Casamento de Conveniência The Paper Marriage
Bronwyn Williams
América do Norte, 1898. Matthew Powers, solteiro convicto, precisava de uma ama-seca! Tia Bess garantiu a Matthew que encontraria a moça certa para cuidar da pequena órfã sob sua tutela, em troca de um casamento fictício. Tudo que Matthew tinha a fazer era casar-se por procuração e aguardar a chegada da esposa... Sem dinheiro e sozinha, Rose aceitou o acordo, porém depois viu-se sem coragem para enfrentar o novo marido. Bess, então, interferiu novamente, cuidando para que Rose fosse cuidar da criança enquanto a esposa desconhecida encontrava-se "temporariamente impedida" de viajar. Mas o que aconteceria quando o taciturno Capitão Powers descobrisse que sua "hóspede" era, na verdade, sua "esposa"? E quem teria coragem de lhe contar? Digitalização: Márcia Goto Revisão: Amanda F.
Clássicos Históricos Especial 112
Casamento de Conveniência
Bronwyn Williams
Copyright © 2000 by Dixie Browning e Mary Williams Publicado originalmente em 2000 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá. Título original: The Paper Marriage
Dixie Bronwyn e Mary Williams são filhas de um jogador de beisebol de um dos principais times americanos e netas de um Capitão naval. É fácil ver onde as duas irmãs, que escrevem com o nome Bronwyn Williams, conseguem grande parte de seu material. As duas cresceram nas ilhas da Carolina do Norte. Depois de morar longe muitos anos, Dixie, casada com um Engenheiro Eletricista, já aposentado, e Mary, casada com um oficial da Guarda Costeira, também aposentado, voltaram às suas raízes. Grande parte das histórias escritas pelas irmãs tem como cenário o nordeste da Carolina do Norte, uma região rica em história e folclore.
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PRÓLOGO
27 de fevereiro de 1898 Ilha na Costa da Carolina do Norte O barulho da chuva no telhado quase abafava o choro do bebê. Matt desejava que pudesse também apagar a lembrança daquele dia fatídico. Limpar completamente a memória de todos. Ainda estavam atônitos, incapazes de falar em voz alta, olhando, horrorizados, para a criancinha enrolada num cobertor, no meio da cama, vermelha de tanto gritar. Incrível que ainda tivesse fôlego para tanto. Billy estava morto. O atraente Billy, com bandos de namoradas em cada porto. Billy que podia ganhar um jogo de cartas e provocar o bom humor dos perdedores. Billy que havia iniciado a vida no mar como criado de camarote, quando a família morrera de influenza, e alcançado o posto de imediato. Como Capitão, Matt era responsável por sua tripulação não só em alto-mar como em terra também. Ele tinha aconselhado o rapaz a ser cauteloso, mas não o acompanhara todas as vezes em que havia ido à vila. Portanto, como saber que ele tinha se envolvido com uma mulher casada e a engravidado? Não havia explicado cuidadosamente, a Billy e Luther, que as mulheres da vila tinham de ser tratadas com o máximo respeito? Ele devia ter conseguido outro navio imediatamente após a perda do Black Swan e não ficar em terra por um período tão longo, refletiu Matt. Em alto-mar, ou em qualquer porto do mundo, um homem podia ser esfaqueado numa briga. Porém, ser assassinado por um marinheiro enlouquecido que, ao voltar para casa, após onze meses de ausência, descobria que a mulher acabava de dar à luz uma filha, era uma possibilidade remota. — Capitão, quando a chuva parar, vamos ter de jogar mais areia na cova de Billy. Ela está afundando. Luther, o membro mais novo de sua tripulação, depois da morte de Billy, estava branco como massa crua de pão e ainda com os olhos arregalados pelo choque sofrido. Matt concordou com um gesto de cabeça. Todos eles, inclusive o velho Crank, cujo reumatismo o impedia de se levantar da cama em dias como aquele, tinham saído na chuva, um sem-fim de vezes, afim de olhar para a cova como se quisessem se convencer da tragédia. Um desgraçado infeliz tinha atirado na mulher infiel, depois ido atrás de Billy em cujo peito acertara uma bala e, antes que alguém pudesse controlá-lo, apontara a
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arma para si mesmo, deixando uma recém-nascida chorando no chão entre os dois corpos. Ao ouvir o primeiro tiro, Matt correra para fora a tempo de ver Billy cair. Havia chamado Crank aos gritos, pulado do terraço e alcançado o rapaz no momento em que o estranho jogava uma trouxa no chão e se matava a seguir. Billy tinha se esforçado para levantar a cabeça. — Diabo, rapaz, não se mexa! Crank, traga um pano e vá buscar socorro na vila! Sem esperar para ser atendido, Matt tinha rasgado a camisa de Billy ao mesmo tempo em que praguejava e rezava. — Traga a parteira! Luther, vá você! Não havia médico na ilha. Só podiam contar com a parteira. — Agüente firme, filho. Socorro já vem vindo. - dissera, ansioso por se convencer mais ainda, para que Billy acreditasse nisso. — Capitão, prometa... — Não fale, você vai ficar bom. E só não se mexer. — O senhor tem de me prometer... Meu bebê... É... É... — Quieto. O bebê está bem. É de você que temos de cuidar agora. Mas ao dizer tais palavras, Matt sabia ser tarde demais. Aliás, ambos sabiam. Mesmo assim, Billy se esforçara para repetir a súplica, os olhos azuis marcados pelo desespero. — Meu bebê... Tem de me prometer, Capitão... — Qualquer coisa, rapaz, mas agüente firme. - Matt havia repetido. — Não fiz por mal... O homem dela não podia... Ele não era... Capaz... — Ai, Billy, com todos os diabos, não morra. Não faça isso, filho! Matt praguejava porque não podia chorar. Um momento depois, tinha se levantado e ficado de costas até conseguir se controlar. Então, ajoelhara-se outra vez, examinara os dois corpos e constatara-lhes a morte. Fora Crank quem tinha acudido a criancinha cujo choro já indicava exaustão. Depois de enrolá-la na própria camisa, que havia tirado, e, como se fosse um embrulho de ovos, a carregara com o máximo cuidado para dentro de casa. Luther já havia trazido a parteira que, com olhar furioso, dispensara os cuidados necessários à recém-nascida. — Ela não passará desta noite. Se ainda estiver viva ao pôr-do-sol, molhem um trapo em água e dêem para ela chupar.
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Tinha sido o único conselho que a velha mulher dera antes de subir na carroça e voltar para a vila. Frustrados, os quatro homens a viram se afastar. Matt havia praguejado, Crank citado, incorretamente, um versículo da Bíblia sobre os pecados dos pais, Peg, o carpinteiro do navio, começado a fazer o caixão para Billy e Luther retornado à vila, dessa vez, em busca do notário público. O resto do dia tinha sido gasto para desembaraçar a situação desastrosa. Enterrar Billy, levar o corpo do homem de volta à vila e descobrir algo sobre a esposa infiel. Ela era "de longe", maneira como os naturais da ilha chamavam os que nasciam fora dali. — Acho melhor usar de franqueza. Ela não era uma das nossas, por isso, não esperem ajuda de ninguém da ilha. - Dick Dixon, o notário, disse logo ao chegar. — E quanto a família do marido? Naturalmente um deles... — A infeliz bastardinha não era dele. Ninguém vai pegá-la para criar. — Não se refira a ela dessa forma, pois nada do que aconteceu foi por culpa sua. - reclamou Matt. Mesmo antes da chegada da parteira, eles tinham descoberto que o bebê, enrolado na camisa de Crank, era menina. — Se eu fosse você, escreveria para a família do rapaz. Talvez ela tire o problema de seus ombros. — Impossível. Billy é... Era órfão. — Bem, eu não sei de onde a mulher veio. Como eu disse, ela era de longe e acho que viveu aqui por uns dois anos. - Dick levantou-se, pôs o chapéu na cabeça calva e virou-se para ir embora. — Ao que tudo indica, Powers, você acaba de se tornar pai. — Não senhor, de forma alguma. - Matt contradisse depressa. Ele tinha prometido a Billy cuidar da criança, mas, não se comprometera a fazê-lo pessoalmente. Estaria enganado? De qualquer forma, até conseguir alguém que tirasse a criança de suas mãos, ele seria responsável pelo bem-estar dela. Era filha de Billy e este, membro de sua tripulação. Antes de ir, o notário tinha demonstrado uma ponta de simpatia, mas, tornado a avisá-lo para não contar com a ajuda de ninguém da vila. — Não querendo ser desrespeitoso, Powers, porém, depois do que aconteceu, nenhuma de nossas mulheres vai querer chegar perto de seus homens. O que, refletiu Matt, era muitíssimo injusto. Mas desde quando a vida se mostrava justa? Ao receber um golpe rude, um homem inteligente içava velas, enfrentava o vento e se afastava.
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Matt fez a única coisa que lhe ocorria: com muita relutância, começou a escrever uma carta à única parenta que lhe restava. Bess Powers era uma criatura intrometida e curiosa, que jamais dizia a verdade quando uma mentira podia substituí-la com vantagem. Mas tinha sido sempre honesta no relacionamento com ele. Tanto quanto sabia, Matt corrigiu-se depressa.
Capítulo I
3 de março de 1898 Norfolk, Virgínia A maioria das pessoas já tinha se abrigado nas carruagens. Um vento úmido, do nordeste, fustigava a saia da moça solitária que ainda se mantinha ao lado da sepultura aberta, com a cabeça inclinada sob o véu. A poucos passos, o pastor olhava as nuvens baixas enquanto esperava pacientemente que Rose Magruder prestasse a última homenagem aos restos mortais da avó. Ele tirou o relógio do bolso, baixou o olhar rapidamente para o mostrador e tornou a levantá-lo para o céu. Então, dirigiu-o aos coveiros que esperavam para terminar seu trabalho. A alguma distância, uns poucos criados agrupavam-se indecisos, esperando que a chuva demorasse mais um pouco para cair. Esperavam também que a Srta. Rose se firmasse na vida, pois a pobre moça merecia algo melhor do que tivera nos últimos anos. Mas acima de tudo, esperavam que a Sra. Littlefield houvesse deixado, ao morrer, os salários atrasados que lhes devia. Do outro lado da sepultura, sob a proteção de uma magnólia frondosa, um casal idoso aguardava conversando baixinho e com as cabeças juntas. Bess Powers tinha sido amiga de Augusta Littlefield por mais de quarenta anos. E pelo mesmo tempo, Horace Bagby fora seu advogado. — Gussy nos mandaria embora antes da chuva a fim de não apanharmos uma pneumonia. - murmurou a mulher gorducha e com cabelos de um vermelho suspeito. — Pobre Gussy, ela era intratável, mas eu gostava dela como se fosse minha irmã.
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— Gussy se orgulhava muito do que você conseguia realizar. Ela costumava ler para mim as cartas que você lhe escrevia durante suas viagens intermináveis. Os dois velhos amigos eram uns dos poucos que tinham permissão para tratar Augusta Littlefield por "Gussy". — Pois agora, pretendo passar algumas semanas em casa. Horace, o que você vai fazer a respeito daquela menina? - Bess indagou, apontando para a única parenta da falecida. — Eu gostaria de convidá-la para ir morar comigo e ser uma combinação de secretária e dama de companhia. Mas não posso. Você sabe como meu chalé é pequeno. Além do mais, pretendo continuar viajando e não tenho meios para cobrir as despesas dela. Horace tirou o chapéu-coco, alisou os poucos fios de cabelo e tornou a colocá-lo. Os dois observavam a moça solitária, vestida de preto. Alta como um varapau, Bess pensou. Esguia como um salgueiro, comparou Horace num devaneio. Apesar de ser um solteirão idoso, ele continuava romântico. — Para ser franco, Bess, não sei. No momento só posso pensar em como lhe dar a notícia. Preferia levar uma surra em vez de ter de fazer isso. — Pobre criança. Haveria de se pensar que ela merecia um pouco de tranqüilidade depois de sofrer tantos reveses. Que se saiba, nunca teve um admirador na vida. Segundo Gussy, ela se casou com o primeiro idiota que lhe fez a corte, logo após o falecimento dos pais. Era um perfeito desconhecido. Ninguém jamais ouvira falar nele. Menos de dois anos depois, ele a deixava viúva. — Morreu afogado, Gussy me contou. Condoídos pela moça de aspecto simples, ao lado da sepultura, ficaram em silêncio. Os poucos conhecidos, que haviam se sujeitado ao tempo inclemente, já começavam a alinhar as carruagens para o cortejo fúnebre. Ansiavam para trocar o lugar triste e sombrio pelo aconchego de uma sala. Lá, poderiam apreciar uma boa mesa, repleta de iguarias, enquanto especulavam quanto a falecida deixara de herança para a única neta. Só quando o pastor levou embora a principal enlutada, Horace ofereceu o braço a Bess e a conduziu à última carruagem. — Dar atenção a Gussy, vinte e quatro horas por dia, não deve ter sido fácil para ela. - Bess comentou enquanto tomava cuidado para não pisar em poças de água. — Quando Rose veio morar com ela, a cabeça de Gussy já estava bem embaralhada. Não que pudesse se orgulhar dela antes, coitada.
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Horace balançou a cabeça e comentou: — Foi acontecendo gradativamente. Eu dizia a mim mesmo que ela estava sofrendo uma nova crise, mas, você está certa. Gussy nunca teve, como dizem, uma inteligência brilhante. Tentei preveni-la sobre seu fundo financeiro, porém, quando descobri a situação real, era tarde demais. Teimosa como era, nunca me deixou opinar sobre seus investimentos. E agora, há essa pobre moça. — Pois é. Eu também não quis acreditar. No retorno à mansão Littlefield, eles seguiram o cortejo encabeçado pela carruagem com o pastor e Augusta Rose Littlefield Magruder, neta e única herdeira da falecida Augusta Littlefield. — Não se aflija. Haveremos de encontrar uma solução. - Bess afirmou ao dar um tapinha na mão enluvada de Horace. A casa estava aquecida demais e o cheiro de lã molhada permeava o ar. Haveria uma enorme conta de carvão para ser paga quando tivesse tempo para enfrentar a desordem da escrivaninha da avó, refletiu Rose. Até o fim, Gussy tinha insistido em cuidar de suas finanças e não permitia que ninguém entrasse no escritório. Este não passava de uma saleta, ao lado de seu quarto, cuja porta ela mantinha trancada e a chave, escondida em um chinelo, embaixo da cama. Naturalmente, Rose e os poucos criados restantes sabiam onde estava, mas jamais se atreveriam a usá-la. Já era difícil lidar com Gussy quando estava calma e satisfeita. Se ficasse brava, seria impossível suportá-la. Atordoada, Rose sentou-se atrás do biombo chinês. Desejava que aquele dia exaustivo terminasse. Daria qualquer coisa que possuía, o que não era muito, para poder fechar os olhos e dormir por uma semana inteira. Infelizmente, mesmo se tivesse tal oportunidade, a mente não cooperaria. Ela havia crescido numa casa quase tão grande quanto essa, mas a perspectiva de, sozinha, ser responsável por todos os bens da avó a oprimia. Aos poucos, Rose foi se dando conta de uma conversa murmurada do outro lado do biombo. Sinceramente, não queria ouvir, mas sem revelar sua presença, não tinha escolha. —... Finalmente morreu. Acho que a neta está garantida pelo resto da vida. Moça de sorte. — Sorte? Se quer minha opinião, a infeliz fez por merecer cada dólar que a velha sovina ajuntou durante a vida. Ela não pagava um salário decente aos serviçais. A criada incumbida do segundo andar foi trabalhar para mim no ano passado e contou... — Eu sei tudo isso, mas dizem que a neta enfrentou grandes dificuldades. E não só aqui. Ouvi contar que os pais morreram naquele desastre horrível de trem perto de
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Suffolk. Uns dois anos depois, o marido foi assassinado. — Não, ele morreu afogado. Segundo me informaram... — Ela não fica bem de preto, não concorda? Se eu fosse ela, usaria um toque de ruge. — Não diga uma coisa dessa, Ida Lee! Ela é uma mulher decente. Mas sem dúvida, lembra a estaca de uma cerca por ser tão alta e simples. — Pobrezinha. Dizem que ela ainda chora a morte do marido. Como era mesmo um velho ditado sobre o alvo de línguas maldosas?, Rose indagou-se e, mentalmente repetiu-o: "Falem mal de mim, mas falem". Sem querer, sorriu. De fato, roupa preta a deixava pálida, com aspecto doentio, porém as outras também o faziam. Certa ocasião, uma pessoa, na tentativa de ser delicada, classificara a cor de sua pele de "azeitonada" e ela havia se apegado à definição. Afinal, era bem melhor do que amarelada, ou mais exótica. Porém, palavras refinadas não mudavam a verdade. E ela continuava chorando e o faria pelo resto da vida, mas não pelo grosseirão com quem tinha se casado. Rose Magruder jamais se permitiria exibir as emoções. Viúva e sem um centavo de seu, tinha vindo morar com a avó cujas exigências contínuas, confusas e conflitantes, a mantinham ocupada o tempo todo. A noite, caía exausta na cama. Da criadagem necessária para cuidar da mansão de dezoito aposentos, do jardim e do quintal imensos, apenas três haviam permanecido até o fim. Rose tinha o firme propósito de recompensá-los regiamente pela dedicação e esforço. Mas primeiro, ela precisava arranjar tempo para examinar a montanha de papéis que a avó deixara comprimidos em caixas de chapéu, de sapatos e só Deus sabia no que mais. Ela sabia que o pagamento das contas da casa estava atrasado, pois vários fornecedores já tinham lhe chamado a atenção para o fato. Graças ao bom Deus pela existência de Horace Bagby. Ela não conhecia bem o homem, porém, ele dava a impressão de ser bondoso e competente. Com a ajuda de um contador, que o Sr. Bagby provavelmente indicaria, conseguiriam deslindar a confusão. Com aspecto doentio ou não, ela sempre tivera boa cabeça para fazer contas. Apenas após as últimas pessoas se despedirem, Rose percebeu que podia ter se poupado da preocupação. Ao voltar da porta, aonde fora acompanhar os amigos da avó, deparou-se com Horace Bagby que havia ficado. Ele, por outro lado, lamentava não ter pedido para Bess não ir embora e ajudá-lo na missão penosa e desagradável de esclarecer a situação à neta da falecida. Detestava lágrimas e nunca havia aprendido a lidar com elas.
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— Quanto ao... Ah, o testamento, lamento não ter boas notícias para lhe dar, minha cara. A propriedade de sua avó está... Bem, totalmente hipotecada e terá de ser vendida imediatamente a fim de pagar os credores. Horace preparou-se para enfrentar uma crise de histeria ou, pelo menos, um choro convulsivo. Enganara-se quanto à Sra. Magruder. Ela não derrubou uma única lágrima. Na penumbra da sala de visitas, com as janelas cobertas por mortalhas, em sinal de respeito pela falecida, ela manteve-se sentada e em silêncio. Tinha as mãos cruzadas no colo e os olhos um tanto inchados e avermelhados, mas secos. — Não se aflija, minha cara. Haveremos de encontrar uma maneira para resolver a situação. - disse ele sem ter a mínima noção de como conseguiria tal milagre. Como a moça não mostrasse a intenção de questioná-lo, ele apressou-se em preencher o silêncio com as informações que tinha. Rose continuou sentada e quieta enquanto as palavras ecoavam no ar numa monotonia cansativa. De vez em quando, algumas prendiam-lhe a atenção. Não sobrou nada? —... Atirou tudo fora... Investimentos arriscados... Avisei-a, mas você sabe como Gussy foi teimosa até o fim. Vender imediatamente? —... Perdidos e sem esperança, eu acredito. Tenho certeza de que pensaremos numa solução. Quer dizer, deve haver uma maneira... Rose respirou fundo a fim de se controlar. Numa voz estranhamente firme, perguntou: — Seria possível vender várias jóias minhas? Elas me foram dadas por minha avó, mas acredito que, legalmente, tenho o direito de fazer qualquer coisa com elas. — Claro, claro, minha cara, você está certa. Cuidarei disso hoje mesmo, caso queira. Tecnicamente, por se tratar de peças de família, as jóias poderiam ser consideradas como parte do espólio de Augusta Littlefield. Mas Horace não estava disposto a deixar aquela jovem senhora sofrer as conseqüências dos erros de uma mulher idosa e senil. Depois de perguntar-lhe se não preferia passar a noite na casa de amigos e de receber uma resposta negativa, ele despediu-se e foi embora. Rose acompanhou-o até a porta. Mentalmente, ela estava entorpecida. E o imenso cansaço físico a impedia de ir ao sótão, buscar seu baú a fim de começar a tarefa árdua de arrumar sua mudança.
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Depois de uma noite de sono reparador, talvez fosse capaz de refletir melhor e agir com mais presteza. Nervosa demais para conciliar o sono, Rose levantou-se e foi ao sótão buscar o baú. No quarto, começou a esvaziar o guarda-roupa e a dobrar as peças que colocava sobre várias outras que não chegara a desembalar. Quase todos os vestidos eram pretos, exceto os mais antigos e o de noiva. Este, ela havia guardado como lembrete do que poderia acontecer quando uma mulher fazia a escolha errada. Ela usava luto havia tanto tempo que até já esquecera a sensação provocada por outras cores. Na tarde seguinte, Rose dividiu, com os três criados, o dinheiro conseguido com a venda das jóias. Enquanto o fazia, agradeceu-lhes pelo apoio dado. — Lamento muito que não sejam quantias maiores. Deus sabe que vocês merecem muito mais. O que estão recebendo mal cobre seus salários atrasados. Infelizmente, não posso fazer mais nada. Eles demonstraram compreensão, reconhecendo-lhe a boa vontade. Com troca de votos de dias melhores, despediram-se e foram embora. Só quando se viu sozinha na mansão, Rose permitiu a perda de controle. Então, as lágrimas extravasaram. Chorou até os olhos incharem, a garganta arder e o lenço ficar ensopado. — Ai, meu Deus, isto é uma perda de tempo. - murmurou e voltou a chorar. Nas raras ocasiões em que se dava ao luxo de verter lágrimas, o fazia de maneira eficiente, soluçando bem alto e durante o tempo que fosse necessário para aniquilar até o último resquício de emoção. Chorou pelos pais, o homem encantador a quem ela adorara e a mulher delicada e linda que nunca soubera como tratar a filha mal jeitosa e desajustada, e pela avó que havia mudado muito, a ponto de não parecer mais a pessoa a quem ela conhecera na infância. Mas acima de tudo, chorou por seu bebê que não tivera a oportunidade de viver. Depois de um bom tempo, enxugou o rosto, alisou a saia e foi se olhar no espelho do vestíbulo. Ao ver a própria imagem, lembrou-se das palavras da governanta da avó, ditas enquanto guardava o dinheiro no bolso. — Muito bem, Dona. Rose. Tenho certeza de que a senhora vai vencer esta crise. Pode não ser muito bonita, mas tem coragem e determinação. Não era verdade, Rose pensou, amargurada. Jamais teria tais qualidades. Beleza, muito menos. Melhor assim, pois não se preocuparia em perdê-la ao envelhecer. Esse havia sido o maior temor da mãe. Aos treze anos, Rose já era bem alta e muitíssimo acanhada. Aos dezoito,
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continuava tímida e tinha crescido mais um pouco. Mas pelo menos, conseguia andar sem tropeçar. Até havia aprendido a dançar. Assim, nas raras ocasiões em que um rapaz se via obrigado a convidá-la para uma valsa, ela não passava vergonha. — Não, você não é bonita. - disse ela para a imagem no espelho. Se pudesse escolher entre beleza e coragem, sem dúvida optaria pela primeira. Isso provava que ainda não havia aprendido nada. Felizmente, a escolha não era sua. Tinha de se contentar com coragem. Ótimo, pois ia precisar muito dela até encontrar um bom emprego e um lugar para morar num bairro decente. Com a bagagem empilhada ao lado, Rose achava-se sentada numa das cadeiras delicadas que ladeavam a mesa marchetada do vestíbulo. Esperava pela amiga da avó, Bess Powers, que havia encontrado uma boa pensão e se oferecera para a levar lá. A carruagem e os cavalos da avó já tinham sido confiscados por um dos credores. Morta de cansaço, Rose não queria relaxar, temendo cair no sono. Também tinha medo de que os poucos dólares na bolsa não fossem suficientes para cobrir suas despesas até encontrar um emprego. Devia ter guardado um tanto do dinheiro da venda das jóias para o caso de a dona da pensão exigir pagamento adiantado. E se não conseguisse logo um emprego? Mesmo se achasse um, levaria algum tempo até receber o primeiro salário. Escolhas. O importante era fazer a certa. Infelizmente, as mulheres não tinham oportunidade para aprender, pois as escolhas eram quase sempre feitas em seu lugar. Primeiro, pelos pais e, depois, pelos maridos. A primeira vez em que ela se vira forçada a fazer uma, havia sido um desastre. Depois de sofrer as conseqüências, a única opção fora apelar para a avó. Após seu falecimento, não lhe restava mais parente algum para socorrê-la. Verdadeiro crime, disse a si mesma, que jovens bem-educadas não fossem preparadas para se sustentar em caso de necessidade. Bess chegou às quatro horas em ponto. — Aí está você!-— exclamou como se houvesse procurado Rose pela casa inteira. Largou o guarda-sol na mesa e foi olhar-se no espelho. Ajeitou melhor o chapéu sobre os cabelos recém-pintados com hena e firmou bem o grampo que o prendia. Enquanto o fazia, comentou: — Uma grande tristeza o destino desta casa. Durante anos, cansei de dizer a Gussy que era muito grande e dispendiosa para uma mulher sozinha. Eu a aconselhava a não se deixar dominar pela propriedade. Em minha opinião, uma casa deve servir à dona e não o contrário.
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Certíssimo, desde que se tivesse um teto sobre a cabeça, refletiu Rose. Para que tanto desperdício? Melhor um pássaro na mão do que dois voando. Se não houvesse morrido, a avó não teria mais nada. Não perca tempo em pensar tolices e crie coragem. Ainda bem que seus pés são grandes, pois vai ter de se firmar neles daqui em diante. — A governanta de vovó me deu o nome de uma agência de confiança onde posso procurar um emprego. Bess não gostava de perder tempo com rodeios e sim de ir logo ao ponto principal. Porém, às vezes, não mencionava detalhes importantes como se os considerasse óbvios. — Que tipo de trabalho você pode fazer? Sabe taquigrafia? Ou cozinhar? Eu não recomendaria isso, mas é melhor se esfalfar numa cozinha do que servir idiotas à mesa. Eles sempre reclamam de alguma coisa. Rose não tinha pensado em ser garçonete ou copeira, mas poderia não ter opção. — Não sei nada disso, mas tenho certeza de que posso aprender. Também poderia cuidar de pessoas inválidas. — Quer passar a vida servindo de capacho para os outros? Eu não a conheço bem porque fiquei muito tempo fora nos últimos anos, mas tenho de ser franca. Nós duas sabemos que Gussy não era inválida e sim louca de pedra. Não me diga que estaria disposta a trabalhar num asilo. Você não agüentaria um dia. Rose sabia que Bess tinha a melhor das intenções, além de ser experiente. Afinal, era um exemplo raro de mulher independente. — Muito bem. Então o que sugere? Governanta? Dama de companhia? Posso muito bem me desincumbir dessas funções. — Pensei em contratá-la como secretária e dama de companhia. Rose esperou por um empecilho qualquer, pois tinha certeza de haver um. — O problema é que não posso lhe pagar o suficiente para viver. Meu editor paga minhas despesas quando estou viajando, mas duvido que se disponha a pagar por uma secretária também. Nos dias de bom humor, a avó costumava falar sobre a amiga Bess Powers que se tornara um tanto famosa. Isso graças à publicação de seus diários escritos enquanto crescia a bordo do navio do pai. Rose invejava a liberdade e a independência de Bess, mas famosa ou não, seria impossível conviver com ela por muito tempo. — Infelizmente, não sei taquigrafia, porém, estou disposta a aprender. E minha caligrafia é excelente. — Não daria certo. Viajo sozinha há muito tempo. Contudo, acontece que tenho
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um outro problema em minhas mãos. Talvez você seja a pessoa ideal para solucioná-lo. Antes de explicá-lo, quero saber se não sobrou um resto de conhaque nesta casa. O tempo úmido ataca meus joelhos sem piedade. — Não, sinto muito. Sabendo que eu ia embora hoje, dei permissão aos criados para levar o resto dos mantimentos e das bebidas. Mas sei que deixaram um tanto de chá na despensa. — Ah, não se preocupe. Mas onde parei? Ah, sim, Matt, meu sobrinho. O pobre rapaz estava desesperado o suficiente para me escrever pedindo ajuda. Isso quer dizer que a resistência emocional dele tinha se esgotado. A última vez que nos vimos, ele me chamou de velha intrometida. - Bess riu. — Não nego que seja. Por polidez, Rose murmurou uma negativa. Na verdade, mal conhecia a mulher. Contudo, se de fato houvesse sido criada no mar, no mundo dos homens, como afirmava, não era de se admirar que não tivesse papas na língua. Rose apreciava linguagem simples e franca. No final das contas, ela poupava tempo. Mesmo quando a verdade ferisse a vaidade de certas pessoas. — Bem, como comentei com Horace, você é um tanto magricela. Deve ter puxado Gussy, que sempre foi esquelética. De qualquer forma, é preciso uma mulher resistente para tomar conta de uma criança. Rose franziu a testa. Talvez fosse mais parecida com a avó do que imaginara, pois estava tendo dificuldade para acompanhar a conversa. — Uma criança? Desculpe-me... Será que perdi alguma explicação sua? — Criança, bebê, sei lá. Não tenho certeza da idade dela. Mas sei que estou velha demais para desempenhar tal encargo, mesmo se dispusesse de tempo. Calculo que você seja mais forte do que aparenta. Caso contrário, não teria sido capaz de agüentar Gussy. - ao ver a expressão chocada de Rose, exclamou: — Eu sei, eu sei! Ela era minha amiga querida apesar de deixarmos de nos ver com freqüência quando passei a viajar por conta de meu trabalho. Não me leve a mal, mas sua avó também ficou mentalmente fraca. A idade me atacou nos joelhos e Gussy, na cabeça. Acho que ela atinge cada um em seu ponto vulnerável. Rose não podia pensar numa única palavra para dizer. Se essa história tivesse uma conclusão lógica, ela não imaginava qual poderia ser. — De qualquer forma, seria matar dois coelhos com uma cajadada só, não concorda? - Bess concluiu. Naquela noite, como era hábito deles, Bess e Horace deliciavam-se com chá, conhaque e charutos. Havia muitos anos, moravam no mesmo bairro, a apenas três quarteirões um do outro. Bess dizia: — Como você pode ver, se Rose concordar com meu plano, Matt não terá escolha
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a não ser aceitá-lo também. A esta altura, ele deve estar completamente desesperado e capaz de cometer uma loucura. — E se ele já tiver encontrado uma família da vila disposta a adotar ou, pelo menos, cuidar da criança? — Se isso fosse possível, Matt teria conseguido antes. Segundo me escreveu as mulheres de lá não querem nem chegar perto deles. — Por falar em Rose, onde ela está morando? - Horace perguntou. — Eu a acomodei numa pensão só para mulheres, um pouco adiante de Dominion. Os quartos são pequenos, mas o lugar é limpo, decente e barato. — Lembre-se de que, amanhã cedo, ela vai procurar um emprego. Se encontrar um, Bess, o que acontecerá a seu plano de ajeitá-la com seu sobrinho? — Conseguir trabalho não vai ser fácil. Rose vai logo perceber isso. Ela tem orgulho e espinha dorsal. Mulheres que querem uma criada ou governanta não gostam disso. Preferem as dóceis e humildes que não atrapalham a hierarquia doméstica. — O que a faz pensar que seu sobrinho vai contratá-la? — Como eu disse, o rapaz não tem escolha. Caso tivesse, jamais me pediria ajuda. - Bess riu. Colocou o pé esquerdo numa banqueta e, levemente, massageou o joelho apesar das camadas de sarja, tafetá e musselina que o cobriam. — Você pode me imaginar com um bebê molhado e chorão no colo? O bom Deus sabia o que estava fazendo quando me deu filhos apenas aos moços. Nós, os idosos, não teríamos a paciência e, muito menos, a energia para criá-los. Com o olhar nas chamas da lareira, Horace rodeou o copo de conhaque com a mão. Num tom pensativo, murmurou: — Por que estou com a nítida impressão de que você pretende algo mais além de arranjar uma babá para o jovem Capitão Powers?
Capítulo II
Depois de confabularem por algum tempo, os quatro decidiram dar o nome de Annie ao bebê, em homenagem à mãe de Billy. No momento, ela chorava, batia as perninhas e exalava um cheiro horrível. Por uns dez segundos, Matt parou à porta do
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quarto, pensando em virar as costas e sair andando. Caminharia até não sentir mais o odor desagradável e nem ouvir os gritos estridentes da pobrezinha. — Você escreveu outra vez para sua tia? - Crankshaw Higgins, o membro mais velho do grupo, indagou. Guardou a mamadeira meio vazia e, com expressão desanimada, passou o bebê e uma toalha limpa, de linho grosso, para Matt. — Mandei a terceira carta na semana passada. — Ela vai se incumbir da criança? — Ainda não disse nada. Crank praguejou. Cozinheiro de navio por profissão, ele tinha coisas melhores para fazer. Mas como os outros, enfrentava valentemente seu turno com o bebê. O Capitão poderia se esquivar? Resignado à falta de sorte, Matt despejou a água da chaleira na bacia, pegou um pedaço de sabão de cinza e preparou-se para enfrentar a obrigação. Uns trinta minutos depois, com as mangas e a frente da camisa encharcadas, ele recuou um pouco para admirar o trabalho terminado. — Pronto, você já está limpa e arrumada, menininha. Sabe, você não é feiosa com a boca fechada. Com os olhos azuis meio fora de foco, a criança o fitou. Era carequinha como um ovo, mas pelo menos, já tinha engordado um pouco, observou Matt. Quando a herdara, ela era pele e osso. Mas, naquelas poucas semanas, graças aos esforços de Crank, ela começara a ganhar peso. — Isso mesmo, você me ouviu bem. - ele murmurou numa voz tão suave que nenhum de seus homens a teria reconhecido. Os nós de tensão nos ombros, que quase o impediam de virar a cabeça de um lado para o outro, desmanchavam-se ao mesmo tempo em que ele se habituava a lidar com algo tão frágil. Luther pôs a cabeça na porta. O rosto sem barba estava vermelho por causa do vento frio do nordeste. Ele tinha ido pescar com rede e, depois de limpar os peixes, salgara os que não seriam usados nas refeições daquele dia. — Deixe eu ir tomar um banho primeiro e, então, será meu turno. Acha que ela estará dormindo quando eu voltar? - indagou esperançoso. — Chorando outra vez é o mais provável. Como o avô tinha sido um deles, Matt fora aceito pelos habitantes da vila. Isso se dera quando, com os dois mais novos e os dois mais velhos membros de sua
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tripulação, ele tinha voltado para Powers Point, a terra que o avô comprara depois de vender seu navio e de se aposentar. Por terem ficado vazias por muito tempo, as várias construções haviam sido danificadas pela intempérie. Algumas tinham ruído, mas a casa principal continuava sólida. Com a ajuda de Peg, o carpinteiro de seu navio, e de uns poucos construtores da vila, ela havia sido reformada e acrescida de outros cômodos necessários. Na opinião de Matt, o lugar era tão bom quanto qualquer homem pudesse desejar. Mesmo assim, ele sonhava com o dia de partir. Crank e Peg ficariam para tomar conta da propriedade. Os dois já estavam um tanto idosos para voltar ao trabalho em alto-mar. Os cinco homens tinham se adaptado depressa a uma rotina confortável. Pescavam, reformavam as construções, iam à vila fazer compras ou encontrar o barco do Correio. Também amansavam os cavalos meio selvagens que haviam comprado no continente e despachado de barco para o outro lado do braço de mar. Billy e Luther tinham feito amizades bem depressa, especialmente com as moças. As primeiras vezes que haviam cavalgado ao sul, Matt os aconselhara a não beber, jogar, brigar e, acima de tudo, a não praticar sexo. — Uma vila como esta é diferente de uma cidade portuária. Se um de vocês dois passar dos limites, nós todos sofreremos as consequências. - ele havia acrescentado. — Eu não ouvi reclamação alguma. E você, Lute? Billy tinha sorrido daquela maneira contagiosa que despertava a simpatia de todos, homens e mulheres, jovens e velhos. Lembrando-se da própria juventude alvoroçada, Matt não havia mantido rédeas curtas. Agora, Billy encontrava-se a sete palmos na areia. Não duvidavam que ele houvesse praticado aquilo de que o acusavam. Luther chegara a admitir que desconfiava do que estava acontecendo. Evidentemente, metade da vila também. Mas como a mulher envolvida era de longe e o marido, muito mais velho que ela, gozava a fama de ser vingativo, todos acharam melhor não se imiscuir na questão. Ouvindo o barulho do martelo de Peg, Matt balançou a cabeça. Como se a casa de dois andares não contasse com vários quartos desocupados, o velho homem achara melhor construir um para Annie. Para tanto, estava usando caibros e tábuas, catados ao longo da praia, destroços de barcos e navios naufragados. A ideia do quarto fazia tanto sentido quanto a intenção de Luther de comprar e treinar um pônei para a menina. E Crank já tinha mencionado arranjar-lhe um cachorrinho. Ora, Annie nem completara dois meses ainda. Matt achava graça como os três disputavam a afeição da criança. Se ela
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preferia um acima dos outros dois, não demonstrava. Caso aparecesse finalmente, Bess decifraria a questão. Na última vez em que a tia se imiscuíra em seus assuntos pessoais, ele havia perdido a paciência e a chamado de velha intrometida. Mas, cedo ou tarde, ela apareceria. No mínimo, por pura curiosidade. E tão logo Bess estivesse ali, ele poderia concentrar todos os esforços em readquirir seu navio. Seu navio... Relembrando os fatos, Matt espantava-se com a profundidade da estupidez em que um homem, de inteligência reconhecida, podia se afundar. Quatro anos atrás, em consideração a um amigo do pai, ele havia concordado em ir a um baile cuja finalidade era levantar fundos para o "Lar do Marinheiro Aposentado". Lá, conhecera Glória Timmons, filha de um dos patronos da causa. Como um anjo de árvore de Natal, toda de branco e dourado, ela fazia parte do grupo de recepção. Homem alto, acostumado a olhar de cima para todas as mulheres e para um bom número de homens, Matt ficara apavorado quando ela havia colocado a mão pequenina na dele, fitado-o com olhos da cor de um céu de verão e baixado os cílios longos. Com a mão livre, ele tinha puxado o colarinho e limpado a garganta várias vezes. Penalizada, ela lhe dirigira um sorriso capaz de derreter uma bala de canhão. Matt não encontrava dificuldade alguma em ficar na companhia de homens, mas na de mulheres, não sabia como agir. Na verdade, não confiava em nenhuma desde que a mãe decidira morar em terra firme e não mais no navio do marido, mesmo tendo de deixar, com ele, o filho de oito anos. Sem dúvida, ele havia apreciado um bom número de amantes, mas mulheres respeitadas, especialmente as jovens, lindas, delicadas e de mãos macias, lhe davam ideia de perigo, como se pudessem lhe provocar a ruína. Tudo havia começado naquela noite. Matt nunca se dera ao trabalho de aprender a dançar e, com Glória, mal conseguia trocar duas palavras sem gaguejar. Porém, ela o tratava como se fosse seu príncipe encantado. Quando o baile chegava ao fim, o coração dele já fora atingido letalmente. Durante o período em que o navio de Matt estivera no porto, eles haviam passado todos os dias juntos. Negligenciando compromissos com funcionários da alfândega, agentes de carga, cambistas, consignadores de mercadoria, durante sete dias ele tinha ouvido mais música, bebido mais chá e assistido a mais conferências do que qualquer homem deveria suportar a vida inteira. Matt não havia proferido uma única palavra de reclamação. Se Glória houvesse lhe pedido, ele teria engatinhado sobre brasas. Na noite anterior à partida do navio, ela permitira ser beijada. Morto de medo
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de quebrá-la ao meio, ou de assustá-la com a paixão controlada a duras penas, Matt tremia tanto que não conseguira se desempenhar dignamente. — Se ao menos você não tivesse de partir. - Glória tinha murmurado depois do beijo rápido, áspero e seco. — Eu jamais poderia me casar com um homem que fosse embora e me deixasse sozinha durante meses a fio. Morreria de solidão. Naquele momento, ele não se dera conta. Glória o tinha atingido em seu ponto mais vulnerável. Fazia muito tempo que não via a mãe. Depois de adulto, raramente pensava nela. A última vez em que haviam se encontrado fora no funeral do pai quando, como dois estranhos, tinham conversado muito pouco. Ela contara que ia se casar novamente e se mudar para Chicago. Ele a informara que no fim da semana partiria para Honduras. Haviam se separado sem a mínima demonstração de interesse mútuo. Desde então, ele quase nunca se lembrava da mãe. Contudo, as cicatrizes tinham ficado, ele constatara mais tarde. Ah, sem dúvida ele tinha sofrido um ataque severo! Ao deixar Glória no porto naquela noite, ele prometera a si mesmo que seria a última viagem. Depois, poria o navio à venda e investiria o dinheiro na firma de construção naval do pai dela em troca de um lugar no conselho de diretores. No fim, ele recebera exatamente o que merecia. Após entregar uma carga de madeira corante, mogno e bananas em Boston, ele havia contratado um agente para vender o Black Swan. Ainda com a cabeça nas nuvens, tinha comprado um anel, com o maior diamante que encontrara, e embarcado para o sul, sempre pensando em casamento. Ao chegar, fora informado que a Srta. Timmons estava visitando uma amiga em West Virgínia. Cinco dias depois, tendo recuperado parcialmente o bom senso, havia tomado um trem de volta a Boston, decidido a não vender mais o navio. Chegara atrasado. O Black Swan acabava de ser vendido. Então, tinha retornado ao sul, determinado a tirar algum proveito da situação. Se não podia mais ser o Capitão de uma excelente escuna de três mastros, seria um ótimo marido e um bom diretor da "Firma Timmons de Construção Naval". Afinal, ele entendia de navios. Logo a seguir, descobria ter dado o coração a uma mulher que se encontrava ocupada demais, conquistando outro idiota, para lhe oferecer algo além de um sorriso forçado. — Mas querido, eu nunca disse que me casaria com você. Tenho certeza de que não lhe prometi nada. Ainda sou muito jovem para deixar de me divertir e começar uma família. Papai, porém, ainda guarda seu lugar no conselho. Basta entregar-lhe o dinheiro da venda de seu navio como foi combinado. Pela primeira vez em muitos anos, Matt tinha saído pela noite adentro e bebido por dois dias seguidos, até se embriagar completamente. Havia acordado num albergue
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de Newport News, uma cidade no sudeste da Virgínia. Tinha o nó dos dedos inchados e escalavrados e a cabeça dava a impressão de ser do tamanho da Nova Zelândia. Isso sem mencionar o estômago e os bolsos revirados pelo avesso. Maldição, ele a queria de volta. A escuna, Black Swan, e não Glória. Deus era testemunha de que qualquer idiotice romântica fora expurgada de seu coração. Após quatro anos, o agente continuava tentando readquirir seu navio. O novo proprietário, um consórcio de marinheiros estabelecidos em terra, tinha o firme propósito de explorá-lo. A última exigência dele constava de cinco por cento dos lucros do Capitão, pelos cinco anos seguintes, e de um preço muito acima daquele pago na compra. Matt vinha negociando um corte de dois anos, em relação aos lucros futuros, e um abatimento no preço quando a tragédia acontecera, deixando-o com um problema que agente algum poderia solucionar. Annie. Com a ponta da bota, Matt balançou o berço feito por Peg de um barril velho e forrado com um acolchoado de penas de ganso. Se Bess não aparecesse logo, ele teria de procurar outra pessoa. De forma alguma poderia levar um bebezinho com ele para alto-mar. Se fosse menino, até arriscaria, mas não era. Bastava observar Bess para constatar o resultado terrível de tal ambiente na criação de uma menina. Autoritária, metida, dissimulada, a tia bebia e praguejava como homem, mas ofendia-se toda quando algum dos marinheiros fazia isso em sua presença. Matt suspirou e praguejou em seguida. Tinha feito mais de ambos no curto período desde que se tornara suplente de pai do que nos trinta e um anos de vida. Sim, Annie precisava de uma mulher. Infelizmente, ele também. O problema com uma pequena vila, numa ilhota, era o fato de todos saberem o que acontecia. Sem um prostíbulo decente, um homem podia meter-se em encrencas perigosas, lição trágica que haviam aprendido a duras penas. Crank, com sua mania de citar a Bíblia, dizia que, segundo São Paulo, era melhor casar-se do que se abrasar. Matt, entretanto, não estava disposto a cometer tal insensatez. Tinha idade suficiente para se controlar até poder ir ao continente. Não era tão fácil para um rapaz jovem. A primeira vez que Luther tinha ido fazer compras na vila, depois do assassinato de Billy, voltara de queixo caído. — Diabos, Capitão, todas as meninas desapareceram. Não, elas haviam sido escondidas e proibidas de se associar com os homens de Powers Point. Levando-se em consideração a tragédia acontecida, Matt não culpava os homens por proteger suas mulheres e filhas. Mas Annie não era culpada. Viera ao mundo como uma vítima inocente. Matt recusava-se a permitir que ela sofresse pelos pecados dos pais e, para tanto, seria até capaz de sacrificar a vida marítima para
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sempre. Talvez isso não fosse preciso. Gradativamente, o gelo das pessoas começava a derreter. Um dia, como Luther estivesse pescando e não pudesse ir comprar leite em pó, Crank fora em seu lugar. Uma das mulheres mais velhas da vila tinha lhe dado dois conselhos úteis. Primeiro: fazer a criança arrotar depois de terminar a mamadeira. Bastava mantê-la erguida e dar-lhe uns tapinhas nas costas. Segundo: limpar seu bumbum com gordura e não com sabão de cinza. A pele de um bebê era muito delicada. Uma outra mulher oferecera uma cabra leiteira emprestada. Mas de um modo geral, os homens de Powers Point tinham de se desincumbir sozinhos de uma tarefa para a qual não estavam preparados. — Bess, você vai ter de me ajudar nesta questão. Deus sabe que, em minha opinião, você não é a babá ideal, mas não tenho a quem mais apelar. - Matt resmungou. Naquela noite, sem poder dormir, ele encontrava-se entre as árvores de uma encosta, acima de Pamlico Sound, quando viu uma estrela cadente cruzar o céu. Indagou-se como a morte de algo no universo podia ser tão linda. Até então, só tinha visto o lado feio da morte. Se ele fosse um homem de natureza mística, talvez encarasse a estrela cadente como um bom presságio, mas era realista. Sempre fora. Pertencente à segunda geração dos Powers criada em navio, ele havia aprendido com o pai, que por sua vez aprendera com o dele, que um bom vento, uma embarcação sólida e uma tripulação competente eram tudo de que um homem precisava para tecer a própria sorte.
Rose viu Bess Powers servir duas xícaras de chá e acrescentar uma dose de conhaque na própria. A amiga da avó a tinha convidado para vir visitá-la a fim de discutirem seu futuro. Que, aliás, começava a ficar cada vez mais sombrio. — Eu devia ter me aplicado mais no aprendizado da pintura e da música. Mamãe me avisou que, um dia, eu me arrependeria pela negligência. Estava certa. Mas o problema é que não tenho noção de ritmo e quanto a minhas aquarelas... Bem, quanto menos eu disser, melhor. Bess, como posso ensinar uma menina a andar corretamente se eu, quando não tomo cuidado, tropeço com facilidade? - indagou ao esticar as pernas e observar as sapatilhas de pelica, longas e esguias. Bess sorriu. — Melhor assim. Mulheres de sua altura ficariam ridículas com pés pequenos como os meus. — Quem se interessa por uma governanta que não sabe dançar bem, tocar piano, pintar... — Hoje recebi outra carta de Matt. Pobre rapaz, ele está numa situação aflitiva.
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Essa é a terceira carta em duas semanas. — Você não sabe se existe alguém disposto a contratar uma mulher contadora? Sou espertíssima quando se trata de contas. — Isso não ajudou Gussy em nada, não é mesmo? Com ar surpreso, Rose levantou o olhar depressa. — Não, sinto muito. - admitiu. Se houvesse contado com a oportunidade, talvez tivesse salvado algo, mas antes de poder examinar a papelada, já era tarde demais. — Desculpe, menina, você não merecia ouvir isso. Será que não? Mas esse não era o momento para juntar sentimento de culpa ao de incompetência. Se pudesse manter a cabeça no lugar, os pés no chão e o espírito animado, conseguiria vencer a crise. — Hoje, fui ver um emprego de dama de companhia. O salário é baixíssimo e, caso me aceitem, terei de dormir no sótão. Por causa do teto inclinado, não dá para eu ficar em pé lá. Mas a vista para o jardim é linda. — Como eu disse, a situação de Matt é aflitiva. Rose capitulou de boa vontade. Vinha falando sem parar sobre os próprios problemas enquanto Bess a ouvia. Nada mais justo que retribuísse a atenção. — Você se lembra do que lhe falei sobre meu sobrinho? Rose já sabia tudo a respeito do Capitão Powers, dos membros de sua tripulação confinados em terra firme e do bebê herdado. Bess possuía a habilidade de contar histórias e nunca perdia a oportunidade de exercitá-la. — Ele não pode procurar uma babá numa agência de empregos? Há tantas mulheres procurando trabalho honesto - sugeriu Rose. — Algumas não são tão honestas e não impõem respeito, calculo. Você aceitaria o emprego se lhe fosse oferecido? - indagou Bess. Embora a proposta parecesse tentadora, Rose não estava disposta a sair da lama para cair no atoleiro. Já havia aprendido que não sabia fazer escolhas repentinas. Outro ponto importante era o fato de que empregos descritos de maneira atraente nem sempre correspondiam à realidade. Além do mais, embora seu coração se condoesse por qualquer criança órfã, ela não tinha certeza de querer se envolver com um parente de Bess. — Não desisti de encontrar algo aqui. Só porque o emprego ideal ainda não apareceu não quer dizer que não surja amanhã. — Tolice minha perguntar. Caso se tratasse de um casal precisando de alguém
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para cuidar da filha, eu tentaria convencê-la a aceitar o emprego. Mas não posso mandar uma jovem decente para uma casa onde moram só homens. Não seria correto. — Ele é seu sobrinho. Você não poderia escrever suas histórias lá e também cuidar do bebê? Bess esvaziou a xícara de um gole só e a reencheu apenas com conhaque. — Sou uma solteirona, uma viajante impulsiva e escritora. Não tenho tempo nem vontade de ser babá. Contudo, acho que a pobrezinha merecia ser cuidada por uma mulher e não por um bando de marinheiros rudes. Conheço todos eles e sei que são muito bons, mesmo assim... Bess já havia contado a história toda a Rose, repetindo o que o sobrinho lhe escrevera sobre a morte de três pessoas. Apostava como vários detalhes tinham sido omitidos. — Verdadeira tragédia. - murmurou, franzido a testa ao ver a xícara vazia outra vez. Tinha a firme intenção de descobrir tudo a respeito daquele caso sórdido, mas no momento oportuno. Ao pesquisar fatos para o enredo de uma história, não gostava de saber todas as minúcias que unia vez só. Nem tudo que escrevia sobre viagens era real, mas sempre havia um fundo de verdade. — E não há parente algum de ambos os lados? - Rose persistiu. — Nem sombra. Matt procurou e não encontrou nem um primo distante. Pobre Billy, rapaz mais encantador que se poderia encontrar. Mas nunca se sabe. - Bess sacudiu os ombros gorduchos e cobertos por seda. — Enquanto agonizava, Billy suplicou ao meu sobrinho para cuidar da filha e Matt, que Deus o ajude, deu sua palavra que o faria. Ele tem um coração de ouro. Puxou por mim. Filho único, de meu irmão, você sabia? Rose suspirou. — Acho que isso resolve a questão. Bess massageou o joelho e maldisse o tempo frio e úmido demais até para o início de março. — Resolve coisa nenhuma. Ser um homem de palavra é muito louvável, mas isso não vai ajudar a pobre criança nem um pouco. Por que tenho a sensação de estar sendo manipulada? Rose respondeu a própria indagação silenciosa. Porque vinha correndo às cegas e em círculos havia muito tempo. Durante os longos meses em que se vira encarregada dos cuidados constantes com a avó tirana, sua tristeza pela perda do bebê tinha sido posta de lado. Agora,
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voltava tão forte e dolorosa como se o fato houvesse acontecido dois dias atrás e não dois anos. Seria melhor se tivesse aconchegado a criança entre os braços antes de perdê-la do que jamais a ter carregado?, perguntou-se. Não havia resposta, apenas o vazio familiar. Com um brilho no olhar, que Rose começava a reconhecer, Bess anunciou: — Sabe, venho pensando que se você decidisse... De repente, Rose sentiu-se desconfiada, mas pôs a culpa no cansaço e no desânimo. Levantou-se e pegou a bolsa e as luvas. — Bess, você se importa se deixarmos o resto da conversa para amanhã? Acho melhor voltar já para a pensão. Amanhã bem cedo, tenho uma entrevista. — Para outro emprego de governanta? — É, sim. O salário também não é alto, mas não vou ter de dormir no sótão. Segundo a dona da casa me informou, há dois quartos ao lado da cozinha. — Com toda a certeza, uma cama na despensa e um mordomo libidinoso olhando pelo buraco da fechadura. Às vezes, a imaginação de Bess passava dos limites, pensou Rose, indignada. — Tenho certeza de que um mordomo respeitador jamais sonharia... — Mordomos são homens, não é verdade? Bem, como eu ia dizendo, estou refletindo sobre uma possível solução. Deixe-meeu conversar primeiro com Horace para saber se é legal. Saber se era legal! Rose despediu-se. De forma alguma queria saber do que se tratava. Já era tarde, estava exausta e ainda tinha de passar a ferro seu melhor vestido de sarja preta antes de ir dormir. Naquela noite, enquanto bebiam conhaque e fumavam charutos, Bess apresentou sua solução ao velho amigo. Se fossem uns cinquenta anos mais novos, ela poderia considerá-lo como namorado, mas na idade atual deles, era impossível fazê-lo. — Conforme encaro a situação, o problema é o seguinte. Tudo começou com a mãe do rapaz, mulher extremamente leviana e fútil. Os homens da família Powers sempre foram sólidos como uma rocha, mas, sem nenhuma exceção, nunca tiveram um pingo de bom senso em relação a mulheres. Jamais acertaram na escolha. Primeiro, a cabeça-de-vento com quem meu irmão se casou e, depois, aquela assanhada que preparou a isca para Matt, atirou-lhe o anzol e o fisgou para, em seguida, largá-lo como um peixe fora d'água. — Você está se referindo àquela moça que convenceu seu sobrinho a vender o
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navio, certo? Se quer minha opinião, foi um negócio nebuloso. Dela e do pai. Se não me engano, já há especulações sobre a origem dos fundos da firma. — Pode muito bem ser, mas no momento, do que o rapaz precisa é uma mulher decente, respeitada e de caráter firme. Como Rose possui tais qualidades, me ocorreu que ela serve muito bem para meu sobrinho. Não se pode dizer muito sobre sua aparência, mas cuidou bem de Gussy. Aposto como fará o mesmo com o bebê de Matt. Ela não dá a impressão, mas sob aquele seu jeito submisso, existe uma boa dose de determinação. — Ora, ela até que pode atrair olhares. Apenas não é do tipo comum. Cinco homens, você falou? Horace apreciou uma tragada do charuto enquanto olhava carinhosamente para a amiga gorducha e pequenina, sentada em frente a ele. — Quatro, depois que Billy morreu. — Pelas circunstâncias, uma mulher mais velha seria melhor. — Não olhe para mim, Horace Bagby. Cuidar de uma criança é trabalho de tempo integral. Tenho meus compromissos e minhas manias. A vida inteira fui irrequieta e não gosto de me acomodar num lugar. A tripulação de papai gastava a metade do tempo tentando me impedir de subir ao mastro pela escada de cordas. E eu mal havia começado a andar. Muitas vezes, tinham de pular ao mar para me pescar. Eu queria provar que podia caminhar pela amurada, mas acabava tropeçando e caindo na água. Nem sei quantas vezes isso aconteceu. Horace sorriu-lhe com ar indulgente. Conhecia Bess havia quase meio século. — Continua tentando provar sua capacidade de executar proezas, não é, Bessy? Você não mudou muito, minha querida. — Será mesmo? Mas, voltando ao que eu dizia. Uma mulher com minhas responsabilidades, não dispõe de tempo e uma jovem, ainda mais decente, não pode ir morar numa casa cheia de homens. Não seria apropriado. Portanto, ouça bem o que tenho em mente. Cinco minutos depois e sem disfarçar a admiração, Horace balançou a cabeça. — Quanto à legalidade, não há problema. Mas duvido muito que seu sobrinho concorde com a sugestão. — Deixe Matt por minha conta. Quando um homem está se afogando, agarra qualquer coisa que passa flutuando por ele. Transcorreram mais três semanas durante as quais um sem número de telegramas e cartas foram trocados. Na primeira, Bess explicou claramente seu plano.
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Conhecia uma jovem viúva, trabalhadeira, limpa, decente, de físico forte e temperamento dócil, que precisava muitíssimo de um lugar para morar. Porém, ela, Bess, não podia mandar uma mulher nova e honrada para uma casa onde só havia homens. Contudo, se Matt estivesse disposto a se casar com ela, apenas pelo bem do bebê, o problema estaria resolvido. Matt não concordou e escreveu imediatamente, dando a ênfase necessária. Nesse caso, Bess respondeu, nem ela e nem seu amigo Horace Bagby, o advogado que representava a moça em questão, poderiam recomendar-lhe o emprego. Lamentável, pois ela era eficiente, de confiança, honesta e excelente para lidar com crianças.
“Se você mesma não pode cuidar de Annie, tente arranjar uma outra pessoa. Eu não quero saber de uma esposa.” - Matt telegrafou. Enquanto isso, com quase três meses, Annie experimentou, pela primeira vez, alimentação sólida. Consultada antes, a dona da cabra tinha afirmado que só se dava comida a uma criança quando ela fizesse um ano ou, pelo menos, já tivesse muitos dentes. Até então, só leite. Annie gostou do mingau ralo de aveia, preparado por Crank, tanto quanto um gato de peixe cru. Ela já tinha uns fiapos de cabelo claro e aprendera a sorrir. Luther vangloriava-se de a ter ensinado a fazê-lo, mas na opinião de Matt, o sorriso era igualzinho ao de Billy. muito.
Isso o entristecia, o que era melhor do que ficar bravo e frustrado, mas não
Bess comunicou-lhe que, depois de muita procura, tinha encontrado umas poucas mulheres dispostas a ir morar naquele fim de mundo. Mas isso porque não conseguiam mais empregos no continente. Ou estavam decrépitas ou precisavam fugir de alguma confusão. Ela havia acrescentado lamentar muito que seus esforços não tivessem sido de grande valia. Exasperado, Matt respondeu imediatamente. Ao longo da correspondência, ele tinha dispensado as formalidades. Em sua opinião, Bess não era um modelo de tia dedicada e ele detestava ser chamado de "rapaz".
“Diabos, Bess, venha me ajudar! Caso contrário, Annie continuará sem os cuidados necessários e isso há de pesar em sua consciência.” Bess se fez de desentendida na carta seguinte.
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“Não vejo o que posso fazer além do que sugeri. Você não quer uma mulher. Minha amiga também não quer outro marido. Portanto, um casamento por procuração, mantido só no papel, satisfaria as convenções sociais sem envolvê-los numa situação indesejada por ambos.” Ao ler para Horace a resposta afirmativa de Matt, Bess exibia um sorriso de orelha a orelha. — Eu não garanti que daria certo? Bastou agir passo a passo, sorrateiramente, e, então, deixar cair a armadilha. — Bess Powers, você é uma mulher malvada. Devia ter sido advogada. afirmou em tom de admiração.
Horace
— Não, só foi preciso criatividade para formular o plano e contar com um advogado para cuidar dos detalhes. — Nós formamos um bom par. Agora, só resta convencer Rose. Embora temessem isso não foi tão difícil como teria sido um mês antes. Como sabia a história toda, Rose visualizava a ilha árida, a casa velha e a criança desamparada. O lugar não podia ser tão ruim, pois Bess, pessoa exigente e meticulosa, havia estado lá várias vezes. Mas não se podia confiar muito em seus relatos. Ora, ela também tinha escrito histórias sobre rios infestados de crocodilos e de canoas cujos remadores usavam cocares de pena e tangas em vez de calças. A tal ilha não ficava muito distante. E Rose também sabia que vários pescadores moravam lá com suas famílias. Isso queria dizer que contavam com recursos suficientes. Talvez vivessem melhor do que ela no Estado civilizado de Virgínia. Seus últimos empregos não tinham durado muito. Um fora como ajudante de governanta num internato para meninas. Depois de espirrar dois dias seguidos, havia descoberto que era alérgica a giz. A sorte parecia ter mudado ao ser contratada para cuidar de sete crianças cujas idades iam de cinco meses a onze anos. Mas uma noite, o pai delas havia batido na porta de seu quarto, com um robe de seda, e sugerido que tivessem um colóquio em particular. Rose tinha fechado a porta na cara dele, arrumado a mala e ido embora. Depois disso, fora forçada a baixar o critério na busca de serviço. A fome fazia isso às pessoas. Havia ido trabalhar como ajudante na cozinha do restaurante mais famoso da cidade. Ficara lá apenas quatro horas, pois o cozinheiro a tinha beliscado na nádega enquanto elogiava seus seios.
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Pelo menos, estava aprendendo a fazer escolhas melhores. Porém, tinha se visto na emergência de pedir dinheiro emprestado a Bess a fim de pagar a pensão. Por causa disso, encontrava-se sentada diante dela e do Sr. Bagby, ouvindo-os apresentar sua proposta. Não tivera opção. Eles já o tinham feito antes e sua resposta fora uma recusa enfática. — Muito obrigada por seu interesse, mas não estou à procura de novo marido. A situação talvez não seja boa no momento, mas ela é provocada pelo grande número de pessoas procurando emprego ao mesmo tempo. Li isso no jornal um dia desses. Fora na véspera. E nesse dia, concordara em ouvi-los outra vez, mas não tinha a mínima intenção de mudar de ideia. Um marido fora mais do que suficiente. Contudo, Bess a tratava com bondade e ela lhe devia mais do que poderia pagar com facilidade. — Trata-se apenas de um arranjo formal para sua própria proteção. - Horace explicou e Rose intuiu que Bess o dominava. Abriu a boca para falar, mas Bess o fez antes. — Entenda uma coisa. Tanto quanto você, Matt não quer se casar. Se está disposto a fazê-lo é porque atingiu o auge do desespero e aceitaria se casar com o próprio demônio. Graças a isso, o plano é perfeito. Imaginando se não tinha sido insultada, Rose tentou falar novamente. Dessa vez, foi Horace quem a impediu de expor as objeções. — Esse tipo de arranjo é comum e conveniente. Como expliquei antes, é feito por procuração, com testemunhas e dentro da legalidade como qualquer outro contrato. Além disso, a união pode ser desfeita a pedido de qualquer uma das partes. Hesitante, Rose apenas murmurou na terceira tentativa: — Para ser franca, não sei. Bess evitou olhar para Horace. Ambos sabiam que a batalha estava ganha. E que história daria, ela pensou, animada. Naturalmente, deixaria passar um bom tempo antes de pô-la no papel. Até então, já estaria a par de todos os detalhes do pseudo-acidente. Também, claro, mudaria os nomes de todas as pessoas envolvidas no caso. A coragem de Rose resistiu até o fim. Porém, ao ver a assinatura tremida, Augusta R. L. Magruder, na certidão de casamento, seus joelhos ameaçaram dobrar. — Ai, meu Deus, isto é um erro. - balbuciou. — Você está adorável, minha cara. - Horace disse como se o casamento não fosse um arranjo de conveniência. Rose sabia que não estava bonita e sim esverdeada.
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— O Capitão Powers vai ficar satisfeito, tenho certeza. — Você fez uma boa escolha. Bess me afirmou que seu marido é um homem de recursos. Tomei a liberdade de investigar... — Não! - como continuassem a falar, Rose repetiu: — Não! As três outras pessoas na sala a fitaram, surpresas. Além de Bess e Horace, estava presente o procurador do noivo ausente, um dentista cujo consultório ficava no fim do corredor. — Lamento, mas não posso fazer isso. O senhor disse que a união poderia ser desfeita se eu quisesse. Como devo proceder? — Calma, Rose. - disse Bess. — Ele não vai gostar de mim. Sou mal-humorada, alta demais, não tenho dotes sociais e não entendo nada de crianças. — Todas as pessoas parecem altas para um bebê. E Matt não saberia reconhecer um único dote social. Não gostará de você só se for um idiota. Quanto a seu mau humor, não se preocupe, pois passará tão logo você pare de se lamentar. — E se eu não gostar dele? — Fará pouca diferença. Matt irá embora assim que você estiver acomodada lá. Desde que vendeu o navio, o rapaz só pensa em voltar para o mar. Ao ver o olhar determinado de Rose, Bess acrescentou depressa: — Todavia, me ocorreu uma outra ideia excelente. Rose não sabia se conseguiria sobreviver a outra ideia excelente de Bess, mas no momento, sentia-se fraca demais para fazer qualquer coisa que não fosse sentar-se e ouvi-la.
Capítulo III
Os últimos remates de porta e janela do quarto de Annie tinham sido pregados naquela manhã. Quando Peg se mostrara determinado a construí-lo, Matt havia mandado que fosse ao lado do último do corredor que, mentalmente, tinha designado à Sra. Powers. Não pretendia compartilhar o seu com a mulher.
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Bess e a companheira poderiam decidir a questão entre si. A tia ficava sempre no mesmo quarto cuja vista apreciava muito. Ele duvidava seriamente que Bess fosse de alguma utilidade em relação a Annie. Quanto a sua companheira, ele lhe ficaria muito grato se cuidasse da criança até a esposa aparecer. Esposa. Bela ajudante ela mostrara ser, Matt pensou com amargura. Estavam casados havia quase duas semanas e ele ainda não tinha visto a mulher e, muito menos, lucrado com a união. Segundo Bess, ela havia sido chamada, logo após o casamento, para ir cuidar de uma parenta enferma em outra cidade. E agora, em vez de uma, ele teria de enfrentar duas mulheres. Bess não tinha explicado nada com clareza, mas se a conhecia bem, tinha certeza de que seria a viúva Littlefield quem se encarregaria de Annie. Como se considerasse uma escritora famosa, Bess embaralhava tanto as palavras que a combinação de preto e branco poderia significar uma centena de tonalidades cinzentas. — O barco do Correio já apontou no canal, Capitão. Quer que eu atrele a carroça? - perguntou Crank. O cozinheiro havia passado a manhã toda preparando pães e tortas. Quando tinham visitas, o cardápio melhorava muito. Ótimo, pois Matt já estava cansado de comer feijão, peixe e broa de milho. — Diga a Luther para fazer isso. Há tanto tempo em terra, os homens não observavam mais o protocolo de bordo, mas continuavam a procurar o Capitão antes de agir. Matt retornou a atenção aos relatórios que vinha estudando a manhã inteira. O Black Swan estava tendo prejuízos a cada viagem. O Capitão, contratado pelo consórcio para dirigi-lo, era um idiota incompetente, sem a mínima noção de negócios. Segundo a fonte de informações de Matt, no escritório da Autoridade Portuária, o Black Swan tinha perdido carga ao estocá-la mal, dinheiro por causa do atraso frequente da entrega de mercadorias e sofrido severas avarias numa tempestade na costa de Barbados. Estas não tinham sido reparadas adequadamente antes de encetarem a viagem de volta. Matt praguejou. Seu primeiro navio, o Black Swan, sempre fora motivo de orgulho e alegria. Pelo que vinha acontecendo, quando o readquirisse, o navio só serviria para o transporte de carvão. Jamais o degradaria a tal ponto. Seria preferível e mais digno afundá-lo. Por pouco tempo, até considerara comprar uma embarcação pequena e rápida e se dedicar ao comércio costeiro. Aliviaria o tédio da longa espera por seu navio. Viajando do Maine a Savannah, ele não teria de ver a mulher, quando e caso ela desse o ar da graça finalmente, mais do que uma ou duas vezes por ano.
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Tolice, pois as tentativas para comprar o Black Swan estavam destinadas a ter sucesso. Se mantivesse isso em mente e dedicasse todo o esforço possível na transação, esperaria o tempo que fosse necessário. Afinal, a escuna de três mastros era sua verdadeira paixão e ele haveria de tê-la de volta. Baixinho, murmurou: — Então, Sra. Powers, ouça bem de onde estiver. Você poderá ficar com Powers Point, acompanhado de minha bênção.
Rose virou-se de lado na enxerga imunda do beliche minúsculo que, sem dúvida, fora feito para alguém da metade de seu tamanho. Apertou bem os olhos fechados e lutou contra nova onda de náusea. Jamais havia imaginado que o balanço de uma embarcação provocasse tamanho mal-estar. Sua vontade era sumir da face da terra, ou melhor, do mar. Bess tinha lhe dado um pedaço de gengibre para mastigar o que lhe proporcionara um certo alívio. Mas, após o pequeno barco do Correio, jogando terrivelmente, ter parado numa infinidade de ilhas, ela rezava apenas para morrer depressa. Quanto a Matthew Powers e o bebê, ela desejava nunca ter ouvido falar neles.
Bess pôs a cabeça na porta e, animada, anunciou: — Está na hora de se arrumar. Tendo sido criada a bordo de um navio e sendo viajante experiente, ela havia passado o tempo todo do trajeto na casa do leme, ouvindo histórias e tomando notas. — Por favor, me deixe morrer em paz. - Rose suplicou sem abrir os olhos. Não tinha energia alguma para se arrumar. Poderiam abrir uma cova e enterrá-la na próxima parada que não se importaria. Jurava que nunca mais poria os pés num barco. — Ninguém morre de enjôo marítimo. — Mas se deseja que isso se torne possível. - Rose respondeu. Retesando o corpo a fim de se defender do balanço contínuo da embarcação, esperou um instante para ver se não precisaria do balde outra vez. Então, levantou-se.
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— Acho bom você saber que jamais voltarei da ilha. A menos que alguém descubra um caminho por terra para se sair dela. — Olhe, mastigue isto. Vai se sentir melhor. - disse Bess, dando-lhe um raminho murcho de hortelã. — Depois, belisque as bochechas para melhorar sua palidez e ajeite os cabelos. Você não quer que seu marido pense que se casou com o fantasma de um espantalho, não é? — Ele não será meu marido até que eu o informe. - Rose resmungou. — Isso pode esperar. Lembre-se, você veio para conhecer a situação antes de assumir um compromisso permanente. Como poderia esquecer?, Rose indagou-se. Não sabia o que era mais absurdo, casar-se com um desconhecido ou esconder o fato de tê-lo feito. Durante anos, protestara por não poder fazer as próprias escolhas, mas quando havia tido a oportunidade de impor sua vontade, errara. Dessa vez, pretendia ser paciente, analisar a situação sob todos os ângulos e refletir cuidadosamente antes de tomar uma decisão. Rose lavou o rosto com sabonete de lilás, seu perfume preferido, e, depois, passou as mãos molhadas pelos cabelos soltos. Havia desmanchado as tranças porque doía-lhe a cabeça deitar sobre elas. Agora, os cabelos lembravam corda velha e esgarçada. Certa vez, a mãe lamentara que tudo nela tinha a cor de capim morto. Os cabelos eram muito escuros para serem considerados loiros, mas, claros demais, não atingiam o castanho. Os olhos tinham a cor de latão não polido e a pele, a da casca do salgueiro. Graças ao bom Deus, refletiu Rose, ele não saberá quem eu sou. E não se importará com a aparência da secretária e dama de companhia da tia. Contudo, um pouco depois, ao se encontrar no tombadilho do barco que continuava a balançar, Rose não se sentia muito reconfortada com o anonimato. Com uma ponta de cautela, olhou para as pessoas que aguardavam a chegada do barco. Procurava alguém parecido com Bess, baixo, corpulento, com cabelos vermelhos, queixo proeminente e olhos escuros e de expressão rabugenta. Não importava o quanto a primeira impressão dada pelo sujeito fosse ruim, ela não faria um julgamento precipitado. Só tiraria conclusões após refletir e observar profundamente. Animada, Bess juntava a bagagem de mão que se constituía, em grande parte, de livros e cadernos. Enquanto isso, um jovem marinheiro providenciava o desembarque dos baús de ambas. Se não exigisse tanta energia, Rose se revoltaria contra as pessoas que se mostravam tão bem-dispostas após a longa viagem pelas entranhas do inferno. — Lá está Luther! Ele veio nos buscar.
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Sacudindo o guarda-sol, Bess marchou com firmeza pela prancha estreita e trepidante. Rose a acompanhou cautelosamente e tentando não olhar para o movimento da água escura entre o cais e o barco. O vento quase lhe arrancou o chapéu preso com o único grampo que havia encontrado antes de desfazer as tranças. Segurou-o com uma das mãos enquanto a outra impedia que a saia se levantasse. Luther, um rapaz atraente, cujo olhar sério disfarçava-lhe a juventude, sorria timidamente enquanto as ajudava a subir na carroça. Bess.
— Fizeram boa viagem? Muito tempo que a senhora não aparecia por aqui, Srta.
— Como vai, Luther? Imagino como sente falta do pobre Billy. - Bess comentou e, sem nem fazer uma pausa para respirar, prosseguiu: — Pensei que Matt ia providenciar um cavalo para puxar a carroça. Ele não conhece a diferença entre uma égua e uma mula? — Ah, esta aqui é Angel. Ela veio a nado de uma balsa que afundou em janeiro. Como ninguém da ilha a quisesse, ficamos com ela. Como toda mula, ela não é muito esperta, mas aceitou logo os arreios. - virou-se para Rose e sorriu. — Temos cavalos muito bons, caso a senhora goste de cavalgar. Rose nunca tinha andado a cavalo. Costumava dirigir a própria charrete ou usar uma carruagem de aluguel. Uma carroça puxada por mula era uma experiência nova. Não posso acreditar que eu tenha concordado com este esquema louco, pensou pela centésima vez quando partiam rumo a Powers Point. A estrada de areia, além de estreita, tinha sulcos profundos que faziam a carroça sacolejar. Ela devia ter procurado um emprego no asilo, pois acabaria em um, obviamente. Luther perguntou a Bess se havia alguma notícia da mulher do Capitão. Rose sentiu o rosto pegar fogo. — Ela virá para cá por conta própria. - Bess respondeu calmamente. — Como vai Peg? Ainda sofre muito? Explicou a Rose que o carpinteiro do navio de Matt tinha fraturado vários ossos quando, durante uma tempestade em alto-mar, em 1891, um barco salva-vidas tinha se soltado e batido nele. As dores ainda o perturbavam todas as vezes que o tempo mudava. — Continua na mesma, mas isso não o impede de trabalhar. Construiu um quarto para Annie e, assim, a madame e a Sra. Littlefield poderão escolher os que quiserem. Sra. Littlefield. Deus do céu, sou eu. Não Augusta Rose, nem Sra. Matthew Powers. Sou Rose Littlefield novamente. O rapaz fez um barulho com a língua e os dentes enquanto batia com as rédeas
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nas costas da mula. — Mais depressa, Angel. Não temos o dia inteiro para chegar em casa. - em seguida, retomou o assunto anterior: — Acho que a Sra. Powers, caso estivesse aqui, determinaria o quarto de cada uma. Mas até agora, ela não apareceu. — Tão logo a mulher de Matt chegue, iremos embora. Como sempre digo, basta uma mulher numa casa. - afirmou Bess. Diz mesmo? Pois eu nunca ouvi. Mas também você fala tantas coisas... Rose sabia que estava sendo maldosa e prometeu a si mesma a ter pensamentos mais caridosos caso se recuperasse daquela viagem pavorosa. Com o olhar fixo nos dedos entrelaçados no colo, esperou, ansiosa, para ver se a trepidação da carroça a afetava da mesma maneira que a do barco. Não, evidentemente. A cabeça ainda rodopiava um pouco, mas o estômago não ameaçava mais se rebelar. Aos poucos, ela começou a notar o panorama. Não podia esquecer que ficaria confinada ali até decidir se aceitaria, ou não, o casamento no papel. Em caso negativo, teria de criar coragem para embarcar naquele barco horrível a fim de voltar para casa. Mas onde seria sua casa? Sua única impressão, depois de deixarem a vila, era de extrema aridez. Areia, uma faixa de capim ralo à esquerda, a trilha estreita e irregular e uns arbustos raquíticos, cobertos por parasitas, à direita. E água. Com o Atlântico de um lado, Pamlico Sound do outro, e, segundo Bess, enseadas nas duas extremidades, ela não passava de uma prisioneira da água. Conhecia bem Cape Cod e Cape May, pois havia passado férias nos dois balneários famosos com os pais. Robert tinha querido construir uma casa em Cape Cod, mas apenas conseguira erguer um pequeno chalé em Smith Creek, nos arredores de Norfolk. Mas aquele lugar deserto não tinha nada em comum com os dois balneários requintados, exceto a água. A vila contava apenas com umas poucas casas sem pintura, espalhadas a esmo sob carvalhos frondosos e cobertos de musgo. Não havia ruas, lojas, apenas um pequeno armazém, umas poucas sepulturas num canto afastado, barcos sendo consertados e redes que, esticadas entre galhos dos carvalhos, lembravam teias gigantescas de aranha. A trilha irregular seguia agora ao longo de uma praia e o vento obrigou Rose a segurar o chapéu. Imaginava por que qualquer criatura escolheria um lugar tão desolado para morar. Sem dúvida, ela não era a única a fazer a escolha errada e sofrer as consequências.
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Powers Point que, segundo Bess, pertencia à terceira geração da família, foi surgindo aos poucos. A propriedade de meu marido, Rose pensou enquanto estudava as construções. Nenhuma de chamar atenção, concluiu depois de uns instantes. — Lembra-se de Jericho, Srta. Bess? Matt já o amestrou o suficiente para cavalgá-lo sem ser atirado da sela mais de uma ou duas vezes por dia. - Luther contou em tom orgulhoso. — É mesmo? Eles combinam bem. Um tão teimoso quanto o outro. Para Rose, ela explicou que Jericho era um garanhão bravo que o sobrinho tinha comprado no continente, num momento de fraqueza. Consolando-se com o fato de que até homens faziam escolhas desastrosas, Rose arregalou os olhos ao distinguir a única construção que lembrava uma residência. Sem pintura, com certeza fora erguida a esmo, sem planejamento algum. Talvez tivesse sido uma casa comum, de dois andares, antes de lhe acrescentarem dependências sem consideração a estilo e harmonia. Havia cumeeiras sem a mínima simetria entre elas, janelas dos mais diferentes modelos e até uma pequena sacada, na parte mais alta do telhado, conhecida como "posto da viúva". — Quem teve a ideia de fazer aquilo? - Bess indagou, apontando para a sacada. — Peg. Ele achou que, agora que o Capitão se casou, talvez a mulher queira vê-lo ao largo. Quando contornar o cabo, ele poderá acenar uma bandeira ou qualquer outra coisa para ela distinguir o Black Swan dos outros navios. - explicou Luther. Misericórdia, ele se referiu a mim, Rose pensou ao imaginar-se lá em cima do telhado, sacudindo um lenço para cada navio que passasse. No que lhe dizia respeito, a única vantagem da casa do marido era a localização num ponto alto, seco e sólido. Cada construção horrorosa parecia avisar: Sou exatamente assim. Você me aceite ou não, estou aqui para ficar. Mais ou menos sua própria posição. Mentalmente, anunciou: Aqui estou. Isto é o que e quem sou. Vocês podem me receber bem, ou não. Pouco importa, desde que alguém me ofereça uma cama e me deixe em paz pelos próximos anos. A mula parou e várias galinhas carijós aproximaram-se cacarejando. Luther enfiou a mão numa saca na parte de trás da carroça e atirou-lhes um punhado de milho. — Entre logo, madame, e ponha-se à vontade. A Sra. Littlefield também. Devem estar cansadas. Assim que desatrelar e der de comer à mula, levarei sua bagagem para dentro. Bess desceu com a desenvoltura de uma pessoa com a metade de sua idade. Rose foi mais vagarosa, pois temia que os joelhos dobrassem.
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— Matt, chegamos! Onde está o tal bebê? Enquanto acompanhava Bess pela areia, Rose ouviu a porta da casa abrir. Olhou para lá e não acreditou no que via. Aquele era o sobrinho de Bess?! Um gigante?! Aquele era seu marido?! Ela controlou um novo acesso de náusea e pensou se não seria tarde demais para apanhar o barco do Correio a fim de escapar dali. Enjôo marítimo era terrível, mas violência física, muito pior. Ela ainda tinha pesadelos com os que sofrera, especialmente em noites de tempestade. Se aquele homem perdesse o controle e a agredisse, ela não sobreviveria. Os braços grossos dele lembravam galhos de árvores antigas. — Rose, aproxime-se e me deixe apresentá-la a meu sobrinho. Matt, esta é a Sra. Littlefield. Ela é minha secretária e dama de companhia. Mas vou emprestá-la a você por algum tempo. Quando Bess dissera que todos os Powers não fugiam às características da família, Rose tinha pensado que eram, sem exceção, baixos, robustos e de cabelos vermelhos. O homem à sua frente tinha bem mais de um metro e oitenta de altura, mesmo sem botas, e cabelos negros como carvão. Caso houvesse um pouco de gordura sobrando no corpo musculoso, não se notava àquela distância. Rose tinha convivido com homens. Havia o pai e os filhos de casais amigos com quem brincara na infância, mas que passaram a ignorá-la na adolescência. E Robert, naturalmente. Nenhum deles tinha sido tão absoluta e ostensiva virilidade como o homem em pé no terraço. A fivela do cinto dele estava no nível de seus olhos e a calça justa praticamente alardeava-lhe a masculinidade. Misericórdia... — Rose, qual é o problema? Você continua enjoada? - Bess indagou è, então, explicou ao sobrinho: — Ela passa mal em barcos. Estamos cuidando disso, mas será muito bom que ela passe um longo período em terra firme. Foi preciso o resto da coragem de Rose para subir os cinco degraus de madeira, cobertos de areia, e entrar em casa atrás de Bess. Ao passar pelo homem que mantinha a porta aberta, prendeu a respiração, mas sentiu o calor emanado do corpo dele. Embora lá fora o tempo estivesse frio e úmido, ele usava apenas uma calça de sarja preta e uma camisa branca, aberta no colarinho e com as mangas arregaçadas, o que mostrava os antebraços musculosos e cheios de pêlos. — Naturalmente, vão querer descansar um pouco. - ele disse. — Vou mandar
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Crank lhes preparar um chá. Se estiverem com fome, sobraram uns pãezinhos do almoço. Estão frios, mas poderão comê-los com compota de figo ou com presunto e mostarda. Assim, agüentarão esperar até o jantar. - olhou diretamente para Rose. — Sra. Littlefield, será que me ouviu? Parece tão distraída. O estômago de Rose contraiu-se, porém, ela conseguiu fazer um gesto afirmativo com a cabeça. Bess, pediu: — Diga àquele velho cozinheiro para preparar meu chá como de costume. Venha, Rose. Vou lhe mostrar onde pendurar seu chapéu. Enquanto seguiam pelo interior da casa, levadas pelo gigante, Rose nem tentou observar os aposentos, mas sentiu-se aliviada com o cheiro de limpeza, de ventilação e a firmeza do chão sob os pés. — Annie está em seu quarto novo, no fim do corredor. Reservei-lhe o que fica ao lado, Sra. Littlefield. Bess, Crank arejou o seu preferido. A voz era como o próprio dono. Profunda, seca e perigosa. Impossível reconhecer a região de seu sotaque. Nem do sul, nem do norte. Mas o tom autoritário era marcante. Obviamente, Matthew Powers estava acostumado a ser obedecido. Ele abriu a porta do quarto para Rose entrar. Ela não pôde deixar de notar-lhe a mão imensa, mas bem-feita e proporcional ao tamanho do corpo. Vá embora enquanto pode, aconselhou a voz da prudência. Naturalmente, ela não obedeceu, pois para tanto, seria preciso iniciativa, o que ela não possuía. Mas vinha lutando para adquiri-la. — Ora, não é magnífico? - Bess indagou a ninguém em particular. Magnífico não seria a palavra que Rose escolheria para descrever o soalho sem tapete, a enorme cama de ferro, a cadeira de balanço de bambu envernizado, o armário e o lavatório rústicos, sem acabamento algum. Em cima desse último havia uma bacia e uma jarra de louça amarela. Uma colcha branca e simples cobria a cama e o colchão de pena era bem alto. — Há cobertores no armário, a lamparina está cheia e o pavio, aparado. A outra porta dá para o quarto de Annie e a do fim do corredor vai para a casinha. — Casinha?! - Rose repetiu num fio de voz. — O sanitário. - Bess explicou e, com as mãos na cintura, virou-se para o sobrinho: — Você já ouviu falar em encanamento interno? Espera que Annie cresça como um bicho do mato? — Ora, não venha me dizer que você não usou as moitas da floresta amazônica sobre a qual escreveu no ano passado. O sorriso do homem era contagioso, Rose percebeu, surpresa. Felizmente, ela
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era imune. Já sofrera as consequências de um. — Vou lhe mandar um catálogo quando voltar para casa. - disse Bess em voz áspera. — Faça isso. Rose encostou-se no batente da porta. Desejava que os dois fossem embora e a deixassem em paz. Se pudesse dormir por algumas semanas, talvez fosse capaz de enfrentar aquele olhar sombrio, enigmático, a voz profunda com laivos de irritação, ironia e de outras coisas difíceis de serem identificadas. Apenas náusea já era horrível, mas acrescida de medo e de sentimento de culpa, tornava-se insuportável. Ela não sabia se conseguiria continuar com a encenação arquitetada por Bess. — Venha conhecer Annie. - o Capitão sugeriu. — Quem, eu? - Rose indagou com falta de tato. — A senhora, sim. Quase sem cambalear, ela o acompanhou com o olhar fixo num horizonte imaginário. Bess havia dito que isso ajudava a manter o equilíbrio. Mas neste caso, as costas do Capitão ocupavam o horizonte. Elas eram mais impressionantes do que a frente. Musculosas, desciam dos ombros largos, afinavam nos quadris e terminavam nas pernas longas. Estas funcionavam com tal economia de movimentos que seu estômago voltou a protestar. Pensar que estivera casada quase dois anos e nunca tinha percebido a diferença entre o andar masculino e o feminino. — Pedi para Peg construir o quarto aqui a fim de facilitar o trabalho da mulher que mandei buscar. — Matthew Powers, isso lá é jeito de se referir a sua esposa? A mulher que mandou buscar? - Bess o censurou. — Que esposa? - ele indagou com sarcasmo. Virou-se e o sol da tardinha iluminou-lhe o rosto, dando a impressão de que o queixo firme era esculpido em bronze. O nariz quase reto, sem dúvida, indicava orgulho. Atraída pelo choramingar da criancinha, Rose passou por ele e entrou no quarto. O coração confrangeu-se e os olhos encheram-se de lágrimas ao ver o bebê com uma camisolinha feia, de musselina grosseira. — Esta é Annie. O homem tinha vindo silenciosamente atrás de Rose. O inesperado tom carinhoso da voz dele ameaçou descontrolá-la. Ajoelhando-se, ele pegou a criança e pôs-se a balançá-la enquanto murmurava: — Annie, esta é a Sra. Littlefield que vai cuidar de você por algum tempo. Ela não provoca olhares de admiração, mas tem cabelos, pelo menos.
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Incrédula, Rose piscou. Sabia muito bem que não merecia um segundo olhar, pois ouvira isso a vida inteira. Mas, com toda a certeza, tinha cabelos, aliás, muitos e bem compridos, embora fosse da cor de capim morto. — Ela aceita qualquer alimento, mas até agora, só lhe demos leite em pó e mingau ralo de aveia. Tentamos leite de cabra, mas fez mal à pobrezinha. Então, claro, Rose percebeu que ele vinha lhe descrevendo Annie e não ela à criança. Quase se sentiu comovida. — Estou certa de que vamos nos dar bem. Porém, é bom o senhor saber que não tenho a mínima experiência com bebês. — Nenhum de nós aqui tem, mas Annie é uma excelente professora. Bess olhou da porta rapidamente, limpou a garganta e desapareceu no corredor. Observando os olhos azuis e grandes de Annie, aninhada tão carinhosamente nos braços fortes, Rose esqueceu as apreensões e disse baixinho: — Ai, é linda! O senhor acha que ela estranharia se eu a carregasse? — Annie não é exigente, desde que seja atendida. Num esforço e trêmula, Rose riu. Quando o Capitão, cuidadosamente, transferiu a pequenina para seus braços, ela sentiu novas lágrimas. Sabendo que precisava controlar as emoções a fim de não sofrer novamente a dor da separação, Rose prometeu-se fechar o coração. Se o Capitão não gostasse dela, ou vice-versa, teria de ir embora. Não valeria a pena estar muito apegada à criança. Bastava ter perdido o próprio bebê. — Ela está molhada. - informou e o fitou com ar interrogativo. — Ainda não conseguimos ensiná-la. E nem sabemos como fazer isso. - ele explicou em voz grave e sem ter noção da tolice que dizia. — No armário, ao lado da janela, a senhora encontrará fraldas. Vou mandar Crank amornar a mamadeira. Bem... Seja bem-vinda a Powers Point, Sra. Littlefield. De volta ao escritório, Matt tentou em vão se concentrar nas notícias sobre navios e comércio marítimo, publicadas nos jornais trazidos pelo mesmo barco em que as duas mulheres tinham viajado. Desistiu, inclinou a cabeça para trás e, apoiando-a sobre as mãos cruzadas, admirou Vênus que podia ver pela janela. O planeta parecia um diamante sobre um forro de veludo roxo. A tal Sra. Littlefield o surpreendera de certa forma. Não sabia o que tinha esperado. Talvez uma cópia de Bess, baixa, de seios avantajados e autoritária. A tia podia provocar a insanidade mental a qualquer pessoa. Mas sua secretária não tinha lhe causado má impressão, felizmente. Fisicamente, ela não despertava admiração, exceto pelos olhos. De uma cor
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diferente, eles exibiam firmeza. O tipo de olhos que encaravam um homem sem hesitação. Matt, sabidamente, não era especialista em mulheres. Por ter sido abandonado por uma e tapeado por outra, ele se sentia incapaz de estabelecer um relacionamento com qualquer uma, exceto um passageiro e comercial. Desde que se mudara para Powers Point, vinha enfrentando a falta de tal comodidade. Isso o fazia lembrar-se da necessidade de ter uma conversa séria, com a tia, a respeito da Sra. Magruder, aliás, Powers. Bess a tinha descrito como uma pessoa sem sorte, simples, mas forte fisicamente e de temperamento dócil. Ele devia ter insistido no quesito confiança, mas então, já havia cedido. Estava tão desesperado que não se importaria se ela uivasse para a lua desde que cuidasse bem de Annie. Contudo, ela ainda não se dera ao trabalho de aparecer. Matt flexionou os ombros a fim de impedir a tensão dos músculos. Recostou-se na cadeira e apanhou novamente os jornais. No fim da primeira semana, um ponto ficou bem claro. Bess não entendia nada de bebês e não tinha o mínimo interesse em aprender. Dirigindo a carroça com a mula, ela ia todos os dias à vila a fim de colecionar histórias românticas do folclore da ilha. Naquele dia, à mesa do jantar, ela explicou que indagara sobre as mais antigas, a respeito dos primeiros colonizadores ingleses e dos índios Hattorask que se encontravam ali para recebê-los. — Diabo, eu podia ter lhe contado isso. - Matt disse. — Passe o pão. Por favor. acrescentou depressa. — Não pragueje. A Sra. Littlefield não aprecia maneiras rudes. - Bess o censurou em tom severo como se ela não usasse uma linguagem digna de um estivador do cais quando convinha a seus propósitos. — Desculpe, madame. - Matt resmungou. Pediu licença e levantou-se abruptamente a fim de se retirar. — Maldição! Esta casa é pequena demais. - queixou-se a Peg e Crank que haviam preferido jantar na cozinha em vez de na sala de jantar, raramente usada. Os dois velhos levantaram o olhar, mas o retornaram logo às ostras fritas. Por um longo tempo, Matt permaneceu em pé diante da porta de trás que, aberta, deixava o ar frio aliviar o calor da cozinha. Os outros dois, ignorando-o, reencetaram a conversa interrompida. — Ela não fala muito, não acha? - indagou Crank ao servir-se de mais ostras. — Mas tem muito jeito para lidar com a criança. - o carpinteiro comentou depois de passar melado numa fatia de pão.
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— Ah, isso ela tem mesmo. — Olhos estranhos os dela. Uma vez, vi um gato com uns parecidos, da mesma cor. - Peg contou enquanto soltava a corda amarrada na cintura da calça de lona. — Amarelados, eu diria. O que acha, Capitão? Matt flexionou os ombros e manteve-se calado. Já não suportava mais ouvir falar na Sra. Littlefield. Como se não bastasse Bess elogiá-la sem parar, os homens também começavam a manifestar a opinião. Depois de alguns minutos, ele anunciou em tom ríspido: — Amanhã bem cedo, vou até o sul. Os dois homens continuaram a comer. Quando Matt desceu a escada do terracinho e caminhou em direção ao pequeno cais, ao qual o barco usado para pescar estava amarrado, Crank sorriu. Peg balançou a cabeça e disse: — Acho bom a tal esposa aparecer depressa por aqui. A última vez em que o Capitão estava com esse olhar, foi embora e vendeu o Black Swan.
Capítulo IV
Para completa surpresa sua, Rose não podia se lembrar de época alguma de sua vida em que se sentira tão contente. Nem mesmo nos primeiros meses de casamento, antes de descobrir que ela não passava dos meios para se alcançar os fins. Contra todas suas expectativas, encontrava-se na situação ideal de ter um bebê sem ser forçada a lidar com um marido. Não importava o quanto tentasse proteger o coração, não conseguia impedir-se de amar Annie. Sua própria filha, caso houvesse vivido, estalaria os lábios da mesma maneira, a fitaria com o mesmo olhar inocente e também caberia tão perfeitamente em seus braços. Os homens, sem dúvida, a tinham mimado muito, mas sentiam-se aliviados por se verem livres da responsabilidade. Quanto a Bess, continuava passando grande parte do dia na vila. Voltava à tardinha com a correspondência trazida pelo barco e os suprimentos encomendados pelos homens. Isso sem mencionar uma infinidade de anotações que seriam usadas numa série de artigos e em histórias. Se alguém estranhava o fato de sua secretária
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não tomar parte no processo, não comentava. Luther, ainda um tanto acanhado, a cada dia mostrava-se mais atencioso e comunicativo. Ele tinha lhe mostrado um lugar protegido por árvores, no alto de uma encosta e com vista para o braço de mar, onde ela podia passar horas com o olhar perdido na água. Visto desse ponto seguro, Pamlico Sound era, sem dúvida, benigno. O pôr-do-sol, em especial, constituía um espetáculo e a encantava. Cada tonalidade de cor refletia-se fielmente na água. Até então, ela havia contado várias flores silvestres, que nunca tinha visto antes, além de um bom número de pássaros. Annie também gostava do lugar, pois raramente chorava ali. Peg tinha ajeitado uma cesta com alças de corda e um travesseiro fazendo às vezes de colchão para levar a menina. Como o tempo se mostrasse mais quente a cada novo dia, Rose tirou, do baú, os vestidos velhos de verão. Quase todos haviam sido feitos antes do casamento. Às vezes, tinha a sensação de que usara luto a vida inteira. Primeiro, pelos pais, depois, pela filhinha e pelo marido e, no momento, pela avó. Além de deprimente, preto também era muito desconfortável no calor. Mas naquela ilha árida e despovoada, as convenções sociais pareciam irrelevantes e podiam ser desprezadas. Com um velho vestido de musselina azul, justo na blusa e franzido na saia, Rose sentou-se no banco feito por Peg e carregado por Luther até o que ela considerava seu jardim particular. Todos a tinham avisado para tomar cuidado com queimadura de sol, cobras, carrapichos e cactos. Bess havia mencionando carrapatos. Por isso, Rose mantinha-se atenta para que nenhum inseto, grande ou pequeno, subisse na cesta. Depois de cobrir Annie com uma fralda, ela abriu mais um botão da blusa e suspirou. você?
— Annie, minha queridinha, eu poderia me acostumar a esta vida de indolência. E A criança bateu as perninhas e balbuciou “gugu” como se concordasse.
Como sempre, quando não tinha nada para lhe ocupar a mente, Rose pensou em Matthew Powers. Depois de três semanas, ela ainda não tinha decifrado o homem, mas, pelo menos, não se intimidava mais com o tamanho dele. Na verdade, ela apreciava a novidade de precisar levantar a cabeça a fim de fitar um homem. Isso a fazia sentir-se... Bem, não delicada e frágil, mas curiosamente satisfeita. Ela havia aprendido, no início da adolescência, que os homens não toleravam mulheres altas. Mesmo o pai, depois que ela alcançara uns dois centímetros acima da respeitável altura dele, de um metro e setenta, evitava ficar a seu lado sempre que
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fosse possível. Por intuição, ela entendia, mas sentia-se magoada. Matthew também a evitava, mas não por causa de sua altura ou falta de atrativos físicos. Segundo Bess, o sobrinho simplesmente não se importava com mulheres. Tinha sofrido uma grande desilusão amorosa com uma delas. Rose não se ressentia e até achava conveniente, pois também não queria saber de homens. Bastava o que sofrera com um. Quando esse período de experiência terminasse, caso ela resolvesse assumir o casamento, pelo menos não teria de se preocupar com a parte física. O Capitão haveria de querer mantê-lo só no papel. Rose detestava tal relacionamento. Era dolorido, humilhante e constrangedor. Certa vez, uma amiga tinha confidenciado que apreciava cada detalhe tanto quanto o marido, mas Rose achara que estava mentindo. Quando, após um ano de casamento, havia descoberto que Robert mantinha uma amante, sentira-se aliviada em vez de brava, pensando que ele a deixaria em paz. Porém, o marido não o fizera. Especialmente depois de haver bebido muito, Robert a agarrava, sem qualquer aviso e até a luz do dia, atirava-a na cama e lhe infligia aquela coisa horrível. Rose tinha esperado que a gravidez pusesse um fim em tal relacionamento, pois desde o início o marido desejava um filho. Enganara-se. Por algum tempo, ele se mostrara encantado. Raramente implicava com ela e até lhe fazia certas gentilezas como no tempo de namoro. Rose estava perto de completar o quinto mês de gravidez quando o marido tinha chegado em casa, no auge da fúria. — Adivinhe onde estive, minha querida mulherzinha. - dissera ele com sarcasmo, sua arma preferida. — Não faço ideia. No clube? Embora mal passasse do meio-dia, ele já recendia à bebida. — Acertou. Por acaso, encontrei lá o encarregado dos bens de seu pai que me mostrou um documento sobre eles. Será que você poderia me explicar a situação? No rosto fino e pálido, os olhos dele brilhavam de maneira assustadora. Ela não tinha conseguido pensar com clareza. — Lamento, mas não me lembro muito bem dele. Se não me engano, ele estava na Suíça quando papai e mamãe... Depois que eles... O marido se descontrolara e, com os punhos cerrados, a tinha interrompido aos gritos: — Por que você mentiu para mim? Com todos os diabos, o que esperava ganhar
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com isso? — Mas eu nunca menti. Por que você pensaria isso? - ela indagara, confusa. — Não mesmo? E quanto ao tal fundo em seu nome? A essa altura, ele estava apoplético e espumava pelos lábios finos. — Robert, por favor, não grite. Não acho que seja bom para o bebê. Não vou completar vinte e um anos até setembro, você sabe. — E que vantagem esse seu pirralho desgraçado vai ser para mim se não existe nem mais um miserável centavo de herança? Todo o dinheiro foi gasto! Desperdiçado à vontade! Foi então que tinha descoberto que Roberto se casara com ela por causa do dinheiro que receberia ao ficar maior de idade. Tendo um filho, ele estaria garantido. — Tudo foi pelo ralo, estou lhe dizendo. Os investimentos, sem uma única exceção, foram resgatados e o dinheiro gasto pelo canalha de seu pai! Com as mãos esticadas para frente a fim de se defender de uma agressão, ela havia recuado. — Eu não sabia, Robert. Juro que não fazia a mínima ideia. Meu pai nunca conversou comigo a respeito de dinheiro. Dizia que esse não era um assunto para mulheres. — Não tente me enganar, sua cadela! Você tinha de saber! E quanto ao testamento de seu pai? — O testamento... Não me lembro. Devo ter... Fiquei doente durante várias semanas depois do enterro, você sabe. O advogado de papai estava na Suíça havia muito tempo e eu... Quando ele voltou finalmente, eu já havia conhecido você e nós íamos nos casar. Nunca pensei no dinheiro. - ela havia murmurado, assustada, pois o marido continuava a praguejar aos gritos. Na verdade, fora Robert quem tinha insistido em apressar o casamento, sem lhe dar a oportunidade para refletir. Ela estava de luto e ainda em estado de choque por causa da tragédia. Por isso, tinha sido fácil para ele convencê-la da necessidade de contar com alguém para ampará-la. Robert mostrara-se meigo e atencioso e ela, imersa na maior solidão e tristeza, precisava de carinho. — Por quê, sua idiota, você acha que me casei com você? Por causa de seus belos olhos? Por causa de sua mentalidade tacanha de mulher? - ele tinha esbravejado. Ela havia tentado raciocinar com o marido, mas como sempre quando ele estava embriagado, o que passara a ser frequente, tinha sido inútil. Em vez de lhe dar ouvidos, Robert a estapeara no rosto. Como houvesse recuado até a parede, ela não tinha podido escapar. Ao ser esbofeteada novamente, havia
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escorregado para o chão. Ele, então, começara a lhe dar pontapés. Quando Robert finalmente tinha saído do quarto e batido a porta com estrondo, ela se encontrava machucada e assustada demais para gritar pedindo ajuda. Aos poucos conseguira se arrastar até a cama e deitar-se. Sentia-se sem forças até para chorar. Naquela noite caíra uma forte tempestade. Os relâmpagos e trovões contínuos confundiam-se com seus pesadelos. Um pouco antes do amanhecer, ela havia começado a perder sangue. Aflitíssima, gritara por ajuda, mas apenas depois de algum tempo, a governanta a tinha ouvido, vindo em seu socorro e chamado o médico. Porém, fora tarde demais. Horas depois, a polícia havia aparecido para avisá-la de que o marido estava morto. Robert, pelo que ela deduzira, a tinha deixado, embriagado-se mais ainda, caído da ponte sobre o Smith Creek e morrido afogado. Numa única noite, ainda de luto pela morte dos pais, ela havia perdido o bebê e o marido imprestável. — Mas agora, tenho você, Annie, minha queridinha. Ao ouvir-lhe a voz, a criança fitou-a. As sobrancelhas loiras e quase invisíveis estavam franzidas. Rose murmurou: — Eu sei, eu sei. Você está com fome outra vez. Por que não vamos ver se Crank já terminou o jantar? Tantas coisas tinham mudado em sua vida desde o dia em que, cambaleando, havia desembarcado naquela pequena ilha de areia. Depois dos primeiros dias, as refeições tinham passado a ser feitas na cozinha e bem mais cedo. Especialmente o jantar. A noite, não se ouvia mais Mozart na pianola, mas canções de marinheiros tocadas em gaitas e o ritmo marcado por duas colheres. Como jamais fossem cantadas, ela desconfiava que as letras deviam ser indecorosas. Rose havia aprendido a lavar roupa. E também a comer alimentos desconhecidos e de que nunca ouvira falar. Ninguém gritava com ela ou fazia exigências conflitantes como as da avó. Os homens, com a possível exceção do Capitão Powers, esforçavam-se ao máximo para ajudá-la. Sem dúvida alguma, ela poderia viver muito bem ali como Sra. Littlefield, a secretária que não sabia taquigrafia e a dama de companhia inútil. Ser babá da menininha querida era bem melhor, pois enchia-lhe o coração vazio havia tanto tempo. Quanto ao outro papel, o de esposa do Capitão, ela preferia não ser pressionada a desempenhá-lo ou não. Faria a escolha oportunamente. No dia seguinte, talvez. Ou na próxima semana...
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Depois de três dias de chuva, o sol voltou a brilhar mais quente do que antes. O trabalho de casa ficara um tanto acumulado e a pilha de roupa suja era bem grande. Como sempre, Luther foi ajudar a lavá-la. — Antes de a senhora e Srta. Bess virem para cá, eu e Billy fazíamos este serviço. Mas não era tão divertido como agora. - ele confidenciou. Com o sol brilhando num céu profundamente azul e varais cheios de fraldas, camisas de homens e roupas femininas, Rose foi acometida por uma sensação hilariante de alegria. Ali, tão longe da sociedade civilizada, até as convenções eram diferentes. As regras que obedecera a vida inteira pareciam sem importância e, até mesmo, tolas. Sabia que a lavadeira da avó jamais havia misturado roupas de homem e de mulher na mesma tina. Ali, ela lavava tudo junto, pois a água da chuva não podia ser desperdiçada. Baldeada do reservatório até um fogão a lenha, atrás da casa, onde era esquentada, facilitava bem a lavagem. Já bem torcidas, ela era livre para pendurar ceroulas e anáguas no mesmo varal sem comprometer sua reputação. E apenas na véspera, o Capitão Powers havia lhe oferecido o uso da biblioteca. Ele acabava de abrir um caixote de livros recém-adquiridos. Também tinha relanceado o olhar por seu vestido de fustão amarelo, virado o rosto e voltado a observá-la. Isso a surpreendera. Exceto Robert, que não se encantava com seus atrativos físicos, homem algum havia lhe dirigido um segundo olhar. Aliás, como regra, o Capitão evitava fitá-la. — Minha mente deve estar sofrendo o efeito deste sol inclemente. E a pele então? Se não tomar cuidado, acabarei tão bronzeada quanto seu Capitão. - ela disse a Annie. Na verdade, não se preocupava com a aparência. Não se importara com ela em relação ao primeiro marido e não o faria com o segundo. Quando e se resolvesse revelar a verdadeira identidade, a questão continuaria a ser irrelevante. Matt Powers tinha se casado com ela, sem vê-la, por sua utilidade e não pela aparência. Que importância teria se ficasse amarronzada como uma framboesa seca, se as mãos estivessem vermelhas e ásperas de tanto esfregar roupa, ou se o sol houvesse amarelado seus cabelos? — E se eu resolver ficar, Annie? - Rose murmurou, sabendo que a decisão já fora tomada. Colocou uma pilha de fraldas dobradas na cesta de Annie e, pegando-a pelas alças de corda, rumou para casa. — Você acha que ele vai me aceitar, queridinha? A criança balbuciou alegremente. Do alto, chegou o grasnar sempre presente
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das gaivotas. Rose refletiu sobre a própria pergunta, mas não chegou a uma resposta.
Capítulo V
A imobilidade do ar o deixava desassossegado. Matt baixou o machado, endireitou o corpo e fechou os olhos. Com a cabeça inclinada para trás, absorveu o grasnar ruidoso das gaivotas e o odor da faixa lamacenta deixada a descoberto pela maré baixa. Havia bancos de areia expostos no braço de mar. Não soprava a mais leve brisa. O céu tinha o colorido sulfurino de enxofre e a fumaça, em vez de subir da chaminé, acompanhava a descida do telhado. Indícios de tempestade. Mas nada sério, graças ao bom Deus, a menos que causasse trombas-d'água. Elas sempre caíam com força e depressa, mas com uma ponta de sorte, afastavam-se para a água, fora da praia, antes de causar danos irreparáveis. Ocorreu-lhe, e não pela primeira vez, que ali na ilha, os elementos manifestavam-se quase tão instantaneamente quanto no mar. Imaginou se esse fora o motivo para o primeiro Powers se estabelecer ali. Ou, quem sabe, ele apenas tinha sido jogado na praia depois de um naufrágio esquecido havia muito tempo. Já com a resistência enfraquecida, ele tinha ficado e criado raízes. Com a possível exceção de Bess, outras em sua vida podiam ser classificadas como disponíveis ou intocáveis. Havia ainda as que prestavam algum serviço ou apenas decoravam um ambiente social. A essa altura, ele ainda não conseguira classificar a viúva Littlefield. Ela era jovem, bem mais do que dera a impressão ao chegar. Estava prestando um grande serviço, ele tinha de admitir. Quanto a ser decorativa, ele não tinha conseguido lhe dirigir um segundo olhar ao vê-la pela primeira vez. Todavia, ao se acostumar com sua presença, via-se forçado a qualificá-la também como decorativa. Porém, ela não estava na categoria das disponíveis. Pelo menos, para ele que, supostamente, era um homem casado. O semblante de Matt anuviou-se ao pensar na carta que havia escrito ao advogado Bagby, exigindo saber, que diabos, onde a esposa se encontrava.
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Nela, tinha reiterado a relutância em se envolver em tal situação irregular.
"Por haver trocado cama, comida e o nome Powers pela simples tarefa de cuidar de uma criança", ele havia escrito, "acredito ter o direito de esperar que a mulher cumpra seu lado da barganha. Por favor, comunique meu modo de pensar à Sra. Powers e a aconselhe a se apressar." A resposta tinha levado um bom tempo para chegar e não lançava a mínima luz sobre a situação. O advogado alegava ignorar o paradeiro da mulher e lhe sugeria indagar à tia, o que Matt tinha feito até se cansar. Mas como Bess costumava mentir quando lhe convinha, mesmo que houvesse lhe dado uma resposta, ele não teria acreditado. Naquela tarde, ao vê-la voltar da ida habitual à vila, ele a tinha pressionado novamente. — Com todos os diabos, quem merece precedência? Um parente enfermo ou um cônjuge legalmente aceito? Bess tinha mantido a calma e nem piscara. — Depende se o parente é consangüíneo ou não. Em minha opinião, os pais têm precedência ao marido. Mas existe aquela questão dos votos matrimoniais proferidos pelos noivos. Sei lá. Caso você queira, posso escrever a Horace pedindo esclarecimentos. — Ora, foram você e esse seu amigo Bagby que me meteram nesta confusão. Ele ignorou todas as cartas que lhe escrevi, exceto a primeira. Portanto, diga-lhe, por mim, para desatar o maldito nó! Em seguida, ele havia saído, batido a porta e vindo rachar lenha. Se continuasse a se livrar da frustração dessa maneira, logo haveria lenha suficiente para todos os fogões dali até a Nova Escócia. Caso a mulher houvesse, de fato, sido chamada para cuidar de um parente enfermo, sua obrigação era ter escrito uma carta justificando-se. O mais provável era ela ter encontrado alguém melhor e mudado de ideia. Não seria a primeira vez em que ele fora posto de lado por causa de um peixe maior e mais apetitoso. Apoiado no cabo do machado, Matt deixou o olhar vagar pela propriedade valiosa para marinheiros em terra: um amontoado irregular de construções sem pintura, uma mula, meia dúzia de éguas, um ótimo garanhão e um esquife a vela. Por Deus, nada mais natural que ela houvesse mudado de ideia. Que mulher, em seu juízo perfeito, aceitaria morar num lugar distante e desolado em vez de em uma cidade? Lá, ela poderia comprar roupas bonitas e ir a bailes onde cavalheiros refinados a tirariam para dançar.
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Ele havia pensado em instalá-la com Annie na cidade, porém, o que faria com Crank e Peg? Jamais conseguiria pagar o que devia aos dois homens idosos. Eles praticamente o tinham criado. Não podia forçá-los a viver na cidade onde árvores ou prédios de quatro andares escondiam o horizonte, onde não se podia cuspir sem primeiro verificar se o vizinho não estava por perto. Pelo menos, numa ilha arenosa perto da costa, um homem tinha a liberdade de lutar contra os elementos, vencer ou perder, sem os empecilhos da chamada sociedade civilizada. As raízes, ele estava aprendendo, aprofundavam-se bastante na areia. Algo azul na encosta prendeu-lhe o olhar. Diabos se ela não havia se vestido para combinar com as florzinhas azuis cujos ramos costumava arrancar a fim de trazer para casa. Se ela continuasse exposta ao sol por muito tempo mais, seu narizinho aristocrático acabaria vermelho como um caranguejo fervido. De propósito, Matt virou-se, ergueu o machado acima da cabeça e, baixando-o, atingiu nova tora de carvalho. Quando as duas metades caíram ao lado do cepo, ele as empurrou com o pé para que Luther as empilhasse depois. Rachar lenha ajudava um homem a gastar a carência física. Só Deus sabia o quanto ela o atormentava. Empilhar os pedaços também proporcionava algum alívio, mas dava-lhe dor nas costas. Ele podia ouvir Crank resmungando na cozinha sobre qualquer coisa. O velho cozinheiro sempre o fazia quando o barômetro baixava. A comida dele estava piorando a cada dia e Matt não sabia como reclamar sem ofendê-lo. Mas também ignorava quanto mais peixe mal cozido e pão sem sal conseguiria engolir. Rose, ou Primavera como passara a chamá-la mentalmente, jamais reclamava. Ela pegava pedacinhos da beirada da posta de peixe, passava melado na fatia de broa e elogiava as batatas cozidas. Era atenciosa e gentil, mais do que ele havia esperado. Pensando bem, Glória, apesar da educação primorosa e das atitudes refinadas, jamais se daria ao trabalho de poupar os sentimentos de qualquer pessoa. E, muito menos, de um homem idoso cuja serventia se aproximava do fim. Perto do telheiro, Peg consertava a porteira que Jericho quebrara com um par de coices. Volta e meia, ele praguejava contra as galinhas que teimavam em ciscar entre seus pés. As mãos enrijecidas o forçavam a trabalhar devagar, mas a porteira acabaria ficando tão boa como se fosse nova. Parando um pouco entre duas machadadas, Matt semicerrou os olhos contra a claridade bronzeada do céu sobre o lugar onde sua senhoria refestelava-se na areia. Apostava como a Sra. Littlefield não se sentia tão confortável e à vontade como dava a impressão. A tentação de subir até lá a fim de vê-la abanar os mosquitos e transpirar profusamente era grande, porém, ele resistiu. Fazia um ano e sete meses que ele tivera uma mulher. Contanto que trabalhasse bastante e mantivesse a mente ocupada, o problema não o perturbava muito. Mas
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ultimamente, estava tendo dificuldade para dormir. Já estava na época de fazer outra viagem ao continente. Se a carência física de um homem fosse negligenciada por muito tempo, ela acabava interferindo no funcionamento lógico da mente. Mas havia um problema. A esposa seria bem capaz de aparecer a qualquer momento e tal possibilidade o deixava com medo de ir. Rachou mais lenha. Enquanto levantava e baixava o machado, pensava na aparência de uma mulher logo após o banho matinal, com a pele macia e sedosa recendendo a perfume de lilás. Ou enxugando os cabelos no terracinho de trás, o sol da tarde incendiando-lhe os caracóis. Ou mais tarde, à mesa do jantar, quando ela já os tinha trançado bem apertados, deixando-os lisos e puxando-lhe mais os olhos, fazendo-os parecer mais ainda com os de uma gata. Ela era uma mulher enigmática, com toda certeza. Embora parecesse tão cerimoniosa e correta, não continha o riso ao ouvir os rudes comentários humorísticos dos dois velhos marinheiros. Podia até rir de si mesma, traço raro em homens e mulheres. Infalivelmente, ela mostrava-se alegre. Desde o início, havia se esforçado para ser prestativa, embora desse a impressão de nunca ter trabalhado na vida. Porém, o mais estranho de tudo era sua reação quando ele se aproximava de repente e a apanhava de surpresa. Nas primeiras vezes, ele calculara ser acanhamento, mas depois, tinha percebido tratar-se de medo. Ainda na véspera, ele tinha estendido a mão a fim de afastar uma mosca varejeira que ameaçava pousar em seu rosto. Ela havia arregalado os olhos e recuado como se ele estivesse prestes a estapeá-la. Mulher estranha. Mas tinha prometido cuidar de Annie e, enquanto mantivesse a palavra, ele não pretendia entornar o caldo. Se ela não tinha bom senso suficiente para sair do sol e acabasse com uma boa queimadura, além de marcada pelas picadas de insetos, o problema era seu e não dele. Desde que Annie não sofresse também. Até agora, a mulher vinha agindo como havia falado e isso era tudo que ele exigiria de qualquer uma. Nem tudo, talvez, mas com toda certeza, o que esperava de Primavera. Rodeado por nuvens de insetos atraídos pelo cheiro de suor, Matt tirou a camisa, enxugou o rosto com ela e atirou-a sobre a lenha rachada. Imaginou como sua senhoria estava se arranjando no topo da encosta, na luta contra mosquitos, carrapatos e outros predadores incômodos. Quando chegasse a época dos borrachudos, ela já teria ido embora. Com uma ponta de sorte, a esposa se encontraria ali e ele, a bordo do Black Swan, estaria velejando rumo às índias Ocidentais. Como não quisesse fazer muito esforço com o calor, Rose abanou uma das mãos vagarosamente a fim de afastar os mosquitos. Depois de o vento ter parado, eles
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haviam aparecido aos milhões, tinha certeza. A cesta de Annie estava protegida com um pedaço de seu véu de noiva que ela havia arrancado, sem o mínimo cuidado, da grinalda. Ele tinha vindo no fundo do baú como um lembrete, embora não precisasse de um, da tolice de se entregar a sonhos românticos. — Não, queridinha, você não quer se livrar dele. - murmurou ao ver Annie bater as mãos e os pés pequeninos contra o cortinado improvisado. — Sei que é incômodo, mas juntos, esse bichinhos horríveis são capazes de carregá-la para longe. Caso houvesse pensado, teria partido outro pedaço para enrolar no próprio rosto. Estava tão picada que passaria dias se coçando. Mesmo depois de banhar a pele com uma mistura de água de aveia e de bicarbonato de sódio. Mas apesar do calor forte, da umidade e dos insetos irritantes, ela sentia uma imensa tranqüilidade, jamais apreciada a vida inteira. Em parte, isso decorria devido ao barulho constante das ondas quebrando na praia, ela havia concluído. Mesmo nos dias mais calmos, conseguia ouvi-lo, confortante como uma canção de ninar. Pensar que, bem pouco tempo atrás, o simples fato de estar sobre aquelas águas a tinha feito se sentir tão mal a ponto de desejar morrer. Surpresas agradáveis a estimulavam o tempo todo, Rose refletiu ao enfiar um dedo pelo decote do vestido. Apesar de coberta, a pele ardia e coçava por causa do calor. Ela havia deixado de usar espartilho e limitava a roupa de baixo a um mínimo de peças. O verão, na cidade, era bem mais quente e incômodo, claro. Especialmente para as mulheres. Nenhuma, que se prezasse, ousava sair de casa sem várias camadas de roupa. — Sabe de uma coisa, Annie? Nove entre dez regras pelas quais a sociedade se guia não passam de grande tolice. Estou plenamente convencida disso. Fosse quem fosse que as determinou tinha tanta massa cinzenta quanto um peixe. De seu recanto no topo da encosta, a apenas uns cinco metros acima do nível do mar, Rose percorreu o olhar em volta. Tendo sido criada numa sociedade cujos costumes eram impostos com severidade sobre tudo, até mesmo nas plantas de um jardim, ela apreciava a beleza agreste e espontânea. Ali, era a natureza e não a poda artificial de algum paisagista que esculpia as árvores. Ali, a natureza determinava o lugar onde uma flor cresceria e conseguia um resultado muito melhor do que qualquer jardineiro. Ela avistou Luther que tinha parado de lidar com os cavalos e fazia algo com uma rede de pesca. Rapaz muito bem-apessoado, ele estava sempre ocupado, alegre e disposto a ajudar os outros. Pescava, lavava roupa, empilhava lenha e brincava com Annie. Às vezes, gastava algum tempo tentando convencer Matthew a deixá-lo ir à vila. Matthew. Quanto mais se esforçava para esquecer aquele homem mais pensava nele. Impossível acreditar que era seu marido. E mais impossível ainda era imaginar-se revelando-lhe a verdade. Depois desse tempo todo, não poderia dizer que se tratara
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de um subterfúgio, embora de muito mau gosto. Ora, esqueci de lhe contar algo. Sou a mulher com quem você se casou. Deus misericordioso, ele a esfolaria viva. Como se suportasse o peso do mundo nos ombros, Matt andava sempre com o semblante carregado. Mesmo a distância, ela não podia ver-lhe a expressão, mas com toda certeza, fazia caretas enquanto rachava lenha. Ela não precisava chegar perto para ver o brilho da transpiração nas costas nuas dele, ou como a calça justa modelava-lhe o corpo de maneira absolutamente indecente. A imaginação supria a falta de visão. Em qualquer sociedade civilizada, um homem seria preso por andar seminu em público. E uma mulher, Rose admitiu meio divertida, sofreria a mesma pena caso ousasse expressar tais pensamentos em voz alta. Ela, mais do que ninguém, deveria ter mais bom senso. Mesmo se o tivesse, não conseguiria mudar a direção dos pensamentos. Nunca havia sido exposta a uma virilidade tão espetacular. Mas existia tanta coisa mais naquele homem. Jamais deveria ter se casado com ele, em primeiro lugar e, em segundo, vir para a ilha sob identidade falsa. Porém, na situação precária em que se encontrava, não tivera opção. E Bess a tinha convencido de que tudo daria certo, até o período de experiência. Rose havia acalmado a consciência ao convencer-se de que, como Sra. Littlefield, cumpriria seu lado da barganha, cuidando do bebê. Tão logo estivesse certa de não haver cometido outro erro, ela e o Capitão poderiam discutir um novo arranjo. Ela permaneceria ali, ele voltaria para o mar e ambos esqueceriam o casamento absurdo. Não importava o quanto o raciocínio tinha lhe parecido razoável na época, na verdade, não muito, não estava dando certo. Sem dúvida, ela se afeiçoara a Annie. Esse não era o problema, pois quem não gostaria de um bebê? Não conseguia conversar com ele que, por seu lado também não podia, ou não queria, conversar com ela. O homem havia, por um bom tempo, comandado o próprio navio, portanto, não podia ser completa-mente sem inteligência. Isso queria dizer que a culpa era sua pela falta de comunicação entre ambos. Bess, entretanto, tinha contado que o sobrinho vendera o navio e, desde então, vinha tentando comprá-lo de volta. Ora, isso não parecia muito inteligente da parte dele. Talvez, então, a culpa fosse dos dois. Porém, era ela quem tinha a consciência pesada e, antes que pudessem chegar a um acordo, teria de confessar a falta cometida. Infelizmente, todas as vezes que criava coragem para fazê-lo, Matt lhe virava as costas e sumia. Antes, a fitava como se pudesse ler seus pensamentos e, então, afastava-se depressa. Quase sempre, ele assobiava para aquele garanhão bravo e a deixava remoendo o sentimento de culpa. Ela o observava cavalgar em pêlo, os cabelos negros agitados pelo vento. E que Deus a
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ajudasse, pois ela invejava-lhe a liberdade. Preparando-se para o momento em que sua coragem e a oportunidade coincidissem, ela havia repetido as palavras mentalmente um sem-fim de vezes. Capitão Powers, acredito, senhor, que involuntariamente, eu... Não havia nada involuntário na história. Ela enganara o homem de propósito. Matthew, caso você tenha um momento livre, eu gostaria de aliviar minha consciência, confessando uma pequena fraude. Não importava quantas vezes ensaiasse as palavras, não encontrava as adequadas. Não iria ser fácil revelar a Matt que a mulher, com quem ele se casara de boa-fé, era covarde demais para assumir a própria identidade. Temia que não gostasse dela e ficasse tão furioso a ponto de agredi-la. Admitia e lamentava a própria imprevidência. — Vou contar tudo a ele, Annie, juro. Você vai ver. Hoje ou amanhã. O mais tardar, no fim da semana. Com toda a certeza. Matt não era um homem violento. Caso fosse, ela já teria notado os sinais. Mas nos primeiros meses de casamento, Robert também não havia revelado indícios do temperamento explosivo. Talvez estivessem todos lá, porém, sua inexperiência e a gratidão pelo fato de um homem a querer, a tinham impedido de reconhecê-los. Matt não a queria. Não havia feito segredo disso. Mas precisava dela. Fora o início de tudo. — O Capitão te ama, queridinha. - murmurou. — Ele pode não se dar conta, mas notei a maneira como ele olha para você quando pensa que ninguém o está observando. Você sabia que ele atravessa meu quarto na ponta dos pés, achando que estou dormindo, só para ir olhá-la no berço? Rose tinha adquirido o hábito de conversar com Annie. Não podia discutir certos assuntos com os homens e não confiava em Bess. Temia que suas confidências acabassem sendo usadas em escritos dela. Annie era a ouvinte perfeita. Balançou a cesta e disse: — Não importa o que Matt venha a pensar a meu respeito. Ele precisa de mim para cuidar de você - dividida entre as dúvidas e a determinação, balançou a cabeça. — O problema é que ele não confia na mulheres tanto quanto eu nos homens. Isso é uma base pouco promissora para qualquer relacionamento mesmo para um fictício, estabelecido só no papel. Calou-se por uns instantes e massageou as costas na altura da cintura. Então, prosseguiu: — Para ser sincera, não confio em meu próprio julgamento. Se tiver de fazer uma escolha, aposto como será a errada. Sabe de uma coisa, queridinha? A primeira
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coisa que pretendo ensinar a você é fazer escolhas inteligentes. Com a chegada do novo século, as mulheres vão poder apreciar uma grande liberdade, o que foi negado a minha geração. Vou ensiná-la a pensar bastante antes de tomar uma decisão. Depois de pegar as botinhas e as meias que havia descalçado a fim de enfiar os pés na areia macia, Rose continuou a conversa unilateral. — Fui ensinada a me vestir na moda e de acordo com a ocasião. Não importava que eu ficasse horrível com babados e tons claros. Também aprendi a usar o talher certo, a sorrir e a expressar futilidades no momento adequado. Infelizmente, ninguém jamais pensou em me ensinar a usar a cabeça. Quando meu mundo desabou, tive de me defender sozinha. Sem a mínima experiência, meti os pés pelas mãos. Foi terrível. Sonolenta, Annie piscou e soprou uma bolha. Rose tirou um carrapicho de uma das meias, sacudiu a areia das duas e começou a se calçar a fim de voltar para casa. Matt pensa que é o dono do mundo, pensou enquanto, curvada, amarrava as botinhas. É isso o que acho? — Ele é muito pretensioso. E mais. Na minha opinião, seu pai é muito... tudo. Grande, viril demais. Naturalmente você ainda não tá em condições de perceber, mas ele também é muitíssimo atraente. Se você, um dia, contar a além que eu disse isso, negarei de pés juntos. Annie dormia profundamente. Sem se sentir nem um pouco tola, outra liberdade descoberta recentemente, Rose levantou-se, sacudiu a areia do vestido e, pegando a cesta pesada, começou a escolher cuidadosamente onde pisar a fim de descer a encosta. Luther tinha carregado a cesta na subida. Naqueles últimos dias, ele vinha se mostrando mais atencioso ainda. Ela temia estar lhe despertando o interesse amoroso. Seria lisonjeiro, sem dúvida. Porém, Rose sabia que ele se sentia solitário sem a companhia de Billy e por não poder mais se encontrar com as moças da vila. Além do mais, ela era casada. — Vou lhe dizer mais uma coisa, Annie. Apesar dos insetos horríveis e da areia que entra em tudo, eu adoro este lugar. E me sinto como uma nova mulher. Não tenho de satisfazer as expectativas de ninguém porque não sou a filha de Marcus e Aurélia Littlefield, nem a mulher de Robert Magruder, nem mesmo a neta de vovó. Sou apenas eu. Rose, a amiga de Annie. A resposta da criança adormecida foi um previsível ressonar, mas Rose sorriu com expressão complacente. — Eu sabia que você entenderia. Castelos no ar, o pai costumava chamar suas fantasias construídas na infância. Evidentemente, ela não havia perdido a aptidão. — Então, o que você acha? Devo ficar? Não tenho a mínima vontade de voltar a
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morar numa pensão com cheiro de repolho, ou de arranjar aqueles empregos péssimos. Mas especialmente, não desejo pôr os pés num barco outra vez. Se eu ficar, seu pai vai conseguir o navio de volta e ir embora, nós duas tomaremos conta do lugar. Então, eu poderei lhe ensinar tudo sobre uma mulher independente. Escorregar encosta abaixo na areia exigia tanto esforço quanto subi-la. Ao terminar a descida, Rose estava ofegante. Mudou a cesta para a outra mão e rumou para casa, pensando nos aposentos frescos, sombreados e numa jarra cheia de limonada bem fria. Foi então que viu de perto o gigante de peito nu, vibrando o machado com uma energia que deveria amedrontá-la, mas que, curiosamente, não o fazia. — Vou ter de contar logo a ele, Annie. Farei isso, prometo, porém, não ainda. Ela havia percorrido um caminho longo e espinhoso. Já não era mais a criatura tímida que havia aceitado a primeira proposta de casamento que lhe tinham feito na vida. E um pouco mais de um mês após a morte trágica dos pais. Como uma trepadeira, cuja árvore em que se prendia tivesse sido decepada, ela precisava desesperadamente se agarrar em algo. Fora, então, que Robert tinha aparecido em cena. Ao entrar em casa, Bess a cumprimentou: — Olá, tudo bem? Como é, já tomou uma decisão? Como você sabe, não posso ficar aqui para sempre. — Fale baixo. Annie está dormindo. Deixe eu ir deitá-la no berço. Bess a seguiu pelo corredor e esperou à porta do quarto. Ao voltar, Rose respondeu-lhe a indagação: — Ainda não resolvi bem o que devo fazer, mas tenho quase certeza de querer ficar. Antes, preciso explicar a situação a Matt. As coisas foram longe demais e eu não sei como contar tudo a ele. Por que você não faz isso por mim? Resolvida a ir embora logo, Bess começava a pressioná-la. O mínimo que ela poderia fazer, refletiu Rose, era ajudá-la a sair dessa confusão cuja ideia partira dela. — Não cabe a mim contar a ele. Quer saber como aprendi a nadar? — Não faço questão. Rose já não se esforçava mais para decifrar os volteios da mente da escritora. — Afunde ou nade. Foi assim. Papai me atirou ao mar e eu comecei a bater as pernas e os braços. Tinha apenas quatro anos de idade. História pouco provável, Rose pensou. — Tenho de preparar a mamadeira para quando Annie acordar e cuidar de minhas picadas de mosquito. Depois, conversaremos.
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Matt não conseguia dormir. Estava lendo havia horas, mas não entendia nada. Não era por causa da mulher, embora, por razões inexplicáveis, perdia muito tempo pensando nela. Talvez porque ela estivesse ali. Exceto a tia, nunca hospedara uma mulher e isso o perturbava. Crank tinha melhorado um pouco a comida depois de sua chegada. Apesar dos dedos enrijecidos, Peg fazia-lhe coisas. Luther a seguia com a dedicação de um cão ao dono. Seria cômico se não fosse tão deprimente. A mulher nem bonita era. Estava sendo injusto. A moça apenas se arrumava com simplicidade e, de forma alguma, tentava ser sedutora. Muito cerimoniosa. E pudica como uma professora de escola dominical. Sempre trazia punhados de flores silvestres que punha em vidros sobre as mesas. Não havia um único vaso na casa. Para quê? Ela era bem capaz de querer colocar cortinas de renda nas janelas. Mas naquela noite, não se tratava da mulher, nem de sua voz cantando para ninar Annie, ou do vidro com flores na mesa do jantar. A inquietação dele devia-se ao tempo. O ar continuava parado demais. As ondas não estavam mais pesadas do que o habitual. Mas de vez em quando, um vagalhão arrebentava na praia com o estrondo de um tiro de canhão. De repente, um trovão ecoou na distância como um animal feroz rodeando a ilha. Olhando pela janela, Matt viu um relâmpago iluminar as nuvens baixas, dando-lhes o aspecto de fumaça. O trovão custou um pouco para se fazer ouvir. Mas logo, o intervalo entre um e outro foi diminuindo até que, ao ver uma faísca riscar o céu, ele contou apenas três segundos antes de o trovão sacudir as vidraças. Santo Deus, ele adorava uma tempestade. O odor característico do ar, a sensação excitante que o invadia até a medula dos ossos. Furacões significavam trabalho pesado, em terra ou no mar. Mas quanto a descargas elétricas, não havia nada que um homem pudesse fazer, exceto apreciar o fato de estar vivo. Imaginou se Primavera se sentiria da mesma provavelmente ela havia se enfiado embaixo da cama.
forma.
Amedrontada,
Quando uma rajada forte de vento atingiu o lado da casa, Matt fechou o livro, desistindo de concentrar-se na leitura. Levantou-se e, em silêncio, saiu pela casa escura. Abriu a porta do quarto dos homens e perguntou baixinho a Peg: — Tudo em segurança, companheiro? — Tudo, Capitão. Luther ressonava. O rapaz tinha se excedido naquele dia. Além de sair de barco, pescar com rede e limpar os peixes, ele havia se desdobrado para ajudar sua senhoria. Apesar da pouca idade, ele era, para certas coisas, bem sensato.
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Quanto a Crank, depois de várias doses do remédio para suas diversas dores, dormia profundamente e não acordaria nem que a casa desabasse. Mas como a inquietação não passasse, Matt parou à porta do quarto de Bess. Calculava se deveria entrar, ou não, para fechar-lhe a janela. A essa altura, sob o efeito de várias doses de conhaque, a tia não perceberia se a cama estivesse flutuando pelas águas de Pamlico Sound. Bess pensava que ele ignorava seu hábito de fumar um charuto e de abusar da bebida à noite? Provavelmente, sabia que ele estava a par de tudo, mas, não ligava a mínima. Ele entrou, baixou a vidraça, deixando apenas uma fresta para a entrada de ar e saiu. Em seguida, dirigiu-se à porta seguinte no corredor. Annie não gostava de barulho alto. Se estivesse acordada, ele a levaria para o próprio quarto. Não se importaria de niná-la até que voltasse a dormir, mas desde que não houvesse ninguém por perto. Quando um homem demonstrava ternura por uma mulher, mesmo por uma tão pequenina como Annie, a única coisa de que não precisava era de testemunhas. De bruços, ela dormia tranquilamente. Por um bom tempo, observou a criancinha que havia entrado na vida dele tão de repente. Sentiu o coração confranger-se. Sem fazer ruído algum, tirou um vidro com flores amarelas do peitoril da janela e fechou-a. — Durma bem e sonhe com os anjos, princesinha. O tio Matthew não vai deixar que mal algum aconteça a você. Para chegar ao quarto de Annie, ele tinha passado pelo de Rose. Naturalmente, não havia olhado para a cama. Porém, na volta, cometeu o erro de fazê-lo. Pé ante pé pela penumbra, já quase alcançava a porta quando um relâmpago, seguido imediatamente pelo trovão, iluminou o aposento. Ouvindo um ruído vindo da cama, olhou por sobre o ombro. Arrependeu-se no mesmo instante. Ereta e com olhar vazio, Rose estava sentada. Matt levou uns segundos para encontrar a voz. — Desculpe, não foi minha intenção incomodá-la. Fui verificar se Annie estava dormindo. A senhora está bem? Ela emitiu um som parecido com o de um camundongo acuado. — Isso quer dizer sim? - ele perguntou sem sair do lugar. — Sim? - ela repetiu em tom agudo. Matt esperou. Sim, o quê? Sim, ele não devia tê-la perturbado. Ou devia? Ela se sentiria bem? Sob a luz bruxuleante da lamparina, ele notou seus cabelos soltos e encaracolados em volta do rosto. Pareciam um manto de cânhamo. — Sra. Littlefield... Rose, você está com medo? Deve ter se assustado com os
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trovões. Acalme-se, a tempestade logo se afastará para o mar. Nenhuma resposta. Seus olhos estavam arregalados, porém, não pareciam vê-lo. Também era impossível saber se ela o tinha entendido. — Diabos. - ele resmungou e aproximou-se depressa da cama. Inclinou-se bem diante de seus olhos, mas tomando cuidado para não tocá-la. Uma vez, tinha visto aquela mesma expressão num marinheiro sonâmbulo. E também nos companheiros no dia em que Billy morrera. Todos haviam ficado em estado de choque por um bom tempo. — Rose, preste atenção, está tudo bem. É apenas uma tempestade com raios e trovões. Não vão lhe fazer mal algum. Ele esperou. Nenhuma resposta. — Ouça, Rose. Peg instalou vários pára-raios na casa e nas outras construções. Nenhuma faísca pode nos atingir. Naturalmente, Matt não mencionou as duas trombas-d'água que tinha visto no Atlântico ao anoitecer. Outras poderiam cair e se rumassem para a ilha, nada os protegeria. Ele não costumava chamá-la pelo primeiro nome, aliás, por nenhum, mas este não era o momento para ser cerimonioso. — Rose, escute bem. Se Annie acordar assustada vai precisar de você. Rose, está me ouvindo? Ele tinha usado a palavra mágica. Annie. A mulher adorava o bebe e só lhe restava tirar vantagem disso. — Se Annie acordar chorando, talvez você tenha de carregá-la, cantar para a acalmar. Está em condições de cuidar dela, Rose? Quer que eu pegue seu penhoar? Ela se recuperou, respirou meio trêmula e fez um gesto negativo com a cabeça. Matt percebeu que olhava para frente de sua camisola, de cambraia fina, onde os mamilos se destacavam como dois botõezinhos de rosa. Respirando fundo, ele recuou, mas não antes de sentir o leve perfume de sua pele. No instante seguinte, dava-se conta da excitação. Fora suficiente vê-la sonolenta e inalar seu odor. Continuou recuando antes que cometesse algo estúpido e proibido. Ao alcançar a segurança da porta, lançou-lhe um último olhar e censurou-se. Não tinha o direito de desejar uma mulher que não fosse sua esposa. Afinal, era um homem casado. No papel, pelo menos. Além do mais, a tia e Annie dormiam a poucos passos de distância. Ao sair e fechar a porta, Matt disse a si mesmo que tinha de ir embora da ilha.
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Quanto mais depressa e para mais longe, melhor. Ele precisava de seu navio, não de uma mulher. Se a esposa um dia aparecesse, ela e Rose que resolvessem a questão. Caso não desse o ar da graça, Primavera poderia ficar com tudo ali, acompanhado de sua bênção.
Capítulo VI
Como se quisesse garantir a si mesmo que o breve episódio da noite anterior tinha sido produto da imaginação incitada, Matt forçou-se a continuar à mesa até Rose aparecer, com Annie, para a refeição matinal. Um rápido olhar foi suficiente para provar-lhe que ela não havia se transformado numa sereia durante a noite, mas continuava sendo a mesma cerimoniosa e empertigada Primavera. Mas não tanto quanto como nos primeiros dias. Na verdade, ela se mostrava mais à vontade. As faces tinham adquirido um leve tom rosado e os cabelos, menos repuxados, amenizavam-lhe as feições. Graças ao Pai Celestial, ela havia deixado de usar aqueles horríveis vestidos pretos. Ele levantou-se para puxar-lhe uma cadeira e, depois, pegou um dos pezinhos de Annie. — Dormiu durante o foguetório todo, não foi, companheira? Se continuar assim tão corajosa, logo vamos vê-la subir pela enfrechate do mastro. Rose dirigiu-lhe um olhar como se ele houvesse enlouquecido. Matt franziu a testa e disse: — Não estou falando sério. Não tenho muito jeito para conversar com crianças. — De fato, não. - ela concordou, mal mexendo os lábios e desviando o olhar depressa. Indicação de que ele não era o único a ter sido afetado pela eletricidade no ar dessa noite. Ocorreu-lhe, pela primeira vez, que, como viúva, Primavera não ignorava o que se passava entre um homem e uma mulher. Por acaso, sentia falta de tal relacionamento? Ficaria satisfeita se lhe proporcionassem algum alívio? Por sua expressão naquele momento, de forma alguma. Mas Matt tinha conhecido rameiras que poderiam passar
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por esposas de pastores. Davam a impressão de serem senhoras de respeito. Como nunca tivesse conhecido uma mulher como Rose Littlefield, ele não conseguia avaliá-la. Isso o perturbava. — Uma bela tempestade tivemos esta noite. - ele comentou em tom neutro. — Sem dúvida. - Rose respondeu enquanto punha açúcar em seu café. Três colheradas. — Não caiu muita água. Mas acho que raios deixam algumas pessoas nervosas. — Sem dúvida. - ela repetiu. Olhava para as flores murchas que havia posto na mesa apenas na véspera. Ele poderia ter lhe explicado que as plantas agrestes não resistiam ao cativeiro. Porém, existia o desafio. Um homem precisava de um para sentir-se vivo. Talvez uma mulher, também. Bess entrou na cozinha. Estava um tanto abatida. Devia ser ressaca, o que ela jamais admitiria. O melhor seria capaz de confessar ter tomado quase uma garrafa inteira de conhaque numa única noite. — Bom dia, Bess. Está com dor de cabeça? - Matt indagou ao levantar-se e oferecer-lhe uma cadeira. Ela ignorou o gesto e, com ar de repulsa, olhou para os pratos de peixe, batata, ovos e toicinho defumado fritos que Crank acabava de pôr na mesa. — Pretendo passar o dia hoje no quarto a fim de trabalhar com meus apontamentos. — Caso precise da Sra. Littlefield, Luther poderá cuidar de Annie. - disse Matt. — Não, não. Isso não será necessário. Apenas quero que Crank leve um bule de café e uma xícara a meu quarto. Dispenso açúcar. - Bess acrescentou e foi embora. Preocupada, Rose a acompanhou com o olhar e, depois, perguntou a Matt: — Acha que eu deveria ficar com ela? Ele sacudiu a cabeça num gesto negativo. — Não. É melhor deixá-la sozinha. Caso precise, ela a chamará. Do colo de Rose, Annie tentou pegar um vidro de picles de pepino, preparado por Crank. O velho cozinheiro sorriu como se tivesse recebido um elogio. Ainda com ar satisfeito, observou Annie amassar bem um pedaço de peixe e começar a satisfazer o apetite da criança. Incrível como se alimentava bem, pensou ele. Depois de pedir a Peg para verificar se a tempestade tinha causado algum estrago, Matt pediu licença e saiu da cozinha. Não tinha a mínima intenção de ficar observando dois velhos tolos se expor ao ridículo. Uma meia hora depois, pela janela aberta do escritório, ele ouviu a
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voz de Rose que levava Annie para respirar ar fresco. Matt já conhecia bem o ritual. Ela deixava a cesta da criança no terraço, fora do sol, e ia buscar água para molhar as mudas plantadas uns dias antes e abrir buracos para as novas que pretendia trazer. A mulher era persistente, ele reconhecia. Já tinha lhe dado a entender que de nada adiantava tal esforço, porém, ela continuava trazendo mudas da encosta e plantando-as ao redor da casa. Chamava isso de paisagismo. Maneira fantasiosa para justificar o aspecto de sujeira que os matos secos davam à área bem cuidada. Paciência. Afinal, ela tratava Annie muito bem. Ele a tinha observado algumas vezes com as mangas arregaçadas até os cotovelos, braços e mãos sujos e marcas de transpiração no vestido. Diabos se ela não ficava quase linda com as faces coradas e uns poucos caracóis soltos em volta do rosto. Aborrecido, ele parou de observá-la. Mulher teimosa, disse a si mesmo. Pela maneira como seus tripulantes atendiam-lhe as vontades, logo a estariam tratando por capitã Rose. Sendo justo e sensato, Matt reconhecia que ela não era culpada pela forma com que o afetava. Rose nunca havia, como Glória, lhe dirigido olhares sedutores, tocado-o com as mãos ou se curvado, oferecendo-lhe uma visão dos seios. Com Rose, bastava ouvir seu riso, vê-la com as mangas arregaçadas e um único botão aberto no decote ou sentir um laivo de seu sabonete perfumado para ser forçado a ir rachar lenha ou cavalgar Jericho. Droga, ele já tinha idade suficiente para não se deixar dominar pela carência física. Seis livros novos para ler. Uma pilha alta de cartas que precisava responder. Relatórios sobre transporte marítimo e preços de carga negligenciados num canto da escrivaninha. Comandar um navio de carga exigia mais do que habilidade náutica. Também era preciso ter conhecimento da tendência dos negócios. Ele tinha de estar preparado para quando readquirisse o Black Swan. Infelizmente, não conseguia se concentrar. Não culpava apenas a frustração física, embora o desejo desperto o atrapalhasse bem. Se continuasse assim, logo não seria capaz de comandar nem uma banheira. Não havia sido luxúria nem negligência que o tinha levado a se casar e a confiar na mulher antes de conhecê-la e, muito menos, consolidar a união. Isso tinha sido uma atitude absolutamente idiota. Infelizmente, ainda não aprendera a lição. Ele era responsável por muita coisa, inclusive pelas acontecidas antes de Bess aparecer com a viúva Littlefield. Isso tinha sido culpa dele, pois havia implorado para a tia vir ajudá-lo a cuidar de Annie. Mas ele encontrava-se numa situação aflitíssima e não contava com ninguém mais para socorrê-lo. Dera aquele passo com os olhos bem abertos, pois não ignorava que a tia podia levá-lo à loucura. Bess não mudava jamais,
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apenas ficara mais trapaceira com a idade. Era a Sra. Littlefield quem estava se tornando um problema. Não existia motivo algum para ela irritá-lo tanto quanto um punhado de carrapatos. Se Annie não precisasse tanto dela... Mas precisava. E, por isso, ele também. Tão logo recebesse um aviso de Boston, teria de ir imediatamente para lá. De forma alguma poderia deixar Annie sob os cuidados de Crank e Peg, pois nenhum dos dois gozava de muita saúde. E Luther teria de acompanhá-lo a Boston. Para piorar a situação, Bess já mostrava vontade de voltar para Norfolk. Estava ficando mais do que ele esperava. Embora não fizesse falta a Bess, o que se tornara evidente ali, a Sra. Littlefield iria com ela. Se a esposa transviada não aparecesse nos próximos dias, ele se veria numa encrenca dos diabos. Enquanto vagava o olhar pela desordem da escrivaninha, massageou os músculos tensos do pescoço. O riso alegre de Rose entrou pela janela aberta. — Preste atenção, Rose! Continue olhando! Luther estava se exibindo novamente. Rapaz idiota. Com certeza, andava na cerca, equilibrando-se e contando como podia fazer o mesmo num gurupés, o mastro inclinado que ia do bico da proa para frente de um veleiro. Matt voltou a atenção para a primeira carta da pilha. Pegou uma folha de papel na gaveta, abriu o tinteiro e já ia molhar a pena quando ouviu o primeiro grito. Rose! Annie! Atirando longe a caneta, alcançou a porta antes de ouvir o segundo grito. Annie continuava na cesta no terraço. Com um único olhar, viu que ela chupava o dedo tranquilamente. Graças à misericórdia divina, a criança estava bem. Matt levou apenas um segundo para absorver a cena diante dele. Gritos, relinchar, patas batendo no chão. A mulher, em pé diante do terraço, entre o desastre, tinha os braços abertos como se seu corpo esguio pudesse protegê-las. Luther, sem o mínimo equilíbrio, agarrava-se à crina de Jericho. O garanhão enfurecido, corcoveava em direção da casa e tentava atirar fora o peso das costas. Rose gritava algo como "oa, oa" e balançava o avental para frente como quando queria espantar as galinhas de suas plantas. — Pare de se mexer e não fale mais. - Matt ordenou baixinho ao ir ficar entre ela e o cavalo. Numa voz branda, tentou controlar o animal: — Calma, rapaz, calma. Tudo bem, ninguém vai lhe fazer mal. Para Luther, disse em voz tensa:
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— Largue a crina, pule para o chão e passe por baixo da cerca para o outro lado. Sem tirar os olhos de Jericho, ergueu Rose nos braços e jogou-a no terraço. — Pegue Annie e vá para dentro. - mandou sem elevar a voz. Rose atingiu o chão de lado, rolou o corpo e firmou-se nas mãos e nos joelhos. Numa voz aguda, gritou: — Ajude o coitado! Ele vai ser morto! — Vá para dentro. - Matt repetiu a ordem. Embora suave, a voz revelava autoridade inquestionável. Ele manteve-se firme, avaliando a situação cuidadosamente. Luther soltou um único grito, largou a crina e pulou, caindo de costas. As patas de Jericho, que continuava corcoveando pela areia, quase pisaram na forma inerte. Ele tinha o freio entre os dentes e as rédeas emaranhadas na crina. — Vamos lá, rapaz, acalme-se. Ninguém vai lhe fazer mal. Devagar, Matt afastou-se do terraço. Continuava a falar num tom suave, mantinha uma postura relaxada e os olhos nos do animal. Mas os braços ainda sentiam a impressão do contato da mulher que ele havia segurado apenas o tempo suficiente para afastá-la do perigo. Nos poucos segundos levados para fazê-lo, os sentidos tinham registrado o calor e a fragilidade de seu corpo, além do perfume de lilás de seu sabonete. Droga, ela ainda estava ali, na beirada do terraço, apoiada nas mãos e nos joelhos. — Não grite outra vez. E nem faça o mínimo ruído. - ele avisou sem virar a cabeça. Seguindo em frente com passos precisos, disse: — Luther, seu idiota, role por baixo da cerca e fique imóvel. Mais tarde, cuidarei de você. O tom era suave, mas a ameaça inequívoca. Por um bom tempo, Matt continuou a falar mansamente a Jericho até que ele permitisse ser levado, pela porteira aberta, até um pequeno cercado. As éguas ficavam separadas num outro ao lado e estavam inquietas. Aos poucos, voltaram a pastar o capim ralo da ilha. Depressa, Luther rolou por baixo da cerca, mas de acordo com a ordem, não ficou em pé. Matt não sabia se era por obediência ou porque estivesse machucado. No momento, não se importava, pois queria que o rapaz se danasse. Olhou para o terraço e viu Crank e Peg parados à porta, sem dúvida atraídos pelos gritos de Rose. Crank carregava Annie.
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Matt aproximou-se do garanhão trêmulo. — Tudo bem, rapaz. Que tal depois irmos até a praia e tomarmos um bom banho de mar? Sossegue, agora. Você é um bom sujeito. - murmurou enquanto, bem devagar, estendia a mão e começava a alisar o flanco suado de Jericho. Ele não sabia cuidar muito bem de cavalos, mas estava aprendendo. Lidar com um animal não era muito diferente do que com uma tripulação inexperiente. Firmeza, imparcialidade e coerência. Jericho era uma das coisas de que sentiria falta quando voltasse para o mar. Jericho e Annie. Annie e Jericho. E Rose. — Luther, se eu tivesse um chicote, tiraria o couro desta sua carcaça imprestável. Passe para o lado de cá. Falou em tom baixo, mas o suficiente para ser ouvido, enquanto se dirigia para o marinheiro que continuava ofegante e deitado no chão. Abaixando-se, Matt agarrou-o pela camisa úmida e cheia de areia, forçando-o a ficar em pé. Os dois homens tremiam. Matt, com um misto de raiva e alívio. Luther, com medo. — Você tem a mínima ideia do que quase fez? Você, com esse seu exibicionismo idiota, podia ter matado Annie e Rose! Mantinha a voz baixa para não assustar a criança. Mas raiva reprimida era duas vezes mais potente. Largando a camisa, Matt enterrou os dedos nos ombros largos e magros de Luther. Sacudiu-o até que os dentes dele batessem com estrépito. — Que diabos será preciso fazer para se meter um pouco de bom senso nesta sua cabeça dura? Que imbecilidade estava tentando provar? Rose não podia se mexer nem para salvar a própria vida. — Você está bem, Rosie? - Crank perguntou da porta a suas costas. Embora gemesse, ela fez um gesto afirmativo com a cabeça. Menos preocupados, os dois homens levaram a criança, que choramingava, para dentro de casa. Com a voz grave e rouca, Peg murmurava palavras de consolo. O olhar de Rose continuava grudado na cena horrível a sua frente. Sem perceber, balbuciou: — Não o sacuda com tanta força, Matt. Ai, pelo amor de Deus, não o espanque! Era como penetrar num pesadelo conhecido. Mas desta vez, o sol brilhava. Não chovia e nem trovejava. Faíscas não rasgavam o céu como na outra ocasião. Ao reconhecer a raiva na voz de Matt, ela encolheu-se. Tentava não entender as palavras, mas identificava muito bem a emoção que as instigava.
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— Espero que fique longe desse animal! — Espero que me explique a situação! — Não tente mais me desobedecer! — Não tente me tapear, sua cadela! As palavras de Matt confundiam-se com as de Robert em sua cabeça, deixando-a aturdida. Ainda com o pensamento preso em outra época e outro lugar, viu Matt sacudir Luther novamente e, depois, levantar os punhos cerrados. Revivendo a agressão do marido, suplicou: — Não! Por favor, não faça isso! Rose pensou que havia gritado, pois em vez de esbofetear o rapaz, Matt apenas o empurrou de volta ao chão e afastou-se. Tinha as costas rígidas e as mão crispadas ao longo do corpo. Completamente abalada, Rose arrastou-se para o fundo do terraço. Sentou-se no chão, junto à parede, com os joelhos encolhidos e a cabeça enterrada nos braços cruzados. Devagar, as amarras do medo foram afrouxando, porém, ela ainda tremia quando Crank apareceu a fim de levá-la para dentro de casa. Ele lhe preparou um chá bem forte ao qual acrescentou uma boa dose de conhaque. — Isto alivia a dor nos ossos e, segundo ouvi dizer, é bom para acalmar os nervos. Eu mesmo nunca experimentei, por isso, não posso jurar que seja verdade. Ela forçou-se a sorrir. Ao se servir do chá, respingou-o na mão, mas ignorou a falta de jeito. Crank puxou uma cadeira e sentou-se do outro lado da mesa de pinho. — Sabe, Luther não tinha intenção de fazer alguma coisa errada. Só queria chamar sua atenção como os rapazes fazem quando têm uma queda por uma mulher. — Ele não tem queda por mim. - Rose rebateu depressa demais. Mas no fundo do coração, sabia que o velho cozinheiro estava certo. De maneira egoísta, ela havia estimulado a admiração de Luther, deliciando-se com a sensação de alguém achá-la atraente, embora não tivesse um vintém, fosse sem graça, mais alta e mais velha do que ele. — Luther é meu amigo tanto quanto você e Peg, Crank. — Claro, mas não se esqueça do Capitão. - o velho homem aconselhou em tom solene. Rose suspirou e tomou um gole do chá potente. Seria ela transparente?, conjeturou. Eles sabiam o que sentia por Matt? Estranho, pensou, pois ela mesma ignorava o tipo de sentimento que alimentava pelo homem. Sabia apenas que ele a assustava e fascinava ao mesmo tempo. Percebia as fortes correntes que os fustigavam sob o verniz fino de civilidade. Talvez, como a mariposa e a luz, ela se
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sentia atraída por homens perigosos e aniquiladores. Matt jogou várias conchas de água da chuva, do reservatório, sobre a cabeça e os ombros. Tinha mandado Luther à vila a fim de pegar a correspondência. Não esperava carta alguma, mas o rapaz precisava de uma ocupação e ele, pôr distância entre os dois até encontrar a melhor maneira para resolver a situação. De forma alguma pediria desculpa. Se Luther queria se expor ao ridículo por causa de uma mulher, tinha todo direito, mas não quando punha em perigo um bom cavalo. Isso, sem mencionar a vida de duas pessoas indefesas. Na verdade, Rose não tinha parecido muito desprotegida ao se postar entre Annie e o animal enraivecido, sacudindo o avental como se fosse uma arma. Mas Matt pensava em outro rapaz, lembrava-se de como a própria negligência tinha levado Billy à morte. Para o próprio bem, Luther precisava receber uma boa lição. Se Jericho houvesse ferido Rose ou Annie, Matt teria de destruí-lo. Só Deus sabia o que, então, faria a Luther cujo coração era tão mole quanto seu cérebro. Muito mais fácil culpar Rose por encorajá-lo. Tinha idade suficiente para ser ajuizada, ao contrário de Luther. Jogando mais duas conchas de água na cabeça, Matt esforçou-se para analisar a situação sob a perspectiva certa. Mas a morte violenta de Billy ainda era muito recente e continuava marcada na memória. Lembrava-se de olhar para o bebezinho esquelético, de rosto vermelho de tanto chorar, com o cordão umbilical pendurado no corpo, e de ter resolvido enterrá-lo ao lado do pai. Não acreditava que vivesse. Annie tinha enganado a todos. Não apenas havia sobrevivido como vicejado também. E por mais que ele detestasse admitir, Annie não era a única a se dar bem naquela ilha desolada e agreste. Apesar de suas imperfeições, Rose tinha se transformado numa mulher completamente diferente da que chegara ali. Não lembrava mais a criatura que havia cambaleado ao descer da carroça naquela manhã gelada de março. Ela usava um pavoroso vestido preto e tinha uma cor esverdeada. Bess contara que a criatura enjoara desde o minuto em que havia posto o pé no barco até desembarcar na ilha. Matt balançou a cabeça e tentou afastar as lembranças. Gostaria de ir escrever cartas, mas sabia que não conseguiria se concentrar o suficiente. O melhor seria levar Jericho à praia onde os dois poderiam se livrar dos demônios que os atormentavam. Na cozinha, Rose fez um esforço e tomou meia xícara do chá. Depois, com a desculpa de ir ver Annie, que Peg tinha levado para o quarto, retirou-se. Encontrou a menina dormindo tranquilamente. Sentindo a necessidade premente do calor de outro corpo, pegou Annie nos braços e foi sentar-se na cadeira de balanço. Com o olhar perdido no reflexo do sol na areia e na água, que se via pela janela, começou a embalar a criança. Numa voz rouca e entrecortada, pôs-se a cantar, mas logo, calou-se. Seus braços estavam firmes, mas a voz, não. Continuou a balançar-se e, devagar, readquiriu o autocontrole enquanto revia os acontecimentos.
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Luther tinha cometido um grande erro ao tentar montar um cavalo do qual era proibido de se aproximar. Ele até a tinha aconselhado a ficar longe do animal. — A senhora não há de querer se arriscar. Garanhões são muito perigosos. Jericho então, nem se fala, pois foi muito maltratado antes de o Capitão comprá-lo. ele havia contado. Matt estava certo em repreendê-lo, mas não precisava impingir castigo físico. A violência, não importava o quanto fosse justificada, não solucionava nada. Sendo imparcial, tinha de admitir que Matt a salvara de um provável acidente. Ele havia se dado ao trabalho, pelo menos alguém o fizera, de empurrar a cesta de Annie para longe da beirada do terraço, fora do perigo, o que não lhe ocorrera. Também havia se mantido calmo a fim de não irritar mais o cavalo e, embora furioso com Luther, com todo o direito, ela reconhecia, não o tinha agredido fisicamente. Porém, por mais que tentasse racionalizar o que acabara de acontecer, Rose não conseguia esquecer a lembrança da fúria quase incontrolável de Matt e do pavor do pobre Luther. Ela havia percorrido um longo caminho, mas não chegara ao fim. Talvez nunca o fizesse. Isso a deixava exatamente onde tinha começado, podia aceitar a decepção e continuar com o plano original. Ficaria ali com Annie enquanto Matt voltaria para o mar. Ou poderia arrumar a bagagem e enfrentar outra travessia horrível de barco. Uma opção era tão pouco animadora quanto a outra.
Capítulo VII
Elas haviam chegado no início da Primavera e o Verão já estava no auge. Rose surpreendia-se com o fato de Bess se demorar tanto na ilha, mas calculava que uma escritora podia trabalhar em qualquer lugar. Porém, a impaciência de Bess aumentava com o passar dos dias e ela a pressionava cada vez mais. — Vamos, Rose, crie coragem e conte tudo a Matt. Não posso ficar aqui para sempre. Ele é um bom rapaz e dará um excelente marido. Rapaz coisa nenhuma e sim homem-feito, pensou Rose.
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— Por que você não explica a questão toda para ele? Afinal, a ideia foi sua. Além disso, você tem mais facilidade para se expressar do que eu. Na verdade, seu único talento resumia-se em se esquivar de fazer escolhas. Bem mais fácil do que ter de viver com as consequências de uma errada. — Naturalmente, tenho. Acontece que estou saindo para ir visitar Dick Dixon, o notário público. Não existe ninguém nesta ilha que não tenha rabo-de-palha. Ele saberá me dar informações precisas. Com toda certeza, a caça de segredos comprometedores mostrou-se compensadora, pois Bess passou quase o tempo todo dos dias seguintes na vila. Rose, procrastinando o inevitável, gastava as horas na encosta costurando, debulhando feijão, conversando com Annie ou, simplesmente, deitada numa colcha, apreciando o vento quente e úmido no corpo inteiro. O que Matt faria quando ela lhe contasse? Qual seria sua reação? Impossível saber. Ele era um homem tão enigmático. Enfurecia-se depressa, mas apenas quando a raiva se justificava. Sob as maneiras ríspidas, que não mais a amedrontavam, ele possuía um veio profundo de meiguice. Apesar de qualquer traço de bom senso de que dispunha, ela sentia uma atração crescente pelo Capitão. Sentou-se, passou os braços pelos joelhos encolhidos e observou os dois homens na distância. Depois de cuidar dos animais de manhã, eles tinham transportado fardos de feno para a sombra ao lado do estábulo e, então, parado de trabalhar. Luther segurava uma pequena lousa e Matt, uma caneca do café forte de Crank. Rose sabia o que faziam. O velho cozinheiro tinha lhe explicado que, na falta de Billy, Luther seria o imediato do Black Swan. Por isso, Matt tentava preencher as falhas na educação do marinheiro. — O rapaz tem pouca idade para o posto, mas Watt não era muito mais velho quando assumiu o comando do Swan. - Crank havia comentado. Naquela semana, estavam revisando matemática, na véspera os tinha observado de perto, Rose achara incrível que Matt jamais perdesse a paciência, nem mesmo quando Luther se atrapalhava com a tabuada. Naquele momento, apesar da distância, percebia e admirava o brilho do sol nas costas nuas, largas e bronzeadas, a maneira com que ele alisava os cabelos negros e gesticulava para enfatizar a explicação. Aquelas mãos eram fortes o suficiente para controlar o garanhão bravo e, ao mesmo tempo, delicadas para acariciar a face de Annie e provocar-lhe um sorriso. — Por Deus, Annie, o que eu fiz? - ela murmurou. — Tenho certeza de que o quero como marido, mas duvido que ele me aceite. E nem sei o que faria com ele caso o conquistasse.
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Outra noite agitada. Ou ela ficava acordada ou adormecia e sonhava. Sabia muito bem que o trabalho não era a solução. Mas até criar coragem a fim de revelar o que tinha feito, ele ajudava bem Por isso, Rose percorreu os quartos e trocou os lençóis e fronhas de todas as camas. Iria gastar um bom tempo para esfregar, enxaguar, torcer e pendurar tudo no varal. Peças grandes exigiam muito esforço para torcer, mesmo usando a vareta como Luther a tinha ensinado a fazer. Mais tarde, teria de recolher, dobrar e guardar a pilha imensa. Ficaria com forte dor nas costas, o nariz queimado de sol e as mãos vermelhas e ásperas. Mas, distraída com o trabalho, não teria a oportunidade de se preocupar muito. Luther, como sempre, ofereceu-se para ajudá-la. Porém, antes de pendurar o primeiro lençol, Matt o chamou para que fosse à vila levar uma carta ao notário. — Aqueles dois são piores do que um par de galos de briga. - Peg disse enquanto jogava um balde de restos da cozinha para as galinhas. Como não soubesse nada sobre galos, Rose não entendeu o comentário. Com a ajuda da vareta, torceu outro lençol e pendurou-o. Depois, com o suporte do varal, virou-o a favor do vento sudeste. Ela precisava acabar com essa história de uma vez por todas. Melhor sentir a tristeza de ser rejeitada do que a vergonha por se reconhecer covarde. Com a roupa no varal para secar e Annie alimentada, trocada e pronta para o sono da tarde, Rose procurou outro trabalho. Crank e Peg faziam toda a limpeza da casa e recusavam-se a deixá-la a pegar numa vassoura ou lavar um prato sequer. Porém, ela tentou. — Vá apanhar mais das flores de que tanto gosta. - sugeriu o cozinheiro. — Elas deixam a mesa bem bonita. — Já peguei todas lá da encosta e plantei mudas em volta da casa, mas secaram e morreram. - ela queixou-se como se alguém estivesse sabotando seus esforços. Ela admitia que não entendia nada de jardinagem, mas poderia aprender. Deus sabia como o aspecto de Powers Point melhoraria bem com um pouco de paisagismo, ainda mais se ela resolvesse fazer valer seus direitos. Talvez fosse forçada a ficar, Matt querendo ou não, pois não tinha dinheiro algum e nem perspectiva de emprego. Numa fração de segundo, decidiu-se. Nada de hesitação. Nem mais desculpas. Estava na hora de pôr um fim na questão absurda. Antes de perder a coragem, seguiu pelo corredor e bateu na porta do escritório. Com os dedos cruzados e olhos fechados, fez uma prece silenciosa. Por favor, meu Deus, faça com que ele me queira e que tudo dê certo desta vez. Se não for por mim, então, pelo bem de Annie. Ela precisa de mim.
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A porta abriu-se antes que ela pudesse pensar no amém e descruzar os dedos. — Pois não? - Matt resmungou em tom Os cabelos pretos precisavam ser aparados, mesma havia lavado, estava desabotoada até escuros, ela engoliu em seco e tentou, em vão,
impaciente. Ele tinha uma carta na mão. Rose notou. A camisa de linho, que ela o meio do peito. Olhando para os pêlos se lembrar por que estava ali.
— Eu gostaria de usar a carroça, caso seja possível. Enquanto Annie está dormindo, queria aproveitar para ir à vila procurar sementes. Mulher idiota. Você está cometendo outra bobagem. — Sementes. - ele repetiu como se nunca tivesse ouvido a palavra antes. Ele olhava para suas mãos. Constrangida, Rose descruzou os dedos e escondeu-as nas dobras do vestido. — Sementes de flores. Mas, também posso plantar verduras. - acrescentou, nervosa, aprofundando o buraco em que se metera. — Sei. Acha que pode controlá-la? — Controlar quem? — Angel. — Ah, eu dirigia minha própria charrete. Duvido que uma mula possa apresentar muita dificuldade. Além do mais, não vou enfrentar trânsito como na cidade. Sentindo a competência ser desafiada, ergueu bem os ombros. Ele a fitou com olhar firme e apertou os lábios. Rose teve vontade de dizer-lhe para esquecer o pedido, ou melhor, de tê-la visto ali, para, em seguida, desaparecer depressa. Naturalmente, não o fez. Afinal, era uma mulher de palavra... Às vezes. — Plantas crescem na areia. Há árvores, arbustos e trepadeiras na escarpa, além de flores silvestres. Sua casa ficaria melhor, mais bonita com um jardim. Consciente de haver perdido a coragem, Rose recorria à provocação. Matt continuou a fitá-la até que sua boca ficasse seca de tanto nervosismo. Já ia se afastar quando ele disse: — Pode ir à vila caso Bess não precise da carroça. Não faço objeção alguma desde que Annie não seja negligenciada. — Ela jamais será enquanto eu estiver em Powers Point. E Bess está no quarto lendo um diário que o Sr. Dixon lhe emprestou. — Interessante. Faça como achar melhor, Rose. Se agisse de acordo com a vontade, ela o golpearia na cabeça com um objeto
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bem duro. Ou o tocaria no queixo a fim de verificar se era tão firme e inflexível quanto aparentava. Luther, que tinha ido à vila numa das éguas, acabava de voltar. Atrelou a mula à carroça e deu algumas explicações. — Angel é de boa índole, mas às vezes empaca como se estivesse sonhando acordada. Como soubesse que a auto-estima do rapaz ficara abalada por causa do incidente com Jericho, Rose tentou não mostrar a impaciência. — Obrigada. Você é muito prestativo. Mas não se preocupe, pois não sou inexperiente. Aos doze anos, ganhei um carrinho puxado por um pônei. Aos dezoito, papai me deu uma charrete. Já estava na hora de enfatizar a diferença de idade entre os dois. Ela estava com vinte e quatro anos e Luther mal completara vinte e dois. Caso não se levasse em conta a prova imposta à paciência, Rose e Angel fizeram o trajeto de seis quilômetros sem percalço algum. Impossível um trote ligeiro na areia fina e fofa. Tinha sido um solavanco atrás do outro e uma luta contínua contra os mosquitos. Apesar do chapéu, o rosto de Rose ardia de tão queimado de sol e coçava com as picadas dos insetos. Mas o pior, foi não encontrar uma única loja. Não havia nem mesmo uma quitanda, um pescador grisalho lhe contou. Ele consertava uma rede de pescar, pendurada entre dois carvalhos, e parou para dar mais informações. — Na próxima vila ao sul, há um armazém que recebe suprimentos todas as semanas. — Quanto tempo leva para se chegar lá? - Rose perguntou. — Meio dia. — Para atravessar o braço de mar? - ela indagou, admirada, pois tinha lhe parecido um século cruzá-lo a vinda para a ilha. — Não, até o armazém. Eu e minha mulher vamos até lá nos próximos dias e podemos comprar o que a senhora precisa. Depois, entregaremos a Luther ou Bess. Rose suspirou e, distraída, coçou uma nova picada enquanto explicava o que procurava. — Estou querendo sementes de flores. Das que vingam por aqui. Talvez de cenoura e de alface também. Sorrindo, o pescador pôs um pedaço de tabaco na boca e começou a mascá-lo. As rugas no rosto se aprofundaram.
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— Bem, não sei se dá certo plantar alguma coisa nesta época do ano. Mas minha mulher poderá lhe dar umas mudas de couve. Na meia hora seguinte, Rose encontrou três mulheres e vários pescadores que, acanhados, a cumprimentaram e perguntaram por Bess. — Eu não a vi nos últimos dias. - comentou uma das mulheres. — Se não me engano, ela está fazendo pesquisa. - Rose respondeu sem saber se a leitura do diário de outra pessoa seria considerado pesquisa ou bisbilhotice. Uma hora mais tarde, Rose voltava para casa, levando uma coleção preciosa de mudas, enxertos, sementes, duas cartas e a notícia de que o filho do notário ia chegar a fim de passar as férias em casa. Ignorava que interesse o fato poderia despertar nas Pessoas de Powers Point, mas as mocinhas da vila estavam bem animadas. Mais ou menos na metade do caminho, Angel empacou como Luther a tinha avisado. Só podia estar sonhando acordada, como ele dissera, pois não havia motivo para a criatura parar a quilômetros de distância de qualquer lugar. Rose estalou a língua e as rédeas nas ancas do animal. Esperou, achando que, talvez, o sol quente forçasse a mula a se mexer. Quem, pessoa ou animal, em seu juízo perfeito, gostaria de ficar fora, num dia como aquele, quando o calor emanava da areia quente em ondas atordoadoras? — Angel, eu lhe prometo uma recompensa caso recomece a andar. Será que ainda havia maçãs secas em casa? A mula gostava muito delas. — Que tal tomar uma água bem fresquinha e ficar na sombra? Quando chegarmos em casa, o lado leste do estábulo já estará sombreado. A criatura idiota continuava imóvel e nem baixava a cabeça para pastar o capim ralo entre os sulcos da estrada. De nada tinha adiantado autoridade e tentativa de suborno. Embora relutante, Rose desceu da carroça. Do lado do braço de mar, o capim alto e verde era convidativo. Por um momento, ela permaneceu parada, observando uma touceira densa de cactos. Mais de uma vez, tinha sofrido arranhões ao passar por eles sem ver. Se não fosse pelo grasnar das gaivotas e o zumbido constante dos mosquitos, o barulho das ondas, além das dunas, poderia livrá-la da irritação. Proferindo uma praga aprendida com Bess, ela deu um tapa no pescoço úmido a fim de se livrar de uma varejeira. Depois, olhou para a mula sonolenta. — Eu a estou avisando, criatura teimosa, jamais perdoarei por isto. Vou me vingar, pode ter certeza que seu Capitão vai pensar que a culpa é minha, mas sabemos que é sua.
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Erguendo um pouco a saia, ela começou a andar em direção ao capinzal, perto da praia. Escolhia cuidadosamente o caminho, evitando roçar nas moitas de carrapicho e nos espinhos dos cactos. Mais tarde, não conseguiu se lembrar do que a tinha alertado. Se o silvo suave ou o arrepio na nuca. Mais uns poucos passos, teria pisado nela. Apavorada, Rose olhou para a grossa cobra com manchas marrons. A cabeça estava levantada e, pela boca aberta, o animal peçonhento vibrava a língua delgada. Com olhar hipnotizado, Rose manteve-se imóvel. Só quando o coração reassumiu o ritmo regular, ela começou a recuar. Se pudesse alcançar a carroça e subir para sua segurança... — Angel... - chamou baixinho, sem virar a cabeça — Prepare-se para ir embora. A saia prendeu-se umas duas vezes, porém, puxou-a e continuou a andar de costas, sem tirar os olhos da cobra. Felizmente, ela não se mexeu. Com o corpo enrolado e a língua para fora, continuava silvando. Foi outro barulho que, finalmente, a fez olhar por sobre o ombro. Soltou uma exclamação de incredulidade. — Angel, volte já para cá! Com um último olhar para a cobra, virou-se e começou a correr. A mula, naquele instante, encetou um trote, afastando-se cada vez mais depressa. — Volte aqui ou pare e me espere, sua malvada! Quanto mais Rose gritava, mais depressa Angel corria. Parecia incrível tratar-se do mesmo animal que, na ida, tivera dificuldade para percorrer a trilha de areia fofa. A carroça sacolejava horrivelmente, derrubando as mudas e as sementes preciosas de Rose pelo caminho. Não foi preciso muito tempo para ela esgotar o parco vocabulário de impropérios, mas muito para catar as plantas que murchavam rapidamente ao longo da trilha. Sem dúvida, morreriam antes de serem plantadas. Enxames de moscas. Calor escaldante. Praguejando, Rose desabotoou a blusa, sem se importar em exibir a camisa, e tirou o chapéu a fim de abanar os insetos para longe do rosto molhado de transpiração. Quantos quilômetros tinham percorrido desde a vila? Mais importante: quantos ela teria de caminhar? Atrás, as árvores, que protegiam a meia dúzia de casas da vila, tremeluziam acinzentadas na sempre presente bruma marítima. Na frente, as poucas construções de Powers Point eram pouco visíveis.
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Rose já caminhava por quase uma hora quando viu algo movendo-se na distância. Ela havia tirado a anágua a fim de carregar as mudas, enxertos e sementes, pois temia que o calor das mãos acabasse de vez com eles. Naturalmente, não teria coragem de, um dia, voltar à vila e pedir outros às mulheres. Diminuiu os passos enquanto firmava a vista na distância. O que poderia... Estaria Angel voltando? Provavelmente se sentia perdida. Animal idiota e caprichoso. Devia conhecer o caminho muito bem. — Nunca mais vou lhe dar maçãs. Você não merece uma sequer. - Rose resmungou. Pelo menos, ela mesma não estava perdida. Aliás, seria impossível numa ilha tão estreita. Uma pessoa podia, do meio, atirar uma pedra para qualquer lado que atingiria a água. Ela teria apenas de caminhar o suficiente para chegar a um destino. Talvez não o que tivesse em mente, mas naquela emergência, qualquer um serviria. Se Crank estivesse ali, citaria algum versículo da Bíblia, pensou e sorriu, uma alternativa melhor do que praguejar ou chorar. Logo descobriria o que tinha visto na distância, pois já estava mais perto. Não se tratava de Angel puxando a carroça e sim... Matt?! — Ai, não, Deus misericordioso. - Rose balbuciou ao reconhecê-lo, cavalgando uma das éguas. Sentindo-se derrotada, parou com os ombros curvados e ficou à espera do inevitável. Matt poderia gritar o quanto quisesse com ela e até sacudi-la, mas se a estapeasse, ela revidaria, golpeando-o com o embrulho das mudas. Naturalmente, só serviria para distraí-lo. — Resolveu ir a pé para casa? Desconfiada, ela respondeu: — Na verdade, a decisão não foi minha. — Calculei. A única palavra foi como se a chamasse de idiota, estúpida e de outros xingos que ela própria se dirigira antes. Sem dizer mais nada, ele desmontou, Pegou a anágua com as mudas e amarrou-a na sela. Em seguida, carregou Rose para cima da égua. Um processo no mínimo constrangedor, e montou. Ela não conseguiria falar uma única palavra nem para salvar a alma do inferno. Pensou na possibilidade de morrer de humilhação, mas sabia ser impossível. Matt pegou as rédeas, prensando-lhe os lados com os braços. Rose prendeu a respiração, mas tarde demais. Já havia sentido o cheiro dele: um misto de cavalo, sabão, roupa secada ao sol e algo mais que não sabia
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definir. Apesar da situação embaraçosa, achou o odor familiar e tranqüilizador. Ela, infelizmente, devia exalar cheiro de transpiração, além de deixar evidente o medo e a vergonha. Podia sentir, nas costas, as batidas regulares e firmes do coração de Matt. Endireitou o corpo a fim de se afastar um pouco dele, porém, era uma posição incômoda e difícil de ser mantida. Estava montada de lado, no quarto dianteiro e inclinado da égua, mas com o torso virado para frente. Com um dos braços, ele a puxou de volta de encontro ao peito. Continuava calado. A lei da gravidade foi mais forte e ela amoleceu o corpo, encostando-se nele novamente. A sensação de derrota voltou a dominá-la e ela fechou os olhos. Em segurança, pensou. Em segurança. Essa era a única condição em que não se sentia enquanto o calor do corpo de Matt queimava o seu através do tecido fino do vestido. Todos os músculos dele estavam rijos... Sem exceção. Luther engraxava as rodas da carroça quando chegaram ao pátio. Ele levantou o olhar, enrubesceu e voltou a trabalhar. firme:
Ninguém falou nada. Absurdo, Rose pensou. Respirou fundo e indagou em voz — Como você percebeu que eu estava com problemas, Matt? Ele desmontou e a pôs no chão. — A carroça voltou. Você, não.
Ora, claro. Nenhum mistério. Determinada a escapar dali da maneira mais digna possível em tais circunstâncias, pôs o chapéu na cabeça e deu um único passo. Então, os joelhos dobraram. Praguejando baixinho, Matt a amparou antes que ela caísse. — Ai, meu Deus, isto é tão horrível quanto descer daquele barco instável. - Rose murmurou num gemido. Teve de segurar-se a ele até recobrar o equilíbrio. Sentiu algo duro de encontro à barriga. Seria a fivela do cinto dele? Ou... — Misericórdia. - balbuciou. Ouviu-o inalar o ar. Talvez fosse ela mesma. Estava muito confusa. Deu um passo para trás e virou-se, porém, ele a segurou pelo braço. — Por favor. - disse ela. — Fique quieta e não se mexa. - Matt ordenou em tom ríspido. Para surpresa sua, ele ajoelhou-se a seus pés. Perplexa, olhou para a cabeça dele. Cabelos fartos, negros, mas com um reflexo de mogno sob o sol da tarde. Seus dedos tremeram com a vontade de tocá-los.
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E então, Matt levantou sua saia. Absolutamente chocada, ela baixou-a com um tapa. Robert tinha... À luz do dia... Ela odiava! Mas ali no pátio, diante de todo mundo?! O homem estava louco! — Pare com isso! — Diabos, fique quieta ou isto aqui vai acabar se enroscando em seu calção. Com o máximo cuidado, ele tirou uma folha de cacto da saia, jogou-a num balde e continuou a limpeza. Rose fechou os olhos enquanto o rosto pegava fogo. Ao sentir as mãos de Matt roçar-lhe as pernas, teve a impressão de que as queimavam como ferro em brasa. Quando ele terminou, havia uma camada de folhas de cacto e de carrapichos no fundo do balde. — Luther, depois, ponha fogo nisto aqui. - ele gritou. Com um sorriso matreiro, virou-se para Rose. — Caso contrário, eles vão se alastrar pelo pátio inteiro. É isso que você quer? Mato crescendo em todos os cantos de Powers Point? Ignorando a provocação e ainda com a ilusão de mostrar um pouco de dignidade, ela disse: — Muitíssimo obrigada. — Ora, de nada. Tratando-se de caçoada, o homem era um mestre. Agora, Rose entendia por que uma mulher tinha de usar espartilho e várias camadas de roupa, mesmo nos dias mais quentes de verão. Não se sentiria tão vulnerável se não estivesse quase seminua e tão molhada de transpiração. A saia devia estar grudada nas pernas, porém, não se atrevia a verificar. E, por haver tirado o chapéu, com certeza o rosto ficara vermelho como um camarão. — Calor horrível, não? - comentou Luther que se aproximara para levar a égua antes de pôr fogo no balde. — Espere um pouco - Matt disse ao desamarrar, da sela, a anágua de Rose com as mudas. — Você esqueceu isto. Por que não deito aqui e morro de uma vez? Daqui a poucos anos, ninguém se lembrará do meu nome, muito menos, da vergonha que estou passando. Novamente corando até a raiz dos cabelos, ela agarrou a trouxinha e afastou-se em direção ao terraço. Poderia acontecer a qualquer pessoa, disse a si mesma. Uma mula caprichosa e fujona, uma montaria compartilhada com outra pessoa. Roçar no
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corpo de um homem ao ser amparada para não cair, sentir-lhe a excitação... Ou a fivela do cinto, ela ainda não tinha certeza, pois, naquele momento, estava muito agitada. E aquilo tinha sido antes de ele levantar-lhe a saia. Imagine se fosse depois. — Diga a Crank que irei jantar logo após cuidar de Jericho. - Matt pediu às suas costas. Sem parar, Rose fez um sinal afirmativo com a cabeça. Mais uma vez, não conseguiria pronunciar uma palavra sequer. Naquela noite, determinada a esquecer completamente o incidente embaraçoso, Rose pediu emprestado, a Crank, o catálogo de uma loja. Gostaria de encomendar um par de botinhas altas, de lona, e um chapéu leve de palha. Embora fossem artigos baratos, ela descobriu que o total de três dólares e vinte e cinco centavos estavam fora de seus míseros recursos. Resolveu folhear a seção para bebês. Annie tinha pouca roupa e quase tudo já estava pequeno demais ou gasto, como no caso das peças usadas, dadas por mulheres da vila. Caso tivesse dinheiro, Rose gostaria de vestir a menina com camisolinhas de seda e toucas de renda francesa, pois a amava muitíssimo. O vazio em seu coração jamais seria preenchido, mas Annie ajudara muito a aliviar sua tristeza profunda. Já conseguia passar dias sem pensar como fora terrível acordar com dores no corpo inteiro e ser informada de que o bebê havia morrido. Era uma menina e Rose adorava senti-la se mexer. Apavorava-se ao pensar que poderia perder Annie também. Se havia uma coisa que tinha aprendido sobre o marido no papel era o fato de ele exigir honra e integridade em todos seus relacionamentos. Ninguém, em seu juízo perfeito, ousaria mentir para ele. Nem mesmo Bess. Bem, talvez Bess, de vez em quando, conseguisse esconder a verdade. Mas no momento em que Rose revelasse seus erros, tudo estaria terminado. O casamento, os sonhos audaciosos evaporariam. Matt a expulsaria dali. Embora viesse a sofrer muito case se separasse de Annie, essa não seria a perda que mais temia. Como era possível, refletiu enquanto olhava, sem ver, o catálogo, que um simples erro se multiplicasse tanto a ponto de afetar-lhe a vida inteira? Se não houvesse se casado depressa e, depois, perdido a coragem, agora Matt seria reconhecido e aceito como seu marido. Ele voltaria para o mar, deixando-a ali com Annie. A certa altura, no início, ela teria ficado contente com apenas isso. Não mais. Porém, ela havia sido irresponsável, cometido uma grande tolice e, agora, via-se forçada a sofrer as consequências.
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Na manhã seguinte, depois de se munir de coragem, Rose bateu na porta do quarto de Bess. — Será que vou atrapalhá-la? Preciso trocar uma palavrinha com você. - disse depois de receber permissão para entrar. — Não pode ser mais tarde? Dessa vez, Rose recusava-se a aceitar qualquer desculpa. — Não. Precisa ser agora. — Você já se alimentou? — Estou sem fome. — Salmonete frito e pãezinhos sem sal, mas... — Bess, por favor? Você vai ficar contente ao saber que resolvi contar a verdade a Matt. Naturalmente, não vou comprometê-la. Assumirei toda a responsabilidade e direi que a ideia foi minha. Mas, se ele me mandar embora, eu gostaria de ir com você. A perspectiva de fazer a viagem sozinha é... Bem, não quero nem pensar. Bess apontou-lhe uma cadeira. Mesmo sendo tão cedo, a máquina de escrever já estava descoberta e com uma pilha de papel ao lado. Um peso de vidro impedia que eles voassem com a brisa vinda pela janela aberta. Antes que Rose pudesse continuar, ela anunciou. — Enquanto você foi à vila ontem, Dick Dixon apareceu para fazer uma visita. Ele contou que o filho está para chegar. Vai passar as férias na ilha. — Ouvi dizer isso lá e pretendia lhe contar. Eu o conheci no ano passado. Rapaz atraente e tem um ótimo emprego. Você não poderia encontrar melhor. Confusa, Rose piscou. — O que você está insinuando? — Você me ouviu. — Ai, tenha a santa paciência, Bess! Isto não se trata do enredo de uma de suas aventuras. Ouça bem. Vou contar a verdade a Matt e pôr um ponto final nesta confusão. — Uma jovem viúva como você e um rapaz bonitão como aquele... Bem, se eu fosse você, não perderia tempo.
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Ou passei muito tempo ao sol sem chapéu, ou esta pobre mulher acabou cozinhando os miolos com conhaque. — Deixei de ser viúva quando me casei outra vez. - Rose disse bem devagar e em voz calma. — Nós duas sabemos que tenho um marido, embora ele ignore isso. massageou as têmporas que latejavam. — Matt sabe que tem uma esposa, mas ignora quem seja, quer dizer... — Estou apenas avisando-a que existem opções caso a questão aqui não dê certo. Não que haja motivos para isso, entenda, mas não é tarde demais para recuar. Matt é um homem justo e a ouvirá com imparcialidade. Caberá a você fazê-lo compreender. — Como assim? Explicar-lhe que não passo de uma criatura pusilânime e covarde? Desanimada, Rose curvou os ombros. Como poderia fazer alguém compreender algo que, para ela constituía um enigma? Rose bateu na porta do escritório, mas Matt não estava lá. Naturalmente, não se atreveu a ir bater na do quarto dele. Envergonhada da sensação de alívio por não encontrá-lo e ter de adiar a conversa, deu banho em Annie, vestiu-a e ofereceu-lhe a mamadeira. — Gugu... - a menina protestou, abanando as mãozinhas. — Está bem, queridinha. Vamos até a cozinha satisfazer seu apetite. Tão logo entrou lá, Crank começou a servir seu prato. — Ai, não. Só café para mim, obrigada. E, para Annie, mingau. Ele colocou o prato na mesa, a sua frente, arrumou o da menina e recomendou: — Não desperdice. - falou. — É como diz o velho livro. Como não quisesse magoá-lo, Rose comeu umas poucas garfadas. — Estou sem fome hoje. - desculpou-se. — Esqueci o sal outra vez, não é? Um homem, de minha idade, tem de se lembrar de muita coisa para se manter em dia com cada grão de sal. Rose não entendeu o que ele queria dizer e forçou-se a comer mais um bocado do peixe frio e engordurado enquanto Annie enfiava a mão no mingau. Matt já devia estar no escritório. — Crank, você se importaria de cuidar da menina por uns minutos? - pediu depois de cruzar os talheres. — Ah, vou ensinar-lhe outra de minhas canções. Mais uma indecente, pensou Rose. Ainda bem que Annie ainda não entendia as
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palavras. Ia sentir uma falta imensa de todos, ela sabia. Seria como perder outra família. Primeiro, os pais, depois o bebê, Robert não contava, e então, a avó. E agora, todos dali. Diante da porta do escritório, pela terceira vez em vinte e quatro horas, Rose alisou os cabelos e o vestido. A batida, que ela tencionava ser firme mal foi ouvida. Limpou a garganta e chamou; — Matthew? Por favor, eu gostaria de trocar uma palavrinha com você, caso não esteja muito ocupado. A porta escancarou-se antes que ela perdesse a coragem e fugisse. Matt usava outra camisa lavada por ela. Essa era tão fina que deixava visível a sombra dos pêlos sobre os músculos do peito. Rose engoliu em seco, desejando que o coração não batesse na garganta. Sem uma palavra, Matt recuou e fez um gesto para que ela entrasse. Seria mais fácil imaginar o lado escuro da lua do que avaliar o humor do homem, ela refletiu. — Sente-se. Eu estava mesmo planejando conversar com você. - ele disse ao apontar para uma cadeira. Uma onda de terror a dominou, deixando-a trêmula. Ele sabe. Bess já lhe contou, ela concluiu. Por uns momentos, nenhum dos dois falou. Como adversários, na iminência de uma luta, cada um usava o silêncio para avaliar a força do oponente, esperando para ver quem daria o primeiro golpe. — Sente-se. - Matt repetiu. Até esse ponto, Rose vencia a revelia. A mente a instigava a ir em frente, mas a língua recusava-se a funcionar. Ele arqueou as sobrancelhas. Ela limpou a garganta. Vamos, fale de uma vez! O pior que ele poderá fazer é mandá-la embora naquele barco horrível. Para surpresa sua, não era o enjôo o que mais temia. A brisa quente entrou pela janela aberta, trazendo um leve cheiro de sal e um mais forte de cavalo. Aproximando-se um pouco, ela sentiu o odor característico de sabão de barbear, de livros e de algo insidiosamente masculino. Rose fechou os olhos e, antes de se deixar influenciar pelas diversas emoções, iniciou a confissão. — Posso explicar tudo. Eu... Matt falou ao mesmo tempo, abafando sua voz fraca. — O que tenho para dizer não vai levar um minuto.
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Enquanto falava, observava-a com atenção, deixando-a penosamente consciente da pretensa dignidade, dos cabelos mal penteados e do rosto queimado de sol. Pelo menos, disse a si mesma, agarrando-se ao resto da auto-estima, não podia mais ser comparada à cor do salgueiro. Olhou para os livros alinhados na estante, para o instrumento de bronze na escrivaninha e para a pilha de correspondência ao lado, umas tantas cartas nem abertas ainda. Apenas não olhou para o homem. — Bess está lhe pagando um salário? Sua cabeça virou depressa. — Um... O quê? — Você me ouviu. Confusão mesclou-se com alívio. O que Bess tinha contado a Matt? — E então? - ele insistiu. — Não. Ora, claro que não. - resposta errada, ela percebeu e tentou corrigi-la. — A questão é que não estou trabalhando como secretária enquanto me encontro aqui e... — Bess não precisa de uma dama de companhia paga. - Matt terminou por ela. Como debater esse ponto sem revelar a trama infeliz? Ela teria de explicar tudo de maneira racional, passo a passo, como os fatos haviam ocorrido, levando-a a tapeá-lo. Se não fosse assim, ele não entenderia. — Bem, ora, você sabe... - gaguejou. — Vou lhe pagar o salário de um marinheiro competente. E os atrasados também. - ele acrescentou ao vê-la arregalar os olhos. — Um marinheiro competente?! Ai, não! Sinto muito, mas... — Sempre saldo minhas dívidas, pois exijo a mesma atitude para comigo. — Mas você não me deve nada. Absurdo. Ela, sim, era devedora, refletiu Rose. — Você não tem obrigação de cuidar de Annie e vem fazendo isso desde que chegou. — Ah, mas eu amo... — Como afirmei, costumo saldar minhas dívidas. Bess, a mulher malvada, devia ter contado tudo a ele um bom tempo atrás. E agora, tia e sobrinho a provocavam como dois gatos com um único camundongo. Esse devia ser o motivo para Bess estar passando mais tempo ali do que tinha planejado.
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Rose sentiu-se traída. Sabia muito bem como Bess gostava de cutucar um vespeiro e tomar nota das consequências a fim de acrescentar parágrafos à história que estivesse escrevendo. Se fosse preciso, ela seria desonesta para conseguir o que desejava, Rose havia aprendido. Mas, para grande tristeza sua, tinha se enganado em relação a Matt. Esperara que fosse diferente da tia. — O banco mais perto fica em Manteo. Porém, você não tem onde gastar dinheiro na ilha. Receberá tudo quando for embora. Essa era outra coisa. Quando se fosse. Inevitavelmente, iria porque, mesmo sem a ajuda dos dois, havia se enterrado numa confusão tremenda. Apertando as mãos para impedir que tremessem, disse: — Sim, bem... Não estou segura quanto a tal comparação a um marinheiro competente, mas tenho certeza de que você fará como achar melhor. Seria imaginação sua ou teria visto, de fato, uma expressão divertida no fundo dos olhos dele? — Claro, Rose, costumo agir dessa forma. Dessa vez, o sorriso matreiro dele, embora houvesse durado poucos segundos, não fora fruto de sua mente fértil. Sem saber como, ela conseguiu escapar do escritório e até lembrar-se de voltar a respirar. E então, deu-se conta que não havia resolvido nada.
Capítulo VIII
Matt encontrou Bess no quarto, no momento em que ela punha o chapéu e calçava as luvas para ir à vila. — Com todos os diabos, onde está ela? - indagou. — Com todos os diabos, quem é ela? - Bess perguntou calmamente. Naturalmente, a tia fingia sinceridade. — Não me venha com jogo de palavras. Percebo muito bem quando você planeja algo escuso. Você cometeu um erro e, agora, está com medo de admitir a verdade, não
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é? — Eu já lhe contei que Dick Dixon requereu a aposentadoria? Outro dia, ele me perguntou quais eram seus planos, Matt. — Vá para o inferno Bess e pare de mudar de assunto. Com todos os diabos, onde está minha esposa? — Sabe, você não está ficando mais novo com o passar do tempo. O notário é um homem importante numa... — Bess. - ele murmurou em tom ameaçador. — Calma, rapaz, e sente-se. Não posso raciocinar com você, alto desse jeito, em pé diante de mim. Rapaz. Ela sabia muito bem como irritá-lo e o fazia sem a mínima consideração. — Bess, estou lhe dando a oportunidade de aliviar a consciência. Você avaliou de maneira errada a tal Magruder, não foi? Vamos, admita. Em vez daquele exemplo de virtudes que você descreveu em suas cartas, ela acabou mostrando que é igual a todas as outras. As promessas dela não valeram o papel em que foram escritas. Não reconheceria a verdade mesmo que se agigantasse diante dela e a esmagasse. — A verdade? Bess assumiu uma expressão de absoluta inocência, o que era bem sintomático. Ela estava tentando ganhar tempo. Quando se tratava de táticas diversivas, a tia poderia escrever um livro. Matt já tinha perdido a esperança de conhecer a tal Magruder e resolvido tocar a vida para frente. Havia começado contratando Rose para cuidar de Annie. Quando seguisse o caminho para o norte, pretendia procurar o advogado amigo de Bess e mandá-lo anular o casamento. Que, aliás, tinha sido um erro desde o início. Culpava Bess por ter armado o esquema e a si mesmo por se deixar apanhar por ele. Mas fora Bagby quem legalizara tudo. Para ficar em segurança, Matt pretendia pagar ao homem o que fosse necessário para anular o maldito contrato matrimonial. Primeiro, entretanto, tinha de extrair o máximo de informações da tia. — Diga uma coisa, Bess. Para começar, existia de fato uma Augusta Magruder, ou você armou esse negócio de casamento por procuração a fim de não ter de vir para cá me ajudar a cuidar de Annie? — Ora, tão claro como o dia, estou aqui. Poderia muito bem me encontrar num barco, excursionando pelos canais Albermale e Chesapeake, na companhia de um fotógrafo e de um ornitólogo. Em vez disso me encontro nesta ilha desolada, me esforçando para ser útil. A explicação era tão esfarrapada e falsa que Matt, admirado com tanta ousadia,
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balançou a cabeça. — Esforçando-se para ser útil?! Como? Subornando meus homens para lhe fornecer conhaque? Mantendo-os acordados noite adentro com aquele barulho infernal de sua máquina de escrever? Tentando... — Ora, Matthew, você é o único parente que me restou, filho de meu irmão. Reflita um pouco. Enquanto eu puder ganhar um dinheirinho com meus escritos, não vou depender de você para me sustentar. Mesmo quando estiver bem velhinha. — O diabo que a carregue! Você jamais se preocupou com a velhice. Aposto como não tem um centavo guardado. Matt sabia que a tia não se ofenderia, pois ela praguejava à vontade quando isso interessava a seus propósitos. Mas no momento, convinha-lhe mais fazer o papel de mártir que sacrificava o conforto pelo bem dos menos afortunados. — Você não me convence, Bess. Não sei por que está aqui, mas, diabo, não é em meu benefício. Você convenceu seu editor a deixá-la escrever outra série de histórias sobre pumas que comem cervos e jibóias que estrangulam cabritinhos aqui nestas ilhas? A que você escreveu no verão passado foi a maior montoeira de asneiras que já li na vida. — Foi você quem me contou que existem javalis nas ilhas. — E você não sabe a diferença entre um deles e um puma? — Um pode ser tão perigoso quanto o outro. Já vi a presa de um javali e fiquei impressionada. Quase tão grande quanto o marfim de um elefante adulto. — Além do mais, os dois têm quatro pernas, não é? E quanto a jibóia? A ilustração mostrava uma cobra gigante, enrolada na cintura de uma mulher seminua, puxando-a para um pântano. Foi essa a cena que você descreveu ao artista? — Bem, como os artistas, em geral, são muito criativos, às vezes, tomam certas liberdades. Chama-se a isso licença artística. Eu mesma, ocasionalmente, recorro a ela. - Matt revirou os olhos. — Sabe, eu já vi cobras venenosas, prontas para dar o bote, aqui em Powers Point. Falando nisso, Rose... Matt a interrompeu erguendo a mão num gesto impaciente. — Esqueça as cobras. E Rose também. Quero saber se você, algum dia viu minha mulher. Ela realmente existe ou faz parte daquela categoria imaginária de seus animais selvagens? — Ora, ora, é claro que você, de acordo com a lei, tem uma esposa. Eu mesma a vi assinar o documento. — Ou você o assinou por ela. - Matt resmungou. — Quanto lhe pagou? — Como assim?
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— Eu lhe mandei um cheque para cobrir as despesas da viagem dela e também para saldar qualquer dívida que a mulher tivesse. Você escreveu contando que ela era viúva e enfrentava dificuldades financeiras. Por isso, tivera de lhe emprestar dinheiro para viver. — Isso é exatamente o que ela é, quer dizer, era e eu estou certa... Bess viu o sobrinho flexionar os ombros largos e observou uma veia latejar em um dos lados da testa dele. Sempre admirara o controle em um homem. Indicação certa de força e, certamente, Matt a possuía. Não apenas física como também de vontade. Um adversário perigoso, mas digno. — Vamos lá, Bess, confesse. A mulher rompeu com você e fugiu. Nesse caso, qualquer contrato entre nós perdeu a validade. — Por favor, não tire conclusões precipitadas. Vamos escrever a Horace perguntando sobre... — Esse é outro ponto. O tal advogado seu amigo também sumiu da face da terra. Será que o casal fugiu junto? Minha mulher e seu amigo advogado? Bess puxou um fio solto de uma das luvas para dirigir. Contar uma boa história sempre envolvia algum risco. O melhor era aproximar-se o máximo possível da verdade, mas deixar acessíveis outras opções. Ela havia se sentido segura que o casamento de Matt e Rose daria certo. Com uma mulher morando na casa, dirigindo-a, a vida ali se tornaria bem mais confortável. Isso a interessava, pois então, até seria capaz de visitar a ilha com mais freqüência. Os dois velhos marinheiros esforçavam-se bastante, mas ultimamente, deixavam muito a desejar. — Se bem me lembro, Horace mencionou uma viagem que pretendia fazer. - ela respondeu. O covarde tinha dado a entender que não ficaria na cidade, esperando que a situação explodisse. Afinal, a ideia não fora sua. Ele apenas ajudara na parte legal. — Calculo que Bagby também esteja metido na questão. Apenas diga por que, Bess. Por umas poucas centenas de dólares? Francamente, não acho que esse esforço todo tenha valido a pena. viúva.
Matt tinha enviado o cheque depois de Bess lhe escrever sobre a situação da
— Você planejou tudo a fim de escrever uma história e alegar ser verdadeira? Talvez você tenha tirado a ideia daquele poema tolo. — Você se refere àqueles versos para crianças, sobre Peter, que dizia "Não podia mantê-la, não podia achá-la”? Não, mas é um bom exemplo. Quanto a você, Matt...
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— Com todos os diabos, Bess! Como eu poderia ficar com a danada da mulher sem achá-la primeiro? Diga o que aconteceu? Ela assinou o documento e depois fugiu com o dinheiro? Foi isso? Então por que não admitir? Nós todos comentemos erros de julgamento. Eu mesmo fiz alguns, você sabe. Se ela a tapeou, vamos esquecer a experiência e tocar a vida para frente. — Por falar nisso, Matthew, acabo de ter uma ideia excelente. — Não, muito obrigado. Já acatei muitas ideias suas e daquele advogado. Ah, e um conselho. Comece a procurar uma nova secretária. Dessa vez, veja se arranja uma que saiba usar sua maldita máquina de escrever. — Mas Rose... — Esqueça Rose. Ela vai trabalhar para mim. — Matt, Rose é... — Não adianta discutir, ela já concordou. Bess abriu a boca para falar e fechou-a. Velejava contra o vento, arriscando-se. Bastaria uma palavra errada para se trair. Por que havia se metido naquela confusão desgraçada? Tinha um rendimento adequado, embora pudesse usar mais. Ela deveria ter dividido o dinheiro com Rose, lavado as mãos da questão e contado a verdade a Matt, a noiva tinha pensado melhor e voltado atrás. Provavelmente, ele não reclamaria do dinheiro perdido. O rapaz podia ser durão, mas, de forma alguma era unha-de-fome. Sabia que o sobrinho havia dado o equivalente ao pagamento de um ano inteiro, do próprio bolso, para a viúva de um marinheiro assassinado numa briga de bar. Havia dito à mulher que eram os salários atrasados do marido quando, na verdade, o sujeito tinha bebido e jogado cada centavo ganho. — Bem, quanto a isso... - ela começou sem ter a mínima ideia do que ia dizer. Uma das vantagens de ser escritora era poder inventar qualquer história que servisse a seus propósitos. — A Sra. Magruder, como já mencionei, se não me engano, tinha uma parenta, uma tia idosa, eu acho, e, no mesmo dia do casamento, recebeu uma carta... — Pare Bess. Já sei tudo. Você tentou e falhou. Isso põe um ponto final na questão. — Eu apenas ia dizer... O quê? Bess daria tudo para estar de volta em casa, tomando conhaque e conversando com Horace. Em vez disso, ia ter de dar um jeito de sair ilesa daquela confusão sem o auxílio dele. Deveria ter ido embora dali semanas atrás, mas havia ficado para ver se seu esquema daria certo.
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E se contasse abertamente, ao sobrinho, que a noiva se acovardara, mas a tinha acompanhado até ali a fim de conhecê-lo bem antes de se comprometer mais? Matt lhe torceria o pescoço, sem dúvida alguma. Nenhum homem, com um pingo de orgulho, se sujeitaria a ser examinado como um touro valioso. Raciocine, Bessy, raciocine. Quantas vezes você não empurrou um esquife rio acima e ele acabou encalhado, deixando-a na mão? Você pode virar as costas ou arrastar seu barco pela lama até alcançar água novamente. Com os braços cruzados no peito, obviamente Matt esperava que ela dissesse algo. Sem escolha, ela abriu a boca, embora não soubesse o que falar. — Eu já ia dizer que minha amiga Rose... — Amiga?! Você não a apresentou como secretária? - indagou ele, descruzando os braços. — E dama de companhia. Uma espécie de camareira, pode-se dizer. Faz um pouco disso e um tanto daquilo. Estava se saindo bem. O que mais agora? — Não importa como você a classifica. Quero que me conte tudo a seu respeito, pois a contratei para cuidar de Annie quando eu for embora. Cuidado com os bancos de areia à frente. Quanto Rose tinha contado a ele? Se Bess falasse demais e as histórias de ambas divergissem, a credibilidade de Rose ficaria abalada. Isso, entretanto, seria melhor do que arriscar a própria. Mas, se pudesse evitar, gostaria de não prejudicar a moça. Para tanto, tinha de se esforçar para falar o mínimo possível. Ela baixou o olhar e tirou outro fiapo da luva. — Bem, agora, quanto a isso... Matt a fitou com os olhos semicerrados e tornou a cruzar os braços no peito. — Sabe de uma coisa, Bess? Cada vez que você começa uma sentença com "Bem, agora", tenho certeza de que vou ouvir um amontoado de besteiras. — Hábitos arraigados, meu rapaz. Nós todos temos alguns, até você. Quando semicerra os olhos e cruza os braços no peito, sei que não vai acreditar numa única palavra minha. — Isso é porque você mente demais. — Minto coisa nenhuma. Apenas, tento apresentar os fatos da maneira mais interessante possível. É um exercício de criatividade. Aliás, ganho para fazer isso. — Ora, dane-se. Não quero me divertir e sim ser informado. No momento, preciso me inteirar de tudo que você sabe sobre Rose Littlefíeld. Você disse que ela é
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viúva. Trata-se da verdade ou de outro fruto de sua criatividade? — Matthew, posso jurar sobre o túmulo de meu pai... — Nós dois sabemos que o corpo de meu avô foi jogado ao mar. Eu estava a bordo, lembra-se? Sem pestanejar, ela corrigiu-se: — Juro sobre o oceano Atlântico que Rose era casada com um homem que morreu afogado um pouco antes de ela ir morar com a avó. Ela era uma grande amiga minha e foi, em sua casa, que conheci Rose. Quando a avó faleceu, a pobre moça ficou sem ter onde morar e sem recursos para se sustentar, além de não ter ofício algum que lhe garantisse um emprego. Foi por isso que eu a empreguei. Bessy, minha menina, você está patinando em gelo fino. Se conseguir arquitetar uma maneira para escapar deste aperto, estará pronta para escrever seu primeiro romance. — Por que isso parece tão familiar? Você voltou a escrever aquelas histórias açucaradas para mocinhas? — Do que está falando? - Bess indagou, distraída. A mente fervilhava com uma nova ideia. Ora, por que não? Se Matt estava determinado a contratar a própria esposa, por que não encorajar um interesse romântico entre os dois, antes que ele descobrisse a verdade? Quando isso acontecesse, ela, Bess, já teria ido embora há um bom tempo. Apenas um novo Noé e quarenta dias de chuva conseguiriam forçar Rose a pôr os pés novamente num barco. Até então, qualquer homem que valesse o pão que comia, já teria lhe proporcionado uma boa diversão na cama. Depois disso, os dois poderiam se ajeitar e esquecer as divergências que, talvez, houvessem tido. Bess descalçou as luvas e procurou um par melhor na gaveta da cômoda. — Bem, isso é tudo? Eu já devia estar a caminho da vila. Eu o avisei que Dick Dixon me convidou para almoçar? O filho dele vem passar as férias aqui e eu pretendo conversar com ele a respeito de Rose. — O que Rose tem a ver com o filho de Dixon? Matt.
Com a criatividade funcionando a todo vapor, Bess dirigiu um olhar surpreso a
— Ora, Rose pode ser viúva, mas ainda é jovem. Ouvi dizer que o rapaz planeja entrar para a política e uma boa esposa será o complemento ideal. Aliás, necessário. E Rose, sem dúvida, ficaria feliz se tivesse um marido. Nada como jogar migalhas aos pombos e, depois, soltar um gato entre eles. Era interessante vê-los voar e voltar ao chão em seguida. Sim, realmente escrever um romance seria o ideal. Colunas de jornal lhe davam
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satisfação, mas por que se limitar a elas quando poderia vir a ser um nova Brönté? Como Bess estivesse usando a carroça, tão logo avistou o barco do Correio apontar no canal, Matt mandou Luther à vila numa égua. Cedo ou tarde aquele salafrário teria de confessar o que havia feito. Caso contrário, corria o risco de ir parar num tribunal. Matt havia lhe escrito semanalmente, indagando o paradeiro da mulher. Bagby tinha respondido apenas a primeira carta, mas sem dar a informação pedida. Uma hora e meia depois, Luther chegou afobado, largou as rédeas, pulou da égua e, aos gritos, correu para dentro de casa. — Chegou uma carta do Swan. - avisou em alto e bom som. Na verdade, era do agente que Matt encarregara de comprar a escuna de volta. Não querendo alimentar falsas esperanças, ele abriu o envelope devagar e leu a carta. — Nós vamos para Boston? - Luther perguntou, olhando por sobre o ombro de Matt a fim de a ler também. Como se uma âncora, de duas toneladas, tivesse sido levantada do peito dele, Matt fez um sinal afirmativo com a cabeça. Chegou ao extremo de sorrir. — Sim, senhor, nós vamos a Boston. Vá cuidar da égua enquanto conto a novidade para os outros. — Eu também? - Luther insistiu sem disfarçar a ansiedade. Naturalmente, ele não tinha esquecido as palavras furiosas de Matt quando tentara cavalgar Jericho. — Claro, você também, filho. Alguém vai ter de me ajudar a contratar a nova tripulação. Acho que você é a única pessoa com quem posso contar para isso. A única que lhe sobrara. As palavras não foram pronunciadas, mas os dois homens, com expressão triste, olharam para a sepultura além do cercado de Jericho. Na cozinha, Matt deu a notícia a Crank e Peg e fez questão de ler, em voz alta, o parágrafo mais importante: "As negociações estão na fase final è, por isso, sua presença é
necessária aqui, o mais cedo possível, a fim de assinar os documentos." — Conseguiu Capitão! - Peg exclamou. Depois de praguejar em sinal de admiração, Crank acrescentou: — Não se preocupe com nada aqui, pois vamos dar conta de tudo. Peg pode cuidar dos animais e eu, de Annie. O peixe salgado que temos vai durar até... Matt o interrompeu, pois já tinha planejado tudo. — Vou mandar Luther contratar um rapaz na vila para lidar com os cavalos. Ele pode vir todos os dias e trazer os mantimentos que vocês encomendarem. Peg, você
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fará os outros serviços lá de fora. Bess e Rose se encarregarão de Annie. Rose. Ele precisava garantir um acordo severo com ela porque não confiava na tia. Seria melhor que Bess fosse embora e não esperasse o retorno dele. Só Deus sabia quando seria. Levaria no mínimo um mês, talvez mais, para inspecionar o Black Swan, assinar a papelada, contratar a nova tripulação, arranjar carga e se entender com os funcionários do porto. Se houvesse dado mais atenção àqueles relatórios, agora ele estaria bem informado sobre os melhores locais para se fazer negócios em consignação. Com a mente fervendo com um sem-fim de detalhes, Matt foi procurar Rose. Encontrou-a no quintal. Com Annie sob um toldo improvisado, ela ajoelhava-se perto de uma fileira de plantas murchas. Cuidadosamente, molhava cada uma. Levantou o olhar ao ouvi-lo chegar. — São mudas de couve. Acho que deveriam ficar eretas, não concorda? Tanto quanto ele sabia, elas deveriam estar numa panela com gordura e um bom pedaço de carne seca. — Esqueça as couves. Tenho de ir a Boston e, antes de partir, quero que me dê sua palavra de honra que ficará aqui até eu voltar. Num segundo, Rose esqueceu-se das couves. — Boston? — Vou ficar fora umas quatro semanas, provavelmente, mais. Crank e Peg não podem tomar conta de Annie, não concorda? E Bess inspira tanta confiança quanto uma... - mordeu a língua para não terminar a comparação inconveniente. — Bem, eu preciso de uma pessoa em quem possa confiar. Você fará isso por mim, Rose? Ela levantou-se, limpou as mãos e fitou-o com expressão desanimada. — Matt, precisamos muitíssimo esclarecer uma questão antes de eu concordar com qualquer coisa. — Isso não pode esperar? Tenho o trabalho de três dias para fazer em poucas horas. Um navio de carga deve passar pelo braço de mar na maré alta até Elizabeth City, nós poderemos seguir de trem para Boston. — Nós? — Luther vai comigo. Rose percebeu um lampejo de satisfação no olhar dele. — Sei. E você quer que eu fique aqui para cuidar de Annie. Mesmo se Bess for embora? — Claro. E também caso minha esposa apareça. Ela vai precisar de ajuda para se
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adaptar aqui. Nós fizemos um acordo, você sabe. Evidentemente, ele estava ansioso para ir cuidar dos negócios. Rose tinha visto crianças, na noite de Natal, com expressão menos animada do que a dele. — Eu ficarei, claro. Mas, Matt... Podia-se ver facilmente que a mente dele estava a quilômetros de distância. Em pé ali, com as pernas abertas, as mãos nos quadris, a cabeça inclinada para trás e os olhos semicerrados contra a claridade do sol, ele era um homem magnífico sob qualquer critério. Com facilidade, ela podia imaginá-lo, no posto de Capitão de um navio, com aquele mesmo brilho de excitação nos olhos. Baixinho, murmurou: — Não tem importância. A questão já esperou até agora. Umas poucas semanas a mais não mudarão coisa alguma. Pois que fosse e readquirisse o tal navio. Então, ele voltaria para a vida no mar e esqueceria Annie, Powers Point e a esposa que deixava para trás. Que diferença isso faria? Ela havia feito uma escolha e teria de aceitar as consequências. Rose o observou dirigir-se ao estábulo, as pernas longas e musculosas dando passadas largas na areia quente. Baixou os olhos para as pobres mudas que havia plantado com tanta esperança. Imaginava por que tinha se dado ao trabalho. Provar seu valor a Matt? Agradá-lo? Uma coisa, unicamente uma, tinha importância para Matthew Powers: o seu navio. Os três homens ali, com o mesmo tom de adoração, não se cansavam de elogiar o sujeito. Luther o reverenciava como a um deus. Crank repetia, sem cessar, como o Capitão havia equipado a cozinha da escuna com o que existia de melhor. Peg se vangloriava da maneira como havia sido tratado depois do acidente. Segundo ele, Matt havia arranjado os melhores cirurgiões, que o dinheiro pudesse pagar, para remendá-lo. Depois, o Capitão tinha contratado outro carpinteiro de bordo para trabalhar sob a supervisão dele até que pudesse reassumir o cargo. — Um verdadeiro santo. - ela resmungou. — Marinheiro arrogante e insuportável. Que se danasse. - acrescentou ao enterrar a pazinha na areia. Afinal, por que tanta irritação?, indagou-se. Não tinha o que queria? Uma casa e um bebê para cuidar sem se prender com as amarras perigosas do casamento? Possuía, agora, exatamente tudo que Bess havia prometido. Então, por que ela se sentia como se o sol houvesse acabado de se esconder atrás de uma nuvem escura?
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Capítulo IX
Matt conseguiu arranjar tempo para exercitar Jericho antes de partir. Como se o garanhão fosse membro de sua tripulação, sentia-se responsável pelo bem-estar dele. Tinha sido um erro comprá-lo, admitira após a transação, mas o dono do animal estava decidido a entregá-lo a uma fábrica de cola. — Este cavalo quase matou um sujeito que trabalhava para mim. Pelos olhos dele, pode-se ver que não é normal. - dissera o homem. Como houvesse sido criado no mar, Matt não entendia muito de cavalos. Mas tinha lido todos os livros sobre o oeste que haviam lhe caído nas mãos. Quando estava em terra e ouvia falar num espetáculo do "Oeste Bravio", ele dava um jeito de ir assistir pelo menos uma vez. Mais, se conseguisse. Na adolescência, havia sonhado em vir a ser um vaqueiro. Quantos rapazinhos, imaginou enquanto pulava as ondas com o garanhão, tinham crescido numa fazenda e sonhado com a vida no mar? — Nós temos o melhor dos dois mundos, não é verdade, companheiro? Devagar, agora, cuidado ao pular. - recomendou em voz suave. Ele havia mandado Luther de volta à vila a fim de arranjar alguém para cuidar dos animais. A maioria dos rapazes já tinha amestrado pelo menos um cavalo da manada selvagem que vagava pelas ilhas. Por esporte e por necessidade. Jericho não seria um desafio para alguém com esse tipo de experiência. Logo após voltar para morar em Powers Point Matt tinha velejado pela ilha Currituck, até o continente, rebocando uma chata, com a intenção de comprar uma vaca e duas éguas. Tinha voltado com seis éguas e Jericho. Quase como se estivesse dormindo, o baio endemoninhado havia embarcado atrás das éguas, dócil como um gatinho mimado. Só quando cruzavam mar aberto, ele parecera despertar. Com um único olhar em volta, tinha começado a empinar e, antes que alguém pudesse prendê-lo com uma corda, havia escoiceado quase tudo, inclusive Matt. — Você era uma verdadeira fera e não confiava em nada com duas pernas, lembra-se? Matt continuou a falar com o cavalo enquanto o forçava a nadar contra a maré que começava a subir. Depois, levou-o de volta à praia. — Ah, eu sei como você se sente...
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Ele tinha adquirido o hábito de expressar os pensamentos em voz alta quando montava Jericho. De vez em quando, isso ajudava a aliviar as frustrações ou até lhe oferecia novas perspectivas. Uma vez na praia, com a brisa leve soprando-lhe no corpo molhado, Matt fez o garanhão caminhar para o outro lado das dunas. Depois de alguns minutos, disse: — Vou ter de confiar na mulher, Jericho. Não tive escolha. Mas, engraçado, não está sendo tão difícil como eu esperava. Ou aprendi uma lição ou não aprendi absolutamente nada. O tempo dirá qual dos dois. Chegando em casa, ele dirigiu-se para a frente do estábulo onde havia um reservatório de água da chuva com a qual começou a lavar o sal do corpo dos dois. Com uma defasagem entre a maré alta no oceano e a no braço de mar, Matt teria tempo para arrumar uma mochila, dar instruções sobre Jericho ao rapaz trazido por Luther e determinar a lista de deveres para Crank e Peg antes de ir para a vila. Não via propósito algum em deixar ordens com Bess. Se entendia os sinais corretamente, ela começaria a arrumar a bagagem antes de ele sumir na estrada. O grande mistério era ela ter ficado ali tanto tempo. Sobrava Rose. Engraçado como ele passara a confiar nela sem motivo algum, exceto seu jeito de fitá-lo diretamente nos olhos. Ou a maneira com que ela havia se encarregado das tarefas, que Billy e Luther costumavam compartilhar, sem reclamar e, muito menos, sem qualquer compensação. Imaginava, agora, se ela não tinha se valido da oportunidade para conseguir uma situação estável e segura. Não seria a primeira vez que uma viúva esperta agisse para apanhar outro marido. O problema era o fato de ele já ter uma mulher, o que não constituía segredo. A bem da verdade, não se tratava de uma esposa presente, mas servia para impedir que outra mulher alimentasse a ideia de se apossar do território. Pouco importavam suas intenções iniciais. Ele ficaria satisfeito se Rose continuasse a cuidar bem de Annie. Por essa razão, ele a tinha contratado Se permanecesse muito tempo ao sol e ficasse com o rosto vermelho e molhada de transpiração, a ponta de o vestido grudar-lhe no peito, não seria problema dele. Aliás, nem estaria ali para ver. Se ela risse alto das histórias de Peg, ou cantasse para ninar Annie, ele também não poderia ouvi-la Que diferença faria se ela continuasse a morder o lábio inferior, sinal de constrangimento, durante sua ausência? Esse tipo de pensamento poderia provocar problemas a um homem antes que se desse conta. Ele ia voltar a ter seu navio. Dentro de duas horas, estaria a caminho do norte. Tão logo tivesse um tombadilho sob os pés, mulher alguma, na face da terra, conseguiria forçá-lo a se desviar da rota certa. Pingando água, Matt entrou em casa. Mentalmente, verificava o que ainda precisava fazer antes de partir. Trocar de roupa, falar com os homens, informar
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Crank sobre o dinheiro para as despesas de três meses, pelo menos, arrumar a mochila sem esquecer-se de pôr os apetrechos de uso pessoal, recomendar ao rapaz, quando Luther chegasse com ele, para tratar Jericho com cautela e pedir-lhe que pegasse as montarias dos dois no cais e as trouxesse para Powers Point. Ao entrar no quarto, Crank acabava de arrumar a mochila. — Lembrei-me de que vai precisar de suas melhores roupas pretas, Capitão, pois lá em Boston, vai se misturar com gente fina da cidade. Escolhi suas camisas mais bonitas, duas gravatas e engraxei par de botas novo. Vá com ele e deixe o velho aqui. Os dois olharam para as botas enormes, manchadas de água salgada, que Matt tivera a intenção de descalçar no terraço. — Muito obrigado, Crank. Se não fosse você, eu esqueceria da metade. Isso não era verdade e os dois sabiam. Mas quando tinham se estabelecido em terra, o velho cozinheiro havia assumido os deveres de camareiro. — Deixei dinheiro para as despesas no cofre do escritório. Se você precisar de mais, poderá telegrafar para meu agente. O nome e o endereço dele estão na gaveta de cima da escrivaninha. Calculo ficar em Boston por algumas semanas. Talvez leve uns dois meses para arranjar tudo e, então velejar para o sul. Depois de trocar de roupa, Matt foi até a cozinha onde Peg acabava de entrar com uma braçada de lenha. Colocou-a na cesta ao lado do fogão enquanto avisava: — Vai ser uma travessia úmida. Parece que vai chover por um bom tempo. — Arme uns varais no sótão se for preciso. — Já fiz isso. — Rose está por aí? — Entrou enquanto você lidava com Jericho. Deve estar cuidando de Annie, imagino. — Diga-lhe que eu... - calou-se e passou os dedos pelos cabelos. — Esqueça. Eu mesmo falarei com ela. O olhar trocado pelos dois velhos não passou despercebido a Matt. Antes de questioná-los sobre o que pensavam, Luther o chamou pela janela aberta e ele aproveitou a oportunidade para escapar. Os dois ainda estavam montados. Luther, em sua égua preferida, e o outro rapaz, num belo cavalo montanhês. — Lembra-se de John, Capitão? - Luther indagou, apontando para o sujeito magro que Matt conhecia de vista. — Ele é capaz de lidar com Jericho. Vai cuidar dos animais e também jogar a rede quando Crank precisar de peixe.
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Os dois se cumprimentaram enquanto se avaliavam. Matt tomou uma decisão baseada num misto de instinto e de experiência. Por sua expressão, John fez o mesmo. Resolvidos, fitaram-se, selando o acordo. Sem dúvida, pareciam satisfeitos. — Muito obrigado. - disse Matt. — Vi seu cavalo no continente. Fico contente por ele estar em boas mãos. Eu o teria comprado, mas o senhor fez isso antes de mim. — Se tiver de se aproximar por trás, não chegue muito perto antes de falar para avisá-lo que está ali. O olho direito dele não é muito bom. Matt deixou o rapaz com Luther, a fim de conhecer a propriedade, e voltou para dentro de casa. Parou à porta do quarto de Bess, ouviu o barulho da máquina de escrever e seguiu pelo corredor. Primeiro, ia se despedir de Annie e, depois, falar com Rose. Talvez ela tivesse uma pergunta de última hora para lhe fazer. Encontrou-a no quarto da menina. Parado à porta, observou as duas brincando num acolchoado no chão. Pareciam se divertir bastante, pois riam, alegres. Ele nunca tinha ouvido o riso de um bebê antes do de Annie. O som o fazia se sentir como se tivesse dado um nó muito apertado na gravata. — Rose? Ela rolou de lado, obviamente surpresa, a saia fora de lugar, o rosto corado. — Ah, eu não o ouvi chegar. Ainda segurando o pezinho de Annie, ela sentou-se e passou a mão pelos cabelos despenteados. Com os últimos raios de sol no poente, entrando pela janela e batendo em seus ombros, Rose o lembrava de um vitral que tinha visto numa igreja em Biloxi. Constrangida, ela endireitou a saia sobre as pernas. — Estamos brincando no chão, caso queira saber, porque Annie está ficando muito esperta e rápida. Costumávamos brincar em minha cama, mas fiquei com medo que ela rolasse para o chão. Achei que aqui seria mais seguro. - explicou com um gesto para o acolchoado amassado. Matt fez um movimento brusco com a cabeça. — Vim avisar que estou indo embora. Mesmo aos ouvidos dele, as palavras soaram abruptas. — Tão cedo? Não podia ser desapontamento o que ele via em seu rosto. Ou seria? — A maré estará alta no braço de mar dentro de uma hora. Antes de ir, eu apenas queria dizer... - enquanto o ouvia, Rose inclinou a cabeça para o lado, num gesto característico seu, fazendo-o esquecer o que ia dizer. — Bem, vim para me despedir.
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A segunda tentativa não foi melhor do que a primeira. Ele tinha falado como se estivesse zangado. Esse não era seu sentimento. Ameaçado seria uma definição mais próxima. Tentado, mais ainda. Vendo-a dessa forma, corada e à vontade no chão, lembrou-se da criatura circunspecta e cerimoniosa que chegara ali. Aquela podia ser comparada a um quadro a óleo de um navio e esta, a um verdadeiro, em alto-mar, pulsando de vida do casco ao topo do mastro, da proa à popa. Ele limpou a garganta e fez nova tentativa. — Minha intenção foi dizer, isto é, diabos, adeus! - praticamente gritou. Maldizendo a inépcia para se expressar, virou as costas e afastou-se depressa. Chegou a percorrer a metade do corredor antes de o sentimento de culpa o dominar. Rodopiou e retrocedeu os passos dados. Rose estava em pé à porta do quarto, com expressão intrigada, mas que mudou para desconfiada quando ele se aproximou. Matt temeu que ela fugisse correndo sem lhe dar a oportunidade de se desculpar por haver gritado. Mais três passos o deixaram perto o suficiente para notar o brilho esverdeado de seus olhos dourados. — Rose, sinto muito. - murmurou, mas ainda de maneira abrupta. — Não foi minha intenção falar... Apenas desejava... Eu precisava... Ora, que tudo se danasse. Como uma lamparina cujo óleo acabava, a mente dele bruxuleou. Abraçou-se com força a Rose, enterrou o rosto em seus cabelos e aspirou-lhe o perfume delicioso de lilás. Apanhada de surpresa, Rose ficou tensa. Mas algo estranho aconteceu em seguida. Em vez de afastar-se, sentiu-se amolecer entre os braços de Matt como quando ele a tirara da égua, depois de Angel a ter largado a quilômetros de distância de casa. Então, havia se sentido furiosa e embaraçada com a própria reação. Sob o efeito do odor dele, da sensação de estar prensada ao corpo quente e firme no retorno demorado para casa, o movimento da égua fazendo com que os dois se mexessem juntos, ela não estava em condições de refletir e de, muito menos, agir adequadamente. E finalmente, quando haviam chegado, Matt a tinha posto no chão bem devagar, escorregando seu corpo de encontro ao dele. Por um momento alucinante, ele a segurara entre os braços como fazia neste momento. Agora, como então, seu coração disparava loucamente. Com o topo da cabeça roçando-lhe o queixo, ela respirou fundo, aspirando o odor excitante que lhe falava em virilidade. Uma carência premente e forte manifestou-se em seu âmago. Sabia o que era, pois lembrava-se dos primeiros dias da vida de casada, quando Roberto ainda a
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tratava com carinho. Porém, naquele momento, era muito mais poderosa do que qualquer coisa já experimentada. No chão do outro lado do quarto, Annie balbuciava, sonolenta, e chupava os dedinhos. De fora, chegava o grasnar das gaivotas e o barulho tranqüilizante das ondas quebrando na praia. Um cavalo relinchou e um homem riu. Aconchegada entre os braços de Matt, Rose pensou que, se pudesse guardar aquele momento no coração, nunca mais desejaria outra coisa. O resto de suas dúvidas dissipou-se. Pela primeira vez na vida, tinha feito a escolha certa. Levantou o rosto para contar a ele, mas não chegou a fazê-lo. Sentiu aquilo outra vez. A fivela do cinto? Deus do céu, e agora? — Matt. - sussurrou, arregalando os olhos. — Eu vou beijá-la. Era mais uma ameaça do que uma promessa. — Está bem. Aliviada, fechou os olhos e ofereceu os lábios. — Não tenho esse direito. Se quiser, você pode se recusar, Rose. Tenho uma esposa... Em algum lugar. — Está bem. - ela repetiu e, ainda com os olhos fechados, fez um gesto de compreensão com a cabeça. A confissão podia esperar. O beijo era muito mais importante. Aliás, o mundo inteiro podia esperar, ela pensou um momento depois, ao sentir os lábios firmes de Matt nos seus. Ele virou um pouco a cabeça e a forçou a abrir a boca. Algo quente e íntimo a penetrou. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Suas pernas tremiam. Cada partícula de sensibilidade que possuía concentrava-se no espaço entre sua boca e... Ai... Seu corpo tremia e os seios despertavam. Quando a ponta da língua de Matt começou a mexer-se no mesmo ritmo do latejar entre suas coxas, Rose pensou que morreria. Dividida entre o desejo e o sentimento de culpa, ela não tinha escolha. Precisava contar a ele. Imediatamente. — Matt, nós somos casados. - balbuciou. Suas palavras tiveram o efeito de um balde de água fria na cabeça dele. Com semblante inexpressivo, ele recuou um passo. — Tinha entendido que você era viúva. — Não, quer dizer... Sou viúva, mas você e eu. — Sou casado. Você está certa sobre isso. Mas tenho a intenção de resolver a
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questão tão logo pegue meu navio de volta. Até então, espero apenas que você cuide de Annie. — Naturalmente vou cuidar da menina! - ela exclamou. — Mas... — Peço-lhe milhões de desculpas, Rose. Conversaremos sobre isso na primeira oportunidade. — Não quero suas desculpas e sim... Desejava-o de forma imperiosa e como jamais imaginara desejar homem algum. Porém, ele estava de partida e sem tempo para ouvi-la expor seu caso apropriadamente. Num momento como esse, seria inútil tentar explicar o que havia feito e por quê. Além de inútil, perigoso. As horas e a maré não esperam por ninguém. Provavelmente, Crank atribuiria o ditado à Bíblia. Em tais circunstâncias, ela fez a única escolha admissível. Levantou o rosto, delicadamente aceitou suas desculpas, desejou-lhe boa viagem e êxito nos negócios. — Bem, vou indo então. - ele disse em tom formal. Irritada, Rose pensou que Matt teria tocado a aba do chapéu caso estivesse com ele na cabeça. E ela, caso tivesse um tijolo na mão, o atiraria nele. Viu-o afastar-se pelo corredor como se não a tivesse incendiado e abandonado-a entre as labaredas. Furiosa, prometeu a si mesma que, se um dia ele voltasse, estaria preparada para recebê-lo. Acertariam as contas pendentes antes mesmo de ele passar Pela porta. Então, se Matt preferisse a vida no mar, poderia usufruí-la. Mas teria de levá-la e a Annie com ele. Se Bess conseguira viver num navio, ela também seria capaz. Afinal, era sua esposa, embora ele não soubesse, o que não mudava o fato de estarem legalmente casados. Rose sentiu a confiança inflar. Apanhou Annie do acolchoado no chão e sentou-se na cadeira de balanço a fim de embalá-la. — Ele vai nos amar, Annie. Espere para ver. - declarou com firmeza. Annie estendeu a mãozinha e pegou uns fiapos de cabelo que tinham escapado da trança. Puxou-os com força inesperada e, em sua linguagem de bebê, fez um comentário sonolento. — Não pense que vai ser fácil e você terá de me ajudar. Se ele a quiser, vai ter de ficar comigo também. Seu caso é simples, queridinha, qualquer pessoa haveria de te amar, mas o meu vai ser complicado. Teremos de trabalhar bastante para eu melhorar se quisermos que Matt me dê uma chance. Ele imagina que pode velejar para longe e nos deixar aqui. Está muito enganado e nós vamos provar isso a ele, não vamos? Rose apoiou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos. Refletiu sobre o que deveria fazer a fim de demonstrar seu valor. O estômago contraiu-se enquanto a determinação se firmava. Havia tomado uma decisão. Restava-lhe agir.
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Na manhã seguinte, Rose levou Annie ao terraço para ver o novo empregado lidar com os cavalos. Com movimentos tranquilos e fala mansa, em pouco tempo o rapaz conseguiu que o garanhão de Matt o seguisse pelo cercado, farejando-lhe o bolso da camisa em busca de guloseimas. — Está vendo, queridinha? Nada é impossível. Veja aquele animal endemoninhado foi domado tão depressa por um estranho, nós duas conseguiremos, com toda certeza, domar nosso Capitão. À tarde, de volta ao terraço, ela viu um pequeno esquife se aproximar do cais de Powers Point, mas não reconheceu o cavalheiro na ponta do leme. Curiosa, o viu baixar as velas e, logo depois, dirigir-se a casa. Corpulento, com um terno cinzento amarrotado e um chapéu de palha, ele transpirava profusamente. Com Annie nos braços, Rose recebeu-o à porta. — Lamento, mas o Capitão não está. Ele tirou o chapéu e perguntou: — É a Sra. Littlefield? Bess me contou tudo a seu respeito. — Não diga! — Deus do céu, espero que não. — Sim, sou. O senhor gostaria de entrar? Se não me engano, Bess está em seu escritório. — Bem, descansar um pouco na sombra, antes de voltar, vai me fazer bem. Está muito quente, não acha? Rose concordou e ficou à espera que o cavalheiro se identificasse. Felizmente, Bess apareceu naquele momento, pois tinha ouvido voz de homem e queria saber de quem se tratava. — Calculei que fosse você, Dick. Que prazer receber sua visita. Vamos entrar? Vou pedir a Crank para nos servir algo bem frio para beber. — Pelo que entendi, o rapaz partiu ontem pelo cargueiro. O rapaz?! Se ele estava se referindo a Matt, enganava-se redondamente, Rose pensou. Homem-feito, isso sim, ela poderia afirmar por experiência própria. — Chegou uma carta ontem e Matt resolveu partir imediatamente. Sei que você queria conversar com ele sobre aquele assunto que discutimos. Mas no minuto em que ele ficou sabendo que o Swan era praticamente seu outra vez, ficou agitadíssimo. — Azar meu. - o notário comentou. — Ele tem sido de grande valia para mim, graças a seus contatos no norte e no sul da costa, eu lhe garanto. Sinto muito que os planos não tenham dado certo. Ele seria excelente. Só então, virou-se para Rose com a mão estendida. — Sra. Littlefield, sou Dick Dixon, o notário da ilha e o único representante da
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lei por aqui. Graças a isso, sei de tudo que se passa na ilha. Muito interessante. Nem queira saber as histórias que eu poderia lhe contar. - a mão dele era bem mais macia do que a de Rose, mas o aperto mostrou-se firme. — Se não me engano, minha mulher lhe deu umas mudas de nossa horta um dia desses. Das quais nenhuma vingara, Rose pensou, mas sorriu e disse: — Agradeça a ela por mim novamente, Sr. Dixon. Rose imaginava em que Matt o tinha ajudado e o que não havia dado certo. Iria ser difícil descobrir, pois não continuaria a ouvir a conversa dos dois. Annie começava a ficar inquieta e a choramingar. Pediu licença a fim de se retirar, mas Bess fez-lhe um gesto para não ir. — Fique, menina, talvez você descubra alguma coisa. Como na sala estivesse mais fresco por causa da brisa que entrava pelas janelas abertas nas paredes opostas, Rose acomodou-se numa poltrona e acomodou Annie nos joelhos. Crank trouxe uma jarra de água bem fria que mantinha num saco de lona, molhado, no terraço de trás. Depois de esvaziar um copo, Dick Dixon, reencenou a conversa: — Como eu ia dizendo, pensei em Powers tão logo soube que meu filho não seguiria meus passos. Uma pena não ter descoberto antes. — Matt como notário? Duvido que ele tivesse aceitado. Meu sobrinho tem água salgada nas veias em lugar de sangue. Acho incrível que ele esteja em terra há tanto tempo. - comentou Bess. — Mesmo assim, caso ele mude de ideia, me avise, por favor. Ele também poderia fazer outra coisa mais a seu gosto. Um ano e pouco atrás, eu o procurei e propus que se tornasse timoneiro de um dos barcos que navegam entre as ilhas. Estão sempre precisando de alguém com a experiência dele. As águas nos canais são muito traiçoeiras, pois os bancos de areia mudam constantemente de lugar. Na sala fresca e sombreada, Rose, sem interesse na conversa dos outros dois, permitiu que os pensamentos vagassem. Annie, com o polegar entre as gengivas inchadas, encostou-se em seu peito, produzindo uma quantidade de calor surpreendente para um corpo tão pequeno. Em poucos minutos, estava dormindo. Mais alguns e cansada por causa de outra noite de insônia, Rose também adormeceu. — Não ressone outra vez diante de visitas, Rose. É uma grande indelicadeza. — O que... Fechou a boca e sentou-se ereta, admirada ao ver que já escurecia e a visita não estava mais ali.
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— Eu... Ele... — Você dormiu e Dick já foi embora. Como você sabe, o filho dele vai chegar dentro de poucos dias. Dick prometeu trazê-lo aqui para jantar. Por causa da ausência de Matt e Luther, achei que você apreciaria a companhia de alguém de sua idade. Meio desajeitada, Bess pegou a criança adormecida do colo de Rose para que ela se levantasse com mais facilidade. Devolveu-a logo. — Se eu fosse casada com um homem do mar, não me descuidaria dele. Existem muitas mulheres de vida fácil por esse mundo afora. Já vi, com meus próprios olhos, como invadem um navio, bem pintadas, perfumadas e vestidas de maneira escandalosa. Isso acontece em todos os portos e o pobre homem, depois de um bom tempo no mar, não resiste à tentação. Eu me instalaria no camarote dele e expulsaria qualquer mulher que se atrevesse a subir a bordo. Se não fizesse isso, ele esqueceria que tinha mulher. A memória de um homem não é mais comprida do que o membro dele. Rose apertou os lábios, embora não se surpreendesse mais com o linguajar grosseiro de Bess. Não ignorava que ela queria apenas escandalizar quem a ouvisse. Com um leve sorriso, Bess acrescentou ainda: — Ser criada como e onde fui, não houve nada que eu não tivesse visto e ouvido. Você faria muito bem, Rose, se o mantivesse com rédeas curtas. Caso contrário, você o perderá. Pode ter certeza. Rose não poderia perder o que ainda não possuía. Mesmo assim, resolveu pôr em prática, a começar no dia seguinte e enquanto Annie dormisse depois do almoço, o que havia planejado. Mas só Deus sabia como se sentia amedrontada.
Capítulo X
O barco, um esquife a vela, segundo Peg que tomava conta dele na ausência de Luther, era muito menor do que o do Correio e de linhas muito mais graciosas. Mesmo assim, continuava sendo um barco. louco.
Em pé no cais, Rose lutava contra a vontade de correr dali e esquecer o plano
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O que tinha lhe dado a ideia de que ele faria alguma diferença? Desde o início, Matt havia planejado deixá-la em Powers Point. Ter uma mulher ali para cuidar de Annie fora a única razão para se casar com ela. Sabia disso e, portanto, sua obrigação era permanecer em casa e se encarregar da criação da menina. Olhou para o barco, para a água, tão calma que parecia um espelho, e de novo para o barco. Havia um tipo de caixa chata, retangular, que se elevava do centro do barco. Ela não fazia a mínima ideia do que fosse. O banco da frente tinha um buraco. Luther havia lhe dito que era para enfiar o mastro. Ela só o tinha visto usar os remos. Rose não pretendia utilizar nem o mastro nem os remos. Apenas estava determinada a entrar no barco e verificar quanto tempo poderia ficar lá sem enjoar. Se fizesse isso muitas vezes, cedo ou tarde seria capaz de passar horas nele sem se sentir mal. Então, estaria na hora de começar a aprender para que serviam os acessórios todos. Luther tinha mencionado que, nas primeiras vezes em que ele velejara, ainda menino, havia enjoado até não poder mais. Então, um belo dia, nada acontecera. Sem saber como, o mal estava sanado. Ora, se existia uma cura para ele, Rose pretendia descobri-la. Quando finalmente confessasse o erro cometido a Matt, lhe diria que ficaria em terra se ele insistisse, porém, gostaria de acompanhá-lo ao mar como outras mulheres da família Powers o haviam feito. Agora que tinha um novo marido, tencionava se tornar uma esposa melhor. Tal comportamento estimularia Matt a ser, em casa ou em alto-mar, um bom companheiro. Pelo menos, Matt não havia se casado com ela por dinheiro como Robert. Infelizmente, ela havia sido ingênua demais para perceber a intenção do interesseiro. Fragilizada pela morte dos pais, não tinha lhe ocorrido imaginar por que um cavalheiro fino e encantador, de repente, se apaixonara cegamente por uma jovem desajeitada, simplória, crédula, com poucos atributos sociais e atrativos físicos. Matt, por outro lado, tinha se casado com ela sem conhecê-la. Fora aceita por sua serventia e não por uma suposta herança, o que, em seu conceito, era muito melhor. Mas então, Matt a tinha beijado. Mais de uma vez, ela o havia apanhado observando-a de maneira instigante. De certa forma, a encorajara a se apaixonar por ele, atitude injusta, a menos que quisesse retribuir seu amor. E uma das qualidades de Matt Powers, de que tinha certeza, era seu senso de justiça. Foram precisos vários minutos para Rose criar coragem e entrar no esquife. Com os braços abertos, levou menos de trinta segundos para sair. Desanimada, refletiu se não deveria simplesmente se contentar com um teto sobre a cabeça e um bebê para preencher o vazio em seu coração. Na nova estação ferroviária na Main Street de Norfolk, Matt recomendou a Luther para não tirar os olhos da bagagem enquanto ele ia procurar um coche de aluguel para levá-lo a um certo lugar.
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— Por favor, espere um instante, Capitão. - o jovem marinheiro pediu, segurando-o pelo braço. — Existe uma coisa que venho querendo lhe perguntar. Desde que tinham entrado no estado de Virgínia, Luther vinha se mostrando pensativo. Provavelmente, preocupava-se com o posto dele, imaginando quem tomaria o de Billy. Mesmo em Powers Point, Matt já havia notado a inquietação do rapaz, mas ocupado com as cartas e os relatórios de Quimby, o agente encarregado das negociações do Black Swan, não tinha lhe dado atenção. Naquele momento, também seria impossível. Com duas horas de espera para fazer a conexão para Boston, ele pretendia procurar a fonte dos próprios problemas a fim de conseguir algumas respostas. Depois de haver escrito tantas cartas, sabia o endereço de cor. — Quando eu voltar. - disse ao puxar o braço. Uma hora e vinte e cinco minutos depois, ele saía novamente para a garoa. Seu semblante era de incredulidade furiosa. Quando chegou à estação, onde o trem já tinha encostado para o embarque dos passageiros, a expressão havia mudado para determinação gélida. As palavras de Horace Bagby, a quem tinha procurado no escritório, ainda repercutiam em seus ouvidos. — Tanto quanto me lembre, sua esposa planejava partir de Norfolk logo após o casamento. Um dia ou dois depois, no máximo. Sua tia, se não me engano, pretendia acompanhá-la. Mais do que isso, não posso dizer, pois não vi mais a noiva, quer dizer, sua esposa, depois que ela saiu de meu escritório. Imaginava que ela já houvesse chegado a sua casa muito tempo atrás. Matt começava a ter uma sensação ruim sobre o negócio. Começava coisa nenhuma! Ela o dominava desde que tinha assinado o maldito contrato de casamento. Impaciente, disse: — De acordo com Bess, minha mulher foi chamada inesperadamente por alguém de sua família que estava doente. Mais ou menos uma semana depois do casamento, minha tia apareceu em Powers Point com uma companheira, a Sra. Rose Littlefield. Explicou que tinham ido para me ajudar até que minha esposa pudesse ir. Bagby estremeceu visivelmente. — Ai, meu Deus, era o que eu temia. - murmurou. — Temia?! Todas as dúvidas de Matt desmoronaram, formando um peso de chumbo em seu estômago. — Entenda bem, por favor. Nunca tomei parte no... Bem, em nada, exceto na cerimônia do casamento. O senhor deve saber, calculo, que o nome completo de sua esposa é Augusta Rose Littlefield Magruder.
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— Rose Littlefield. De acordo com a certidão, eu me casei com Augusta R. L. Magruder. — Seu sobrenome de solteira era Littlefield. Tanto ele como o primeiro foram em homenagem à avó, Augusta Littlefield, grande amiga de Bess e minha cliente até vir a falecer. Casou-se com um homem chamado Magruder, Rose e não Augusta. O homem, se não me engano, morreu afogado. Por isso, Rose passou a morar com a avó. Foi quando a conheci. Tarde demais, Horace Bagby, tornava-se, de repente, uma fonte de informações. Aturdido, Matt não podia pensar em nada adequado que expressasse a sensação de ter sido traído. O advogado apressou-se em preencher o silêncio. — Sabe, ao rememorar os fatos, tudo fica claro como o dia. Bess mencionou, tenho certeza, que sua mulher começava a alimentar certas dúvidas. Eu a avisei, na ocasião, para não tentar fazer tolice alguma. Disse-lhe que, caso insistisse, eu não teria nada a ver com a história. Mas, o senhor conhece sua tia. — Foi por isso que ignorou minhas cartas? O advogado esforçou-se, em vão, para mostrar indignação. — Respondi a primeira a tempo, tenho certeza. — A tempo, seu falso?! Só após três semanas! — Segundo minha experiência, Capitão, nunca se deve tratar apressadamente algo de natureza legal. Matt rezou para ter paciência. Se não conseguisse, acabaria torcendo o pescoço do homem. — O senhor respondeu, sim. Um amontoado de "nem sim nem não, muito pelo contrário", além de algumas tolices jurídicas, mas nem um desgraçado fato concreto. — O senhor faria bem em se lembrar que me escreveu perguntando pela esposa. Eu lhe respondi que, tenho certeza absoluta, embora o nome dela fosse citado em conversas, eu não via desde o dia do casamento. Logo depois disso, fui forçado a viajar a fim de tratar de um assunto particular. Sem se conter e não se importando em disfarçar a raiva, Matt trovejou um palavrão ofensivo. Bagby empalideceu. — Capitão Powers, conheço sua tia há quarenta anos e considero um privilégio contá-la entre meus amigos mais chegados. Acredito que o senhor esteja bem familiarizado com seu modo de ser e, portanto, há de convir como Bess, às vezes, quer dizer, muito raramente... — A criatura mente como o diabo, eu sei. - Matt o interrompeu. — Ela prefere
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muito mais mentir do que dizer a verdade. — Desculpe-me por ter sido franco. Mas saiba que nada disso foi ideia minha. Na verdade, fiz uma severa recomendação... — Pode parar, Sr. Bagby. Tenho de pegar um trem daqui a pouco. Em resumo: Bess armou um esquema e, depois, mentiu a nós dois sobre o que pretendia fazer, certo? — Mentir é um termo relativo. Esconder a verdade aplica-se melhor a este caso. - tossiu discretamente. — Como o senhor não deve ignorar, sua tia possui grande criatividade. Às vezes, tal característica e seu entusiasmo a levam muito além dos limites do bom senso. — Em outras palavras: quando minha esposa decidiu invadir minha casa com um nome falso e pavimentar seu caminho em relação a mim, a fim de verificar se valia a pena ficar, Bess concordou de boa vontade. Aliás, a ideia deve ter partido dela. E isso que está tentando me dizer? — De certa forma, sim. Contudo, não acredito... — Anule o negócio. — Como assim? — Anule o casamento. Faça o que for preciso para me livrar desta confusão. Prefiro enfrentar o demônio a ter uma esposa trapaceira. Aliás, jamais quis ter uma, mas permiti que Bess me convencesse a casar. Matt já tinha se levantado. Mal continha a fúria e não via o momento de escapar do escritório pequeno e atravancado. Na calçada, levantou o rosto para a garoa fria e respirou fundo várias vezes. Dois quarteirões adiante, viu um coche de aluguel e fez-lhe sinal para parar. Ao descer em frente da estação, já tinha decidido como agiria. Pagou o cocheiro e foi procurar Luther. Rose ia pagar caro. Para Bess, era tarde demais. Ela havia passado a vida inteira cometendo absurdos e não se corrigiria mais. Porém, de uma forma ou de outra, ele pretendia ensinar, à esposa leviana e irresponsável, uma lição que ela jamais esqueceria. Sanford Dixon, o filho do notário, foi jantar com pai, em Powers Point, na véspera da partida de Bess. Era um rapaz bem-apessoado e como Rose sentisse mais falta de Matt do que havia esperado, dedicou-lhe toda sua atenção. Normalmente, não faria isso. Entre a sopa de peixe e o pudim de pão, ele praticamente lhe contou a história da vida inteira. — No ano que vem, vou me formar na Chapei Hill. Depois, pretendo entrar para a política. Meu pai lhe contou isso?
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— Acho que ele mencionou qualquer coisa. - Rose murmurou. — Sabe, fiz um estudo cuidadoso sobre as maneiras para melhorar nossas escolas públicas. Como político, quero promover a execução de meu plano. Depois, pretendo também fazer algo pelo transporte público. Você faz ideia de como é difícil ir de uma cidadezinha a outra? Com sua mais recente experiência em mente, Rose fez um sinal afirmativo com a cabeça. Foi todo o encorajamento de que Sandy precisava para expor seus planos sobre uma rede de estradas calçadas de pedras britadas e frotas de coches com horário regular. Haveria também outros maiores e mais rápidos para ligar as cidades com mais de algumas centenas de habitantes entre Charleston e Norfolk. Quando pai e filho foram embora, Rose mal continha os bocejos. Crank já havia lavado e guardado toda a louça, Peg trouxera lenha para a manhã seguinte e os dois tinham ido dormir. — Bem, pelo jeito com que o rapaz simpatizou com você, Rose, aposto como temos uma situação bem promissora a nosso alcance, não acha? - Bess comentou. Rose fechou a porta de entrada e, por um momento, encostou a testa na folha fria de madeira. Não estava com ânimo para ouvir as maquinações da mente fértil de Bess. — Por favor, não. — Não o quê? - Bess indagou com ar inocente. Rose virou-se e balançou a cabeça. — Sandy é um rapaz simpático. Luther também. Aliás, até John. Mas você se esquece de que já tenho um marido. — Matt é de meu único sobrinho e eu o quero bem como se fosse meu filho. Mas o rapaz não sabe nada sobre mulheres e, muito menos, a respeito da esposa. Antes que seja tarde demais, você tem que despertar o interesse dele. Se não fizer isso, você jamais verá o mínimo sinal dele até que os dois já estejam velhos demais para se lembrarem por que se casaram. — Nós nos casamos porque eu precisava de um emprego e ele, de uma babá. Apenas por isso. - Rose declarou em voz inexpressiva. Exasperada, levantou as mãos no ar. — Além disso, ele nem se encontra aqui. Se sua ideia foi provocar-lhe ciúme, como seria possível com ele em Boston? Mesmo que estivesse presente, Matt não se importaria. — Isso é o que você pensa. — Só sei que nunca deveria ter me colocado nesta situação. Tapeação nunca dá certo e...
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— Não diga tolice. Se não fosse pela identidade falsa, você jamais teria criado coragem de vir para cá. A esta altura, estaria morando num sótão abafado e de teto baixo, trabalhando como uma escrava a troco de um salário miserável, sendo maltratada pela patroa enquanto o marido se enfiaria em sua cama quando bem entendesse. — Ai, pelo amor de Deus, Bess! Pare de florear e transformar os acontecimentos passados numa de suas histórias absurdas. Estamos falando sobre minha vida! Tenho me esforçado bastante para fazer uma escolha com a qual eu possa viver, enquanto você... — Sobre o que as histórias são, você pensa? Jamais se deu ao trabalho de ler uma? Ou prefere aquele tipo de livro para encher estantes que sua avó deixou aos montes ao morrer? Gussy jamais abriu um deles, eu lhe garanto. Aposto o que você quiser como aquele estafermo com quem ela se casou também não o fez. Mas a biblioteca deles era uma beleza. Desperdício, se você quer saber. Todas aquelas palavras escritas nunca foram lidas por nenhum dos dois. — Boa noite, Bess. — Espere um minuto. Ainda não terminei. — Aquele estafermo era meu avô. — Ora, você nem o conheceu. Ele morreu antes de você nascer. E era um estafermo sim. Agora, preste atenção. Vou embora amanhã no barco do Correio, mas antes de ir, quero saber se você... — Eu vou ficar. Com identidade falsa ou não, dei minha palavra que cuidaria de Annie. Caso esteja interessada, fique sabendo que já posso ficar sentada naquele barco desgraçado por quase cinco minutos sem me sentir mal. Rose retirou-se sem ver o sorriso de Bess ou ouvir-lhe o comentário sussurrado. — Muito bem, não é intrigante? Agora que a panela está fervendo, vamos ver o que sobe à tona do caldo.
Já era noite fechada quando o trem parou na plataforma. Tarde demais para ir às docas. Cansado como estava, Matt deveria pegar no sono no minuto em que encostasse a cabeça no travesseiro. Em vez disso, refletia sobre os passos que precisava dar antes de poder recuperar seu navio. Luther ressonava na cama ao lado. O rapaz tinha, praticamente, se comportado como um sonâmbulo nas últimas horas. Matt havia pretendido pegar dois quartos, mas
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enquanto calculava as despesas durante a viagem, achara melhor tomar cuidado com sua reserva financeira. Embora não soubesse o preço exato do Swan, temia ser forçado a raspar o fundo do tacho apenas para efetuar a compra. Para pôr Powers Point em ordem, ele tinha gasto mais do que deveria. Luther dormia a sono solto e Matt invejava-lhe a facilidade com que caíra no sono. Com os olhos abertos, apesar da escuridão, reviu a lista feita mentalmente. Consertos: sem dúvida haveria alguns. Inspeção de proa a popa. Contratar uma tripulação. Gastar tempo para escolher os homens certos. Carga. Ele teria de ser cauteloso ao fazer lances numa licitação para transporte de carga. Ficara fora de contato tempo demais. Rose. Desgraça de mulher trapaceira. Ajoelhada na areia tentando fazer um mato seco reviver, erguendo o rosto vermelho de sol para lhe sorrir... Na cama ao lado, Luther falou algo, dormindo. Matt virou-se de bruços, esmurrou o travesseiro e esforçou-se para não pensar em nada. Diabo, precisava estar descansado de manhã cedo. Com a impressão de que havia se passado apenas um espaço curto de tempo, Matt abriu os olhos. Levou uns segundos para lembrar-se de onde estava, então, gemeu e sentou-se. Embora a cabeça latejasse, ele sorriu. Após quatro longos anos, a escuna finalmente era sua outra vez. Ou seria tão logo ele assinasse os papéis e entregasse uma ordem de pagamento que deixaria um rombo em sua conta bancária. — Levante-se, seu patife preguiçoso. Quer passar o resto de sua vida imprestável dormindo? - disse para acordar Luther. Pulou da cama, vestiu a calça e dirigiu-se ao lavatório. — Tenho de estar no escritório de Quimby às sete horas. Mal temos tempo para comer alguma coisa. Depois, você vá até a Casa do Marinheiro e comece a selecionar a tripulação. Eu o encontrarei lá assim que terminar o negócio com Quimby. Menos de uma hora depois, sentindo-se revigorado, apesar das poucas horas de sono e da refeição feita às pressas, Matt tomou o caminho das docas. Perto, ficava o Asa Quimby & Associados, entre outros escritórios. Luther, ao lado, tentava acompanhar-lhe os passos largos. — Espere um instante, Capitão. Ainda não cheguei a lhe perguntar sobre... — A resposta é sim. Você é meu novo imediato. Acha que pode dar conta? — Sim, senhor, com toda certeza. Vou me esforçar ao máximo para ocupar o posto de Billy a contento. Mas não era isso que eu queria perguntar. — Não?! - exclamou Matt, diminuindo o passo.
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— É sobre Rose, Capitão. As palavras provocaram uma leve mudança no andar de Matt. — Rose? — Sim, senhor. Eu vinha pensando, quer dizer, se o senhor não tiver nenhuma objeção, que gostaria de cortejá-la quando voltássemos a nos encontrar. Não tenho muito para lhe oferecer, eu sei. Se ela se casar comigo, poderá ficar em Powers Point. Assim, quando sua esposa chegar, ela lhe fará companhia e ajudará a cuidar de Annie. Pelo fogo do inferno! Devagar, Matt virou-se para encarar o jovem marinheiro tão atraente. — Você o quê? Dois homens, aparentemente bêbados e voltando para casa depois de uma noite de libertinagem, chocaram-se contra Matt. Instintivamente, ele levou a mão à carteira, segurou a que se enfiava em seu paletó e torceu-a impiedosamente. Os dois batedores de carteira fugiram correndo e Matt voltou-se outra vez para Luther. — Você quer se casar com Rose. — Se ela me aceitar. Não estou com pressa, mas acho que um homem precisa ter uma companheira e filhos. Caso contrário, quando ele se for daqui para melhor, não restará nada. Veja Billy. Se não fosse por Annie... — Depois conversaremos sobre isso. - Matt o interrompeu em tom ríspido. — Já tive mais distrações do que precisava. Apressado, dirigiu-se ao prédio que abrigava o escritório do agente, um comerciante de velas para navios, uma firma de seguro e um bando de advogados navais. Swan.
Precisaria de todos eles antes de estar pronto para enfunar as velas do Black
Capítulo XI
Ela lhe despedaçava o coração. Não havia outras palavras para descrever a tristeza profunda de Matt enquanto, em pé no cais, olhava para o Black Swan,
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ancorado na baía. A escuna lembrava uma grande dama abatida pelas vicissitudes enfrentadas. Uma jovem beldade forçada a cair na vida. Vulgarizada, coberta de vergonha, o orgulho que, uma vez, fizera parte de seu porte elegante, não passava de coisa do passado. Matt praguejou profusamente. Quando as imprecações se esgotaram, tinha os olhos cheios de lágrimas. — Vamos cuidar de você, minha dama. - murmurou. Se tivesse de vender Powers Point, e poderia ter de recorrer a esse extremo, ele veria sua escuna limpa e fulgurante outra vez. Sua superestrutura danificada seria restaurada e um conjunto novo de velas tomaria o lugar dos trapos imundos e remendados que usava agora. O que via dali já era terrível. Mas, sentia-se aflitíssimo ao imaginar os estragos que não eram visíveis. Só Deus sabia em que condições estaria o casco. Provavelmente, corroído por parasitas. Como a linha d'água estivesse abaixo do nível do mar, o porão devia estar inundado. Quimby o tinha avisado sobre alguns estragos na quilha e no leme, provocados por uma tempestade na costa de Barbados. Porém, Matt havia imaginado que as avarias tinham sido reparadas imediatamente. Homem algum, que possuísse um navio valioso, permitiria que estragos na estrutura não fossem consertados logo. Ainda mais em pontos tão estratégicos. A menos que a escuna tivesse um seguro acima de seu valor... — Deus do céu! Meu Pai amantíssimo, Capitão, aquilo não pode ser o Black Swan, não é? Luther tinha se aproximado e parado logo atrás. Em silêncio, os dois homens ficaram olhando para o navio que tanto amavam. Além de Powers Point, era o único lar de Luther desde que, doze anos atrás e com apenas dez de idade, ele se engajara como aprendiz de marinheiro. — Tão cedo, não vamos poder contratar carga. - disse Matt em voz embargada. — Não, de jeito nenhum, senhor. Seria possível levar a escuna até Norfolk com um mínimo de tripulantes? Lá, mandaríamos chamar Peg para supervisionar o trabalho. Matt concordou com um gesto de cabeça, pois já vinha refletindo nessa possibilidade. Seria difícil levar a escuna, naquelas condições pelo braço de mar e Norfolk não ficava muito distante. Bem mais perto e melhor do que Boston. — John poderia continuar em Powers Point enquanto Peg e eu ficaríamos a bordo do Swan. - Luther acrescentou. Apesar das tolices esporádicas, o rapaz tinha uma boa cabeça sobre os ombros, Matt refletiu.
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— Veremos. A primeira coisa a fazer é bombear a água dos porões e verificar se a escuna está em condições de velejar. No fim do dia, Matt tinha incumbido Luther de contratar homens capazes de fazer uma inspeção preliminar e apenas os consertos necessários para a viagem ao sul. Quando estivessem na baía de Norfolk, poderiam empreender uma vistoria mais pormenorizada. Matt voltou ao banco a fim de pedir um empréstimo para cobrir o custo dos consertos temporários. O resto teria de esperar até que estivessem perto de casa. Casa? Tanto quanto podia se lembrar, navios tinham sido sempre sua casa. Apenas dois dias mais tarde, depois de toda a água ser bombada do Swan e Matt ter inspecionado pessoalmente cada centímetro da quilha e da superestrutura, ele se permitira pensar no passo seguinte. Com os débitos começando a se acumular, havia procurado a firma de seguros que emitira a apólice. Tinha descoberto que ela caducara três anos atrás, o que explicava por que a escuna havia ficado em condições tão deploráveis. Nenhum conserto tinha sido feito nesse período. Corretor algum, em seu juízo perfeito, renovaria o seguro com a escuna naquele estado. Como Matt já houvesse raspado o fundo do tacho o que tinha de pagar e o preço pedido pelo consórcio, a comissão de Quimby e os reparos de emergência, ele foi procurar o gerente do banco novamente. Por mais que não quisesse, via-se obrigado a hipotecar Powers Point. Por causa da localização da propriedade, o gerente mostrou-se relutante. — Se fosse numa de suas cidades maiores, Charlotte, por exemplo, ou Charleston... — Charleston fica na Carolina do Sul. - Matt o interrompeu, aborrecido com o provincianismo do bancário. — Mas não existe nada nessa ilha. - o homem argumentou. Matt explicou que havia uma casa de dez cômodos, algumas construções em volta, uma tropa de cavalos e um cais. Ainda mencionou a existência de várias cidades, ao norte e ao sul da costa, de fácil acesso. Naturalmente, a descrição era um tanto exagerada, mas o gerente não merecia consideração. Afinal, era tão ignorante a ponto de mudar Charleston mais de trezentos quilômetros para o norte. Matt levou quatro horas para convencê-lo a lhe emprestar três mil dólares sob a hipoteca da escuna e de Powers Point. No documento, constava que a propriedade ia de Pamlico Sound ao oceano Atlântico, numa extensão de seis quilômetros e meio de norte a sul. Sem dúvida, parecia bem melhor do que era na realidade. Enquanto Matt tratava disso, Luther deveria estar procurando quatro homens competentes para contratar. Seria bom se eles tivessem alguma noção de carpintaria
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náutica para a eventualidade de algum conserto urgente durante a viagem para o sul. Matt nunca tinha velejado a escuna com menos de nove tripulantes, mas Luther agüentaria o quarto duplo. Ele mesmo, sabia, não desgrudaria o olho até que estivessem na segurança de um porto conhecido. Felizmente, a estação já chegava ao fim. Também era cedo demais para furacões. Com um pouco de sorte, conseguiriam chegar a Norfolk em três dias, quatro no máximo. Tendo telegrafado para garantir atracação, partiram numa quinta-feira, com dois homens se revezando nas bombas. Mar calmo e vento apenas o suficiente para ondular levemente a superfície significavam morosidade, porém, mais seguro do que a alternativa, desde que não fizesse muita água. Com o leme grosseiramente consertado, a escuna tinha a tendência para dar guinadas, desviando-se da rota. Matt não o abandonava. Havia descalçado as botas a fim de sentir a menor vibração. Hora após hora, ele a conduzia, falando mansamente. Encorajava-a, referindo-se aos dias felizes que tinham compartilhado no passado e dos muitos que os aguardavam no futuro. Cruzaram com dois vapores a caminho do norte, três mais os ultrapassaram rumo ao sul. Na foz do rio Delaware, passaram pelo novo navio de guerra, de aço, que acabava de ser construído em Newport News. Era um sinal triste de que os dias da embarcação a vela estavam contados. Durante duas horas, num período de vinte e quatro, Matt permitia que Luther o substituísse no leme. No resto do tempo, o rapaz podia ser encontrado nos lugares mais diversos, cuidando de tudo. Media o nível da água no porão para verificar se as bombas estavam dando conta, inspecionava o cordame em busca de sinais de pontos fracos que tivessem passado despercebidos antes, supervisionava os outros tripulantes. Aos vinte e dois anos era muito jovem para o posto de imediato, porém, já mostrava ser um marinheiro bom e competente. Matt conhecia-lhe bem os pontos fortes e fracos. Dentro de dez anos, ele daria um excelente Capitão. Graças à misericórdia divina, um dos homens contratados mantinha um bule de café na beirada do fogão. A intervalos regulares, ele lhe levava uma caneca grande da bebida e dois pãezinhos secos, comprados antes de partirem, com salsichas e queijo. Na altura de Cape May, o vento já tinha começado a soprar, mas o sol continuava escaldante. A barba por fazer de Matt coçava muito e ele podia jurar que os cabelos haviam crescido uns três centímetros. Luther, durante uma de suas rondas pelo tombadilho, tirou uma concha cheia de água do barril e jogou-a na cabeça e nos ombros de Matt. — Quer que lhe traga sua navalha, Capitão? — Não. Só vou me barbear depois de lançarmos âncora. - resmungou Matt, mas com um leve tom de otimismo na voz.
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Marinheiros costumavam ser muito supersticiosos, mas a inteligência de Matt não lhe permitia acreditar em bobagens. Contudo, por que se arriscar se não havia necessidade? Luther sorriu e encheu outra concha de água para levá-la à chaleira no fogão, ao passar pela galeota. — Vamos conseguir, Capitão, pode ter certeza. O aspecto da escuna pode não estar muito bonito, porém, ela ainda tem o que conta mais. Ora, com todos os diabos! Matt imaginou por que as palavras de Luther o faziam pensar em Rose. Porque ela havia cambaleado da carroça, poucos meses atrás, parecendo uma trouxa de trapos, jogada na praia pela maré? Porque ela havia conseguido mudar e ficar quase bonita? Diabo, Rose era linda. Era também uma mulher trapaceira, fingida que, mesmo antes de o conhecer, tinha decidido enganá-lo, Matt advertiu-se. Ele ainda não havia resolvido o que fazer a respeito disso. Pelo menos, não estava mais casado com ela, caso Bagby tivesse seguido suas instruções. Com a cabeça fervendo, explorou várias possibilidades. Tão logo o Black Swan estivesse ancorado em segurança, mandaria buscar Peg para supervisionar o trabalho. Sem dúvida, ele faria falta em Powers Point, mas de jeito nenhum permitiria que Luther voltasse para lá. Ele mesmo iria. Até então, já teria pensado numa maneira de tratar do caso da ex-mulher. Mas havia um problema. Precisava dela. Não, Annie precisava de Rose. Ele jamais precisara de mulher alguma, exceto no sentido mais fundamental. Certo. Diga isso com freqüência, Powers, e acabará acreditando. Matt praguejou enquanto tirava o boné com aba de couro. Enterrou-o de novo na cabeça depois de passar o braço pelos olhos vermelhos que ardiam. Estava velho demais para passar mais de trinta e seis horas sem dormir. Ficar tanto tempo acordado embaralhava a mente de um homem e lhe pregava peças. — Tudo de que precisa se lembrar é o fato de aquela mulher haver mentido para você. - ele disse ao vento.
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— É dos rabos balançando que Annie gosta. - John disse calmamente. Ele era um homem tranqüilo, bem-humorado, o que encantava Rose muitíssimo. Até quando Jericho o tinha atirado para fora do cercado e derrubado, aos coices, outra porteira, John tinha simplesmente se erguido do chão, limpado a areia da roupa e, devagar, ido atrás do garanhão inquieto, falando calmamente. Annie juntou as mãozinhas e soltou gritinhos alegres. Ela adorava ver os animais e John estava certo. Quando o vento balançava as crinas e os rabos, a menina gostava mais ainda. E o vento vinha soprando com força há três dias seguidos, sem arrefecer nem um pouco. Nem mesmo nas horas logo antes do amanhecer que Crank e Peg chamavam de "momento calmo do dia". Embora não chovesse, nuvens escuras constituíam uma ameaça constante. Rose, cansada de ficar dentro de casa, tinha vindo para fora, apesar da areia que permeava o ar, para ver John lidar com os cavalos. Pelo menos, o vento tinha afastado os mosquitos, embora levantasse a areia. Segundo Crank, ele soprava desde os baixos Diamond. O cozinheiro, agora, vinha tomando um remédio poderoso, mandado vir do continente, que lhe deixava o andar mais firme. Rose suspeitava que o novo ânimo de Crank devia-se ao teor alcoólico do remédio. Mas se o efeito era positivo, por que reclamar? Além do mais uma caixa de frascos de "Porter Sana-Tudo" custava bem menos do que uma de conhaque. Não se passava um dia sequer sem que Rose subisse ao "posto da viúva", a pequena sacada no telhado, a fim de ver se havia algum sinal do navio de Matt no Atlântico. Sabia muito bem que o Black Swan, caso viesse até aquele ponto ao sul, ficaria ancorado na baía de Norfolk. Ela ouvia a conversa dos homens e memorizava detalhes de informações na esperança de, um dia, entender tudo aquilo. A esposa de um Capitão de navio deveria saber o suficiente para ser uma ouvinte inteligente. Os dois velhos marinheiros já tinham feito uma descrição completa da escuna de Matt, mencionando até os arabescos dourados que circulavam seu nome. O entusiasmo dos dois dava a impressão de que ela era o veleiro mais rápido e lindo do mundo. A tripulação contava com excelentes beliches e o Capitão, com uma cabina digna de uma princesa persa. Tudo isso, ela sonhava ver com os próprios olhos algum dia. — John, você acha que poderia me ensinar a cavalgar? - Rose perguntou. O rapaz da vila observou-a com expressão penetrante nos olhos escuros. Ela nunca sabia o que John estava pensando. Ele também costumava ser lacônico. — Por quê? Um tanto constrangida, Rose pensou em contar-lhe a verdade, queria causar boa impressão quando e se o marido voltasse para casa. Deus era testemunha de que ela
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não possuía atributo algum para se orgulhar guando Matt partira. Tudo que havia plantado tinha morrido. Obviamente, não entendia de jardinagem, mas se pudesse aprender a ser mais auto-suficiente, talvez ele não se importasse com suas imperfeições. — Posso dirigir a carroça, mas não confio na mula Por isso, quero aprender a cavalgar. Só isso. A resposta provocou um sorriso em John, mas desapareceu quase antes de ser apreciado. Ele era um rapaz muito atraente, Rose tinha de admitir. Imaginava se tinha mulher. Caso tivesse, ela se ressentia do fato de o marido passar tanto tempo em Powers Point? — Aqui não existe uma sela para mulher. — Então, me ensine a cavalgar sem uma, como os homens fazem. — Acho que o Capitão não haveria de gostar. — O Capitão não está aqui. — Ele ficará sabendo. — Como? — Eu mesmo contarei a ele. Exasperada, Rose balançou a cabeça. — Esqueça meu pedido. Aprenderei sozinha. Já havia conseguido não enjoar no barco enquanto ouvia as explicações de Sandy Dixon sobre os apetrechos. Pelo menos, não passava mal enquanto ficava sentada num dos bancos, num dia calmo e com o esquife amarrado ao cais. Já era um começo. No dia seguinte, enquanto Annie dormia à tarde, com Crank sentado à porta do quarto debulhando feijão, Rose teve sua primeira experiência com uma montaria. Ela havia posto uma calça de Luther e a amarrado, na cintura, com uma faixa de fustão amarelo. Em pé em cima de um barril emborcado, esperava criar coragem para passar, outra vez, a perna por cima da égua. A primeira tentativa tinha sido um fracasso espetacular. — Vai ficar com o corpo todo dolorido. - John a avisou. — Como já estou, acho melhor conseguir algum resultado para mostrar. Sem disfarçar o ar de desaprovação, ele segurou a égua com firmeza. Ao ver que ela ia montar com ou sem a orientação dele, John tinha, a contragosto, concordado em ajudá-la. — Se quer mesmo aprender a andar a cavalo, então, monte. Mas não desse lado. Sempre suba num animal pelo lado esquerdo. Caso contrário, ele se assustará.
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Foi o maior número de palavras que John já havia dito de uma só vez. Impressionada, Rose respirou fundo, segurou com firmeza um punhado da crina preta e impulsionou o corpo sobre o da égua. Ficou mais nervosa ainda quando o animal começou a curvetear. — Calma, Katie. Vamos ser muito delicadas uma com a outra, não é? - murmurou em voz trêmula. Por Deus, tinha conseguido! Finalmente estava sentada em cima de um cavalo. Havia se familiarizado com carrinhos na mais tenra idade, quando a babá a levava passear, à volta do quarteirão, numa cesta de vime supostamente puxada por um pônei de pelúcia. Mais tarde, naturalmente, se acostumara a andar em veículos de tração animal. Mas até o dia em que Matt a tinha ido buscar na estrada e trazido de volta para casa, ela nunca havia subido em um cavalo. A mãe sempre se recusara a permitir que o pai lhe desse um. Alegava que cavalgar era um passatempo impróprio para jovens solteiras. — Mais tarde, quando for casada, peça permissão a seu marido. Se ele concordar, muito bem, pois então, não fará mais diferença. - afirmara ela. Só após várias conversas sussurradas com outras mocinhas de sua idade, Rose chegara a uma conclusão. Cavalgar tinha algo a ver com o fato de ser donzela. O exercício poderia roubar-lhe a virgindade. Que grande tolice, refletiu, desejando não ter sido tão covarde. Sempre temia fazer alguma coisa que a colocasse numa posição mais desfavorável ainda, como se não bastassem a altura exagerada e a falta de atrativos físicos. Uma vez, tinha ouvido a mãe confiar, ao pai, o temor de que a filha jamais encontrasse um marido. — Então, ela nos fará companhia na velhice. - havia sido a resposta dele. Ambos não tinham vivido para descobrir como estavam errados. Rose havia encontrado um marido. Ou melhor, ele a achara. E agora, tinha mais um. Mas este, provavelmente, a rejeitaria quando descobrisse quem era. Portanto, que diferença faria se ela cavalgasse em pêlo e galope pela praia, ou passasse o dia inteiro sentada naquele barco desgraçado sem enjoar? — Por favor, John, me passe as rédeas. Posso dirigir o animal. - disse em tom seco. — Pois não, madame. - o rapaz respondeu com os olhos pretos brilhando como se estivesse achando graça da situação. Crank esquentou, na chapa do fogão, um saquinho de pano com arroz. Não encheu muito, deixando espaço para que Rose pudesse ajeitá-lo melhor nos lugares mais doloridos. Também preparou-lhe um chá ao qual acrescentou uma boa dose do
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remédio poderoso dele. Quando levou os dois a seu quarto contou-lhe: — A última vez que esteve aqui, Dixon disse que talvez tenha boas notícias para o Capitão quando ele chegar. — Que bom. - Rose respondeu, distraída, ao vê-lo sair, deixando a porta entreaberta. Imaginava se não havia herdado, da avó amalucada, algo mais do que os cabelos rebeldes e os olhos da tonalidade de âmbar claro. — Nunca mais, eu juro. Pode me beliscar se eu chegar perto de um cavalo outra vez. - disse a Annie cujo berço fora colocado ao lado de sua cama. Beliscar era a nova façanha da menina. Quase sempre, orelhas, mas lábios também constituíam um alvo apreciado. Especialmente se estivessem mexendo. Aliás, qualquer movimento a fascinava. — Está bem, pode me chamar de idiota, mas a ideia tinha me parecido boa. Muitas mulheres cavalgam. Eu costumava vê-las, exibindo roupas elegantes de montaria, circulando as estátuas no Parque Monroe. Annie bateu as mãozinhas nos pingentes que Peg tinha esculpido em madeira e pendurado acima do berço. Se ela continuasse crescendo tão depressa, logo ele teria de lhe fazer uma cama, mas ainda com grades para evitar quedas. — Imagino onde ele estará esta noite. - murmurou. Quantas vezes havia expressado esse pensamento? Uma dúzia?, indagou-se, suspirando. Mais provável, uma centena. Com uma careta, virou-se de bruços e massageou as nádegas para verificar se ainda estavam doloridas. Muitíssimo. — Ninguém me avisou que eu sacudiria como uma saca de aveia quando a égua desgraçada começasse a andar. Como eu deveria saber que não podia encostar os pés nos lados dela? John não disse nada. Talvez ele houvesse tentado, mas Rose tinha insistido em fazer tudo por conta própria. Naturalmente fora a maneira errada de agir, como atestavam as várias partes doloridas do corpo. — Está chegando gente. - Peg avisou do corredor. Rose gemeu. — A esta hora da noite? — resmungou. Por ser verão, ainda estava claro, mas o jantar fora servido horas atrás. Mesmo assim, precisava se levantar e vestir-se para a eventualidade de sua presença ser necessária. Depois da partida de Bess, ela havia assumido o papel de dona da casa.
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Num dia da semana anterior, a mulher do notário tinha vindo visitá-la. No instante seguinte, ouviu Crank exclamar algo obsceno. Depois de avisá-los que Annie logo começaria a repetir palavras ouvidas, os dois homens vinham se esforçando para melhorar o vocabulário. Poucos dias atrás, a menina tinha balbuciado "mam, mam". Havia soado quase como "mamãe", o que provocara as lágrimas de Rose. Mal podendo se mexer, ergueu-se da cama e passou o vestido pela cabeça. Como toda roupa ultimamente, ele deu a impressão de estar úmido. Depois de ajeitá-lo no corpo, escovou os cabelos que apenas prendeu com uma fita na nuca. Não tinha energia para trançá-los. Paciência, disse a si mesma, irritada, enquanto percorria a casa com passos duros. Qualquer pessoa que aparecia a essa hora da noite, merecia... — Matthew?! - exclamou baixinho. Misericórdia, ele acabava de chegar em casa.
Capítulo XII
Ele dava a impressão de ter envelhecido. Com a silhueta esculpida contra a última claridade do céu a oeste, parecia abatido como se estivesse doente. Por um minuto inteiro, Rose o observou antes de se dar conta de que estava descalça, usava um vestido fino, sem roupa de baixo, nem mesmo uma anágua. E tinha os cabelos mal penteados. — Matt, você está doente? - ela murmurou. Pela intensidade com que a fitava, Rose imaginou se ele não estaria com febre. — Não, não estou doente. Onde está Bess? Até a voz dele soava diferente. — Foi embora uns poucos dias depois de você partir. Alegou que precisava falar com seu editor a respeito de um novo projeto. Rose respondeu automaticamente pois os pensamentos seguiam em outra direção. Ele chegou. Está exausto. Existe algo errado. Ele precisa de mim. Crank tinha ido lá fora buscar a mochila dele e Peg cuidava da montaria emprestada. Deus misericordioso, Matt não tinha energia nem para fazer isso, ela pensou. O homem que conhecia teria se incumbido do cavalo, ainda mais de um emprestado antes de procurar o próprio conforto.
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Parada à porta aberta, Rose corretamente a expressão e disse:
olhou
para
Bronwyn Williams
fora.
Matt
interpretou-lhe
— Ele não veio. — Está tudo bem? Você conseguiu seu navio de volta? Luther está... — As respostas para suas perguntas são: não está, sim consegui e sim, ele está. Agora, por favor, saia do caminho, madame. Eu gostaria de entrar em minha própria casa. Com um movimento brusco, como se tivesse sido escaldada, Rose recuou. — Não foi minha intenção... Quer dizer, claro, entre. Eu apenas queria... Ele tinha sido ríspido e a chamado de madame, mas sem o mínimo sinal de respeito. — Quando Crank voltar lá de fora, diga-lhe para arrumar um prato com o que sobrou do jantar e esquentar uma chaleira de água para mim. Era uma ordem, não um pedido. O que esperava que ele fizesse? Que a estreitasse entre os braços? De acordo com o que ele sabe, você não passa de uma empregada da casa. Rose virou-se depressa demais e cambaleou contra a parede. Os músculos doloridos protestaram. Antes de se endireitar e recobrar a presença de espírito, Matt agarrou-lhe o cotovelo com força. — Fique firme. Por acaso andou atacando o conhaque de Bess? Algo parecido. Uma boa dose do remédio de Crank, ela pensou. — Se quer saber, eu já estava quase dormindo. — Assim tão cedo? Puxou-a em direção à cozinha, afrouxando a mão em seu braço. Uma vez lá dentro, Rose soltou-se a fim de acender uma lamparina enquanto Matt puxava uma cadeira e atirava-se nela. Curvou os ombros como se, até então, ele os tivesse mantido eretos com grande esforço. Apesar de seu embaraço, ela teve de lutar contra a vontade de abraçá-lo. Atormentada por uma tempestade de emoções conflitantes, virou-se para a cesta de lenha e, outra vez, mexeu-se depressa demais. Esquecia-se de que não podia fazer movimentos bruscos. Soltou uma exclamação de dor e levou a mão às costas. A cadeira de Matt bateu contra a parede. No instante seguinte, ele estava a seu lado. — Diabo, o que há de errado com você, mulher? — Nada. Estou muito bem. - ela afirmou em tom seco.
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Não tinha nada, exceto uma severa falta bom senso. Até parecia que ela nunca havia sentido dor. Isto não passava de umas poucas contusões, escoriações leves, alguns músculos doloridos... — Sente-se, Matt, enquanto reavivo o fogo. Crank deixou peixe ensopado embaixo do terraço onde é mais fresco. Caminhou para a porta, movendo-se tão depressa quanto era possível com as costas tensas, as nádegas contundidas e a parte interna das coxas esfolada. — Sente-se você. - Matt ordenou ao puxar uma cadeira até seu lado e empurrá-la para o assento sem a mínima delicadeza. Como Rose não pudesse disfarçar uma careta de dor, ele exigiu saber por que ela dava sinais de estar sofrendo. — Vamos, explique logo o que aconteceu. Você parece estar num estado muito pior do que o meu, Rose. A porta de tela bateu, anunciando a entrada dos dois velhos marinheiros. Rose sentiu-se dividida entre a vontade de escapar dali e a tentação de ficar para ouvir as novidades. Se estivesse a sós com Matt, ele relutaria em lhe contar a transação da compra do navio. Mas jamais esconderia detalhe algum de Crank e Peg. — Estragou outro par de botas, estou vendo. - Crank disse ao dirigir um olhar acusador para o calçado de Matt todo manchado de água salgada e coberto de areia. — Sente-se, Capitão, enquanto esquento o jantar. Peg, avive o fogo. Rosie, que diabos está fazendo fora da cama? A dose de remédio que lhe dei deveria lhe dar sono até amanhã na hora do almoço. O rosto enrugado mostrava confusão. Matt olhou de um para o outro. — Aconteceu alguma coisa com Annie? — indagou. Era o único motivo que lhe ocorria para Rose ter ido para a cama tão cedo e sob o efeito de um dos remédios fortes de Crank. — Annie está ótima. Tem crescido tanto que você nem vai reconhecê-la. afirmou Rose ao dirigir um olhar de aviso para Crank, o que aumentou as suspeitas de Matt. Alguma coisa estava errada. Embora exausto como se sentia, sabia que não dormiria até descobrir tudo. — Alguém pode me informar que diabo está acontecendo aqui? Foi Peg, que já tinha avivado o fogo e posto a chaleira de água para ferver, quem o atendeu. Rose teve vontade de empurrá-lo para fora da cozinha, mas sabia que qualquer movimento rápido seu a faria desmoronar. Por Deus, o corpo inteiro doía. A maizena que tinha espalhado nas escoriações
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das coxas estava úmida de transpiração e embolotava. Não tinha certeza, mas achava que havia arranhado as costas quando caíra de encontro à cerca. — Nossa Rosie tem estado muito ocupada desde que o senhor foi embora. - Peg começou com ar satisfeito. — Tão logo ela nos contou o que queria fazer, Crank e eu nos oferecemos para vigiar Annie enquanto dormia depois do almoço. John tem ajudado bastante. O filho do notário também tenta ser prestativo e já tem conseguido alguma coisa. Difícil passar um dia sem que ele apareça por aqui a fim de verificar o progresso de Rose. Matt suspirou. Inclinado na cadeira, descalçou as botas com os próprios pés e deixou-as ali mesmo. — Vamos, Peg, continue. - disse em tom severo. Peg achou melhor obedecer e limpou a garganta a fim de relatar tudo que Rose tinha feito desde o dia em que o Capitão fora embora. — Tenho certeza de que Matt vai gostar mais de ouvir falar sobre as novas artes de Annie. - ela sugeriu. — Está tão esperta e engraçadinha. Peg fez que não ouviu e tornou a limpar a garganta. Mostrava-se disposto a revelar cada detalhe patético de seu esforço de auto-aperfeiçoamento. — Se bem me lembro, tudo começou quando as mudas de sua horta morreram. Então, tivemos três dias de uma ventania danada, vinda de nordeste. E aí... Perdendo a paciência Rose o interrompeu: — Para encurtar a história... — Como o velho livro diz... - Crank tentou apartear, mas calou-se ao ver seu olhar furioso. — Se quer mesmo saber, Matt, resolvi aprender a velejar e a cavalgar, já que não tinha jeito para jardinagem. Nunca me ensinaram a fazer uma única coisa útil e achei que estava na hora de aprender. É bom você ficar sabendo que, depois de dominar a arte de velejar e de conseguir ficar montada num cavalo, vou aprender a cozinhar. Crank prometeu me ensinar. Lavar roupa, já sei. - concluiu ela com olhar determinado como se o provocasse a fazer algum comentário. Ele passou a mão pela barba sem fazer há três dia enquanto os olhos revelavam decisão. Diabos se ela não era espertíssima. Achava melhor vigiá-la até decidir que atitude tomar a seu respeito. — O que Annie fica fazendo durante esse tempo? — Ela brinca, dorme. É uma criança feliz e não exige mais atenção constante. respondeu ela em tom de desafio e não de explicação. Matt baixou o olhar para a caneca de café escaldante que Crank pusera a sua
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frente. — Pelo que vejo, você está se preparando para seu novo emprego. Um pouco da agressividade de Rose deu lugar à desconfiança. — Meu novo emprego?! — O que arranjar depois de ir embora daqui, quando minha mulher chegar, não vou mais precisar de seus serviços. Com expressão consternada, ela já ia falar, mas mordeu o lábio inferior e permaneceu em silêncio. Se não estivesse tão cansado por ter dormido apenas três horas das vinte e quatro dos últimos dias, Matt talvez sentisse alguma satisfação. Ele a tinha exatamente onde a queria: contra a parede e sem chance de escapar. Mesmo se Rose suspeitasse de sua visita ao escritório de Bagby, em Norfolk, não podia ter certeza do que ele descobrira. Sem dúvida, ela pretendia continuar a farsa. Dois poderiam fazer tal jogo, refletiu ele. — Volte para a cama, Rose. Você está com um aspecto horrível. O que se passou a seguir não foi um motim, mas chegou perto. Carrancudo, Peg resmungou um protesto enquanto Crank balançava a cabeça e dizia: — Ora, Capitão, isso não é jeito de se falar com uma senhora. Rosie, ele não teve a intenção de ofendê-la. O pobre não está com a cabeça no lugar, qualquer um pode perceber. Matt dirigiu-lhe um olhar amedrontador. Entretanto, o velho cozinheiro tinha uma ponta de razão, ele reconheceu. Seria melhor esperar para abrir fogo quando não estivesse tão cansado para acertar o alvo. Crank pôs um prato com peixe ensopado e batatas na frente dele. Peg afastou a chaleira, com a água fervendo, do fogo. Rose levantou-se, deu boa-noite amavelmente aos três e, com os ombros erguidos, dirigiu-se à porta. O efeito não foi tão bom quanto se poderia esperar por causa de seu andar gingado. Não muito tempo depois, Matt deitou-se, certo de dormir no mesmo instante e só acordar quando a fome o forçasse a se levantar. Todavia, continuava com os olhos abertos, lembrando-se da expressão de Rose ao sair da cozinha. Se não soubesse o quanto ela era trapaceira, juraria que tinha ficado magoada. Algo estranho estava acontecendo ali. Os dois velhos tripulantes, que lhe deviam fidelidade no mar ou em terra, estavam metidos no caso. Antes de rumar novamente para o norte, Matt jurou, haveria de descobrir do que se tratava. Rose abriu os olhos, bocejou e espreguiçou-se. Abafou um grito e ficou imóvel. Pouco depois, fez nova tentativa.
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Ai que horrível! Crank a tinha avisado, contando-lhe o que lhe acontecera certa vez. — Um dia, eu estava carregando uma saca de feijão nos ombros, de uns trinta quilos, quando tropecei num gato e caí na escada de tombadilho. Levantei e, se quer saber, trabalhei o dia inteiro. - afirmou com orgulho. — No dia seguinte, não consegui sair da cama. Durante uma semana inteira, não podia me mexer sem sentir dores horríveis. Os efeitos de um tombo sempre pioram antes de passar de uma vez. Não havia nada grave com ela. Nada que uma boa noite de sono não devesse ter curado. Cerrando os dentes, ela forçou-se a levantar da cama, cada músculo protestando atrás do outro. Annie já estava acordada. Completamente molhada e morta de fome, ela teimava em anunciar em altos brados. Matthew estava em casa outra vez. A lembrança a atingiu como uma vaga de maré alta e seu espírito exultou embora o corpo estivesse em petição de miséria. Ele havia se mostrado mal-humorado, mas isso era compreensível. Estava exausto, com as faces barbudas e encovadas, os olhos baços e avermelhados. Ou as rugas tinham se aprofundado ou novas haviam aparecido. Evidentemente, a reaquisição do navio não tinha ocorrido com a facilidade prevista. — Mas hoje, minha querida Annie, é um novo dia. Depois de uma boa noite de sono, na própria cama, seu papai vai se sentir muito melhor. Especialmente quando vir seu sorriso enfeitado com dois dentinhos. Rose não costumava guardar ressentimentos. Bem, talvez de vez em quando, mas nunca por causa de palavras rudes. Naquela manhã o sol brilhava no céu azul outra vez e havia vento suficiente para afastar os mosquitos. Com o corpo dolorido ou não, ela estava mais do que disposta a perdoar e esquecer. Apenas esperava que Matt também se mostrasse generoso. Com movimentos cautelosos, aprontou-se e, depois de pegar roupinhas limpas para Annie, aproximou-se do berço. Ao curvar-se abafou um gemido. — Jamais pense em cavalgar, queridinha. Papai poderá lhe comprar um cabriole e uma égua bonita para você se locomover em grande estilo. Tirou as fraldas molhadas, colocava três para dormir, e jogou no balde. Não entendia como o simples ato de se sentar em cima de um cavalo podia ter consequências tão danosas. Na verdade, não tinha sido assim tão simples. Na primeira vez em que tentara passar a perna por cima da montaria, tinha dado um impulso forte demais e caído do outro lado, chocando-se contra a cerca. O tombo era responsável pelas dores nas costas. Mal contendo o riso, embora preocupado, John havia corrido para ajudá-la. Se
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ele não tivesse concluído que a experiência terminava ali, talvez ela houvesse desistido da ideia de aprender a cavalgar. A segunda vez tinha começado bem melhor. Ela havia conseguido montar e ficar firme nas costas da égua por um minuto inteiro. Então, o animal estúpido saíra na disparada. Sem escolha alguma, a não ser pular para o chão e arriscar-se a ser pisoteada, ela havia agarrado um punhado da crina, junto com a brida, e aguardado o desenlace de sua loucura. Pulava sobre a égua como uma bola de borracha o que, sem dúvida provocara as contusões nas nádegas. John, rindo às gargalhadas, corria atrás e gritava sem parar: — Segure-se bem! — Estou tentando! Segurava-se de todas as maneiras possíveis, com as mãos e as pernas prensadas no corpo do animal. Isso explicava as bolhas nas mãos e as escoriações nas coxas. Quando despencou para o chão pela segunda vez, tinha a impressão de que haviam se passado horas, mas não podia ser mais do que uns poucos minutos. — Não vou desistir. - disse a Annie ao erguê-la no colo e a beijar na curva do pescoço. A menina riu, alegre. Era muito dada e como gostasse de ser acariciada, Rose a beijou novamente. — Porém, da próxima vez, vou passar maizena nas coxas antes de o estrago ser feito. Agora entendo por que os homens andam daquele jeito. Se eu usasse sempre calças ásperas seria forçada a fazê-lo também. Você acha que deveríamos aconselhar seu pai a passar maizena nas coxas antes de vestir a calça? Rose deu banho em Annie, pôs duas fraldas secas, uma camisolinha fresca e um babador. Devia aproveitar o dia ensolarado para lavar a roupa da menina, inclusive a de cama. Seria uma ótima desculpa para adiar os exercícios de montaria. Quanto ao esquife, tinha de esperar até a tarde quando Annie estivesse dormindo. Sandy vinha sempre naquele horário para lhe dar aulas. Ela estava aprendendo como manejar as cordas diferentes que, num barco, chamavam-se espias. Embora tudo fosse muito confuso, velejar ainda não a tinha machucado. — Vamos embora, queridinha, para ver se Crank já aprontou seu mingau. Aposto como seu pai nunca viu uma menina, de seu tamanho, tomar leite na caneca sem entornar a metade. Embora não tivesse em que se basear, exceto na experiência crescente, Rose tinha concluído que Annie era uma criança extraordinária, precoce em tudo. O pobre Billy devia ter sido fantástico. E, sem dúvida, encantador, caso Annie houvesse puxado por ele como Crank e Peg afirmavam.
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— Vamos lá, olhos azuis, você precisa se exibir para o papai. Crank já tinha tudo pronto. Toicinho defumado e ovos mexidos para Rose, mingau e leite para Annie. Agora que a criança teimava em participar do processo, a refeição levava o dobro do tempo. Na cozinha, não havia sinal de Matt. Nem a si mesma, Rose admitiria o desapontamento. — Como está se sentindo? - o cozinheiro perguntou ao sentar-se à mesa com uma caneca de café. — Maravilhosamente bem, obrigada. — De estado de espírito, não é? O corpo deve estar doendo como avisei. Rose fitou-o com firmeza e dirigiu a mãozinha de Annie, que empunhava a colher, para sua boca. Morria de vontade de perguntar se Matt já tinha se levantado, mas não estava disposta a ver o sorriso malicioso de Crank. Em algumas coisas, ele era pior do que Bess. Para esta, o mundo não passava de um palco e ela adorava, mais do que qualquer outra coisa, manobrar os personagens de acordo com a própria vontade. Crank e Peg, tendo decidido que o casamento por procuração de Matthew tinha sido uma das artimanhas de Bess, estavam determinados a arranjar-lhe outra mulher. Logo após a partida dela, Peg havia comentado: — Já faz muito tempo que ele assinou aqueles papéis. Nenhuma mulher apareceu a fim de exigir a posição de esposa. Isso quer dizer que alguma coisa deu errado do lado dela. — Melhor um pássaro na mão do que dois voando. - Crank tinha dito sem fazer segredo sobre o pássaro que Matt segurava. Quando Rose percebeu a intenção dos dois, sentiu-se tentada a revelar-lhes a verdade. Não o fez porque achava seu dever contar primeiro a Matt. Aliás, pretendia fazê-lo assim que pudesse conversar a sós com ele. — Se quer saber se o Capitão já se levantou, Rosie, ele está em pé há algum tempo. Foi cavalgar na praia com aquele cavalo dele. Nem esperou para tomar café primeiro. Fingindo desinteresse, Rose limpou mingau do braço. — Acho que vai fazer sol o tempo suficiente para secar um varal de roupas, não concorda? — Ele a conseguiu de volta, mas em péssimo estado. — O balde de fraldas sujas está transbordando e... - calou-se e o fitou. — Quem conseguiu o quê de volta?
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— O Capitão. Ele trouxe a escuna para o sul, mas a coitada foi tratada de maneira vergonhosa. Peg vai esta tarde a Norfolk para fazer uma vistoria. Naturalmente, Rose teve de ouvir a história inteira. Ficou sabendo como Matt, Luther e apenas mais quatro homens tinham trazido a escuna de Boston a Norfolk. Apesar de terem telegrafado, haviam esperado perto de vinte e quatro horas até ter lugar para atracar. Luther ficara lá à espera de Peg que iria supervisionar os consertos. — Por isso que Matt tinha uma aparência tão... Tão... — Ah, o Capitão está desolado. Muitíssimo infeliz, pode acreditar. Ele ama aquela escuna como se fosse uma mulher. - o velho cozinheiro balançou a cabeça e prosseguiu: — Mas isso não quer dizer que ele não precise de uma esposa. De jeito nenhum. Um homem tem de contar com uma mulher para formar uma família. De nada adianta ajuntar bens materiais se não tiver filhos para deixá-los. E também para substituí-lo quando se for daqui para melhor. O velho livro fala muito sobre isso. Antes que Rose pudesse pensar em algo para responder, Sandy Dixon apareceu na porta aberta de trás. — Ouvi dizer que Powers está de volta e eu não sabia se você gostaria ou não de velejar hoje, Rose. Caso queira e possa, voltarei à tarde quando Annie estiver dormindo. Sem ser convidado, ele entrou e sentou-se à mesa, tomando cuidado para não se sujar com o mingau que a menina havia jogado generosamente na superfície toda dela. As aulas para velejar tinham começado pouco mais de uma semana atrás. Tão logo Rose havia conseguido ficar sentada no barco por um bom tempo sem enjoar, Sandy tinha se oferecido para ensiná-la a manejar o esquife. — Se tiver alguma coisa para ocupar a mente, você se esquecerá do estômago. ele afirmara. Até então, estava dando certo, pelo menos em relação ao terrível mal-estar. Porém, ela não tinha jeito para lidar com aquilo tudo e, provavelmente, nunca teria. Duas vezes, ela quase empurrara Sandy pela borda ao deixar escapar a corda, a espia, também chamada de escota. Isso lhe aumentava a confusão quando ele gritava para agarrá-la. O tal suporte de madeira, ligado ao mastro para prender a parte inferior da vela, tinha girado e lhe batido nas costas antes que ela pudesse segurá-lo. Esse tinha sido um dos muitos pequenos desastres, mas pelo menos, ela não havia passado pela vergonha de enjoar. — Sandy, hoje não é um bom dia para trabalhar no barco, mas obrigada por sua boa vontade. Ontem, comecei a aprender a cavalgar. — E daí? - ele indagou, interessado.
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Sandy Dixon possuía uma maneira afável e estimulante de se relacionar com as pessoas. Ele daria um excelente irmão e estava se tornando um bom amigo. — Digamos que tenho tanta habilidade para cavalgar quanto para velejar. — Tão ruim assim? — Com bolhas e escoriações para provar. Estavam rindo, até Crank os acompanhou uma vez ou duas, quando Matt entrou na cozinha. Olhou de um para o outro, cumprimentou Dixon com um aceno de cabeça, encarou Rose e, então, virou-se para Annie. Rose observou-lhe a reação. Os olhos dele arregalaram-se, mas em seguida, inundaram-se de ternura. Seu coração quase explodiu ao vê-lo ajoelhar-se e segurar uma das mãozinhas pegajosas. — Ela mudou. - disse Matt num tom quase de acusação. — Os cabelos estão mais compridos. E também emplastrados de mingau naquele momento. Annie piscou e o fitou com olhar sério. Mesmo tão sujinha, estava irresistível. Se alguém podia suavizar o coração de Matt, sem dúvida era Annie, Rose pensou. E ela, definitivamente, desejava que o coração dele estivesse o mais brando possível quando lhe revelasse quem era. — E estão começando a encaracolar. - ela disse com orgulho na voz. — Ela também já tem dois dentinhos na frente e, cada vez, aprende tudo mais depressa. Mostre a seu papai, queridinha, como já sabe beber na caneca. Com cuidado e devagar, Rose encostou-a na boca de Annie que, ruidosamente, sorveu um gole e, então, ainda com a caneca junto aos lábios, sorriu. Leite escorreu pelos dois cantos de sua boca, ensopando o babador já sujo de mingau. Com expressão radiante, Rose balançou a cabeça e Peg, orgulhoso, riu. Dixon, entretanto, assumiu ar de indiferença. Quanto a Matt, parecia quase... Bem, ela não saberia dizer, mas os olhos dele exibiam um brilho suspeito. Um minuto depois, novamente com o semblante carregado, ele a informou que a receberia no escritório, para uma conversa importante, tão logo retornasse da vila. Rose pendurava a última fralda no varal quando Peg veio se despedir. Seu olhar passou por ele e parou no lugar onde Matt o esperava com as montarias. Se ela estivera ocupada até então, ele mais ainda. Não haviam se cruzado desde a hora do café da manhã. Peg usava um terno preto, um tanto russo, e um chapéu com aba de couro. Exalava um cheiro curioso de extrato de baunilha. — Cuide bem dele, ouviu bem? O coitado não dorme muito quando está preocupado e, por causa do Swan, não agüenta mais de tristeza. Não deixe que ele se
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irrite. Caso fique muito quieto e deprimido, tente animá-lo. Provavelmente, vai implicar com você, mas não se importe, pois é o jeito dele, apesar dos bons sentimentos. Também é amoroso, mas não gosta de admitir. Não viu a maneira dele olhar para Annie? Tão carinhosa. Sabe, ele precisa de uma mulher para puxá-lo da água quando estiver afundando. Ora, acaba de me ocorrer que você é justamente a mulher capaz de fazer isso. Obviamente, o velho marinheiro se referia a Matt. Confusa, Rose gaguejou: — Mas eu... Ele... Com expressão bem-humorada, mas um tanto acanhado, Peg a interrompeu: — Não fui sempre assim tão feio e tive umas poucas boas mulheres na época certa. Sei do que estou falando, Rosie. A mulher errada, pode destruir um homem, mas a certa é como uma âncora firme num mar tempestuoso. Se o vento soprar com fúria, ela o manterá longe das rochas. O problema é que ele nunca aprendeu a distinguir uma boa de outra ruim. — Mas e quanto... Quer dizer, ele já tem uma esposa. Peg sorriu-lhe com expressão astuta, dando a impressão de que tinha algo mais para acrescentar. Porém, a paciência de Matt esgotou-se. — Com todos os diabos, Peg, vamos embora! Se, quando o barco do Correio der sinal de partida, você não estiver a bordo, vai se ver comigo!
Capítulo XIII
Ela dominava todos completamente, Matt pensou, furioso. Sem uma única exceção, eles a tratavam com a maior docilidade. Caso ele não houvesse ficado a par de sua trapaça, provavelmente também estaria a seus pés. Graças ao bom Deus, tinha descoberto a verdade a seu respeito a tempo. Era tão falsa quanto todas as outras mulheres, inclusive Bess. Se não fosse por isso, talvez ele se visse tentado a... Forçou a mente a abandonar o assunto, que podia esperar, a fim de tratar de outro bem mais urgente. — Peg, consegui que o banco reconheça sua assinatura. Mesmo assim, antes de passar o primeiro cheque, vá até lá para que o conheçam pessoalmente. Temos crédito
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na Madeireira Steven e na Velaria Shoemaker. Luther vai contratar os operários. Não deixe que ele se esqueça de que todos trabalharão diretamente sob a vigilância dele. Ajude-o a procurar homens mais velhos e experientes, mas selecionem com cuidado. Pague gratificações se for necessário, porém, isso fica apenas a seu critério. Arranjem homens de confiança que não bebam, briguem e joguem. — Em outras palavras, devemos juntar um grupo de cantadores de hinos, certo, Capitão?! Sorriu ao ouvir o comentário, mas fez cara de desagrado logo a seguir. Nunca havia conhecido um marinheiro que não bebesse e jogos de azar seriam admitidos até certo limite. Porém, ele não toleraria um valentão provocador. — Os quatro que ele contratou em Boston servem para começar, caso ainda estejam por lá. Peg assentiu com um gesto de cabeça. — Ainda me restam uns poucos anos de serventia. Haveremos de levá-la de volta para alto-mar como no passado, Capitão. — Sou muito grato a você, Peg. - Matt disse, mas ambos sabiam de que lado aquele vento soprava. Depois de mais de quarenta anos de vida no mar, Peg tinha se adaptado surpreendentemente bem em terra. A companhia de Crank e trabalho suficiente para mantê-lo ocupado, o deixavam satisfeito com seu quinhão. Mas se Peg sentia falta da antiga vida, Matt tinha saudade do velho homem que havia trabalhado, primeiro, para seu pai e ajudado a criar e a instruí-lo desde pequeno. Mas nenhum dos dois ousaria expressar o sentimento. — Esses navios modernos de ferro não precisam de carpinteiros. Acho que o trabalho da metade da tripulação vai ser raspar a ferrugem. - Peg comentou. — Não deve ser mais difícil do que manejar a zorra a fim de esfregar o tombadilho de madeira com areia. Mas você está certo. Os tempos estão mudando. Matt concordou. As duas éguas, a linda de Peg e a magricela de Matt, marchavam com dificuldade pela areia fina e fofa. Se a maré estivesse baixa, eles teriam ido pela praia e cavalgado bem mais depressa. Porém alta, chegava até as dunas, obrigando-os a fazer o trajeto pela trilha cheia de sulcos. — Muito tempo atrás, eu imaginava que o senhor conseguiria ter uma frota de navios mercantes. - Peg confessou. — Exatamente o que eu planejava. - admitiu Matt. Ele havia herdado o sonho do pai quando o velho Powers se aposentara.
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— Comece com um bom navio, uma tripulação competente e reze para ter um pouco de sorte, filho. Empregue seus lucros em algo que possa render, conquiste uma reputação de honestidade e presteza. Depois de alguns anos, você terá o suficiente para investir num segundo navio. - o pai costumava aconselhá-lo. E depois, um terceiro. Matt havia expandido o sonho depressa. Escunas pequenas e velozes, projetadas especificamente para o transporte de carga das índias Ocidentais para todos os portos ao longo da costa americana. Não era um sonho pretensioso, mas até modesto, numa era em que grandes navios velejavam rumo a portos nos quatro cantos do mundo. Ele havia, sim, herdado o sonho do pai, bem como o nome e a reputação respeitada e digna de confiança. Sentia orgulho por nunca tê-la manchado. Felizmente, tão logo vendera o Black Swan, tinha anunciado, pelos jornais, que a escuna não estava mais ligada ao nome Powers. Quando o sonho começara a esmaecer?, indagou-se enquanto cavalgava ao lado de Peg. Teria, algum dia, sido realmente dele? Depois de quatro anos de insatisfação em terra firme, as indagações surgiam que ele tinha nascido e sido criado no mar e, até o dia em que havia provado seu valor e merecido o posto de imediato, o pai o tratara como um membro qualquer da tripulação. A linha invisível entre um Capitão e seus tripulantes, vital para manter a ordem adequada de comando, tinha apartado o filho do pai. Aos oito anos de idade, quando a mãe havia desertado o navio, Matt passara a dormir e a comer com os outros tripulantes. Não esperava atenção especial do pai que não lhe dispensava nenhuma. A tripulação tinha se tornado sua família, Crank e Peg ocupando o lugar de pai. Eles o castigavam quando se fazia necessário e o protegiam contra a má influência de indivíduos perniciosos até que ele aprendesse a cuidar de si próprio sob esse aspecto. Matt tinha assumido seu primeiro comando no ano em que o pai se aposentara. Quase todos os homens que haviam velejado com o velho Powers, alistaram-se com ele. Ainda o acompanhavam, dois anos mais tarde, quando ele adquirira o Black Swan. Marinheiros bons, dedicados, todos eles. A essa altura, Matt já tinha descoberto, por experiência própria, a necessidade da parede invisível entre o Capitão e seus tripulantes. Fora durante os quatro anos passados em terra que a tal parede havia desmoronado, tijolo por tijolo. O ultimo fragmento tinha caído quando Billy fora assassinado. Desde aquele dia, Matt nem havia tentado manter a mais leve sombra de hierarquia. Isso não lhe teria proporcionado benefício algum, especialmente levando-se em consideração os dois velhos companheiros que o conheciam desde que engatinhava seminu pelo tombadilho. Depois de ter jogado fora estupidamente tudo que duas gerações dos Powers haviam construído, só agora Matt começava a se dar conta do que tivera realmente
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valor. Não era o navio que havia comandado mas os homens que tinham se mantido a seu lado. Isso queria dizer, que Deus o ajudasse, que as regras obedecidas a vida inteira, talvez não pudessem mais ser aplicadas. O barco do Correio já estava partindo quando Peg jogou a mochila no tombadilho e pulou atrás, a agilidade disfarçando-lhe a idade avançada e a saúde um tanto debilitada. — Volto assim que fizer uma inspeção completa. - gritou por sobre a faixa de água que se alargava. Distraído, Matt acenou. A mente estava dividida entre a baía de Norfolk e Powers Point. Em circunstâncias normais, ele mesmo supervisionaria os consertos do Black Swan. Verificaria os mínimos detalhes, desde cada prego enterrado no casco, ou metro de madeira usado nele, e cada centímetro de calafetagem entre o entabuamento. Era sua obrigação como proprietário e Capitão da escuna. Mas as circunstâncias estavam longe de ser normais, disse a si mesmo ao virar-se a fim de voltar para casa. Ele não só tinha uma filha adotiva, cujo bem-estar dependia dele, como também uma esposa. Uma, aliás, de quem estava se descartando, mas que deveria cuidar de Annie para que ele pudesse reassumir a profissão. Todavia, ele se via de mãos atadas, incapaz de governar o barco na rota certa, não importava a direção do vento. Sabia o que tinha de fazer. Também não ignorava que não enfunaria as velas com facilidade. Bastaria olhar pela janela e vê-la pendurando roupa no varal, enquanto o vento sopraria seu vestido contra o corpo, delineando-lhe as curvas tentadoras. No mesmo instante, a excitação o dominaria. Com todos os diabos, só de imaginar a cena, mal se controlava. Após a conversa com Bagby, ele tinha se convencido que Rose agira propositadamente. Desde então, ele havia tido tempo para refletir e já não estava tão certo disso. Poderia a melhor atriz do mundo representar um papel, vinte e quatro horas por dia, por tanto tempo? Não cometeria algum deslize sem querer? Rose não era artista de teatro e não se traíra uma única vez. Na primeira semana, ela havia sido de uma timidez impressionante e parecia ter medo da própria sombra. Aos poucos começara a se ambientar na casa, em grande parte, por causa de Annie. Não importava o jogo que fazia, ela o aliviara bem da preocupação com a criança, via-se forçado a admitir. A primeira vez que a tinha ouvido rir, ele ficara estático. Quem poderia imaginar que uma mulher, de semblante tão taciturno e que usava os vestidos pretos
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mais horrorosos possíveis, seria capaz de emitir um som tão límpido como o da água de um riacho borbulhando nas pedras? Não muito tempo depois, ela havia começado a cantar para Annie. Matt se apanhava parado a sua porta para ouvi-la. Poderia Rose saber que ele estava lá? Cantaria de propósito? Então, ela adquirira o hábito de costurar no terraço, porque a luz era melhor. Ou seria para que ele levantasse o olhar do que fazia no escritório a fim de espiá-la pela janela? Observar sua maneira de franzir a testa e morder o lábio inferior? Havia imaginado que ela costurava lá porque precisava de óculos, mas talvez fosse por fingimento. Matt não podia contar as noites que tinha passado acordado, queimando e latejando de desejo enquanto maldizia a própria fraqueza. Repetia sem cessar que Rose era uma mulher de respeito, amiga da tia, e ele, um homem casado. Sem dúvida, ele havia querido comprometê-la. Expor cada maravilha escondida do corpo, explorar as curvas delicadas, as saliências macias, os tesouros secretos... A égua torceu as orelhas quando ele, em tom furioso, começou a praguejar. A de Peg, amarrada à sela da sua, acompanhava-os tranquilamente. Pouco depois, ele acrescentou: — Maldita sua língua mentirosa, Sra. Littlefield! Pensar que, todo aquele tempo, havia cobiçado a mulher que poderia, ou melhor, com quem tinha o direito de deitar-se. Rose teria se divertido ao atormentá-lo dessa forma? Não poderia ignorar o estado em que ele se encontrava muitas vezes. Impossível um homem esconder a excitação do corpo. Além do mais, ela já havia sido casada, a não ser que se tratasse de outra mentira. Esperava que a desgraçada houvesse rido o suficiente à custa dele porque, sem dúvida alguma, ele riria por último. Ao se aproximar de Powers Point, o topo das construções delineado acima da sempre presente bruma marítima, Matt refletiu sobre o rumo a tomar. Se lhe contasse tudo que descobrira a seu respeito, não teria escolha a não ser mandá-la embora imediatamente. Nesse caso, ele se encontraria no mesmo ponto onde essa corrente de eventos desastrosos tinha começado. A necessidade de encontrar uma mulher para cuidar de Annie, uma em quem pudesse confiar, o manteria preso ali. Por mais que detestasse admitir, continuava precisando de Rose. Pior, ele a desejava mais do que nunca.
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— Situação infernal. - resmungou. — É como se eu tivesse sido atirado contra os recifes. Minha escuna mal consegue flutuar, minha propriedade está hipotecada e eu me encontro casado com uma mentirosa sem-vergonha. A única luz no horizonte escuro era Annie. Matt nem tentou definir os sentimentos pela filha de Billy. Apenas sabia que, no primeiro dia, talvez no segundo ou no terceiro, o pequenino ser humano havia se apossado de um pedaço de seu coração que jamais fora perturbado. Não importava o que fosse preciso fazer para garantir-lhe o bem-estar, ele não hesitaria. Mesmo que significasse aceitar a presença de Rose em casa. Enquanto seguia para o cercado das éguas, analisou as duas opções que se ofereciam a ele. Poderia confrontar a mulher com a verdade e vê-la se contorcer para escapar do emaranhado de mentiras. Ou poderia fingir que ignorava sua falsidade e ver até que ponto ela iria. Ainda sem chegar a uma conclusão, Matt desencilhou as duas éguas e escovou-as. Ao olhar para o céu, calculou passar um pouco das quatro horas. Por volta das cinco, Crank já teria terminado o jantar. O estômago roncou, lembrando-o de que não havia tido tempo para almoçar. Deveria atracar-se com a adversária com ele vazio? O vento soprava de sudeste, carregado de umidade depois de haver percorrido milhares de quilômetros sobre as águas quentes do Atlântico Sul. — Vento ruim. - o velho contramestre de seu pai o chamava. Jerome Guidry, falecido uns dez anos atrás, carregava mais amuletos do que um mascate cigano. Ele costumava avisar os tripulantes para evitar brigas quando o vento vinha do sudeste, alegando que, invariavelmente, ele provocaria derramamento de sangue. Matt nunca dera importância a superstições, todavia, não faria mal algum esperar uns dois ou três dias para executar seu plano. Diabo, nem tinha feito um. Seduzir a mulher e, depois, mandá-la embora não era um plano e sim a provocação de uma catástrofe. Molhado de transpiração da cabeça aos pés, ele encheu a concha com água da gamela de madeira e jogou-a nos ombros, deliciando-se com a frescura temporária proporcionada pela camisa molhada. Virou-se em direção da casa, mas antes de caminhar muitos passos, ouviu o som de riso vindo do lado do braço de mar. O riso de Rose. Ele o reconheceria em qualquer lugar. Ela já havia passado quase dois meses ali antes de começar a rir, desinibida. Mas agora, era um som familiar demais. E, por alguma razão, ele o deixava furioso.
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Depois de colocar a cesta de Annie no único lugar com sombra sob o carvalho retorcido, Rose conformou-se em ficar ao sol. Coçava discretamente as várias picadas de mosquito enquanto observava como os dois rapazes tentavam se superar mutuamente. Embora divertida, sentia uma ponta de tristeza ao lembrar-se da época em que daria uma recompensa digna de um rei para ser alvo do esforço de apenas um rapaz para cativá-la. A única coisa pior do que ser sem graça, desajeitada e não ter a mínima noção de elegância, era ser inteligente o bastante para perceber isso. Para tristeza sua, havia sido tudo isso. Como eram jovens, ela pensou ao observar os dois rapazes atraentes que se exibiam como dois menininhos nos brinquedos de um parque. E tão atenciosos. Sandy, aos vinte e dois anos, era dois mais novo do que ela, mas tentava aparentar mais. John, provavelmente, tinha a mesma idade sua, porém, por causa do aspecto sério e do rosto marcado pelas intempéries, parecia mais velho. — Preste atenção, Rose. - Sandy gritou. — Vou atirar a linha de escarpa em volta daquela pilha de pedras. Sem nada melhor para fazer, Rose o tinha acompanhado ao cais a fim de vê-lo dar vários tipos de nó. Ele havia se oferecido para carregar a cesta de Annie que, cada dia, ficava mais pesada para ela. Então, John tinha aparecido, cavalgando uma égua que, segundo ele, fora apartada da manada brava que vagava pelas ilhas. — Faz menos de duas semanas que a peguei e ela já aceita a sela. - contou com uma ponta de orgulho naquela voz calma tão peculiar dele. Rose admirou a égua e, depois, virou-se a fim de observar a habilidade de Sandy para atirar a corda sobre as pedras. Depois, viu-o dobrar os pulsos com precisão e, então, recuar para mostrar-lhe o que lhe pareceu um nó bem comum. Naturalmente, aplaudiu. Na cesta, Annie riu e abanou a mãozinha para uma borboleta. John resmungou qualquer coisa antes de perguntar: — Gosta de truques com cordas? Que tal este? Ele girou um laço duas ou três vezes sobre a cabeça e, então, deixou-o voar. Ele passou pelo rosto atônito de Sandy e parou em volta da cintura. Foi mais a expressão de Sandy que impediu Rose de se conter. Ela ria tanto que nem percebeu quando Matt se juntou a eles, o som dos passos abafados pela areia macia. — Se não tem nada melhor para fazer, madame... Apanhada de surpresa, Rose virou-se depressa demais, prendeu o pé numa raiz
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de capim e estendeu os braços a fim de se equilibrar. — Ora, que maneira mais furtiva e desprezível de se comportar! - exclamou. Sua reação intempestiva não era tanto pelo fato de Matt a ter assustado e sim por encontrá-la desarrumada, com parte dos cabelos soltos da trança e o rosto molhado de transpiração. Pretendia já ter tomado banho e posto seu melhor vestido quando ele chegasse de volta da vila. Matt havia dito que queria conversar com ela no escritório, ocasião em que, jurava, revelaria a verdade toda. Contudo, não era hábito seu falar daquela maneira rude. Não entendia por que o fizera. Culpa do calor, talvez, e da consciência pesada. Com expressão séria, respirou fundo. — Desculpe-me, por favor. Já vou voltar para casa com Annie. Tão logo lhe dê uma mamadeira e tome um banho, irei vê-lo no escritório, caso possa me receber. Constrangido e desapontado, Sandy tirou o laço pelos ombros, dirigiu um olhar furioso para John e resmungou algo sobre vir vê-la no dia seguinte, no horário habitual. John, com a expressão indecifrável de sempre, enrolou o laço e prendeu-o na sela. Ignorando Matt, disse a Rose: — Mande me avisar quando quiser outra aula. Ela suspirou e agradeceu aos dois rapazes. Por que havia imaginado que aprender a velejar e a cavalgar ajudaria a melhorar sua situação? Viu Matt pegar a cesta de Annie e, com passos firmes e rápidos, dirigir-se para casa. Tinha os ombros eretos enquanto as pernas longas e musculosas transpunham o terreno cheio dos perigos bem conhecidos seus. Num misto de medo e de expectativa, começou a escolher o caminho entre os cactos, os carrapichos e enxames de mosquitos, sem dúvida, atraídos pelo cheiro de sua transpiração. Desta vez, mesmo que tivesse de amarrá-lo à cadeira para ouvi-la, ela contaria tudo a Matt. Desde o início até o fim, jurava. Bem, talvez não tudo. Se depois ele a mandasse embora, iria sem protestar. Porém, passaria o resto da vida lamentando a perda de mais um sonho. O sol acabava de se esconder atrás de nuvens, produzindo um reflexo sulfúreo nelas, quando Rose apareceu à porta do escritório. Matt a tinha deixado aberta na esperança de apanhar qualquer brisa que soprasse. Seu antepassado Powers, que construíra a casa, devia ter sido bem inteligente. Ele a tinha projetado de maneira que pudesse aproveitar ventos de qualquer quadrante e também a uma boa altura do solo a
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fim de evitar as ressacas. Isso ajudava ainda a se beneficiar da mínima brisa. Às vezes, nem isso era suficiente para aliviar o calor opressivo. Mas, agora à tardinha, o vento vinha cada vez mais só do leste e não de sudeste. Com um pouco de sorte, se juntaria ao do norte, trazendo algum alívio. — Entre. - Matt disse sem levantar os olhos de um papel na escrivaninha. Ele havia tomado banho e posto uma camisa limpa de linho, porém, já transpirava bastante. Calor infernal. Pior do que o da zona das calmarias equatoriais. — Você queria conversar comigo? - Rose murmurou ao entrar. Apertava as mãos cruzadas com tanta força que ele podia ver as juntas dos dedos esbranquiçadas. — Eu também desejava lhe contar algo. Sabe... — Sente-se. - ele disse, interrompendo-a. Lilás. Diabo, porque tinha de estar com o maldito perfume? Não bastava parecer ter se refrescado com um bom banho, exibir um vestido bonito e os cabelos bem penteados? Viu-a acomodar-se numa cadeira de encosto alto e endireitar os ombros. Ele já tinha resolvido contar-lhe que mandara Bagby anular o casamento e, em seguida, contratá-la novamente para cuidar de Annie. Porém, talvez fosse mais interessante provocá-la por algum tempo e ver até que ponto ela iria. Por isso, Matt aguardou calado. Rose respirou fundo, fechou os olhos por uma fração de segundo e disse de supetão: — Sou a mulher com que você se casou. Por procuração, quero dizer. Jamais tive a intenção deliberada de enganá-lo, mas, entenda, eu não queria me casar novamente. Já o fiz uma vez e... Bem, isso não é importante. O que realmente tem valor para mim é meu amor por Annie. Eu gostaria de ficar com ela. Rose, obviamente, esperava por uma reação. Matt cruzou as mãos, com os dois indicadores erguidos juntos e apoiados nos lábios, mas sem desviar o olhar penetrante de seu rosto. Tinha visto homens valentes tremer diante de tal olhar. Se amedrontava Rose, ela não demonstrava. Distraída com a própria história, provavelmente. — Continue. - ele disse. — Claro, bem, entenda, eu precisava trabalhar e não encontrava emprego. Por isso, quando Bess disse que o sobrinho procurava uma mulher para ajudá-lo a cuidar de um bebê e me ofereceu tal trabalho, aceitei. Porém, ela achava que não seria apropriado uma viúva ainda jovem morar numa casa cheia de homens. Então... Ela parou a fim de respirar, mas disposta a prosseguir. Mesmo sabendo que Rose havia mentido através de seus dentes lindos, desde o momento em que cambaleara da carroça em frente da casa, Matt tinha de admirar sua
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maneira de fitá-lo bem dentro dos olhos. Não parecia a de uma pessoa falsa. — Bem, ela sugeriu o casamento e eu concordei. Tão logo assinei o livro, me arrependi e comuniquei ao Sr. Bagby minha vontade de voltar atrás. Ele afirmou que era tarde demais. Porém, ainda segundo ele, eu poderia impor minha vontade no futuro desde que o casamento não tivesse sido... Quer dizer, se nós não houvéssemos... Naturalmente, nós nunca fizemos aquilo, portanto... Vendo seu rubor espalhar-se do decote ao rosto, Matt imaginou se também tomaria conta do corpo inteiro. — Não fizemos? — Claro que não . - ela respondeu depressa. — Em todo caso, nós... Isto é, você... Quero dizer, caso você quisesse... — Ah, quero muitíssimo e o farei, madame, antes que esta farsa termine. Em minha opinião, devemos isso um ao outro. Capítulo XIV
Naquela noite, não, Matt decidiu. Melhor esperar até conseguir olhar para Rose sem se sentir bravo, traído. Da outra vez em que tinha perdido a cabeça por causa de uma mulher, os resultados haviam sido desastrosos. Também, era honesto o suficiente para reconhecer que Rose o afetava de uma maneira em que Glória jamais o fizera. Sendo um homem cauteloso, achava melhor esperar até que a rota ultrapassasse os bancos de areia, os recifes submersos e qualquer outro perigo. Como Capitão, seu sistema fora sempre aplicar o castigo imediatamente depois de a responsabilidade ficar esclarecida, em vez de deixar que o culpado passasse dias imerso no medo e na incerteza. Porém, jamais o fazia se ainda estivesse dominado pela raiva. Orgulhava de ser um homem justo e não, vingativo. A culpa de Rose ficara estabelecida sem a menor sombra de dúvida. Ela mesma havia confessado, caso aquela exposição desconexa pudesse ser considerada confissão. Que castigo poderia ser mais adequado do que interpretar suas palavras ao pé da letra? Tratá-la como um marido o faria? Isso não seria uma atitude de defesa e, muito Menos, de represália. Mas por enquanto, não. Não até que pudesse pensar, no que ela havia feito sem ter vontade de torcer-lhe o pescoço delicado. Inquieto, olhou pela janela e viu a lua que surgia, deixando um rastro prateado na superfície da água. Haveria algo mais lindo, criado por Deus, do que o luar refletido
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na água? Logo, ele estaria livre para partir e seguir esse caminho luminoso até o horizonte e muito além. Mas primeiro... Primeiro, ele se livraria daqueles dois presunçosos. Enquanto estivesse em Powers Point, ele mesmo cuidaria dos animais. E se Rose queria aprender a velejar, ele a ensinaria. Seria bem mais competente do que um emergente funcionário de escritório, de paletó e gravata. Desde que não pensasse sobre a questão, ela não se afligiria. E se ficasse sentada ali na cadeira de balanço, aconchegando Annie entre os braços, com o olhar perdido na trilha de luar na água, ela conseguiria passar horas sem pensar. Por minutos inteiros... Em algum lugar da casa, um relógio começou a bater. Uma vez por outra, enquanto o calor do dia desprendia-se da velha construção, ela estalava, um ruído familiar que Rose achava, por alguma razão, reconfortante. Muito bem, você lhe contou. Ele não a mandou embora. E agora? Ela simplesmente não sabia. Não ignorava que Matt precisava dela e não apenas pelo bem de Annie. Tinha certeza absoluta de que ele a desejava e do quanto ficava furioso consigo mesmo por causa disso. Com o tempo e a experiência, mesmo a mulher menos esperta aprendia a reconhecer certas indicações. Robert tinha querido apenas seu dinheiro. Mas pelo fato de ela ser mulher e de ficar à disposição após o casamento, ele a tinha usado sexualmente quando lhe convinha aos propósitos. Ela aprendera a reconhecer-lhe a intenção. Matt queria seus serviços pelo bem de Annie, mas também lhe desejava o corpo. Só Deus sabia o quanto desejava o dele. Porém, ela queria mais do que o corpo de Matt. Esse tipo de relacionamento nunca realmente lhe exercera atração. Não sabia incrementá-lo, tinha ouvido o primeiro marido se queixar com freqüência. Acabara acreditando ser verdade. Ela queria aqueles raros sorrisos que Matt oferecia a Annie, algumas vezes a Crank e Peg, mas jamais a ela. Queria-lhe a fortaleza de espírito quando sua coragem começava a fraquejar, a bondade inata que o instigara a adotar uma criancinha recém-nascida, embora não fizesse a mínima ideia de como poderia criá-la. Queria aquele traço de meiguice que Matt lutava tanto para esconder. O que não queria era a raiva dele. Não até adquirir a própria resistência. Vinha se esforçando e iria consegui-la e, a cada novo feito realizado, sentia autoconfiança crescer.
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Ai, mas acima de tudo, almejava que Matt a amasse. Pelo menos, um pouco. Queria que ele a achasse linda, corajosa e interessante, enfim tudo o que ela não era. Ora, você não quer muito, não é, Augusta Rose? Zombou para a lua. O dia seguinte amanheceu chovendo. Eram pancadas leves e intermitentes que prometiam passar mas continuaram pelo dia afora. Cansada de esperar pelo sol, Rose lavou as roupinhas de Annie numa tina no terraço de trás, ferveu-as no fogão e as pendurou no varal do sótão. Precisava embainhar mais fraldas. Três dúzias já não eram mais suficientes. Annie estava manhosa. Como Rose achasse que um novo dentinho estava para nascer, massageou sua gengiva inchada com mel. Pensou em misturar umas gotas de conhaque nele, mas não se atreveu. Com Matt vigiando cada movimento seu, ela pisava em ovos. — Quero levar o berço de Annie de volta para o quarto dela. A menina precisa aprender a ser independente. - ele tinha lhe comunicado antes do café da manhã. Rose, interpretando as palavras como acusação, havia se colocado na defensiva. — Tenho a firme intenção de ensiná-la a ser independente, mas você não acha que ela é muito novinha para começar a aprender? — Não, não acho. — Sei, mas eu... - Rose já ia dizer que discordava, porém, se conteve, temendo iniciar uma discussão inútil e fora de propósito. — Provavelmente você está certo. Pedi a Crank para mudar o berço para meu quarto porque seria mais fácil caso Annie acordasse durante a noite. E também porque gosto de tê-la por perto. — Não me diga que você tem medo do escuro. — Não tenho medo de nada. - ela afirmou, mas ao lembrar-se de haver prometido a si mesma ser honesta em tudo dali em diante, acrescentou: — Bem, sinto um pouco de medo de raios e estou tentando perdê-lo. Para ser sincera, também não gosto de cobras e aranhas. John prometeu me mostrar as perigosas e as que são nossas amigas. — Nossas amigas?! Matt começava a se divertir com a conversa. Porém, Rose era do tipo conciliatório e ele não podia permitir que o influenciasse. Poderia acabar gostando dela. Isso lhe atrapalharia o plano de seduzi-la e, depois, a desmascarar. — Cobras comem camundongos que eu detesto. Sapos e lagartos se alimentam de mosquitos de que eu também não gosto. Mas cobras comem, ainda, sapos e lagartos, por isso, não sei a que conclusão chegar. - ela comentou. — Elas também comem passarinhos. Especialmente os que ainda não sabem voar
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e ficam no ninho. Espantada, Rose o fitou com os olhos arregalados, mas se recuperou depressa. — Eu sabia disso, claro. Em certas coisas, prefiro não pensar. - explicou com dignidade. Matt tinha a impressão de estarem fazendo um jogo. Aliás, agradável, razão para interrompê-lo. Ele nunca tivera muito jeito para esses malabarismos mentais, de duplo sentido, especialmente com mulheres. — Tenho certeza que, de fato, você não pensa nelas. - afirmou e saiu da cozinha sem esperar por outra palavra sua. Ele quase podia sentir seus olhos acompanhando-o. Aqueles olhos de gata, mais amarelos do que castanhos. Seus cabelos também tinham a mesma tonalidade, especialmente agora com as mechas claras, adquiridas por ela passar tanto tempo ao sol sem chapéu. Ansioso para se ver longe dali, a fim de poder refletir sem ser perturbado, saiu pela porta da frente, batendo-a com estrondo, e desceu os cinco degraus da escada de uma vez só. Rumou ao estábulo e, poucos minutos depois, cavalgava Jericho em pêlo pelas areias úmidas da praia. Uma chuva leve grudava-lhe a camisa às costas e os cabelos ao couro cabeludo. — Mulher doida! - resmungou. voz.
O garanhão, antecipando entrar na água, nem mexeu as orelhas ao ouvir-lhe a
— Como você tem a companhia de seis, embora separadas por uma cerca, qualquer conselho seu seria bem-vindo, companheiro. E assim o dia se arrastou. Rose conseguiu manter-se ocupada. Infelizmente, as tarefas que exigiam suas mãos, deixavam-lhe a mente livre para encher-se de conjeturas. Em honra ao retorno de Matt, Crank preparou um de seus pratos preferidos para o jantar: filés de linguado assados com batatas, cebolas e fatias finas de toicinho defumado. Rose não tinha a menor fome. Também não apreciava a beleza que se podia ver pela porta aberta da cozinha. A chuva havia parado, o céu estava limpo e uns fiapos de nuvens coloridas anunciavam o pôr-do-sol. Ela amassou peixe e batata juntos e ajudou Annie a comer sozinha. Depois, segurou a caneca para que ela bebesse leite e não percebeu quando Crank provocou-lhe o sorriso enquanto a menina ainda o tomava. Naturalmente, o leite escorreu pelos cantos da boca até o babador, aumentando a necessidade de um banho.
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Matt tinha arrumado o prato e ido comer no escritório. Desde o retorno, ele quase não fazia as refeições na cozinha. Obviamente, não a perdoara por tê-lo enganado. Ou então, estava resolvido a não continuar casado e procurava uma maneira delicada para informá-la. Ora, desde quando o Capitão Powers se dava ao trabalho de ser delicado? O mais provável era estar procurando alguém para cuidar de Annie. — Pois muito bem, veremos se conseguirá, não é, queridinha? - Rose murmurou enquanto limpava-lhe o queixo. Em seguida, preparou outra colherada. — Ela está crescendo como massa de pão, não acha? - o velho cozinheiro perguntou com um sorriso de orgulho. — Como uma criança linda e saudável. - Rose o corrigiu em tom distraído. Algum tempo depois, Rose levou a cadeira de balanço de volta para o quarto de Annie. Embalou-a para que adormecesse e continuou ali até escurecer e as primeiras estrelas pontilharem o céu. Com toda a certeza, ele não viria procurá-la na cama. Havia ralado os nervos à toa. Passara o dia inteiro sobressaltada. Desde o instante em que Matt tinha saído para cavalgar Jericho, ela ficara esperando que a espada caísse em sua cabeça. Se ele não tivesse ido jantar no escritório, a portas fechadas, talvez ela o tivesse seguido. Mas nesta casa, onde o conforto dependia da circulação livre do ar, uma porta fechada tinha de ser respeitada. Depois de a chuva passar, o ar ficara completamente parado. Rose havia tomado banho de manhã, mas depois de dar um em Annie e de prepará-la para dormir, tinha tomado outro. Usara o resto do sabonete com perfume de lilás. Era sua esposa. Se ele viesse, tinha esse direito. Caso a desejasse, não haveria o que discutir. Porém, se Matt não a procurasse, o orgulho a forçaria a ir embora, pondo um final numa história triste. Ele veio. Rose usava sua camisola mais fina porque a noite estava muito quente e não por ser a mais bonita. Havia respingado água perfumada de lilás nos cabelos, antes de escová-los, porque era refrescante e não por qualquer outro motivo. E mentia a si mesma porque não se atrevia a admitir o fato de haver se apaixonado pela primeira vez na vida. E sentia-se apavorada com a ideia de que Matt não pudesse amar uma mulher sem atrativos físicos, pobre e com tanta espinha dorsal quanto uma lesma. Uma mulher que tinha vivido uma mentira por um bom tempo.
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Rose acabava de se deitar quando Matt apareceu à porta do quarto. Ele havia trocado de roupa. Em vez da calça de brim e da camisa velha de algodão, usadas quando lidava com os animais, ele estava com uma camisa branca de linho e uma calça preta que lhe vestia as pernas como uma luva. — Você deseja alguma coisa? - ela perguntou numa voz que lembrava uma dobradiça enferrujada. — Você alegou ser minha esposa. Achei que podíamos estabelecer o relacionamento conjugal antes de eu ir embora outra vez. Ele aproximou-se da cama. A luz amarelada da lamparina iluminava-lhe o rosto de feições bem delineadas. Decidida a não se sentir intimidada, Rose conseguiu dizer: — Você não precisa... Quer dizer, não espero que você... — Rose. - disse ele em voz baixa, mas firme. A sua mal se ouviu. — O quê? — Passe para a beirada. Ela afastou-se o máximo possível, sem correr o risco de cair da cama. Hipnotizada, viu Matt, sob a luz da lamparina, despir a camisa, desabotoar a calça e, com movimentos deliberados, baixá-la pelos quadris estreitos. Ele não usava roupa de baixo. Em vão, Rose tentou desviar o olhar do centro escuro do vértice das coxas musculosas. O membro mostrava-se orgulhosamente ereto como se tivesse vida própria. Ela sentiu a boca seca. Depois dos primeiros meses do casamento com Robert, ela passara a considerar o pênis como uma arma. Curiosamente, não estava com medo de Matt. O que a afligia era sua própria reação. Matt a deixou olhar à vontade. Era um homem simples e sem a pretensão de exibir maneirismos. Se isso não a agradasse, ela deveria ter percebido logo no início e voltado no primeiro barco, deixando-o em paz, em vez de haver ficado até que ele... Até que ele houvesse se acostumado a sua presença. Agora, já tendo enfrentado a raiva, pretendia levar o tempo necessário para lhe proporcionar prazer. Por que precisava ver seus olhos escurecer de paixão, ele não sabia responder. Questão de orgulho, talvez. Ela havia se controlado por tempo suficiente, mantendo as opções em aberto. Isso ainda o exasperava. Ela o tinha tapeado e merecia sofrer um castigo. Haveria de sentir a satisfação plena da paixão e, então, seria abandonada. Mas na verdade, ele não tinha certeza da própria habilidade para proporcionar prazer a uma mulher de respeito. As outras, as do único tipo com quem se deitara, sempre tomavam a iniciativa. Eram pagas para se retorcer e gemer, sentindo prazer ou não. Quanto mais depressa se livrassem de um freguês satisfeito,
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mais depressa atenderiam o seguinte. Ele estava com quase quinze anos quando Peg o levara, pela primeira vez, a um bordel. Contando com o salário de oito semanas de trabalho e com as doações dos companheiros para a causa, ele havia passado a noite inteira e parte do dia seguinte lá. Apenas à tardinha, tinha voltado trôpego para o navio. Mas com um sorriso que ia de orelha a orelha. E passara vários dias sorrindo só de pensar na experiência. Sentou-se a seu lado na cama, encostado na guarda. Rose, imediatamente, fez o mesmo. — Você prefere ficar por baixo ou por cima? - ele achou por bem perguntar. Com a proximidade de seu corpo quente e o perfume de lilás, estava ficando difícil lembrar-se da raiva. — Como você achar melhor. — Bem, sou muito pesado e não quero que você se sinta desconfortável. - ele disse quase sem abrir os lábios. Já se sentia, Rose pensou, pois continuavam sentados, lado a lado, encostados na guarda de ferro. Não tinham pensado em guarnecê-la com os travesseiros. O pé de Matt roçou o seu e ele teve a impressão de ser atingido por uma faísca. Respirou sôfrega e ruidosamente. Com todos os diabos, por que não se apossa dela de uma vez? Acabe logo com essa história. — Nós poderíamos esperar. - Rose sugeriu em tom hesitante. — Não existe uma lei que nos obrigue a fazer isso se você não estiver disposto. — Poderíamos também discutir a noite inteira, mas não vamos. Matt virou-se de repente, segurou-a pelos ombros e a forçou a ficar de frente para ele. Os dedos a apertavam com força, mas ao ver sua expressão assustada, ele os afrouxou e, desajeitado, alisou a pele como se quisesse aliviar-lhe a dor. Matt jamais tivera a intenção de machucá-la. Porém, havia passado o dia no auge da excitação. Caso não se satisfizesse logo, acabaria perdendo o controle. Ou a maré alta. Então beijou-a. Já tinha feito isso antes e gostado um pouco demais. Era um começo. Muito mais do que isso. Era o suficiente para espalhar-lhe a lucidez pelos quatro cantos do mundo. O perfume de sua pele invadia-lhe os sentidos, a essência floral misturada, agora, com algo pungente e exótico.
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Ansioso por experimentar seu sabor, forçou a boca para que ela abrisse a sua. Guiado mais pelo instinto do que pela experiência, iniciou uma exploração meticulosa. Usou os dentes delicadamente e a língua de maneira sensual, os movimentos seguindo o latejar do pênis. Em algum momento durante o beijo, ele a fez deitar-se, acompanhando-a, mas sem interromper a união das bocas. A camisola retorcia-se sob seu corpo e ele tentou tirá-la. Como não conseguisse, afastou a cabeça e disse: — Assim não posso. Deveria ter baixado a luz da lamparina, pensou Matt. Ao vê-la com os lábios úmidos e marcados pelo beijo profundo, os olhos sombreados fitando-o, ele teve de pensar no plano inicial: possuí-la e, depois, lhe contar que havia mandado anular o casamento. Com mãos trêmulas, ele a fez sentar-se, puxou a camisola de sob suas nádegas e a tirou pela cabeça. — Não faça isso. - disse ao vê-la cruzar os braços sobre os seios e encolher os joelhos para proteger o resto do corpo. — Eu quero vê-la. Você me olhou à vontade. lembrou-lhe. Se Rose o ouviu, não demonstrou. Com delicadeza, Matt segurou-lhe as mãos e puxou os braços para baixo. Seus seios não eram muito grandes, mas bem-feitos e delicados. Os mamilos rosados e eretos pareciam suplicar por atenção. Excitado ao extremo, Matt ajoelhou-se entre suas coxas, os planos de retaliação completamente esquecidos. Acariciou-lhe os mamilos com os lábios primeiro e, depois, com a língua. As narinas dele fremiam com seu odor sensual de mulher, almiscarado, pungente e, incrivelmente, intoxicante. Sem resistir, começou a sugar-lhe os mamilos. Rose gemeu. Matt voltou a beijá-la na boca enquanto acariciava-lhe os seios com as mãos. Ainda de joelhos e ciente de que estava prestes a perder o controle, ele afastou-se um pouco e respirou fundo várias vezes. Numa voz rouca e sem inflexão alguma, pediu: — Por favor, afaste as pernas, Rose. Serei o mais rápido que puder e, então, a deixarei em paz. Deu-lhe tempo para atendê-lo e recomendou a si mesmo para não pular sobre ela como um garanhão bravo. Até Jericho gastava algum tempo estimulando a égua antes de cuidar do próprio interesse. Virou-se e, com os braços estivados, abaixou a luz da lamparina até que ficasse reduzida a uma pequena chama amarelada. Devia tê-la apagado completamente. Quando voltou-se para Rose, ela estava deitada com os braços esticados ao longo do
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corpo, as pernas entreabertas e os olhos fechados. Aliás, bem apertados. Teve a impressão de ver um leve tremor em sua barriga. Que diabos faria se ela começasse a chorar? Nunca tivera tal experiência ao fazer amor com uma mulher. Quando havia se deitado com uma e não feito amor, corrigiu-se. Tal sentimento nunca estivera envolvido no relacionamento físico. Ele apenas lhe tinha pago o preço estipulado, ido embora satisfeito e esperado pela parada no porto seguinte. Amor, não, repetiu a si mesmo ao inclinar-se sobre Rose. — Não tenha medo. Não vou machucá-la. - murmurou sem saber por que se dava ao trabalho de dizer isso. Imaginava de onde a ideia tinha surgido, pois afinal, ela não era virgem. Sabendo que, ao menor contato, ele perderia o controle, tornou a advertir-se de que não se tratava de uma rameira. Caso fosse, ele já teria terminado, deixado o dinheiro na mesinha-de-cabeceira e ido embora. Era Rose e isso constituía o problema. A mulher com quem havia se casado. Que trouxera centenas de matinhos e, carinhosamente, os plantado em volta da casa. A mulher que cantava para Annie, lavava suas fraldas e ria das mesmas anedotas velhas contadas por Peg e Crank. Afastando tudo isso da mente, Matt enfiou a mão entre os corpos de ambos, abrindo o seu a fim de terminar o que viera fazer. Ela estava úmida, quente e tão macia. Ele quase se perdeu antes de se posicionar. O coração trovejava tão alto no peito que ele achava poder ouvi-lo. Com o corpo tremendo, mal podendo suportar o próprio peso, ele segurou o pênis e roçou-lhe a cabeça, para frente e para trás, em seu ninho, a fim de prepará-la para a invasão. Ouviu-a abafar uma exclamação e estremecer. E quando Rose ergueu os quadris de encontro aos dele, o resto de sanidade o abandonou. Encontrou sua entrada, penetrou-a e iniciou impulsos vigorosos, completamente alheio a tudo, exceto o terremoto que lhe abalava o mundo, provocando sensações jamais experimentadas. Durante a noite, Matt acordou. O ombro doía e o pênis, rijo, pulsava. Então, tudo voltou-lhe à mente numa rapidez atordoadora e intoxicante. Quase dominado pela incredulidade, reviveu tudo nos mínimos detalhes. Como o corpo se mostrasse pronto em repetir a experiência, pensou em acordar Rose e possuí-la novamente. Não, seria melhor esperar até que pudesse refletir com mais clareza. O fato de ainda se encontrar em sua cama, com Rose aninhada de encontro a ele, tão confiante e à vontade, o punha de sobreaviso. Tinha planejado voltar para o próprio quarto tão logo houvesse terminado o interlúdio entre eles. E já devia ser de madrugada.
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Com o máximo cuidado para não acordá-la, levantou-se e já ia pelo corredor quando se lembrou das roupas. Voltou e apanhou-as do chão. Sentia-se esgotado fisicamente, com certeza efeito da tensão vivida. Sabia que seria inútil tentar dormir outra vez. Vestiu-se e, em silêncio, saiu de casa. Quando voltou da praia com Jericho, o sol, como uma bola incandescente, varava a neblina matinal. Mas ele continuava incapaz de compreender os fatos. Nada havia ocorrido como deveria. Seu plano de retribuição tinha sido justo sem ser cruel. Rose havia mentido para ele e não poderia escapar impunemente. A intenção dele para castigá-la fora ter uma relação sexual e, depois, informá-la que havia mandado anular o casamento. Em seguida, lhe ofereceria um pagamento generoso para continuar cuidando de Annie. Mas na verdade, ambos haviam mentido. Ela por cometimento. Ele por omissão. Uma mentira invalidaria a outra?
Capítulo XV
Matt tomou banho para livrar-se da água salgada do mar, vestiu roupa limpa e foi fazer a refeição matinal. Comeu o prato farto arrumado por Crank e repetiu tudo: ovos mexidos, toicinho defumado, pãezinhos com melado, acompanhados por várias canecas de café forte. Nadar sempre lhe abria o apetite. Depois, escreveu uma carta a Bagby e outra longa de instruções para Peg, embora não ignorasse que o velho marinheiro, provavelmente, não lhe daria importância. Em seguida, voltou à cozinha a fim de perguntar a Crank se precisava de mantimentos. — Vou até o sul agora de manhã. De lá, posso ir a Cape Woods caso você queira alguma coisa. — Sei. Vou fazer uma lista. Rosie falou que estava com vontade de levar Annie até a encosta agora de manhã. Eu a avisei que está muito quente. Mas você sabe como a mulher é. Não, ele não sabia. Diabo, nem sabia como ele mesmo era. E temia descobrir. Apenas tinha certeza
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de que havia enfrentado uma situação complicada e a tornado mais ainda. Para piorar tudo, antes que ele pudesse ir embora, seus dois admiradores enamorados apareceriam certamente. John cavalgaria a égua ainda um tanto arisca e Sandy Dixon chegaria no velho esquife à vela do pai. Pegou a lista de Crank, passou os olhos nela para ver se entendia as garatujas e a enfiou no bolso da camisa. Já ia sair quando Rose surgiu na porta. Pela primeira vez, evitou fitá-lo, olhando para algum ponto além do ombro esquerdo dele. Suas feições estavam tão circunspectas quanto as de uma santa de mármore, mas não havia nada que ela pudesse fazer para impedir o rubor nas faces. Dominado por um bom humor inexplicável, Matt disse em tom amável: — Bom dia, Rose. — Bom dia, Matthew. - respondeu ela com tranqüilidade. Tentou passar por ele, mas algum diabinho o fez bloquear-lhe o caminho. Porém, ele fingiu ser acidental. — Desculpe-me. Está um dia lindo, não acha? — De fato, muito bonito. - Rose concordou com um leve tremor na voz. Ela se desviou a fim de passar pelo outro lado. Matt mudou o peso do corpo de uma perna para outra e sorriu-lhe. Esforçava-se para não rir alto. Queria erguê-la do chão e rodopiar com ela, beijar aqueles lábios apertados até que se abrissem e ficassem úmidos e receptivos como na noite anterior. ainda.
— Posso passar? - ela perguntou em voz fria, mas com as faces mais rubras
Ele se sentiu tentado a curvar-se só para ver sua reação, mas recuou e fez um gesto com a mão. Quando Rose esgueirou-se entre ele e a parede, numa onda de perfume de lilás, ele disse baixinho. — Está mesmo um dia esplêndido, Rose. Vou lhe trazer algo da vila. Ela virou-se e o fitou com expressão confusa. — Você não tem de fazer isso. Por favor, prefiro que não se dê ao trabalho. Rose saiu para o terraço de trás e acompanhou-o com o olhar até o cercado das éguas. Teria Matt, realmente, feito tudo aquilo com ela nessa noite? Levado-a sentir coisas que não encontrava palavras para descrever? Então, era assim quando uma mulher amava um homem? Além de vontades meio vagas, que desapareciam depressa, ela jamais sentira algo igual antes. E, no início, amava Robert. Pelo menos, havia se convencido disso, mas
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só até ele ter tornado tal sentimento impossível. Matt acabava de dizer que lhe traria algo da vila. Estaria ele cortejando-a? Como uma mulher poderia descobrir? Ela entendia tanto do assunto quanto sobre cavalgar. John já tinha chegado para sua aula de montaria e ela nem havia tomado o café da manhã ainda. Tanto ele quanto Sandy estavam chegando cada dia mais cedo. Ela não sabia se era para aproveitar a fresca da manhã ou por espírito de competição. Ele continuava na sela, com uma das pernas cruzada na frente como se estivesse sentado numa cadeira na cozinha. John fazia esse tipo de coisa quando Sandy estava por perto. Exibicionismo como no caso do laço. Mas era um homem simpático. Sob certos aspectos, velho para a idade e, sob outros, imaturo. Porém, simpático. Rose viu Matt aproximar-se dele. Os dois trocaram algumas palavras e, então, John virou a montaria e foi embora. Ela pensou em chamá-lo de volta, mas não o fez. Se queria aprender a cavalgar, Matt não podia interferir. Na verdade, não queria. Algumas pessoas tinham afinidade com cavalos, outras, não. Ela era dessas últimas. No futuro, quando Matt voltasse para o mar, talvez ela fizesse nova tentativa. Ou então, acabaria se contentando com a carroça e Angel. Matt encilhou uma das éguas e montou num movimento ágil e elegante para um homem daquele tamanho. Ele parou a fim de observar o esquife a vela aproximar-se do cais. Foi até lá, conversou ligeiramente com Sandy e, em seguida, tomou o caminho do sul. Velejar. Outro de seus fracassos. Contudo, havia tentado. Isso significava muito mais do que a Rose dos velhos tempos teria coragem para fazer. Numa emergência perigosa, ela talvez conseguisse montar e cavalgar. E dentro do esquife, já sabia içar a vela e até poderia se aventurar por um trecho pequeno do braço de mar, caso a água estivesse calma. Porém, preferia muito mais ficar em terra firme. Seus sonhos de se tornar auto-suficiente, estavam indo por água abaixo. Apesar do grande esforço, seu progresso era mínimo e vagaroso. Duvidava muito que pudesse, um dia, acompanhar Matt nas viagens marítimas. O máximo que devia esperar era ele vir para casa de vez em quando e, numa das visitas, a engravidar. Um irmão ou uma irmã seria ótimo para Annie. Afinal, de um bebê, ela já sabia cuidar muito bem. Rose achou estranho Sandy manejar o esquife e velejar de volta para a vila sem ter vindo até a casa. Só quando mal podia ver Matt na distância ela afastou o olhar e entrou. Tinha a intenção de dizer a Crank que não queria comer nada, mas para surpresa sua, deu-se conta de que estava faminta. Sorrindo, suspirou, feliz, e disse:
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— Vou ver Annie. Deixei-a tomando a mamadeira. Volto daqui a uns cinco minutos. Será que posso comer dois ovos quentes? E umas fatias de toicinho defumado? Esse cheiro delicioso é de pãozinho fresco? Ótimo! Já era tarde quando Matt saiu da vila, mas não tinha conseguido tratar do assunto mais importante que o levara até lá. Como soubesse que Dick Dixon queria falar com ele, iria aproveitar a oportunidade para fazer-lhe umas perguntas. Ficara frustrado ao não encontrar o homem em casa. Tinha esperado obter algumas informações sobre seu estado civil. Naturalmente, havia escrito a Bagby, mas de acordo com a experiência anterior, poderia esperar semanas ou meses para receber uma resposta. Dixon não era advogado, mas como notário, cuidava da execução da lei e até podia interpretar as mais simples. Se não soubesse responder as indagações dele, talvez tivesse um livro, sobre o assunto, que pudesse ser consultado. A questão era muito embaraçosa, claro. De forma alguma Matt queria dar assunto para as línguas maldosas da vila. Tarde demais, tinha se lembrado do perigo que a reputação de Rose corria por ser uma viúva jovem, morando numa casa com dois homens e uma criança. Quando contava com a companhia de Bess, não havia motivo de preocupação, mas a tia havia ido embora e ele, voltado. Situação muito diferente. Não precisou ir até Cape Woods, pois havia entregado a lista de compras de Crank e as cartas para Bagby e Peg ao Capitão do barco de carga que, semanalmente, vinha entregar encomendas e receber novos pedidos. Também já tinha procurado a única costureira da vila, a Sra. Sal. Ela era viúva que se sustentava consertando velas, remendando capas de lona para cobrir cargas de barcos e, de vez em quando, fazendo roupas para mulheres cujos olhos e dedos não conseguiam mais executar tal tarefa. Matt encomendou um vestido para Rose. — Alguma coisa amarela. - sugeriu. — Não da tonalidade da gema de ovo. Mais clara, como a das florzinhas que crescem na encosta, perto da praia. — Cobro cinquenta centavos se o senhor comprar o tecido. Mas preciso tirar as medidas da pessoa. — Eu lhe pago três dólares e a senhora encomenda o tecido. Dentro de uns dois dias, trago as medidas. A senhora já a viu. - acompanhado de gestos, explicou o tamanho de Rose: — Ela é desta altura, um tanto magra, não muito. Assim, como uma mulher média. Embaraçado, Matt transpirava em profusão. A Sra. Sal concordou em providenciar o tecido, mas insistiu nas medidas. Ele prometeu trazê-las, mas tinha ainda outro pedido a fazer antes de escapar dali. Caso estivesse em Norfolk ou Boston, ou na maioria das cidades portuárias do mundo, ele teria procurado uma floricultura. Mas ali, viu-se forçado a pedir
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emprestados uma pá e um balde, pagar mais um dólar e desenterrar uma roseira do jardim da costureira. Também tentou ignorar o sorriso desdentado da Sra. Sal enquanto montava, carregando o balde com a planta e as orelhas pegando fogo. — Vi a roseira por acaso e pensei em trazê-la para você plantá-la. - disse a Rose quando chegou em casa. — Eu não roubei, se é isso que você está pensando. Ele tinha visto um botão quase aberto e pensado nela. Uma rosa para Rose. Se tivesse calculado como seria difícil cavalgar carregando a planta de quase um metro e cheia de espinhos, ele teria desistido da ideia. Não, não teria. Colocou o balde ao lado do terraço e afastou-se, resmungando: — Se não quiser, não plante a roseira. De qualquer jeito, você vai acabar matando a pobre. Por causa da ausência de Peg e Luther, havia trabalho suficiente para manter Matt ocupado até quase escurecer. Deu de comer a Jericho, levou-o para galopar na praia, fez mais um ninho de caixote para o galinheiro e colocou a rede para pescar. O vento estava mudando. Isso queria dizer que haveria muito peixe para ser limpo na manhã seguinte, o que o deixaria coberto de escamas da cabeça aos pés. Pelo menos, comeriam peixe fresco em de vez do salmonete seco tão apreciado por Crank.
Em seu quartinho da pensão sórdida, numa rua perto das docas da cidade de Beaufort, Tressy Riddle bateu com a ponta do envelope nos dentes e refletiu no que acabava de ler. Agora entendia por que Cat não havia respondido nenhuma de suas cartas. Ela estava fora morta, assassinada pelo marido imprestável. Tressy, mais nova e muito mais esperta, tinha aconselhado a irmã para esperar. Sempre lhe dizia que precisava ser paciente por mais algum tempo, pois algo bom haveria de acontecer. Mas Cat afirmava que estava cansada de ser olhada com desdém pelas pessoas. — Só porque somos pobres, papai bebeu até cair morto e mamãe fugiu, devendo dinheiro para metade da cidade, todos pensam que não prestamos. Cat, então, havia se casado com um velho marinheiro que conhecera nas docas. Várias vezes, Tressy a tinha avisado para não ir lá. — Você jamais vai conhecer o tipo certo de homem nesse lugar e também se não aprender a falar e a se vestir direito para ir aonde eles se encontram.
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— Aonde eles vão? — À igreja episcopal, sua ignorante. — Já fui lá duas vezes. Não achei graça nenhuma. — Eu sei, mas deixe eu explicar uma coisa. O que acontece a moças que ficam perambulando pelas docas também não tem a mínima graça. Pode ser um tanto divertido por algum tempo. Mas tão logo o navio for embora, você ficará com um pirralho na barriga, sem homem e sem dinheiro. Foi isso que aconteceu com Louella. — Sou mais esperta do que ela. — Ora, você é mais idiota do que vagabunda, isso sim. Pois vejam só quem estava certa e quem estava errada, Tressy pensou presunçosamente ao colocar a carta do Sr. Dixon no envelope. Abner Murdoch, o homem com quem Cat havia se casado, pelo menos tinha uma casa. Tressy, precisando de um teto sobre a cabeça até que sua sorte melhorasse, pensara em visitar a irmã e o cunhado. Tinha escrito a Cat, mas como não recebera resposta, escrevera novamente. Um homem chamado Dixon havia lhe respondido a segunda carta na qual contava o que acontecera.
"Sua irmã deixou um bebê que se encontra, atualmente, sob a guarda do Capitão Matthew Powers, de Powers Point", dizia um dos trechos da carta. Isso provocou-lhe forte impressão. Pessoas, cujas propriedades tinham seu nome, costumavam ser ricas. As linhas seguintes confirmavam sua suposição.
"O Capitão Powers é um homem de recursos e muito respeitado. A senhorita pode ficar tranqüila, pois apesar de ser solteiro, ele cuidará muito bem de sua sobrinha até que se resolva a questão." Muito interessante, refletiu Tressy ao bater novamente com a ponta do envelope nos dentes. Um homem de recursos e solteiro. Talvez devesse gastar seus últimos e parcos dólares numa passagem de barco a fim de ir verificar o que mais descobriria. Não tinha o mínimo interesse em bebê algum. Mas Cat e o marido velho haviam deixado uma casa e, provavelmente, outras coisas, como móveis, que ela poderia vender. Marinheiros, quase sempre, traziam todo tipo de quinquilharias de lugares distantes, apenas para provar que tinham estado lá.
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Matt chegou atrasado para jantar e ainda gastou algum tempo para tomar banho. Depois de vestir roupa limpa, lembrou-se de quem teria de lavá-la e passar. Lamentou tê-lo feito. Quando entrou na cozinha, os outros já iam começar a comer. — Você se esforça demais, Rose . - disse a guisa de cumprimento. — Desculpe, não entendi. - ela respondeu. Ambos enrubesceram depressa. Crank não podia estar mais sorridente. Annie, sentada no cadeirão feito por Peg, batia com a colher no prato, espirrando papinha para todos os lados. — Passar roupa a ferro. Está muito quente para fazer isso. - Matt explicou. — Também para cozinhar. - Crank acrescentou. — Se você prefere comer peixe cru, não faça cerimônia, mas a comida de Annie tem de ser bem cozida. - Matt avisou-o. Com cada um pedindo ao outro para passar isso ou aquilo, distraíram-se e a tensão dissipou-se. Mas quando Crank se levantou para servir o pudim de melado, Matt ainda não podia olhar para Rose, do outro lado da mesa, sem deixar de lembrar-se do que haviam feito na noite anterior. Mais tarde à noite, Rose tentou fingir que o fato de Matt ter vindo procurá-la outra vez não era grande coisa. Afinal, estavam casados, embora ele não parecesse ser um marido. Pelo menos, não podia ser comparado a seu primeiro. — Você acha que a roseira vai viver? - ele perguntou enquanto arrumava a janela para receber o vento que havia mudado de direção. — Coloquei um pouco de esterco no buraco. Luther disse, antes de ir embora, que se eu usasse éster... Material da pilha mais antiga não faria mal. Matt entendia tanto de esterco quanto de rosas mas fez um gesto afirmativo com a cabeça. — Deve ser. Mas acho que você deve molhar a roseira de vez em quando. — Vou fazer isso, claro. — Bem, foi um dia longo e cansativo. - disse ele ao flexionar os ombros e fingir um bocejo. Sentia-se um perfeito idiota. Que diabo! Como um homem se aproximava de uma mulher de respeito? Atirar-se na cama, em cima dela, não lhe parecia a tática apropriada. Como tinha agido na noite anterior?
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Matt não conseguia se lembrar. Só sabia que havia sido completamente diferente de tudo que já havia experimentado com uma mulher. Se não tomasse cuidado, acabaria aceitando um daqueles empregos, em terra, que Dixon tinha mencionado, apenas para poder deitar-se com Rose todas as noites. — Matt? Ele virou-se depressa da janela aberta. — O quê? Você está com sono? Se você não quiser, não tem importância. Quer dizer... — Por que você não vem se deitar? Matt acordou no meio da noite. Ficou olhando para as sombras no teto e sentindo o vento nordeste soprar pela janela. O ombro esquerdo estava adormecido no lugar onde Rose apoiava a cabeça e cortava-lhe a circulação. Sua mão fechada estava no peito dele e a coxa encolhida, sobre a junção das dele. Mexeu os quadris para o lado a fim de que pênis não continuasse preso. Livre, ele ergueu-se firme, pulsando, em busca do mesmo prazer estonteante que já havia gozado duas vezes naquela noite. Rose devia estar sensível. Ele tinha sido um tanto afoito. Ouviu-a suspirar dormindo e afastou seus cabelos do rosto. Ela não estaria sentindo calor? Ou frio? Não ficaria com o pescoço dolorido se continuasse com a cabeça naquela posição? — Rose. - murmurou. — Vire de lado e apóie a cabeça no travesseiro. Você vai ficar com torcicolo. Depois de um momento, ela respondeu: — Não, não vou. Seu ombro está doendo? isso.
Estava, sim. Uma cabeça devia pesar muito, mas de jeito algum ele admitiria
Ela virou-se de costas e encostou as nádegas nuas nos quadris dele. Foi muito pior. Uma vez na noite anterior, duas naquela e a tentação de uma terceira. A situação estava fugindo do controle dele. Tinha a obrigação de contar a ela o que havia feito antes de ir longe demais. Mas como contar se não tinha certeza? Caso Bagby ainda não houvesse tratado da anulação, eles continuavam casados. Tanto melhor, pois a queria como esposa, mesmo se tivesse de se casar com ela outra vez. Se isso fosse preciso, quanto mais cedo melhor. Matt virou-se de lado e aconchegou-se de encontro a suas costas, passando o braço sobre seu corpo. Porém, a posição não era confortável. Seria impossível encontrar uma em tal estado de excitação. Exceto, claro, a única que desejava. Rose suspirou e virou-se novamente e, dessa vez, de frente para ele. Então, ele
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conseguiu o que queria. Ergueu-a e a acomodou sentada sobre ele, com suas coxas aconchegando-o nos lados. Num segundo posicionou-a para recebê-lo. Não murmuraram uma única palavra enquanto se ajeitavam. Porém, Matt gemeu e Rose arquejou no início da penetração. — Oh... - ela gemeu aos sentir os primeiros impulsos e seu corpo vibrou quando eles se aceleraram. Tentou acompanhá-los com movimentos das nádegas, mas, desencontrou-os. Matt parou por uns instantes e segurou-a pelos ombros a fim de imobilizá-la. Porém, não se contendo mais, reiniciou os impulsos numa ânsia incontrolável. E então, estremeceu. Talvez até houvesse gritado. Quando Rose desabou sobre ele, estreitou-a com força entre os braços. Sentia vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Ou, quem sabe, de morrer. No quarto ao lado, Annie choramingou. — Será que a acordei? - ele murmurou em voz trêmula. Não conseguia pensar com clareza, muito menos, falar. — Ela voltará a dormir se ficarmos quietos. Com a boca em seu ouvido, ele murmurou: — Ficarei se você não se mexer. Rose riu e Matt tapou-lhe a boca com a mão. Ao sentir seus dentes no polegar, enfiou-o entre seus lábios, mexendo-o para dentro e para fora sem ter noção por que o fazia. Apenas sabia que a desejava por inteiro e de todas as maneiras possíveis. Com o tempo, a possuiria em todas elas. Talvez juntos, descobrissem outras formas para se completarem. Todavia, antes de mais nada, tinha de lhe contar o que havia feito. Como não ouvissem mais o choro de Annie, ele perguntou: — Você está com frio? — Não, imagine! Por acaso você acendeu a lareira? — Não, claro. — Você parece uma acha de lenha em chamas. — Meu bem, estou rijo e quente, mas não sou de madeira e sim de músculos vigorosos. — Fique quieto. - ela sussurrou, o corpo vibrando com o riso contido. Naturalmente, isso não o ajudou a dominar nova onda de excitação. — Você está dolorida? - ele indagou, meio esperançoso. — Um tanto. Não é bem dor, mas arde um pouco.
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— Eu poderia... - ele começou sem fazer ideia do que ia dizer e ao recuar. Ao vê-lo afastar-se a fim de se levantar, Rose o puxou pelo braço. — Não, por favor, não vá embora. Sabe... Eu... Bem, faz tanto tempo desde... — Desde que você enviuvou? Viu-a concordar com um gesto de cabeça e quis saber mais, ou melhor, tudo a seu respeito. Se tivesse certeza dos próprios direitos, não que pudesse ter algum sobre seu passado, ele a pressionaria. Mas, não foi preciso. — Não sei o que Bess lhe contou sobre meu primeiro casamento. Aliás, não faço ideia do quanto ela sabe, mas perdi um bebê. Instintivamente, ele a aconchegou mais entre os braços. — Perdeu? — Era uma menina. Foi um parto prematuro na noite em que meu marido morreu. Matt já ia falar alguma coisa, mas titubeou. Com certo esforço, disse: — Lamento muito. Não eram palavras muito adequadas, mas o que um homem deveria dizer num caso como esse? Ele começava a compreender como a perda de uma criança poderia ser devastadora. Se algo acontecesse a Annie... — Sofri muito, mas Annie ajudou a cicatrizar meu coração. A confissão simples o emocionou e Matt apertou mais os braços em sua volta. Mas dessa vez, sem intenção sexual alguma. Manteve-a aninhada junto a ele até o vento passar ao amanhecer e a chuva começar a cair, seu barulho pesado silenciando as indagações e os pensamentos mal formados que fervilhavam na cabeça dele. Rose e Matt dormiram até Annie anunciar ao mundo o quanto estava molhada e com fome e como detestava ambas as condições. Quando Rose acabava de dar banho e começava a vestir Annie, Matt já havia desaparecido. Ela ainda não tinha ideia formada sobre o novo relacionamento dos dois. E nem, muito menos, de como ele se sentia a esse respeito. Se é que sentia alguma coisa. rido.
Sua melhor lembrança era a de terem rido juntos. Deitados e abraçados, tinham
Bem, talvez não fosse a melhor lembrança, reconsiderou ao ser inundada por uma onda de calor. — Visita chegando. - Crank gritou da cozinha enquanto Rose, ainda de penhoar, abotoava a camisolinha de Annie.
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Cedo demais para uma visita aparecer. E não podia ser alguém trazendo a correspondência, pois o barco do Correio, geralmente, só chegava à tarde. Talvez fosse John ou Sandy, ela pensou. Não era nenhum dos dois.
Capítulo XVI
Rose não viu motivo para se apressar. Pela flanela aberta do quarto, observou o cabriole preto do Sr. Dixon. Com o toldo de lona e as rodas altas de madeira, era um veículo estranho, mas prático para percorrer a trilha esburacada de areia. Abriu o guarda-roupa a fim de escolher um vestido entre os poucos que tinha. O azul ou o amarelo outra vez? Por causa do uso constante e do sol forte, os dois já começavam a desbotar. O de seda cor-de-rosa estava fora de cogitação. Tratava-se de mais uma de suas escolhas malfeitas. Nessa nova fase de sua vida, a origem do vestido quase a fazia rir de si mesma por haver se exposto ao ridículo. Rose e a filha de um casal amigo dos pais costumavam comemorar juntas os aniversários. As duas moças, embora nunca houvessem sido amigas, eram forçadas a compartilhar a festa. Numa das últimas, Serena tinha exibido um vestido de tafetá cor-de-rosa, com cintura justa, saia de babados e um decote exagerado em "V". Como era de se esperar, ela havia sido a rainha da festa e o alvo de um sem fim de elogios. Todos faziam questão de afirmar como o rosa realçava-lhe a beleza. Alguns dias depois, Rose havia convencido a mãe para lhe mandar fazer um igual. Infelizmente, o decote em "V" acentuava-lhe a altura e o rosa deixava sua pele mais pálida ainda. Ela o tinha usado apenas uma vez, pois, humilhada, percebera como tanto a cor como o feitio a desmereciam. Havia sido uma festa horrível e interminável. Antes que ela pudesse dar fim ao vestido, os pais tinham morrido. Alguém, a criada provavelmente, o tinha guardado quando ela passara a usar luto. Decidiu-se pelo o azul de crepe de voile. Que, diferença faria? Afinal, tratava-se apenas do Sr. Dixon que vinha conversar com Matt. Ai, Matt! Sorrindo, Rose calçou depressa meias brancas e apanhou as botinhas. — Mais um pouco de paciência, queridinha. Você já vai comer seu gugu. É só a mamãe se calçar.
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— Gugu. - Annie exclamou. Era como chamava o mingau de aveia. Rose achava que o descrevia perfeitamente. Enquanto amarrava as botinhas de pelica, sem salto, a menina repetiu seu repertório diminuto, mas que aumentava diariamente. — Isso mesmo, meu bem, diga mamãe. No início, Rose sentia-se culpada por encorajar Annie a tratá-la dessa forma, porém, acabou achando natural. Ela teria de chamá-la de alguma coisa e, como Matt obviamente a tinha perdoado e não a mandaria embora, mamãe era a escolha lógica. Ela já havia percorrido a metade do corredor quando ouviu o som estridente de uma voz, parecido com o arranhar de talheres num prato. Não era a do Sr. Dixon que tinha ouvido antes. E não a de Matt, sem sombra de dúvida. Seria a da Sra. Dixon? Não guardara na memória seu timbre de voz, porém ela não viria fazer uma visita tão cedo de manhã. — ...buscá-la num minuto. Essa era de Matt. Buscar quem? Eu? Bem, se fosse necessário, ela iria. — Vamos lá, queridinha, cumprimentar as visitas. Depois, escaparemos depressa para a cozinha. Você é minha desculpa para não ficar na sala. Parou do lado de fora da porta o tempo suficiente para verificar se a trança estava bem firme na nuca, endireitar a camisolinha de Annie e assumir uma expressão sorridente. — Bom dia Sr. Dixon e... O sorriso esmaeceu. Não era a Sra. Dixon. A moça não podia ter mais de vinte anos, embora o olhar... Havia algo estranho, quase de avaliação nos olhos azuis, com um toque de violeta, que a encaravam. Rose virou-se para Matt em busca de orientação. Não recebeu nenhuma. Ele exibia a habitual expressão inescrutável. Valendo-se da educação recebida desde a infância, entrou na sala com Annie aconchegada ao ombro e a mão estendida. Numa voz curiosamente seca, Matt disse: — Rose, acho que você já conhece o Sr. Dixon. Srta. Riddle, esta é a Sra. Littlefield. Sra. Littlefield? Rose sentiu a primeira onda de inquietação. Já não estava na hora de terminar a farsa? A primeira ideia que lhe ocorreu foi tratar-se de alguém que Matt mandara
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buscar para cuidar de Annie, antes de descobrir sua identidade. Ela havia aparecido finalmente. — Muito prazer, Srta. Riddle. - cumprimentou em tom afável. Naturalmente, Matt mandaria a moça embora. Não precisavam mais dela. Além do mais, a fulana tinha ar de encrenqueira, Rose havia constatado imediatamente. Com um sorriso forçado, disse: — E esta é nossa Annie. Diga adeus, queridinha. Por favor nos dêem licença. Annie ainda não tomou seu mingau e está morta de fome. — Ah, então esta é a filhinha linda de Cat? Antes de Rose se dar conta, a moça aproximou-se e tentou tirar a criança assustada de seus braços. Annie agarrou-lhe o vestido e começou a choramingar. Rose recuou, mas moça não se deu por vencida e fez nova tentativa. — Dê a menina para mim. Ai minha belezinha! A essa altura, a criança chorava e gritava no ouvido de Rose. Matt interferiu: — Com todos os diabos, senhorita! Eu mandei que esperasse! — Tenha um pouco de paciência, Srta. Riddle. A criança ainda não a conhece. aconselhou Dick Dixon que, nervoso, transpirava por todos os poros. Rose, protegendo Annie com os dois braços e tentando acalmá-la, dirigiu um olhar fuzilante para a moça e, depois, para Matt e Dixon. Matt?
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? Quem é esta mulher,
— É tia de Annie e mora em Beaufort. Só ficou sabendo pouco tempo atrás o que aconteceu à irmã e veio buscar Annie. - Matt repetiu o que o notário lhe dissera, mas obviamente, estava tão chocado quanto Rose. — Já expliquei que Billy... Desculpe, senhorita, por fazer questão de repetir o que já disse. Billy era o pai de Annie e não Murdoch. E Billy me deu a menina antes de morrer. — Ora, sinto muito. Cat era minha irmã e o que deixou é meu. Não é verdade, Sr. Dixon? O notário dava a impressão de estar com uma terrível cólica de fígado. — Bem, isso estaria certo no desenrolar de acontecimentos comuns. Mas, como tentei lhe explicar ontem à noite, Srta. Riddle, esta é uma situação muito irregular. — Pouco me importa se é comum ou não. Cat me escreveu falando da casa e, agora, ela é minha. - virou-se para Matt com ar de quem apelava por ajuda. — Eu pretendia ficar lá quando chegasse. Mas era tarde e o Sr. Dixon me disse que havia gente morando na casa. Então, tive de dormir com ele e a mulher.
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Não literalmente, Rose esperava. Matt dava a impressão de não saber o que fazer com a moça. — Pode imaginar uma coisa dessa? Estranhos morando em minha casa e eu sem saber de nada. — Como expliquei, Srta. Riddle, os parentes de Abner... - Dixon começou, porém, ela o interrompeu: — Não me interessa de quem são parentes. Cat era viúva do velho, portanto, o que lhe pertencia é meu agora. Pode avisá-los, em meu nome, para desocupar a casa. O senhor é o notário e eles têm de obedecê-lo. Diga-lhes que vou vender a casa e quero que saiam dela hoje mesmo. — Entenda, senhorita, a questão é... — Avise-os também para não roubarem nada, porque Cat disse que o velho abscesso lhe deu tudo. — Abscesso?! - Rose, Matt e Dixon exclamaram ao mesmo tempo. — Era como Cat o chamava. De qualquer jeito, ele está morto e tudo que lhe pertencia era dela e, agora, é meu. Conheço meus direitos. - declarou com um olhar triunfante para Dixon. — Bem, como tentei explicar ontem à noite, Srta. Riddle, não existe muita coisa. E, na falta de um testamento, o pouco que há pertence aos parentes próximos de Abner. Ela abriu a boca para falar, mas fechou-a. Seus olhos, de uma tonalidade linda, entre azul e violeta, foram de Matt para o notário e de volta ao primeiro. Perplexa, Rose a observava e, a cada minuto, convencia-se mais de que ela não queria Annie tanto quanto a menina não a queria. Resolveu, naquele instante, a lutar para que ela ficasse com os bens materiais da irmã desde que, em circunstância alguma, tivesse a tutela de Annie. — Você não lhe contou, Dixon? - Matt indagou. — Contou o quê? Que Annie herda tudo? Sou sua tia e como tal, sua tutora. Nesse caso, acho que posso vender a casa e empregar o dinheiro para o futuro da menina. Com ar frustrado estampado no rosto rechonchudo, Dixon virou-se para Matt. — Tentei explicar, mas pelo jeito, não fui feliz. Como contei, quando a carta endereçada à mulher de Murdoch chegou, algum tempo depois da ocorrência, ela foi entregue a mim. Eu assumi a incumbência de informar o parente mais próximo da Sra. Murdoch, ou seja, sua irmã, sobre o incidente fatídico. Expliquei como você havia ficado com o bebê e como a Sra. Littlefield continuara aqui, depois da partida de Bess,
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a fim de cuidar da criança. Sendo assim, a Srta. Riddle não tinha de se preocupar com o bem-estar da sobrinha. — Posso ver que o senhor cuidou muito bem dela, Capitão Powers. Posso chamá-lo de Matthew? Caso sim, me trate por Tressy. Na verdade, meu nome é Theresa, mas todos me conhecem por Tressy. Bem, agora que estou aqui, não vamos mais precisar da Sra. Littlefield. Posso tomar seu lugar. Apenas me mostre o que devo fazer. Costumo aprender depressa. O semblante de Matt tornou-se mais carrancudo. Em pé perto da porta, Rose pensou, de maneira irrelevante, que se Bess se encontrasse presente, estaria rabiscando anotações, feito louca, para usá-las em mais uma de suas histórias fantasiosas. Estranhamente, Rose não estava preocupada com a ameaça de perder Annie. A tal Riddle demonstrava querer tanto uma criança chorosa e atormentada com a primeira dentição quanto uma queimadura de urtiga. Mas claramente, ela queria alguma coisa e talvez até tentasse usar Annie para obtê-la. Só se passar por cima de meu cadáver, Rose pensou. Achava que, por já haver completado sua cota de escolhas desastrosas, tinha aprendido a confiar em seu instinto. E naquele momento, ele lhe dizia que Tressy Riddle precisava ser vigiada de perto. Ora essa, mandá-la embora! — Dixon não lhe contou como sua irmã morreu? - Matt perguntou rudemente. — Acredito tê-la informado que a falecida expirara logo após dar à luz uma filha. - Dixon disse apressadamente em com um olhar impotente para Matt. — Quer saber a verdade nua e crua? Sua irmã arranjou um amante enquanto Murdoch se encontrava longe havia vários meses. Ao chegar em casa e encontrar a mulher na cama com uma recém-nascida, sabia muito bem que a criança não era dele. Atirou na mulher, trouxe o bebê aqui para Powers Point onde matou o amante da mulher e, em seguida, suicidou-se. Por um longo minuto, ninguém falou. O horror de tal tragédia envolvia os quatro adultos como uma mortalha. Apenas Annie não parecia afetada por ela. Retorcendo-se entre os braços de Rose, continuava a reclamar, aos soluços, seu mingau. — Daqui a um instante, queridinha. - Rose murmurou ao balançá-la com os braços. — Srta. Riddle, sinto muitíssimo . - disse com sinceridade. Porém, por maior que fosse seu sentimento de pesar, não mudaria de ideia em relação a Annie. Tressy passou um lenço meio sujo pelos olhos lindos, mas secos.
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— Ai, minha pobre e querida irmã. Cat nunca foi muito ajuizada. Eu sempre a avisava para tomar cuidado e nunca fazer nada sem pensar muito bem primeiro, pois senão, acabaria criando problemas para si mesma. Eu lhe dizia que o mundo era um lugar cruel para órfãs como nós. E agora, existe Annie. - acrescentou com um soluço tão alto que surpreendeu os outros três e até silenciou Annie por um instante. Rose chegou mais perto da porta. — Por favor, nos dêem licença agora. - pediu enquanto tentava acalmar Annie que voltara a proclamar a fome em alto e bom som. — Ainda não, Rose. - disse Matt com ar de quem preferia estar em qualquer lugar menos ali. Na verdade, ele dava uma leve impressão de vulnerabilidade, Rose achou. Seu instinto de proteção expandiu-se para incluí-lo ao lado de Annie. — Bem, preciso ir embora. - o notário anunciou em tom de alívio. — Minha mulher está me esperando para tomar o café da manhã. Vou deixar seu baú no terraço, Srta. Riddle. Depois, Matt poderá trazê-lo para dentro. Seu baú? — Seu baú?! - Matt repetiu, em voz alta, a indagação silenciosa de Rose. — Não posso ficar na casa de Cat até que o Sr. Dixon ponha aquela gente para fora. Portanto, você terá de me hospedar. - Tressy explicou com um sorriso cândido para Matt, mas que não combinava com seu olhar interesseiro. — A senhorita ainda não entendeu, não é? - com expressão sombria, Matt tornou a explicar: — Srta. Riddle, sua irmã morreu primeiro. Nem ela e nem o marido deixaram testamento, por isso, não lhe cabe herança alguma. A propriedade pertencia a Murdoch que faleceu depois da mulher. E Annie não era filha dele. Muito simples, entendeu? Sinto muito que tenha feito uma viagem longa a troco de nada. Com um menear enfático de cabeça, o notário acrescentou: — Exatamente. Eu não teria explicado melhor. — Mas ele a matou. Um assassino não pode herdar os bens da mulher, pode? Seria uma grande injustiça. Ela não passava de uma criatura atrevida e gananciosa, mas mesmo assim, Rose sentiu pena. Se de fato não contava com pai e mãe, precisava de ajuda. — Matt, se você trouxer o baú da Srta. Riddle para dentro, irei arrumar o quarto de Bess para ela. Ficará bem lá por uns dias e até poder voltar para... Como se chama mesmo o lugar? Beaufort, não é? Ouvi falar que é uma cidadezinha muito boa. Rose conseguiu encerrar as palavras com um sorriso. Não era um muito expansivo, mas no momento, o melhor que podia oferecer.
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Tressy Riddle fungou e tornou a enxugar lágrimas invisíveis. — Obrigada, Sra. Littlefield. — Deixe apenas eu servir primeiro o mingau de Annie. Talvez a senhorita queira nos fazer companhia, mas eu a aviso que é uma refeição um tanto confusa. Annie está aprendendo a comer sozinha. Ignorando as palavras e a pessoa de Rose, Tressy pôs a mão no braço de Matt e o fitou com ar confiante. — Será que não pode me mostrar a propriedade, Matt? Já que vou ficar morando aqui, preciso saber onde fica tudo. Ao ver aquela mão gorducha, com unhas roídas até a raiz, Rose sentiu-se mais condoída ainda, embora a contragosto. Deus misericordioso, não permita que eu cometa outro erro tolo. Pelo menos, Annie não corria perigo realmente. Disso, tinha quase absoluta certeza. Matt era outra questão. A pobre moça pensava que ele fosse solteiro. Eles deviam revelar o casamento. No início, seria muito constrangedor, pois Rose havia enganado não apenas Matt como a vila inteira. Porém, constrangimento raramente era fatal. Se fosse, ela teria morrido muito tempo atrás. Matt puxou o braço e, com o pretexto de ir buscar o baú, acompanhou Dixon até o cabriole. — Preciso conversar com você sobre outro assunto, caso tenha alguns minutos para me dispensar. — Resolveu me substituir quando eu me aposentar? - o notário indagou, esperançoso. — Agradeço sua oferta, mas não tenho preparo suficiente para o cargo. Trata-se de outra questão. Veja, preciso saber... Quer dizer... Com todos os diabos, como poderia descobrir o que tinha urgência para saber sem revelar que a mulher conhecida por todos como Sra. Littlefield era, na verdade, Sra. Powers? Tão logo a novidade se espalhasse, Rose seria rotulada, no mínimo, de aventureira e ele, de idiota. Limpou a garganta e puxou o colarinho. — Não se trata de um assunto pessoal, entenda. Digamos que um homem se casou e tanto ele como a mulher mudaram de ideia. Quanto tempo leva para dissolver a união? Tão logo o pedido seja feito ou só muito tempo depois? — Ora, isso depende muito. — Como assim? — Bem, depende se esse casal hipotético tomou tal resolução antes ou depois da lua-de-mel. No primeiro caso trata-se de anulação e, no segundo, de divórcio.
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Matt sentia o rosto em fogo. Carrancudo, decidiu ir em frente. Tinha de saber e Bagby estava demorando demais para responder suas cartas. — Digamos que o pedido foi feito antes da lua-de-mel. Dixon passou a mão pelo queixo. — Hum... Só um advogado pode responder isso com certeza. Não tenho experiência alguma nesse tipo de situação. Mas calculo que dependa apenas do andamento dos papéis. Uma questão de dias, imagino. Talvez mais, não faço ideia. Maldição! Teria sido muito melhor haver tomado o barco para Norfolk e ir buscar a resposta na fonte. Matt resmungou um agradecimento, pegou o baú, que parecia ter tomado parte numa guerra, e rumou para casa. Pelo bem da reputação de Rose, ele deveria dormir na própria cama até descobrir se ainda estavam casados ou não. Sentiu a reação de protesto do corpo, mas também até se livrarem da hóspede inoportuna e indesejada, não poderiam se arriscar. A reivindicação dele da tutela legal de Annie jamais seria atendida por qualquer tribunal se houvesse o menor sinal de escândalo. Esperaria três dias. Se até então não recebesse a resposta de Bagby, pediria a Dixon para dar um novo nó. E dessa vez, não seria frouxo e sim nó de marinheiro. De alguma forma, cada um com seus pensamentos e preocupações, todos conseguiram passar o dia sem incidentes desagradáveis. Tressy Riddle monopolizou Matt enquanto Rose e Annie entretinham-se com as atividades habituais. Do alto da encosta, Rose pôde vê-lo mostrar, à hóspede, cada metro quadrado da propriedade, até mesmo o galinheiro. Curiosamente, ela não se sentia enciumada. Sabia que Matt apenas tentava manter a moça longe de Annie até encontrar uma maneira para se descartar dela. Ambos fariam qualquer coisa para proteger a criança e se fosse preciso suborná-la para ir embora, eles o fariam. Não que Rose tivesse alguma coisa para usar como suborno. Talvez o vestido cor-de-rosa, pensou. — Mas não você, queridinha. E nem nosso Matt. Annie tirou o dedo da boca e começou a choramingar, forçando Rose a levantar-se a fim de voltar para casa. Ele me ama. As palavras repercutiram em sua mente pelo resto do dia. O coração vibrava e seu ar de felicidade ameaçava traí-la. Matt não havia confessado isso, porém, ela já o conhecia bastante para saber que ele jamais falaria com o coração na mão. O jantar foi um espetáculo. Sandy Dixon tinha aparecido à tarde e, convidado, ficou para a refeição. Crank, apesar de terem "visitas" na opinião dele, serviu o jantar
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na cozinha como sempre. E, como sempre, Annie babou o leite e derramou colheradas da papinha no chão. Tressy afastou-se o mais longe possível do cadeirão e praticamente sentou-se no colo de Sandy. Este não tirava os olhos de seus caracóis loiro-platinados como se nunca tivesse visto cabelos dessa tonalidade. De fato, eram diferentes e chamativos, Rose admitiu. Uma ou duas vezes, Rose tentou capturar o olhar de Matt, ele, porém, evitou fitá-la, embora estivesse sentado do outro lado da mesa, bem a sua frente. Ele falou pouco e como Rose estivesse ocupada em ver quanto da papinha de Annie era ingerida e quanto ia para o chão, coube a Sandy distrair a hóspede. Isso ele fez com uma dissertação minuciosa sobre as condições das estradas na zona rural da Carolina do Norte. Para ilustrar certos pontos, Crank aparteava com alguma citação bíblica. Apesar de tudo, Rose concluiu, poderia ter sido pior. Quando finalmente todos se retiraram para dormir e a casa ficou em silêncio, Rose, cheia de expectativa, tomou banho e vestiu uma camisola simples de cambraia creme. Colocou umas gotinhas do perfume de lilás nos cabelos e escovou-os vagarosa e sensualmente, lembrando-se de cada carícia, cada olhar lânguido, cada momento arrebatador da noite anterior. Depois de abaixar a luz da lamparina, deitou-se a fim de esperar o marido. Irrequieta por causa da presença de uma pessoa estranha na casa, Annie tinha levado mais tempo para adormecer. Rose também não estava satisfeita com a situação, mas esta logo estaria solucionada. Tão logo Matt a fizesse entender que não havia nada para ela ali, a pobre moça teria de ir cantar em outra freguesia. Matt, sem dúvida alguma, acabaria pagando a passagem de volta e ainda dando algum auxílio financeiro para Tressy. Rose refletiu que, se encontrasse uma forma delicada de lhe dar o vestido cor-de-rosa, ela o faria. Graças às cores de sua pele, dos olhos e dos cabelos, a moça ficaria linda quando o usasse. Talvez até lhe oferecesse algumas sugestões para reformá-lo de acordo com a própria silhueta, Rose pensou ainda. Deus sabia que, por causa das experiências desastrosas na escolha de modelos, ela havia aprendido algo sobre moda. Pelo menos, podia dar conselhos contra o uso dos exageros mais comuns. Rose bocejou. O que estaria prendendo Matt? Crank tinha arrumado a cozinha e ido dormir muito tempo atrás. O velho cozinheiro havia resmungado o dia inteiro sobre Jezebels e raposas em galinheiros. O dia havia custado muito para passar. Parecia não ter fim. Logo depois do café da manhã e por causa da insistência da hóspede, Matt fora forçado a mostrar-lhe a propriedade inteira. Na casa, entretanto, não a levara
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aos quartos e ao escritório. A julgar pelo que tinha visto a distância, Rose deduzira que a excursão não havia agradado a ambos. Bocejou outra vez e afrouxou o laço no decote da camisola. Deus dos céu, o calor fortíssimo persistia. Tressy havia cometido-o erro de pôr um vestido justo de tafetá azul para ir jantar. Naturalmente, a cor ressaltava a dos olhos e o feitio enfatizava as curvas acima e abaixo do espartilho apertado. Este, com ou sem barbatanas, e tafetá eram instrumentos de tortura durante o verão na ilha. Se houvesse sabido de sua intenção de usá-lo, Rose teria lhe sugerido para escolher algo mais fresco. Pobre moça. Mas a última coisa que desejava sentir era simpatia pela criatura que tinha vindo a fim de se apossar de Annie. E, possivelmente, de Matt. Todavia, ela jamais se esqueceria da própria situação semelhante. Não muito tempo atrás, também não contava com uma família. Então, Bess havia aparecido, Bess e o Sr. Bagby, e Rose, instigada pelo desespero, se deixara convencer a agir de maneira censurável. Nunca havia se imaginado fazendo algo semelhante. Obviamente, Tressy tinha dado um pulo no escuro, confiando que cairia no lugar certo. Rose desejava que alguma coisa boa lhe acontecesse. Esperava que a irmã, afinal, houvesse deixado alguma coisa e que ela, talvez, encontrasse algum trabalho na vila ou, até, um marido. Mas não o meu, Rose pensou com firmeza, desejando que Matt aparecesse. Lamentava do fundo do coração que não tivessem sido marido e mulher desde o início. E também nem sonhe em pegar minha filhinha, acrescentou mentalmente ao adormecer.
Matt não conseguia dormir. Imaginava Rose deitada sozinha, esperando por ele. Tinha planejado agir honradamente e lhe explicar que talvez não estivessem mais legalmente casados. Mas antes de ter a oportunidade de lhe falar qualquer coisa, a tal Riddle tinha aparecido. O dia inteiro, ela havia se agarrado a ele como um carrapato, não lhe dando a mínima chance de ficar a sós com Rose. A honra teria simplesmente de esperar, decidiu, porque ele não podia de jeito algum. Rose estava em seu sangue como uma febre, incendiando-o, embaralhando-lhe a mente até que não pudesse mais pensar com lucidez. Mesmo assim, tinha noção do perigo de Rose engravidar. Três dias, Matt determinou. Se não recebesse uma resposta de Bagby nesse prazo, se casaria com Rose como se a primeira vez não houvesse ocorrido. Tendo se decidido, Matt atravessou o corredor em silêncio e entrou em seu
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quarto. Tinha ouvido falar que existiam maneiras para evitar que uma mulher engravidasse. Por ele, não se importaria se isso acontecesse, mas não seria justo para com Rose. Lembrava-se muito bem como os habitantes da vila haviam reagido ao comportamento da mulher de Murdoch. Ninguém tivera a caridade de cuidar da recém-nascida. Jurou jamais permitir que mancha alguma marcasse a reputação de Rose. Um raio de luar caía na cama e revelava um de seus pés fora das cobertas. Tão branco e esguio. Tomou-o entre as mãos e, depois, deslizou uma delas até sua coxa. — Rose. - murmurou. Ela não respondeu. Seu pé estava frio e a coxa, quente. Ele ardia em chamas. — Rose. - tornou a chamar baixinho. Esperou, observando-a, até que ouviu aquele suspiro suave que, às vezes, ela deixava escapar pelos lábios quando dormia profundamente. Desapontado e ainda dolorosamente excitado, cobriu-lhe o pé e, em silêncio, voltou para o quarto. Estava sem sono, mas, embora tivesse vários livros que ainda nem abrira, não queria ler. Não se atrevia a acender a lamparina, pois a Srta. Riddle poderia ver a luz e tomá-la como um convite. Depois do que havia suportado o dia inteiro, temia lhe provocar ideias erradas a seu respeito. Por um bom tempo, ocupou a mente com o Black Swan. Imaginava como Peg estava indo com os consertos. O velho carpinteiro era muito competente habilidoso, mas devido a idade e a saúde frágil, trabalhava devagar. Depois, arquitetou várias maneiras para se livrar de Tressy Riddle. Sem perceber, apanhou-se imaginando como iria explicar sua situação matrimonial irregular a Crank, Peg e Luther, sem mencionar muitas outras pessoas, sem passar por um verdadeiro idiota. Quando o céu a leste começou a clarear, Matt levantou-se e foi para fora a fim de refrescar-se com um balde de água da chuva acumulada no barril. E então, sem a mínima consideração pelas pessoas que ainda dormiam, colocou um tronco de carvalho no cepo e levantou o machado. Com precisão, pôs-se a rachar lenha. As achas começaram a se amontoar em ambos os lados e acabaram formando pilhas altas. Matt enterrou o machado no cepo e foi guardar a lenha no telheiro, já que Luther não estava ali para fazer o serviço. Do interior da casa, chegou o som de uma voz chorosa que se tornara familiar após apenas um dia. Mulher irritante. Bem depressa, Matt havia percebido do que ela estava atrás. E não era de Annie. A maneira com que o fitava e revirava os olhos, ou a de como se pendurava no braço dele e fingia beber-lhe as palavras o lembravam bastante de Glória. A mulher tinha vindo a Powers Point à procura de um alvo fácil e achava tê-lo
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encontrado. Sentia-se tentado a mandá-la de volta para Dixon, com ordens para se manter longe dali. Mas se o fizesse, ela poderia recorrer à maldade e tentar tirar-lhe Annie por pura vingança. Embora não conhecesse bem a lei nesse caso, imaginava se seu direito à criança não seria maior do que o dele. A danada não podia ficar com Annie. A criança pertencia a ele e, além do mais, a separação estraçalharia o coração de Rose. Ele preferiria cortar fora as duas mãos em vez de provocar qualquer sofrimento a Rose. Ele deveria já ter lhe explicado tudo. Juntos, poderiam formar uma frente unida. Explicar o quê? Como havia planejado seduzi-la sem lhe contar que sabia quem era apenas para vê-la se debater a fim de se redimir? Fosse qual fosse o plano inicial, ele não havia previsto duas coisas: a confissão espontânea de Rose e o fato de ele passar a querê-la tanto. O sentimento era tão forte que ele até pensava que talvez a amasse. Ignorava completamente as reações provocadas pelo amor, mas se fossem essa febre que o queimava por dentro e o pavor de vir a perder Rose, então tratava-se, sim, de amor. Ou isso ou ele estava sofrendo de uma enfermidade incurável. Rose acordou com dor de cabeça. Determinada a ignorá-la, tão logo terminou de trocar e de alimentar Annie, pegou a cesta, uma colcha e um livro e rumou para a encosta. Esse era o único lugar onde podia ficar em paz. Precisava refletir bastante antes de confrontar Matt e a hóspede. O ar estava completamente parado. Mosquitos zuniam, sapos coaxavam de vez em quando e, no alto de uma apalachina deformada pelo constante vento marítimo, um tordo-dos-remédios, imitador de outros pássaros, cantava sem nunca repetir um trinado. Como se quisesse responder, Annie balbuciava enquanto abanava as mãozinhas e batia os pés. Havia um pouco de mingau seco em seus cabelos, mas só poderia ser removido mais tarde e com água para não machucá-la. Por enquanto, Rose queria apenas ficar sozinha com os pensamentos problemáticos com que havia acordado. Não eram bondosos e caritativos como os que tivera ao adormecer. Na véspera, à noite, tinha esperado que Matt anunciasse o casamento de ambos. Crank já sabia, ou melhor, havia adivinhado, Rose estava quase certeza. Porém, Matt não dissera uma única palavra. Primeiro, ela ficara intrigada. Não podia pensar num bom motivo para o casamento ser mantido em segredo. Havia esperado que Matt explicasse por que não tinha feito isso quando fosse procurá-la na cama. Mas ele nem aparecera. Ela havia acordado sozinha de manhã, magoada, perplexa e um tanto zangada.
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Havia a possibilidade de ele ter mudado de ideia e não a querer mais como esposa. Mas apesar de seus parcos conhecimentos sobre homens e suas motivações, Rose recusava-se a acreditar que Matt a trocaria por Tressy Riddle a fim garantir a tutela de Annie.
Capítulo XVII
O calor forte estava demais para se sentir apetite, dormir ou até para se mexer. Ter uma estranha seguindo-a constantemente, fazendo perguntas indiscretas sobre o que não era de sua alçada, piorava muito a situação. Rose esforçava-se para ser paciente, mas achava difícil com tantos problemas a atormentar-lhe a mente. Quanto tempo a mulher pretendia ficar ali? O que estava esperando? Que ela, Rose, fosse embora para que tivesse livre acesso a Annie? Improvável. A danada até se recusava a trocar uma fralda. E uma apenas molhada. Sandy aparecia diariamente. Como Rose houvesse desistido de aprender a velejar, ele passava quase o tempo todo na companhia de Tressy. Sentia-se encorajado com a atenção lisonjeira dela, explicava-lhe os interesses políticos e planos para o futuro. Como já tivesse ouvido tudo aquilo em detalhes, Rose pedia licença e ia cuidar da vida. Fazendo ou não calor, a roupa suja tinha de ser lavada e ela preferia muito mais esfregá-la do que ver Tressy flertar e Sandy se exibir. Por mais que o tempo estivesse quente, abafado e úmido, não era isso que mais a incomodava. Havia algo errado entre ela e Matt. Não tinham estado prestes a revelar o casamento? Por que, então, ele a evitava? Teria ela dito ou feito algo que o aborrecera? Ou ele havia mudado de ideia? Todas as incertezas da juventude voltaram a atormentá-la. Pelo amor de Deus, Rose, quando você vai parar de crescer? De jeito nenhum, você puxou o lado de minha família. Sempre fui delicada fisicamente, a mãe havia reclamado. Isso fora no ano em que ela havia perdido a gordura típica da infância, começado a crescer muito e a ficar desajeitada apesar dos esforços maternos para transformá-la numa bonequinha da moda. Quando alcançara a idade para fazer as
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próprias escolhas, invariavelmente procurava a companhia das moças erradas, interessava-se pelos rapazes errados e usava as cores e os feitios errados, apesar dos conselhos da mãe. Embora se agarrasse à esperança de que o patinho feio acabaria se transformando num lindíssimo cisne, o bom senso lhe dizia que isso seria pouco provável, ou melhor, impossível. Então, de repente, sua vida tinha mudado. Em sua defesa havia o fato de ser jovem, inexperiente e de ainda se encontrar aturdida com a perda dos pais quando Robert havia conseguido uma apresentação para lhe dar os pêsames. Ela jamais tinha conseguido se lembrar claramente das primeiras semanas após o acidente. Porém, não se esquecera da bondade dos amigos dos pais e do solteirão, de meia-idade, a quem a encorajaram a tratar por tio Harold, embora ele não fosse parente. Ele havia se oferecido para hospedá-la, por uns dias, a fim de a confortar nesse período de aflição. Felizmente, Robert a tinha convencido a não aceitar o convite. Argumentara que poderia ser perfeitamente inocente, mas não parecia certo. Ele havia oferecido o conselho sem a mínima implicação de crítica. Robert a havia amparado quando precisara chorar, mas sem fazê-la se sentir fraca, feia e desamparada, embora ela estivesse tudo isso. O fato de o advogado do pai se encontrar fora do país na ocasião não lhe tinha sido favorável. Muito menos a contabilidade do pai ter se mostrado bem pior do que a da avó. Talvez isso fosse uma fraqueza da família Littlefield. Durante a confusão toda após a tragédia, Robert tinha estado a seu lado, oferecendo-lho conforto, conselhos e, finalmente, casamento. Ela jamais questionara toda aquela dedicação a não ser quando já fora tarde demais. Matt, de forma alguma, se parecia com Robert, porém, ela começava a conjeturar se não havia interpretado mal as intenções dele. Ficara tão certa de que ele a tinha perdoado por mentir-lhe e a aceitado como esposa. Havia procurado-a na cama e, segundo todas as evidências, apreciado bastante. Ela, pelo menos, tinha gostado muitíssimo, Deus era testemunha. Havia sido uma experiência maravilhosa e inacreditável. Até agora, bastava vê-lo para que os mínimos detalhes viessem-lhe à mente. A carência, a paixão estimulante, o desespero para alcançar a satisfação plena, tudo, enfim, tinha ultrapassado os limites de sua imaginação restrita. Ela podia entender por que Matt não queria voltar a seu quarto enquanto houvesse uma estranha na casa. Mas por que a evitava? Sem dúvida, ele estava fazendo isso. Se por acaso a olhasse, resmungava qualquer coisa sobre um trabalho e desaparecia. Cada animal nos cercados, até mesmo Angel, tinha sido escovado até o pêlo brilhar. O suprimento de lenha rachada duraria,
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no mínimo, cem anos. Sete carvalhos, ao longo do braço de mar, tinham morrido por causa de uma ressaca formidável, Luther havia contado. Na véspera, Matt tinha cortado o último e rachado-o. Rose tentou se convencer de que o comportamento estranho de Matt era provocado pelo calor terrível. Todos se ressentiam dele. Tressy não disfarçava o mau humor. Annie estava ranzinza, mas talvez por causa do novo dentinho. Crank resmungava o tempo inteiro. Normalmente um homem afável, ele havia antipatizado com Tressy tão logo a vira. A antipatia era recíproca. Graças aos céus por Sandy. Como ele parecesse não se importar com a conversa desconexa de Tressy, Rose deixava que eles se entretivessem a sós. Embora a moça fosse irritante além da conta, continuava a sentir pena dela, mesmo contra a vontade. Como houvesse perdido os pais no acidente trágico, Rose sabia muito bem como Tressy devia se sentir. Ela, pelo menos, já podia contar com Matt e Annie, mas a pobre criatura encontrava-se sozinha no mundo. Annie raspou o novo dentinho na caneca e sorriu, deixando o leite escorrer pelos cantos da boca. Distraída, Rose enxugou-lhe o queixo. Tinham vindo tomar o café da manhã mais cedo porque estava quente demais para se continuar dormindo depois do nascer do sol. — Acordei pingando de suor. - queixou-se Tressy ao entrar na cozinha de camisola e os cabelos completamente desgrenhados. — Sei como é desagradável. O calor aumenta depressa tão logo o sol desponta. E hoje não há a mínima brisa. Naturalmente já vestida e penteada, Rose observou a moça arrumar um prato farto com batatas e mariscos fritos, picles, pãezinhos frescos e crocantes. Como houvesse comido quase só frutos do mar ultimamente, ela enjoara deles. Na véspera, Crank tinha feito frango ensopado, mas por causa do calor, ninguém mostrara grande apetite. — A cama onde estou dormindo está com pulgas. - Tressy reclamou. — Tem certeza? — Estou com o corpo todo mordido. As duas moças e Annie estavam sozinhas na cozinha. Crank tinha ido encher a chaleira de água no terraço. — Provavelmente são picadas de mosquitos. Tem chovido muito e ventado pouco para espantá-los. - Rose explicou. — Pensa que nunca vi um mosquito? Falei que me atacaram pelo corpo inteiro, até embaixo do espartilho.
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Rose tinha sofrido muito com picadas, mas apenas onde a pele ficava exposta aos insetos infernais. — Você não... Claro que não. Você não faria isso. — Faria o quê? — Bem, eu a vi indo caminhar com Sandy ao longo do braço de mar ontem à noite. Você não... — Não o quê, sua abelhuda? Pensa que tirei a roupa no minuto em que sumi de vista atrás dos arbustos? Rose arregalou os olhos. — Não, de forma alguma. Não foi minha intenção... — Se quer saber, mulher maliciosa, nós apenas conversamos, sentados no capim atrás do telheiro das redes. Contei a Sandy como pretendo ler livros e freqüentar a igreja a fim de melhorar minha educação. E ele me explicou os planos para as estradas e as escolas. Sabe, não ficarei surpresa se ele, logo, for eleito governador. Sandy pode não parecer, mas é bem inteligente. — Ele é um rapaz muito atraente e, como você diz, inteligente, mas também, muito bondoso. Apesar das próprias preocupações, Rose sentiu pena da moça ao vê-la coçar a cintura e atrás de um dos joelhos ao mesmo tempo, usando as duas mãos. — Acho que são carrapatos. O capim está cheio deles. Vou lhe fazer emplastros para aliviar a coceira. Mas primeiro, se me der licença, vou trocar a fralda de Annie. No momento em que erguia a criança do cadeirão, Crank entrou na cozinha. Pôs a chaleira no fogão e olhou para seu prato quase intato. De testa franzida, sacudiu a cabeça. — Sem fome outra vez, não é, Rosie? - comentou ele. — É o calor, eu acho. Mas sabia muito bem que era o coração que a afligia.
Mulher maliciosa? Pois sim! Matt sentia-se de mãos atadas. Já tinha se convencido que Tressy Riddle não pretendia tomar Annie dele, porém, mostrava-se capaz de usá-la como trunfo a fim de conseguir o que queria. Começava a acreditar que ela o tinha colocado no topo da lista
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de prioridades. Ele e o jovem Dixon, ou qualquer outro homem desimpedido que aparecesse. Não havia nada para herdar da irmã, o notário tornara a explicar. A mulher tinha morrido antes de Murdoch. E Annie, como não era filha dele, não tinha direito a coisa alguma. Nesse caso, Tressy ia continuar de mãos vazias e se assumisse a tutela da menina, teria de sustentá-la. Então, por que continuava em Powers Point? Pretendia agarrá-lo? Ele não a tinha encorajado e, por isso mesmo, temia que ela usasse Annie para coagi-lo. Matt esforçava-se ao máximo para evitar um confronto. Ocupava- se fora de casa o maior tempo possível, mas, apesar da ausência de Luther, não havia quase mais nada para fazer. Nem mesmo lenha para rachar. Pensou em ir a Norfolk para ver como estava indo o conserto da escuna. Porém, não se atrevia a deixar a moça na companhia de Rose e Annie com apenas Crank para protegê-las. Tirou a camisa e molhou-a na água do balde que ia jogar na gamela para o cavalo. Torceu-a e a pendurou no pescoço, deliciando-se com o frescor temporário. Ele era o primeiro a admitir que não sabia lidar com mulheres e, muito menos, as entendia. Havia provado isso quando tentara impor um castigo a uma e tinha acabado apaixonado pela vítima. Como havia passado a vida inteira ao lado de homens, com eles, sabia lidar. Se Tressy Riddle houvesse sido membro de sua tripulação, ele a teria expulsado do navio antes de zarpar do porto. Ao primeiro olhar, ele a tinha classificado como bisbilhoteira e encrenqueira. Crank contara que a tinha apanhado mexendo no armário do quarto dele, Matt. Surpresa, ela se desculpara, dizendo que procurava um lenço. Ele havia lutado contra a tentação de levá-la até a vila e despachá-la no primeiro barco que deixasse a ilha. Porém, a mulher tinha uma arma poderosa. Sob qualquer ângulo da questão, seu direito a Annie era maior do que o dele. Tinha de haver uma solução, com todos os diabos! Se ele e Rose estivessem casados... O problema era não saber e, na ignorância da situação verdadeira, não podia tomar uma atitude. Ele estivera prestes a explicar o pedido de anulação do casamento a Rose ou, pelo menos, insinuar alguma coisa a respeito, mas Dixon tinha descarregado a tal Riddle em seu colo. Agora, cada vez que tentava ficar a sós com ela, Tressy se intrometia com sua conversa confusa e perguntas sem fim. — Seu navio é muito grande? — O suficiente. — Ai, aposto como custou uma montanha de dinheiro. Nunca conheci um homem que tivesse um navio inteiro. Mas conheci muitos marinheiros. Não era de se estranhar que Crank ameaçasse se amotinar e Rose andasse tão
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abatida. Afinal, os dois tinham de agüentar aquela criatura o dia inteiro. Ele gostaria de pôr a culpa na onda de calor infernal, mas não era a primeira que Rose enfrentava. A temperatura alta não a tinha perturbado antes. Agora, não estava se alimentando bem, de acordo com Crank. O velho cozinheiro havia citado a proibição bíblica de se comer frutos do mar e beber leite no verão. Sem perceber, Matt imaginou se não haveria outro motivo. Quanto tempo levaria para uma mulher engravidar? E quando os sintomas apareceriam? Uma semana seria o suficiente? Deus do céu, se ao menos ele soubesse um pouco mais sobre as mulheres. Todos os homens, especialmente aqueles sem mãe e irmãs, deveriam ser forçados a fazer um curso sobre mulheres a fim de entender como eram formadas, funcionavam e o que as tornava diferentes dos homens. Com a que o tinha abandonado quando criança, ele aprendera que as mulheres eram perfumadas, choravam muito e não tinham o mínimo interesse no que um menininho contava ou perguntava. Ao se tornar adulto, ele havia sido orgulhoso demais para fazer indagações, pois temia revelar fraquezas. Porém, tinha aprendido mais algumas coisas com as prostitutas com que se relacionara durante uns bons anos. Mas, havia aprendido mais ainda com a mulher que o tinha feito passar pelo ignorante que era. A tia Bess não contava. Ela desafiava qualquer tipo de compreensão. Mas agora, havia Rose e ele se sentia mais perdido do que em toda sua vida de navegador. Na manhã seguinte, Rose arrastou-se para a cozinha, mas se arrependeu no instante em que entrou lá. Deixou Annie sob os cuidados de Crank e Tressy e retirou-se depressa. Tinha o rosto esverdeado como no dia em que chegara ali. Matt, que vinha de fora onde fora dar ração aos animais, do terraço de trás ouviu seus passos pelo soalho de madeira e uma porta bater. Olhou para dentro da cozinha. A carranca de Tressy transformou-se num sorriso. Annie esfregava punhados de mingau na cabeça. — E Rose? - ele indagou, olhando para Crank. — Doente, eu acho. Alguma coisa que comeu lhe fez mal, parece. Não, ele a tinha engravidado antes de poder resolver a questão do casamento! Havia entornado o caldo. Apesar de seus parcos conhecimentos sobre as regras da sociedade, Matt sabia o que isso significava. A prova estava ali diante dos olhos dele. Annie. — Nunca fiquei um único dia doente na vida. - Tressy contou em tom de orgulho. — Pare com isso. - disse com rispidez a Annie que, inclinada, queria dar uma colherada de mingau à tia.
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Matt virou-se a fim de ir ver Rose, mas Crank o advertiu: — Deixe-a em paz, Capitão. Quando se sentem mal, as mulheres não querem ser perturbadas. - como Matt hesitasse, o velho cozinheiro acrescentou: — Sei do que estou falando. Eu tinha cinco irmãs. Todas mais velhas do que eu. Por que acha que me engajei num navio quando não passava de um pirralho? Enquanto Matt resolvia se ia ou não, Rose voltou. Estava branca como um lençol, mas com expressão calma. — Bom dia, Matt. Ele respondeu e a observou com olhar perscrutador, na esperança de encontrar algum sinal de gravidez, embora não conhecesse nenhum para identificá-lo. Contra toda decência, sentiu-se excitado ao pensar nos momentos em que podiam ter feito um bebê. — Preciso conversar com você. - ele disse baixinho. Estavam os dois à porta da cozinha, perto o suficiente para se tocarem, mas tomando cuidado para nem esbarrar acidentalmente um no outro. Matt queria muito estreitá-la entre os braços, não exatamente para fazer amor, mas sentir seu corpo e prometer-lhe que tudo daria certo no fim, porém, não se atrevia. Só faria isso quando tivesse a certeza de poder cumprir a promessa. — Crank disse que você está pretendendo ir a Norfolk para ver seu navio, Matt. - a voz fina e estridente de Tressy interrompeu-lhe os pensamentos. — Nunca estive em Virgínia. Dizem que é um lugar muito bonito. Eu gostaria de conhecer. Rose passou por ele e foi sentar-se ao lado do cadeirão de Annie e Matt, esforçando-se para não praguejar em voz alta, disse em tom seco: — Tão cedo, não vou lá. Crank lhe serviu uma caneca de café forte, capaz de derreter pregos, e pôs a mão no ombro de Rose. Matt a viu inclinar a cabeça para o lado e encostar a face nos dedos encarquilhados. Sentiu uma pontada aguda de ciúme. Que diabo estava acontecendo com ele? Tinha se livrado de Luther, dispensado os serviços de John e, agora, preocupava-se com um homem velho o suficiente para ser seu avô? Devia estar louco. — Olá, pessoal, alguém em casa? - indagou Sandy do terraço de trás. Houve uma pausa enquanto ele batia os pés no chão para livrar os sapatos de areia. Em seguida, entrou com a familiaridade habitual. — Trouxe-lhe uma carta, Capitão Powers. Com apenas um cumprimento de cabeça, Matt pegou o envelope e relanceou os olhos pelo remetente. Apressado, pediu licença. Um minuto depois, ouviram a porta do escritório bater.
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Curioso, Sandy olhou para os outros três. — Deve ser importante. - comentou. — Posso lhes fazer companhia, senhoras? E você, Annie, não quer me dar um pouco de seu mingau? Estou morto de fome. Minha mãe acordou com dor de cabeça e sem disposição para cozinhar. Acho que é este calor forte. Crank acabava de pôr um prato com peixe, batata e os últimos pãezinhos, já frios, diante do filho do notário quanto Matt retornou. Parou perto da porta e avisou: — Vou voltar daqui a umas duas horas. Rose, me aguarde aqui, está bem? Que escolha teria?, indagou-se ela. — Espere eu me vestir para ir junto, Matt. - disse Tressy ao se levantar depressa, mas sentou-se novamente. — Eu não levaria mais do que um minuto. choramingou ao ver Matt sair, sem lhe dar atenção, e rumar para o cercado. Sandy comeu umas garfadas antes de falar. — O barco do Correio chegou ontem quase ao escurecer. Eu deveria ter trazido a carta logo, já que ninguém foi buscar a correspondência. Como era só uma, esperei até agora de manhã. É de um advogado de Norfolk. Com toda certeza, a notícia tem a ver com o navio. — Precisamos jogar fora o resto do frango ensopado, Crank. Estragou com o calor. - Rose recomendou. — Em Beaufort, temos geladeiras. As barras de gelo são entregues diariamente. - contou Tressy. — Geladeiras elétricas não demorarão muito para aparecer. - Sandy afirmou, disposto a discorrer sobre as maravilhas do progresso. Rose, porém, não permitiu. — Isso não terá a mínima utilidade para nós até que consigam trazer eletricidade até a ilha. - pediu licença e ergueu Annie do cadeirão. — Vai ser leite desnatado e gugu para você, mocinha, enquanto este calor continuar. Rose tirou a fralda molhada e a camisolinha suja de mingau. Deu banho, enxugou e passou maizena pelo corpo gordinho e irrequieto da menina. Sentiu-se tentada a deixá-la só de fralda, mas acabou vestindo a camisolinha mais simples que os homens tinham encomendado pelo catálogo. Quase mais nenhuma servia, pois Annie crescia sem parar. Rose comovia-se ao visualizar Matt, Crank, Peg e Luther, quatro marinheiros rudes, consultando o catálogo e escolhendo as peças mais enfeitadas e caras, sem a mínima noção do que seria mais apropriado para um bebê. — Seu papai saiu, mas não vai demorar para voltar. Ele há de querer ver seu dentinho novo. Por isso, vamos ensaiar um sorriso bem bonito.
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Deus do céu, como amava aquela criança. Rose tinha quase certeza de que Tressy não a queria, embora fosse de seu sangue. Esse fator seria decisivo caso a questão da tutela fosse parar num tribunal. Era essa incerteza horrível, concluiu, que a fazia se sentir tão mal. A agonia da espera. Naturalmente, o calor infernal e o frango estragado contribuíam também. O que estaria perturbando Matt? Por que Tressy continuava ali? Rose demorou-se nos dois quartos o máximo possível. Tirou as cobertas de sua cama a fim de arejar o colchão e as de Annie para lavar. Também escolheu alguns vestidos e levou-os ao terraço de trás para que tomassem um pouco de sol. Não muito, claro, para que não desbotassem, mas o suficiente para não embolorarem. Com a forte umidade dos últimos dias, isso acontecia a quase tudo, especialmente às roupas pouco usadas. No momento em que já ia voltar, viu Sandy manobrar o esquife para ir embora. Deveria ter ficado mais tempo na cozinha para conversar com ele, porém, como o rapaz vinha todos os dias, ela já não o considerava visita. Ao voltar para o quarto, encontrou Tressy em pé, diante da cômoda. pela porta aberta, viu Annie sentada no berço, chupando um brinquedo de corda feito por Peg. Ficava claro que a moça não tinha ido lá para ver a sobrinha, pois cheirava o perfume de lilás, cujo vidro tinha aberto. — O que você está procurando? — Rose perguntou em tom calmo. Tressy virou-se depressa e, sem querer, derrubou a tampa do perfume. Felizmente, não fez o mesmo com o vidro. — Vocês dois não me contaram que eram casados. - ela acusou. Surpresa, Rose refletiu por uma fração de segundo antes de responder cautelosamente: — Eu me casei antes de vir para cá. Isso era, ao mesmo tempo, verdade e ambíguo. Enquanto se abaixava para pegar a tampa, fechar o frasco e pô-lo de volta na cômoda, o raciocínio tentava identificar o perigo que ela pressentia. — O que aconteceu? Por que Matt mandou anular o casamento? Aposto como sei. Ele se cansou de seus trejeitos delicados, não foi? Um homem quer mais do que maneiras refinadas na cama, posso lhe assegurar. E nem ainda me casei. - disse Tressy em tom de escárnio. Instintivamente, Rose colocou-se entre Annie e a moça. A palma das mãos estavam úmidas, porém, a voz continuou calma.
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— Tressy, se você tem algo a dizer, eu gostaria que fosse clara. Tressy estendeu-lhe uma folha de papel e conseguiu falar num tom vingativo e triunfante ao mesmo tempo. — Vamos, pegue aqui e veja se é claro o suficiente para você. Eu encontrei a carta, por acidente, quando procurava... Ora, papel e lápis na escrivaninha de Matt. Calculo que quando ler isto aqui, você vai deixar a arrogância de lado. rosto.
Como Rose não pegasse a carta, Tressy aproximou-se e a sacudiu diante de seu
— Olhe, não diga que eu nunca lhe fiz um favor. Matt vai mandá-la arrumar a trouxa e ir embora daqui. Sabe, aposto como ele foi buscar o notário para expulsá-la de Powers Point. Rose não conseguiu se conter. Arrancou a carta da mão de Tressy e a leu. Não levou mais do que um minuto porque não passavam de poucas linhas.
"Meu caro Capitão: Sei que ficará satisfeito ao saber que anulei seu casamento com a Sra. Augusta R. L. Magruder como o senhor requisitou. A anulação passou a ser efetiva na data acima." As lágrimas em seus olhos nublaram o resto.
Capítulo XVIII
Não vou implorar. Não, de jeito nenhum, Rose jurou ao lado da carroça que Crank tinha atrelado por insistência sua. Orgulho, mesmo um esfarrapado a ponto de não ser reconhecido, era o que lhe tinha dado forças nessa última hora. Quase cega com as lágrimas, ela havia colocado, entre suas roupas no baú, uma camisolinha que Annie não usava mais por ter ficado pequena. Tinha abraçado seu corpinho, sem apertá-lo, e murmurado palavras de carinho. Depois, a pusera sentada no berço com todos seus brinquedos em volta. Sua própria cama não estava arrumada e todos os vestidos de luto tinham ficado no guarda-roupa. Poderiam apodrecer lá que ela não se importaria.
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— Mas eu não entendo nada de bebês. - Tressy choramingou. Ela havia seguido Rose para o pátio, a expressão presunçosa de triunfo dando lugar a uma de medo. — Crank lhe mostrará o que fazer. Caso se atrevesse, Rosie levaria Annie com ela, apesar de seu futuro incerto. Porém, a criança precisava de um lar e ela não tinha um para recebê-la. Além do mais, não queria correr o risco de ser acusada de seqüestro. — Lembre-se bem: não dê carne alguma para Annie a não ser que seja absolutamente fresca e tenha sido preparada um pouco antes. O leite, se tiver o mínimo cheiro de azedo, jogue fora e abra outra lata. Ela não costuma acordar durante a noite, mas de manhã, vai estar encharcada. Se o bumbunzinho dela ficar vermelho, passe vaselina, caso contrário, use só um pouco de maizena. Havia uma leve aspereza em sua voz provocada pelo esforço para não chorar, praguejar e gritar, proclamando a tristeza imensa. — Rosie, pelo amor de Deus, me ouça. Você está muito errada. - Crank suplicou. Ele dava a impressão de estar prestes a se debulhar em lágrimas. Se o fizesse, ela não suportaria e desmoronaria, porém, não podia demonstrar o mínimo sinal de fraqueza. — Outra coisa, Annie precisa de camisolinhas novas, maiores. Babadinhos e bordados tudo bem, mas nada de renda. Ela arranha. Seda também não. Crank fez um gesto afirmativo com a cabeça. — Entendi. Nada de seda e renda. Rosie, dê uma oportunidade ao Capitão de expor o lado dele. — Isso ele já fez de maneira bem decisiva ao falar com o advogado. Rose mantinha a cabeça erguida, os olhos secos, mas não conseguia dominar o tremor da voz. Desajeitado, Crank alisou sua mão. — Tudo não passa de um grande engano. Posso adivinhar a mão de Bess nessa trapalhada. — A carta expôs os fatos claramente. O nome de Bess não foi mencionado nela. — Quem é Bess? - indagou Tressy. Os dois a ignoraram como se ela não estivesse ali. — Não se esqueça, Crank, estou contando com você. A Srta. Riddle acabou de dizer que não entende nada de bebês. E eu não creio que esteja disposta a aprender, mas é tia de Annie. Não podemos esquecer isso. — Acho bom não me envolverem em seus planos. Estou indo embora... Não
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agüento essa vidinha daqui e não gosto de crianças. - vociferou Tressy. — Não consigo entender como você tem coragem de ir embora e deixar a criança desse jeito. Não entra em minha cabeça. - o velho cozinheiro resmungou. Mesmo assim, colocou seu baú na parte de trás da carroça. — Se quer saber, isso é deserção. — Por favor, Crank, não fale assim. Está sendo muito doloroso para mim. Apenas lembre-se de que sempre gostarei de você. E conte a Annie, quando ela for grande o suficiente para entender, que, onde eu estiver, sempre a amarei. Também Matt, Rose acrescentou em silêncio enquanto apertava os olhos para reter as lágrimas e aceitava o impulso dado por Crank a fim de subir na carroça. Sentou-se logo e segurou as rédeas. Ela o amava o bastante para perdoá-lo, mas não ainda. Não enquanto a dor fosse tão forte e recente. Se ele se casasse outra vez, e pelo bem de Annie provavelmente o faria, ela não queria ficar sabendo. Talvez ele até mantivesse Tressy ali. Certamente, ela era bem bonitinha além de ser tia de Annie. Rose ainda tinha dificuldade em acreditar que Matt havia anulado o casamento sem lhe dar uma oportunidade de se explicar. Deveria ter lhe contado quando ela revelara a identidade. Em vez disso, ele a tinha aceitado, procurado-a na cama e levado-a a acreditar que, um dia, poderia vir a amá-la. Não através de palavras, mas certamente pelo comportamento. Ainda engolindo as lágrimas, Rose estalou a língua, sacudiu as rédeas, forçando a mula a iniciar seus passos vagarosos. Rezava para que Matt continuasse ocupado na vila e não cruzasse com ela na trilha. Se isso acontecesse, e ela sabia ser bem provável, apenas esperava que ele tivesse a decência de deixá-la ir embora em paz. E também que ela tivesse o bom senso de aceitar educadamente suas explicações em vez de suplicar, em voz exaltada, por uma nova oportunidade. Agora, que ninguém mais podia vê-las, as lágrimas corriam livremente. Rose enxugou os olhos com as costas das mãos, a fim de enxergar o caminho, e curvou os ombros. Agia da única maneira possível. Não podia continuar em Powers Point sabendo que Matt havia tomado medidas legais para se livrar dela. O calor produzia uma claridade difusa na areia que dava a ideia de maré. Miragem, pensou Rose. Disso ela entendia bem, pois sua vida inteira havia sido uma miragem. Uma casa construída sobre areia movediça. Ela não fazia ideia de quanto tempo estava na estrada quando um trovão ribombou na distância. Ergueu o olhar e viu que as nuvens tinham se tornado de um negrume agourento. Deus do céu, ela não precisava desse contratempo. — Mexa-se, mula, mais depressa, ou nós duas vamos passar por um mau bocado.
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Morosamente, Angel continuou em frente. Os trovões ficaram mais freqüentes e seu barulho, mais forte. Poucos minutos depois, as primeiras gotas de chuva começaram a cair. — Depressa, Angel! Rose não sabia que fim tinha levado seu guarda-chuva, e a capa impermeável, muito quente para ser usada no calor, estava no baú. Só podia rezar para que houvesse um barco no cais pronto para zarpar. Teria de pedir a alguém para carregar seu baú e também para levar a carroça e Angel de volta para casa. Talvez John pudesse ajudá-la, caso o encontrasse. Pelo menos, tinha o dinheiro da passagem, pensou ela aliviada. Crank havia insistido em lhe dar a quantia depois de desistir de convencê-la a ficar. Matt tinha lhe prometido um salário, o que deveria tê-la feito perceber a verdadeira intenção dele, caso não estivesse tão atarantada na ocasião. O fato de Matt não ter chegado a lhe pagar nada podia ser considerado um bom sinal ou mau. De qualquer forma, isso não importava mais. O clarão repentino de um relâmpago foi seguido quase imediatamente pelo estrondo do trovão acima de sua cabeça. Nuvens de areia voavam em volta e Rose não podia olhar para o alto sem que elas a cegassem. Bateu as rédeas nas costas de Angel e gritou: — Corra, sua preguiçosa, ou vamos ter de enfrentar um grande problema. Ao ouvir sua voz, a mula empacou. — Ai, pelo amor de Deus, não faça isso outra vez. - Rose suplicou no auge da aflição. Com as rédeas nas mãos, pulou do banco alto ao chão para tentar forçar o animal teimoso a se mexer. — Não faça isso comigo. Não outra vez, porque não vou tolerar. — Torça a orelha dela. Largando as rédeas, Rose virou-se depressa e levou a mão ao coração. A mula relinchou de uma maneira estranha que lembrava a gargalhada de um demente. — Angel detesta isso. - Matt disse calmamente. Ele havia cavalgado até bem perto e surgido, de repente, da cortina de chuva e de areia. — Suba de volta à carroça e eu torço a orelha. Mas fique preparada. Angel pode partir a galope. Ela fez isso enquanto Rose segurava-se ao banco, encharcando-se com a água finalmente despejada pelas nuvens acima. Com os ombros curvados por causa da chuva, Matt cavalgava ao lado da carroça. Após um pequeno trecho, apontou para uma trilha na direção do braço de mar. Nervosa, Rose seguiu a indicação.
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Não queria admitir que alimentara uma leve esperança de encontrar Matt. Havia dito a si mesma que uma separação honesta, livre de acusações, seria a melhor solução. Mas não tinha previsto o ferimento profundo, que jamais se cicatrizaria, que ela lhe causaria. Matt apontou para um barracão grande, com um telhado de meia-água de um dos lados. Puxou a carroça até o abrigo e, só então, desmontou. Em seguida e antes de Rose poder se mexer, ele a carregou para o chão. Ambos não pronunciaram uma única palavra, mas enquanto seu corpo deslizava pelo dele, Rose lembrou-se da vez em que Matt a tirara da montaria. Agora, como então, não importava o quanto estivesse ferida, bastou o contato dos corpos para o seu se incendiar. Desvencilhou-se das mãos dele que, em seus ombros, a ajudavam a se equilibrar. Mal conseguia respirar. Comporte-se, Augusta Rose, e não se atreva a alimentar o que está pensando. — Vamos lá para dentro do barracão. A chuva está começando a varar por baixo da meia-água. Não que pudessem ficar mais molhados do que já estavam, pensou Rose. Mas ali, mal havia lugar para os dois animais, a carroça e uma pilha de madeira. Além do mais, era impossível conservar-se altiva quando estava tão consciente das roupas molhadas dele e das suas também, claro. A camisa de Matt, completamente transparente, grudada no peito dele, revelava os detalhes íntimos de que ela se lembrava tão bem. A pele bronzeada, os mamilos escuros e, mais ainda, os pêlos em volta deles. Matt respirou ruidosamente e puxou a fralda da camisa para fora da calça. Rose tentou desgrudar a saia do corpo. — Vamos entrar. - ele insistiu. Abriu a porta larga e a fez passar para um lugar amplo e sombrio, cujo cheiro lembrava o perfume de certas madeiras. — O chão é de areia, mas há uma pilha de aparas de madeira naquele canto, onde podemos sentar a fim de esperar a chuva parar. Enquanto isso, você me explica aonde ia com tanta pressa. Rose sentou-se porque não sabia por quanto tempo as pernas conseguiriam mantê-la em pé. Mas isso não queria dizer que pretendia explicar coisa alguma. Se alguém merecia uma explicação era ela. Matt sentou-se a seu lado. Perto, mas sem tocá-la. Com os braços cruzados sobre o peito, ela lutou contra os sentimentos de raiva, mágoa e constrangimento. Tinha experiência suficiente para enfrentar tais emoções, porém, uma de cada vez. Juntas, tornava-se mais difícil lidar com elas. E quando ficavam sob influência sexual, era quase impossível.
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Matt chegou mais perto e, inclinado, falou bem alto para ser ouvido através do tamborilar da chuva. — Você leu a carta, não foi? Rose não respondeu. Não precisava. Ele sabia. — Eu devia tê-la trazido comigo. Ou então, gastar alguns minutos para explicar tudo. Mas eu estava com pressa de ir procurar Dixon e pedir-lhe para dar andamento aos papéis. Ela virou-se para fitá-lo. Descobriu que estavam tão perto um do outro que, mesmo na penumbra do barracão, podia ver-lhe a expressão dos olhos e a maneira como ele curvava os lábios, constrangido. Ela também estava, além de confusa a ponto de não saber ao certo o que dizer. — Que papéis? Pensei que o processo tivesse terminado. Seu advogado não cuidou de tudo? Tremia com as roupas molhadas e tentava ignorar o homem ao lado cujo calor a envolvia, tentando-a a aninhar-se entre os braços dele. Os vagos aromas de sal, iodo, cavalo, do corpo viril ao lado, misturados à fragrância pungente de madeira, eram mais inebriantes do que um perfume fino. Robert preferia colônias fortes. Mais um detalhe, como se ela precisasse de tantos, que marcavam as diferenças entre seus dois maridos. tudo.
— Rose, sinto muito que você tenha encontrado a carta. Eu gostaria de explicar
— Do que adiantaria? Li, sim, a carta. - ela negava-se a comprometer Tressy. — As palavras eram perfeitamente claras. Você poderia ter me contado antes de eu... Antes de você... — Possuí-la como minha esposa? — Isso você não fez. - ela afirmou, categórica. — Foi o que fiz sim, Rose, você queira ou não acreditar. Admito que, da primeira vez, minha intenção era outra. Quando descobri que você era a mulher com quem eu tinha me casado, desejei fazê-la pagar por todas as noites que passei acordado, pensando em você em seu quarto a poucos passos do meu. E pelas vezes em que fui forçado a me virar a fim de esconder meu estado de excitação. Então, descobri que, durante esse tempo todo, eu tinha o direito de desejá-la, pois você era minha esposa legítima. — A carta está errada? O Sr. Bagby mentiu? Você não lhe pediu para anular o casamento? Embaraçado, Matt mexeu-se, roçando o braço no seu.
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Casamento de Conveniência
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— Pedi, sim, quando acabava de descobrir que você havia me enganado. O problema era que eu já tinha começado a amá-la, mas pensava que estava casado com outra mulher que desaparecera sem deixar sinal. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito da maldita questão. - deu de ombros e suspirou. — A única desculpa que posso oferecer é o fato de ainda estar louco da vida quando voltei para casa. Ele já tinha começado a amá-la? Seu coração quase explodiu no peito, porém, Rose havia aprendido a ser desconfiada. — Onde o Sr. Dixon entra nessa história? Bagby não fez o trabalho direito? Matt fez uma careta. Apesar da pouca luz que entrava pela única janela no alto de uma das paredes, Rose conseguiu ver-lhe a expressão aborrecida. Ele ergueu sua mão do colo e, distraído, começou a roçar-lhe o pulso com o polegar. — Caso você tenha notado, não sou muito bom para dar explicações. — Ah, notei, sim. Outro ponto. Você costuma dar ordens e, depois, ir cuidar da vida, certo de que será obedecido. A sensibilidade em seu pulso começava a aumentar depressa, porém, ela não o puxou. Aliás, manifestava-se em outras partes do corpo. Matt teve a audácia de sorrir. — Reconheço minha culpa. Mas entenda, eu ignorava se ainda estávamos casados, ou não, até receber a carta. Quando fiquei sabendo da situação, tinha de agir depressa. Você poderia ter... Quer dizer, nós poderíamos ter feito um bebê. Se esse for o caso, quanto mais depressa nos casarmos outra vez, melhor. Rose levou algum tempo refletindo sobre o que acabava de ouvir. Então, falou: — Em outras palavras, a primeira vez que você se casou comigo foi pelo bem de Annie. Agora, quer se casar de novo pelo bem do bebê que talvez eu esteja carregando. E isso que está dizendo? Eles estavam encostados na parede e envolvidos pelo aroma de madeira que lembrava incenso. Os relâmpagos já eram raros e os trovões, distantes. O vento lufava e lançava golfadas de água contra as paredes do barracão. — Uma razão bem válida, não concorda? — Não tenho certeza. Sei que me prestei a vir para cá a fim de cuidar de Annie para que você pudesse retomar sua vida no mar, mas... — Mas o quê? - ele a pressionou. Mas isso foi antes de eu começar a amá-lo. Antes de aprender a dominar o enjôo para que pudesse acompanhá-lo em suas viagens. E também a cavalgar para que, juntos, galopássemos pela praia quando voltássemos para casa numa visita rápida.
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Clássicos Históricos Especial 112
Casamento de Conveniência
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— Matt, você se importaria de explicar por que não me contou ter mandado anular o casamento quando eu confessei meus erros? — Raiva. Orgulho ferido, acho. Eu já lhe disse, queria fazê-la pagar por minhas noites de insônia. — Você queria se vingar, em outras palavras. Orgulho ferido ela entendia muito bem, pois o tinha suportado muitas vezes no passado. Raiva era uma forma de paixão e ela não ignorava que Matt possuía um temperamento ardente. Também sabia que, ao oposto de Robert, ele possuía a fortaleza de caráter e a maturidade para controlar as emoções. — Você sabe tudo a respeito de Annie, por que ela ficou sob meus cuidados. Essas coisas acontecem, Rose, e eu sempre tentei... Matt sacudiu a cabeça e Rose esforçou-se para não se influenciar com a proximidade dele. Ouviu-o descrever a relutância em arranjar uma esposa, qualquer que fosse. E então, quando finalmente vencera a resistência, a frustração com o fato de a mulher nunca aparecer. — Com a lição de Billy e da mulher de Murdoch fresca na memória, não foi muito animador quando comecei a reparar na secretária e dama de companhia de Bess. Por reparar quero dizer... - limpou a garganta e começou a brincar com seus dedos. — Tão logo a conheci melhor, gostei de você. Como pessoa, quero dizer. Achava agradável sua presença na casa e esperava poder contar com ela. — Você tinha uma maneira muito estranha de demonstrar isso. - ela disse em tom seco. — Tal atitude era por que... Bem, quase ao mesmo tempo, comecei a gostar de você, de seu jeito de se sentir mais à vontade e, então, passei a vê-la como mulher. — Que eu saiba, isso se chama luxúria. - Rose teve a impressão de que ele enrubescia, mas na penumbra, era difícil ter certeza. — Também gosto de você. disse baixinho. Admitia esse tanto, mas não se sentia preparada para ir mais longe. Matt escorregou a mão sob sua manga molhada. Inclinado, fitou-a bem dentro dos olhos. — Gosta mesmo, Rose? Ela levou um momento para criar coragem e responder: — Eu... Você sabe que gosto. Eu nunca teria... — Nunca teria o quê, Rose? Permitido que fizéssemos amor?
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Casamento de Conveniência
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A tensão ali dentro tornou-se mais poderosa do que as descargas elétricas da tempestade lá fora. — Para ser honesta, não tenho certeza. - Parecia-lhe prudente mudar de assunto antes de se envolver demais. — Por que você foi procurar o Sr. Dixon? Ele acariciava seu braço acima do cotovelo, os dedos ásperos provocando arrepios na pele sensível. — Eu já disse. Tratar dos papéis para me casar novamente com você. E para dizer que, se ainda fosse possível, eu aceitaria substituí-lo quando se aposentasse. Ela virou-se tão depressa que seu nariz quase tocou o dele. — Mas, por quê? — Por que quero me casar outra vez com você? — Isso também, mas por que você pensaria em ser notário quando, finalmente, conseguiu seu navio de volta? — Você já sabe a resposta da primeira pergunta. Ela também responde a segunda. Por causa de meus sentimentos, eu não poderia estar casado com você e deixá-la aqui. Isso quer dizer um emprego em terra. E Rose, já que estamos esclarecendo a situação, quero contar que precisei hipotecar Powers Point. O salário de notário não é grande, portanto, jamais seremos ricos. Ela não podia pensar em uma única palavra para dizer. A mão de Matt parou em seu braço. Fitou-a bem dentro dos olhos e pediu: — Por favor Rose, diga alguma coisa. Eu te amo tanto que até me assusto. Morro de medo de perdê-la. Não posso nem olhar para você sem ter vontade de possuí-la. Por que você acha que tenho evitado sua companhia? — Você me ama? Ela ainda não conseguia acreditar. — Que diabo! Você não pode pensar que passei por tudo isso motivado por algo menos importante, não é? — Sabe Matt, aprendi a velejar com a intenção de dominar o enjôo e poder acompanhá-lo em suas viagens. Quer dizer, não aprendi exatamente a velejar, mas pelo menos, já posso ficar em um barco em movimento sem me virar pelo avesso. — Você fez isso por mim? Em silêncio, ela confirmou com um gesto de cabeça e, então, murmurou: — Se nos casarmos outra vez, quero ficar sempre junto de você. Não importa onde seja. Matt gemeu e disse:
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— Meu amor, eu também não me importo desde que haja onde deitar. Caso não tenha notado, a fralda de minha camisa está esticada para a frente desde que entramos aqui. Mesmo encharcada, com os cabelos escorrendo pelas costas, você tem esse efeito sobre mim. - acrescentou numa voz meiga, alegre e tensa ao mesmo tempo. Rose, sentindo-se cada vez mais confiante, conjeturou em tom pensativo: — Por que será, você acha, que os homens usam calças justas e as mulheres, saias largas? — Você quer falar sobre moda num momento como este?! — Existe alguma outra coisa, além de conversarmos, que você prefira fazer enquanto esperamos a chuva melhorar? — A menos que você tenha um baralho, nossas escolhas são bem limitadas. Mesmo enquanto falava, ele a deitava sobre as aparas de madeira e procurava os botões do vestido. Rose, encorajada por uma confiança jamais sentida antes, deslizou as mãos pelo peito dele até a cintura e, de lá, para a saliência esplêndida que lhe forçava a calça. Ao sentir-lhe a reação imediata e vigorosa, ela fechou os olhos e murmurou: — Melhor você me dizer já se não gosta que eu o toque aí. Adoro acariciá-lo e as sensações que me dominam quando faço isso. — Meu amor, você pode me tocar como quiser, em qualquer lugar do corpo e quando bem desejar. Só não me responsabilize pelas consequências. Com os olhos bem abertos, ele imobilizou as mãos. — Consequências. - repetiu. — Rose, você acha... Quer dizer, você está... Será que fizemos um bebê? Foi por isso que você passou mal? — Não, foi o frango. Isso e a aflição para descobrir o erro eu havia cometido. Mas não pare, por favor. - ela pediu. Juntos, conseguiram baixar seu calção até os joelhos, enrolar a saia na cintura, desabotoar a camisa e a calça dele. Não era o bastante, mas tinham de se contentar. — Levante as nádegas para eu puxar sua calça para baixo. - Rose sugeriu. — Para você passar maizena nelas?. - Matt provocou, o riso permeando a tensão sexual. Mais tarde, riram juntos. Havendo exaurido a paixão mútua, abraçavam-se, saciados e encantados com a perspectiva de uma vida inteira cheia de amor. — Também existe a demanda para pilotos de barcos que navegam entre as ilhas, Dixon me contou. O salário é melhor do que o de notário. — Você ama o Black Swan, Matt. - ela o lembrou.
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— É verdade. Mas não sem você, Rose. — Você acha que Annie corre o perigo de ficar igual a Bess se nós a criarmos a bordo do Swan? — Deus do céu, espero que não. Uma Bess é o máximo que posso agüentar. — Bess é estranha, mas conquista o coração das pessoas tão logo compreendam como a cabeça dela funciona. Se não fosse Bess, nós nunca teríamos nos conhecido. Matt virou-se e aconchegou-a entre os braços, prensando seus seios nus, quentes e úmidos contra o peito. — Não acredite nisso, meu amor. Não sou supersticioso, mas de uma coisa, tenho certeza absoluta. Nós teríamos nos encontrado em algum lugar, num dia qualquer, mesmo sem Bess. Algumas coisas são destinadas a acontecer.
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