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Hilda Hilst escancarada Fotos: Heudes Regis/JC Imagem
REFLETORES Reedição e novas edições da obra, divulgação nas redes sociais e mostra em SP lançam luz sobre criação da escritora
UNIVERSO Exposição em São Paulo reproduz parte do cotidiano de Hilda Hilst: as fotos foram trazidas da casa da escritora; a máquina de escrever foi usada por ela para a sua criação. O professor Alcir Pécora (abaixo) é especialista na obra de HH
Antonio Scarpinetti/Divulgação Unicamp
ÃO PAULO – Pelos olhos de um público imberbe, a escritora Hilda Hilst sai da sombra e ganha holofotes sobre sua obra. O que diria HH se assistisse hoje à euforia de jovens tentando decifrá-la? Teria que abandonar a reclamação de uma trajetória literária inteira, de que não foi lida. Onze anos após sua morte, a obra de Hilda vive uma espécie de reavivamento. A fama de impenetrável vai se esvaindo com sua penetração cada vez mais crescente no mercado editorial e na academia. Na prateleira, novas edições de livros, títulos inéditos, filmes e peças de teatro tentam espantar o medo de Hilda Hilst. “Até a Globo Livros decidir editar a obra completa, os livros de HH tinham pouca circulação. Era uma obra quase marginal, editada artesanalmente por amigos e pequenas editoras”, observa Alcir Pécora, professor de Literatura da Universidade Estadual de Campinas e editor da obra de HH pela Globo Livros, entre 2001 e 2008. “Também faltava um vocabulário crítico competente, que ajudasse a introduzir o leitor no universo da autora. A edição de 20 volumes com sua produção completa (40 títulos) contribuiu para aumentar sua penetração na universidade, mudando o discurso dentro da literatura brasileira. Até então, a academia estava centrada no modernismo paulista. E a obra de Hilda não cabia nessa perspectiva porque ela é radical, anárquica e libertária.” A sedução do leitor jovem também é explicada pelos temas obscenos, que estão presentes não só na trilogia pornográfica (O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio: textos grotescos e Cartas de um sedutor), mas também no núcleo da obra. “A página do Instituto Hilda Hilst (IHH) tem mais de 40 mil seguidores no Facebook. Entre eles, 70% são pessoas com menos de 30 anos e 65% são mulheres”, diz o presidente do IHH e herdeiro dos direitos autorais da escritora, Daniel Fuentes. No intervalo de um ano (de abril de 2013 a abril de 2014), a participação de HH no mercado editorial dobrou e as vendas saíram de um patamar de R$ 30 mil para R$ 100 mil por trimestre. Nos anos 1990, Hilda anunciou que abandonaria a “literatura séria” e começaria a escrever pornografia para tentar se aproximar do público. Numa conversa provocativa com o professor Jorge Coli, ela brincou: “já que não consigo vender meus livros, quero escrever história de sacanagem para caminhoneiros baterem punheta”, disse, às gargalhadas. “Apesar desse discurso, a literatura dita pornográfica de Hilda também está repleta de erudição”, avalia Pécora. Os livros trazem intertextualidade com escritores como Georges Bataille e D.H. Lawrence, referências nas discussões sobre erotismo. Polêmica quando foi lançada, a Trilogia obscena foi reeditada este ano no livro Pornô Chic, com selo da Biblioteca Azul. Também pelo mesmo selo saiu o livro de entrevistas Fico besta quando me entendem. Esses dois títulos fazem parte de um novo movimento de edição da obra de Hilda. O primeiro, com Alcir Pécora, serviu para tornar a obra disponível aos leitores. “Quando sentimos que a missão estava cumprida, começamos a pensar em obras que chamassem mais público, que atraíssem leitores com ainda algum medo, mas também com curiosidade por Hilda. Assim, concebemos livros mais atraentes, ilustrados, divertidos”, destaca a editora responsável pelos livros de HH, Ana Lima Cecílio. E não vai parar por aí. Está no prelo o livro Cartas aos Pósteros, com previsão de lançamento para o segundo semestre. O título traz parte da correspondência trocada entre Hilda e o amigo e escritor espanhol, Jose Luis Mora Fuentes. “Ainda estamos elaborando o livro, estudando as cartas. O processo é bastante delicado, desde a decifração das caligrafias até a escolha do que é interessante para o leitor. São cartas entre amigos muito próximos, que falam de banalidades, de sonhos, de criação literária”, adianta Ana. A previsão é que também seja lançada a primeira biografia da escritora, mas a editora mantém segredo.
k Death metal do Obituary, no Recife
Pio Figueiroa/Divulgação Unicamp
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Divulgação
Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Mostra leva leitor até HH A sensação é de que a própria Hilda Hilst (1930-2004) vem nos receber à porta. A velha Olivetti Lettera na entrada, a voz da escritora num vídeo e rastros do seu processo criativo (manuscritos, desenhos e diários) são fragmentos de uma exposição em primeira pessoa. Em cartaz até 21 de abril (data em que ela completaria 85 anos) no Itaú Cultural, em São Paulo, a Ocupação Hilda Hilst traz o espectador para dentro do universo hilstiano. “Nossa intenção foi que a própria Hilda apresentasse suas loucuras e pensamentos, sem necessidade de intermediários. Para que ninguém precisasse falar por ela, reunimos na exposição mais de 210 textos originais (alguns inéditos), além de fotos, áudios e vídeos”, explica o gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural, Claudiney Ferreira. A exposição também tentou fugir do modismo da interatividade que “aperta botão”. A interação com o espectador acontece por meio da leitura. Os 40 títulos escritos por Hilda estão disponíveis para ler e rabiscar (como ela costumava fazer). Ao fundo da Ocupação, um painel de madeira permite que o espectador manipule 20 frases retiradas de 11 livros da autora. Os trechos extraídos trazem temas obsessivos na obra de HH: Deus, morte, loucura e existencialismo. “Como é essa coisa de a gente se pensar?”, “E por que será que todas as coisas ligadas à santidade são necessariamente ligadas ao sofrimento?”, “Como é possível ir até o fim da própria vida sem perguntar ao menos: por que é que estou vivo?” são algumas das questões. Para montar a exposição, o Itaú Cultural recorreu ao acervo do Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da Universidade Estadual de Campinas, e ao Instituto Hilda Hilst (IHH), que também participou da curadoria. “O espaço tenta reproduzir a Casa do Sol (residência de HH em Campinas), com suas paredes cor de rosa e iluminação intimista. As fotos foram trazidas da residência. São amigos, intelectuais e escritores admirados por Hilda. Itens pouco conhecidos da produção de HH também estão presentes, como as aquarelas. Uma peça curiosa é um mapa do humor, com seus altos e baixos ao longo de anos”, diz o presidente do IHH, Daniel Fuentes. Nos manuscritos estão minúcias do processo criativo hilstiano nos livros O caderno rosa de Lori Lamby, A obscena senhora D., Com meus olhos de cão, Kadosh e Júbilo, memória, noviciado da paixão. As folhas amareladas trazem cartas a editores, rabiscos dos títulos dos livros, pesquisa de temas, preparação para entrevistas e outra obsessão de HH: listas (de nomes dos cachorros, amigos, dívidas, livros, escritores e sonhos). k continua na página 3
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Os jovens olham para a obra de Hilda com outra perspectiva. Se interessam pelo caráter radical, anárquico e libertário do texto e se entregam a uma admiração imediata, mesmo que os livros tragam referências eruditas.” Alcir Pécora
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O refúgio criativo de HH CASA DO SOL Lugar onde escritora viveu, em Campinas, é abrigo de memórias Adriana Guarda adrianaguarda@jc.com.br
OPEN HOUSE Na Casa do Sol, Hilda recebia amigos, artistas e intelectuais, alguns por temporadas
Um papo sobrenatural
ENTRADA O portão original da Casa do Sol não é mais utilizado No jardim de 10 mil metros quadrados (idealizado por Mora), a escritora costumava tentar captar vozes de pessoas mortas. A área verde também é solo de uma centenária figueira, um dos motivos que fez a Senhora H escolher o terreno para construir a residência. Frequentadores da casa contam que ela costumava realizar rituais e fazer pedidos debaixo da “árvore sagrada”.
REFORMA Completando 10 anos, o IHH comemora a Ocupação Hilda Hilst, no Itaú Cultural, e a concessão de um patrocínio para a Casa do Sol. O Grupo Itaú está investindo R$ 800 mil para descupinizar o espaço, além de cadastrar e disponibilizar o acervo na internet. “O trabalho começou em janeiro e será concluído em 18 meses. Apesar de Hilda ter vendido boa parte do seu acervo para a Unicamp, a Casa do Sol ainda abriga as “peças afetivas” da escritora. São 3.500 livros, 4.000 fotos, 150 minutos de gravação em Super 8, 300 horas de material de áudio e inúmeros manuscritos. “Ainda esperamos encontrar material inédito nesses rascunhos”, acredita Daniel. Ao final do trabalho de recuperação do acervo, será inaugurado um espaço batizado de Sala de Memória Casa do Sol, que vai funcionar no antigo quarto de Hilda.
Frame do documentário/Divulgação
AMPINAS – Quando chegamos à Casa do Sol, em Campinas (SP), estranho o portão de entrada. Não era aquele que costumava ver nas fotos, com o sol de cerâmica no alto do portal e as iniciais HH desenhadas em ferro. Ouço a explicação de que a histórica entrada foi isolada por conta da nova vizinhança. Na frente do portão vai passar um muro, separando a casa onde a escritora Hilda Hilst viveu por quase 40 anos, de um condomínio de luxo, já em construção. Ao meu sinal de lamento de que a invasão imobiliária tenha chegado ali, o presidente do Instituto Hilda Hilst (IHH), Daniel Fuentes, responde pragmaticamente: “Fomos nós mesmos que vendemos o terreno à construtora. Era isso ou ver a casa ser leiloada. Um dia após a morte de Hilda (em fevereiro de 2004), já tinha Oficial de Justiça batendo na porta. A dívida de IPTU estava em R$ 3 milhões e os herdeiros queriam se desfazer do espaço”, conta. Distante 11 km de Campinas, a Casa do Sol foi uma espécie de “clausura voluntária” para Hilda. Em 1966, a escritora se mudou para lá, deixando para trás o brilho dos salões e as festas da “juventude transviada” na capital paulista. Considerada uma das mulheres mais bonitas da sua época, Hilst despertou muitas paixões. Teve um caso com Vinicius de Moraes e chegou a flertar com Marlon Brandon. Depois de ler o livro Cartas a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, entendeu que era preciso se distanciar das dispersões urbanas para dedicar a vida à literatura. A Casa do Sol não significou um isolamento, mas um recolhimento criativo. O espaço sempre funcionou como ‘open house’, recebendo amigos, artistas e intelectuais, que faziam visitas, passavam temporadas e até moravam lá. Os escritores Jose Luis Mora Fuentes, Caio Fernando Abreu e Lygia Fagundes Telles figuraram nessa lista. Amante de Hilda durante um tempo e amigo pelo resto da vida, Mora Fuentes virou inquilino junto com a esposa, a artista plástica Olga Bilenky, e o filho Daniel Fuentes. Após a morte de Hilda, a Casa do Sol passou a sediar o IHH. Quando Mora faleceu, em 2009, Daniel assumiu o instituto e herdou os direitos autorias da escritora. O lugar abriga parte do acervo da autora e ainda funciona como residência criativa e espaço cultural. “As pessoas me perguntam se a casa está do jeito que Hilda deixou. É claro que não. As ausências transformam os lugares. Ela era uma figura muito exuberante. O que fazemos é lutar para manter o espaço vivo”, assevera Olga. A missão inclui manter o acolhimento de cães abandonados, que Hilda não parava de receber, chegando a ter 90 animais. Hoje, o número se restringe a 10. São vira-latas de muitas mestiçagens, mancos, cegos, com mandíbula defeituosa, mas que ajudam a manter a atmosfera do lugar. As visitas não escapam à curiosidade ruidosa dos bichos, que insistem em participar do convívio social. Sempre se abancam à sombra perto das rodas de conversa. “Hilda não quis ter filho com receio de que eles herdassem a esquizofrenia do avô (o poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst). Por isso, exercitou a maternidade com os cães”, pondera Daniel. Doada pela cineasta Gabriela Greeb, Balalaika é o xodó da casa. “Para ela vir correndo é só chamar assim: auuuuuuuuuu”, conta Olga, recebendo o carinho desajeitado da cachorra, que chega suja e molhada depois de uma fuga pela vizinhança. A musicista Renata Caldana, em temporada na casa, é responsável pelo banho coletivo dos cães e se diverte com a marotice da cachorrada. Além de espaço criativo, a Casa do Sol também era o lugar onde HH realizava suas experiências sobrenaturais.
Fotos: Heudes Regis/JC Imagem
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A ligação de Hilda Hilst com o cósmico vai virar documentário. Até o final do ano, a cineasta Gabriela Greeb espera lançar o filme Hilda Hilst pede contato. A narrativa será conduzida pela voz da própria escritora, extraída de 100 horas de áudio gravadas em fitas cassete. Encontrado na Casa do Sol, em Campinas, o material é resultado de anos de experiência da autora na tentativa de se comunicar com parentes e amigos mortos. Conhecido como transcomunicação instrumental, esse fenômeno fez parte dos experimentos realizados pelo cientista suíço Friedrich Jurgenson, que Hilda seguiu. Com um gravador, a escritora tentava captar o que se chama de “ruído branco”, emitido no intervalo entre duas estações de rádio. A ideia extravagante de Hilda de se conectar com o sobrenatural fez com que ela ganhasse mais de 10 minutos no programa Fantástico (TV Globo), em 1979. O vídeo mostra HH apresentando a gravação de uma voz que ela afirmava ser de sua mãe. “Hilda não se conformava com a ideia de finitude do espírito e falava em criar um centro de estudos da imortalidade na Casa do Sol. No filme, vamos trazer um pouco disso, com HH na primeira pessoa. Será como se ela viesse de outro plano conversar com os vivos. Os depoimentos serão usados como se os amigos estivessem falando com ela”, explica Gabriela, dizendo que Hilda será interpretada pela atriz Luciana Domschke. Decisivo para o filme, a produção de som ficou sob o comando do premiado francês Nicolas Becker, dos filmes Gravidade e Batman begins. Já a fotografia é assinada pelo português Rui Poças. Com orçamento de R$ 1,2 milhão, o filme está em fase de captação de recursos. Metade do valor será bancado pelo prêmio Petrobras Cultural de longa me- tragem, conquistado por Gabriela Greeb em 2012.
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PELA SOMBRA Figueira centenária motivou a compra da casa por Hilda Hilst; filme está em finalização (centro); Olga, Daniel e Renata ajudam a cuidar da Casa do Sol e também dos cachorros que vivem por lá