Artigo "Percurso Território Negro"

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Percurso Território Negro e a institucionalização dos estudos africanos nas escolas municipais de Belo Horizonte Míriam Célia Rodrigues Silva1 Nathália Caroline Raimundi de Siqueira2 Raísa Faria Rodarte Ribeiro3 Rogério Lucas Gonçalves Passos4

RESUMO O presente trabalho pretende abordar o projeto Circuito Temático Território Negro e refletir sobre a perspectiva e o conhecimento que as pessoas possuem a respeito do continente africano. Por meio da elaboração de propostas de intervenções e criação de sete roteiros de visitação relacionados aos países da África, o projeto implantado pelo setor Educativo do Espaço do Conhecimento UFMG, teve como objetivo estabelecer relações entre as escolas e os espaços culturais, promovendo diálogo e reflexão sobre assuntos relacionados a questões étnico-raciais, cultura africana e afro-brasileira.O projeto atendeu cerca de 1800 (mil e oitocentos) estudantes e foi reformulado quando se percebeu a presença de estereótipos, o desinteresse e conhecimento errôneos sobre o tema. Palavras-chave: África, divulgação científica, Espaço do Conhecimento UFMG, estudos africanos, Percurso Território Negro. INTRODUÇÃO Na conferência de 2009 da Tecnologia, Entretenimento e Design (TED) a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, discursou a respeito dos ''perigos de 1

Graduanda em Museologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. miriamkayte@gmail.com 2 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. nathaliacrsiqueira@gmail.com 3 Graduanda em História (licenciatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. raisafrr@gmail.com 4 Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Lucasrogeriogp@gmail.com

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uma única história''. Refletindo sobre o desenvolvimento de várias versões da história africana na perspectiva ocidental, a escritora afirma: A 'única história cria estereótipos'. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. [...] Claro, África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, como as terríveis violações no Congo. E há as depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas há outras histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente importante, falar sobre elas.

A escritora retrata uma realidade presente também no cenário brasileiro. Parte significativa da população é indiferente, constroem uma imagem estereotipada e/ou possuem conhecimentos comumente compartilhados sobre a história e a cultura africana. Dentre outros fatores, esse quadro é reflexo da apresentação e retratação da temática por grande parte dos meios de comunicação, como também por instituições escolares, culturais e museológicas. As escolas e os museus são instituições que contribuem para a formação humana, pois ambas trabalham com informação e com o público, participando, assim, do processo de construção do conhecimento. Entende-se que, como representantes e formadores sociais, esses espaços devem abordar a diversidade do conhecimento e estimular o senso crítico. Nesse sentindo esse artigo pretende relatar a experiência vivenciada pelo Setor Educativo do Espaço do Conhecimento UFMG no desenvolvimento do projeto denominado “Circuito Temático Território Negro”. O Circuito foi uma iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED/BH) e do Programa BH para Crianças, em parceria com o Espaço do Conhecimento UFMG, o Museu de Artes e Ofícios e o Museu das Minas e dos Metais. No Espaço do Conhecimento UFMG o projeto consistiu no desenvolvimento de percursos narrativos: a partir de estudos foram elaborados roteiros de visitação, com atividades que exploravam temas sobre o continente africano e os relacionavam com instalações presentes na exposição de longa duração do Museu.


O presente trabalho está estruturado de forma que no primeiro momento são apresentados

os

objetivos

do

Circuito

Temático

Território

Negro,

posteriormente trata-se a metodologia utilizada e do desenvolvimento do mesmo. Por fim, abordam-se os resultados e as considerações finais advindas do suporte teórico e da experiência proporcionada pelo desenvolvimento do projeto. OBJETIVOS GERAIS O Projeto Território Negro teve como finalidade favorecer a aproximação e o diálogo das escolas municipais com os espaços museológicos da cidade, de modo a possibilitar a apropriação e reflexão do conhecimento acerca das culturas africanas e afro-brasileiras: de suas histórias, suas produções intelectuais, científicas, tecnológicas e estéticas, e suas formas de organização social. OBJETIVOS ESPECÍFICOS 

Problematizar o imaginário estereotipado sobre a África e sobre representações da população negra, desconstruindo a visão monocultural e eurocêntrica de cultura ainda presente no currículo escolar;

Contribuir e estimular as escolas no desenvolvimento de estudos sobre o tema das relações étnico-raciais, História da África e culturas africanas e afro-brasileiras;

Propiciar a articulação entre educação e cultura por meio de visitas orientadas aos espaços museológicos da cidade;

Promover espaços de

diálogo

entre

profissionais dos museus e

profissionais das escolas sobre o valor, a função social e o papel dos museus como espaço educativo; METODOLOGIA Antes de receber os grupos escolares foram realizados diversos encontros e palestras com os idealizadores do projeto da Secretária Municipal de Educação de Belo Horizonte e pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, dentre eles, a professora de História da África Vanicléia Silva Santos.


Paralelamente a esses encontros e estudos, foram elaboradas sete propostas de percursos narrativos, que foram reestruturados durante sua implementação. HISTÓRICO SOBRE OS ESTUDOS AFRICANOS Por muito tempo os estudos sobre História da África foram deixados à margem da historiografia ocidental. A história do continente foi extremamente desprezada, principalmente por possuir caráter oral, contrária à tradição ocidental que se baseia na escrita. Para a cultura africana, a relação do homem com a palavra é sagrada. O fato do continente ter poucos registros escritos, era visto pela historiografia tradicional como sinônimo da inexistência do fato histórico anterior à colonização. De acordo com Carlos Lopes (1995), a historiografia do continente africano foi, por muito tempo, dominada por interpretações simplistas e reducionistas da complexidade efetiva que oferece. Essa perspectiva tornou os registros históricos sobre o continente, relatos que tratavam apenas da ótica do colonizador, escrita por um olhar externo. Essa visão fez com que, por muito tempo, o estudo da África estivesse sempre no lugar comum que trata da escravidão e da diáspora africana. Segundo Hampaté Bâ5, para falarmos da história africana, temos que falar da tradição oral. É preciso que esses estudos se apoiem na transmissão de conhecimento que é passada de geração em geração. No Brasil, o interesse pela institucionalização dos Estudos Africanos surge após anos de silêncio (em 1850 o Brasil suspende relações econômicas e políticas com as regiões fornecedoras de escravos africanos), e somente nas décadas de 1950 e 1960 com os processos de independência das colônias do continente essa reaproximação acontece. Vanicléia Silva Santos em seu texto “A redescoberta da África” analisa que nas últimas décadas as pesquisas e aproximação do Brasil com a África cresceram muito. Isso pode ser explicado também pelo fato de ter sido criada, em 1996, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), um programa que visa reunir esses países de modo que eles possam integrar o que há de comum entre si, compartilhando 5

Ahmadou Hampaté Bá: Escritor e etnólogo maliense (Mali, 1900 – Costa do Marfim, 1991). Fez excelente trabalho no campo da recuperação da cultura africana e dos seus arquivos manuscritos, resultado de meio século de pesquisa sobre tradições orais.


suas heranças culturais. Outros fatores importantes foram: a Lei 10.639, que prevê a obrigatoriedade dos estudos africanos nas instituições escolares, e também os concursos específicos sobre para a área após 2003. O PERCURSO TERRITÓRIO NEGRO O

Percurso

Território

Negro

possibilita

atividades

pedagógicas

interdisciplinares e tem como ponto de partida a memória social e coletiva do Brasil, país multicultural e pluriétnico. A ideia de construir um percurso narrativo é reflexo do pensamento que tem norteado pesquisadores da área museológica. Eles entendem que a percepção de “museu/templo”, com o espaço de contemplação dos objetos, se ampliou, inserindo a ideia do “museu/fórum” (SUANO, 1986), no qual ressalta-se a construção de narrativas e iniciativas para configuração de um espaço de diálogo e reflexão. Os espaços museológicos, lugares de memória e história, que, pelo poder de representação que encenam, por vezes, reproduzem uma memória social coletiva que reflete ideias de hegemonia entre povos e culturas. Os professores das escolas inscritas no Circuito trabalham temáticas relacionadas à cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, elaboram um projeto com a temática e mandam para análise da Secretaria de Educação. Após aprovado, as escolas participam das visitas temáticas nos três espaços que participam do projeto para desenvolver mais sobre a temática nesses. Assim, dentro do contexto do Percurso Território Negro, os mediadores do Museu elaboram propostas de intervenções e narrativas relacionadas a países do continente africano e suas especificidades, com foco na desconstrução da visão estereotipada e monocultural tão arraigada no conhecimento popular. Dentre as sete propostas de percurso narrativo estavam: •

Benin, Cultura: Esta apresentação foi feita pelo intercambista de Benin,

Jean Eudes, graduando de Ciências Econômicas pela UFMG, que abordou a cultura e costumes de seu país. •

Moçambique: Arte e Arquitetura: Pesquisa realizada por Míriam Célia,

graduanda de Museologia, e Rogério Lucas, graduando de Arquitetura e Urbanismo, sobre os artistas, museus e monumentos arquitetônicos de Moçambique.


Qual o seu imaginário sobre a África?: Com a vivência no Brasil, a

intercambista de Guiné Bissau, Celina Lopes, graduanda de Turismo pela UFMG, notou que em geral a percepção do continente africano se relacionava a savanas, pobreza, miséria e conflitos. Com objetivo de desconstruir alguns estereótipos sua apresentação consistia em mostrar as singulares e diversas culturas de seu país. RESULTADOS Nos anos de 2012 e 2013, o projeto atendeu, em média, 50 (cinquenta) grupos escolares, cerca de 1800 (mil e oitocentos) estudantes do ensino fundamental com idades entre seis a dezoito anos, de escolas municipais de oito regionais de Belo Horizonte. Por um lado a experiência com o Circuito Território Negro trouxe grande conhecimento para os mediadores e a Equipe do Educativo do Museu, tanto sobre a cultura africana e afro-brasileira, quanto sobre a metodologia de elaboração de narrativas e percursos museológicos. No entanto, os objetivos atingidos no desenvolvimento do projeto, foi diferente do esperado, motivando-nos a reelaborá-los. Uma parcela significativa de estudantes demonstravam desinteresse e/ou detinham pouco conhecimento ou informações equivocadas relacionadas ao tema. A visita temática “Benin, cultura”, por exemplo, no princípio tinha o objetivo de abordar a África em geral e posteriormente assuntos específicos do país Benin. No entanto, muitas vezes os alunos pensavam que a África era um país ou uma cidade, então em outras apresentações também foi trabalhada a noção de continente. Grande parte dos professores também chegavam ao Espaço totalmente despreparados para a visita, poucos conheciam o Projeto do qual faziam parte e alguns utilizam seu nome somente para conseguirem agendar uma data para visitação, já que essa tinha um dia específico para agendamento. CONSIDERAÇÕES FINAIS A visão estereotipada e o desinteresse demonstrado por uma parcela significativa dos estudantes, juntamente com o conhecimento de informações equivocas relacionadas ao tema, apontaram para a realidade constatada por estudos sobre o ambiente escolar brasileiro e sua relação com estudos da


História da África. Esses resultados, aliados ao fato de que grande parte dos professores também chegarem ao Espaço sem o preparo adequado para a realização da visita, nos motivou a reelaborar o projeto e criar novas intervenções. As análises feitas nos permitiram compreender os motivos pelos quais os estudos do continente africano foram tão excluídos, e porque voltaram a ser áreas de interesse de pesquisadores. Entendemos que os estudos sobre História da África devem ser feitos de maneira muito particular, principalmente por pesquisadores ocidentais que vivem em uma sociedade muito diferente da africana. É preciso analisar o continente além dos estereótipos difundidos, da escravidão e da resistência ao colonialismo. Depois de tantas mudanças nas áreas de pesquisa vemos o crescimento de estudos que tratam da história do próprio continente, seus vários povos, suas culturas, particularidades e tradições. É preciso separar a velha ideia mítica que se tem de tradição oral africana e, ainda mais, ressaltar as contribuições da África para a humanidade. É a partir dessas pesquisas nas universidades que esse tema pode ser abordado de modo diferente em ambientes escolares e em instituições museológicas. Nessas últimas, além de uma formação dos funcionários, principalmente das pessoas que lidam diretamente com o público, é igualmente importante os discursos apresentados na exposição, que ao invés de passar o conhecimento e reforçar estereótipos, deve estimular o visitante a construí-lo com base na reflexão. Waldisa Rússio fala sobre a exposição como ferramenta de divulgação e difusão de informações e como elemento que contribui para construção do conhecimento: A exposição não exaure todas as atividades do museu – é preciso deixar claro – mas a exposição é, na realidade, um texto claro, algo que pode ser feito como uma releitura do mundo, é trazer para o museu uma representação do mundo, das relações do homem com a sua realidade, e torná-las tão evidentes (...) que possam despertar uma consciência crítica, inclusive onde ela não existe, ou desenvolvêla onde ela já está embrionária (GUARNIERI, 1984, p. 62).

Nos ambientes escolares, em todos os níveis, é preciso estudar o continente de modo que ele não reproduza o mesmo discurso, mas trate da dimensão


atlântica da escravidão, de como os povos africanos conseguiram sobreviver e recriar sua cultura na África, no Brasil e em vários países. A diversidade do continente também precisa ser abordada. O contato com apenas um discurso, na perspectiva ocidental, não é suficiente para promover uma reflexão sobre o tema. É preciso mais para que esses estudos cheguem de maneira efetiva até a educação básica. A Lei 10.639, de 2003, garante que a disciplina esteja no currículo escolar, mas não capacita os professores para desenvolverem o tema dentro das salas de aula. O que vemos na realidade escolar são professores despreparados para lidar com essa disciplina, e que o governo tem feito consiste em disponibilizar livros didáticos que abordam diversos assuntos sobre a história do continente que os professores mal conhecem. E, nas salas de aula, temos professores que se tornam meros repetidores do que está nos livros, muitas vezes reforçando os antigos estereótipos sobre a História da África, generalizando os fatos e, ainda hoje, passando para os alunos a ideia de uma “história comum” de todo o continente. Portanto, entendemos que é preciso antes de disponibilizar informações nos livros, capacitar os professores e, despertar também neles, o interesse por essa disciplina que há muito foi deixada de lado. Agradecimentos Agradecemos a leitura, comentários e revisão do artigo à Alessandra Guimarães Teixeira Santos. Referências Bibliográficas 2012. ChimamandaAdichie – Os perigos de uma história única (legendado). Disponível

em

<http://arquivo.geledes.org.br/em-debate/colunistas/4902-

chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia>. Visto em 13 Out. 2014. FERREIRA, Roquinaldo. A institucionalização dos Estudos Africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações. Revista Brasileira de História, vol. 30, núm. 59, junio, 2010, pp. 73-90. Associação Nacional de História, Brasil.


GUARNIERI, Waldisa Rússio. Texto III. In Arantes, A.A (org). Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 54-78. LOPES, Carlos. A Pirâmide Invertida – historiografia africana feita por africanos. In: Actas do Colóquio Construção e Ensino da História da África. LISBOA: Linopazes, 1995. SANTOS, Vanicleia S. A redescoberta da África no Brasil: as pesquisas em História da África no Brasil (1992-2012). In: Ensino Superior e Investigação Científica no Espaço da CPLP. LISBOA: AULP, 2012, p. 243-254. SUANO, Marlene. O que é museu. São Paulo: Brasiliense, 1986, 101p.


Como citar: PASSOS, R. L. G.; RIBEIRO, R. F. R.; SILVA, M. C. R.; SIQUEIRA, N. C. R.; Percurso Território Negro e a institucionalização dos estudos africanos nas escolas municipais de Belo Horizonte. In: CONGRESSO REDPOP: ARTE, TECNOLOGÍA Y CIENCIA – NUEVAS MANERAS DE CONOCER, 2015, Medellín – Colômbia. Congreso RedPop: Arte, Tecnología y Ciencia – Libro de memorias. 2015. p. 1485-1492.


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