Encontro nos mares do sul

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Encontro nos Mares do Sul South Seas Affair

Kay Thorpe

Nem a solidão a faria arrepender-se de ter conhecido o prazer. Vanessa encostou a testa na vidraça, olhando a chuva tornar-se mais forte. Um misto de saudade e tristeza a transportou para os dias ensolarados que passara com Raoul naquela ilha encantada dos mares do Sul. Lá, apenas o azul intenso do Pacífico testemunhara a louca paixão que a fizera entregar-se, sem pensar no amanhã, sem ao menos lembrar-se de quem ele era... Estava tão sozinha agora... Onde estaria Raoul? Em que parte do mundo se encontrava o pai do bebê que carregava no ventre? Digitalização: Simoninha Revisão: Cynthia M.


Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe

Encontro nos Mares do Sul Kay Thorpe Copyright: Kay Thorpe Título original: South Seas Affair Publicado originalmente em 1986 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Liane Lazoski Copyright para a língua portuguesa: 1986 Editora Nova Cultural Ltda. — São Paulo — Caixa Postal 232 Esta obra foi composta na Linoart Ltda. e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. Foto da capa: Keystone

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe

CAPÍTULO I Vanessa não tirava os olhos daquele homem que embarcara no avião em Singapura. Parecia deslocado na classe turística, mexendo sem parar na papelada que estava esparramada sobre a mesinha dobrável diante da poltrona. As roupas, o porte e o ar arrogante evidenciavam que se tratava de um homem de posses e que deveria estar viajando de primeira classe. Ela havia percebido que se tratava de alguém muito importante assim que o viu caminhar pelo corredor do avião, antes de sentar-se ao seu lado. A antipatia por ele foi imediata; isso nunca tinha lhe acontecido antes, e aquela presença a deixava muito incomodada. Não querendo pensar no assunto, Vanessa recordou-se do jeito triste de Michael ao se despedirem no aeroporto de Heathrow. Michael a amava, e Vanessa sabia que ele poderia lhe dar tudo o que uma mulher espera de um homem. Por que então não conseguia corresponder? Não encontrava resposta para essa pergunta. Aliás, nem sabia direito o que pretendia da vida. Na verdade, estava precisando de um tempo, um bom tempo, para entender os próprios sentimentos. No fundo, este tinha sido um dos principais motivos que a levaram a viajar. De acordo com as notícias que ela recebera um ano antes, o pai gozava de boa saúde. Escrevera para o último endereço que tinha dele, informando-o da morte da mãe num acidente de automóvel no mês de setembro. Não obtivera resposta. Até podia ter acontecido, como Michael insistia em afirmar, que ele houvesse se mudado da Nova Caledônia. Mas essa hipótese não mudou a disposição de Vanessa. Ela o procuraria até encontrá-lo, ou até que o dinheiro acabasse. Pelo menos se consolaria com o fato de ter feito todo o possível. O passado lhe deixara poucas recordações. Vanessa tinha somente sete anos quando o pai abandonara a família. Mesmo antes que isso acontecesse, pouco se viam, pois ele vivia fora de casa. A mãe sempre dizia que o marido era muito inquieto e não conseguia ficar por muito tempo em um mesmo lugar. O casamento entre eles se dera, apesar da diferença de idade, por causa de uma gravidez indesejada. Doze anos mais velho que a esposa, até que Neal Grantham se esforçara. Durante quase oito anos manteve o juramento feito diante do padre. Mas, ao completar quarenta e dois anos de idade, ele sentiu que a vida se escoava e nada estava acontecendo. Muito tempo se passara, e só agora Vanessa o compreendia sem guardar nenhum rancor. Precisava revelo. Apesar dos dezesseis anos de saudades, ele continuava sendo o seu pai. Michael fora contra a venda da casa, mas não conseguira mudar sua decisão. Mesmo que um dia se casassem, Vanessa não gostaria de viver mais naquele lugar, onde passara a vida inteira sempre brigando com a mãe, que talvez inconscientemente a culpasse pelo fracasso do matrimônio. Na verdade, só agora podia perceber que ninguém seria capaz de segurar seu pai, fossem quais fossem as circunstâncias. Com a venda da casa conseguira uma quantia razoável de dinheiro, que permitira a realização dessa viagem. A parte mais difícil tinha sido a decisão de largar o emprego, que lhe garantia vida satisfatória. Exausta, Vanessa cochilou ao sobrevoarem a ilha de Bornéu. Parecia ter saído de Paris há um século. Acordou sob ressaltada com um ligeiro toque no braço. Ao se virar, deu de cara com os olhos azuis do homem que sentava ao lado. — Estão começando a servir o jantar — ele avisou. — Achei que talvez fosse ficar Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe chateada se a deixassem dormindo. Fiz bem em acordá-la? Vanessa se recompôs, passando a mão pelos cabelos. — Obrigada. Estou sem fome, mas com certeza não ia ser fácil ficar sem comer até a próxima refeição. Por acaso sabe qual o cardápio de hoje? O homem esboçou um sorriso. — Parece que podemos escolher entre frango à tandoori e bife. Eu aconselharia a pedir o bife. Ela o observou melhor e concluiu que devia ter trinta e poucos anos. A primeira impressão de antipatia se dissipara. — Faz esta viagem com freqüência, monsieur — a voz de Vanessa soou tranqüila. Ele deu um amplo sorriso que a fez sentir-se insegura. — O meu sotaque é tão revelador assim? — Não, nada disso. Mas, como estamos a caminho de um território francês, pareceume bastante provável. Você é francês? — Sou um francês que nunca morou na França — ele esclareceu. — Para dizer a verdade, poucas vezes estive lá. A família DuTemples vive na Nova Caledônia desde a queda da Comuna de Paris, no século passado. Milhares de famílias francesas foram deportadas para a ilha, mas a maioria delas voltou à França após a anistia concedida em . — A sua família não quis voltar? — Não quis e até hoje parece que não pretendem sair daqui. Ele parecia encantado com as feições de Vanessa. Aqueles cabelos loiros e lisos, os lábios sensuais, o queixo delicado e os olhos verdes, de rara beleza, o atraíam. — Meu nome é Raoul — apresentou-se. — E o seu? Os papéis com que trabalhava haviam sido colocados de lado, o que significava que devia ter se cansado e agora procurava se distrair um pouco. Tudo indicava que Raoul era um especialista em conversar com mulheres bonitas. O típico francês, pensou Vanessa, apesar de jamais ter encontrado pessoalmente outro homem da mesma nacionalidade; mas Raoul era o protótipo do francês que ela vira muitas vezes nas telas dos cinemas. — Vanessa — respondeu. — Vanessa Grantham. A expressão de Raoul se alterou de repente. — Grantham? Esse sobrenome é comum em seu país? — Não muito — ela não entendia a causa da súbita mudança de tratamento. — Por quê? — Por que veio visitar a Nova Caledônia? — Raoul insistiu no mesmo tom de voz. Vanessa hesitou um pouco antes de responder. O seu sobrenome devia significar algo, isso era evidente. Talvez ele pudesse ajudá-la a encontrar o pai. — Vou visitar meu pai, Neal Grantham. Você o conhece? A expressão do estrangeiro não a ajudou muito desta vez. — Ele está esperando por você? De nada servia mentir. Vanessa negou com a cabeça. — Estou planejando fazer-lhe uma surpresa — ela parou de falar, perturbada com o silêncio de seu interlocutor. — Você não respondeu à minha pergunta. — Eu o conheço — a resposta foi seca. — Bem demais. Então ele ainda estava na ilha, pensou Vanessa, aliviada, ignorando a conotação da última frase de Raoul. Mas, ao ver o companheiro de viagem recostar-se na poltrona com um olhar vazio, não resistiu: — Tenho a impressão de que você não se dá muito bem com ele — argumentou. — Daria para me explicar o motivo? Não o vejo há dezesseis anos. — Bom, isso explica o fato de ninguém saber de sua existência. Você não acha que teria sido melhor certificar-se de que ele gostaria de vê-la? — Raoul falava olhando para a frente, sem fitá-la. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Michael servira-se do mesmo argumento; e ela outra vez usou a mesma resposta: — Não quis dar a ele a oportunidade de me dizer não. — Entendo. Achou melhor apresentar um fato consumado e torcer para que tudo desse certo. Talvez chegue à conclusão de que não foi uma boa idéia. — Sei disso. Se eu tivesse um mínimo de bom senso, nem estaria aqui neste momento. Já ouvi essa história antes. Mas, apesar de tudo, ele é meu pai e quero vê-lo de novo. A reação que ele vai ter. . . Bem, isto já é uma outra questão. — Tem razão — disse Raoul, ajeitando o cinto de segurança. — Desejo-lhe boa sorte. A aeromoça chegou com as bandejas de comida e disse alguma coisa em francês ao servir Raoul. Vanessa conseguiu entender várias palavras, apesar de conhecer pouco a língua. Compreendeu que ela se desculpava pela falta de lugar na primeira classe. Raoul a dispensou dizendo que a culpa era dele, pois chegara atrasado. Vanessa concluiu que se tratava de um passageiro costumeiro. E, pelo jeito, ele não queria mais tocar no assunto sobre seu pai. Melhor assim! Preferia não saber de nada antes de encontrá-lo; não estaria com o espírito prevenido. As horas passavam lentamente, e Vanessa não conseguia dormir direito, acordando a todo momento. Ao amanhecer, encontrou o assento ao lado vazio e aproveitou para ir ao toalete. Quando voltava, viu Raoul na outra,ponta do corredor do avião. Ele era mais alto do que imaginara e ficara mais atraente depois de trocar a roupa e fazer a barba. A antipatia dos primeiros instantes foi substituída por uma irresistível atração. — Pelo menos pode desfrutar dos privilégios da primeira classe, monsieur — comentou Vanessa antes de se sentar, referindo-se ao toalete de onde ele vinha. Deve ser um passageiro muito especial! — Ah, então você entende francês — Raoul ignorou a brincadeira. — Você sabe falar também? — O suficiente para não ter problemas. Mas pensei que falassem o inglês na Nova Caledônia. — Desde que os turistas começaram a vir para cá, o inglês é mais usado. Porém, o francês ainda é a língua principal — Raoul DuTemple olhou para fora da janela. — Dentro de mais duas horas estaremos chegando. Depois de servirem o café da manhã começaremos a descer. Agora que deixamos o continente, as nuvens vão desaparecer. Se você nunca esteve na Austrália, recomendo que faça uma escala lá quando voltar para casa. Vale a pena! Vanessa respondeu mansamente: — Tem tanta certeza assim de que vou voltar para casa? Ele a olhou no fundo dos olhos. — Não há nada para você na Nova Caledônia. Vai descobrir isso mais cedo do que imagina. Seu pai. . . — ele fez uma pausa e encolheu os ombros. — Você mesma tirará suas conclusões. Vanessa ficou em silêncio por alguns instantes. Mesmo que conseguisse convencê-lo a falar sobre o pai, o resultado seria insatisfatório para ela e injusto para seu pai. Era óbvio que Raoul DuTemple era inimigo dele. Suas opiniões seriam parciais. ----Pelo menos poderia me dizer onde encontrá-lo. Tenho apenas o número da caixa postal. — Pode deixar, levo você até o cais — ele respondeu. — Cais? — Ele vive a bordo de um barco. Vanessa não conseguiu esconder que ficara desconcertada. — Quer dizer que agora ele é um pescador? — Não é bem como você está pensando. O Júlia é um excelente barco de aluguel — havia um certo ar de ironia na voz de DuTemple. — Posso lhe garantir que nunca falta trabalho para seu pai. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Ele não fez outros comentários, mas deixou muitas dúvidas na mente de Vanessa. A imagem que fazia do pai não combinava muito com pescaria. Neal Grantham era um engenheiro especializado em metalurgia e mineralogia. Pelo que lera sobre a economia da Nova Caledônia, tinha presumido que o pai trabalhava com a extração do níquel, que representava noventa por cento das exportações do país. Mas por que se preocupar? Seu pai já devia estar com mais de cinqüenta anos. Talvez tivesse resolvido se aposentar è morar num barco. Vanessa queria apenas poder vê-lo de novo. Raoul chamou-lhe a atenção para as ilhas que já podiam ser avistadas pela escotilha do avião. Eram lindas! Quilômetros de praias com coqueiros e águas límpidas; mais pareciam um paraíso tropical. Logo ao chegar, Vanessa ficou encantada com a população: brancos, negros e indígenas se misturavam, e havia desde mulheres vestidas segundo os últimos pa drões da moda européia até indígenas trajadas com o tradicional sarong indonésio. Os policiais andavam de capacete e bermudas e não criavam nenhuma dificuldade para os turistas que passavam pela alfândega. Um automóvel esperava por Raoul. Sentada ao lado dele dentro do luxuoso veículo, Vanessa se perguntava o que ele fazia na vida. Embora a Société le Nickel mantivesse o monopólio da extração mineral no arquipélago, sabia que existiam alguns poucos empresários independentes que, obviamente, eram arquimilionários. Mas não importava tanto o que ele fazia. Afinal, provavelmente nunca mais se veriam. O trânsito da cidade estava um inferno, e só chegaram ao cais às onze horas da manhã. — O Júlia fica ancorado naquele embarcadouro — disse Raoul DuTemple. — Perdoeme a falta de elegância. Seu pai não ficaria muito contente em me vu e tenha certeza de que eu também não gostaria de revelo. Se precisar de um hotel, posso recomendar-lhe o Belvedere. — Obrigada, não vou me esquecer — Vanessa pegou as malas que estavam nas mãos de Raoul e sorriu. — Você foi muito gentil. — Era o mínimo que podia lazer — ele a examinou da cabeça aos pés, sorriu e voltou para o automóvel. Vanessa percorreu caminho até o embarcadouro. Atravessara meio mundo por este momento, mas agora se via assaltada pilas dúvidas. Dezesseis anos haviam se passado. Começava a achar que deveria ter seguido o conselho de Michael e Raoul: seria bem melhor se tivesse escrito antes. Mas não havia escrito e era tarde para arrepender-se. Só havia uma maneira de saber se cometera um engano ou não. Precisava ir em frente. Encontrou o barco. Um rapaz louro, de short, estava distraído, sentado no convés. — Monsieur Grantham— disse Vanessa em seu francês hesitante. O rapaz arregalou os olhos e levantou-se de um salto. — Ora vejam, você é inglesa! — ele parecia exultante. — Seria capaz de reconhecer esse sotaque em qualquer parte do mundo! O entusiasmo dele era cativante. Magro, queimado de praia, aparentava ser um pouco mais novo do que ela, que estava com vinte e três. Vanessa não conseguiu conter um sorriso. — Eu acabei de chegar; estou vindo do aeroporto — esclareceu, fazendo uma pausa antes de perguntar: — Por favor, este é o barco de Neal Grantham? — É, sim — os olhos do moço se encheram de curiosidade. — Você o conhece? — Ele é meu pai. Foi um choque. Vários segundos se passaram antes que houvesse alguma reação. — Eu nem sabia que ele tinha uma filha. Vanessa encolheu os ombros ao perceber que Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe o estranho parecia duvidar. — Você não precisa acreditar em mim. Ele mesmo vai confirmar se é ou não verdade. A propósito, ele está a bordo? — Está — o rapaz se recompôs, um tanto embaraçado. — Só que não pode vê-lo agora. Está. . . dormindo. — A esta hora da manhã? — ao notar a expressão dele, Vanessa alarmou-se. — Por acaso meu pai está doente? — Não — ele deu um suspiro de resignação. — É melhor entrar no barco. Guardou as malas no convés antes de conduzi-la para a parte inferior. Lá, depois de passar pelo salão, indicou um compartimento menor. — Ele está lá dentro. Só que há um problema. . . — o rapaz estava nitidamente envergonhado. — Bem, você vai acabar sabendo de qualquer maneira! Seu pai desmaiou ontem à noite depois de beber uma garrafa inteira de uísque. A sorte é que ele já estava deitado, porque, sozinho, eu nunca conseguiria trazê-lo para baixo. Vanessa estava atônita. Não era assim que imaginara aquele homem, depois de tantos anos. . . — Ele sempre faz isso? — Talvez umas duas vezes por mês — ele olhou para a moça, que parecia não acreditar muito, encolheu os ombros e cedeu. — Está bem, três ou quatro vezes por mês. Só que esta é a primeira que esvazia uma garrafa inteira. — Está me dizendo que ele está acostumado a beber desse jeito? E onde você entra nessa história? — Eu trabalho como marinheiro para ele. Faço de Indo um pouco. . . — Você também mora neste barco? — Sim. Meu nome é Brenden. Brenden Hartley. — O meu é Vanessa — ela mostrou um ligeiro sorriso. — Acho melhor darmos uma espiada nele, não é? Podemos conversar mais tarde. Neal Grantham estava esparramado na parte inferior do beliche, vestido e com uma barba grisalha de dois dias. Pouco se assemelhava à imagem que Vanessa guar dara dele desde a infância com imenso carinho. Começou a se mexer, balbuciando frases ininteligíveis, sem abrir os olhos. Ela aproximou-se e recolheu a garrafa vazia, que estava jogada no chão ao lado da cama. De perto, o pai parecia mais acabado ainda, provocando-lhe um nó na garganta. — Vou fazer um café forte para ele — decidiu, saindo do compartimento. — Onde fica a cozinha? Os dois se dirigiram para o local, e Brenden colocou a água para ferver. Nada estava acontecendo da maneira como ela havia imaginado, mas iria até o fim. A única forma de agir era esperar que tudo ocorresse de maneira natural, uma coisa de cada vez. — Você e meu pai estão juntos há muito tempo? — Há seis meses — Brenden explicou. — Tive a sorte de aparecer no momento certo. Ele tinha acabado de perder o outro marinheiro; o cara resolveu voltar para o Taiti. Eu conhecia o bastante sobre barcos para convencê-lo a me contratar. — Então você não é daqui da Nova Caledônia? Ele riu. — Por que pensou que eu fosse? O meu francês não chega nem aos pés do seu — ele fez uma breve pausa antes de continuar. — Eu não consegui entrar na universidade, então resolvi conhecer o mundo, já faz cinco anos que saí da Inglaterra. — E a sua família? — Sou a ovelha negra; fui o único dos quatro filhos a decepcionar meus pais. Para ser sincero, nunca tive grandes ambições. A vida é curta demais para se passar a maior parte dela enfurnado dentro de um escritório. Saí de casa com algum dinheiro que tinha recebido de herança da minha avó e viajei por quase toda a Europa de motocicleta. Quando a grana começou a acabar, arranjei um emprego em Ankara durante algumas Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe semanas; ilegalmente, é claro. Foi desse jeito que cheguei até a Austrália: uma semana de trabalho, uma semana de viagem. É óbvio que não vim até aqui de motocicleta; eu a vendi no Paquistão e depois fui pegando caronas pelo resto do caminho. Vanessa, fascinada pela história, riu. — Mas que vida, hein! O que o trouxe para a Nova Caledônia? — Eu queria ir para as ilhas Fiji, mas o dinheiro acabou. — Meu pai não lhe paga bem pelo serviço que faz? — Claro que sim. Ele ganha muita grana quando. . . — Quando está sóbrio — completou Vanessa. Ficaram em silêncio por alguns instantes até que ela recomeçou a conversa. — Você tem idéia de como ele entrou neste negócio? Eu não entendo muito de barcos, mas tenho certeza de que este aqui deve ter sido caríssimo. — É. . . Não deve ter sido nada barato. O fúlia está equipado com os mais modernos instrumentos eletrônicos para a pesca esportiva. Seu pai nunca tem dificuldades para arranjar bons clientes. — Ele é. . . era um engenheiro — Vanessa disse um pouco sem jeito. — Imaginei que estivesse trabalhando no ramo da mineração. — Ele já trabalhou nisso. Dizem até que. . . — o rapaz cortou a frase no meio e ficou com o rosto vermelho. — É apenas uma fofoca de cais de porto. Deixe para lá. — Conte-me — insistiu Vanessa. — Eu quero saber. — Qualquer dia eu vou aprender a manter a boca fechada! Não é nada sério. Há um boato de que Jules DuTemple deu ao seu pai dinheiro para a compra do Júlia alguns anos atrás. Não sei se é pela coincidência do nome, mas. . . — Você quer dizer o nome do barco? Ora, Brenden. Júlia era o nome de minha mãe. É claro que papai quis homenageá-la! Não deve ter relação nenhuma com esse... Sr. DuTemple. — Está vendo? Como eu disse, era só um boato. Há muita rivalidade quando se trata de conseguir turistas. Neal tem o barco mais bem equipado e por isso pega os melhores clientes. É por isso que muita gente não gosta dele. A explicação de Brenden era plausível, mas não o bastante. Todo boato tem um fundo de verdade, pensou Vanessa. Quem seria Tules DuTemple? Algum parente do misterioso Raoul, que conhecera no avião? — Esses DuTemples. . . eles são muito importantes por aqui? — Importantes? Ponha importante nisso! A família tem uma licença de extração independente de níquel desde . Eles vendem a produção diretamente para o Japão, onde é processada — Brenden encheu duas xícaras de café e ofereceu uma a Vanessa. — É melhor tomar um gole disso antes de dá-lo a seu pai. Ele vai acordar morto de dor de cabeça. — A propósito, deve fazer muito tempo que vocês não se vêem. . . — Faz, sim... Vanessa resolveu contar-lhe toda sua história. Brenden a ouviu sem tecer comentários e ficou em silêncio por vários segundos depois do final da narrativa. — Eu não acho certo o que Neal fez, mas ao mesmo tempo acho que o compreendo. Certas pessoas não conseguem assumir compromissos, especialmente compromissos tão sérios como o casamento. Não o odeie por isso. — Eu não estaria aqui se o odiasse. Tudo já passou e de nada adiantaria guardar a mágoa. — E agora que o encontrou? Era uma boa pergunta, mas ela ainda não estava pronta para responder. — Vamos ver o que vai acontecer. Acho que está na hora de acordá-lo. Neal Grantham levou muito tempo para conseguir se sentar na cama estreita. — Tire essa moça daqui! — gritou, enterrando a cabeça entre as mãos. — A última coisa de que preciso agora é de uma mulher para me dar café na boca! Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Vanessa sentiu-se ofendida. — Não sou uma mulher qualquer. Sou sua filha! Com o susto, o Sr. Grantham levantou a cabeça muito rápido e sentiu que ia estourar de tanta dor. Os olhos de Vanessa já estavam cheios de lágrimas quando o pai exclamou, surpreso: — Meu Deus! Talvez tivesse sido melhor deixar Brenden acordá-lo como de hábito, ela pensou. — Estarei esperando você no salão, papai. Temos todo o tempo do mundo para conversar. Brenden a acompanhou. — É melhor deixá-lo sozinho para que se recupere. Um banho frio é capaz de fazer maravilhas. Ela o olhou com espanto. — Parece que você entende bem dessas coisas. Já passou pela mesma experiência? — Só uma vez. Meu fígado não suporta o álcool. Por que motivo o pai recorreria à bebida? Quais seriam as razões dessa necessidade compulsiva? Vanessa suspirou, enquanto se acomodava numa poltrona, no salão do barco. — Brenden, não acha meio apertado morar aqui? Claro que este é um barco fantástico, mas você deve se cansar do meu pai de vez em quando. . . — Não, ele não me aborrece, e gosto muito deste tipo de vida. Além do mais, não anda fácil arranjar emprego por aqui, pois todo mundo prefere trabalhar sozinho. As mulheres dos milionários têm que mandar buscar as empregadas fora. — Inclusive a família DuTemple? — Vanessa fez a pergunta num impulso, sem saber exatamente por quê. — Não há nenhuma mulher na família DuTemple, pelo menos aqui na Nova Caledônia. A viúva de Jules voltou para os Estados Unidos depois da morte dele, no ano passado. Raoul é o último herdeiro, pelo menos por enquanto, e parece que nenhuma mulher conseguiu satisfazer-lhe os ideais, até agora. A mina da família fica ao norte da ilha, mas a casa dele é aqui em Noumea, a capital. Ele também tem uma casa de praia numa ilha particular chamada lie Royale, onde só se entra com convite. — Parece que você conhece bem a família. — Se você quiser, posso descobrir muito mais. Vanessa deu de ombros. — Era apenas curiosidade. Eu conheci Raoul DuTemple no avião em que vim de Singapura. Mas, mudando de assunto, será que meu pai não está com fome? — Só daqui a umas duas horas, quando a ressaca diminuir, é que ele vai pensar em comer alguma coisa. Vanessa abaixou os olhos e engoliu em seco. — Você já está acostumado com isso, não é, Brenden? Ele já era um alcoólatra quando você começou a trabalhar no barco? — Ele não é um alcoólatra, Vanessa. Entre uma bebedeira e outra, nunca chega perto de uma garrafa. O problema é que de tempos em tempos sente necessidade de se desligar do mundo e então. . . Por que precisaria se desligar do mundo? Quais seriam os problemas que atormentavam o pai? Somente Neal Grantham poderia responder a essas perguntas. CAPÍTULO II Vanessa e Brenden ainda estavam sentados no salão quando a porta interna do barco se abriu. De barba feita e com uma camisa limpa, Neal parecia bem melhor. — Sobrou um pouco de café? Parece que meus miolos nunca mais vão parar de doer. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Minha filha, desculpe pela primeira impressão que lhe dei. Eu não queria que tivesse sido assim — o Sr. Grantham aproximou-se de Vanessa, observando-a com atenção. — Eu escrevi para você em setembro. Não recebeu . . . ? — Recebi, sim. Recebi a carta, mas achei melhor que você se esquecesse de mim. Como conseguiu chegar até aqui? A passagem é muito cara. . . Será que ganhou na loteria? — Não. . . — Vanessa sorriu, emocionada. Nem parecia verdade que estava ali, conversando com o pai, depois de tantos anos. No entanto, os dois estavam um pouco constrangidos, sem saber direito como lidar com a situação. — Até que seria bom se eu recebesse algum prêmio. Dinheiro não traz felicidade, mas ajuda bastante. . . — É, ajuda — Neal suspirou. — Sem dinheiro eu não teria o Júlia. E foi este barco que me possibilitou conquistar a minha independência. — Agora entendo por que resolveu dar-lhe o nome de minha mãe. — É. Ela era uma grande mulher. — Mas não conseguiu segurá-lo. Neal sorriu, um pouco triste. — Eu não nasci para ser casado. Não é do meu feitio. Se tivesse ficado com vocês, teria tornado três pessoas infelizes. Sei que isso não é desculpa e não quero me desculpar. Fiz o que precisava fazer, era a única opção. De outra maneira teria ficado maluco. — Não estou condenando ninguém, papai. Simplesmente não dava para continuar deixando as coisas como estavam. Quando resolvi vir para cá, vendi a casa para comprar a passagem. É claro que não pretendo gastar todo o dinheiro. Consegui vendê-la por um bom preço. — Acredito. Mas quanto tempo você vai ficar? Vanessa se sentiu agredida com a pergunta. — Preferia que eu não viesse? — Não, filha, eu não quis dizer isso... só acho que não vai encontrar nada de bom por aqui — o homem não sabia como sair daquela situação embaraçosa. — Eu não posso nem lhe oferecer um lugar para dormir! — Não faz mal. Há muitos hotéis na cidade. . . Raoul DuTemple me recomendou o Belvedere. Neal comprimiu os lábios e a olhou com uma ponta de raiva. — Mas como é que você, . . ? Brenden percebeu que era hora de interferir. — Eles se conheceram no vôo de Singapura para cá. . . Você quer comer alguma coisa, Neal? — Ainda não, obrigado. O Belvedere é um bom hotel, só não sei se vai conseguir um quarto nesta época do ano. A cidade está cheia de turistas. — Isso deve ser muito bom para os seus negócios! — É, sim. Nessas épocas, posso até escolher meus clientes. — Estamos sem mantimentos. Vou até a cidade e volto daqui a meia hora — Brenden tinha chegado à conclusão de que seria melhor deixar pai e filha a sós. Vanessa o acompanhou com os olhos até que saísse da embarcação. — Ele é o melhor ajudante que já tive; cuida de mim como se eu fosse seu pai. Talvez seja assim porque o aceito como ele é. Fui o único, nos últimos anos, a lhe oferecer algo parecido com um lar. — Ele me contou. Mas o que vai fazer se ele for embora? — Arranjar outro. — Será que vai ser fácil? — Duvido que eu consiga alguém tão dedicado. Mas não me preocupo mais com essas coisas, estou ficando velho — um hiato se estabeleceu entre os dois, até que Neal resolvesse falar de novo. — O que mais DuTemple lhe contou? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Vanessa ergueu ligeiramente a cabeça. — Nós pouco conversamos, dormi durante quase toda a viagem. — Mas ele lhe contou alguma coisa. Isso ficou claro desde o momento em que mencionou o nome dele. Du-Temple sabia quem você era? De nada adiantava continuar enganando o pai, pois mais cedo ou mais tarde acabaria sabendo de tudo. — Sabia, sim. Ele me deu a impressão de que vocês não se dão muito bem, mas não quis me dizer o porquê. Achou melhor que você mesmo me contasse. — E você acha que tem o direito de saber tudo? Vanessa negou com a cabeça. — Se alguma coisa não vai bem entre vocês dois, o problema não é meu. — Tem razão, minha filha. Só que mais cedo ou mais tarde você acabará ouvindo uma versão da história que não corresponde à realidade, então é melhor que seja informada agora sobre tudo o que aconteceu. No fundo, é tudo muito simples: Jules DuTemple, o pai de Raoul, me deu o dinheiro para comprar este barco como parte da minha indenização, quando saí da companhia há dois anos. Eu administrei a mina de Bouloti durante dez anos, até me pedirem para deixar minha vaga para um rapaz mais jovem. Vanessa parecia não entender bem a seqüência dos , acontecimentos. — E por que Raoul seria contra isso? — Porque o filho de Jules acredita que eu fiz alguma espécie de pressão para conseguir o barco. — Ele acha que você fez chantagem, é isso? — Acho que sim. Parece que Raoul só soube desse negócio no ano passado, após a morte do pai. — Então foi um presente pessoal, e não um prêmio da empresa? — Suponho que sim. Jules era um homem com um extremo senso de justiça e obviamente não viu razão para que certos membros do Conselho de Direção pedissem meu afastamento. Eu trabalhei duro por dez anos; ninguém pode negar isso. Não é praxe aposentar um homem de cinqüenta e seis anos. Na verdade, tudo o que ele dizia tinha sentido, mas o que a preocupava era o que o pai não dizia. No entanto, Vanessa sentia-se pouco à vontade para questioná-lo e assim correr o risco de demonstrar-lhe falta de confiança em sua palavra. Tampouco o julgava capaz de chantagens. Apesar de não vê-lo durante a maior parte de sua vida, tudo o que sabia dele estava longe de formar o perfil de ura canalha. Por outro lado, se havia qualquer suspeita de chantagem ou pressão, tudo levava a crer que a família DuTemple, ou o pai de Raoul, tinha algo a esconder. — Agora me diga uma coisa, papai: por que uma mudança tão radical? Como pôde trabalhar em mineração por tanto tempo e hoje dedicar-se à pesca? Não faz muito sentido, concorda? — Ora, sempre gostei de pescar nos fins de semana e feriados. Não acho nada estranho que um homem na minha idade resolva passar o pouco que lhe resta da vida dedicado a algo que sempre lhe deu prazer! Posso ganhar o suficiente para o meu sustento quando tenho turistas a bordo, e, felizmente, turistas é que não faltam. No ano passado pude até enviar um cheque para sua mãe, e estava pronto para enviar-lhe outro este ano. — Mesmo sabendo que ela nem chegou a descontar o primeiro? — Está bem. Acho que cheguei um pouco tarde. Mas teria mandado ajuda antes se pudesse, acredite. Vanessa o examinou por um instante, enquanto calculava quanto poderia ganhar um gerente de mineração. — Papai, na verdade nunca passamos fome. Até bem pouco tempo atrás, vivemos dos investimentos que nos deixou. Nada disso era verdade. Ainda guardava bem vivas na memória as lembranças de sua Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe infância sacrificada e da luta de sua mãe para sustentá-la na escola até que pudesse caminhar sobre as próprias pernas e arranjar um emprego. Mas de que adiantaria agora afligi-lo com tais acusações? — Pai, não está pensando que vim até aqui atrás de dinheiro, está? — Ora, nem pense nisso. Já vi que você não faz esse gênero. É igualzinha à sua mãe: determinada e forte! Só espero que não siga todos os passos dela e saiba escolher bem o homem com quem vai se casar. Por falar nisso, já tem um candidato? — Bem. . . — Ele a pediu em casamento? — Pediu. — Não acho que esteja muito entusiasmada. Pois então não se case. Não assuma um compromisso tão sério antes que esteja absolutamente certa do que vai fazer. O arrependimento é o pior inimigo do homem. Brenden retornou da cidade a tempo de interromper uma pergunta constrangedora. Estava claro que Neal não se referia apenas ao casamento quando falava de arrependimento, e Vanessa vislumbrou a chance de saber um pouco mais sobre aquela história. Precisava entender o rancor que os olhos azuis de Raoul DuTemple demonstraram ao ouvi-la pronunciar seu sobrenome. Alguma coisa lhe dizia que o mistério não parava ali. Raoul não demonstrara ser o tipo de homem que se inflama com ninharias. Enquanto desfazia os pacotes de compras, Brenden informou-lhe com seu ar eficiente que já havia reservado um apartamento no melhor hotel da cidade. Depois, com destreza e rapidez, preparou-lhes uma refeição simples e saborosa, sem parecer se incomodar com os olhares mal-humorados de Neal. Os modos gentis do rapaz diziam-lhe que era bem-vinda, e Vanessa mostrava-se agradecida. Quanto ao pai. .. da parte dele não obtivera ainda qualquer centelha de boa receptividade. Durante a semana seguinte, ela aprendeu muito sobre barcos e pescaria e de certa forma compreendeu a determinação do pai em viver o resto de seus dias a bordo. A mansidão do mar, o pôr-do-sol esplendoroso, o sabor de uma vida marginal, porém rica em experiências novas, tudo era um sem-fim de descobertas que a deixavam fascinada. O relacionamento com Neal aprofundava-se e se solidificava a cada dia. Brenden lhe disse que o velho jamais fora tão comunicativo antes, o que a deixou feliz. Quanto mais conhecia o pai, mais o admirava. Neal era um homem do mundo, um pássaro livre que não se conformaria por nenhum motivo a viver entre quatro paredes. Ele tinha razão: não nascera para o casamento. Agora Vanessa sentia que pelo seu sangue percorria uma nova paixão: aquele mar imenso provocava-lhe sensações inesperadas. Sua formação metropolitana, impregnada de convicções sólidas quanto a sucesso e dinheiro, estava seriamente abalada. Sentada à beira do cais, ela observava os braços ainda fortes do pai. O Sr. Grantham a surpreendeu e sorriu-lhe, satisfeito. — Estive pensando. . . não temos nenhum cliente esta semana; acho que poderíamos fazer um pequeno cruzeiro a três. Não creio que seja difícil nos acomodarmos dentro do barco. O que você acha, filha? Vanessa piscou para Brenden, que lhe devolveu o gesto. — Excelente idéia! — Ótimo, então podemos começar a nos preparar desde já, antes que me apareça algum turista desmancha-prazeres. Estes velhos músculos bem que merecem um descanso. Brenden deixou-se contagiar pelo entusiasmo de Neal e pulou para dentro do barco. — Melhor fazermos uma boa inspeção no motor antes de partirmos! Vanessa despediu-se às pressas e voltou ao hotel. Precisava arrumar a bagagem. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Ao cruzar o hall teve a impressão de ver Raoul Du-Temple caminhar em direção ao restaurante. Não que o tipo dele fosse tão marcante assim, mas aquele andar. . . Certa ou errada, isso foi o bastante para trazer-Ihe de volta a história que o pai lhe contara. Fosse ou não verdadeira aquela versão dos fatos, agora já não tinha tanta importância conhecêla. Na ilha dos Pinheiros, local escolhido por Neal para suas curtas e inesperadas férias, Vanessa teve o que se poderia chamar de visão do paraíso. Nada em sua vida chegara tão perto da verdadeira felicidade como aqueles dias de entrega total à natureza. Pequenas lagoas de águas verdes, transparentes, surgiam a curtos espaços. Neal e Brenden a cercavam de todas as atenções e contavam-lhe histórias fantásticas sobre o mar, experiências dignas de um romance de «venturas. Os três nadavam à luz das estrelas, assavam e comiam peixes de todas as espécies e tamanhos, livres de tudo. Até o tempo parecia não existir. Os dias resumiam-se em nadar, caminhar, ler e ouvir histórias. Aos poucos Vanessa foi se esquecendo de Michael, de sua casa e de todo o passado... Na hora da partida, Neal parecia pálido e enfraquecido, longe da aparência saudável dos primeiros dias na ilha. Saiu-se com a desculpa de uma indigestão passageira, que foi aceita por Vanessa e por Brenden como normal. Contudo, a volta de barco agravou seu estado, e, na manhã seguinte, ele se recusou a deixar o leito. Por volta de meio-dia a febre tinha aumentado muito e eles não tinham recursos a bordo capazes de socorrê-lo. — O jeito é ancorar na lie Royale, a mais ou menos três milhas daqui. Pelo menos eles têm oxigênio e medicamentos mais eficazes que os de primeiros socorros. Vanessa ergueu os olhos para o rosto de Brenden, desanimada. Pelo pouco que sabia, a lie Royale era propriedade de Raoul DuTemple, o que poderia trazer sérios problemas. Naquele momento, no entanto, não tinham outra alternativa. Brenden desceu na frente para tomar as primeiras providências e voltou alguns minutos depois com a notícia de que estavam à espera de Neal com um balão de oxigênio e uma cama limpa. Vanessa segurava a mão do pai entre as suas, e, quando ele abriu os olhos, reparou que estavam vermelhos e inchados. — Filha. . . Para onde estão. . . — Não diga nada agora, por favor. Neal tornou a fechar os olhos. A respiração era irregular e a expressão do rosto pálido demonstrava dor e agonia. O estado de Neal se agravava a cada instante, e o oxigênio não operou o milagre que todos esperavam. Mais de uma hora se passou até que ele desse algum sinal de melhora. Vanessa rezava para que Deus não levasse seu pai tão depressa. — Ainda não, por favor; deixe-me conhecê-lo melhor, dar-lhe um pouco de amor. . . Lentamente a respiração dele começou a melhorar. A lebre também baixou. Alguns empregados da casa os cercavam. Vanessa pediu que alguém chamasse um médico, mas ninguém parecia entender inglês. Ela esforçou-se para usar seu francês de reduzidas palavras, até que o mais velho deles respondeu: — Não temos médicos aqui, mas podemos conseguir que venha algum da cidade. Seu barco tem rádio? Brenden tocou o braço de Vanessa, desanimado. — Nosso rádio está enguiçado desde ontem. Pretendia consertá-lo hoje, mas. . . O rosto de Vanessa contraiu-se um pouco mais, e ela tentou se conformar com a idéia de poder manter o pai vivo com o oxigênio, até que fosse possível a chegada de um socorro mais eficaz. O velho empregado parecia penalizado e saiu em silêncio. Alguns minutos depois regressou com Raoul Du-Temple em pessoa. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Brenden e Vanessa trocaram olhares bastante significativos. Naquele momento, qualquer pensamento pessimista poderia ser fatal. Raoul não era homem de meias palavras e não parecia disposto a ouvir as desculpas que Vanessa procurava formular. Com alguns gestos e duas ou três ordens fez com que os empregados desapareces sem do quarto úmido e frio sem deixar rastro. — Poderemos mantê-lo com o oxigênio até que o médico chegue à ilha. Temos o suficiente para isso. Como permitiram que ele saísse de barco nesse estado? — Não sabíamos o que fazer. . . — Vanessa tentou se explicar, mas Raoul a interrompeu com um gesto impaciente. — Mandei que preparassem os quartos de hóspedes Daqui a pouco meus empregados o removerão para uma cama mais confortável. Você, Vanessa, precisa de roupas secas e de um pouco de descanso. Venha, vou conduzi-la até seu quarto. Vanessa buscou o olhar de Brenden, que a tranqüilizou com um leve afago na cabeça. — Vá, eu fico com Neal. Ela levantou-se e Raoul deu-lhe o braço, solícito. — Sorte sua, usa o mesmo manequim que minha irmã. Poderá ficar num dos melhores quartos da casa, já que ela está fora por uns tempos. Tome um bom banho quente e depois descanse um pouco. — Mas, meu pai. . . ele pode precisar de mim. — Não se preocupe, mandarei chamá-la se for preciso. A depressão e o cansaço a impediam de admirar os detalhes do quarto que Raoul lhe destinara. Tudo o que conseguiu perceber foi que era quente e confortável. O banho morno não a reanimou como esperava, contudo seus nervos tensos relaxaram o bastante para permitir que o sono a tomasse devagar. \ Que Deus lhe poupasse o desgosto de perder o pai no momento em que começava a amá-lo. . . Tinha demorado tanto para desfrutar do carinho daquele que sempre fora uma lacuna em sua vida! Se ele sobrevivesse. . . Michael teria que perdoá-la. CAPÍTULO III Vanessa acordou desorientada, examinou o quarto desconhecido e olhou para a camisola de seda que cobria seu corpo. De repente, a memória voltou, fazendo-a levantar-se imediatamente. Escutou o barulho da chuva contra as persianas e viu o clarão dos relâmpagos através das frestas. Tinha certeza de que cochilara só um pouco. Acendeu o abajur para saber as horas. Seis da tarde! Como era possível? Tinha pensado em descansar apenas por alguns minutos. . . Não devia ter acontecido nada com o pai, caso contrário a teriam chamado, tranqüilizou-se. Sobre a cadeira do quarto alguém havia deixado algumas roupas. Raoul tinha razão: a irmã tinha o corpo parecido com o dela, a blusa e a calça serviram-lhe como uma luva. Brenden não lhe contara sobre a existência da irmã de Raoul na primeira vez em que conversaram. Mas, afinal, por que deveria ter contado? No momento, só estava interessada em saber o que havia entre o empresário bem-sucedido e seu pai. Levando em consideração a inimizade dos dois, ela não podia deixar de agradecer a Raoul pela ajuda. Ao sair do quarto, encontrou-se com Brenden, que trazia as roupas dela do barco. — Pensei que fosse preferir usar suas próprias roupas em vez das de alguém que nem conhece. — Tem razão, Brenden, mas agora que já estou vestida nem vale a pena me trocar. Como está meu pai? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — É melhor perguntar ao médico. — Ele já chegou? Quando? — Faz meia hora. Chegou pouco antes da chuva. Tudo indica que o tempo vai piorar, portanto, prepare-Me: ficaremos presos aqui até o fim da tempestade! — Não aconteceu nada com o barco? — Até agora, não, embora esteja balançando bastante. O Etoile, que pertence a Raoul, também está sacudindo muito, mas um iate a mais ou a menos não vai fazer muita diferença para um cara que tem tanto dinheiro. Vanessa deixou as roupas sobre uma poltrona e voltou para perto dele. — Não seja maldoso, Brenden. — Não gosto desse monsieur DuTemple. Quanto mais depressa cairmos fora daqui, melhor, concorda? — Isso vai depender do estado de papai. Duvido que Raoul nos ponha para fora da ilha assim que a tempestade passar, depois do que já fez. — Raoul?! Quanta intimidade. .. Vanessa olhou para o marinheiro, percebendo-lhe o olhar malicioso. Preferiu se fazer de desentendida: — Há algum problema em chamar as pessoas pelo primeiro nome? No seu caso, por exemplo. . . Nunca me ocorreu tratá-lo por Sr. Hartley. Brenden ficou vermelho. — É diferente. . . Neal não vai gostar muito se você se mostrar tão amigável com esse sujeito. — Meu pai não está em condições de reclamar. Olhe, Brenden, não estou a fim de discutir com você. Mas não precisa ficar preocupado com meu relacionamento com DuTemple. . . Tenho certeza de que ele deseja nos ver longe daqui o quanto antes. Os dois se dirigiram para o quarto do enfermo. Um homem baixo e moreno, com um estetoscópio no pescoço, ergueu a cabeça e fez sinal para que ficassem em silêncio. Neal estava recostado sobre vários travesseiros, de olhos fechados, mas com uma aparência muito melhor. — Ele está sob o efeito de sedativos — o Dr. Renaud informou, impedindo que Vanessa se aproximasse. — Seu pai só vai acordar daqui a algumas horas. — Como ele está doutor? Será que vai melhorar? O médico olhou bem para Vanessa antes de responder. — O estado dele se estabilizou, portanto seria recomendável que ficasse aqui por algum tempo. Talvez dentro de uma semana, se mais nada acontecer, possamos pensar em levá-lo para o continente, onde faremos novos exames. — Quer dizer que é grave? — Tudo indica que sim. Seu pai teve um enfarte, senhorita. Vanessa sentiu-se aflita. — Oh, meu Deus! E. . . o senhor acha que há esperança? — Mas é claro! Enquanto há vida, há esperança. Se ele levar uma existência mais moderada, é bem possível que se recupere. Uma boa solução seria convencê-lo a vender aquele barco. A senhorita pretende ficar morando na Nova Caledônia? Vanessa começou a fazer as contas mentais, pensando na possibilidade. O dinheiro da venda do barco mais o que tinha guardado na Inglaterra seria suficiente para comprar uma casa modesta e garantir a subsistência por algum tempo. Poderia arranjar um emprego como secretária, mas antes deveria se preocupar em melhorar bastante o seu francês. Isso sem falar nos problemas burocráticos que precisaria resolver, como obter um visto de trabalho, por exemplo. Alguém teria que ajudá-la. Infelizmente, ali naquele lugar desconhecido, só uma pessoa seria capaz de orientá-la: Raoul! Mas ele estaria disposto a auxiliá-la? Viu que o médico esperava uma resposta. — Sim, doutor, vou ficar. Sabe onde posso encontrar monsieur DuTemple? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Ele me disse que estaria na biblioteca. Posso acompanhá-la se seu amigo ficar com o paciente. Vanessa tinha se esquecido completamente de Brenden. Se o Júlia fosse vendido, o marujo ficaria desempregado, a menos que o novo proprietário quisesse contratá-lo. Mas não poderia se preocupar com aquilo agora; a saúde do pai estava acima de tudo. O Dr. Renaud a deixou diante da biblioteca e seguiu para a cozinha. Vanessa bateu de leve à porta e foi convidada a entrar. Raoul estava em pé diante da lareira com um livro na mão. Vestia calças brancas e blusão de moleton cinza, cujo decote em "V" mostrava os pêlos escuros do peito moreno. — Entre — repetiu, fechando o livro que tinha entre as mãos. — Você já visitou seu pai? — Já. O Dr. Renaud foi muito gentil em vir até aqui com esse tempo. — É um médico bastante dedicado. Para socorrer um paciente, é capaz de arriscar a própria vida. — Não sei como agradecer a você e ao Dr. Renaud pelo que fizeram hoje. Ainda mais com a situação delicada que existe entre você e meu pai. — Isso não tem importância quando um homem está à beira da morte. — Parece que já está fora de perigo — Vanessa estava tensa. — Preciso saber exatamente o que houve entre vocês dois. Será que podemos falar sobre isso? — Tem certeza de que este é o momento adequado? — Acho que não dá para esperar mais. — Você tem razão — concordou Raoul, indicando-lhe uma confortável poltrona de couro. — Sente-se e conte-me o que já sabe. Vanessa sentou-se na beirada da poltrona com as mãos entre as pernas. Estava apreensiva, mas começou, a falar. — O que eu sei é que você acha que meu pai fez alguma pressão sobre. . . Raoul ficou em pé, com a expressão inalterada. — Vamos continue. Ela o olhou um pouco sem jeito. — Que tipo de pressão meu pai poderia ter feito sobre um homem na posição que ocupava Jules DuTemple? Não seria mais fácil supor que seu pai se achava na obrigação de lhe assegurar o futuro quando o despediu para dar lugar a um homem mais jovem? Com cinqüenta e seis anos, as possibilidades de papai de encontrar um novo emprego seriam bastante limitadas. — Aqui, neste lado do mundo, suas possibilidades eram nulas — Raoul continuava a olhá-la com a expressão inalterada. — Então ele a fez acreditar que era inocente. — Ele é meu pai. É claro que acredito nele! O anfitrião sorriu, condescendente: — Você o reencontrou há apenas uma semana, depois de passar dezesseis anos sem vê-lo. Eu nunca fiquei mais de algumas semanas longe de meu próprio pai, e agora sei que ele não era o homem que aparentava ser. Vanessa ficou surpresa. — Quer dizer que ele lhe escondia alguma coisa? Raoul sorriu de novo. — Foi maneira de dizer, Vanessa. Mas, ouça, vou lhe contar uma história. Minha família também possui negócios fora da Nova Caledônia, e meu pai costumava ir muito para a Austrália. Há alguns anos, Grantham trabalhava para uma companhia de mineração de Kalgoorlie, onde conheceu meu pai em um coquetel. — Kalgoorlie fica na Austrália? — Sim. Bem, menos de um ano depois, assim que perdeu o emprego naquela mina, seu pai veio para a Nova Caledônia. Por acaso, viu a fotografia de meu pai com minha madrasta em um jornal e logo o reconheceu. O problema é que achou por bem se aproveitar do que sabia. — Está me dizendo que o meu pai convenceu o Sr. DuTemple a lhe dar um emprego só porque o conhecera num coquetel? Por que faria isso? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Porque conheceu meu pai com outro nome e outra mulher. Bastaram pequenas investigações para saber a verdade: Tules mantinha uma segunda família há quinze anos. Tinha mais dois filhos com outra mulher. — Como você ficou sabendo de tudo isso? — Ele me deixou uma carta junto com o testamento, contando toda a sua vida. — E acusando meu pai. . . — Vanessa concluiu. — Sim. Muitas questões que me perturbavam também foram esclarecidas. Obviamente não levei o caso adiante porque não quis que a vida particular de meu pai caísse em domínio público. Neal sabia disso, e talvez por remorso tenha começado a beber. O iate que meu pai lhe deu significava a sua independência financeira, por isso ficou calado. Mas isso não quer dizer que eu o tenha perdoado. — Você deve concordar que seu pai também não foi um anjo, e que participou conscientemente da chantagem. — Eu entendo que um homem precise de uma amante. Só não consigo aceitar o fato de ele ter tido filhos com outra mulher — Raoul argumentou. — Ah, você entende. . . — Vanessa encarou aqueles olhos azuis, pensando que os homens às vezes eram insuportáveis com esse tipo de argumentos. Mas não era o momento de discutir princípios. — O que pretende fazer, agora que sabe a verdade? — Vou ficar com meu pai; ele vai precisar de mim. — Não se importa com o que ele fez? — Claro que me importo; mas apesar de tudo ele continua sendo meu pai. — Bem, já que Neal terá de ficar aqui por algum tempo, é melhor esquecermos esse assunto ou nunca vamos acabar com a discussão — Raoul apertou uma campainha. — Você deve estar faminta, vou pedir para servirem o jantar mais cedo. — Não se preocupe comigo; não estou com a menor fome. — Então aceite um chá. É uma especialidade de meus empregados. — Está bem, aceito. Como seria ficar naquela ilha, isolada do mundo e na companhia do maior inimigo de seu pai? Brenden linha razão: quanto mais cedo saíssem daquele lugar, melhor seria para todos. Mas agora, devido à enfermidade, só lhe restava conformar-se com a situação. — Raoul, gostaria de agradecer a sua irmã pelas roupas que me emprestou. . . Ela está aqui? — Não, está em Nova York visitando a mãe dela. — Então ela é apenas uma meia-irmã? — Nem isso. Minha mãe morreu quando eu nasci. Meu pai só se casou novamente quinze anos depois, com uma viúva que já tinha uma filha. Crystal está com vinte e cinco anos agora. — É um nome diferente. — Mas é perfeito para ela. . . Sente-se. Já que vamos passar vários dias dentro da mesma casa, terá que aprender a se sentir à vontade. — Se você quiser, podemos nos evitar. . . a casa é suficientemente grande para não nos encontrarmos — Vanessa sugeriu. — Por quê? Não vejo razão para nos tornarmos inimigos. Se pretende ficar na Nova Caledônia, vai precisar de minha ajuda. — E por que você me ajudaria? — Digamos que... . tenho uma queda por olhos verdes. Bem, agora preciso resolver alguns problemas. Fique à vontade. A gente se vê na hora do jantar. Sozinha na biblioteca, Vanessa permaneceu um longo tempo imóvel, perdida em seus pensamentos. Aquele homem era muito atraente. . . Tinha que admitir que não estava aborrecida com a perspectiva de conviver com Raoul DuTemple. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe CAPÍTULO IV O Dr. Renaud e Brenden voltaram para Noumea pela manhã e recomendaram a Vanessa que não deixasse o pai ter emoções fortes. Isso significava que não poderia falar com ele a respeito da venda do iate. Após uma breve conversa, Neal confirmou toda a história contada por Raoul, e, muito constrangido, pediu desculpas à filha. Para ele, o que havia feito não fora chantagem. Apenas tinha se agarrado à sorte, aproveitando-se de uma oportunidade inesperada. Não era culpado da vida dupla que Jules DuTemple levava. . . Confiante na própria recuperação, dormiu sob o efeito de sedativos deixados pelo médico, sonhando com a volta ao seu barco e com o dia em que partiria da ilha do inimigo. Vanessa resolveu aproveitar a volta do bom tempo para ir à praia, com um biquíni que encontrara no quarto de Crystal. Pegou uma saída de banho e seguiu o caminho indicado por um dos empregados da casa. A praia deserta parecia um paraíso. O mar era azul-claro e os arrecifes de corais despontavam na superfície. A alguns metros da costa havia uma rede metálica para evitar a aproximação de tubarões, visitantes freqüentes daquelas águas do oceano Pacífico. Vanessa tirou a saída de banho e mergulhou na água morna. O fundo do mar era maravilhoso e cheio de vida: peixes coloridos, algas exóticas e corais com for mações diferentes compunham um mosaico digno dos grandes artistas. A nado, dirigiu-se para a rede metálica, parando para descansar. Depois de algum tempo, teve a impressão de que algo se movia nas imediações e se assustou. Ficou atenta, mas não havia nenhum tubarão por perto. De repente, um movimento brusco às suas costas fez com que se virasse. O medo era tanto que não conseguia soltar da rede metálica. Raoul DuTemple apareceu. Tinha vindo por baixo da água e agora emergia bem ao lado dela. — Vi você agarrada à rede e pensei que tivesse ficado presa! Eu chamei antes de mergulhar, não ouviu? — Se tivesse ouvido, teria esperado. Não vi você na praia — respondeu Vanessa. — O que estava procurando? — Tubarões — ela confessou, percebendo o sorriso de Raoul. — Você podia ficar aí vários dias sem que nenhum deles aparecesse. Nós pusemos esta rede apenas por precaução, não porque o mar estivesse infestado deles — Raoul olhou para uma rocha bem próxima a eles. — Venha, vamos descansar um pouco antes de voltarmos. Os dois nadaram lado a lado, e Vanessa sentiu a perna de Raoul roçando de leve sua coxa. Precisava admitir que a sensação havia sido diferente e agradável. Quando chegaram à rocha, Raoul abaixou-se para examinar o pé que havia arranhado na rede metálica. Vanessa observou-lhe o corpo bronzeado. Qualquer um poderia notar que a natação era o seu esporte preferido; os músculos do tórax possuíam as características de um bom nadador: fortes e bem desenvolvidos. Teve vontade de tocá-lo, alisar com as pontas dos dedos aqueles músculos tensos, fazê-lo sentir o mesmo que sentia. Com certeza a presença dele ao seu lado não era uma simples coincidência. — Você está com a pele toda arrepiada — Raoul comentou sem voltar a cabeça. — Tem frio? — Nem um pouco — Vanessa tentou manter a voz firme. — Só espero que não pense que estou assim por causa da sua presença! — É brincadeira ou está tentando se defender? — Que diferença isso faz? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Muito pouca — ele estendeu a mão e fez Vanessa encará-lo. — Senti-me atraído por você desde o primeiro instante em que a vi no avião em Singapura. Reconheço que a situação mudou bastante quando descobri quem era, mas ficou óbvio que voltaríamos a nos encontrar. — Meu pai. . . — Isso é um outro assunto. Ele agora é só um velho doente. Intrigada, Vanessa olhou no fundo dos olhos de j Raoul. — Está falando a sério? — Estou. Você é diferente de todas as mulheres que ; conheci, Vanessa. Teria todas as razões do mundo para dar meia-volta e rumar para casa no momento em que descobriu o tipo de pessoa que ele é, mas preferiu ficar ao lado dele. Conseguiu até arranjar desculpas para defendê-lo. — Não arrumei desculpas para defendê-lo e sim para compreendê-lo. Ele me jurou que nada foi planejado, que nunca pensou em ameaçar seu pai. . . só queria um emprego. — As carícias de Raoul em seu rosto a deixavam sem saber o que fazer. — Bem, nós combinamos que deixaríamos o passado para trás, lembra-se? Agora temos uma questão só entre nós dois e mais ninguém. Os lábios deles estavam salgados pela água do mar. Vanessa sentiu todo o corpo tremer e as pernas ficarem dormentes. Tentou reagir com naturalidade, segurando a cabeça de Raoul e puxando-a para mais perto. A atmosfera criada era de uma sensualidade estonteante. Vanessa já tinha sido beijada e acariciada antes, afinal quase tinha se casado, mas pela primeira vez na vida sentiu a paixão invadir todos os seus sentidos. Tudo estava acontecendo depressa demais. Com rapidez, desvencilhou-se dos braços de Raoul e recostou-se na pedra. Ele não a forçou e permaneceu em silêncio. — Vamos voltar para a praia. Ninguém vai nos incomodar lá — ele falou por fim. Na certa dera ordens para que ninguém o incomodasse, pensou Vanessa com uma ponta de cinismo, já com todas as suas forças recuperadas. — Preciso voltar e cuidar do meu pai! — Ele está em boas mãos. Não há nada que você possa fazer agora. Está querendo negar o que passou pela sua cabeça há alguns instantes? — E você? Tenho a impressão de que não me seguiu até aqui por acaso. . . — Por que mentir? Sei que você também se sente atraída por mim. Vanessa não concordou com a afirmação. — Eu não sou seu tipo de mulher. — E que tipo de mulher você acha que é o meu? — Bonita e sofisticada, acostumada com o seu mundo! Eu não sou nada disso. — É verdade — concordou Raoul. — Talvez há algum tempo fosse assim, só que agora as aparências não me impressionam mais. Sabe, nesta parte do mundo não faltam mulheres como as que acabou de descrever. Mas elas são todas iguaiszinhas. Você, pelo contrário, é original, Vanessa. Deixa que as emoções transpareçam. — Preciso aprender a me controlar mais — ela reagiu. Raoul olhou para os seios de Vanessa. — É impossível controlar certas reações, especialmente quando estamos assim. . . quase nus. Mas não se preocupe, reagimos de maneira parecida diante dos mesmos estímulos. Bem, já que não podemos tomar uma ducha gelada para esquecer o que acabou de acontecer, acho melhor nadarmos um pouco até a praia. Raoul a estava provocando, embora não estivesse sendo grosseiro. Não havia dúvida nenhuma de que ele a desejava muito. O que Vanessa questionava era ;i sinceridade das intenções dele. Afinal era a filha de um homem que Raoul desprezava. . . Será que era fácil esquecer-se disso? E se ela fosse apenas o instrumento que ele encontrara para materializar sua vingança? Mas não acreditava que fosse assim tão mau caráter. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Voltaram nadando devagar. Ao chegarem à praia, Raoul a beijou mais uma vez. Ela tentou evitar, mas não conseguiu. Seu instinto era mais forte, e, quando se deu conta, estava entregue àquele homem. Raoul a tomou nos braços e a levou para uma cabana abandonada, escondida entre a vegetação costeira. Uma vozinha íntima a avisava de que aquilo era uma loucura total. Se tivesse um pingo de juízo, sairia correndo dali, antes que fosse tarde. . . Mas os braços de Raoul ao redor de seu corpo não a deixavam pensar em mais nada. Vanessa reprimiu os protestos da razão e mergulhou naquele mar de emoções. Raoul a deitou numa esteira e lentamente acariciou-lhe a pele sedosa, parecendo querer prolongar a expectativa. — Você está com uma cor linda. . . Seus olhos tornaram-se mais claros, Vanessa. Ela sorriu, sem dizer nada, consciente apenas daquelas mãos que delicadamente lhe tiravam o sutiã do biquíni. Comum suspiro, Raoul aproximou a cabeça dos seios firmes, percorrendo-os com os lábios, tomando-lhes os mamilos intumescidos. De repente, as carícias tornaram-se mais ansiosas e ardentes. Os gemidos dos dois começaram a se misturar, à medida que pernas e braços se entrelaçavam, numa quase agonia de urgência e desejo. Numa fração de segundo estavam nus, e era também como se tivessem se despido de suas identidades. Não havia mais barreiras entre aquele homem e aquela mu lher que se entregavam à explosão do amor. Raoul possuiu Vanessa devagar, fazendo-a experimentar sensações indescritíveis. Levou-a até o êxtase, controlando-se até o instante em que ouviu o gemido de prazer transformar-se num grito rouco de delírio. Então seguiu-a, misturando à dela sua própria felicidade. Ficaram um longo tempo abraçados, imóveis, ouvindo as ondas se quebrarem na praia. Depois, ele se afastou devagar para o lado. Fez com que Vanessa se aconchegasse em seu ombro e ficou acariciando os cabelos macios. — Você gostou? — perguntou, com a voz muito mansa. — Muito, muito mesmo. Um pensamento cruzou a mente de Vanessa e sem querer ela enrijeceu o corpo. — O que houve? No que está pensando agora? — Nada de importante. — Tem certeza? — ele se apoiou no cotovelo para olhá-la no rosto. — Por favor, diga o que a está preocupando. . . — Está bem. Só estava tentando imaginar quantas mulheres passaram por aqui antes... — Até você, Vanessa? Por que será que todas as mulheres têm esse mesmo tipo de reação? — Não quero que me responda — ela se apressou em dizer. — Na verdade, eu nem quero saber. — Ótimo, porque eu também não tenho a menor intenção de lhe contar! — Estraguei tudo, não foi? Devia ter ficado quieta. . . — Não, querida. Todos temos o direito de pensar no que bem entendemos — ele fez uma pausa e beijou-lhe o rosto. — Lembre-se, o passado morreu, agora só existe o presente. E muito pouco futuro, pensou Vanessa consigo mesma. Raoul não fazia nenhuma promessa; se ela continuasse com aquele relacionamento, estava arriscada a se apaixonar por um homem que nunca corresponderia às suas emoções. Mesmo que estivesse errada, ainda havia o pai. Doente ou não, ele seria sempre uma lembrança do passado que Raoul queria deixar para trás. — Vamos — ele chamou com um sorriso. — Estou com uma fome louca. Se corrermos, ainda alcançamos o almoço. Teremos toda esta noite só para nós dois. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Esta noite? — É claro. Você pensou que eu ia deixá-la sozinha depois de tudo o que aconteceu? Nós mal começamos a nos conhecer. — Mas meu pai, os empregados. .. — Eles não vão contar nada para ninguém. Você já é adulta, não precisa da aprovação de seu pai para ter um namorado. Tem que aprender a dirigir a sua própria vida, ainda não percebeu isso? — Dentro de uma semana, se tudo der certo, vamos voltar para o continente — Vanessa argumentou. — Muitas coisas podem acontecer em uma semana. Vamos viver um dia de cada vez, certo? Vanessa pensou em rejeitar aquela proposta, mas seu corpo não permitia. Nem mesmo a lembrança de Michael era capaz de empalidecer o esplendor do que havia acontecido. Ao voltar, ela teve dificuldades para enfrentar o pai, que já estava se recuperando bem, embora ainda caminhasse com dificuldade. — Você não vai voltar para a Nova Caledônia, não é? — perguntou o velho. Não quero ficar aqui sozinho. — Não tenho a menor intenção de sair daqui, papai — assegurou-lhe Vanessa. — Mas você não deve mais se preocupar com Raoul. Já lhe disse que ele quer esquecer o passado. — Você não o conhece — Neal balançou a cabeça, incrédulo. — E você, tem certeza de que o conhece, papai? Por que não deixa que ele venha aqui e fale com você? — Não quero vê-lo. Sabia que está muito difícil para mim aceitar a hospitalidade dele? Assim que eu conseguir me levantar desta cama, vou embora. — O Dr. Renaud disse que vai levar pelo menos uma semana para que você possa viajar. E não quero que desobedeça às ordens do médico. — Eu sou a melhor pessoa para dizer como me sinto. Vanessa, não deixe aquele homem se aproximar de você. Seria apenas mais uma em sua lista de conquistas! Estava claro sobre quem Neal falava. Vanessa não podia deixar que ele suspeitasse de nada, e, apesar de odiar mentiras, apressou-se em tranqüilizá-lo. — Papai, eu não me impressiono assim com tanta facilidade. Deixe de pensar em besteiras e concentre-se na sua saúde. — Você não pode desperdiçar o resto da vida cuidando de mim. Não mereço esse sacrifício, é melhor você voltar para a Inglaterra e ficar com seu namorado. — Não, querido. Não posso me casar com um homem que não amo. E não vou abandoná-lo nesse estado. — Deixe de ser boba. Posso me virar sozinho. . . Vanessa cortou o assunto e aos poucos Neal Grantham se acalmou. Mais tarde, sozinha no quarto, ela escreveu uma carta para Michael onde lhe contava tudo o que estava se passando. Raoul tinha razão: era adulta e tinha que estar preparada para tomar suas próprias decisões e assumir as conseqüências, fossem quais fossem. E a decisão estava tomada: passaria aquela semana com Raoul. Com o tempo Michael iria esquecê-la. Às oito e meia, na hora do jantar, Vanessa desceu usando um conjunto de saia e camisa de algodão lilás, do qual gostava muito. Tinha sido uma sorte Brenden ter-lhe trazido a bagagem, pois não se sentia à vontade para mexer no guarda-roupa de Crystal. Raoul a esperava, na sala e a convidou para tomar um drinque. A mesa estava posta para duas pessoas e iluminada por velas perfumadas, indicando que aquele seria um jantar muito especial. Ele vestia calças escuras, uma camisa clara e um blazer creme. Vanessa lembrou-se dos momentos vividos naquela manhã e sentiu vontade de se aconchegar a ele e experimentar novamente as sensações que ainda estavam vivas em seu corpo. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Depois do drinque, acomodaram-se à mesa e foram servidos por um mordomo uniformizado. A comida estava deliciosa. Saborearam-na durante algum tempo, até que Raoul reiniciou a conversa. — Passou a tarde com seu pai? Vanessa assentiu com a cabeça. — Tomamos chá juntos. Ele já está comendo bem. — Dentro de um ou dois dias, já vai poder caminhar um pouco. — Papai me disse que pretende sair daquela cama amanhã mesmo. — Verdade? — Raoul fez uma pequena pausa. — Ninguém melhor do que ele para saber de suas condições físicas. — Ele quer ir embora daqui o mais rápido possível. Tentei fazer com que entendesse que antes precisa se recuperar, mas ele não quis me ouvir. Sei que não devia pedir. . . mas não daria para você conversar um pouco com ele? Como era de se esperar, a reação de Raoul foi fria. — Acho que isso seria a última coisa que ele iria querer. Pierre Renaud é a única pessoa que pode convencê-lo a se cuidar. Eu apenas atrapalharia tudo. — Pode ser. . . Não havia mais nada a dizer. Monsieur DuTemple soubera como se eximir de uma tarefa que não lhe agradava, e o fizera com a classe habitual. — Mudando de assunto. . . Você sabia que seu pai se naturalizou francês há alguns anos? — É mesmo? Talvez tenha feito isso porque resolveu passar o resto da vida aqui. Se eu também resolver ficar, provavelmente farei a mesma coisa. — E sua mãe? Vai deixá-la na Inglaterra? — Ela morreu no ano passado, não sabia? — Como poderia saber? Você não me disse nada. — Tem razão. A única pessoa que tenho no mundo agora é meu pai. Vendi minha casa há algumas semanas e me mudei para um apartamento. Investi o dinheiro e agora estou pensando em comprar alguma propriedade em Noumea. — E depois? Vanessa encolheu os ombros. — Vou procurar um emprego, quem sabe. . .? — Então está tudo planejado. Seu pai está de acordo? — Ele acha que será um fardo para mim, mas não é verdade. Não estou fazendo nenhum sacrifício para ficar ao lado dele. — Já pensou que é bem possível ele não querer que você fique? — Então ele vai ter que me dizer isso. A propósito, você não estava para viajar? Você ia visitar as minas, não é? — Vanessa tentou parecer natural. — Quanto tempo vai ficar fora? — Não existe razão para que eu viaje agora — respondeu Raoul com um sorriso. — Faço essas visitas periódicas apenas para acompanhar de perto as atividades que controlo. É uma maneira de saber no que a gente está investindo — estendeu a mão e começou a acariciar-lhe o rosto. — Acho que agora já estamos prontos para ir para a cama. . . — Juntos? — Claro que sim. Você pensou que eu tivesse mudado de idéia? — ele tomou-lhe a mão e a apertou com carinho. Ela não respondeu de imediato. — Será que não passou pela sua mente que eu posso ter mudado de idéia? Raoul soltou a mão de Vanessa e tentou se recompor. — Mil desculpas. É claro que tem o direito de não querer. Vanessa olhou para ele com pena. — Mas eu não disse que não queria. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Entendo. Ou melhor, gostaria de entender! Não estou acostumado com esse tipo de brincadeiras infantis. Acho que temos que pensar da mesma maneira para que tudo saia bem. Essa pequena discussão esfriou um pouco os ânimos dos dois, que continuaram a se olhar em silêncio. — Acho que você vai querer visitar seu pai antes de ir dormir, correto? — Acho que sim. Estraguei tudo, não foi? — Não tudo, apenas um belo momento — Raoul levantou-se e puxou a cadeira para ela. — Vá ver seu pai.. . O resto pode esperar. Até quando?, pensou Vanessa. Neal dormia tranqüilo. No dia seguinte, o Dr. Renaud estaria de volta e talvez o convencesse da necessidade de repousar por mais alguns dias. Então ela teria a oportunidade de se redimir com Raoul. Eram onze horas quando Vanessa voltou para seu quarto. Trocou de roupa e deitou-se, mas não conseguiu dormir. Seu corpo precisava de Raoul. Os minutos passavam inexoravelmente. .. meia-noite, meia-noite e meia. . . nada. Não conseguia nem cochilar. Um barulho na porta a surpreendeu. Raoul entrava no quarto e se aproximava da cama. — Preciso de você. Não consigo dormir. Por favor, não diga não, Vanessa. Ela não tinha a menor intenção de fazê-lo, seu corpo não deixaria. Abraçou-o com ternura e deixou-se envolver pelo calor daquele homem. CAPÍTULO V Quando o Dr. Renaud chegou, no dia seguinte, encontrou Neal Grantham em pé. Ele recusava-se a admitir que estivesse com problemas sérios de saúde. Com muita dificuldade, o médico conseguiu convencê-lo a ficar na ilha até o final da semana. — Ele não deve se esforçar durante os próximos dias — recomendou a Vanessa, quando ficaram sozinhos. — Você terá que convencê-lo a me visitar na clínica para fazermos novos exames. — Acredita que ele vá se recuperar completamente? — É difícil fazer um diagnóstico definitivo para casos como o dele. Para eu poder lhe dar uma idéia melhor do quadro clínico, precisaria fazer outros exames. — Não se preocupe. Levarei papai para vê-lo, nem que seja à força. O médico sorriu. — A sorte dele é ter alguém que o quer tão bem. Se tudo der certo, estará pronto para viajar na segunda-feira. Espero poder examiná-lo na terça. Enquanto isso, não o deixe exagerar em nada. Parecia fácil, mas na verdade o pai era um estranho para ela. Brenden é que poderia convencê-lo a seguir os conselhos médicos. O jovem marujo ligava todas as noites para saber do estado de saúde de Neal. O rapaz estava conseguindo se sair muito bem, e apesar da ausência do patrão o barco não parava de transportar turistas em passeios inesquecíveis. Neal estava sentado perto da janela quando Vanessa voltou para o quarto. Ele se virou e tentou sorrir. — Só estou respirando um pouco de ar puro. O medico já foi embora? — Ele foi falar com Raoul primeiro. Como está se sentindo? — Vou ficar melhor quando sair desta casa — Neal fez um gesto impaciente, impedindo Vanessa de falar. — Está bem, ficarei aqui como o médico pediu, mas só até segunda-feira. Esse pequeno diálogo foi o suficiente para deixá-lo sem fôlego. Vanessa foi Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe conciliadora. — Tudo bem: até segunda-feira. Pedirei a Brenden que venha nos buscar. Só espero que ele não tenha arranjado algum cliente. Parece que está se saindo muito bem sozinho. — Não me venha com a mesma conversa mole de Renaud sobre vender o barco. A resposta é não\ Não vou beber mais, mas também não vou deixar que ninguém fique com o fúlia. Ele é tudo que eu tenho! — Você tem a mim, papai. Se quiser que eu vá embora, eu vou, mas primeiro terá que me dizer que não me quer com você! — Que tipo de vida você vai levar comigo? E os amigos que deixou lá na Inglaterra? — Você é muito mais importante. . . Papai, eu quero ficar aqui. Nós dois podemos ter o nosso lar, e você nem vai precisar vender o fúlia. Só peço que viva em terra comigo. . . Será que isso é tão difícil? — Eu não sei. Faz muito tempo que não preciso pensar em ninguém quando tomo minhas decisões. Você é tão parecida com sua mãe. . . até os cabelos são da mesma cor, só que os dela eram mais compridos. Fui um covarde quando a abandonei, quando abandonei vocês duas... — Ela ficaria muito feliz se soubesse que estamos juntos — Vanessa sentiu que Neal começava a aceitar a sugestão. — Não precisamos mais pensar no que passou. Vamos começar tudo de novo. Sem querer, Vanessa usou quase as mesmas palavras de Raoul. Há dois dias estava vivendo num mundo de fantasia, onde tudo parecia dar certo. Seu pai a aceitava, Raoul era um amante incomparável, tudo andava às mil maravilhas. Pierre Renaud ficou para o almoço. Embora falasse cm inglês muito bem, preferia falar o próprio idioma c insistia em conversar apenas em francês com Vanessa. — Você fala bem; se praticar mais um pouco, em breve estará se expressando como uma verdadeira francesa. Raoul deveria conversar somente em francês com você, enquanto estivesse hospedada aqui. É a melhor maneira de se aprender um idioma. — Vou pensar no caso — disse o anfitrião um pouco distraído. — Você gostaria, Vanessa? — Acho que adoraria o desafio — ela respondeu com um sorriso nos lábios. À tarde, depois que o médico foi embora, Raoul convidou Vanessa para voltarem à cabana da praia, onde mais uma vez se amaram com loucura. — Você está pensando em alguma coisa séria? — Raoul perguntou, depois. — Será que posso saber do que se trata? Ela pensava em como seria o futuro dos dois, se aquela paixão acabaria ou não. O único casal de amigos que tinha não se comportava mais como marido e mulher, e isso apenas dois anos depois do casamento. . . — Estava pensando em como seria bom a gente ir nadar — mentiu. — Só que não trouxemos nossas roupas de banho. — Acho que não vamos precisar. . . — Alguém pode nos ver, Raoul. — Ninguém vem a este lugar, e já faz muito tempo que não nado sem roupa. Vamos? Era muito bom ser acariciada por aquelas mãos fortes, sentindo a água do mar envolvendo-lhe todo o corpo. O mundo deixara de existir para os dois. O desejo era tanto que fizeram amor ali mesmo, com ternura e carinho. Só muito tempo depois voltaram para a cabana. — Tenho que partir amanhã cedo — Raoul comunicou com a voz um tanto baixa. — Ah, é? — Vanessa tentou não demonstrar a frustração. — Por quanto tempo? — Três dias, talvez mais. Depende do que eu encontrar. .. — Você vai para a mina? — Não, vou para Kalgoorlie. Recebi um telefonema esta manhã, do advogado de Elise. É a outra mulher de meu pai. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Vanessa ficou perplexa. — Eu não sabia que você se relacionava com ela. — Meu pai os deixou muito bem de dinheiro, mas os bens são administrados pelo espólio. Como executor, sou o responsável pelo bem-estar da família. Parece que ela ficou doente. .. pode até morrer. Preciso deixar tudo pronto para os filhos dela, caso isso venha a acontecer. — Você pretende trazê-los para cá? — De jeito nenhum! Isso nunca vai acontecer enquanto eu estiver vivo! — Desculpe, eu não quis ser indiscreta. — Perdoe-me, Vanessa — Raoul percebeu que havia sido um pouco rude. — Às vezes fico muito nervoso quando se fala nesse assunto. Aqueles meninos não têm o mesmo sobrenome que meu pai e um dia podem herdar tudo isto. A não ser que ele se casasse e tivesse um filho, pensou Vanessa de imediato. — Nós já teremos ido embora quando você voltar — disse, tentando esconder a tristeza. — Eu sei. Olhe, Vanessa, eu não queria que fosse assim. Mas fui pego de surpresa. Por favor, me entenda. . . — Mas é claro que entendo, Raoul. — Quando voltar, eu procuro você. Vai para aquele mesmo hotel? — Imagino que sim. — Ela não acreditava que Raoul voltasse a procurá-la, mas de nada serviria fazer uma cena. A situação deles era tão estranha. . . Forçou um sorriso e o encarou. — Espero que tudo dê certo para você. Os dois começaram a se vestir em silêncio, perdidos em pensamentos. De repente Raoul parou, como se concluísse alguma coisa: — Mas ainda temos esta noite, meu bem. — É verdade — ela afirmou, sem entusiasmo. — Vamos aproveitá-la ao máximo. Durante o resto, do dia, Vanessa tentou esconder-se de Raoul para esconder sua tristeza pela partida. Neal soube da notícia e ficou muito contente; não teria que agradecer quando deixassem a ilha. À noite, no entanto, Raoul foi para o quarto de Vanessa e fizeram amor até de madrugada. Adormeceram abraçados e exaustos. Na manhã seguinte, Raoul levantou-se sem acordar Vanessa e foi se preparar para a viagem. Quando veio despertá-la, já estava pronto, usando um terno claro de corte perfeito. Abraçou-a com carinho, parecendo triste com a despedida. — Detesto ter que deixá-la assim, mas as circunstâncias me obrigam. . . Diga onde pretende ficar, Vanessa. — Por que apenas não nos despedimos e deixamos tudo como está? — ela fez a sugestão num impulso, mas no íntimo tinha esperança de que Raoul protestasse. — É isso o que você quer? — Não é o que eu quero, mas é o que vai acontecer. Você tem a sua vida e eu tenho a minha. Não existe maneira de juntá-las. — É. . . Concordo que não seria muito fácil. — Seria impossível — ela afirmou. — Estes três dias foram maravilhosos, Raoul, não vamos correr o risco de estragá-los. — Realmente seria uma pena. Nós não prometemos nada um ao outro, nem criamos ilusões quando tudo começou. Já que somos adultos, sejamos também práticos: nada de despedidas prolongadas. Vanessa ficou estarrecida, pois ele não havia pensa- | do duas vezes antes de dar tudo por encerrado. A viagem para Kalgoorlie a tiraria, não apenas da vida, mas também dos pensamentos de Raoul. Agora precisava mesmo esquecê-lo, só que não seria tão fácil nem tão rápido. A dor que sentia era muito grande. O fim de semana parecia não acabar. Vanessa passou quase todo o tempo em que não Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe estava com o pai passeando pela ilha, explorando os recantos mais bonitos ou nadando. Neal Grantham recuperava-se rapidamente e no sábado já podia arriscar uma caminhada pela casa. — Segunda-feira, quando estiver longe daqui, vou me sentir bem melhor. Apesar de o dono da casa não estar, ainda me sinto constrangido — confessou a Vanessa. — Minha filha, você anda muito desanimada. O que houve? — Nada, papai, é que tenho tomado muito sol e fico com preguiça. Além do mais, não vejo a hora de ir embora, isto aqui está muito chato. Brenden chegará amanhã às dez horas para nos buscar. Ele já conseguiu alugar um apartamento perto do porto para nós. — Eu já soube disso. Vanessa, sei que não deveria lhe perguntar isso, já que não é mais uma menininha, mas. . . aconteceu alguma coisa entre você e Raoul DuTemple? Ela se assustou. — Como assim? — Ele pode ter se aproveitado de você para se vingar de mim. . . Seria uma arma perfeita contra um homem que não pode se defender. Vanessa tinha pensado a mesma coisa na manhã do primeiro dia, mas não aceitava mais essa hipótese. — Não houve nada, papai. Acho que você está obcecado pela ameaça que ele lhe fez. — Talvez você tenha razão, querida, mas ainda não acredito que ele tenha desistido. — Eu acho que desistiu! — Está bem, minha filha, vou aceitar sua opinião. No fundo, nenhum dos dois havia se convencido, mas resolveram encerrar a conversa. Vanessa saiu para nadar, relembrando os momentos vividos com Raoul. Chegou à conclusão de que o relacionamento entre eles não tinha futuro, e que, se um dia Raoul viesse a se casar, escolheria uma mulher do seu mesmo nível social. De volta à mansão, foi para o quarto trocar de roupa. Ficou surpresa ao encontrar uma loira belíssima deitada na cama. — Lan me disse que você estava passeando pela ilha — disse a estranha. — E eu não quis incomodar seu pai. Parece que Raoul teve que partir às pressas, não foi? — É. . . teve — Vanessa estava completamente perdida. — Você é. . . amiga dele? — Sou sua meia-irmã. Vocês vão ficar aqui até amanhã? — Sim, vejo que você também já sabe por que estamos aqui. — Lan me contou por alto o que aconteceu — Crystal esclareceu. — Conhece meu pai? — Já ouvi falar nele, mas nunca nos encontramos. Não sabia que tinha família. .. — Eu cheguei a Nova Caledônia há apenas duas semanas. Desculpe estar invadindo a sua privacidade, mas não podemos sair de He Royale antes de amanhã, quando o barco vier nos buscar. — Não se preocupe com isso. Você vai descer para jantar? — É..... acho que vou — disse Vanessa, titubeante. — Mas se preferir posso pedir que me sirvam aqui em cima. — Nem pense nisso, não quero ser menos hospitaleira que Raoul. Só queria saber para poder avisar os empregados. "E para deixar claro que na ausência de Raoul ela é a dona da casa", pensou Vanessa. Na hora do jantar, ficaram apenas as duas à mesa. Neal subira para descansar. Estava ansioso em voltar para o barco. Crystal tentava mostrar-se simpática. — Se soubesse que Raoul não estaria aqui, não teria vindo. Quando falei com ele ao telefone, ontem, não me contou que viajaria. — Você falou com ele? — perguntou Vanessa. — Muito pouco, pensei que estivesse me ligando de Noumea. Mas, quando cheguei lá e me disseram que Raoul estava aqui, resolvi fazer-lhe uma surpresa. — Crystal fez uma Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe pausa. — Ele disse para onde ia? — Kalgoorlie — Vanessa informou, respirando fundo. — Ele jurou que nunca... — Crystal interrompeu a frase ao meio. — Suponho que você saiba de toda a história. — Sim, meu pai e Raoul me contaram suas versões. — E em qual delas acreditou? — Eu e Raoul achamos melhor deixar esse assunto de lado. Não tem sentido continuar pensando num episódio que ocorreu há tanto tempo. — Tem certeza de que essa sua vinda a lie Royale foi por acaso? — Se duvida de que meu pai sofreu um ataque cardíaco, pergunte ao Dr. Pierre Renaud. Ou será que você acha que ele também faz parte de alguma trama? — Pierre Renaud? É pouco provável. .. Mas não deixa de ser uma grande coincidência o fato de vocês virem parar justamente aqui. — Precisávamos de oxigênio, e esta ilha era o local mais próximo! — Está bem, vou acreditar em você — disse Crystal, com cinismo. — Mas vamos falar sobre Raoul agora. Diga-me, você sempre vai para a cama com homens desconhecidos? :— Vanessa enrubesceu instantaneamente. — Então eu tinha razão. É muito fácil saber quando uma mulher dormiu com Raoul, elas sempre parecem ser donas dele. — Assim como você? — Vanessa devolveu, furiosa. — A única diferença é que eu posso! Acho que você ainda não sabe: vou me casar com ele! O apartamento que Brenden alugou para Vanessa ficava no andar de baixo de um edifício de dois pavimentes, numa das ruas mais simpáticas de Noumea. Era composto de dois dormitórios, banheiro, cozinha e um espaçoso salão. Além de um pequeno jardim. — É só por dois meses, mas ao menos lhe dará tempo para procurar melhor e decidir o que comprar — a atenção de Brenden era comovente. Vanessa olhava em volta, satisfeita. Aquele seria o refúgio ideal para abrigar suas ilusões e os sonhos cortados pela raiz. Raoul estaria de volta no dia seguinte e encontraria sua noiva à espera. Embora oficialmente ninguém soubesse daquele noivado, não havia motivo para duvidar da palavra de Crystal. O arrependimento invadia a alma de Vanessa; se o tivesse rejeitado naquela primeira manhã, na ilha, talvez ele ainda andasse por perto, tentando conquistá-la. Ela havia facilitado muito as coisas. — Neal está descansando — Brenden falava baixo e a voz dele parecia tensa. — Van, estou preocupado com ele. Da última vez recuperou-se bem mais depressa. — Está me dizendo que este não foi o primeiro ataque cardíaco? — Ele não lhe contou? — Há quanto tempo? — Há alguns meses. Pouco depois de nos conhecermos. — Foi por isso que ficou ao lado dele, Brenden? A fisionomia do rapaz estava contraída. — Em parte, sim, mas agora é diferente. Não sinto mais aquela febre de correr mundo, portanto não precisa ficar cismada de que estou me sacrificando por Neal. Tomarei conta do Júlia enquanto for necessário. — Obrigada. Além de tudo você é um grande amigo. . . Escute, Brenden, o Dr. Renaud me pediu que levasse papai à clínica amanhã. Quem era o médico dele antes? — Que eu saiba jamais teve um — Brenden levantou os ombros, como se pedisse desculpas. — Ele nunca me permitiu que chamasse sequer um enfermeiro para aplicarlhe uma injeção. É como eu lhe disse: da última vez ele não chegou a ficar tão abatido, nem precisou de socorros. — Mas ele continuou bebendo daquele jeito! — Só nos fins de semana — outra vez o gesto de quem pedia desculpas. — Eu não Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe pude fazer mais nada, a não ser mantê-lo sob vigilância. Vanessa deitou no sofá e cerrou os olhos. Se houvesse uma próxima vez, talvez fosse a última. Mais do que nunca, Neal precisava de cuidados médicos. Ela precisaria estar pronta para usar todos os argumentos possíveis para levá-lo até a clínica. O prédio do hospital tinha mais a aparência de um hotel; o luxo e o conforto se espalhavam por toda parte. Pierre Renaud veio encontrá-los na recepção. — Fico contente que tenham vindo. — Só vim aqui porque minha filha insistiu. Estou muito bem de saúde. Pierre deu uma rápida olhada para Vanessa e voltou em seguida a concentrar-se no rosto do paciente. — Venha comigo, por favor, Sr. Grantham. E você, Vanessa, fique à vontade. Logo lhe servirão um cafezinho. A primeira hora não foi assim tão difícil. Instalada numa confortável poltrona de couro e com várias revistas à disposição, Vanessa não teve dificuldade em se distrair. Passava do meio-dia quando começou a se impacientar. Não conseguia tirar os olhos do corredor por onde Pierre desaparecera com o pai. Algo devia estar errado. Era impossível que uns poucos testes de caráter puramente preventivos levassem tanto tempo para ser executados. Mais de meia hora se passou até que Pierre surgiu sozinho na sala. A fisionomia dele não era nem um pouco animadora. — Precisamos mantê-lo aqui por alguns dias. Pode me ajudar a convencê-lo? — Vou tentar — Vanessa sentiu a boca seca. — Ele lhe contou sobre o outro ataque? — Não, não me disse nada. Porém, isso explica a extensão dos danos. Por que não me informaram na semana passada? — Nem eu sabia do fato, até ontem à noite. Ele se recusou a procurar um médico da outra vez. — Conheço o tipo. Possivelmente já teve outros ataques e tratou de safar-se dos cuidados médicos simulando uma indigestão ou coisa parecida — o médico suspirou. — Ouça, você me parece uma moça inteligente e deve saber que um segundo ataque em menos de seis meses pode significar algo muito sério, até mesmo. . . a morte. Temos uma chance de mantê-lo vivo e saudável por algum tempo, mas precisaremos de toda a ajuda de seu pai. — Quanto tempo ele ainda tem? — Uns seis meses, talvez. — E se não se tratar? — ela observou o médico, que balançava a cabeça, preocupado, e mordeu o lábio inferior até feri-lo. — Está bem, está bem. Vou falar com ele. O corredor agora parecia bem mais longo do que julgara ao chegar. Vanessa o percorreu em silêncio, com o coração apertado. Encontrou Neal recostado à janela do quarto. — Bela vista do lago, não? Poderíamos ir até o cais e darmos uma bela volta de barco. — O Dr. Renaud quer que eu o convença a ficar aqui por alguns dias. — Ah! Eu sei o que ele quer, só que isso não vai acontecer. Nada do que fizerem vai adiantar, e não vejo sentido em gastarmos uma fortuna para manter esta carcaça velha em pé. — Papai! — Vanessa ficou desesperada. — Nunca é tarde demais. A medicina de hoje faz milagres, não sabia? — Milagres? Sei. . . — a fisionomia de Neal endureceu-se. — Só um coração novo poderia me salvar, e na minha idade uma operação dessas seria fatal. . .. É melhor deixar tudo como está. Os olhos de Vanessa encheram-se de lágrimas. — Por que não procurou um médico da primeira vez? — Quem lhe contou? — Neal virou-se para trás, bruscamente. Depois baixou os Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe ombros, conformado. — Brenden, aquele moleque, eu devia imaginar. Filha, eu lhe digo por que não quis um médico. Não havia mais nada interessante na minha vida para que eu lutasse para conservá-la. Eu perdi tudo o que tinha de mais precioso. Naquele momento ele parecia bem mais velho e mais cansado, e Vanessa, não agüentando a emoção, abraçou-o com desespero. Neal retirou os dois braços que o enlaçavam pelo pescoço e encarou-a. — Quando eu não estiver mais aqui, quero que volte para a Inglaterra e refaça a sua vida. Vanessa baixou os olhos, ressentida. — Espero que não vá me deixar sozinha e voltar a morar no barco. Pelo menos isso. . . Neal sorriu. — Não. Infelizmente me acostumei de novo a dormir numa cama decente. Mas preciso ver Brenden e dar-lhe algumas ordens, por isso vou até o cais. Ele tinha o direito de escolher o que devia fazer com o tempo que lhe restava de vida. Vanessa sentiu-se sem forças para contestar. O jeito era aceitar os argumentos de Neal e tentar construir para ele um verdadeiro lar, cheio de amor e carinho, antes que se fosse para sempre. CAPÍTULO VI Poucas pessoas compareceram ao enterro de Neal. Quando Vanessa virou-se para sair do cemitério, avistou a figura discreta de um homem que a observava de longe. — Bondade sua ter vindo, doutor — ela disfarçou a surpresa que a presença do Dr. Renaud lhe causava. — Quase não consegui chegar a tempo para assistir ao enterro, devido a um chamado urgente. Tive sorte de ver o anúncio que foi publicado no jornal. — Para falar a verdade, relutei antes de mandar publicá-lo. Meu pai não tinha muitos amigos, e achei tudo isso uma perda de tempo. — Pelo menos teve você para cuidar dele até o fim. — Por pouco tempo — o sorriso de Vanessa estava cheio de tristeza. Brenden os alcançou e se dirigiu a Vanessa com a voz embargada pela emoção. — Ê melhor eu voltar para o barco; hoje temos um cliente. — A vida continua — Pierre bateu de leve no ombro do rapaz. — Têm condução para sair daqui? — Brenden pode ir de táxi até o cais. Eu vou de ônibus. — Nada disso, esses ônibus costumam demorar horas para passar. Sua casa fica no caminho da clínica. Posso oferecer-lhe uma carona? Vanessa assentiu, sem argumentos para recusar. Sentia-se tonta e enjoada, o estômago dava voltas e causava-lhe um desconforto insuportável. A última coisa que desejava era estar perto daquele homem, embora não soubesse como livrar-se dele. Levariam não mais que dez minutos até a sua casa, e talvez pudesse se conter até lá. Sentada no imenso automóvel, esforçou-se para esquecer os solavancos que só lhe aumentavam o mal-estar. Tentou pensar em outras coisas, imaginar que seria bem pior se estivesse a bordo do barco, ou se tivesse teimado em tomar o ônibus, lotado de gente. Casa. . . dali a uma semana já não estaria mais em Noumea, e a imagem do pai apagar-se-ia, aos poucos, de sua memória. Havia sérias decisões a serem tomadas, entre elas o barco. Seria melhor que Brenden o tivesse herdado por inteiro. . . Sem querer, Neal complicara as coisas, ao deixar o iate para os dois. Brenden recusava-se a discutir o assunto, determinado a cumprir a última vontade do velho. No entanto, ela não tinha a menor intenção de permanecer em Noumea. Queria afastar-se dali o quanto antes, ir para Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe qualquer lugar onde ninguém a conhecesse. A Austrália seria uma opção, mas antes precisaria conseguir um visto de permanência. Talvez devesse voltar à Inglaterra. As ilhas britânicas não eram assim tão pequenas que não pudessem escondê-la por alguns meses. — Pretende sair logo da Nova Caledônia? — Pierre perguntou, como se tivesse ouvido os pensamentos de Vanessa. — Tão logo seja possível, assim que conseguir resolver alguns probleminhas — ela fez uma pausa, buscando um pouco de ar da janela. Nada, a náusea aumentava. — Sinto muito, mas preciso lhe pedir que pare o carro por um instante. Acho que vou vomitar. . Pierre parou no acostamento o mais depressa que pôde, a tempo suficiente para que Vanessa abrisse a porta e precipitasse o rosto para fora. Por sorte não passava ninguém por ali àquela hora, e isso amenizava um pouco a vergonha e o constrangimento. — Estou bem agora, obrigada. O médico demorou um pouco para ligar o carro. Olhava-a com uma expressão compreensiva, embora um observador mais atento pudesse perceber no seu tom de voz uma ponta de apreensão. — Costuma sentir esses enjôos com freqüência? — Não, nunca. Acho que é uma reação à morte de meu pai e ao clima angustiante que a envolveu. — Claro. Acha mesmo que podemos prosseguir? Sente-se melhor? — Bem melhor — o estômago ainda revirava e as têmporas estavam latejando; porém, quanto mais tempo ela passasse ao lado de Pierre, mais difícil seria contro lar-se. — Estamos próximos agora. Vanessa respirou aliviada quando o carro parou em frente ao prédio. Pierre insistiu em acompanhá-la para certificar-se de que ficaria bem. — Precisa de um sedativo e vou providenciá-lo para você. Tem algum médico de confiança? — Não preciso de um médico — o tom de voz soou veemente demais. — Quero dizer, normalmente tenho a saúde perfeita. Gostaria de tomar um café? Ele sorriu e aceitou o convite com um gesto de cabeça. Vanessa podia ouvi-lo caminhar pela sala enquanto preparava o café. Pedia a Deus que ele não se demorasse muito. Era um médico experiente e não demoraria para descobrir o segredo que a atormentava. A última coisa de que necessitava era um diagnóstico. Quando voltou à sala carregando a bandeja, Pierre estava na varanda. Ela ainda não compreendia a razão que o levara a comparecer ao funeral. O médico mal conhecera aquele paciente rebelde, e Vanessa nem mesmo tinha se lembrado de recorrer a ele para obter o atestado de óbito. — Uma belíssima construção esta aqui. O apartamento é seu? — Não, está alugado até o próximo final de semana. — Depois disso vai embora. — Provavelmente. — E, depois, vai voltar para a Inglaterra, foi o que me disse? — Sim. Ansiosa, Vanessa esperava que ele tomasse o café e se fosse de uma vez. Começava a arrepender-se de tê-lo convidado, embora o jeito como a tratava, cheio de atenções, merecesse alguma resposta de sua parte. Nem que fosse por pura educação. — Ainda não tomou seu café. Sente-se mal? Ela levantou-se de um salto e tentou negar, parecer convincente, mas já não podia suportar as náuseas e pediu licença para retirar-se por um momento. Pierre não fez qualquer movimento para encará-la quando voltou à sala. — Minha esposa sofre do mesmo mal nos primeiros três meses de gravidez. Podemos Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe aliviar os sintomas. Sugiro-lhe que marque uma consulta com um bom ginecologista. Posso recomendar-lhe um amigo meu, se desejar. Claro, um bom profissional e uma gorda conta no final da consulta, tão robusta quanto a que ele próprio lhe apresentara quando o pai tinha precisado de seus cuidados. A essa altura, Vanessa viu que seria impossível enganá-lo, mas estava certa de poder se conduzir da maneira que" bem entendesse. — Pretendo consultar um médico, claro, mas não aqui. Posso perfeitamente esperar mais uma semana. — De quantos meses é essa gravidez? Vanessa mostrou-se o mais natural possível, mas estava longe de sentir-se à vontade. — Dois meses. — Pretende abortar? — Não! A reação do médico foi de pura indiferença. — Se tem intenção de viajar de avião seria melhor consultar um médico antes. — Está bem, vou tomar todas as providências. Não adiantava argumentar contra Pierre, ele não desistiria. Melhor concordar antes que começasse a chorar. — Acho que prefere que eu me vá, agora, não é? Compreendo sua reação — Pierre levantou-se e apanhou o paletó que deixara sobre a cadeira. — Se puder ajudá-la, seja de que forma for, não hesite em me procurar. — Está bem, obrigada — ela levantou-se para acompanhá-lo. — E obrigada também por ter ido ao cemitério. — Vanessa hesitou antes de fazer a pergunta que não conseguia tirar da cabeça: — Doutor, por que o senhor veio? O médico pôs o paletó sobre os ombros, com ar hesitante. — Alguém me solicitou. — Quem? — Raoul DuTemple. — Os olhos do médico pousaram sobre o rosto ruborizado de Vanessa. — Ele achou que sua presença poderia não ser desejada. Acho que tinha razão, não? — Possivelmente. Meu pai e Raoul não se davam muito bem. Agradeça-lhe pela lembrança quando o encontrar. Espero que não lhe tenha causado muitos contratempos, doutor. Depois que Pierre saiu, Vanessa levou alguns minutos para assimilar a nova situação. Então Raoul não a havia esquecido por completo. . . A idéia não deixava de ser reanimadora. Com toda certeza, Pierre iria correndo contar-lhe as novidades. Qual seria a reação de Raoul? Se ele fizesse as contas, não teria dúvidas quanto à paternidade daquela criança. Doce ilusão! Raoul era um homem moderno, acostumado às situações mais esdrúxulas. Na certa nem mesmo se daria ao trabalho de procurá-la para ajudar no que quer que fosse. Depois daqueles dias de paixão nunca mais tivera notícias dele, e agora nem mesmo tinha certeza dos próprios sentimentos em relação ao pai do filho que agora carregava no ventre. Sabia onde ele trabalhava e por diversas vezes passara em frente ao edifício DuTemple, mas jamais tivera coragem de procurá-lo. Fossem quais fossem seus planos para o futuro, Raoul estava fora deles. Lembrava-se da última noite que passara no lie Royale e as recordações não lhe faziam bem. O peso das revelações de Crystal ainda a aniquilava. Mas de nada adiantaria apegar-se ao passado. Precisava pensar no futuro e na criança. Filhos de mães solteiras haviam deixado de ser uma raridade, e graças a Deus dinheiro não era um problema imediato. Além do mais, contava com os rendimentos que o barco poderia proporcionar; por poucos que fossem, ajudariam muito. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Tocou no assunto com Brenden, quando ele chegou à noite para o jantar. — Se tivesse algum dinheiro para ajudá-la um pouco mais. . . Você sabe que a gente não vai conseguir grande coisa por mês, não é? Se pelo menos concordasse em permanecer em Noumea. . . — Não posso, Brenden. Sei que cuidará bem do fúliu e fará o possível para aumentar nossos rendimentos. Antes da minha partida, teremos que fazer todos os arranjos para a remessa mensal do dinheiro. — Vou perdê-la para sempre, Van, como perdi meu companheiro, Neal — Brenden olhou para o relógio, com ar pesaroso. — Tenho que ir agora. Devo acordar cedo amanhã para acompanhar alguns turistas. Quer vir conosco? — Não, obrigada. Não seria a mesma coisa. — É verdade — Brenden beijou-a no rosto. — Vejo-a amanhã à noite. Vanessa retirou os pratos da mesa depois que ele se foi, tentando se convencer de que Brenden superaria a morte de Neal e sobreviveria com os conhecimentos que adquirira. Um ruído no portão da frente chamou-lhe a atenção. Brenden. . . talvez tivesse esquecido alguma coisa. Mas quando viu através da janela quem estava do lado de fora seu coração bateu acelerado e sua respiração se tornou ofegante. Foi Raoul quem quebrou o silêncio. — Vai me convidar para entrar ou teremos que conversar aqui mesmo? Vanessa abriu a porta, incapaz de emitir qualquer som. Depois de indicar o caminho da sala de estar, murmurou de maneira quase inaudível: — Aceita um café? Ele negou com a cabeça e olhou em volta, curioso. — Pierre contou-me que está grávida. É verdade? — as palavras saíram da boca de Raoul de uma só vez. — Ele não tinha esse direito. Um médico deve respeitar as confidencias. .. — Você não é paciente de Pierre — Raoul interrompeu-a, irritado. — E, além do mais, isso não é resposta. Vanessa suspirou, desolada. — Sim, é verdade. Ele mesmo fez o diagnóstico. — E diz que a criança é minha? — Seu nome não foi sequer mencionado. — Você disse a Pierre que devia estar grávida há dois meses, portanto isso é mais que uma acusação. Há dois meses estávamos juntos em He Royale, e Pierre sabe muito bem disso. — Raoul voltou-lhe as costas antes de prosseguir. — Que eu saiba, você não era nenhuma virgenzinha indefesa quando nos amamos. Teve outros homens antes de mim. — Um homem, apenas um. .. e íamos nos casar. — Não vão se casar mais, então? — Não. Escrevi uma carta dizendo que ia ficar aqui em Noumea. Ele jamais respondeu. — Fez isso antes ou depois que nos encontramos na ilha? Vanessa hesitou. Todos os músculos de seu corpo estavam tensos e as têmporas latejavam, enlouquecendo-a. — Não vejo que diferença isso faz, mas, se quer mesmo saber, escrevi a Michael enquanto estava na ilha. Pedi a um de seus empregados que pusesse a carta no correio. — Vanessa abriu os braços, tentando parecer indiferente. — Que importância tem isso agora?, não estou lhe cobrando nada. Você nem mesmo tomaria ciência do fato se Pierre não lhe tivesse contado tudo. Foi você quem pediu a ele que fosse ao cemitério, não é verdade? Raoul ignorou a pergunta. — Nós nos encontramos apenas durante uma semana, Vanessa. Como pode ter certeza de que esse filho é meu? Vanessa enrubesceu, não pelo que estava prestes a dizer, mas por ter certeza do que Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe viria a seguir. — Antes de chegar aqui tomava minhas precauções. — E depois que chegou resolveu esquecê-las? O tom irônico de Raoul a machucava, sem piedade. — Jamais poderia supor que iria me relacionar com alguém. . . Não planejei nada do que aconteceu entre nós. Tudo aconteceu tão depressa. . . — Não tão depressa que não lhe desse tempo de me avisar dos riscos que estávamos correndo. — Não. — Ela fez uma pausa.— Nem tinha pensado nisso. Diga-me, Raoul, acha que eu queria que isso acontecesse? — Por que não? Não sou o primeiro homem que cai nesse tipo de armadilha. O rosto de Vanessa tornou-se pálido, e ela teve que esforçar-se para não gritar. — Saia daqui! — Eu já estou indo, fique tranqüila. Vou embora assim que tiver esclarecido toda essa situação. Temos ainda que discutir alguns pormenores. — Que tipo de pormenores? Não vou tirar partido dessa história, não precisa ter medo. — Claro, nem me preocupo com isso. Amanhã mesmo vamos visitar um ginecologista. — E se eu me recusar? Raoul balançou a cabeça, com sarcasmo. — Você não se recusará, eu não permitiria. A cerimônia será realizada o mais rápido possível. — Cerimônia? — Os olhos verdes arregalaram-se. — Eu não... — Meu filho não vai nascer sem nome. — Seu. . . seu. .. Está dizendo que vai me obrigar a fazer um aborto?! — Vanessa gritou, desesperada. Para seu espanto, Raoul começou a rir. — Estou tão nervoso que misturei tudo. Não, Vanessa. Estava dizendo que primeiro você ia ao ginecologista e depois iríamos tratar do casamento. Vou casar com você. Ela abriu a boca, surpresa demais para reagir. Final mente readquiriu o controle. — Há um minuto você não estava certo de que esse filho era seu! — Está me dizendo que agora tem alguma dúvida? — Não! Eu não tenho nenhuma dúvida, o que não quer dizer que concordo com esse casamento absurdo — ela procurou a primeira cadeira para sentar-se. — Deixe-me sozinha! — Está se sentindo mal outra vez? — Não! Só sinto enjôos depois das refeições. Se o funeral tivesse ocorrido um pouco mais tarde, Pierre não teria assistido àquela cena ridícula e você não estaria aqui neste momento para me agredir! A expressão de Raoul se transformou. — Teria coragem de deixar o país sem me dizer uma palavra sobre o bebê? — Meu plano era esse, Raoul, embora nem tivesse certeza de para onde ir. Não se preocupe, por favor, deixe-me sozinha. Sei lidar com meus problemas, e na Inglaterra o tratamento pré-natal é de graça. — Só que você não vai para a Inglaterra. — Ele interrompeu com rispidez. — Não com o meu filho Uma expressão curiosa surgiu no rosto de Vanessa. — O que o faz ter tanta certeza de que será um menino? — Em mais de dois séculos apenas duas meninas nasceram em minha família. Vanessa baixou a cabeça, engolindo em seco. Queria chorar, afundar o rosto no travesseiro e jogar fora toda a angústia, todo o sofrimento dos últimos meses. — Não pode me obrigar a ficar. Raoul olhou-a, incrédulo. — Vai negar a esse filho um futuro digno? — Ele terá um futuro digno. Talvez não tão rico e confortável, mas pelo menos jamais Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe saberá que nasceu por descuido. Raoul baixou os olhos, confuso, irritado. Dir-se-ia que não tinha consciência do mal que causava a ela, da aflição que suas palavras lançavam em Vanessa. — Não quero me justificar, não preciso lhe pedir desculpas por estar indignado. Fui tomado de surpresa; não esperava uma notícia dessas a essa altura dos acontecimentos! Mas quero que saiba de uma coisa: se for preciso, farei até com que seja detida legalmente. — Não pode reivindicar um filho que ainda nem nasceu, se é nisso que está pensando. Não há lei que me obrigue a ficar neste país, Raoul. — Acontece que não está na Inglaterra. Como pode saber se há ou não lei que a obrigue a ficar? Vanessa tinha que admitir que não conhecia as leis do país, mas tampouco via futuro num casamento sem amor, baseado apenas na espera de uma criança. Contudo, não poderia negar que o melhor futuro para o filho seria ao lado do pai. Não se sentia no direito de privar a criança do conforto e da segurança que um pai como Raoul poderia garantir. Não aceitando o casamento estava colocando a própria liberdade à frente dos direitos do bebê... — E quanto a Crystal? — a pergunta desesperada saiu de sua garganta como um lamento. — O que ela tem a ver com isso? — Soube que iriam se casar. — Vanessa não pôde definir a expressão que viu naqueles olhos azuis, e, entre assustada e desafiante, acrescentou: — Pelo menos foi o que ela me contou. Raoul a estudou por um momento, antes de responder: — Prefere dar-nos a criança para adoção, quando chegar a hora? — Para vocês dois? Nunca! — Então, não temos alternativa. Teremos uma cerimônia simples, sem convidados, dentro de dois ou três dias no máximo. Enquanto isso, dê-me seu passaporte. Vanessa trincou os dentes. — Não vou fugir! — Não iria muito longe, de qualquer forma. — O sorriso dele foi breve e irônico. — Há situações em que basta uma palavra para se conseguir uma ordem de apreensão. Preciso de seu passaporte para providenciar sua documentação e conseguir a licença de casamento. Agora vamos, entregue-me. Vanessa saiu da sala sem discutir, embora mal acreditasse nos próprios movimentos. — Isso não vai dar certo, Raoul, não pode dar! Um casamento sem bases sólidas. — Construiremos uma. — Como assim? — Temos um passado juntos. — Um passado breve e fugaz, nada de concreto. Não existe absolutamente nada entre nós. — Não é verdade! Apenas adiamos nosso encontro, mas não esquecemos um do outro — ele se mostrava brusco, impertinente. — Vou marcar-lhe uma consulta para amanhã à tarde. Esteja pronta às duas, eu passo para apanhá-la, está bem? Vanessa concordou, atônita, Na certa ele desejava confirmar que estava grávida antes de assumir qualquer compromisso. Não podia culpá-lo. Raoul estava prestes a sacrificar sua liberdade para proteger a criança que ela carregava no ventre. Não tinha como negarse a satisfazê-lo. Só depois que Raoul se foi, Vanessa, sozinha, pôde pensar nas próprias emoções. Ainda havia alguma espécie de magia entre eles, algo indefinível que os atraía como um ímã. Talvez não fosse o bastante para mantê-los unidos até o fim de seus dias, ou mesmo por mais alguns anos, mas, se estivessem dispostos, quem sabe não pudessem construir Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe um amor terno, compreensivo, um lar para o filho que iria nascer? Talvez jamais chegassem a sentir-se apaixonados um pelo outro... Mas seria verdade que existiam paixões avassaladoras como as descritas nos livros? Bem, pelo menos já sentia uma criança a pulsar-lhe no ventre... Quem sabe se essa vida que se formava não lhe indicaria novos caminhos? O casamento foi extremamente simples, como Raoul tinha dito. Contou apenas com os noivos, duas testemunhas e o juiz. Vanessa vestia-se de forma discreta, sem ostentação, com um conjunto creme, chapéu de renda francesa sem adornos e sapatos claros de saltos baixos. A única coisa que brilhava em seu traje era o fio de pérolas com que Raoul a presenteara. E, depois que o juiz os declarou casados, mais uma jóia passou a adornarlhe o dedo anular esquerdo: uma aliança de esmeraldas. Depois da cerimônia, sentada ao lado do marido, rumo à nova casa, Vanessa relembrava aqueles últimos dias. Houvera tanto que fazer, que providenciar, que acertar. . . Depois que o médico confirmou sua gravidez, Raoul mudou radicalmente de atitude. Tornara-se gentil, atencioso, quase... amoroso. Ela gostaria de poder prever como ele a trataria quando estivesse disforme, quando qualquer sinal de cintura houvesse desaparecido em seu corpo. Não poderia esperar grande coisa, nenhuma ternura, como cansara de observar nos outros casais. Raoul não a amava. Tudo o que queria era o filho, verdadeira e única circunstância que os mantinha juntos. — Está se sentindo bem? —- a pergunta fez com que saísse de seus devaneios de forma brusca. — Quer que eu pare o carro? — Não, estou bem. Apenas. . . um pouco nervosa — Por minha causa? — Por causa de tudo. Alguém sabe que voltará para casa hoje com uma esposa? — Claro, todos estão a par do que aconteceu. Estavam arrumando tudo quando saí de casa. Dei ordens para que a suíte principal fosse reaberta. Ela não é usa da desde que minha madrasta nos deixou. Prefere que mudemos a decoração antes de a ocuparmos? — Imagine. .. Tenho certeza de que não será necessário. — Vanessa fez uma pausa antes de fazer a pergunta que mais a mantinha ansiosa: — Tem mais alguém na casa além dos empregados? — Se está se referindo a Crystal, ela partiu ontem à noite — o tom de voz dele era inexpressivo. — Ela deve me odiar. — É, acho que sim, mas vai superar o trauma. — Acho que lhe causei muitos problemas, Raoul. . . Ele sorriu ligeiramente. — Ambos causamos problemas um para o outro, não é? Estamos quites. Temo que não seja uma boa maneira de começarmos um casamento, mas, se fizermos um pequeno esforço, pelo menos poderemos viver em paz. E quanto ao amor? Vanessa gostaria de ter perguntado, mas as palavras não saíam de sua garganta. O coração de Raoul não estava naquele jogo. CAPÍTULO VII Surpresa! Vanessa constatou que a fachada e os arredores da mansão DuTemple eram uma réplica perfeita da casa de lie Royale. Seu espanto não escapou aos olhos sagazes de Raoul, que apressou-se a explicar: — Como deve ter percebido, meu avô não tinha muita imaginação. Ele decidiu copiar na íntegra o projeto de nossa casa em Royale, já que não conseguia encontrar nada melhor. Sem dúvida, esta aqui é bem maior, mas o interior é exatamente igual ao da outra. Creio que isso facilitará as coisas para você: não terá dificuldade em se adaptar. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Raoul apoiou os braços sobre o volante do automóvel e por um breve instante pareceu perdido em lembranças. Seu olhar distraído pousou sobre a figura de um polinesiano usando um impecável uniforme branco, o que o fez despertar de súbito. — Este é Kehei. Ele e a mulher, Kalani, são os nossos caseiros. Cuidam de tudo, inclusive supervisionam o trabalho dos demais empregados. Vanessa cumprimentou o homem, que lhe respondeu com um sorriso brilhante. Se a mulher dele fosse assim tão simpática, as perspectivas seriam bem melhores. Logo que cruzaram o magnífico hall de entrada, Vanessa deparou com a fileira de empregados, encabeçada por uma mulher de compleição robusta e expressão maternal, que só podia ser Kalani. Ela lhe dizia em tom polido que o chá seria servido no momento em que o desejasse. — Está vendo, Vanessa? Ela está tentando seguir os hábitos ingleses de sua nova patroa. É o que lhe digo: entregue sua vida nas mãos de Kalani e não se arrepen derá. Ela teve três filhos e sabe lidar com bebês como ninguém. — Tá lhe contou sobre o nosso filho? — Claro, nem teria sentido esconder um fato que estará evidente dentro de poucas semanas. — Ele esboçou um leve sorriso. — Acredite, ela está maravilhada. Há anos que me aconselha a ter um filho para continuar a família DuTemple. Além do mais, o casal adora crianças, e Kalani sente falta dos filhos que cresceram e desapareceram. Vanessa dirigiu-lhe um olhar apreensivo. — Raoul, já pensou na hipótese de não termos um menino? — Ora, não vejo por que me preocupar com isso agora. Temos a vida inteira para ganharmos um menino. Chegaram ao topo da escadaria. Raoul atravessou a pequena galeria e abriu passagem para que Vanessa entrasse numa graciosa sala de estar, toda decorada em tons de verde e branco. A janela, aberta para uma grande varanda, deixava ver o mar, calmo e resplandecente. Uma porta ligava a saleta ao quarto de dormir, largo, aconchegante e igualmente avarandado. Outra porta dava para o banheiro, todo de mármore e revestido de espelhos. Uma suíte luxuosa, digna dos melhores hotéis. Este seria o reduto de uma nova vida para Vanessa e Raoul. — Venha cá! Raoul não lhe deu tempo de perguntar por quê e avançou ao seu encontro. Vanessa mal teve tempo de observar os músculos bem desenvolvidos de seu dorso sob a camisa fina. Aqueles braços fortes a enlaçaram, e toda e qualquer tentativa de dizer alguma coisa morreu sob os lábios mornos do homem que amara desde o primeiro minuto. Vanessa sentiu-se estremecer quando ele tocou seu corpo tenso. Ela afundou a mão nos cabelos macios de Raoul, disposta a entregar-se à intensidade daquele abraço, à pressão ansiosa daquela boca faminta. — Nunca fiz amor com uma mulher grávida. Tenho medo de causar algum tipo de acidente. Vanessa sorriu, enternecida. Talvez Raoul jamais viesse a amá-la de verdade, mas de uma coisa estava certa: ele já amava o filho que ela carregava no ventre. — Daqui a algum tempo não vai nem querer mais olhar para mim. — Nada disso. — Ele beijou-lhe o ombro com suavidade. — A mãe do meu filho sempre será a mulher mais bela da terra. Vanessa ansiava por guardar para sempre aqueles momentos cálidos, de um carinho inesperado. Como era bom sentir-se protegida, amparada, quase. . . amada! Os dias seguintes foram agitados, alegres: a vida assumia ares de felicidade. Vanessa e Raoul nadavam juntos todas as manhãs na piscina oval em frente à varanda da suíte e tomavam sol até que Kalani lhes trouxesse o café. Passavam as tardes inteiras em longos passeios pela costa e almoçavam em singelos restaurantes, construídos de forma rústica naquele pedacinho de paraíso, ladeados de palmeiras. Vanessa decidiu esquecer o Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe passado e não pensar no futuro. Viveria apenas o presente maravilhoso que Raoul lhe dedicava. O que viesse depois. . . teria apenas que aceitar. No último dia daquela semana inesquecível, logo após o jantar, a fisionomia de Raoul perdeu um pouco da leveza que ostentara durante todo o tempo. — Amanhã terei que enfrentar uma daquelas reuniões intermináveis da diretoria. Infelizmente não dá para fugir de meus compromissos. — Não faz mal, já me dispensou bastante do seu tempo. — Era o mínimo que eu podia fazer nessas circunstâncias. Gostaria de levá-la para fora da Nova Caledônia. — Fala de uma verdadeira lua-de-mel? Seria difícil, no meu estado... Ele a examinou de alto a baixo, antes de responder. — Talvez não devêssemos exagerar, mas depois que ele nascer voltaremos a pensar no assunto. — Os olhos azuis estreitaram-se, desconfiados. — Sempre que falo no bebê, percebo que algo estranho acontece com você. Está me escondendo algum tipo de medo ou preocupação? — É você, Raoul. Não o vejo referir-se a ela, sempre a ele, — As chances serão sempre as mesmas. Se não tivermos um herdeiro agora, esperaremos pela próxima vez. — Se houver uma próxima vez. — Está pensando em negar os meus direitos conjugais? — Ora, você não permitiria. — Permitiria, desde que conseguisse me provar que não a atraio de nenhuma forma. O olhar maroto que ele lhe dirigiu provocou-lhe uma risada tímida. Raoul fez uma pequena pausa e em seguida tomou-lhe uma das mãos. — Acho que está na hora de promovermos um jantar, ou um coquetel, ter algum convívio social. A menos, é claro, que prefira recolher-se por uns tempos. Vanessa pensou em dizer-lhe que não precisava de mais ninguém além dele próprio à sua volta, mas desistiu da idéia. — Acho que não tenho nada a esconder de seus amigos. Todos devem ter desconfiado de um casamento como o nosso, às pressas e sem convidados. — Ora, aposto que a maioria dos homens não teria dúvidas quanto à escolha de uma cerimônia simples, sem todas aquelas pompas desnecessárias. E, além do mais, mesmo que tivéssemos chamado a cidade inteira, as especulações teriam a mesma proporção. — Diz isso porque toda a sociedade local esperava que se casasse com Crystal, não é? Raoul a estudou por alguns segundos, e sua voz veio baixa, quase inaudível. — A idéia ainda a incomoda tanto? — Sinto-me um pouco culpada. — Eu também não me sinto à vontade. . . — Então é verdade? Ele estreitou os lábios. — Sim, mas podemos esquecer esse assunto para sempre. Agora, responda-me: está disposta a dar uma festa? A resposta custou uma boa dose de esforço a Vanessa. — Creio que é melhor resolvermos isto logo, enquanto ainda posso entrar num vestido decente. — Ah, por falar nisso, acho que vamos precisar de um enxoval para o bebê e todas aquelas roupas que as mulheres grávidas costumam usar. Simone Renaud poderá orientá-la. Ela tem insistido para conhecê-la e poderá se tornar uma boa amiga para você. Vanessa o olhou com uma expressão cismada. — Nunca o tinha ouvido mencionar esse nome... — Estava esperando a ocasião certa. Kehei poderia levá-la até a cidade amanhã e apanhar Simone no caminho. Depois nos encontraremos para o almoço. Tudo bem? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Vanessa ficou pensativa. — Renaud? Essa mulher é parente de Pierre? — Sim. Simone é a esposa dele. Foi só muito depois, quando Raoul dormia ao seu lado, que Vanessa se permitiu pensar outra vez em Crystal. Ele não demonstrava em absoluto estar apaixonado pela moça, então por que haviam planejado casar? No horário marcado. Vanessa passou pela casa de Simone Renaud. Ela devia ter uns trinta e cinco anos, e era uma mulher sofisticada, de belos cabelos negros. Entrou no carro que Raoul colocara à disposição de Vanessa, falando muito sobre as duas filhas gêmeas de três anos e o filho de quatro. Sorrindo, não escondeu o desejo de ter mais crianças em casa. — Éramos seis irmãos ao todo e adoro famílias grandes. Pierre ergue as mãos para o céu cada vez que falo em ter mais filhos, mas eu sei que está fingindo. Os homens se sentem envaidecidos com uma prole grande. — Mesmo que sejam filhos indesejados? — Vanessa arrependeu-se da pergunta no instante seguinte, mas o olhar preocupado de Simone já a atingia em cheio. — Esqueça a pergunta, foi uma bobagem. — Se isso a incomoda, é melhor que desabafe, querida. Ouça, entendo como se sente, mas posso lhe assegurar que Raoul jamais a deixará em maus lençóis. — Não é disso que tenho medo. Sei que ele só se casou comigo para garantir o futuro do bebê. — E você precisa mais do que isso, não é? — Simone fez uma breve pausa antes de prosseguir. — Diga-me, está apaixonada por ele? — Eu mal o conheço.. . Vanessa baixou os olhos, na defensiva. — Nunca ouvi dizer que é preciso conhecer um homem para amá-lo. Nós, mulheres, poucas vezes damos voz à razão. Deve sentir alguma coisa por ele ou não teria aceitado seu pedido de casamento tão depressa. — Não acha que esperar um filho dele é razão suficiente? — Em pleno século vinte? Não. Teria sido muito mais fácil livrar-se da gravidez. — Um aborto não é tão fácil assim, e eu não pagaria esse preço pela minha liberdade. Por outro lado, jamais seria capaz de dar ao meu filho todo o conforto que Raoul pode e deve lhe oferecer. Simone segurou-lhe o queixo e a fez voltar o rosto para olhá-la bem dentro dos olhos. — Não, você não me parece o tipo de pessoa que se deixa atrair por coisas materiais. Contudo, sinto que é responsável o suficiente para querer que seu filho tenha um pai e uma mãe. — Simone tomou a mão de Vanessa entre as suas. — Raoul é um homem de sorte; além de possuir tudo o que quer e precisa no mundo, escolheu para esposa uma mulher de verdade. Sabe, tenho a pretensão de saber julgar o caráter de uma pessoa à primeira vista. Crystal jamais o faria feliz, ela é como seu próprio nome diz: linda, reflete todas as cores, mas não possui nenhuma. E jamais daria um filho a ele. — Acha que ele casaria com Crystal apenas por sua beleza? — Quem sabe? Os homens sempre se deixam fascinar por mulheres bonitas, e, a princípio, nem procuram saber se têm algo mais além da beleza. Tudo o que Crystal queria era Raoul, e se ele fosse um qualquer já estariam casados muito antes que você aparecesse. Tules DuTemple aprovava esse casamento, apesar de não ter tido uma boa experiência conjugai com a mãe de Crystal. Kehei estacionava o carro em frente a um elegante shopping center, e Vanessa olhou para fora, pensativa. O pai de Raoul queria que ele se casasse com Crystal, mas Raoul não seguira seus conselhos. As duas mulheres saltaram do carro. Kehei as esperaria ao meio-dia para levá-las ao Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe encontro de Raoul. — Portanto, temos três longas horas para pesquisarmos todas as lojas. — Simone indicava o caminho à sua frente. — Acho que é mais que suficiente. Naquelas horas livres e tranqüilas, Vanessa aprendeu a admirar a desenvoltura da nova amiga. Ela conhecia o comércio local como a palma da mão, e Vanessa dei xou-se levar sem hesitações. Na opinião de Simone, era cedo para o enxoval do bebê e mesmo para as roupas de gestante; devia tratar de aparecer o mais atraente possível diante dos amigos do marido, enquanto sua cintura ainda permitisse. Um desfile de etiquetas famosas acontecia bem à sua frente, e Vanessa tentava lembrar-se de que já não precisava se preocupar com dinheiro. Afinal, Raoul era um dos expoentes da sociedade local, e ela precisaria apresentar-se à altura. Raoul já as esperava sentado à mesa de um dos mais luxuosos restaurantes de Noumea. Usava um terno azul-marinho de tropical inglês que o tornava ainda mais atraente, e seus olhos azuis examinaram a mulher com renovado interesse. — Vejo que tem bom gosto, querida. O verde vai bem com seu tom de pele. Todos os olhos da sala voltaram-se na direção de Vanessa. Ela sentiu uma ponta de apreensão ao lembrar-se de que havia concordado em receber a sociedade numa festa em sua casa. Ainda bem que agora poderia contar com a ajuda indispensável de Simone. Ao final do almoço, um pouco mais descontraída, Vanessa não pôde conter um comentário maroto: — Acho que comi demais, sinto uma espécie de torpor. Não pude resistir a todas essas delícias. Simone riu, compreensiva. — Sossegue, está comendo por dois, ninguém a condenaria por exagerar um pouco, não é mesmo, Raoul? — Quero que meu filho seja muito bem alimentado. Fizeram uma pausa, enquanto o garçom os servia de café. Depois Vanessa dirigiu-se ao marido. — Raoul, ainda não me disse a quem iremos convidar para a festa. — Uma festa? — Simone mostrou-se interessada. — Quem teve a idéia? Raoul deu de ombros. — Eu mesmo. Você e Pierre serão indispensáveis. Vanessa apressou-se em acrescentar: — Sem dúvida nenhuma. Conto com vocês dois para me ajudarem a suportar a curiosidade alheia. — Já lhe disse que não somos obrigados a receber ninguém, se não quiser. Os olhos verdes e brilhantes fixaram Raoul desafiantes. — Absolutamente! Estamos de acordo e só preciso de ajuda com os convites. — Eu posso fazer isso, querida. — Simone pousou a mão sobre a de Vanessa, com carinho. — Faremos uma lista hoje mesmo. Acho que vinte pessoas, incluindo os donos da casa, serão o bastante. — Você é quem decide. — Raoul recostou-se na cadeira, e sua voz soou um pouco irônica. — Estou certo de que Vanessa vai adorar deixar tudo em suas mãos. Vamos agora? Simone não notou a mudança no humor de Raoul, mas o fato não passou despercebido a Vanessa. No caminho de volta, todas as preocupações retornaram. Ela precisava mostrar ao marido que era capaz de arranjar-se sozinha. . . Haveria de encontrar um jeito. Para desanuviar um pouco a cabeça, aceitou o convite da amiga para entrar e conhecer as crianças. Formavam um trio encantador. Christian, o mais velho, era uma réplica em miniatura do pai, embora bem mais agitado. Vanessa teve dificuldade em compreender o que as crianças diziam e sentiu-se ligeiramente zonza. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Não se assuste, querida. Quando menos esperar estará dominando o francês melhor do que nós. — Simone riu com a confusão da amiga. — Raoul poderia ajudar muito se falasse em francês com você. No começo, tudo parece mais difícil do que realmente é, eu sei. Por um momento Vanessa perdeu a noção do tempo e lembrou-se de seu romance na ilha, do quanto se sentira realizada nos braços de Raoul. Naqueles dias, nem suspeitava de que um dia seriam marido e mulher. . . — Este bebê podia ter esperado um pouco mais — a frase escapou-lhe e Vanessa só se deu conta de tê-la pronunciado ao ver a expressão estarrecida da amiga. — Não acredito que esteja falando a sério. Quando o tiver nos braços, não experimentará mais nenhum tipo de dúvida. Pare de se ressentir com o rumo que as coisas tomaram e dê uma chance ao seu casamento. — Farei o melhor possível — Vanessa suspirou, desejando que Simone estivesse certa. — Que tal fazermos aquela lista? Quero mandar os convites o quanto antes. Eram mais de quatro e meia quando deixou a casa dos Renaud. Raoul já estava em casa e tomava banho. Ela entrou na suíte e, deitando-se, esperou que saísse. Logo depois ele veio com uma toalha enrolada na cintura e olhou para a pilha de caixas e embrulhos ao lado da cama. — Comprou tudo o que precisava? — Mais do que o necessário para três pessoas — Vanessa mostrava um ar um tanto culpado. — Simone não me permitiu perguntar os preços, portanto nem sei quanto gastei. Ele levantou uma das sobrancelhas, intrigado. — Jamais conheci uma mulher que se preocupasse com os preços. — Então terá muitas surpresas comigo. Extasiada, Vanessa observava os movimentos do marido. Ele era muito bonito e sua musculatura parecia ter sido cinzelada por urna grande artista. Raoul pareceu adivinhar-lhe os pensamentos e sentou-se ao seu lado na cama, depois de deixar a toalha deslizar corpo abaixo. A princípio beijou-a com muita suavidade', mas depois sua exigência tornou-se cada vez maior. Vanessa podia ouvir as batidas aceleradas do próprio coração e sentiu-se estremecer. Mais uma vez se entregou ao homem que tanto amava. Passava das oito da noite quando ela o ouviu sussurrar que seria melhor se vestirem para o jantar. — A menos que prefira que ele seja servido aqui. — Acha que não seria inconveniente? — Para nós? Não. — Raoul sorriu. — E nem para Kalani. Ela gostou de você, pode acreditar. Ela e minha madrasta viveram em guerra todo o tempo. — Você também não gostava dela, não é? Falo de sua madrasta. Raoul demorou a responder. — Era uma mulher egocêntrica. . . ainda é. Quando a conheci, não passava de um adolescente cheio de sonhos e ideais, e a mulher que substituísse minha mãe teria que ser no mínimo especial. Nunca entendi por que meu pai a escolheu entre tantas outras menos extravagantes. Hoje compreendo que ela deve ter usado todos os truques que conhecia para conquistá-lo. Pretendia dar um futuro decente para Crystal. Papai também adorava a menina. — Sentia ciúmes de Crystal? — De uma garota de cinco anos? Não, acho que não. Além do mais, eu ainda era o único varão da família. Vanessa arriscou uma pergunta incômoda. — E quanto a Elise, ela morreu? Mais um silêncio pesado instalou-se entre eles, e Raoul o quebrou com uma voz amarga. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Morreu. Os meninos estão bem instalados com uma família que cuida deles. Nada lhes falta. Não sabem que eu existo e nem quero que saibam; tudo o que me interessa é ter certeza de que estão bem. — Acho muito certo que se preocupe com eles.. . — Meu pai faria o mesmo. — Ele apoiou-se sobre os cotovelos, de bruços. Vanessa acariciou-lhe os cabelos macios. Raoul era responsável, humano e sofrido. Se tivesse tato, podia alimentar esperanças de felicidade naquele casamento. CAPÍTULO VIII Na semana seguinte, Vanessa fez uma visita a Brenden. Como sempre, ele estava sem camisa e usava uma calça jeans desbotada. O marujo possuía um bronzeado perfeito. — Pensei que jamais fosse vê-la de novo! Levei um choque com o último bilhete que me mandou! — Não tive coragem de falar com você antes. Meu pai tinha acabado de morrer e eu não estava muito bem. — Não se preocupe, minha amiga, a única coisa que me importa é saber que você está feliz. — Ele a olhou bem dentro dos olhos. — Está? — É. . . claro. Apenas preciso de tempo para me acostumar com a idéia — ela sorriu, tentando brincar. — Imagino que metade das mulheres da cidade morre de inveja de mim. Quem não gostaria de casar-se com um milionário? — Não acho que você seja uma dessas. Na verdade, acredito que dinheiro seja a última coisa em que pensaria na hora de escolher um companheiro para a vida toda. Foi ele quem teve sorte de encontrar uma mulher como você, e espero que saiba reconhecer essa verdade. Vanessa jogou-lhe um beijo de longe e esforçou-se para mudar o rumo da conversa. — Diga-me como vão as coisas por aqui. — Melhores do que nunca. Tenho mais trabalho do que posso aceitar. — Ainda não conseguiu arranjar um ajudante? — Nada fixo, e também acho que por enquanto eu agüento sozinho. — Ele fez menção de levantar-se. — Vou lhe mostrar a contabilidade. — Nem pense nisso! Não foi por isso que vim até aqui. — Ouça, Van, este negócio aqui é seu também. Meio a meio, lembra-se? — Brenden se levantou e pegou um livro preto sobre um armário da cabine. — Precisa se interessar pelos negócios, menina. Neal faria questão disso, sabe muito bem. Já abri uma conta bancária para depositar a sua parte nos lucros. Mesmo que não use aquele dinheiro, vai continuar lá, à sua disposição. — Tudo bem. . . — naquele momento, não podia fazer mais nada além de aceitar os argumentos de Brenden. Legalmente, os dois tinham direito aos lucros do barco, e não havia dúvidas de que podia confiar inteiramente no rapaz. Gostaria de passar a ele sua parte, mas sabia que qualquer tentativa seria inútil. — Deixemos que o dinheiro se acumule. Depois decidiremos o que fazer. A resposta não o deixou satisfeito, mas Brenden fingiu aceitá-la. — Que tal se déssemos uma volta pelo lago? Não tenho mais nenhum cliente para esta tarde. — Agora não vai dar, pedi a Kehei que viesse me buscar em uma hora. — E se eu não estivesse aqui? — Teria esperado, queria muito vê-lo. — Então vamos combinar um dia para darmos esse passeio, que tal? Deixarei a sextafeira livre. Os ares marinhos vão lhe fazer bem, você está muito branca! — Brenden fez Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe uma pausa, parecendo triste. — Senti saudades nestas duas semanas: de você e de Neal. . . Acho que agora vai ser mais difícil para a gente se encontrar. . . Era verdade, seria cada vez mais difícil, principalmente nos últimos meses da gravidez. Vanessa suspirou, afastando a melancolia. — Terá que ser pela manhã, está bem? Sexta-feira à noite Raoul e eu daremos um jantar. — Não é muito trabalho para você? — A fisionomia de Brenden mostrava-se realmente preocupada, e Vanessa sorriu-lhe. — Ora, ainda não estou tão pesada assim, não é mesmo? — Os dois caíram na gargalhada, e ela acrescentou: — Além do mais, temos que convocar toda sociedade local antes que comecem a falar mal de mim. Com toda certeza a maioria já pensa que me casei corri Raoul por dinheiro. Golpe do baú.. . essas coisas. — Pelo que sei, as pessoas apenas comentam que ele foi decente o bastante para assumir a paternidade da criança. Não creio que ninguém se atrevesse a falar mal de você perto de mim, eu partiria para a briga. — Ê mesmo? — Vanessa sentia-se reconfortada com a idéia. — Isso ajuda um bocado, mas não precisa exagerar. — Então nos vemos na sexta? — Vou tentar. Mas, se alguém requisitar o barco, não hesite em aceitar, combinado? Kehei estava encostado no carro quando Vanessa o alcançou e resmungava algo sobre ter mais o que fazer do que ficar ali parado. — Tem um monte de trabalho à minha espera em casa. Não sou chofer! No caminho de volta, Vanessa pensou em falar sobre o assunto com Raoul. Seria melhor para todos se ela tivesse seu próprio carro. Ele não teria motivos para negar-lhe o favor. Precisava de um pouco mais de independência, ainda que fosse para provar a si mesma que estava viva. E foi o próprio Raoul quem tocou no assunto, logo após o jantar. — Pensei que seria uma boa idéia se tivesse seu próprio carro, mas gostaria que se mantivesse longe do Júlia. Não gosto que ande por lá. — Não posso ignorar a existência de Brenden. Ele fez tudo o que pôde por meu pai — Vanessa hesitou antes de prosseguir. — Neal deixou metade do barco para cada um de nós e, embora eu já tenha insistido para que ele fique com tudo para si, Brenden não quer aceitar. Talvez você possa sugerir uma solução. — Isso não é problema meu — o tom foi mais brusco do que Vanessa poderia esperar. — Ainda que eu odeie os meios que seu pai usou para consegui-lo, o barco era dele. Se antes de morrer decidiu que devia ser de vocês dois, não vejo o que possa ser feito a respeito, a não ser que contrate um advogado e passe tudo para o nome de Brenden sem avisá-lo. Seria o mesmo que fechar uma porta para o passado, para o pequeno pedaço de mundo que o pai lhe deixara. Pela primeira vez em semanas, Vanessa lembrou-se de Michael. Michael. . . Onde ele estaria àquela altura? Por que não respondera à carta que ela tinha lhe enviado? — Ainda não providenciei a transferência do dinheiro que consegui com a venda da casa na Inglaterra. É uma quantia razoável, e ainda tem os juros. — Nossos advogados podem cuidar disso para você. Temos excelentes conselheiros que podem orientá-la. Esse dinheiro vem para cá em seu nome. —- Em meu nome... — Claro. Há muito tempo que os bens da mulher não passam automaticamente para as mãos do marido quando se casam. — Nesse caso, não creio que é sua obrigação custear minhas roupas, jóias e tudo o mais. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Os olhos azuis endureceram por um breve momento. — Está sugerindo que eu devia deixar que você mesma pagasse suas contas? — Apenas. . . não estou acostumada a tanto luxo! Raoul levou algum tempo para assimilar aquelas palavras. Quando voltou a falar, tinha na voz uma inflexão estranha: — Que tipo de vida levaria se tivesse se casado com aquele seu namorado inglês? — Nada parecido com o que levo agora. Ele é um simples vendedor. — Você o amava? — Jamais tive certeza disso, e essa foi uma das razões por que decidi vir à procura de meu pai. Precisava de tempo para avaliar meus sentimentos. — È em vez disso enfrentou uma decisão ainda mais difícil. Está arrependida? — De ter ficado em Noumea? — Vanessa balançou a cabeça, negando. — Foi muito mais fácil do que imaginava. Acho que só precisava de uma desculpa. — Teria voltado para ele se as circunstâncias fossem outras. Dessa vez foi ela quem o encarou, decidida. — Meu relacionamento com Michael era um tanto vazio. Descobri isso depois que conheci você. Um sorriso irônico iluminou o rosto de Raoul. — Quer dizer que a minha técnica funcionou mesmo?! — Talvez — Vanessa não entendia o que se passava com o marido. — Michael não tem a sua experiência. — Arrependeu-se tarde demais daquele desabafo. — Sinto muito, não devia ter dito isso. — Por que não? Se é isso o que sente não vejo motivo para me esconder. Também conheci outras mulheres. Depende de você se no futuro tiver de conhecer outras. Vanessa desviou os olhos do rosto dele, entristecida. — Mais tarde, quando. . . Diga-me, Raoul, alguma vez sentiu atração por uma mulher grávida? — Não, mas tampouco estive pessoalmente envolvido da maneira que estou agora — ele arqueou as sobrancelhas. — Você quer esse filho? — Claro que sim — a resposta veio rápida demais. — Apenas. . . preferia que tivesse acontecido de maneira diferente. Raoul sorriu, bem-humorado. — Conhece alguma maneira diferente para isso? — Ora. . . sabe muito bem do que estou falando. Ele alcançou-lhe a mão antes que levasse a xícara de café aos lábios. Sua expressão tornara-se séria outra vez. — Vanessa, preciso lhe dizer uma coisa. Talvez não tenha a mesma concepção que você sobre o casamento, mas queria que soubesse que, quando nos envolvemos em Royale, me senti culpado em relação a Crystal. Acontece que desejei você por muitas vezes depois que nos despedimos, ainda mais na ocasião da morte de Neal. Quando Pierre me contou que estava grávida, nem por um momento pensei em acreditar que esse filho fosse meu. . . Mas, quando tive certeza, sabia p que tinha a fazer. Casei com você porque quis, fique certa disso — ele observou a reação de Vanessa às suas palavras e tocou-lhe a face com carinho. — Ainda temos atração um pelo outro. Uma atração enorme e difícil de controlar. Será que com o tempo não podemos acrescentar amor a esta relação? Vanessa não precisava de tempo, essa era a questão. O amor estava ali mesmo, inundando-lhe o coração. Era necessário guardá-lo a sete chaves, protegê-lo até que também Raoul fosse capaz de senti-lo. — Você é um homem muito especial, Raoul. Acho que não terei dificuldades para amálo. — É mesmo? Então que tal me mostrar o quanto sou" especial? Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Às nove e meia da manhã de sexta-feira, Vanessa chegou ao cais onde Brenden a aguardava, ansioso. — Esperava que viesse, mas tive medo de que Raoul a impedisse. — Ele nem sabe que estou aqui. Está viajando e só deve voltar a tempo para o jantar que daremos hoje à noite. Vim aqui para lhe fazer uma proposta. — Se é sobre o barco, Van, desista. Já conversamos muito a respeito, e não aceito que me passe todos os direitos. — Acontece que Raoul não admite que eu tenha qualquer participação na história do Júlia. Ele mesmo sugeriu que procurássemos um despachante e fizesse mos todos os arranjos legais para passar os direitos a você. Brenden olhou-a com extrema tristeza. — Raoul não quer que tenhamos qualquer tipo de vínculo, e acho que posso compreendê-lo — ele abriu os braços, conformado. — Bem, se isso pode lhe causar problemas, não vejo outra saída. A bordo do Júlia, Vanessa sentia a brisa marinha batendo-lhe no rosto e uma renovada alegria a preencher-lhe o espírito. Lembrava-se do pai, do amor que ele sentia pelo barco e pelas águas. Lembrava-se também, com carinho, da vida livre que ele abraçara e pela qual vivera até o último de seus dias. Parecia inacreditável que tivesse partido há duas semanas apenas. A presença dele ainda impregnava todo o barco. Nunca haviam chegado a ser pai e filha de verdade, mas o pouco tempo que passaram juntos fora suficiente para conhecê-lo. .. Olhou a água cristalina e convidativa e pensou que ! se tivesse levado roupas apropriadas poderia até aventurar-se a um mergulho. Como se adivinhasse seus pensamentos, Brenden trouxe-lhe o biquíni que deixara a bordo da última vez em que navegara com o pai. — Pensei em mandá-lo para você, mas depois esqueci. Por que não troca de roupa e aproveita o sol? Vanessa não precisou ouvir mais nada. O mar, a saudade, o calor. . . impossível resistir por mais tempo. Brenden ancorou o barco próximo a uma pequena enseada. Um pouco de exercício não lhe faria mal, Vanessa pensava, e aquele lugar era bastante conhecido, não oferecia nenhum perigo. Procurou não se afastar j muito do Júlia, nadando em círculos e vez por outra mergulhando, deliciada. Num determinado ponto a água pareceu-lhe fria demais e Vanessa acelerou as braçadas para se afastar dali. — Venha, Brenden! Isto aqui está divino! Brenden balançou a cabeça. — Eu fico no barco. Contento-me em vê-la feliz! — ele hesitou por um instante em seguida gritou: — Não acha que está exagerando um pouco? Vanessa ria muito, brincando com a água. Estava com saudades do mar, da sensação de frescor e leveza que a água lhe proporcionava. — Preciso aproveitar ao máximo! Não sei quando poderei tornar a nadar! Pouco depois voltou ao barco, e Brenden ajudou-a a subir. — Estou fora de forma. Há algum tempo poderia nadar o dobro sem sentir um só músculo doer. — Ora, não vai passar o resto da vida grávida. Tem muito tempo pela frente para se recuperar. Agora fique aí mesmo. Vou fazer um café para nós. Vanessa espreguiçou-se e deitou no convés. Uma dor aguda começou a espalhar-se em seu ventre e descer pelas pernas. Ela procurou se acalmar. Tinha certeza de que não era nada grave. Quando Brenden voltou, Vanessa procurou manter-se sorridente, mas estava cada vez mais difícil dominar o mal-estar. A cabeça começara a latejar, a visão se tornara turva, parecia que tudo em volta girava. Ao perceber que ela não passava bem, Brenden deixou o café sobre a escada e correu para socorrê-la. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — O que houve, Van? Ela ainda procurava manter a calma, porém seus nervos a traíram. — Brenden. . . é melhor voltar agora mesmo. — O bebê? — Acho que sim. . . Ande depressa, por favor. . . Não levaram mais que vinte minutos para atingir o cais. Brenden tivera o cuidado de pedir uma ambulância pelo rádio e já podia ouvir a sirene. Vanessa não se lembrava de ter estado naquele quarto antes e piscou os olhos repetidas vezes tentando tornar a visão mais nítida. Aos poucos recuperava a memória, vivendo cada segundo de sua agonia. Não fora um pesadelo, e sabia que era tarde demais para arrependimentos. Um movimento brusco ao lado da cama fez com que virasse a cabeça naquela direção para encontrar os olhos azuis que a examinavam, ansiosos. A expressão magoada de Raoul tocou fundo seu coração. — Perdão... — Descanse. Agora não adianta nada pensar no que passou. — Não posso esquecer, não consigo. . . — Temos a vida inteira pela frente, Vanessa. Podemos tentar de novo. Somos jovens e vamos nos recuperar desse duro golpe. Fisicamente, talvez. Vanessa fechou os olhos cheios de lágrimas. Por algum tempo rejeitara aquele bebê, mas nas duas últimas semanas aprendera a esperá-lo com ternura, ele se tornara sua própria identidade. Sentia-se culpada pelo que acontecera. Não fora proposital, mas a falta de cuidado representava agora muito mais que um crime. Raoul jamais poderia entendê-la. Naquele instante, a última coisa da qual queria falar era de substituir o filho que acabara de perder. Ele não conseguiria avaliar a dor e o sofrimento que sentia. — Por quanto tempo terei que ficar neste hospital? — Mais uma noite, apenas. Amanhã cedo, depois que o médico vier vê-la, voltaremos para casa. Casa. Aquela nunca fora sua casa, ela não pertencia àquele lugar. — Estou cansada e com sono. Podemos mais tarde? Raoul deixou o quarto sem dizer nenhuma palavra. Vanessa virou o rosto para a janela. Nunca se sentira tão só em toda a vida. Raoul chegou ao hospital às dez horas da manhã. Vanessa já tinha sido examinada e obtivera alta. Ele a ajudou a se vestir com ar sério e compenetrado. Vanessa ansiava por um gesto seu, um afago, um carinho que aliviasse o pesar que sentia. Nada. Agora, que perdera o título de mãe daquele filho que ele parecia querer acima de qualquer coisa, estava na vida dele apenas formalmente. Sentada no automóvel, ela procurava alguma pergunta para quebrar o silêncio e o constrangimento entre os dois. — Que vamos fazer agora? Não tirando os olhos da estrada, ele respondeu sem vontade: — Sobre o que está falando? Vanessa riu, nervosa. — Estou falando sobre nós dois. O que sugere? O divórcio? — Essa pergunta não faz sentido, Assinamos um papel e vamos respeitá-lo. Podemos ter outros filhos. — Não quero outros filhos. Já sofri bastante. — Vai superar. Da próxima vez cuidarei para que se comporte bem até o fim. Vanessa suspeitava de que mais cedo ou mais tarde Raoul a acusaria. — Acha que fiz tudo de propósito, não é? — O que mais se resta pensar? Nunca a senti muito entusiasmada com relação ao bebê. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Como pode dizer isso? — Foi a impressão que me deu. — Pois está enganado. Apenas achava que só tinha se casado comigo por causa da criança. Não faz muito bem para a cabeça, sabia? — Vanessa, há algum tempo venho alimentando esperanças de que o nosso casamento seja um sucesso. Ainda penso que temos chance. — Quer dizer, se eu lhe der um filho? — Não posso negar que o desejo. — E se eu não puder mais? — Pouco provável, tendo em vista a facilidade com que engravidou desta vez. —- Ele fez uma pausa quase solene antes de prosseguir. — Vamos dar tempo ao tempo. De nada adiantaria continuarmos com esta discussão. Ele estava certo. Mais tarde, quando o efeito avassalador do trauma por que passara fosse coisa do passado, saberia convencê-lo a aceitar o divórcio como única solução para aquela situação que começara por descuido. Em casa, Kalani a cercou de todas as atenções e cuidados. Vanessa agradecia-lhe em silêncio. Tudo o que precisava naquela fase dura era de carinho, muito carinho. Quando Raoul anunciou-lhe que precisaria voltar para o escritório, não se surpreendeu. Não existia motivo para que permanecesse ao seu lado. Em outras circunstâncias, se fossem um casal de verdade, aí sim, precisariam um do outro. .. Simone a chamou ao telefone, e Vanessa atendeu um pouco mais animada. Ainda tinha uma amiga, sincera e atenciosa, com quem poderia dividir seu infortúnio. Com a incrível e sábia perspicácia que possuía, a outra mulher percebeu na voz de Vanessa o peso da culpa e se apressou em tentar confortá-la. — Nada disso, mocinha. Você não é a primeira mulher que perde um bebê. Não poderia imaginar que um simples mergulho acabasse por interromper-lhe a gravidez. Da próxima vez. . . — Não quero ouvir falar em próxima vez! Simone, isto não é o mesmo que substituir uma boneca ou um ursinho de pelúcia! — Meu anjo, também perdi meu primeiro filho em condições muito semelhantes. Posso avaliar o que deve estar sentindo, mas precisa reagir. E não conheço outra maneira melhor do que tratar de engravidar de novo. Vanessa sentiu-se um pouco mais calma depois de ouvir aquelas palavras. Agira como se fosse a única, a primeira e derradeira pessoa a passar por um problema daqueles. Agora havia alguém bem próxima para ajudá-la, mas, ainda assim, no seu caso havia um agravante. — Simone, o seu casamento aconteceu em bases absolutamente normais, é diferente. Você e Pierre se amavam e a perda de um filho em nada modificou o amor que sentiam um pelo outro. Raoul só quer um filho e nada mais! — Tenho a ligeira impressão de que está enganada. Raoul precisa de amor como qualquer outro homem sobre a face da terra, e não estou falando apenas do aspecto físico. Ele não é um animal, Van. Da última vez que os vi juntos senti vibrações muito positivas. Acho que vocês dois têm todas as chances do mundo! Vanessa sentiu outra vez os olhos se encherem de lágrimas. Chances. Todas as chances. Pelo menos uma tinha sido eliminada. O seu bebê não existia mais. ..

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe CAPÍTULO IX Após o jantar, Raoul recostou-se na cadeira e estudou a fisionomia desanimada de Vanessa, que não tirava os olhos do prato à sua frente, sem sequer fazer menção de tocar na comida. Lastimável. O estado de prostração em que aos poucos se afundava era desesperador. Nada parecia capaz de trazer-lhe de volta a alegria, e seu sorriso se tornara amargo, raro. — Preciso ir a Tóquio e vou ficar por alguns dias. Gostaria que fosse comigo, Vanessa. — Por quê? — Por que não? Não acredito que a viagem mude seu estado de espírito, mas pelo menos estaremos juntos. Pode ajudar. Ela não acreditava. Nada nem ninguém poderia ajudá-la a sair do marasmo em que mergulhara. Ainda dividia com Raoul o mesmo leito; no entanto, ele não passava de um estranho em sua vida. Uma viagem àquela altura não modificaria nada. — Quando vai partir? — Amanhã de manhã, bem cedinho. Quando acordar já estarei longe. Aquilo também não era verdade. Nos últimos tempos bastava um leve ruído e todo seu corpo estremecia. Talvez ele nem tivesse percebido que todas as manhãs o via levantarse, vestir-se e sair para o trabalho. Apenas não tinha ânimo para lhe dizer bom-dia. Quanto menos o visse, quanto menos se falassem, melhor para sua dor. — Desejo-lhe uma boa viagem e bons negócios. Ele sorriu, sarcástico. — Tem tanta certeza assim de que viajo a negócios? — A menos que esteja precisando de uma gueixa, não vejo outro motivo para essa viagem inesperada. — As gueixas não fazem o tipo de serviço que você tem em mente, sabia? Além do mais, não sou a espécie de homem que paga para ser amado. — Ora, então mudou de idéia a meu respeito. Quando nos casamos chegou a me acusar de andar atrás do seu dinheiro, está lembrado? — Também sou capaz de cometer erros, Vanessa. — Agora ele falava num tom sério. — Pensa que eu não sei que fugiria de mim no momento em que lhe devolvesse seu passaporte? Por que acha que o mantenho guardado a sete chaves? Você só o terá de volta quando me der um filho. — Duvido que me deixasse escapar depois disso. — Bem, na verdade não teria como retê-la, embora prefira que fique conosco. Uma criança precisa muito da mãe. — Bem mais do que você precisa de uma esposa. — Às vezes sinto que lhe falta um pouco de obstinação. Não vejo em você o menor indício de apego ao nosso casamento. Em certos momentos, sinto-a como um peixe fora d'água. Por que não se dá uma chance de recomeçar? Ela se virou e fixou o olhar em algum ponto indefinido. Por um instante, reviu os dias passados em Royale, quando jamais poderia prever a agonia, os dias terríveis que teria pela frente. Se lhe fosse possível ter o mais leve pressentimento do que lhe aconteceria, talvez tivesse evitado a aproximação com Raoul. — Às vezes tenho a sensação de que não poderei deixar você me tocar outra vez. Isso torna as coisas mais difíceis, não acha? — Ela afastou a cadeira. — Está ficando frio aqui fora. Vou tomar meu café lá dentro. Raoul não a seguiu, e pouco depois das dez horas ela decidiu recolher-se. Como acontecia toda noite, Vanessa trocou de roupa, lavou o rosto e se enfiou debaixo das cobertas para fingir que dormia quando ele chegasse. Talvez Raoul nem se importasse, mas para ela as coisas ficavam mais fáceis desse jeito. Passava da meia-noite quando ele abriu-a porta do quarto. Vanessa escutava seus movimentos habituais e lembrava-se do sem-número de vezes em que haviam tomado Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe banho juntos antes de dormir, misturando paixão e alegria enquanto se ensaboavam. Eram lembranças vividas em sua memória. Contudo, ainda que se levantasse naquele exato momento e caminhasse para os braços de Raoul, não seria como antes. A luz se apagou e Vanessa sentiu o movimento do colchão; Raoul tinha se enfiado sob os lençóis, abraçando-a, trazendo-a para junto de si. Estava nu. — Não! — Vanessa tentou desvencilhar-se daquele abraço, empurrando o corpo dele. — Não resista. Esta é a única maneira que conheço de quebrar o gelo entre nós. Raoul a beijava nos ombros, na nuca, sob as orelhas, sussurrava-lhe coisas que ela não entendia e nem precisava entender. Aos poucos vencia-lhe todos os temores, as dúvidas, a sensação de desamor que construíra sem querer. Vanessa entregou-se ao sabor daqueles beijos cálidos que lhe arrebatavam a alma e deitavam por terra toda sua vontade de resistir. Ao acordar na manhã seguinte, ele já se fora. Ela arrependia-se agora de não tê-lo seguido; toda sua insegurança vinha à tona naquele instante. Não importava o quão maravilhosa tivesse sido a noite, a doçura de ter adormecido nos braços dele. Agora, à luz do dia, podia raciocinar com frieza, e chegava à conclusão de que o marido a usara mais uma vez com a única intenção de atingir seu objetivo principal: um filho. Por que então deixara que acontecesse? Por que permitira que ele a tratasse como a uma máquina, parte da engrenagem de seus planos, de seus sonhos? A resposta estava lá, bem ao seu alcance. O fato é que, a despeito de tudo, ela o amava cada dia mais, desesperada-mente, e qualquer que fosse o pretexto para tê-lo ao seu lado a faria ceder, fosse qual fosse o preço. Pela primeira vez desde o acidente sentiu-se motivada a nadar, e desceu até a piscina. Kalani a viu passai em trajes de banho e sorriu, compreensiva. Ela tomava sol, distraída, quando um dos empregados a chamou para atender ao telefone. Vanessa vestiu a saída de banho e correu até o salão. Era Brenden. Sua voz soava estranha e distante. — Há alguma chance de dar uma escapada até aqui? Tenho uma surpresa para você. — Não pode falar por telefone? — Já lhe disse, é um surpresa. Terá que vir até aqui para vê-la. Se quiser me dar a honra, posso preparar alguma coisa para o almoço — ele fez uma breve pausa. — Van, não está me culpando pelo que aconteceu, está? — Ah, não! A culpa foi toda minha... — Então, você vem? Recusar-se significaria magoá-lo, reforçar aquela idéia louca de que ela o culpava de alguma forma. Talvez ele apenas quisesse mostrar-lhe o certificado de propriedade do Júlia, o qual deveria ter-lhe sido entregue por aqueles dias. Na certa queria agradecer-lhe. Melhor satisfazer aquele pequeno desejo. Além do mais, se partisse da Nova Caledônia, provavelmente jamais tornaria a encontrá-lo. — Estarei aí em meia hora. Brenden a aguardava, como sempre, sentado à beira do cais, com seu eterno jeans e o velho e luminoso sorriso nos lábios. — Está com uma aparência ótima, melhor do que eu esperava. — Não posso ficar por muito tempo, Brenden. Prometi fazer uma visita a Simone Renaud antes de voltar para casa. — Não vamos demorar muito. — Ele a puxou pela mão para dentro do barco. — Vamos descer até a cabine. A escada era estreita e exigia atenção na descida. Vanessa só se deu conta de uma terceira pessoa a bordo ao ultrapassar o último degrau. Por um breve momento, ficou imóvel, estarrecida, a cabeça confusa. — Oi! Você não mudou muito. Vanessa precisou se controlar para não rir. Se ele soubesse como ela se transformara Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe desde que o deixara em Heathrow, na Inglaterra. . . — Ora, viva! Há quanto tempo, Michael! — Demoraria mais se pudesse imaginar o tipo de notícias que teria de você ao chegar. Pensei que tivesse resolvido ficar em Noumea por causa de seu pai, e ao chegar soube que ele está morto e que você se casou. Por que não me contou antes? Ela não sabia o que dizer, seus olhos procuraram por Brenden, como se pudesse esperar alguma ajuda do amigo. — Michael.. . não sei o que dizer, não tenho nenhuma desculpa aceitável. Apenas. .. como não respondeu à minha carta, julguei que tivesse decidido me esquecer e. . . — Não respondi porque àquela altura sabia que era inútil tentar convencê-la a mudar de idéia. Conheço bem a sua teimosia e achei que o melhor seria dar tempo ao tempo — ele sorriu com tristeza. — Na verdade, pensei em vir até aqui na primeira oportunidade e levar você e o seu pai para a Inglaterra. Estou aqui por isso. — Sinto muito, Michael, muito mesmo — ela sabia que isso em nada o ajudava e baixou os olhos, confusa. — O que está feito não dá para mudar, não é, Van? — Michael buscou as mãos de Vanessa e as manteve entre as suas. — Agora, já que estou aqui, pelo menos conte-me tudo sobre essa vida nova. Vanessa não se dera conta de que Brenden os tinha deixado a sós. Ela não sabia o que dizer e tudo o que desejava era fugir dali, furtar-se a dar explicações que não ajudariam em nada a aliviar a dor que lia nos olhos de Michael. — Suponho que Brenden já lhe tenha contado os fatos principais. Não espero que me compreenda, mas. . . aconteceu, eis tudo. — Esse homem, seu. .. marido, como foi que conseguiu seduzi-la? — Michael. . . digamos que. . . — ela emudeceu, confusa. — Nós dois nos seduzimos, é isso. Michael olhou-a de lado, incrédulo. — Levei meses para convencê-la a ficar comigo. Está me dizendo que foi de livre e espontânea vontade para a cama com um homem que mal conhecia? —- ele balançava a cabeça de um lado para o outro, inconformado. — Além do mais, sei que ele é bem mais velho que você e portanto deve ter bem mais experiência. Por que não tomou precauções para impedir aquela gravidez fora de hora? — Pelo mesmo motivo por que você jamais se importou com isso. Ele pensou que eu havia tomado as precauções. Mesmo com a revolução sexual, não é a mulher que ainda tem que se preocupar? Michael passou as mãos pelos cabelos. Parecia chocado. — Por que simplesmente não voltou para mim? Ela arregalou os olhos, admirada. — Com o filho de outro homem na barriga? — Se me dissesse que era meu eu acreditaria -— ele deu de ombros. — Mas agora isso não faz a menor diferença. Brenden me disse que perdeu a criança. — É verdade, mas ainda estou casada com Raoul. — Pode se divorciar. — E se eu não quiser? Ele a examinou por um instante, intrigado. — Entendo. . . Não está a fim de desistir dessa boa vida, não é? — Está me ofendendo, Michael. Você me conhece o bastante para saber que não sou movida a dinheiro. Raoul quer um filho e... . — E você acha que deve isso a ele? — Michael pôs as duas mãos sobre os ombros frágeis de Vanessa. — Ouça, o assunto é sério, estamos falando de sua vida. Esse homem não a quer! Ela lhe dirigiu um olhar cheio de dor e de mágoa. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Como pode ter tanta certeza? Michael deixou que as mãos caíssem ao longo do corpo. Parecia cansado, como se soubesse estar ferindo o coração daquela a quem amava com loucura e a quem, a despeito de tudo, tinha de proteger. — Ele não estava ao seu lado quando Neal morreu. Não está com você agora que perdeu seu filho. Reconheço que teve a coragem de assumir uma grande responsabilidade junto a uma mulher que mal conhecia, mas está se valendo do seu sentimento de culpa para realizar os próprios sonhos de paternidade. Isso é no mínimo indecente! Se ele quer um filho, pode consegui-lo com dezenas de outras mulheres! — Mas só eu uso o nome dele, Michael! — Vanessa enxugou os olhos. — Não quero ouvir mais nada sobre o que você acha dos sentimentos do meu marido. E agora escute bem: não quero me divorciar de Raoul! Michael sentou, estarrecido. — Só estou preocupado com a sua felicidade, Vanessa! Não posso permitir que seja usada dessa maneira! — Pois terá que admitir isso. Não gostaria de magoá-lo, Mike, eu o considero muito. Mas essa é a minha vida e só eu tenho o direito de decidir sobre o que devo fazer. Agora, preciso ir. Até outro dia! Vanessa subiu as escadas correndo. Brenden estava lá em cima, sentado sobre a proa, e, pelo seu olhar apreensivo, tinha ouvido tudo o que se passara. — Brenden, convença-o a voltar para mais rápido possível. — Duvido que o consiga. Ele está disposto seguir comigo em um cruzeiro até as ilhas Fiji. — Pois faça-o desistir dessa idéia maluca. Mike não pode se dar ao luxo de ficar afastado do trabalho por tanto tempo. Posso imaginar o quanto já gastou com essa viagem louca. Brenden aproximou-se dela, devagar, e a encarou, tristonho. — Está zangada porque a fiz vir até aqui? — Não. Teria que enfrentá-lo mais cedo ou mais tarde. Melhor que tenha sido longe de casa. — E Raoul? — Ele está em Tóquio, mas não é por muito tempo. Uma cena como a que você acabou de ouvir perto de Raoul não seria nada agradável. Até qualquer dia. Vanessa afastou-se do barco sem olhar para trás. Brenden a seguiu com os olhos, preocupado, até que sua silhueta desaparecesse no cais. Não podia imaginar os tormentos pelos quais aquela garota, antes tão alegre e extrovertida, passava naquele momento. Ela permaneceu por alguns minutos parada, dentro do carro esporte que ganhara de presente. Por sua fisionomia amargurada passavam pensamentos confusos, desencontrados. Sim, podia viver sem todo aquele conforto, desde que tivesse Raoul a seu lado. Era capaz de qualquer sacrifício pelo amor daquele homem. A própria liberdade, por que tanto lutara, ia sendo esmagada bem diante de seus olhos, sem que tivesse forças para defendê-la. Valeria a pena pagar um preço tão alto por um castelo de gelo? Os dias passaram depressa, sem que Raoul desse notícias. Não que Vanessa esperasse uma carta ou mesmo um telefonema. Sabia que não significava mais que uma ponte entre ele e o filho pelo qual ansiava, nada além de um solo fértil onde plantaria sua semente. No entanto, no dia previsto para a volta do marido acordou mais animada. Queria recebê-lo sem tensões, tranqüila, e quem sabe dar a impressão de que aquela ausência não a abalara demasiado. O pensamento de Vanessa voltou-se para Michael. Admirava a tenacidade do ex-noivo. Ele a amava sem restrições, sem barreiras. Não se lembrava de ter sentido em seus Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe braços a terça parte da emoção que encontrara com Raoul. No entanto, Michael significava a realidade, a certeza de viver com os pés no chão. Ele lhe oferecia tudo em troca de quase nada, e talvez não fosse tarde demais para voltar atrás. Se decidisse partir com ele, Raoul não teria como impedi-la. Ao cair da tarde ele chegou, sombrio, taciturno. Vanessa não teve coragem de quebrar o silêncio e ficou a observá-lo, também calada. A despeito das muitas diferenças que haviam crescido entre eles, jamais sentira falta de diálogo, e agora precisava esforçar-se para não perguntar os motivos da preocupação que lia nos olhos azuis. Depois do jantar, enquanto aguardavam o café na varanda, Raoul suspirou, aflito, chamando a atenção de Vanessa, que virou o rosto para ele, ansiosa. — Estive pensando muito durante a viagem, Vanessa. Acho que estou cometendo uma injustiça com você e com nós dois. Não podemos partir para uma nova tentativa de ter um filho sem nos darmos chance de um tempo só nosso. Se não for tarde demais. .. — Não é! — um estranho calor percorreu o corpo dela. — Ainda não estou grávida. Raoul sorriu, um tanto malicioso. — Talvez eu não seja tão. . . Afinal, isso facilita muito as coisas. Que tal se passássemos uma ou duas semanas juntos, só nós dois, na ilha? Na ilha. Onde toda aquela insana história tinha começado. Os olhos de Vanessa iluminaram-se, esperançosos. — Eu. . . adoraria. Quando poderemos partir? — Dentro de poucos dias, o tempo suficiente para que eu termine os negócios que iniciei em Tóquio. Quero afastar-me daqui sem preocupações. Desligaremos o telefone e ficaremos absolutamente isolados de tudo e de todos, que tal? — Só nós dois em Royale. — Ela fixou os olhos verdes no rosto excitado de Raoul. — Mas por que só agora tomou essa decisão? — Porque descobri dentro de mim uma enorme vontade de começar de novo, Vanessa. Desta vez, tem que dar certo! Não era exatamente uma declaração de amor, mas agora havia uma grande possibilidade. Ela saberia esperar. Seu sonho mais secreto começava a adquirir as cores da realidade. No dia seguinte Vanessa despertou com o toque do telefone. Simone desejava dar as boas-vindas a Raoul e os convidava para jantar. — Somente nós quatro, sem formalidades. Diga a Raoul que espero que ele não tenha esquecido o quimono que me prometeu. Vanessa transmitiu-lhe a mensagem e ele tirou o aparelho de sua mão. — Esqueci, Simone. Não fui capaz de me lembrar sequer de trazer um presente para minha esposa! Vanessa sorriu e esperou que ele desligasse. — Melhor assim. Significa que não estava com a consciência pesada. — Ei! Que história é essa de consciência pesada? — Falamos tanto de gueixas antes de sua partida, lembra-se? — Ah, sim, mas só dormi com duas. Não eram tão excitantes como se costuma falar. Os dois riram juntos e pelo resto do dia brincaram um com o outro, como dois grandes e inseparáveis amigos. Menos mal, Vanessa pensava. Enfim, sentiam-se j mais próximos. Estava em suas mãos transformar aquele jogo em coisa mais séria. A hora marcada para o jantar dos Renaud chegava, Vanessa admirou a própria imagem refletida no espelho, enquanto Raoul a enlaçava por trás e a beijava na nuca. Talvez jamais viesse a despertar nele o êxtase que a beleza de Crystal lhe provocava, mas ela percebia I nos grandes olhos azuis do marido que sua beleza dei traços simples causava-lhe um encanto especial. — Vamos embora, Vanessa, são quase oito horas. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Simone aparentava uma alegria exagerada e durante j quase toda a noite manteve segredo sobre o motivo daquela felicidade transparente. Somente após o jantar, quando Raoul e Pierre saíram a passeio pelo jardim, ela se dispôs a desvendar o mistério. — Obtive o resultado do teste de gravidez que fiz no dia em que você perdeu o bebê. Infeliz coincidência. Não lhe disse antes para não entristecê-la. Agora, que parece recuperada do choque, julguei que era hora dei saber da novidade. — Estou feliz por você. — Vanessa era sincera e intimamente agradecia à amiga por tê-la poupado durante I a crise por que passara. — Para quando é? — Março — Simone sorriu. — Se forem gêmeos! outra vez, Pierre vai querer parar por aqui. Por mim gostaria que fossem dois meninos: poderiam fazer companhia a Christian — ela dirigiu a Vanessa um olhar I malicioso. — Talvez ainda possamos fazer companhia uma à outra, hein? — Não sei. .. estamos resolvidos a esperar um pouco mais. Precisamos de tempo para nos conhecer melhor, não acha? Quase meia-noite. Raoul estacionou o carro em frente à varanda e ajudou Vanessa a descer, saindo com ela de mãos dadas em direção à casa. Pareciam um casal de namorados. — Raoul, podíamos tomar um vinho antes de subir. — Ora, viva! Comemoramos algo? — Bem. . . podemos comemorar nossos votos de um feliz recomeço, ou. . . o fato de termos sido convidados para padrinhos do bebê de Simone e Pierre. — Não acha que ainda é cedo para isso? Mas, afinal, quem precisa de um motivo para tomar vinho ao luar, quando se tem uma bela mulher como companhia? Por trás do bar do salão, Raoul notou que a luz do escritório estava acesa. Kalani costumava verificar as luzes toda noite antes de se recolher. Teria esquecido daquela vez? — Por que não prepara um copo para mim também, Raoul? Podemos comemorar a três, será mais divertido. Ao ouvir aquela voz, Vanessa virou-se bruscamente, a tempo de encontrar o rosto pálido de Raoul, que reagia com espanto à presença inesperada de Crystal. — Talvez devesse servir um cálice duplo para sua esposa, meu caro. — A voz da moça era fria, cortante. — Ela vai precisar disso quando acabar de ouvir o que tenho a revelar. — Raoul! — Vanessa parecia tensa, como se adivinhasse o que viria a seguir. — Do que ela está falando? — Parece que lhe farei uma surpresa, querida. — Só então Crystal desviou os olhos do rosto de Raoul, para fixá-los em Vanessa. — Acho que ele ainda não teve coragem para lhe contar que passamos todo esse tempo juntos em Tóquio. Há apenas quarenta e oito horas nos separamos, não é, meu amor? CAPÍTULO X Raoul procurava manter-se calmo, apesar da surpresa. Teve vontade de correr até Vanessa, abraçá-la e protegê-la. No entanto, precisava controlar-se e dominar a situação. Conhecia bem demais os instintos agressivos de Crystal e sabia do que ela seria capaz para defender os próprios interesses. — O que prefere beber? — O de sempre — Crystal mantinha a mesma postura fria e calculista com que entrara na sala. — Você conhece todas as minhas preferências. Sem pressa, medindo cada gesto, Raoul colocou duas pedras de gelo num copo e o encheu de gim e tônica. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Eu devia ter previsto que faria uma cena como esta mais cedo ou mais tarde. — Você me obrigou a isto! — Por um breve instante ela deixou-se levar pela emoção. — Como esperava que eu me sentisse? — Você quis correr o risco. Fui tolo o suficiente para acreditar que tudo havia ficado claro entre a gente. — Seu canalha! Você me usou, Raoul. Você. . . — Parem com isso! — Vanessa gritou, incapaz de suportar por mais tempo aquele diálogo infame. — Por favor, me poupem dos detalhes sórdidos dessa história. — Ela olhou com ódio para Raoul. — Apenas me responda: por que não me contou antes? — Prefiro discutir esse assunto a sós com você. Por enquanto, acho que este vinho lhe fará bem. Ele estendeu-lhe o cálice, com o olhar ansioso. — Não aceito mais nada de você e não quero ouvir nenhuma explicação. Resolvam isso entre vocês. Vou deixar esta casa agora mesmo. Raoul a impediu de sair, colocando-se à sua frente. — Agora não, Vanessa. Primeiro, vamos conversar só nós dois. — Nada do que me disser poderá mudar o que fez, Raoul. Não estou interessada em suas desculpas. Vocês nasceram um para o outro, isto é óbvio. Sou eu quem está sobrando nessa história. Crystal aproximou-se deles com unia expressão acusadora no olhar. — Você roubou o que era meu uma vez, e eu lhe paguei na mesma moeda, queridinha. Agora estamos quites! Vanessa os deixou ali mesmo e subiu as escadas, apressada. Tudo o que ela mais desejava naqueles momentos terríveis era sumir daquela casa e da vida de Raoul. Chamaria um táxi e fugiria para o hotel mais próximo. Não precisaria de muitas roupas, apenas o necessário para alguns dias. Providenciaria para que o restante de sua bagagem lhe fosse entregue mais tarde, mesmo porque não havia muito o que levar. Todos os presentes que Raoul lhe dera ficariam exatamente onde estavam. Quanto menos motivos para lembrar-se dele, melhor. Antes que fechasse a valise, Raoul abriu a porta do quarto. — Vai ter que me ouvir, Vanessa! Não posso permitir que continue com idéias erradas na cabeça. — Você não tem escolha, meu caro. Há um táxi à minha espera, lá embaixo. — Ele pode esperar. Vai ser pago por isso. Sente-se. — Prefiro ficar de pé. Vamos acabar com isso de uma vez por todas! Raoul caminhou vagarosamente pelo quarto, com a visível intenção de ganhar tempo. Depois de acomodar-se sobre a cama, cruzou os braços sob a cabeça e fixou os olhos no rosto pálido de Vanessa. — Meu encontro com Crystal em Tóquio não foi planejado. Tudo o que fiz foi contar-lhe sobre a viagem e nada mais. — Quer dizer que manteve contato com ela durante todo esse tempo? — Não foi bem isso. De vez em quando a gente se viu.. . Seria muito difícil expulsá-la da minha vida depois de tantos anos. Lembra-se do que me disse a respeito de Brenden? Pois é, e você só o conhece há alguns meses.. . Vanessa o desafiou com o olhar. — Trocando em miúdos, Raoul, sejamos francos: o que você não consegue é expulsála de sua cabeça! Pensando bem, não posso culpá-lo. Afinal, fui eu mesma quem começou esse equívoco, acenando com um bebê quando você menos esperava. O que não posso entender é por que não me deixou seguir o meu caminho quando eu estava decidida. Crystal é tão capaz de gerar seus filhos quanto eu. — O fato é que não consigo vê-la nesse papel. Eu a conheço bem. — Raoul sentou-se e encolheu as pernas. Nem por um momento tirava os olhos de Vanessa, como se não Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe quisesse perder nenhum de seus movimentos. — Propus casamento a Crystal num momento de fraqueza, e depois que ela aceitou percebi que cometera um erro, mas era tarde demais. Um homem que se preza não retira um pedido de casamento assim sem mais nem menos. Só me restava esperar que estivesse enganado a respeito do caráter dela. Quando Pierre me contou que você estava grávida, percebi que era a minha chance. E, além do mais, eu não a deixaria partir levando o filho com que eu tanto sonhava. — E se eu tivesse concordado com aquela sua proposta absurda de adoção? Teria mantido sua palavra com Crystal? — Talvez sim, naquela época. Só depois percebi o quanto Crystal herdara do temperamento da mãe. — O que, afinal, não muda nada o fato de ter tirado umas boas férias com ela em Tóquio. Raoul baixou os olhos, constrangido. — Todos nos cometemos erros, Vanessa. Na viagem de volta entendi que meu destino era ao eu lado; uma mulher de verdade, honesta e íntegra. Crystal não significa nada para mim, jamais significou. — Quando foi que chegou a essa conclusão? Antes ou depois que fizeram amor? — Não fizemos amor. — Pois não é o que parece, a julgar pela segurança com que ela me disse que o roubou de mim. — A verdade é que ela quer que você pense assim. Acha que está se vingando e afinal devo agradecer a ela por ter-me aberto os olhos. Crystal só se interessa por si mesma. Sempre foi assim. — Chego à conclusão de que eu é que devo agradecer a ela, por me dar a oportunidade de enxergar o óbvio. Você, Raoul, não passa de um homem vulgar que se deixa envolver apenas pela beleza física de uma mulher. — A voz de Vanessa saía impregnada de sarcasmo. — Posso ter sido ingênua, mas não sou estúpida. Você na certa pensou que poderia ficar com as duas, não é mesmo? Eu faria o papel de esposa fiel e leal, a mãe de seus amados filhinhos, enquanto você desfilaria por aí com sua linda e esplendorosa amante. Raoul tornou-se pálido e seus olhos se arregalaram ante a explosão de Vanessa. Mas a voz manteve-se imperturbável. — Se essa é a opinião que tem a meu respeito, creio que não há mais nada a dizer. — Ótimo! Vai me deixar sair agora? — Não a estou impedindo, estou? Vanessa abaixou-se para apanhar a valise e saiu do quarto, em silêncio. Crystal ainda estava na sala, deitada sobre o sofá, o eterno sorriso cínico preso aos lábios. — Já vai tão cedo? Que pena, nem tivemos tempo de conversar um pouco. . . Ao fechar a porta, Vanessa respirou fundo como a buscar forças para superar mais uma perda. Melhor assim. Ela não pertencia àquele mundo de falsos brilhos. O táxi a aguardava, com os faróis acesos, do lado de fora do imenso jardim. Caminhou devagar, cada passo era uma distância imensa que a afastava daquela casa e do homem que amava com desespero. Na sala de estar do hotel, Vanessa aguardava que a arrumadeira terminasse de limpar o quarto. Michael se aproximou, sorridente. Estava mudado, as faces rosadas, um ar de tranqüilidade que só os homens do mar possuem. Em Noumea, ele se transformara. — Soubemos das notícias, Van. O que foi que houve? — Prefiro não falar sobre o assunto, se não se importa. O sorriso de Michael se desfez como por encanto. — Pelo menos pode me dizer se é irreversível? — Creio que sim. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Sabe que terá que esperar três anos para obter o divórcio? Três anos para desfazer um casamento que não durara mais que um mês e meio. Parecia inacreditável. E muito doloroso. Vanessa desejava afastar Raoul de sua vida o quanto antes, para não sofrer mais, para esquecer aquela dor que a corroia por dentro, a mágoa que quase não a deixava respirar. — Ainda terei que ir buscar o resto de minhas coisas. — Posso fazer isso por você. — Raoul nem sabe que você está em Noumea. — Então está mais do que na hora de saber. Tanto melhor, Vanessa pensou. Se pudesse sair da cidade sem ter que se encontrar outra vez com o marido, ficaria muito mais tranqüila. Ele ainda guardava o passaporte dela, e Vanessa precisaria do documento para partir. Se Michael o conseguisse de volta, tomaria o primeiro avião para a Inglaterra. Ainda não sabia o que ia fazer depois, mas o futuro era uma outra história, uma página em branco pronta para ser preenchida. — Brenden está louco para vê-la, Van. Por que não vem comigo até o barco? Vanessa assentiu com um gesto de cabeça. Não tinha por que se recusar. Estava só, nada tinha para fazer. Pouco depois do almoço, Michael se dispôs a ir até a casa de Raoul DuTemple. — Mas não precisa ir hoje. — Quanto mais cedo, melhor. Agora que está em companhia de Brenden, posso ir sossegado. — Obrigada, Michael. Eu não mereço você. — Concordo, mas ainda não conheci ninguém à minha altura, sabia? — Ele sorriu com um ar maroto, antes de subir as escadas da cabine. Vanessa o acompanhou com o olhar até que desaparecesse. Se ao menos pudesse amá-lo, e tivesse escolha, tudo seria tão mais fácil. . . Michael era um homem simples, agradável, humano. . . mas ela se sentia incapaz de se apaixonar de novo. Brenden se aproximou de Vanessa e pôs o braço sobre seu ombro. Sabia que era impossível consolá-la, no entanto pensava em distrair-lhe a atenção. — Veja só, meu destino é ficar sem amigos. Nem bem consegui um novo companheiro e já vou perdê-lo. — Michael? — Ele mesmo, e você, é claro. Havíamos combinado um cruzeiro juntos antes que tudo isso acontecesse, mas agora. . . — Ele pareceu se iluminar de repente. — Van, por que não viajamos os três, hein? Aposto que lhe fará um bem enorme. Longe de Noumea, longe do passado, uma aventura fica em experiências, que tal? Ela não compartilhou do entusiasmo de Brenden e esboçou um sorriso apenas para não decepcioná-lo. Depois disso, tomou a direção da escada e subiu devagar, com a alma em pedaços. Três horas depois Michael voltou carregando duas malas. Vanessa examinou-lhe a expressão, ansiosa. — E então? — Quase consegui convencê-lo a me entregar o passaporte, mas na última hora ele mudou de idéia. Disse que só o entregará a você mesma. — Disse a ele quem você é? — Ele não deu ouvidos às minhas palavras. Tudo o que queria era saber onde você estava. — Ora, ele tem meios para descobrir o paradeiro de qualquer pessoa nesta cidade, parece brincadeira. — Ele esteve no hotel e não a encontrou. — Michael franziu a testa, com ar preocupado. — Para ser sincero, Raoul não é o tipo de homem que eu esperava enconProjeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe trar. Tem certeza do que está fazendo, Van? — Está me sugerindo que volte para ele? — Só estou dizendo que deve pensar bem antes de tomar qualquer atitude, para não se arrepender depois. Pelo que pude observar, a preocupação de seu marido é verdadeira. Ela ficou em silêncio por um momento, consciente do tumulto que aquelas palavras lhe causavam. — Reparou se havia uma moça loira por lá? — Não vi ninguém. . . Foi ela a causa de toda essa confusão? Vanessa inclinou a cabeça, pensativa. — É a. irmã de Raoul, quer dizer, filha da madrasta dele. Eles iam se casar antes que eu aparecesse. — Sei.. . Então ele não está completamente errado. Bem, nós conversamos na biblioteca enquanto os empregados arrumavam as coisas para eu trazer. Muito civilizado, não acha? Mas Vanessa já não achava mais nada, seus pensamentos estavam bem longe dali. — Ele não pode reter meu passaporte. Devia haver algum meio legal de reavê-lo... — Duvido que a essa altura ele se preocupe com leis. Tudo que ele quer é mantê-la na cidade, ao alcance de suas mãos. Raoul está desesperado. Vanessa tornou a encarar Michael, intrigada. — Parece mentira. .. Há alguns dias você queria me convencer a deixá-lo, e agora torce por ele? — Há alguns dias sofri um golpe terrível. De lá para cá, tive tempo de sobra para clarear as idéias. — E a que conclusão chegou? Ele afagou os cabelos de Vanessa com suavidade. — Quero que seja feliz, Van... Se eu tivesse a menor esperança de vê-la contente ao meu lado, acredite, lutaria até o fim. Mas não posso dar a você nem a metade do que ele pode. Tenho que me render às evidências. — Dinheiro não é tudo na vida, Mike. — É mais do que dinheiro, Van — ele pareceu hesitar. — Por que não se dá mais um tempo, hein? Podemos ir até Fiji com Brenden, e, se até lá você não desistir de voltar para a Inglaterra e retomar aquela mesma vidinha que tínhamos, então terei prazer em acompanhá-la. Detesto vê-la ferida por uma coisa que pode não passar de um equívoco. Ele sorriu quase sem querer. — Parece que os mares do sul operaram um milagre em você. — Pode ser. Mas no meu entender é duro viajar tanto para voltar com você em pedaços ao meu lado. Quero vê-la inteira, como sempre. Desde que Brenden tocara no assunto a idéia a tentava. Seu país estaria lá, à espera, pronto para acolhê-la outra vez, mesmo que se passasse um século. Michael parecia animado com a viagem... Por que se negar a viver uma experiência que talvez a ajudasse a superar aquela crise? — Está bem, Mike. Amanhã falaremos sobre isso, agora preciso voltar ao hotel e dormir um pouco. Quase às nove da noite, depois de jantar, Vanessa subiu para o quarto disposta a avaliar os planos de viagem. As perspectivas não lhe pareciam de todo más. O mínimo que poderia esperar seria sentir-se menos sozinha ao lado de duas pessoas que só lhe queriam bem. Duas leves batidas na porta a despertaram dos devaneios. Vanessa correu a abri-la, julgando que se tratasse da arrumadeira para trocar as toalhas'. Ao se deparar com Raoul, ali à sua frente, sentiu um aperto na garganta que a impediu de emitir qualquer som. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe Ele entrou, antes que ela se recuperasse do choque. O suéter azul refletia a cor daqueles olhos ansiosos. — Estive aqui duas vezes mas não tive a sorte de encontrá-la. Acabo de vir do cais. Vanessa se recompôs da melhor maneira que conseguiu. — O que você quer? — Conversar. — Ele examinou o quarto com ar de desaprovação. — Não conseguiu nada melhor para alojar-se na cidade? — Não é necessário, é por pouco tempo. Sobre o que deseja falar? — Quero que volte para casa. Crystal foi embora hoje pela manhã. Ela não voltará mais. — Ah, sei. Então pensa que isso resolve tudo? — Pelo menos ajuda. — Santa ingenuidade! Isso não elimina o fato de terem passado uma semana juntos em Tóquio. — Já lhe contei tudo o que aconteceu em Tóquio. — É, contou. Não acreditei em você naquela hora e ainda não mudei de idéia! Ele pareceu furioso. — Sabia que posso obrigá-la a vir comigo? — É mesmo? — Ela forçou um tom de ironia. — Importa-se de me dizer como? Ou é pedir muito? — Vanessa enfiou as duas mãos nos bolsos do casaco para que ele não visse o quanto tremiam. Seu olhar mantinha-se altivo, desafiante. — Não se pode ganhar o tempo inteiro, Raoul. Desta vez, vai ter que aceitar que perdeu a partida. Ele não reagiu, parecia desorientado e começou a andar de um lado para o outro. — Está me provocando. — De repente parou e olhou-a bem nos olhos. — Quais são seus planos? — Seguir com Michael e Brenden até Fiji no iate. Talvez estiquemos até Tonga. — E decidiu tudo em apenas um dia? — Por que não? Não é sempre que se tem oportunidade de conhecer outros mares, não acha? E, ainda por cima, sem muitas despesas. — Se é isso o que você quer, não posso fazer mais nada. — Ele retirou alguma coisa do bolso. — Vai precisar disto. Vanessa se apressou em pegar o passaporte das mãos de Raoul, antes que ele mudasse de idéia. — Agora acabou. — É você quem diz! Se desistir de viajar, sabe onde me encontrar. Vanessa recuou dois passos quando viu que ele avançava em sua direção, mas não foi capaz de impedir que a enlaçasse. Ele a beijou quase com raiva, como se soubesse que essa era ainda a única maneira possível de dominá-la. Vanessa sentiu os impulsos tão seus conhecidos, ansiando corresponder àquele beijo. Estava a ponto de desistir de lutar quando despertou do sonho e o empurrou, com raiva. — Vá embora. — Esforçava-se para não demonstrar a emoção que a invadira. Não o veria nunca mais, e, apesar da mágoa, tentava registrar na memória aquele olhar querido e o brilho ofuscante dos olhos azuis. Depois que Raoul se foi, ela se debruçou na janela e o acompanhou até vê-lo desaparecer entre as sombras da noite. Haveria de esquecê-lo, ainda que para isso fosse necessário fugir de si mesma pelo resto da vida. O tempo mostrou-se curto para tantos preparativos. Vanessa não se lembrava de ver Michael tão entusiasmado antes, parecia até outra pessoa. — Se eu soubesse que iria gostar tanto dessa vida teria vindo com você, mocinha. Vanessa sorriu, divertida. — Cuidado, Mike, não se deixe enfeitiçar tanto pelo mar. Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe — Não se preocupe, tenho juízo. Mas essas são lembranças que ninguém jamais poderá roubar de mim. Finalmente terei no que pensar nas próximas noites de inverno em Londres. Partiram de madrugada. Vanessa despediu-se de Noumea e se foi, sem olhar para trás. O mar estava calmo e os primeiros raios de sol douravam as águas. Ela sorriu e olhou para cada um dos companheiros de viagem. Por algum tempo não teria outra companhia, mas sentia-se ótima, bem mais tranqüila. Havia um longo caminho a ser percorrido, porém estava entre amigos, gente que jamais a faria sofrer. No entanto aquela paz não durou muito tempo. O barulho de um motor a despertou do êxtase. Vanessa virou-se sobressaltada na direção do ruído. Um iate se aproximava acelerado e ela o reconheceu a distância. — É o Etoile, Brenden, o barco de Raoul. Aumente a velocidade, não deixe que ele nos alcance. — Não posso fazer isso, Van. Ele não viria atrás de nós sem um bom motivo. Vou desligar o motor. Pouco depois o Etoile os alcançou, e Raoul, magnífico em sua roupa branca a contrastar com a pele morena, saltou para o Júlia com extrema agilidade e se dirigiu a Brenden. — Obrigado, rapaz. Poupamos tempo graças a você. — Em seguida, virou-se para Vanessa. — Você vem comigo. — Espere aí. — A voz de Michael soou como uma ameaça. — Vanessa já não lhe disse... — a frase morreu em sua garganta quando ele percebeu a determinação no olhar de Raoul. —- Está bem. O problema não é meu... Raoul se aproximou devagar de Vanessa e obrigou-a a olhar para ele. — Você é minha mulher e eu preciso de você. Acredite em mim, estou morrendo por dentro e Deus sabe o quanto lutei para não vir até aqui. — Como soube que partiríamos hoje? — Não há o que não se possa descobrir quando se quer realmente. — Pensei que não o veria mais. — Estava enganada. Agora venha comigo. Estamos a caminho de lie Royale. Vanessa virou o rosto para que ele não visse seus olhos molhados. — Não adianta, Raoul. Você nunca terá o mínimo respeito por mim. Me trata como se eu fosse um objeto de sua propriedade, uma coisa qualquer que de repente descobriu ter algum valor e não se conforma em perder. Fique sabendo que tenho amor próprio e ninguém vai decidir minha vida, a não ser eu mesma. Nesse momento ela o encarou e Raoul viu as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. — Mas,.. eu te amo, Vanessa. Estou lhe dizendo que não sei o que fazer sem você. Nestes dois dias tenho vivido no inferno, nunca me senti assim antes. Um silêncio que só o barulho das águas quebrava instalou-se entre as quatro pessoas a bordo. Michael e Brenden olharam um para o outro num diálogo mudo. Estavam sobrando naquela cena. De repente, ela sorriu entre as lágrimas, e Raoul aproveitou a trégua e a abraçou. Vanessa pensava estar sonhando, assim aninhada contra o peito do homem que imaginara ter perdido para sempre. Um iate branco acercava-se do cais de lie Royale. Da varanda do quarto, Vanessa o observava, curiosa. — Raoul, venha cá. Olhe aquele barco, não se parece com o Júlia. — Que idéia! É muito menor e a estrutura é bem mais baixa, não está vendo? Além do mais, Brenden estava no Taiti há menos de uma semana. — Ê, foi uma bobagem. Pensei que tivessem vindo nos fazer uma visita. — Enquanto isso não acontece, console-se comigo — o tom irônico de Raoul a fez Projeto Revisoras

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Encontro nos Mares do Sul – Bianca 332 – Kay Thorpe voltar-se, surpresa. — E é bom tomar cuidado quando eles chegarem. As francesas costumam ser muito ciumentas. Vanessa sorriu. — Quem poderia imaginar que Michael encontraria uma francesa em Tonga? E tudo isso graças a você. — Ora, eu apenas promovi o encontro, o resto ele fez sozinho. Mas essas loucuras acontecem. Quem poderia supor que você se tornaria um dia a mulher mais comentada de Noumea, a rainha das festas? Vanessa sorriu e se afastou da janela. — Não se esqueça de meus outros atributos — ela se abaixou para afagar os cabelos loiros do filho, que brincava sobre o tapete. — Embora nesse ponto deva admitir que você contribuiu um pouco. Raoul olhou para os dois com orgulho. — Obrigado pela parte que me toca. Nesse mundo existem muitas coisas impossíveis de se prever. Algum dia chegou a pensar que seríamos tão felizes? — ele reclinou-se e acariciou-lhe os seios. Vanessa fingiu-se ofendida. — Raoul! Agora não. Temos que nos preparar para o jantar. — Isto é apenas um ensaio, querida.

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