UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE JORNALISMO Redação VI – Reportagem Final Acadêmico: Guilherme Longo
Chaga brasileira Mesmo com a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, a violência contra mulher continua sendo um dos grandes problemas da sociedade brasileira
“Isso já faz um certo tempo. É de um homem que matou uma mulher na Agronômica, a esposa. Escondeu-a dentro do sofá-cama, em uma gaveta, longe dos filhos. Até que descobriram o cadáver e ele foi preso. No dia do julgamento, nós da Casa da Mulher Catarina, que é o grupo feminista que eu pertenço, nós fomos para o Tribunal de Justiça na hora da sessão com vários cartazes do tipo ‘Quem ama não mata, não humilha, não maltrata’, ‘Queremos justiça’, entre outros. Fomos retiradas da sala do julgamento e ameaçadas de prisão porque não podia se manifestar contra a violência dentro da sala do Tribunal”. Este relato é de Clair Castilhos, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, secretária da Rede Feminista de Saúde do Brasil e membro da diretoria da Casa da Mulher Catarina. Ele mostra uma das principais chagas da sociedade moderna, que tem sido combatido por governos, entidades e a própria população: a violência contra a mulher. A violência contra as mulheres é um dos grandes problemas da sociedade brasileira. E ela se dá de diversas formas: física, moral, dentro e fora de casa, no trabalho, na rua, em diferentes idades e classes sociais. Números divulgados por ONG’s defensoras das mulheres e de seus direitos apontam que no país uma mulher é violentada a cada cinco minutos, enquanto a casa duas horas uma é assassinada. Segundo levantamento do Instituto Sangari, entre 1980 e 2010, mais de 91 mil mulheres foram mortas no país, com quase metade dos casos ocorrendo dentro da própria casa. Em média, cerca de um quarto das mulheres já sofreu algum tipo de agressão na vida. De acordo com a Sociedade de Vitimologia Internacional, esses números colocam o Brasil no topo do ranking mundial de violência contra a mulher. O histórico da violência contra a mulher é bastante antigo. É amplamente conhecido que gerações passadas da sociedade discriminavam abertamente o gênero feminino, que era considerado inferior ao masculino. Com isso, casos de agressão
eram extremamente comuns. Os primeiros relatos de combate a esse tipo de violência são recentes, datados da década de 1950, quando a Organização das Nações Unidas (ONU), iniciou seus esforços para coibir esses tipos de ações. As criações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1979 e a Convenção de Belém do Pará, em 1994, representaram importantes avanços para garantir a integridade das mulheres. Mais recentemente, a promulgação da Lei Maria da Penha colocou novamente a pauta em discussão. De acordo com Clair Castilhos, esses tipos de agressão são muito intensos, deixando marcas físicas e psicológicas nas pessoas agredidas. Clair divide os abusos em três categorias: física, com estrangulamentos, pontapés, chutes, socos e queimaduras, sexuais como estupro e atentado ao pudor e as psicológicas, com humilhações, descasos e o abandono. Mas os atos de violência contra a mulher não são exclusividade dos parceiros. Um caso que recebeu ampla divulgação nas redes sociais no último ano foi o relato feito pela twittera Natália Jerônimo, mais conhecida por Natália Penas. Segundo o depoimento, os casos de violência começaram quando tinha aproximadamente três anos. Eram berros, tapas e socos distribuídos gratuitamente. Com o passar dos anos, os casos de agressão foram se intensificando, colocando Natália em um quadro de depressão aguda. “Eu lembro de uma vez que tinha brigado, e ela sempre fazendo questão de me deixar muito pra baixo. Eu fui pra escola. Bem mal. Eu andava na rua sem olhar para os lados, de tão tensa que eu estava. Ela ficava me ligando, me chamando de ‘bosta’ e me ameaçando. E eu estava tão de saco cheio que não ligava se um carro passasse por cima de mim. A sensação era de querer morrer mesmo”. Atualmente, ela continua morando com a mãe, mesmo ignorando sua presença. “Como que eu posso melhorar, superar esse trauma, morando junto com a pessoa que eu mais detesto?”, comenta. “Eu nunca amei, nem se quer gosto. Costumo dizer até que odeio ela.” Casos como o de Natália, que teve grande alcance nas redes sociais, costumam impactar as pessoas, levando-as a tomar algum tipo de atitude. Outro relato que ficou bastante conhecido na mídia brasileira foi o a apresentadora Xuxa. Em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, ela assumiu ter sido vítima de abusos físicos quando era criança e incentivou às pessoas que estavam assistindo a que denunciassem seus agressores. No dia seguinte, o número de ligações para o Disque 100, serviço do governo federal que recebe denúncias de violações aos direitos humanos, saltou de 80 mil para 112 telefonemas, um aumento de quase 50%.
Mas o governo possui uma linha específica para atender casos de violência contra a mulher. É o 180. Em 2013, o serviço registrou 15.600 ligações, com uma taxa de atendimento de 1.171 registros em cada grupo de 100 mil mulheres, ou seja, pouco mais de 1% do total no país. A mídia tem se preocupado em usar sua influência para conscientizar as pessoas desse problema. Um dos casos mais conhecidos na televisão brasileira é o da personagem Raquel, interpretado pela atriz Helena Ranaldi, na novela Mulheres Apaixonadas, exibida pela Rede Globo em 2003, na faixa das 21h. Em diversos capítulos eram exibidas cenas onde Raquel apanhava de seu marido, na maioria das vezes com uma raquete de tênis. O perfil do agressor varia de acordo com a idade das mulheres. Entre a fase de infância e pré-adolescência (até 14 anos), os pais são os autores mais citados. Na adolescência e período universitário, entre 15 e 29 anos, os agressores, em sua maioria, se modificam para amigos, namorados, conhecidos e em muitos casos, desconhecidos em locais como baladas. Já após os 29 anos, cônjuges e exnamorados são os principais violentadores. No final de novembro, a Secretaria de Segurança Pública do Estado divulgou os números da violência contra a mulher em Santa Catarina. No primeiro semestre de 2014, 61 mulheres foram assassinadas dentro de suas próprias casas. No mesmo período, foram denunciadas 1000 tentativas de estupro. O número divulgado, inicialmente, mantém a média de anos anteriores: em 2010 foram 112 casos, 56 em 2011 e 99 no ano passado. Em Florianópolis, a 6ª Delegacia de Polícia da Mulher e do Menor é a única do tipo, mas ainda assim não é especializada para lidar com casos de violência contra a mulher. De acordo com a psicóloga Rosana Capigotto, a DP já era especializada em lidar com casos de mulheres na condição de vítima, mas com a instituição da Lei Maria da Penha, em 2006, ela passou a atender com maior atenção casos que se enquadrassem nos termos da lei. O delegado responsável pela 6ª DP, Ricardo Guedes da Cunha, reclama do fato da delegacia ser a única da Capital com esse tipo de atendimento. “Atendemos norte da ilha, sul da ilha, então imagina a quantidade de mulheres que são violentadas que vem parar aqui”, comenta. O caminho pra transformar uma denúncia em processo é rápido; o que pode causar demora é o tempo de espera no Judiciário. Segundo a policial Joacyr de Paula
Nizer, da 6ªDP, mais conhecida como Dona Jô, a mulher ao chegar à delegacia para realizar um boletim de ocorrência é encaminhada diretamente para os oficiais em plantão, onde o BO é feito. Após isso, é feito o despacho por parte da delegada, enquanto a denunciante é encaminhada para o psicólogo da delegacia ou para o escrivão, caso deseje pedir uma medida protetiva. Uma vez colhido o depoimento e a conclusão do inquérito, a denúncia é encaminhada para o fórum, onde vira processo. Por outro lado, o Estado é considerado falho nas questões de assistência às vítimas de violência. Clair critica a falta de delegacias especiais para o atendimento às mulheres, o que dificulta a realização de um trabalho mais efetivo com as pessoas. Além disso, a falta de Casas Abrigo ou “casas de passagem” para que as mulheres possam se esconder após a agressão ou ameaça de morte também se põe como um grande problema, porque as mulheres muitas vezes acabam não tendo como fugir e se proteger do agressor. Clair destaca também a falta de um serviço de assistência social e psicológica voltado para as vítimas, para que seja realizado um acompanhamento contínuo com essas mulheres, na tentativa de coibir novas agressões ou incentivar a reação. Nas delegacias, o despreparo dos profissionais pode se mostrar um obstáculo, sendo necessária a realização de processos de capacitação e treinamento dos policiais, escrivães e delegados. Além disso, precisam ser mais atuantes nas etapas que acontecem fora das delegacias. Os hospitais públicos precisam ter o serviço de acolhimento às vítimas de agressão e os Institutos Médicos Legais precisam ser mais bem preparados para a realização de exames de corpo de delito desses casos. A omissão do Estado citada por Clair pode ser vista nas DP’s. O delegado Guedes comenta que a precariedade do local de trabalho atrapalha as atividades. “A nossa delegacia é capital. Ela deveria ser referência em número de profissionais. Mas somos em dois delegados para atender a parte da mulher. Eu tenho um escrivão só. A outra delegada só tem uma também. Nós não temos equipe de investigação. Falta muita gente. É precário. A gente realmente faz o que pode por aqui”, afirma. Mas, para Clair, a participação do Estado no processo é essencial, mas não é tudo. Para que a violência diminua no país, não basta somente uma delegacia equipada com profissionais preparados. As mulheres precisam também querer o fim da agressão e as causas precisam ser combatidas. Por isso, o primeiro passo é a denúncia.
Medo, ameaça de morte, dependência econômica. Essas são algumas das barreiras que precisam ser ultrapassadas pelas mulheres para denunciar e depor contra seus agressores. Clair comenta que em diversos depoimentos de mulheres agredidas que ouviu durante sua trajetória, o fato do agressor sustentar a casa e ter uma relação afetiva com os filhos, acaba inibindo a denúncia. “Ela não denuncia porque precisa dele economicamente. É o cara que sustenta a casa. Às vezes os filhos gostam do pai. O discurso que ouvimos diversas vezes é que ‘não, ele é um bom pai, é um bom marido, ele sustenta casa. Ele só fica assim quando bebe’“, afirma a secretária da Rede Feminista de Saúde. A vergonha também influencia na hora de fazer a denúncia. Para o delegado Guedes, muitas mulheres não tem coragem de aparecer com o olho roxo ou admitir que foi estuprada. A 6ª DP foi fundada em 1985, mas foi somente em 2006 que a Lei Maria da Penha foi promulgada. A lei alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada. Os agressores não podem mais ser punidos com penas alternativas, como prestação de serviços e pagamento de cestas básicas. E a nova lei também prevê medidas que vão desde proibir a aproximação do agressor à vítima até a saída de casa do autor do crime. A partir dessas mudanças na lei, o tipo de denúncias mudou muito. Antes a maior parte dos BO’s registrados eram por lesão corporal, enquanto hoje a maioria é por ameaça. Isso significa que muitas mulheres não esperam mais que a agressão física aconteça. Os casos de lesão corporal leve também estão entre as denúncias mais comuns na DP. Na tentativa de diminuir os casos de agressão à mulher no Brasil, a Rede Feminista de Saúde tem promovido diversas campanhas de conscientização. De acordo com Clair, a entidade organiza campanhas a níveis nacional e internacional para que as mulheres tomem consciência da questão da violência, da importância de se denunciar os atos, em especial os cometidos no âmbito doméstico, em que, no geral, as mulheres tendem a sofrer silenciosamente. A atuação contra a violência não tem sido realizada somente por entidades e organizações não governamentais. Na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a Bancada Feminina, criada em março de 2011, tem atuado na defesa dos direitos da mulher. Atualmente, é formada pelas Deputadas Ada Faraco, Ângela Albino, Ana Paula Lima, Dirce Haeiderscheidt e Luciane Carminatti. Um dos principais projetos da bancada se encontra em tramitação na ALESC: a criação de um Observatório da
Violência Contra a Mulher, para que seja possível uma melhor organização das denúncias feitas e dados disponibilizados. A deputada Luciane comenta como a bancada tem analisado o atual perfil da violência contra a mulher em Santa Catarina: “Não é diferente do Brasil como um todo, ela tem mudado o seu perfil. Passado da violência só física, que anteriormente era mais forte ainda, tem agora se traduzido de uma forma mais intensiva na violência psicológica e sexual. As mulheres dão depoimentos de que estão se acostumando com a humilhação, com a discriminação, com o preconceito. Isso tem passado a fazer parte da rotina da mulher.” Sobre um possível fim da violência contra a mulher acontecer, a psicóloga Rosana Capigotto comenta: “Eu acho que ela sempre vai existir. Somos nós, que devemos através da busca da lei, da busca pelos nossos direitos é que vamos dar limite a essa situação”. Mas Natália dá uma dica às mulheres que se encontram em situação de abuso: “Não dá pra viver uma vida assim. É melhor tomar uma atitude mais brusca e viver melhor do que ficar parado, vivendo uma situação assim, sem querer.”