma cada vez mais evidente as camadas mais pobres das sociedades de seus demais setores. No atual momento internacional, ter acesso à informática e a todos os mecanismos da era digital é um privilégio de alguns e que marginaliza inúmeros segmentos sociais que passam a ser excedentes. Este fenômeno, na atualidade, não se restringe aos paises periféricos, também os desenvolvidos foram afetados pela ampliação do desemprego e a flexibilização crescente das relações de trabalho. Porém, como foi demonstrado nas primeiras seções deste trabalho, ainda são os países periféricos, ou do chamado Terceiro Mundo, que mais sofrem os impactos da globalização das relações, quer por não estarem preparados para a efetivação de políticas sociais mais proativas, quer por terem acumulado, historicamente, enormes segmentos sociais de pobreza e de indigência. O sonho da inclusão desses paises no sistema-mundo capitalista esvai-se com o passar dos tempos e seus problemas internos se multiplicam. O aprofundamento das necessidades básicas é evidente, ou seja, há uma incapacidade de acesso à moradia sustentável (domicilio dotado de acesso a água potável, luz elétrica e esgoto sanitário, e regularização da propriedade); uma inviabilidade de se inserir em ambiente também sustentável (ruas calçadas e ajardinadas, córregos urbanos preservados, casas com distâncias dos vizinhos segundo a legislação, etc); uma desarticulação crescente do acesso a bens e serviços(transporte coletivo nos bairros de maior pobreza, coleta de lixo, serviços de educação e de saúde de qualidade, áreas de esporte e lazer, etc.). Todos esses fatores colocam em situação de risco grandes segmentos sociais urbanos de menor potencial de geração de renda e de altas taxas de desemprego ou de subemprego. Além dos riscos e dos danos em razão do aprofundamento das necessidades básicas ocorrem, ainda, em razão de todos os fatores citados, a multiplicidade de ocorrências de violências intra e extradomiciliares. Os direitos humanos e fundamentais dessas camadas mais pobres das sociedades (mais de 40% da população da América Latina e do Brasil) não se sustentam e tornam-se cada vez mais uma ilusão, um grande desencantamento, uma perda crescente de esperança desses segmentos excluídos de obterem bem-estar. Todos esses fatores de degradação humana foram vivenciados na prática pelos integrantes do Programa “Pólos de Cidadania “ que atuam há dez anos nas áreas ou aglomerados de favelamentos da cidade de Belo Horizonte. As quatro áreas em que o Programa atua (Aglomerado Sta Lúcia, Aglomerado da Serra , Jardim Felicidade e Beco São Francisco) representam em torno de 155.350 moradores. Todos os problemas e necessidades fundamentais dessas populações de extrema pobreza levaram o Programa a procurar alternativas para minimização ou superação dos riscos e danos que acometem esses segmentos sociais diuturnamente, além das inúmeras violências que conturbam a tranqüilidade das famílias, grupos sociais e indivíduos dessas localidades. O desemprego e subemprego, os domicílios em locais de desabamentos iminentes, a fome ou a falta de nutrientes mínimos para uma sobrevivência sadia (especialmente de crianças e idosos) são riscos e danos que interferem sobre as condições de realização de cidadania dos
moradores dessas comunidades. E, se isto não bastasse, as inúmeras violências intra e extradomiciliares afetam essas populações em seus cotidianos, sem cobertura efetiva da segurança pública. Violências tais como: espancamentos de mulheres e filhos, por embriaguez ou outros vícios; espancamentos de idosos por filhos, genros ou mesmo netos; homicídios de companheiros, de filhos, pais ou avós; não contando estupros e outros crimes sexuais, são alguns exemplos de violências intradomiciliares que ocorrem praticamente todos os dias. Dentre as violências extradomiciliares destaca-se a ação do tráfico de drogas que, inúmeras vezes, controla essa população pelo uso da força impondo horários de entrada e saída dos aglomerados, conduzindo jovens e crianças para servirem como distribuidores da droga nos próprios aglomerados ou em bairros de classe média e alta (os famosos “aviões”). Esses jovens são “marcados” e não conseguem evadir dessa função, a não ser com o custo da própria vida. Além do tráfico, a aglomeração de pessoas nessas regiões é tão densa que causa constantes conflitos entre vizinhos e/ou moradores de uma mesma rua. Há invasão de terrenos, construções que afetam outras moradias, crianças que invadem espaços alheios, dentre muitos outros problemas que surgem como um pequeno dano e acabam em grandes violências e, até mesmo, homicídios. Como já se disse, o Programa procurou diversas alternativas e, no momento, atua com a proposta de constituição de capital social, formação de redes sociais mistas e a resolução de conflitos pela metodologia da mediação. Todas essas propostas metodológicas estruturam-se a partir de três núcleos temáticos fundamentais, ou marcos teóricos: cidadania, subjetividade e emancipação. Conceitua-se cidadania como a democratização de relações para sustentação da diversidade. Essa diversidade pode ser étnica, religiosa, de gênero, sócio-econômica, dentre outros. A cidadania pode ser construída e realizada em espaços domésticos, produtivos e político-comunitários. Os pressupostos de democratização são : a) desocultação das variadas formas de violências; b) resgate do “princípio de comunidade”; c) relações horizontalizadas e coextensivas; d) estímulo ao desenvolvimento de competências individuais, interpessoais e coletivas. A subjetividade, segundo eixo teórico que fundamenta as ações dos projetos ligados ao Programa, deve ser entendida como a capacidade de autocompreensão e de responsabilidade do indivíduo e que, ao mesmo tempo, demonstre competência criativa que permita a expressão de uma personalidade autônoma e crítica. Entende-se por emancipação a capacidade de permanente reavaliação das estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas de seu entorno, com o propósito de ampliação das condições jurídico-democráticas de sua comunidade e de aprofundamento da organização e do associativismo com o objetivo de efetivação das lutas políticas pelas mudanças essenciais na vida dessa sociedade para sua inclusão efetiva no contexto social mais abrangente.
Considerando as necessidades, danos e riscos dessas localidades e os núcleos temáticos teórico-metodológicos do Programa é que finalmente se optou pela conjugação: constituição de capital social/ formação de redes sociais mistas/estratégia de mediação. A partir da experiência do Programa nessas localidades e em outros de igual ou maior exclusão social e risco, entendeu-se que capital social deveria ser concebido como a existência de relações de solidariedade e de confiabilidade entre os indivíduos, grupos e coletivos , inclusive a capacidade de mobilização e de organização comunitárias, traduzindo um senso de responsabilidade da própria população sobre seus rumos e sobre a inserção de cada um no todo. Estes elementos subjetivos manifestam-se em ganhos concretos sobre a resolução de seus problemas, por possibilitarem maior acesso aos direitos e conseqüente melhoria da qualidade de vida e de bem-estar. A comunidade passa a atuar como sujeito compreensivo e participante em seu meio social, ao invés de mero beneficiário de assistencialismos e/ou de clientelismos. Por essas razões, as ações dessa metodologia devem ultrapassar o âmbito das atuações conjunturalmente emergenciais. Os mecanismos de ação e os resultados devem ocorrer de forma enraizada e permanente no cotidiano das comunidades, mediante a revisão de práticas sociais, no sentido de favorecer a mobilização e a organização popular, consolidando a cidadania. Enfoca-se, prioritariamente, a instauração de práticas solidárias e o processo emancipador dos sujeitos individuais e coletivos. A proposta de uma metodologia que tenha como objeto a relação entre capital social e violências justifica-se em função das altas taxas de criminalidades de todos os tipos que vêm incidindo sobre comunidades em situação de risco. Essas violências, como já exposto, são formas não apenas extrafamiliares como genericamente são entendidas mas, especialmente, intrafamiliares. Estas últimas são reforçadas por situações de estresse familiar, causadas pelo desemprego (especialmente dos chefes de família), pelo congestionamento domiciliar (excesso de moradores por unidade habitacional) e congestionamento de unidades habitacionais entre si (áreas com alta densidade de moradias). Uma das questões a serem obtidas pela constituição de capital social em determinada comunidade é, fundamentalmente, torná-la emancipada, ou seja, capaz de dialogar, influenciar, deliberar e intervir nas decisões do poder público e/ou da própria comunidade, percebendo-se efetivamente capaz de atuar na solução de seus problemas a partir de relações de organização e de solidariedade, minimizando a reiteração das diversas formas de violência e de danos. A metodologia sustenta-se a partir de uma conexão da teoria com a prática e se estrutura nos conceitos de cidadania, intercompreensão, estabilidade social e emancipação. A ação de campo deve utilizar-se, portanto, da técnica de pesquisa-ação que deve se concentrar na identificação, análise e interpretação das variáveis já existentes nas comunidades e em suas organizações e que permitam demonstrar a existência de traços ou indicadores de capital social ou formas similares que permitam a minimização das violências, riscos e danos a partir dos próprios segmentos comunitários excluídos.
Trata-se de uma linha metodológica qualitativa que prioriza o contato com problemas coletivos e ela própria realiza-se a partir da atuação coletiva, ou seja, deve-se priorizar ações, discussões e decisões de equipe, especialmente da rede social, utilizando-se do controle metodológico da intersubjetividade e da interdisciplinaridade. Os resultados devem ser processados nas e pelas comunidades, formando um círculo virtuoso de revisão de práticas sociais, de mobilização e de organização popular, favorecendo a cidadania. A “observação”, a “escuta”, a “compreensão” e a “intervenção” são procedimentos primordiais que beneficiam a técnica investigativa. Conjugada ou paralela às atividades de observação e de escuta, as formas de compreensão das situações devem se utilizar de procedimentos argumentativo-deliberativos que envolvem todos os integrantes e interlocutores da situação social onde se atua, a partir da ação da rede social mista e todos os seu parceiros – da esfera pública ou privada – utilizando-se de estudos de caso, reuniões, debates , capacitações, seminários, conversas informais, ou seja, todo procedimento que seja fundamentalmente dialógico e que envolva o maior número de integrantes e lideranças da comunidade. A metodologia, a partir de sua técnica e procedimentos, constitui-se em um verdadeiro movimento pedagógico de transformação da situação tendo em vista a constituição de capital social em um sentido emancipador. Para obter os objetivos propostos, são trabalhadas duas variáveis independentes, três dependentes e uma interveniente. As variáveis independentes são a intercompreensão e a estabilidade. Sem a realização dessas variáveis entende-se que não se atinge qualquer nível de capital social, quer em comunidades de baixa renda quer em outras onde o estrato social seja médio ou alto. A intercompreensão deve ser entendida no sentido de inter-relacionamento e de identificação entre sujeitos e/ou grupos ou coletivos, a partir da vivência de uma história comum de problemas, danos e riscos compartilhados. Esses sujeitos constroem relações de ajuda mútua, de forma organizada ou individual (apoio informal de ajuda, apoio em situações de risco, capacidade de mobilização). A intercompreensão envolve, desta forma, tanto relações que variam no sentido da solidariedade quanto no sentido da organização, com intensidades variadas. Dessa variável independente decorrem as variáveis dependentes da organização e da solidariedade (ver Quadro Físico de Variáveis, e indicadores a seguir). Da variável independente da estabilidade decorre o acesso a direitos. Acredita-se que esta última – variável dependente –, proporcionada por políticas sociais da administração pública ou por outros meios próprios da sociedade civil (organização da comunidade em torno da reivindicação desses direitos, atuação de grupos não governamentais externos à comunidade, porém parceira desta, atuação da comunidade junto ao poder público ou mesmo relações mutualistas e solidárias, muitas vezes orientadas pela rede social) reforça a estabilidade da população permitindo que ela permaneça em seu próprio local de moradia. A população em condições de estabilidade tende a manter melhores níveis de organização e de solidariedade, além de uma relação de conservação, manutenção e iniciativa de melhoria do ambiente externo e do próprio domicilio onde habita.
A sensação de pertencimento à comunidade onde reside motiva a conquista de melhorias individuais e coletivas de vida e de bem-estar. Entende-se, ainda, que a obtenção do acesso aos direitos à saúde, à educação, ao lazer, à regularização fundiária, à moradia sustentável, bem como à geração de renda, são direitos e relações contínuas que contribuem para a estabilidade da população no local onde mora, melhorando-o e tornando-se mais viável a constituição de capital social que permitirá níveis mais baixos de violências e danos a essa população. Do que se afirmou, pode-se depreender a necessidade das condições de sustentabilidade espacial, temporal, social e econômica. Esta última, proporcionada pela ação de Incubadoras de Cooperativas Populares, um dos projetos do Programa “Pólos”, que, a partir de grupos de profissionais já existentes na comunidade ou em formação, organizam-se para a geração de renda própria, uma das formas de superação do desemprego ou subemprego. Esse associativismo cooperativo de produção permite uma geração de renda autônoma e estável, se bem orientado. A variável interveniente, que sustenta tanto a estabilidade quanto a intercompreensão, pode não ocorrer em todas as comunidades. Ela ocorre, no entanto, com mais freqüência, nas estruturas sociais de maior pobreza, como nos favelamentos. Esta variável consiste na existência de comunidades consangüíneas de médio e grande porte. Essas comunidades constituem-se de familiares que se agregam por necessidade de segurança e de sustentação da sobrevivência. De um modo geral, elas conseguem satisfazer suas necessidades básicas de modo mais efetivo e com maior facilidade. Essas comunidades consangüíneas, apesar do termo, são muitas vezes formadas por pessoas a elas agregadas pelo fenômeno do “compadrio”, por exemplo. Por um ato religioso de batismo dos filhos os compadres e comadres tornam-se membros dessas extensas famílias, apesar da não-consangüinidade. Nelas se formam verdadeiras redes naturais de relacionamento que mantém tanto a estabilidade quanto a intercompreensão. Isto não significa que nessas famílias não ocorram violências intradomiciliares e danos morais sérios. Supõe-se, entretanto, que elas consigam superar esses problemas a partir dos tradicionais conselhos familiares. As regularizações fundiárias ou qualquer outro tipo de ação governamental não deverá desestruturar ou desagregar esse tipo de estrutura familiar que, afinal, é capaz de possibilitar solidariedade e estabilidade. A constituição/incremento de capital social em estratos sociais de pobreza ou indigência poderá, a partir da experiência do Programa Pólos de Cidadania, em áreas de favelamento, possibilitar: · oportunidades que permitam aos indivíduos e aos grupos, ou coletividade, adquirir capacidades efetivas de minimização de danos, privações ou sofrimentos graves e, assim, ampliar suas potencialidades de atividade criativa e interativa, cuja pré-condição é a autonomia; · potencialidades de aprendizagem, de criatividade e de inovação do ser humano, permitindo-lhe, a partir da condição de crescente autonomia, ser capaz de transcender uma visão de um discurso comunitário tópico e os limites de uma linguagem normativa particular, possibilitando um processo de emancipação do ser humano, apesar de suas
condições adversas de vida.Esse ser insere-se em um processo de construção normativa que, a partir da expansão das relações democráticas, realiza-se pelo desvendamento e compreensão das variadas formas de exclusão e de violências do mundo contemporâneo.
5. A CONEXÃO DA CONSTITUIÇÃO/INCREMENTO DE CAPITAL SOCIAL COM O PROCEDIMENTO DE MEDIAÇÃO PARA A CIDADANIA.
Sabe-se, pelos relatos apresentados nas demais seções desta comunicação, que a proposta de constituição/incremento de capital social dá-se, pela presente metodologia, em espaços de pobreza, indigência e de exclusões sociais de todos os tipos. Nesses espaços de grandes aglomerações humanas, em razão dos variados danos e riscos que sofrem esses segmentos populacionais, os conflitos de maior ou menor magnitude são constantes. Por essa razão, entende-se que a metodologia de constituição e/ou incremento de capital social deve estar interconectada com a metodologia de mediação para a resolução de conflitos. Por esse motivo, não se poderia apresentar uma metodologia sem seu complemento indispensável no sentido de que a constituição de capital social pudesse ter a efetividade necessária, ou seja, não apenas realizar seus próprios objetivos como, inclusive, responder às demandas e necessidades da população por maior harmonia e estabilidade de convivência. Essa conexão entre as duas metodologias supõe duas frentes que se interconectam: uma equipe voltada para as ações de mediação que se desenvolvem no interior de um “núcleo” (espaço doado por associações comunitárias, organizações não governamentais ou governamentais, casas da comunidade, etc.) e, uma outra equipe, de expansão de atividades, que trabalha externamente e em conexão com a rede social mista que se dedica às ações de constituição/incremento de capital social na comunidade. Uma completa a ação da outra. O Programa “Pólos de Cidadania”, aplica, há alguns anos, essa metodologia, sob os suspícios de empresas para-estatais e do próprio Governo do Estado (Secretaria de Defesa Social). O que distingue essa metodologia é sua interdisciplinaridade e que tem tido como efeito, inclusive, uma interinstitucionalidade. Assim, tanto as equipes dos núcleos e da “expansão” são interdisciplinares, ou seja, são compostas de profissionais e de estudantes egressos do Direito, da Psicologia Social,da Sociologia e da Assistência Social, além de lideranças e moradores da própria comunidade. O fundamento dessa interdisciplinaridade é a noção de que o processo de mediação conectado à constituição de capital social exige uma multiplicidade de saberes que sejam capazes de compreender e de decidir problemas e de satisfazer necessidades que são originadas e afetadas pela complexidade dos fenômenos sócio-culturais, jurídicos e econômicos. Essa complexidade deve ser decodificada por saberes plurais, inclusive e primordialmente, por aqueles que “brotam” da própria comunidade.
As ações e atendimentos realizados no interior dos núcleos seguem uma proposta de resolução extrajudicial de conflitos, a partir de um processo metodológico de mediação. Essa proposta de resolução foi selecionada, dentre outras similares, por se entender que essa técnica é a mais adequada aos princípios que fundamentam a metodologia de capital social aqui apresentada, por ser também emancipadora. Verificou-se, ainda, que a esfera formal do Direito já não mais dá conta da crescente complexidade social e do aumento permanente de litígios em decorrência dessa mesma complexidade e da grande heterogeneidade das sociedades periféricas. Por essa e outras razões é que tem surgido nos últimos tempos um processo internacional – e não só nacional ou em países de desenvolvimento precário – da “desjudicialização”, no sentido de melhorar as relações sócio-culturais, prevenindo ou solucionando as diferenças entre indivíduos ou entre grupos, antes que eles se transformem em litígios ou violências só passíveis de solução no interior dos tribunais ou das esferas administrativas. O sentido é, inclusive, de desbloquear os tribunais que com a complexidade e heterogeneidade das sociedades tornaram-se saturados por uma enormidade de processos – em grande parte desnecessária – que constituíram a tão propalada “crise” do Poder Judiciário. Sobre o assunto, André-Jean Arnaud afirma de forma incisiva: “No futuro, os profissionais do Direito deverão recolocar a mentalidade do ‘ganhar/perder’ por outra: a busca de um projeto de ação que vá além do conflito, na esperança de que cada uma das partes saia o menos prejudicada possível, sentindo-se ambos ‘ganhadores’ por não haverem utilizado uma solução mais radical para resolver o conflito que antes enfrentavam.Em outros termos,uma ordem jurídica negociada se imporá progressivamente...”26 Essa metodologia de mediação foi gerada em contato com a realidade social de exclusão e foi sendo gradualmente adequada aos tipos de conflitos prevalecentes a partir de um campo teórico originado nas concepções de relações democráticas e “mundo da vida e sua colonização” expressas por Boaventura de Sousa Santos e por Jürgen Habermas. O objetivo fundamental foi sempre a busca de alternativas que permitissem o resgate dos direitos humanos em sociedades de risco e de exclusão. Como já se expôs, tanto quanto para a constituição de capital social quanto para a mediação, os núcleos temáticos da metodologia são os conceitos de “cidadania” ”subjetividade” e “emancipação”. No primeiro momento do processo de mediação, a equipe interdisciplinar dispõe-se a compreender o conflito em seu relato inicial. Sabe-se que, nesse primeiro contato, os relatos apresentam inúmeros bloqueios de conteúdo social, psicológico-afetivo e de desvirtuamento da noção de justiça. O mediador deverá, pois, estar atento às ocorrências de contradições, exacerbação de ânimo ou de relatos ininteligíveis tendo em vista a situação artificial e “atemorizante” do primeiro encontro. Para que essa situação seja menos opressiva, deve-se atender o litígio (seja uma única pessoa que relata, os dois conflitantes, ou mesmo um grupo) por, no máximo, uma dupla interdisciplinar e não toda a equipe. Essa dupla poderá constituir-se de dois profissionais de áreas diferentes e complementares, ou um profissional e um estagiário.
Apesar desse primeiro contato ser, quase sempre, bastante emocional, a dupla de “escuta“ e de compreensão do caso já deverá iniciar um processo de reflexão sobre as características do litígio e seus limites, para início de um processo de conscientização do próprio demandante sobre os bloqueios de sua exposição. O caso, por mais simples que seja, é posteriormente apresentado a toda equipe interdisciplinar para à discussão de encaminhamentos a serem dados. Essa discussão deve enfocar não só as características práticas do relato, mas, principalmente, construir uma “teoria” sobre a questão posta. Essa teorização do caso é sua compreensão efetivamente interdisciplinar tendo em vista os “olhares” teóricos que acompanham a escuta do conflito e que serão decodificados por toda equipe através de conteúdos e conceitos interdisciplinares. A decodificação da escuta feita no primeiro momento deve sempre considerar que qualquer que seja o problema posto há sempre uma legitimidade naquilo que se postula. Daí porque, o encaminhamento, ou o prosseguimento dos encontros, deverão ser considerados a partir de um compromisso teórico-prático da equipe. Teorizasse a prática. As características do próprio caso, contudo, limitam a capacidade da teoria de compreender a realidade.Daí porque, há um processo dialético de compreensão do litígio que é bem diverso do procedimento silogístico utilizado pelas estruturas formais do Direito. Entre o caso tópico e sua teoria deve haver um caminho sinuoso de compreensões múltiplas até se chegar às opções de encaminhamento. Afirmou-se que a mediação é um processo dialético de compreensão do litígio. Deriva disso, portanto, que há uma complexidade inerente a esse processo. Dir-se-ia, ainda, que se constitui na prática como um processo dialógico para a resolução de situações problemáticas ou de conflitos sociais e jurídicos, através de acordo/consenso que, em suma, substitui a aplicação coercitiva de uma sanção legal ou, até mesmo, moral. Por essas razões, entende-se que esse processo necessita de um apoio retórico para se atribuir às partes um poder de decisão sobre a situação exposta. Esse poder de decisão pode parecer um privilégio que se deve atribuir ao mediador. E, em grande parte dos casos, aquele que procura o núcleo de mediação desejaria que assim o fosse. O poder de decisão, entretanto, pertence às próprias partes e se dá a partir de convencimento e não de persuasão. O convencimento deve ser entendido como a aceitabilidade dos argumentos. E, essa argumentação interdisciplinar é legitimada no próprio processo argumentativo, não só do mediador, como das próprias partes que, inúmeras vezes, se ouvem pela primeira vez. Vêse,pois, que a metodologia de mediação, tal como aquela proposta para a constituição de capital social, fundamenta-se em relações democráticas por incorporar todas as “vozes” e, apesar de ter um poder decisório limitado, quando efetivamente aceito pelas partes, pode ter efeitos duradouros, a despeito de se dar em esfera administrativa não-formal. Além de democrático ele é, principalmente, emancipador. Isto porque, numa situação de mediação, os integrantes (individuais ou grupais) devem exercer sua capacidade de autonomia crítica e de interação dialógica para o julgamento da questão. Essa criticidade não deve ser qualidade apenas dos indivíduos que se encontram em situação problemática ou de litígio. Toda a equipe deve ser portadora dessa autonomia crítica. Ou seja, durante o processo de mediação todos deverão ter o poder de apreender, ordenar e de julgar conceptualmente seu entorno social, sua pessoa e sua interações. Além disso, deverão ser capazes de, a partir de formas discursivas, justificar suas escolhas e decisões perante o(s) outro(s).
A importância da resolução de problemas e conflitos a partir do mecanismo extrajudicial da mediação é que, além de realçar a autonomia dos participantes, propõe a reconstrução crítica do conflito. E, essa reconstrução tem aspectos da maior relevância. Em primeiro lugar, ela é capaz de valorizar os pontos positivos do problema/argumentação de cada envolvido. Além disso, permite a compreensão do “verdadeiro” conflito ou de seu aspecto mais importante. E, finalmente, promove a consciência das partes de que o problema tem solução e de que são eles mesmos que deverão superá-lo. Elimina-se, afinal, a conflituosidade através de acordos e não a partir de um esquema autoritário do tipo “ganhaperde”.
5.1 A mediação como um processo pedagógico
Afirmou-se que o poder decisório de todos os atores da mediação é ampliado se há aceitabilidade dos argumentos desenvolvidos e este fato dá-se a partir do convencimento dos envolvidos. Como se daria esse “convencimento”? Essa ação ou intervenção por convencimento é um sistema (ou conjunto de procedimentos) contínuo de interações dialógico-argumen-tativas entre pessoas, grupos e/ou organizações com o objetivo de alterar positivamente uma situação problemática. Pode-se afirmar, assim, que a mediação ocorre a partir do convencimento e, por essa razão, o mecanismo da mediação é essencialmente promoção de intersubjetividade e de intercompreensão. Isto se realiza a partir de um processo pedagógico no qual a linguagem deve ser socializada, ou seja, todos se entendem. Há a preservação da capacidade de veracidade, isto é, não se utiliza, de esquemas de ocultamento ou de distorções da realidade; e, a figura do mediador que integra esse processo é, antes de tudo, a de um promotor e facilitador dessa ação pedagógica. Sabe-se que todo processo pedagógico é sempre edificante, ou seja, ele é sempre transformador, ele “edifica” porque constrói novos parâmetros para a decodificação da situação problemática. Por ser um processo pedagógico, onde se aprende na argumentaçãoconvencimento, ele é essencialmente libertador pois, qualquer processo de aprendizagem emancipa os seres das amarras do desconhecimento e da desinformação. Enfim, por ser um processo pedagógico, a mediação é não só uma abordagem informativa mas, também, formativa. Por isso, cidadã, isto é, constitutiva de novas cidadanias. É nesse sentido, basicamente, que complementa a ação de constituição de capital social nas comunidades de exclusão e pobreza.
5.2 Seqüência metodológica do processo de mediação
Essa seqüência incorpora ações que se desenvolvem desde a recepção do caso e vão até sua conclusão.
O primeiro contato, ou “recepção” do caso, com um dos integrantes da equipe, é importante para a diminuição de ansiedades e ampliações das possibilidades de comunicação com a equipe de atendimento. Encaminha-se a pessoa/grupo, que trouxe ao núcleo o caso, à “dupla interdisciplinar de atendimento” que a recepciona de modo receptivo e amigo. Passa-se, então, à escuta do relato. Saber escutar é, também, saber interpretar e observar. Observam-se expressões fisionômicas e corporais, condições psicológicas que obstruem o relato, estado de ânimo, etc. Essa observação deve ser tão meticulosa quanto o escutar. Escuta-se não apenas o relato em sua linearidade como, inclusive, os silêncios, as palavras que começaram a ser pronunciadas, sem serem finalizadas, frases soltas que depois poderão ser inter-relacionadas com outros dados. Sem essa escuta meticulosa e indagadora a equipe, possivelmente, não terá condições suficientes para a completa decodificação e compreensão do problema. O terceiro momento é aquele em que se dá a primeira avaliação da situação problemática/demanda. A dupla interdisciplinar de atendimento deverá apresentar para a equipe a primeira impressão (produto da escuta/observação) sobre o caso com o objetivo de deliberação sobre as formas de continuidade da questão: será objeto de um processo de “informação”? De “encaminhamento”? Ou de “mediação”? Neste momento, não apenas se inicia a decodificação conjunta do caso como, também, buscam-se opções mais adequadas à resolução do problema. A equipe deve estar consciente de seu compromisso com o(s) demandante(s) seja qual for a opção escolhida. E isto tem uma razão: a situação problemática/demanda foi trazida, em primeiro lugar, ao núcleo e não a qualquer outro espaço de atendimento. Logo, mesmo que seja uma questão apenas de informação sobre os melhores caminhos para a solução do caso, a equipe deverá estar disposta a não só informar mas, encaminhar formalmente, em alguns casos, acompanhar e, sempre voltar a pedir informações sobre o andamento da questão. Um Núcleo de Mediação é um núcleo de compromisso. Quando o caso requer um processo de mediação, a opção mais adequada aos objetivos e natureza do núcleo, realiza-se um novo encontro com o indivíduo portador do problema/dano/litígio para o início de um processo de desconstrução. Para esse processo de desconstrução/reconstrução discursiva do caso, pela equipe, alguns cuidados devem ser tomados: 1º no relato para a equipe a dupla interdisciplinar deve ter tido o cuidado de incorporar elementos importantes sobre a observação e não só sobre a escuta; 2º escolha de um dos integrantes da dupla para permanecer como “pessoa de referência do caso”. Esta escolha não pode ser aleatória e descompromissada. A pessoa escolhida deverá ser aquela com perfil mais adequado para o acompanhamento e que esteja interessada nesse acompanhamento;
3º a equipe, durante o relato, deverá estar pronta para “ler nas entrelinhas”, ou seja, esse é o melhor momento para problematizações sobre o relato; com questionamentos; levantamentos de dúvidas e, até mesmo, provocações no sentido positivo do termo; 4º antes do encontro haverá, por certo, necessidade de “checagens” de dados, estudos interdisciplinares da questão, roteiro de esclarecimentos a serem prestados no novo encontro, análise de documentos, de ações/demandas precedentes, etc. Tudo que permita um novo encontro com a parte (ou a outra parte) mais enriquecido para que a dupla interdisciplinar esteja mais confiante em relação ao caso; 5º encontros com a (s) parte(s) deverão se suceder até que haja um momento de consciência mais ampla da questão e se possa chegar à compatibilização de relatos das partes envolvidas (encontro das partes).Nesse momento, a equipe de atendimento deverá estar atenta para os relatos controversos e divergentes, que devem ser minimizados. As partes deverão ser igualmente informadas quanto a seus direitos, deveres e possibilidades de solução da questão, além das conseqüências que poderão advir. Duas situações poderão ocorrer : a postulação, pelas partes, de acordo imediato, ou acordo proposto pelos mediadores, e, do outro lado, a possibilidade de acordo rejeitado; 6º no caso de postulação de acordo, redige-se o termo, é feita uma leitura explicativa deste, as partes aceitam e assinam, encerra-se o encontro e a equipe deverá designar integrantes para as formalizações necessárias do documento. Quando necessário, antes dessa assinatura, deve ter havido novo contato separado das partes. Casos de mediação não podem ser considerados definitivamente concluídos. Alguns acompanhamentos posteriores devem ser realizados para verificação da efetividade e adequação da solução; 7º no caso de “não-acordo”, deverá ser retomado todo o processo pedagógico de discussão, construção e reconstrução do caso. Na total inviabilidade de solução através do mecanismo da mediação, sugere-se o encaminhamento para outras formas de atendimento, possivelmente judiciais. Essa metodologia de mediação deve ser considerada como emancipadora, pois, exige que as partes estejam conscientes do verdadeiro conflito, ajudando a desconstruí-lo e propondo alternativas mais viáveis para a solução. As partes tornam-se, portanto, demandantes/julgadores/intérpretes e não são colocadas apenas como objeto do problema. A minimização dos conflitos na comunidade, pelo processo de mediação, dá à rede social e à equipe de expansão, maiores possibilidades de construção de capital social em ambiente mais harmonioso e de mais ampla intercompreensão. Essa é a razão que neste trabalho postula-se a conexão entre as duas metodologias, diversamente da metodologia proposta pela CEPAL, pois se entende que elas são complementares e eminentemente emancipadoras.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resgate dos direitos humanos em localidades de extrema exclusão (favelamentos) e de periferias e, inclusive, de países também periféricos, exige que seja atribuída às populações dessas localidades o status de sujeito de sua própria história, no interior de um processo pedagógico edificante e emancipador. Há que se instaurar um processo onde as pessoas tornam-se atores conscientes de sua exclusão e de seus riscos e danos e das suas possibilidades de solução. Só assim, e exclusivamente assim, é que a adversidade pode ser superada ou minimizada. Conceptualmente e na literatura jurídico-política atual os direitos humanos parecem gozar de primazia . Afirma Baiges, de forma algo sarcástica, que “ Os direitos humanos vivem hoje no céu dos conceitos e seu eco ressoa em todos os corações”27 Contraditoriamente a tudo que se demonstrou nesta comunicação, os direitos humanos parecem ser aceitos de forma generalizada por toda comunidade humana. Apesar disso, convida-nos o mesmo autor a refletir sobre essa “universalidade” que é sem dúvida, “má conselheira”28 Continua o autor com a mesma ironia anterior: “Acaso não têm todos os homens uma cabeça? Por quê não teriam todos os homens direitos humanos?”29. Com essa aparente simplificação, em uma estrutura silogística, deseja demonstrar Baiges que não se pode restringir e deturpar os direitos humanos à condição de direitos a-históricos, eternos e universalizados pois, não há dúvida, tal como demonstrado anteriormente, que as necessidades humanas, dentre elas a necessidade de acesso aos direitos, inclusive aqueles denominados corretamente como “humanos”, estruturam-se a partir de um determinado tempo e espaço e não em todos eles e ao longo de toda a história da humanidade. A pobreza e a indigência de praticamente metade da população que vive na América Latina, em especial no Brasil, nega a existência de direitos humanos para todos e, muito mais, demonstra que a aplicação desses direitos é desigual e injusta. O discurso, genericamente aceito, de que os direitos humanos são para todos e que já foram inclusive constitucionalizados pela maioria dos países, parece conspirar contra evidências não apenas estatísticas, mas visíveis e incontestes na conjuntura atual dos países periféricos. A pobreza e a degradação humanas estão aí e o mundo do Direito e o sistema-mundo parecem desconhecê-las. Tudo isso se torna mais dramático ao se entender que, conforme o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, pelas razões aqui expostas, não se pode considerar sequer a existência de “Constituições” nesses países. Reza esse artigo: “Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação de poderes estabelecida, não tem constituição”30. Se atribuirmos validade a esse artigo e à própria Declaração, apesar da vigência daquela de 1948, pode-se até mesmo questionar ou não se ter mais certeza da existência de um
Estado Democrático de Direito nas periferias do sistema-mundo e, inclusive, da própria democracia. Pobreza, indigência, desemprego e subemprego, inexistência de moradia para todos,inúmeros danos e violências e visível degradação humana, põem em risco as relações democráticas e o Estado de Direito. Há, entretanto, a possibilidade de resgate desses direitos e, por conseqüência, o restabelecimento, pelo menos parcial, do Estado Democrático de Direito se essas populações excluídas e entregues às condições de pobreza e à indigência tornarem-se conscientes de que é possível o empoderamento de suas organizações e de suas redes sociais no sentido de viabilizar a constituição de capital social para a minimização das misérias, das violências e dos riscos. Só assim, e tão somente assim, a partir do resgate da própria dignidade das populações e países periféricos será possível (talvez de forma algo remota e não definitiva) a superação das necessidades básicas e o resgate dos direitos humanos.
7.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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* Professora Adjunta da Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais,Brasil. Pós-Doutora pela Universidade de Barcelona – CAPES. Doutora em Filosofia do Direito –UFMG. Mestre em Ciência Política. Especialista pela Universidade de Michigan, EUA.
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Santa
2 CEPAL.Balance preliminar de las 2004.Presentación del
economias de América Latina y el Caribe
Secretário Ejecutivo de la CEPAL, José Luis Machinea, Santiago de Chile: CEPAL, diciembre, 2004, p.1 (tradução nossa) 3 idem, p.1 4 CEPAL/BADEINSO/REDESA. Ficha Técnica de la Base de Est Santiago de Chile: CEPAL adísticas e Indicadores Sociales. Pobreza y distribuición del ingreso, Santiago de Chile: CEPAL, 2003. 5 CEPAL. Panorama social de América Latina 2004, Santiago de Chile: CEPAL/ División de Desarrollo económico, noviembre. p.6
6 CEPAL, Panorama...op.cit.p.11 (grifo nosso) 7 SAMPAIO Jr.,Plínio de Arruda. O impasse do desenvolvimento nacional. Desemprego Zero. Disponível em : www.desempregozero.org.br Atualização:16/02/05. Citação em :17/02/05. 8 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Crescimento e emprego:perguntando ao Governo. Internet: Alta Vista, consultado em 17/02/2005. 9
DEDECCA, C.S. op.cit.p.2
10 idem,p.3 11SINGER, Paul. O Banco Central na contramão do desenvolvimento econômico e social. O Desemprego Zero. Disponível em : www.desempregozero.org.br Atualizado em 16/02/05. 12AÑÓN,Garcia.In:GUSTIN,M.B.S. Das necessidades humanas aos direitos:ensaio de Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey,1999.p.121
11 AÑÓN,Roig.Maria José. Necessidades y derechos; un ensayo de fundamentación. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,1994.p.287 14 FARIA, José Eduardo.Democracia e governabilidade: os direitos humanos à luz da globalização econômica. Economia e Sociologia, nº59, SP:Évora,l995,5-39,p.10 15 FARIA, J.E. op.cit.p.11 16 STIGLITZ,Joseph. Toward a new paradigm for development: strategies, policies and processes .Geneve: UNTAD, 1998,p.15 17 CEPAL. Capital social y pobreza. Documento da Conferência Regional sobre Capital Social y pobreza. Santiago do Chile:CEPAL/REDEL,2001 (grifo nosso).p.1 (tradução nossa) 18 idem,p.1 19 CEPAL.Capital Social...op.cit.p.1 (tradução nossa) 20 CEPAL, Capital social...p.cit. p.2 (tradução nossa) 21 idem, p.2 22 idem, p.3 23 DURLAF, Steven. What should policymakers know about economic complexity? (Working paper). Santa Fé: Santa Fé Institute, 1997. 24 CEPAL, Capital social ... op. cit.p.4. 25 TEIXEIRA, Elenaldo. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. São Paulo: Cortez, Recife: EQUIP. Salvador: UFBA, 2001.p.56-57 26 ARNAUD,André-Jean, DULCE, Maria José F. Sistemas Jurídicos:elementos para un análisis
sociológico. Madrid:Universidad Carlos III,1996.p.292 (tradução e grifo nossos). 27 BAIGES,Victor Méndez. Sobre derechos humanos y democracia. In: CAPELLA, Juan Ramón et al.En el límite de los derechos. Barcelona: EUB,1996.p.101-131,p.101 28 BAIGES,V.M.op.cit.p.102. 29 idem, p. 102 30 Extraído da Declaração de Direitos do Homem, adequação ortográfica e gramatical (grifo nosso)
Apontamentos sobre uma prática de mediação comunitária coletiva
Antônio Eduardo Silva Nicácio1
Sumário: 1. Um pouco da história; 2. Aspectos da metodologia; 2.1 Discussão de casos; 2.2 Coletivização de demandas; 2.3 Organização e mobilização social; 2.3.1 Levantamento de reivindicações, demandas e propostas da comunidade; 2.3.2 Mapeamento e articulação das lideranças comunitárias; 2.3.3 Realização de mutirões e eventos; 2.4 Assessoria aos movimentos sociais e comunitários; 2.4.1 Orientação sociojurídica e encaminhamento de casos; 2.4.2 Produção de conteúdo e de instrumentos de reivindicação popular; 2.4.3 Divulgação das ações da comunidade; 2.5 Fortalecimento e criação de redes de proteção; 2.5.1 Identificação e realização de parcerias e apoiadores; 2.5.2 Articulação das entidades comunitárias e instituições parceiras apoiadoras; 2.5.3 Participações em comissões e instâncias de participação popular; 3. Conclusão; 4. Bibliografia.
Muito se tem discutido sobre as diversas teorias que norteiam as múltiplas práticas de mediação em nossa sociedade. Pode-se dizer que já se avançou bastante na descrição e teorização das ações de mediação numa perspectiva individual. Aliás, a grande maioria das experiências consolidadas no país diz respeito a esse tipo de mediação. No entanto, ainda são muito escassas tanto as experiências quanto as teorizações sobre a perspectiva coletiva da mediação. Neste contexto, a experiência de extensão, ensino e pesquisa do Programa Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG mostra-se riquíssima.
1. Um pouco da história Desde 1998, o Polos vem se destacando no desenvolvimento de ações permanentes de mediações individuais e coletivas. Tal experiência surge da junção de duas atividades. Uma realizada dentro da Coordenadoria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte (CDHC-BH) e outra nas ruas, becos e associações do Morro do Papagaio em BH.
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Mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Atualmente, coordenador de Projetos do Programa Polos de Cidadania da UFMG. 1
A partir de uma parceria institucional do Programa Polos de Cidadania, nos idos de 1998, com a CDHC-BH, um intercâmbio e uma cooperação mútua entre os integrantes desses dois projetos foram estabelecidos, o que viabilizou uma melhor estruturação da referida coordenadoria e uma maior institucionalização e expansão das atividades desse programa de pesquisa e extensão. No âmbito da CDHC-BH, vários grupos de estudos e atendimentos foram realizados visando ao desenvolvimento de um modo diferenciado de abordar e cuidar dos conflitos apresentados por moradores diversos da cidade. Muitos casos, inclusive, eram violações severas de direitos humanos. Essa coordenadoria era sediada no hipercentro de Belo Horizonte, Rua Tamoios, 666. Como brincavam os estagiários polossauros2 da época: “o número da besta!”. Diante da dificuldade dos usuários em acessar o prédio da coordenadoria e também da percepção de uma descontextualização do trabalho na própria cidade, criou-se a ideia da descentralização dos serviços realizados nesse espaço. Esse seria o gérmen do primeiro Núcleo de Mediação e Cidadania (NMC)3 entre inúmeros que se espalharam com o passar dos anos por Belo Horizonte, Região Metropolitana e interior de Minas Gerais. A região escolhida para receber o projeto piloto dessa ação foi a Zona Norte de Belo Horizonte. Nesse momento, todas as frentes de trabalho do então “Projeto Polos Reprodutores de Cidadania”4 foram mobilizadas para realizar um diagnóstico sócioorganizacional na referida região. Ressalte-se que neste momento, o Polos era subdividido nas seguintes Frentes de Trabalho: “População de Rua e Construção da Identidade Coletiva”; “Saúde Mental e
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Expressão utilizada pelos integrantes do programa para carinhosamente designar os egressos do Polos. O primeiro nome dado a essa ação de descentralização das atividades do Polos e da CDHC-BH foi “Núcleo sociojurídico”, porém num curto prazo a nomenclatura foi modificada para “Núcleo de Mediação e Cidadania”. 4 Há uma anedota de que a palavra “Reprodutores”, apesar de já contestada por muitos membros do projeto, só foi oficialmente retirada do seu nome quando da realização de um trabalho de prevenção e combate à exploração sexual infanto-juvenil no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Na região, o Polos era recorrentemente confundido com um projeto de extensão da Faculdade de Veterinária da UFMG que trabalhava com reprodução de cavalos garanhões (sic). Diante do constrangimento da confusão, muitos relatam que essa teria sido a gota d’água da palavra “Reprodutores” no nome do projeto. Antes disso, porém, teoricamente a expressão já era discutida, uma vez que apontava para uma prática mecanicista de mera reprodução, diferente do que o projeto ideologicamente sempre concebeu. 2 3
Cidadania”; “Mulher e Direitos Humanos”; “Violência Policial e Direitos Humanos”; “Trupe a Torto e a Direito5”; e “Organização Popular em Vilas e Favelas”. O trabalho iniciado na Zona Norte de Belo Horizonte seria abarcado nessa última frente, “Organização Popular em Vilas e Favelas”, que já desenvolvia atividades na região Centro Sul de Belo Horizonte, mais especificamente no Morro do Papagaio. Nesse aglomerado de favelas de BH, o atendimento individual, até então, não era realizado, o foco do trabalho era a perspectiva de mediação comunitária coletiva, que seria incorporada nas atividades do Núcleo em construção. Após a realização do referido diagnóstico, inicialmente, a sede do Núcleo foi implantada no Centro de Apoio Comunitário Providência (CAC Providência). Em pouco tempo, esse Núcleo seria transferido para o Conjunto Felicidade, também na Zona Norte da cidade, a convite de lideranças comunitárias da região. Logo após a inauguração do Núcleo e início das atividades, a parceria do Programa Polos com a CDHC-BH foi interrompida em decorrência de uma mudança política na gestão do município de BH. A partir daí, o Programa Polos de Cidadania passou a gerir o referido Núcleo de maneira autônoma e independente, porém sem recursos. Durante mais de um ano, profissionais e estagiários trabalharam voluntariamente para manter a iniciativa viva. Tal esforço não foi em vão, afinal, como veremos, até hoje esse Núcleo encontra-se em atividade atendendo a comunidade da região. Durante o período em que o Núcleo de Mediação do Conjunto Felicidade foi desenvolvido sem financiamento, várias tentativas de novas parcerias foram propostas. Finalmente, em 2002, um convênio foi estabelecido entre o Programa Polos de Cidadania, por intermédio da Fundação Guimarães Rosa, e a Secretaria Adjunta de Direitos Humanos da, então, Secretaria de Justiça do Estado de Minas Gerais (hoje, Secretaria de Defesa Social). 5
Na monografia “A torto e a direito – um ensaio para uma realidade” tive a oportunidade de escrever o processo de criação, institucionalização e ampliação dessa importante frente do Polos (ou “vertente teatral” como era chamada na época). Parte desse estudo pode ser consultada no capítulo “A torto e a Direito: uma experiência teatral emancipadora”, publicado no livro “Cidadania e inclusão social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin”. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
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Tal convênio visava ao desenvolvimento dos Centros de Referência do Cidadão (CRCs) nos Aglomerados Serra e Santa Lúcia (Morro do Papagaio). Os CRCs, a princípio, foram pensados para agregar vários serviços no mesmo espaço (Defensorias, Promotorias, Polícia Comunitária e o Núcleo de Mediação e Cidadania do Programa Polos.). No entanto, de todas as instituições previstas apenas o Programa Polos e a Polícia Militar efetivamente “subiram o Morro” nessa ocasião. Novamente o Núcleo precursor já existente no Conjunto Felicidade ficou sem financiamento, sendo que o Programa Polos de Cidadania e todos os seus integrantes deram continuidade ao trabalho, de maneira autônoma e independente, mantendo o trabalho ativo naquela região. Em 2002, as equipes do Programa Polos de Cidadania voltaram a se mobilizar para realizar um grande diagnóstico no Aglomerado Serra e para atualizar o diagnóstico feito no Morro do Papagaio, uma vez que desde 1998 o Programa já atuava nessa região junto à sociedade civil organizada. Nos dois aglomerados, o Polos desenvolveu parcerias duradouras com instituições locais. No Aglomerado Serra, a parceria foi feita com a Associação de Moradores da Vila Santana do Cafezal, e, no Morro do Papagaio, a parceria foi estabelecida com a Paróquia Nossa Senhora do Morro. Ambas as instituições têm cedido, desde então, espaço físico para a realização das atividades dos Núcleos de Mediação e Cidadania do Programa Polos. Em 2005, um acordo entre o Programa Polos e a Secretaria de Defesa Social (SEDS) do Estado de Minas Gerais viabilizou a ampliação dos Núcleos de Mediação e Cidadania. Além dos três Núcleos já existentes, outros onze Núcleos foram criados em várias regiões do Estado de Minas Gerais. Principalmente, na região metropolitana de Minas Gerais. Durante um ano e meio, a equipe técnica do Programa Polos de Cidadania ficou responsável pela implementação, orientação, supervisão e acompanhamento dos trabalhos desses 14 Núcleos. Na sequência, o Estado de Minas Gerais passou, por meio do Instituto Elo, a gerir 12 desses Núcleos, inclusive, o precursor de todos eles, o Núcleo do Conjunto Felicidade. Assim, a partir de 2007, esse Núcleo, mantido sem financiamento próprio pelo Programa Polos durante vários anos, passou a ser financiado 4
e gerido pelo Estado de MG. Ao Polos coube a coordenação direta dos Núcleos de Mediação e Cidadania dos Aglomerados Serra e Santa Lúcia (Morro do Papagaio). De lá pra cá, a prática de mediação se consolidou como uma política de prevenção à criminalidade do Estado de Minas Gerais, sendo que vários outros Núcleos de Mediação de Conflitos (terminologia adotada pelo Estado a partir de então) foram criados.6 Por outro lado, nesse período, o Programa Polos de Cidadania da UFMG pôde aprimorar e desenvolver a sua metodologia de mediação comunitária, individual e coletiva. Neste pequeno artigo, pretendo dar especial ênfase à perspectiva coletiva da mediação realizada pelo Programa, uma vez que essa ainda carece de grande sistematização teórica, apesar da importante e fundamental prática.
2. Aspectos da metodologia O Polos de Cidadania é um programa que tem um compromisso histórico com a efetivação dos direitos humanos, com o desenvolvimento da cidadania, com a realização de práticas emancipadoras e com a “construção de conhecimento a partir do diálogo entre os diferentes saberes7”. Isso certamente traz uma marca indelével para a metodologia específica de mediação desenvolvida pelo Programa, especialmente, para a perspectiva coletiva dessa ação. Não estamos aqui diante de uma metodologia que se acredita neutra, ou até mesmo imparcial. O trabalho do Polos, inclusive as suas mediações, é talhado por sua orientação ideológica, pelo objetivo que motivou a sua fundação e ainda justifica a sua existência. Quando o Polos começou a desenvolver a sua metodologia de mediação, o que norteava essa procura (e continua ainda norteando) não eram tão somente a exigência e a possibilidade de resolver um determinado conflito. A mediação sempre foi um instrumento pedagógico para o Polos. Nos dizeres da professora Miracy Gustin, pedra fundamental do Programa, uma “pedagogia da emancipação” (GUSTIN, 2010). Ou seja,
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Segundo site do Instituto Elo, responsável pela gestão dos Núcleos diretamente ligados ao Estado de Minas Gerais, atualmente, os Núcleos estão instalados em 39 regiões de MG. 7 Objetivo literalmente retirado de apresentação institucional do Programa Polos de Cidadania (2014). 5
visa à emancipação dos participantes a partir de uma determinada situação, conflituosa ou não. Uma estratégia para despertar em todos os envolvidos com a ação, dos integrantes do Polos (estudantes, professores e técnicos) às pessoas diretamente interessadas nos casos trabalhados, o aprendizado de uma maneira complexa e sensível do ato de reconhecer o outro, com suas trajetórias, necessidades, anseios e limitações, e nesse processo aprender a reconhecer as suas próprias potencialidades, fragilidades, desejos, angústias e direitos. Nessa esteira, a mediação é entendida como um instrumento para o desenvolvimento de intersubjetividades, intercompreensões e autonomias. Nos debates sobre a teoria do reconhecimento, é muito comum a constatação de que não basta estudar o reconhecimento, mas ser preciso reconhecer. Do mesmo modo, pode-se afirmar que a mediação deve ser uma prática cotidiana de reconhecimento. Mais que uma teoria, a mediação é uma ética de reconhecimento para o cotidiano da vida das pessoas, uma vez que o reconhecimento é de extrema importância para a realização plena e satisfatória das pessoas e grupos sociais inteiros na sociedade. A metodologia de mediação comunitária coletiva do Programa Polos sempre foi pensada de maneira abrangente e multidimensional. Uma prática que favorece aos participantes e as suas comunidades vivenciarem instantes de problematização, conscientização, organização, mobilização, reivindicação e conquista de direitos. Ela concerne, especialmente, aos interesses gerais, à coisa pública. Proporciona, com frequência, o questionamento dos processos políticos, dos modos de governança das questões sociais, dos monopólios institucionais, eleitorais e profissionais (NICÁCIO, 2012). Esse tipo de mediação põe em cheque a concepção de “interesse geral” como monopólio do Estado, que passa agora a ser entendida como resultado de negociação entre um conjunto de atores em deliberação. A mediação comunitária coletiva cria canais para as iniciativas populares em face de poderes públicos e empresas privadas. Muitas vezes leva ao aperfeiçoamento, revisão e ou até mesmo veto na execução de determinado projeto. Ela evidencia um tipo de inteligência coletiva, que não só deseja como necessita participar do processo de 6
construção das grandes decisões públicas, para, inclusive, atribuir maior confiança, equidade e a aceitação a esses processos. Algumas técnicas dessa metodologia merecem destaque especial, como: discussão de casos, coletivização de demandas, organização e mobilização social, assessoria aos movimentos sociais e comunitários, fortalecimento e criação de redes de proteção. A seguir, analisarei alguns desses instrumentos utilizados pelo Programa Polos de Cidadania.
2.1 Discussão de casos Estratégia antiga e consolidada no Programa Polos, a “discussão de casos” é o espaço de reflexão máxima, de entrega vertical ao trabalho e de construção e desconstrução de teorias e planos de ação. É um momento mágico da ação em que toda a equipe se orienta e se dedica, de maneira comprometida e cuidadosa, aos temas comunitários. Nessas reuniões, são discutidos tanto casos individuais quanto coletivos, e, frequentemente, uma linha teórica sobre a questão posta pelos interessados é esboçada. Ou seja, a prática é teorizada e o compromisso com as pessoas e comunidades envolvidas é reafirmado. Independente da questão tratada, entende-se que há sempre uma legitimidade em sua postulação. O pressuposto é que todos os envolvidos estão de alguma forma sentidos com a questão, restando para equipe o desafio de orquestrar os diversos interesses de maneira a implicar os envolvidos no processo de resolução do conflito. Nesse momento, as equipes de trabalho do Polos são guiadas basicamente por duas perguntas. Primeiramente, questiona-se sobre o que seria melhor para a pessoa e a comunidade que se apresentam. Segundo, questiona-se se a equipe de trabalho é capacitada para auxiliar. Deste modo, uma análise aprofundada do contexto em que a situação problemática se insere é realizada, bem como é feita uma identificação dos grupos comunitários e entes públicos e privados que estão envolvidos na questão. 7
A história do conflito é desenhada e diferentes perspectivas sobre o problema são levantadas. Todas as informações já disponíveis e as expectativas de solução são trazidas à tona. A disposição para o diálogo com os demais interessados é também avaliada, bem como a viabilidade do programa atuar como mediador. Se há, por exemplo, aceitabilidade dessa participação por parte dos envolvidos e também se a equipe é suficientemente preparada para atuar no caso específico. Aliás, o acompanhamento e a orientação das equipes ocorrem de maneira suave, sutil e próxima nesse momento, onde também as pessoas de referência para representar os grupos são identificadas. Trata-se da primeira avaliação contingencial da demanda. Nesse ponto, todo o esforço é para coletivamente se compreender o caso, num processo dialético de desconstrução e reconstrução das narrativas. As equipes que tiveram contato direto com a demanda expõem suas primeiras impressões e, a partir de amplo debate com toda a equipe, os dados pertinentes ao caso são complementados e opções adequadas à satisfação da demanda são levantadas. Muitas vezes para o perfeito entendimento do caso é essencial a realização de pesquisas variadas (documental, judicial, doutrinária, etc.). Desde uma simples conferência de dados ou esclarecimentos com os envolvidos a aprofundamentos de estudos sobre o tema, passando pela análise de documentos e processos. É o momento das equipes discutirem as entrelinhas dos relatos, isto é, problematizar as falas, levantar dúvidas e, até mesmo, fazer provocações sobre a questão. Normalmente, após a discussão do caso há uma definição conjunta sobre o tratamento a ser dado. Como se trata de um espaço semanal permanente, todos os andamentos e novidades dos casos trabalhados são informados e / ou problematizados, bem como é feita a definição sobre os próximos passos do processo. Trata-se a “discussão de casos” de um espaço nobre do trabalho do Polos. Por excelência é o lugar da realização da interdisciplinaridade no cotidiano do programa. Em volta da mesa de trabalho, estagiários e profissionais de diversas áreas do conhecimento se confundem, fundem seus discursos, embaralham seus pontos de vistas 8
teóricos e, consequentemente, atuam para a geração de um conhecimento novo sobre o caso atendido.
2.2 Coletivização de demandas A técnica de coletivização de demandas é uma ferramenta importantíssima para a criação e manutenção de laços permanentes e vivos entre as perspectivas individual e coletiva da mediação. Durante as reuniões semanais de “discussão de caso”, espaço nobre para o desenvolvimento da mediação relatado logo acima, muitos casos novos que chegam até o Polos, a princípio com enfoque individual, são problematizados pela equipe e compreendidos como causas coletivas. Uma senhora procura o Programa para reclamar que a rede de esgoto na sua casa não está funcionando. No dito popular, sua “privada está amarrada”. Um senhor reivindica iluminação para o seu beco, uma vez que a escuridão tem aumentado os atos de violência e também causado acidentes. Um pai recorre ao Polos, pois não está conseguindo vaga para o seu filho nas escolas da região. Um morador de rua relata aos integrantes do programa que fiscais da prefeitura têm lhe assediado frequentemente tomando-lhe seus pertencentes. Uma moradora de vilas e favelas indignada demanda acompanhamento do Polos, pois recebeu uma notificação da prefeitura de que sua casa será incluída em programa de reurbanização e será demolida. Todos esses relatos têm em comum o altíssimo potencial de coletivização das demandas apresentadas. Por mais que as situações elencadas afetem diretamente cada uma das pessoas que procuram o programa, certamente, em todos esses casos, outras tantas pessoas também são diretamente atingidas pela questão e podem ter interesse genuíno em participar do processo de resolução desse problema coletivo. Lembro-me, como se fosse hoje, de participar do atendimento de um caso no primeiro núcleo descentralizado do Polos, ainda no CAC Providência do Bairro Minaslândia em Belo Horizonte, que talvez tenha sido a primeira coletivização de demandas realizada pelo programa. 9
Na época, entre 1999 e 2000, um senhor procurou o programa Polos com uma notificação que acabara de receber da empresa Gasmig, informando que ele deveria sair do seu barraco – e demoli-lo – em 48 horas. Segundo o comunicado, o barraco teria sido construído numa faixa de servidão da Gasmig, sendo que embaixo da casa passava um gasoduto. A situação ainda era mais grave, pois o barraco estava localizado literalmente na beirada da MG-20, rodovia importante que liga Belo Horizonte a algumas cidades da região metropolitana. De maneira muito espontânea, algum dos técnicos que acompanhavam o atendimento fez a pergunta chave que desde então é sempre repetida quando se está de frente de um caso com esse potencial: “você conhece mais alguém que recebeu essa notificação?”. De imediato o senhor respondeu que todos os moradores da vila construída nas margens da referida MG-20 haviam recebido a notificação. Nesse momento, talvez, era criada espontaneamente uma das principais técnicas de coletivização de demandas do programa. A partir da percepção dos mediadores de que aquele caso dizia respeito a toda uma coletividade, bastou uma pergunta – e ainda basta quando da recorrência de casos com esse potencial – para que tal perspectiva coletiva se evidenciasse. A ação seguinte para efetivamente tornar a coletivização possível, foi perguntar ao senhor que trouxe o caso até o Polos se ele julgava viável envolver os demais moradores no procedimento de mediação que ali se iniciava. Diante da concordância do senhor, o próprio se encarregou de marcar uma assembleia comunitária na região e convidar os seus vizinhos. O agendamento do local – um bar de beira da estrada - também ficou por conta desse senhor. É certo que o lugar não era o dos mais adequado 8, mas a iniciativa já fazia do senhor uma das referências naturais daquele processo.
8
Representando o Programa Polos de Cidadania, fomos eu e o colega Onésio Amaral, “polossauro” emblemático, hoje procurador regional da república. Essa certamente foi uma das experiências mais marcantes e exóticas que vivi no Polos. Como muitos moradores compareceram à reunião e o bar era extremamente pequeno, o encontro ocorreu entre o bar e a rodovia que o contornava. Quando passava algum caminhão ou carro mais apressado, tínhamos que suspender rapidamente a conversa para todos correrem para junto das paredes do bar. Ali a gente se espremia como dava. Não sei se o meu espanto era maior pelo perigo que todos estavam submetidos, ou pela naturalidade que aquelas pessoas lidavam com aquele alto risco já suplantado em suas vidas. Era o farol de o caminhão apontar na curva da estrada, alguém gritar “caminhão”, e todos se juntarem em silêncio. Logo o fio da meada era retomado com naturalidade me deixando meio assustado e mais ainda realizado de participar daquele momento. 10
Essa estratégia também é utilizada até os dias de hoje pelo Programa. Sempre que a equipe e os mediandos chegam à constatação de que determinado caso é de interesse de todo um coletivo (beco, bairro, rua, vila, escola, etc.), os mediadores já estimulam, desde o primeiro contato, o envolvimento das pessoas responsáveis por apresentar a demanda em coletivizá-las. O desdobrar do caso dos moradores da MG-20, como ele foi chamado durante algum tempo, contarei aos poucos no decorrer desse pequeno texto, porém cabe salientar que essas duas ações narradas (constatação da perspectiva coletiva e envolvimento dos demais interessados) já foram suficientes para se criar uma consciência coletiva do conflito, antes entendido e tratado como um problema específico de cada família, e abrir caminhos para o início de um processo de cooperação e de diálogo. Uma das marcas principais da mediação é a simplicidade, tanto dos procedimentos quanto da linguagem. Alguns podem ser levados por isso a pensar que se trata de uma não-técnica, ou de uma técnica primária, menor. O que temos visto, porém, nesses 15 anos de trabalho com essa metodologia é que a mediação é uma arte minimalista, onde pequenos gestos são capazes de revelar inúmeras possibilidades.
2.3 Organização e mobilização social A mediação comunitária coletiva é compreendida pelo Polos como um instrumento de transformação social, que estimula as pessoas e comunidades a se envolverem e se responsabilizarem na construção de uma solução adequada para os conflitos sociais. Nesse contexto, a mediação comunitária coletiva tem como ferramenta fundamental a organização e a mobilização social, entendidas como instrumentos de emancipação social, de fortalecimento dos laços comunitários e de criação e restauração de redes de comunicação e cooperação entre a diversidade de atores sociais. Ao estimular o diálogo, a criatividade e a intercompreensão, a mediação comunitária coletiva credita bastante importância à organização e mobilização social no intuito de a própria comunidade criar condições para, com o apoio de entidades e apoiadores, realizar uma busca efetiva da satisfação dos seus interesses e necessidades. 11
Desse modo, procura-se estimular ao máximo a participação voluntária e coletiva dos membros de determinada comunidade, para que esta seja fortalecida em possíveis relações com o Estado e empresas privadas que tenham interesse em sua região. O processo de organização e mobilização social deve estimular a formação de consciências cívicas e a educação para uma vida pública saudável. A mediação deve fomentar a confiança, a solidariedade e a reciprocidade entre os membros de uma comunidade e propiciar o percurso de um caminho que vá do interesse próprio a um interesse mais genérico. A organização e a mobilização social propiciam a uma comunidade encarar determinados desafios que, dificilmente, uma pessoa isolada conseguiria atingir. A seguir, veremos algumas atividades que o Programa Polos utiliza para realização de organização e de mobilização social.
2.3.1
Levantamento de reivindicações, demandas e propostas da comunidade
Vimos que a “discussão de casos” é um espaço importante para a coletivização de demandas, porém outras ferramentas são utilizadas também para viabilizar que as reivindicações, demandas e propostas da comunidade sejam feitas e, principalmente, ganhem ressonância pública e despertem o interesse das pessoas. O Polos, por ser também um programa de pesquisa, realiza com habitualidade levantamentos formais e informais de questões pertinentes às comunidades trabalhadas. Essas atividades com frequência são realizadas a partir da provocação de moradores e entidades apoiadoras, e tentam, sempre que viável, seguir a perspectiva da metodologia da pesquisa-ação. Isto é, os moradores e demais envolvidos devem ser convidados a participar em todos os processos de realização da ação. Desde a sua concepção, passando pela construção e aplicação dos instrumentos de pesquisa, a análise dos dados obtidos. O resultado desses estudos é importantíssimo para balizar outros momentos da mediação comunitária coletiva, como a sensibilização dos demais moradores interessados e ainda não envolvidos com a mediação, e também para fundamentar a reivindicação formal de determinadas demandas. 12
Desse modo, pode-se concluir que o processo de escuta dos anseios comunitários se dá de três modos: a partir dos atendimentos individuais e, principalmente, de sua coletivização; por meio da prática desses instrumentos de pesquisa; e, ainda, de maneira informal no dia a dia de uma comunidade. Essa última forma de coleta informal de demandas é muito praticada pelas equipes do Polos. Nas diversas reuniões comunitárias, no ponto de ônibus, tomando um café na padaria, conversando com algum morador do aglomerado, realizando uma visita para auxiliar num caso específico ou participando de algum evento da comunidade. Sempre é possível surgir em um desses momentos uma nova demanda crucial para determinada comunidade. O Programa Polos considera que essa estratégia faz parte de um processo amplo de mediação comunitária coletiva, pois possibilita que as equipes auxiliem os moradores interessados a encontrar seus verdadeiros interesses e a desenvolver uma forma de preservá-los em um possível acordo criativo. Essa escuta também é parte fundamental para o momento de construção conjunta de uma solução mutuamente aceitável, sem imposições de sentença ou laudos. Por fim, entende-se que os diversos aspectos de uma determinada situação problemática (inclusive, os possíveis aspectos positivos) podem ser conhecidos, trabalhados e valorizados durante a realização de toda a mediação comunitária coletiva.
2.3.2
Mapeamento e articulação das lideranças comunitárias
Outra técnica bastante utilizada pelo Programa Polos num processo de mediação comunitária coletiva para propiciar a organização e mobilização social é a realização de mapeamentos e articulações de lideranças. Para a feitura desses mapeamentos, o Polos lança mão das metodologias especificas de diagnósticos sócio-organizacionais ou de cartografias sociais. Independente da metodologia eleita para determinada situação, espera-se sempre que a feitura do trabalho siga a perspectiva da pesquisa-ação. Isto é, que a comunidade seja chamada a participar em todas as etapas do trabalho. Esses mapeamentos devem gerar, além da identificação das lideranças históricas e ativas, testemunhas chaves e referências comunitárias importantes, um desenho da política interna das comunidades, da forma como essas figuras relacionam entre si. 13
Compreender o fluxo de comunicação e cooperação entre essas lideranças, identificando os possíveis ruídos entre os diversos atores, mas também as potencialidades de interação. Não só o resultado desses mapeamentos, como o seu processo de realização, poderão auxiliar na articulação dos diversos atores identificados na ação. Algumas vezes o estudo realizado identifica já haver forte interação entre tais figuras, mas, com muita frequência, é constatada uma total desarticulação – e até mesmo hostilidade – entre essas referências comunitárias. Nesse ponto, um dos desafios do trabalho é estabelecer uma comunicação inexistente ou perturbada entre essas pessoas, bem como com as entidades apoiadoras e as demais instituições envolvidas, como veremos mais adiante. Desse modo, o processo de articulação se apresenta como uma possibilidade para a criação e reconstrução de laços sociais internos na comunidade, por meio do auxílio aos envolvidos para resgatarem o diálogo perdido no tempo. Por este motivo que a mediação não deve ser nunca compreendida como algo estanque, limitado a pessoas determinadas e a um tempo específico. São inúmeras as mediações. Em um processo, por exemplo, de reivindicação do direito à moradia numa determinada favela certamente ocorrerão várias mediações. Entre os envolvidos, as lideranças, os apoiadores, o poder público, as possíveis empresas interessadas, etc. As equipes que se dispuserem a realizar um trabalho dessa natureza têm que estar atentas a essa abertura e saber transformar a fluidez desse processo numa premência concreta e pontual de intervenção. Em última instância, os mapeamentos e as articulações comunitárias podem contribuir para o desenvolvimento do sentimento de pertencimento ampliado a determinada comunidade e o reconhecimento da relevância da diversidade de atores envolvidos. O desenvolvimento do respeito do outro como um próximo, como sua alteridade expandida e o respeito a sua própria vulnerabilidade e autonomia, como a do próximo. Essas atividades têm o condão de gerar ainda o desenvolvimento do sentimento de envolvimento e solidariedade, como contraponto à lógica individualista. Entendendo a solidariedade como um imperativo moral dos nossos tempos. Um ato de respeitar a si mesmo e os demais integrantes de sua comunidade política e de outras comunidades 14
éticas que não a sua. Por fim, essas práticas pleiteiam a urgência de se estimular o envolvimento sustentável de todos os membros de uma comunidade política com os rumos e princípios da mesma, como contraponto indispensável à procura incessante pelo desenvolvimento econômico de uma nação.
2.3.3
Realização de mutirões e eventos
Muitas vezes o sentimento de injustiça de uma comunidade não é suficiente para pôr em prática processos de transformação social, sendo, nesses casos, primordial a articulação política de uma comunidade. Para potencializar a mobilização popular em torno de temas de interesse da comunidade e incrementar a organização social de uma região, outras duas ferramentas adotadas pelo Programa Polos são a realização de mutirões comunitários e de eventos ligados à proteção e educação de Direitos Humanos e promoção da cidadania. Esses mutirões são sempre produzidos de maneira colaborativa e concebidos a partir de uma imprescindibilidade. Trata-se de uma estratégia utilizada em momentos específicos. Diante de uma ameaça de despejo, da precisão de se fazer um levantamento urgente para responder a algum requisito formal de processos que envolvam a comunidade, de um conflito eminente para ocorrer, enfim de algo pontual que terá a chama de gerar um envolvimento e um engajamento forte de toda a equipe, apoiadores e moradores na causa. É importante ter isso claro, para que iniciativas de mutirão não sejam lançadas sem forte adesão popular. Quando isso ocorre acaba enfraquecendo a efetividade do instrumento. Observação semelhante pode ser feita com relação à realização de eventos ligados à proteção e educação de Direitos Humanos e promoção da cidadania, como cursos, seminários, rodas de conversa, semanas culturais, etc. Jamais esses eventos devem ser propostos sem a ampla adesão ou, principalmente, sem a participação direta da comunidade. Aliás, o ideal é que esses eventos sejam sugeridos diretamente por moradores, ou depreendidos de observação direta e recorrente de necessidades dessa comunidade. Não há situação mais frustrante do que um evento totalmente esvaziado por falta de interesse efetivo dos moradores. Para que isso não ocorra, é preciso pensar inúmeras 15
vezes antes de levar adiante a produção de um evento desse tipo. E envolver ao máximo a comunidade diretamente interessada que deverá ter suscitado a realização do mesmo.
2.4 Assessoria aos movimentos comunitários e sociais. Quando há um desequilíbrio social, econômico e cultural muito grande nas relações, é sempre inevitável pensar na viabilidade de pôr em marcha um processo de mediação comunitária coletiva. Para tanto, outra ferramenta crucial utilizada pelo Programa Polos nesse processo é a assessoria aos movimentos comunitários e sociais. Essa assessoria é levada adiante pelo Polos, principalmente por meio da realização de três instrumentos: a orientação sociojurídica e o encaminhamento de casos, a produção de conteúdo e de instrumentos de reivindicação popular e a divulgação das ações da comunidade.
2.4.1
Orientação sociojurídica e encaminhamento de casos
Um instrumento valioso no contexto da mediação comunitária coletiva é a “orientação sociojurídica”. Não raro, as equipes de trabalho do Programa Polos são chamadas a prestar orientações aos envolvidos no processo de medição. Essas orientações são fundamentais para auxiliar na prevenção e na resolução não adversarial, extrajudicial e pacífica de conflitos. Essas orientações são feitas em momentos variados da mediação, sendo que sempre os assuntos temas das orientações são amplamente discutidos por toda a equipe na reunião de discussão de casos. Nesse espaço, as informações mais adequadas a serem prestadas são levantadas e, dependendo da precisão, pesquisas mais aprofundadas são feitas para que os esclarecimentos sejam feitos de maneira adequada. Às vezes, somente orientar não é suficiente, sendo inevitável a realização de encaminhamentos para outras instituições competentes para lidar com a demanda específica. Esses encaminhamentos são feitos tanto formalmente quanto de forma informal. De todo modo, é importante assegurar a efetividade do encaminhamento. Não se deve esquecer que as equipes de trabalho do Polos desenvolvem trabalhos em espaços de vulnerabilidade social e que as pessoas, inúmeras vezes, não têm condições suficientes para a procura de órgãos/entidades que não se localizam em seu 16
próprio entorno. Assim após um período máximo de 30 dias, as equipes checam os desdobramentos do problema seguindo as informações prestadas para eventual retorno ou inclusão do caso em banco de dados próprio do Polos. Em alguns casos extremos, é indispensável realizar o acompanhamento direto dos envolvidos. São situações limites em que apenas a orientação ou o encaminhamento são insuficientes, restando às equipes executarem esse tipo de ação direta, sob o risco de perda total de algum direito.
2.4.2
Produção de conteúdo e de instrumentos de reivindicação popular
De relatórios de pesquisa a pareceres técnicos, passando pelo auxílio na elaboração de estatutos, ofícios institucionais, notas públicas, cartas de repúdio, ou, até mesmo, produção de documentários9, programas de rádio10, cartilhas, jornais, revistas, cartazes, folders, faixas e banners, a equipe do Programa Polos se mostra incansável no ofício de colaborar para a produção de conteúdo e de instrumentos de reivindicação popular. Essa ação, como a maioria das atividades do Programa, surge de uma necessidade concreta e de uma demanda certeira da comunidade. É um viés do trabalho que demonstra muito a relação de proximidade, compromisso e de intimidade com as causas trabalhadas que as equipes desenvolvem. Não interessa se é um advogado, um psicólogo, ou um estudante de algum dos cursos que o Programa acolhe, diante dessas demandas todos são chamados a participar de alguma maneira. Essa ação é justificada num processo de mediação comunitária coletiva, pois é frequente haver um descompasso muito grande entre as partes envolvidas numa questão coletiva. Para que a mediação seja viável nesses casos cabe à equipe perceber essa defasagem e tentar equilibrar um pouco a relação de forças nesse processo. Daí a inevitabilidade dessa e de outras assessorias diretas aos movimentos, pois é certo que do 9
No canal do Programa Polos de Cidadania no Youtube vários vídeos produzidos pelo Programa podem ser livremente acessados. Destaque para o documentário “Uma avenida em meu quintal”. Dirigido por Frederico Triani e Samira Motta, o documentário é resultado de uma ampla pesquisa, coordenada por Antônio Eduardo Silva Nicácio e Márcio Túlio Viana e financiada pelo CNPq, sobre o efeito do programa Vila Viva na dimensão socioeconômica dos moradores do Aglomerado Serra de Belo Horizonte. 10 O primeiro programa de rádio desenvolvido pelo Programa Polos de Cidadania foi na extinta rádio comunitária “União”, sediada no Morro do Papagaio, que se chamava “Morro Legal”. De lá pra cá, inúmeros outros programas foram produzidos pelo Polos como o “Fala Comunidade!” que durante anos foi ao ar na rádio comunitária “A voz da comunidade” sediada no Aglomerado Serra. Também no Aglomerado Serra, o Polos desenvolveu um programa chamado “Fala Periferia!” na rádio “A voz da periferia”. Por fim, o Polos atuou com programas de rádio junto a População de Rua, num programa da Rádio Elo chamado “Fala Rua!”. 17
outro lado da mesa procuradores e advogados estarão muito bem preparados para defender os seus clientes.
2.4.3
Divulgação das ações da comunidade
No intuito de auxiliar no processo de organização e mobilização social, fundamental para a viabilidade de uma mediação comunitária coletiva, as equipes do Polos sempre ficam atentas à exigência de ampliar a divulgação das ações comunitárias realizadas, tanto para os próprios moradores como para toda a coletividade. São variados os tipos de assessorias. Na internet, com a criação, manutenção e produção de conteúdo para páginas e perfis das redes sociais, blogs e sites das causas trabalhadas na mediação. Na imprensa em geral, com a formulação e distribuição de press kits com releases, fotos, vídeos e breves relatórios. E também no corpo a corpo nas comunidades. Distribuindo convites para reuniões, assembleias e eventos em geral. Indo de casa em casa para convocar para algum mutirão. Enfim, trata-se de um trabalho de alta dedicação visando contribuir para que determinada comunidade se articule cada vez mais e possa se fortalecer diante do processo de mediação comunitária coletiva em curso.
2.5 Fortalecimento e criação de redes de proteção Outra ferramenta preciosa nesse tipo de mediação é o fortalecimento e a construção das redes de proteção aos Direitos Humanos, atividade indispensável em regiões de vulnerabilidade social. Nessas condições, não se observa a realização dos direitos plenos nem a atuação das instituições responsáveis por efetivá-los, além do pouco acesso às leis e seus mecanismos. Sendo assim, a construção de redes proporciona uma participação mais ampla dentro dessas zonas, onde é possível atender às diversas demandas. Essa ação é subdividida operacionalmente em três vertentes. São elas: identificação e realização de parcerias e apoiadores, articulação das entidades comunitárias e instituições parceiras apoiadoras e participações em comissões e instâncias de participação popular.
18
2.5.1
Identificação e realização de parcerias e apoiadores
Para que determinadas comunidades possam participar de um processo de mediação comunitária coletiva com chances reais de conquista de direitos, em muitos casos é necessária a realização de parcerias e apoios. As entidades parceiras e apoiadoras de uma comunidade normalmente são identificadas por meio de diagnósticos, levantamentos formais e informais ou ainda em inúmeras reuniões realizadas visando ao reconhecimento, organização e desenvolvimento das demandas comunitárias. Esse cultivar e celebrar parcerias devem ser um fazer constante e a qualquer momento da mediação. O pano de fundo dessa ação é a necessidade e a vontade de convergir os interesses diversos presentes em uma comunidade em prol da proteção de determinada causa ou coletividade. O Programa Polos de Cidadania, por exemplo, tem, atualmente, como parceiros e apoiadores várias instituições públicas e privadas, tais como: CRAS Vila Marçola, CRAS Vila Fátima, Defensoria Publica do Estado, Defensoria Publica da União, Núcleo de Pratica Jurídica da Faculdade Izabela Hendrix, Núcleo de Pratica Jurídica da Faculdade Una, Núcleo de Pratica Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pai PJ, Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Associação de Moradores da Vila Cafezal – Aglomerado Serra, Paróquia Nossa Senhora do Morro – Aglomerado Santa Lúcia, Postos de Saúde da Comunidade da Serra, Morar de Outras Maneira e Programa Cidade e Alteridade. O grande desafio para a feitura dessas parcerias é a superação das possíveis diferenças e, até mesmo, rusgas, entre entidades e grupos específicos de uma determinada região. Às vezes, para que essa parceria seja efetivamente viável é preciso realizar uma mediação própria entre esses grupos. No processo de reivindicação popular para a revisão do projeto de urbanização de vilas e favelas da prefeitura de Belo Horizonte no Morro do Papagaio, o chamado Vila Viva, em muitos momentos a equipe do Polos teve que realizar mediações internas entre as várias lideranças e entidades do Morro para tentar dirimir as diferenças existentes entre elas e poder alcançar um caminho de acordos (mesmo que mínimos). 19
Nesses momentos, diversos encontros foram feitos entre essas figuras centrais para o processo sob a condução do Polos. Clima tenso e ameaças recíprocas marcaram as mediações iniciais. Nesse caso, devido à alta tensão entre os participantes os encontros foram realizados na sede Programa Polos de Cidadania na Faculdade de Direito da UFMG e não no próprio Aglomerado. Havia certo receio entre as lideranças de que se essa tentativa fosse feita no Morro do Papagaio o desgaste já existente entre elas poderia ser agravado. Assim, optou-se por um lugar supostamente mais austero. Nos encontros, após uma breve explicação do formato da reunião por um representante do Polos, uma ampulheta foi utilizada para marcar o tempo de fala de cada participante. Pediu-se firmemente que as manifestações dos presentes não fossem interrompidas, uma vez que todos teriam tempo para se expressar e também para esclarecerem possíveis dúvidas. No decorrer das mediações ficou evidente a mágoa e o ressentimento recíprocos entre os grupos que há algum tempo já vinham se atacando e se deslegitimando. As falas retratavam lideranças, que dedicam seu escasso tempo para causas coletivas, sofridas pela falta de reconhecimento dos seus pares. No entanto, o momento dramático de realização da obra suscitava de forma imperativa um acordo mínimo entre essas lideranças para fazer frente à pressão imposta pelo poder público. Depois do desabafo geral entre os presentes e também da constatação de que todos traziam em si o sentimento de desrespeito e de dor, um protocolo de tratamento foi sugerido pelos presentes. Alguns consensos com relação à obra da prefeitura também foram estabelecidos, como, por exemplo, a urgência de redução do número de famílias a ser removido forçadamente e também o imperativo de que a essas famílias fossem dada a opção de nova moradia na própria região11.
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Após inúmeras assembleias comunitárias e audiências públicas envolvendo expressiva parcela das lideranças e entidades da região, bem como instituições apoiadoras, como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado, um acordo foi firmado com representantes da prefeitura de Belo Horizonte assegurando a redução das remoções, a construção das unidades habitacionais antes da abertura e construção de vias e também a retirada de uma rede de fios de transmissão de energia elétrica da Cemig. Parte dos moradores se mostrava contrária à construção da Via do Bicão, uma obra controversa responsável por gerar muitas remoções e também por fugir do escopo da regularização fundiária proposto pelo projeto Vila Viva e se filiar mais a uma política de articulação urbana da cidade, porém no processo de mediação comunitária coletiva essa via acabou sendo aprovada pela a maioria dos participantes. 20
2.5.2
Articulação das entidades comunitárias e instituições parceiras apoiadoras
O trabalho de articulação das entidades comunitárias e instituições parceiras apoiadoras também deve ser compreendido como uma atividade constante. Para realizar essas articulações o Programa Polos lança mão de vários meios: telefonemas, ofícios, emails, grupos de trabalho, eventos, reuniões, etc. Essa articulação permite, entre outras coisas, o reconhecimento das diferenças específicas dos grupos sociais minoritários, compreendido como o respeito aos diversificados valores éticos presentes numa sociedade contemporânea complexa. Esse processo possibilita também entender as especificidades de cada grupo social presente numa determinada comunidade, suas dificuldades e habilidades para se fazerem reconhecidos socialmente. Nesse contexto, o respeito à heterogeneidade social passa a ser o desafio central de uma comunidade política e jurídica. Isto é, respeitar a característica do ser múltiplo e ter a consciência das diferenças que colocam pessoas e grupos sociais em situações de desigualdade. Tal fluxo pode se tornar justificativa para um tratamento diferenciado que viabilize a propalada “igualdade de direitos”. Essa articulação proporciona também o desenvolvimento de condições para a construção e a fruição de estima social e ética, compreendida como obrigação intrínseca e causa de enriquecimento ético e moral para qualquer nação. Nesse ponto, o conceito de alteridade, enquanto o respeito e a consideração pelos outros que nos constituem, surge de maneira crucial para o desenvolvimento de autonomia ética, que pode ser considerada como a capacidade de uma pessoa (ou comunidade) autodeterminar sua vida com consciência. Sempre que possível a articulação entre as entidades comunitárias e instituições parceiras apoiadoras deve ser fomentada e valorizada. A equipe deve ter um pensamento permanente de trabalho conjunto e colaborativo. Diante de uma tarefa, de uma tomada de decisão, de uma reivindicação social, de um mutirão, de uma audiência pública, etc., deve-se ter em mente a possibilidade e a precisão de se envolver o maior número de atores interessados no processo mantendo acessa a chama da cooperação e da participação social.
2.5.3
Participações em comissões e instâncias de participação popular 21
Essa última ação pode ser entendida como o auge de um processo de mediação comunitária coletiva. Todo o trabalho de mobilização, organização, assessoria, articulação e fortalecimento de redes descrito acima tem o seu momento máximo quando do encontro dos atores sociais envolvidos, seja numa comissão, numa assembleia ou numa audiência pública. Ao trabalhar em comunidades socialmente vulneráveis, com acesso precário aos serviços básicos e por violações recorrentes aos direitos humanos, o Polos visa à “assunção de uma nova cultura fundada na possibilidade de participação ativa da própria comunidade na solução de grande parte de seus problemas e conflitos”12. Acredita-se que a participação fortalecida e contundente das comunidades nesses espaços de diálogo atua para legitimar cada vez mais a luta dos seus moradores para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais e para a construção de uma democracia plena e cotidiana. Nesses momentos coletivos de mediação, podem participar, entre outros: Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Defensorias Públicas do Estado e da União, representantes do Poder Executivo Competente, Poder Legislativo Competente (quando for o caso), entidades representativas que atuam na questão, grupos não organizados afetados pelo conflito, entes privados que tenham responsabilidade e / ou interesses envolvidos no conflito. O diálogo entre esses atores nem sempre é tranquilo. Muitos são os entraves que dificultam a repercussão das temáticas trabalhadas num contexto social mais abrangente. Inúmeros são os gestos de autoritarismo e de clientelismo por parte de esferas do poder público e também de desmobilização e individualismo de determinados grupos sociais. Todavia é inegável que a existência desses espaços tem favorecido uma maior possibilidade de participação social. Nesses espaços, a população tem reivindicado demandas genuinamente comunitárias, pressionado o Poder Público para a
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Texto de apresentação do relatório mensal produzido pelo Programa Polos e enviado para a Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social de Minas Gerais, uma das financiadoras das atividades do Programa. 22
abertura e manutenção permanente do diálogo e também se informando constantemente dos assuntos pertinentes àquela determinada comunidade. É nesses momentos de participação popular que se pode conquistar o desenvolvimento do sentimento de responsabilidade política e jurídica, premissa para combater toda espécie de exclusão em uma sociedade. Todos os sujeitos e instituições sociais envolvidas têm a possibilidade de reafirmar o compromisso que o cidadão autônomo deve ter para com os rumos de sua comunidade política, enquanto responsável por criar as regras jurídicas que regerão essa comunidade. Trata-se da possibilidade concreta de exercício da “ética da responsabilidade”, elaborada por Weber no intuito de superar a “ética da convicção” (SOUZA 2009, p. 92). Tal ética invoca um sentimento de responsabilidade do sujeito - o problema não é só do governo - e das instituições sociais com os seus atos, suas práticas e suas omissões. Para tanto, a mediação aponta para o desenvolvimento do princípio da democracia radical, uma vez que uma sociedade mais ou menos democrática é uma sociedade injusta. Ela suscita o forte respeito às pretensões dos múltiplos sujeitos e grupos sociais, considerando todas as suas expectativas importantes de serem debatidas e legitimadas em uma comunidade política. Desse modo a mediação favorece a criação de medidas de participação genuína e representação efetiva, tanto no processo legislativo democrático, quanto na construção das políticas públicas e na fruição dos seus resultados. A sua execução deve ser sensível às especificidades de cada grupo social, garantindo, quando necessário, formas diferenciadas de participação popular de acordo com as peculiaridades dos mais variados grupos sociais. Essa participação é compreendida, nesse contexto, como uma necessidade básica do indivíduo em comunidade. Por outro lado, ela possibilita a discussão de formas de representação que sejam capazes de proporcionar a organização e o equilíbrio de todo este pluralismo.
3. Conclusão A experiência de mediação comunitária, tanto individual quanto coletiva, do Programa Polos de Cidadania sinaliza a construção de uma Universidade engajada com 23
a justiça social, na esteira da tradição latino-americana do “Movimento de Córdoba”13. O que vai ser ensinado ou pesquisado não é definido pelos pares acadêmicos ou pelo pragmatismo, mas sim a partir de uma relação dialógica com toda a sociedade. Nesse contexto, o Programa Polos tem trabalhado para a formação de militantes por uma sociedade justa, democrática e comunicativa, isto é, para a construção de sujeitos prontos para aprender, conhecer e questionar as formas e os conteúdos do conhecimento acumulado. Isto é, “seres emancipados e mediadores de um conhecimento que se faz de forma intercompreensiva” (GUSTIN, 2010, p. 59). Trata-se de uma ação libertadora geradora de “saberes que se cooperam e que são constitutivos de autocompreensão” (GUSTIN, 2010, p. 59). Uma experiência que proporciona aos envolvidos realizar aprendizados teóricos de um conhecimento rico, vivo e produtivo em conexão direta com a realidade do país. Diante da premência de desenvolver instrumentos que consigam lidar com a complexidade dos conflitos atuais é que o Polos desencadeou o processo de construção e prática de sua metodologia de mediação comunitária. A pergunta norteadora da experiência sempre foi o que poderia ser feito para acelerar e qualificar o processo de resolução de conflitos. A mediação é apenas um meio para determinados tipos de conflitos, pois as possibilidades de atuação dentro do que chamamos resolução e transformação são muito amplas. Não se deve querer colocar toda a complexidade de um conflito social num funil que ele certamente irá entupir. A escolha do tipo de intervenção deve ser feita sempre a partir de uma análise contingencial que foca na pessoa, nas relações e no contexto do conflito, uma vez que os mesmos não acontecem no vazio. Tem que se levar em conta a relação que vem por trás (demandas submersas ou subjacentes), pois o conflito, completo e diverso, se dá na relação. E não se pode resolver um conflito sem entendê-lo. Devemos deixar que os conflitos nos ajudem, ao invés de nos sucumbirmos diante de sua existência.
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Uma boa leitura sobre o tema é o livro “A História da Universidade” (RUBIÃO, 2013) resultado da tese A “Universidade Participativa”. Uma análise a partir do Programa Pólos de Cidadania por defendida André Rubião. Com o estudo o autor foi o vencedor ex-aqueo da 7ª edição do Prêmio CES. 24
É essencial ter em mente que os problemas podem ser judiciais, mas antes de qualquer coisa eles são comunitários. São zonas inteiras, urbanas e rurais, de confronto e violência. Nesses contextos, todos sofrem. Duas ou mais perspectivas sinceras e sentidas. Temos que respeitar as necessidades e interesses dos envolvidos, sendo suave com as pessoas e duros com os problemas. Desse modo a mediação comunitária do Programa Polos se apresenta como uma intervenção ou postura não autoritária visando prevenir e/ou resolver conflitos e criar ou reconstruir laços relacionais, a partir do estabelecimento de uma comunicação inexistente ou abalada que possibilite a construção conjunta de uma solução mutuamente aceitável. Suas características fundamentais são: a) cuidado com o laço social e interpessoal; b) caráter dialogal; c) espaço de debate amplo; d) organização de trocas entre as pessoas e instituições; e) foco nos aspectos positivos da situação-problema e nos verdadeiros interesses e necessidades dos envolvidos. Diante da constatação de que a formação da identidade – individual e coletiva - é um processo de inter-relação subjetiva de luta pelo mutuo reconhecimento, acredita-se que a mediação comunitária coletiva desenvolvida pelo Programa Polos de Cidadania atue para o fortalecimento de contextos de reconhecimento que aspirem à estima ética, ao respeito moral e jurídico e à responsabilidade política. Uma mediação comunitária coletiva que não ocorre num momento ou num local pré-definido, mas de maneira flexível, clara, concisa e simples no cotidiano das comunidades brasileiras, atendendo à compreensão e à exigência do contexto para o qual se volta.
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4. Bibliografia GUSTIN, Miracy Barbosa de. A metodologia da mediação. Belo Horizonte: Polos de Cidadania, 2005. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; LIMA, Paula Gabriela Mendes (Coord.). Pedagogia da emancipação: desafios e perspectivas para o ensino das ciências sociais aplicadas no século XXI. Belo Horizonte: Fórum, 2010. NICÁCIO, Antônio Eduardo Silva. A torto e a Direito: uma experiência teatral emancipadora. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.). Cidadania e inclusão social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008. NICÁCIO, Antônio Eduardo Silva. Justiça Diferenciada para a superação de uma vida precária. – Belo Horizonte: UFMG / Faculdade de Direito, 2011. NICÁCIO, Camila Silva. “Desafios e impasses aos meios consensuais de tratamento de conflitos”, in Luiz E. Gunther e Rosermarie D. Pimpão (dir.), Conciliação, um caminho para a paz social, Curitiba: Juruá Editora, 2012, v.1, p. 25-46. PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.). Cidadania e Inclusão social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008. RUBIÃO, André. História da Universidade. Coimbra: Almedina, 2013. SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira – quem e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2009. UMA AVENIDA no meu quintal. Direção: Frederico Triani e Samira Motta. Coordenação de pesquisa: Antônio Eduardo Silva Nicácio e Márcio Túlio Viana. Belo Horizonte: Programa Pólos de Cidadania, 2011. DVD. VIANA, Márcio Túlio et al. Os efeitos do Vila Viva Serra na condição socioeconômica dos moradores afetados. Faculdade de Direito da UFMG, 2011, 129 p. VIEIRA, Christiane do Valle et al. Mediação e mobilização comunitária na implantação de políticas públicas. In: 7º Encontro Anual da ANDHEP: Direitos Humanos, Democracia e Diversidade, Curitiba, 2012.
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5. BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
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