PROFISSÃO DEFENSOR PÚBLICO: TEORIA E PRÁTICA
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PROFISSÃO DEFENSOR PÚBLICO: TEORIA E PRÁTICA
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ASSOCIAÇÃO DOS DEFENSORES PÚBLICOS DO ESTADO DO CEARA Diretoria Biênio 2017-2018 Presidente Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes Vice-Presidente Delano Benevides de Medeiros Filho 1º Secretária Yasmina Braide dos Santos 2º Secretário Rosângela Bobô de Carvalho Noronha Diretor de Assuntos Jurídicos e de Prerrogativas Aldemar Monteiro da Silva Neto Diretora de Eventos Emília Cavalcante Nobre Gentil Diretora Parlamentar Nelie Aline Saraiva Marinho Diretor de Comunicação Social Sérgio Luis de Holanda Barbosa Soares Araújo Diretor do Interior Júlio Cesar Matias Lobo Diretora dos Aposentados e Pensionistas Benedita Maria Basto Damasceno Tesoureiro Márcio de Vieira Leite Maranhão Conselho Consultivo e Fiscal Presidente Maria Liduína Freitas da Silva Conselheira Marylene Gomes Venâncio Conselheira Valéria Menezes de Morais Lopes Administração Secretária Executiva Marilena Freire de Aguiar Assistente Administrativa Elzilene Costa Cardoso
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Organizadora Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes
PROFISSÃO DEFENSOR PÚBLICO: TEORIA E PRÁTICA
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Coordenação de Projeto e Organizadora Revisão Ortográfica Capa / Ilustrações Projeto Gráfico e Diagramação
Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes Ana Alice Nogueira Ramon Barroso Sales GMS Studio | Glaymerson Moises
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo. A violação dos direitos autorais é punível como crime, previsto no Código Penal e na Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610, de 19/02/1998). ©Copyright2018 (Impresso no Brasil / Printed in Brazil)
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SUMÁRIO
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por Marcelino José Piancó da Silva
A DEFENSORIA PÚBLICA COMO AGENTE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO PARA O FORNECIMENTO À SAÚDE
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por Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes
O LOCAL DE NASCIMENTO E O RECONHECIMENTO DA CIDADANIA AFETIVA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
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por José Valente Neto
O TEMPO E O DIREITO: A DEFENSORIA PÚBLICA E A CENTRAL DE TRANSPLANTES DO CEARÁ
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por Nadinne Sales Callou Esmeraldo Paes
O DEFENSOR PÚBLICO E SUAS PRERROGATIVAS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES BRASILEIROS
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por Jorge Bheron Rocha
A INTERVENÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CUSTOS VULNERABILIS EM FAVOR DA PESSOA PRESA PROVISORIAMENTE: UM RELATO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NO NÚCLEO DE ASSISTÊNCIA AO PRESO PROVISÓRIO E ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA (NUAPP) DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ
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por Ana Cristina Teixeira Barreto
PRÁTICAS EXITOSAS DO NÚCLEO DE ATENDIMENTO NA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA DEFENSORIA PÚBLICA – NADIJ, NO PERÍODO DE 2017 A 2018
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por Sérgio Luis Holanda Barbosa Soares Araújo
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A EXPERIÊNCIA QUE FAZ DIFERENÇA FILHO NÃO É MUSEU MARCAS DE UM CRIME NA PRIMEIRA INFÂNCIA HABEAS PORCUS ADVOGADO BOM É O QUE NÃO DEIXA FALAR! SURRA DA MORTE SEXO ILÍCITO NEM SEMPRE ONDE HÁ FUMAÇA O FOGO DEVE SER APAGADO
APRESENTAÇÃO É com muita satisfação que a Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Estado do Ceará - ADPEC apresenta a coletânea Profissão Defensor Público: Teoria e Prática, primeira publicação do gênero, que reúne textos de defensores e defensoras com o objetivo de fortalecer a produção doutrinária e divulgar o trabalho desses profissionais junto à população hipossuficiente do Ceará, em todas as instâncias, inclusive, nos tribunais superiores. O projeto surgiu como demanda do Planejamento Estratégico realizado pela diretoria da ADPEC, biênio 2017-2018, e se apresenta como mais uma ferramenta de valorização da carreira, afinal a Associação acredita que essa valorização perpassa também pelo reconhecimento dos aspectos peculiares da atuação dos defensores no que diz respeito aos direitos dos assistidos e no reconhecimento da importância do trabalho pela própria população. A ideia inicial foi unir artigos científicos e relatos de experiências práticas exitosas em uma única publicação. Com o recebimento do material, o próprio diretor de comunicação Sérgio Luis de Holanda Barbosa Soares Araújo escreveu crônicas para complementar o aspecto teórico e prático com relatos mais leves do cotidiano. No aspecto gráfico, foram incluídas ilustrações do artista local Ramon Barroso Sales, que recebeu a missão de fazer referência aos textos e à Adpec complementando a escrita com o aspecto visual. A expectativa é que esta publicação seja o início de um projeto concreto para o estímulo e congregação de relatos do exercício defensorial por todo o Ceará e que possamos contar com a colaboração dos defensores e defensoras do estado para que, com sua generosidade, possam cada vez mais relatar experiências e, com isso, compartilhar o seu olhar cuidadoso para com os mais vulneráveis.
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PREFÁCIO Tenho a honra de prefaciar esta primeira edição da coletânea Profissão Defensor Público: Teoria e Prática, publicada pela Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Ceará. Por primeiro, há que se destacar e louvar essa iniciativa da ADPEC, de estimular a produção intelectual de suas associadas e associados e dando-lhes ampla visibilidade, inclusive nacional. Quanto aos textos ora publicados, para além da qualidade técnica, irretocável, eles permitem uma ampla visão do mister constitucional da Defensoria Pública, das prerrogativas necessárias das defensoras e defensores públicos para o cumprimento desse mister e, ao mesmo tempo, uma visão humana das pessoas, situações e conflitos que encontramos todos os dias. Os artigos técnicos tratam de formas inovadoras da Defensoria Pública do Ceará enfrentar questões que atingem milhares de pessoas. Na efetivação do direito à saúde; na erradicação do subregistro e na concretização da cidadania afetiva; no atendimento às pessoas em situação de privação de liberdade. Tratam também das prerrogativas inerentes ao exercício do cargo de defensor público, que permitem que se efetive a prestação da assistência jurídica integral e gratuita às pessoas em situações de vulnerabilidades. Por fim, um artigo traz o olhar sensível e humano sobre diversas situações da vida, às vezes curiosas, às vezes tristes, às vezes engraçadas, às vezes tragicômicas. Por isso, arrisco dizer que esta coletânea permite o aprofundamento técnico e humano sobre a atuação das defensoras e defensores públicos; ambos, fundamentais! Sem técnica e sem sensibilidade, jamais a promoção, efetivação e proteção dos direitos das pessoas em situações de vulnerabilidades será exitosa. Boa leitura e, mais uma vez, parabéns à ADPEC! Antonio José Maffezoli Leite Presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos
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A DEFENSORIA PÚBLICA COMO AGENTE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO PARA O FORNECIMENTO À SAÚDE Marcelino José Piancó da Silva1
RESUMO A cada omissão do Estado, no dever de prestar um mínimo existencial à saúde, consequentemente, é gerada, por meio da Defensoria Pública, instituição criada pela Constituinte de 1988, uma atuação judicial mais ativa da população que vive do Sistema Único de Saúde, sendo essa instituição porta-voz dessa massa formada pela grande maioria da população brasileira. Assim, a Defensoria Pública é uma das instituições que podem vir a compelir o Estado a cumprir o mandamento constitucional insculpido no conteúdo vazado no art. 196 da Constituição.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Saúde. Omissão do Estado. Defensoria Pública. Mínimo Existencial. Recursos Públicos.
ABSTRACT Consequently, each time the state fails in the duty of providing the minimum necessary for the existence of health a more active judicial action is generated by means of the Public Defender office - an institution created by the 1988 Constituent Assembly to assist the population supported by the Unified Marcelino José Piancó da Silva é defensor público do Estado do Ceará, especialista em Direito Processual e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS, professor da Faculdade Paraíso de Juazeiro do Norte-CE.
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Health System (SUS), this institution acts as a spokesperson for those people. Like this the public defender office is one of the institutions that may come to compel the State to comply with the constitutional mandate inscribed in the content of the article number 196 of the Constitution.
KEYWORDS: Right to Health. State Omission. Public defender office. Minimum Necessary. Public Resources.
INTRODUÇÃO A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 prevê, em seu art. 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doen ça e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988). Essa temática, conforme se verificará, tem suscitado importantes debates na ciência jurídica, tendo a Defensoria Pública especial destaque nesta área, eis que não basta apenas existir um direito social positivado, nem mesmo discutir sua legitimidade mas, sobretudo, que seja garantido a sua real efetividade. Inicia-se a abordagem com o estudo sobre a dignidade da pessoa humana, pressuposto básico para a compreensão do direito à saúde frente ao Estado, com um breve passar de olhos sobre sua base filosófica e histórica, adentrando em sua evolução no Direito Ocidental e culminando com sua positivação no ordenamento constitucional brasileiro. A eficácia do direito à saúde também é objeto de análise no presente trabalho. O “dever ser” da previsão normativa e o “ser” da realidade, dois níveis de análise, que, em comparativo, são de suma importância para o Direito. A diferenciação e o estudo das normas, regras e princípios, tornam-se pedra fundamental para a aplicação e plena eficácia desse direito, haja vista que os direitos sociais resvalam em prestações estatais, que, por sua vez, exigem aportes financeiros por parte dos entes federados. Indaga-se para melhor compreensão do tema: o Estado pode se omitir de prestar serviços públicos considerados essenciais, alegando sua limitação orçamentária? A resposta acerca desta questão esbarra na aparente colisão entre os princípios da reserva do possível e mínimo existencial, tendo a Defensoria Pública papel central nesta arena aparente. 15
Faz-se uma rápida digressão histórica da justiça gratuita no Brasil, seus percalços iniciais, até a autonomia conquistada por meio da Reforma do Judiciário de 2004, sua importância fundamental para as pessoas que necessitam dos serviços públicos de saúde, assim como a legitimidade para propor ações coletivas em prol dos interesses coletivos e difusos. Por fim, a atuação da Defensoria Pública em relação aos interesses coletivos relativamente à saúde, também é destacada como uma das formas de trazer o Poder Público para sua principal tarefa, qual seja: evitar que o Estado seja o causador direto de ceifamento de vidas dos seus cidadãos ou o atingimento de suas integridades, físicas ou mentais, pela inação do ente estatal, seja federal, estadual ou municipal, através da responsabilização civil objetiva das esferas estatais e seus respectivos agentes.
O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E SUA EFICÁCIA A ideia de direito fundamental à saúde se relaciona com a noção de mínimo existencial. Tal percepção de evitar que o ser humano não tenha ao menos um mínimo para sua sobrevivência é antiga, sendo que, menciona, Sarmento, já havia na Antiguidade e na Idade Média mecanismos, não estritamente estatais, que visavam a diminuição da pobreza extrema, e, em contrapartida, menciona o autor que a noção atual tem origem no século XVI, especialmente na Inglaterra, quando versou-se acerca da assistência social aos desamparados (SARMENTO, 2016, p. 190). Tem-se notícia que os desenvolvimentos recentes acerca da noção de um mínimo existencial surgiram na década de 50, na Alemanha (SGARBOSSA, 2010, p. 304). Contudo, vale dizer que Sarmento afirma a probabilidade de que a primeira citação jurídica acerca do mínimo existencial não foi oriunda da doutrina alemã, mas, sim, da brasileira, em 1933, por meio de Pontes de Miranda (SARMENTO, 2016, p. 191). Miranda, lista quais seriam os novos direitos do homem, frase esta que deu origem ao título do livro, mencionado por Sarmento, que seriam: direito à subsistência, direito ao trabalho, direito à educação, à assistência e direito ao ideal (MIRANDA, 1933, p. 94). Para tanto, o direito fundamental à saúde, diretamente relacionado ao mínimo vital, tem sido um direito conquistado ao longo dos séculos. A ciência cunhou o termo gerações ou dimensões dos direitos fundamentais. 16
A democracia, institucionalizada após lutas de encontro ao absolutismo, no século XVIII, ao lado da expansão das leis codificadas, no século XIX, foi construída ao longo de um processo histórico dentro das sucessivas gerações de direitos fundamentais (BALDI, 2004, p. 7). Antes do reconhecimento do direito à saúde, hoje positivado e obrigação prestacional do Estado, a sociedade, mais marcadamente após a Revolução Francesa, exigia, no século XVIII, um maior afastamento do Estado frente à coletividade, haja vista apregoar-se que, com a liberdade, os demais direitos viriam naturalmente (OLIVEIRA, 2011, p. 29). A esses, foi atribuído o termo direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão. Nesse aspecto, acerca da esfera histórica na qual se encontram os direitos fundamentais, o movimento recebeu forte impulso após a voracidade fiscal do Estado Absolutista, eis que adotou-se um discurso de cunho universal, sendo o modelo apontado como grande causador da perda das liberdades, de modo que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi a Carta que mais contribuiu para o reconhecimento dos direitos fundamentais (PUCCINELLI JÚNIOR, 2015, p. 250). Os direitos fundamentais de segunda geração surgem com a crescente industrialização europeia, diante do aumento da densidade demográfica no mundo, o que levou a sociedade a necessitar de um papel mais ativo do Estado. Aqui, notase uma série de direitos conquistados, como educação e trabalho, bem como o direito tema central deste trabalho, a saúde (MENDES; BRANCO, 2016, p. 135). Na literatura jurídica há os direitos de terceira geração, em que se fala acerca dos direitos de solidariedade, à paz, ao patrimônio comum da humanidade, bem como ao meio ambiente (FERREIRA FILHO, 2015, p. 324). Vale salientar que não é tarefa das mais fáceis tornar concreto e efetivo um direito previsto num dado dispositivo de lei. O magistério de Barroso declara que seriam inúteis as declarações de direitos ínsitas na Constituição, se não houvesse os meios corretos para se concretizarem esses direitos (BARROSO, 2001, p. 123). O direito à saúde, pode ser considerado não só um direito social a uma prestação estatal, mas também e simultaneamente um direito de defesa do cidadão, ao tempo que externa a ideia de que a ninguém cabe invadir indevidamente a saúde deste (SARLET, 2007, p. 8). Sobre a realidade e sua relação com o ordenamento jurídico, argumenta, Hesse: O significado da ordenação jurídica na realidade, e em face dela, somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável
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contexto, e no seu condicionamento recíproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada à questão. Para aquele que contempla a ordenação jurídica, a norma “está em vigor” ou “está derrogada”; não há outra possibilidade. Por outro lado, quem considera, exclusivamente, a realidade política e social, ou não consegue perceber o problema na sua totalidade, ou será levado a ignorar, simplesmente, o significado da ordenação jurídica. (HESSE, 1991, p. 13).
Para Canotilho, há uma verdadeira imposição constitucional, inclusive, com força para alterar os traçados econômicos para fazer valerem tais direitos. Não pode significar uma dependência do direito social às questões econômicas (CANOTILHO, 2003, p. 478). Nesse aspecto, acerca das eventuais questões econômicas levantadas pelo poder público para prestar, ou não, o serviço público da saúde, afirma Kelbert, que “o que se observa é que não é apenas a escassez de recursos que se mostra problemática, mas sim, de que modo os recursos (limitados) são distribuídos” (KELBERT, 2011, p. 1946). A relação entre custo do direito e sua eficácia é objeto de diversos textos, por vezes extremos, no mundo jurídico. A questão do custo de direito é tema da reserva do possível, instituto oriundo da Alemanha, que tem sido o principal motivo, quando do mérito, para a justificativa acerca da inoperância estatal junto ao sistema de saúde. A ideia de que todo direito tem um custo não é nova, e, já no século VI, mais precisamente no II Concílio de Tours, cidade francesa, adveio o seguinte texto: Ut unaquaeque civitas pauperes et egenos incolas alimentis congruentibus pascat secundum vires, significando em português a frase “toda comunidade deve nutrir convenientemente seus habitantes pobres ou necessitados, na proporção de seus recursos”, ficando arraigado entre a população ocidental a ideia de que direitos sociais não seriam verdadeiramente direitos, mas sim, favores que orbitavam na esfera discricionária do governante, surgindo, talvez daí, a dificuldade da sociedade ocidental em encarar tais direitos como verdadeiras obrigações estatais (SGARBORSSA, 2010, p. 127-128). Por outro lado, frise-se que a experiência alemã quanto aos direitos sociais, é bem distinta da nossa realidade. Embora tenha havido uma sensível contribuição alemã aos estudos nacionais, especialmente relativos aos direitos sociais, a Alemanha, já se tinha o Estado do Bem-Estar Social vivenciado, diferentemente do Brasil, em que se luta, ainda, para erradicar uma dívida social 18
gritante, sem contar com os sequenciais e cotidianos casos de desvios de verbas públicas, com destinação descriteriosa de alocação dos recursos públicos (SARMENTO, 2016, p. 77). Mas deve-se aceitar ponderações em questões relativas ao mínimo existencial? Torres afirma que o mínimo existencial não se encontra na esfera da discricionariedade do Poder Público, tendo, o judiciário, o papel de reconhecer essa intangibilidade e fazer com que os demais poderes possam manejar os recursos públicos, a fim de garantir uma vida de existência mínima (TORRES, 1989, p.46). É possível que o juiz também se depare, no caso concreto, de dois princípios que podem, eventualmente, colidirem, como o princípio do mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Antes, é preciso diferenciar os princípios das regras. Dworkin afirma que a distinção entre princípios e regras jurídicas é de natureza óbvia. Os dois comandos normativos sinalizam para decisões sobre uma determinada questão jurídica, em circunstâncias específicas, diferenciando-se quanto à natureza da indicação resolutiva que proporcionam. As regras estão adstritas à forma do tudo ou nada. Diante dos fatos apresentados a regra é válida e, nesse caso, a resposta que fornece deve ser acatada, ou inválida, e, nesse aspecto, a decisão não será resolvida com fundamento na respectiva regra levantada (DWORKIN, 2002, p. 39). Nesse ponto, em caso de colisão entre princípios, o juiz deve agir com base em um juízo de ponderação, em que este, utilizando-se de premissas destes diferentes princípios, aprecia as circunstâncias do caso, para assim levar à aplicação do direito, com base no discurso argumentativo dos participantes do processo (BARROSO, 2001, p. 357-360). Na esteira do acima mencionado, adveio a Lei 13.655/18, que alterou dispositivos da LINDB, assim redigida “art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão (BRASIL, 2018). Para Ressurreição, o orçamento público deve dar a real importância aos direitos sociais, devendo ser tratados como prioritários, cabendo nesse ponto, ao Judiciário, com a provocação dos órgãos públicos, em especial, a Defensoria Pública, sanar eventuais vícios existentes, podendo até mesmo, o órgão judicante, determinar a realocação de verbas a pessoas que se encontrem em situações de miséria, sendo que, para o autor, torna-se inaceitável a invocação da reserva do possível para evitar que recursos públicos não possam contemplar pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, como os usuários 19
do SUS, potencial público afeto à Defensoria Pública, cuja relação entre esse órgão e esse grupo de pessoas, que se traduz na grande maioria da população brasileira, é praticamente umbilical (RESSURREIÇÃO, 013, p. 130). Para Pivetta, a questão da omissão do dever fundamental à saúde e a atuação do Judiciário, em tais casos, justifica-se na medida em que, havendo estrutura levantada com recursos previstos em orçamento para a viabilidade do direito à saúde, não pode, o Poder Público, eximir-se de prestar esse direito fundamental, alegando falta de verbas públicas após a sua inação (PIVETTA, 2014, p. 225). Será visto adiante os contornos da Defensoria Pública e sua atuação na saúde.
O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE A atuação da Defensoria Pública na área da saúde está umbilicalmente ligada com os dizeres constitucionais acerca da sua atuação, eis que a dignidade da pessoa humana, como fundamento da república, passa, necessariamente, por um mínimo existencial. A ideia da Justiça gratuita no Brasil, de início, foi distinta da nossa atual concepção. Não entendida como um direito de todo cidadão, a gratuidade da Justiça era vista como algo religioso, quase ofertado a título de favor ao cidadão. Diz, Alves, que a norma do Livro III, Título 84, §10, das Ordenações Filipinas já citava a gratuidade da Justiça. Para isso, mesmo que de forma acanhada, foi-se aumentando a preocupação do legislador brasileiro em garantir a gratuidade da Justiça brasileira, sendo que, por volta do século XIX, começaram a surgir algumas leis propriamente brasileiras, vide, por exemplo, o Código de Processo Criminal do Império, em 1832. Em 1841, foi aprovada uma lei de alteração desse código, que regulava as custas em processos penais. Em 1842, uma outra lei isentava o réu, se pessoa hipossuficiente financeiramente, de certas taxas no processo civil. Ao início da República, foi editado o Decreto n. 1030/1890, que tratava sobre a Justiça do Distrito Federal, à época, Rio de Janeiro, donde previa a criação, na capital, de um serviço de Justiça gratuita (ALVES, 2006, p. 238). Com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio do Decreto n. 20.784/1931, estabeleceu-se, no art. 91, que a assistência judiciária ficaria a critério dessa entidade (ALVES, 2006, p. 242). Aqui, note-se o primeiro dispositivo oriundo do Poder Público, reconhecendo um direito do cidadão à assistência judiciária gratuita. Contudo, a re20
viravolta legislativa no que pertine à assistência judiciária gratuita veio com a Constituição de 1934, que estabeleceu, em seu art. 113, a responsabilidade da União e dos Estados para a assistência judiciária aos necessitados, direito este que foi suprimido na Constituição de 1937, vindo a figurar novamente na Constituição de 1946, em seu art. 141, §35. Posteriormente, adveio a Lei n. 1.060/1950, que trata especificamente sobre a assistência judiciária gratuita, sendo um marco importante nesse tema, em vigor no país até os dias atuais, embora parcialmente revogada pelo novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015, que, a partir do seu art. 98, dispõe acerca do tema da gratuidade da Justiça. Nas Constituições de 1967 e 1969, o tema da assistência gratuita foi replicado expressamente. Enfim, a CRFB de 1988 trouxe a Defensoria Pública como órgão do Estado, incumbido de prestar assistência gratuita aos necessitados. Outrossim, vale trazer à baila a importante alteração no que se denominou a Reforma do Judiciário, no ano de 2004, em que a Defensoria Pública ganhou autonomia administrativa e financeira no mesmo patamar institucional dado às demais carreiras da Justiça, como Judiciário e Ministério Público. É de se pontuar que a Defensoria Pública, como órgão de envergadura constitucional, passou a ganhar fôlego a partir de Emenda Constitucional n. 45/2004, que, por meio do constituinte derivado, ganhou status de órgão autônomo, funcional e administrativamente, sendo instituição democrática e promovedora de direitos humanos, individuais e coletivos (CARVALHO; ROCHA, 2012, p. 1). O Novo CPC/15 trouxe um título destinado para a Defensoria Pública, a partir do art. 185, bem como trouxe um outro acerca do sistema de gratuidade da justiça, na sessão IV, a partir do art. 98 (BRASIL, 2015). Percebe-se que a figura do defensor público não era obrigatória no país até a CRFB de 1988 e, nesse aspecto, revela, Maia, que a medida adotada pelo constituinte é de suma importância, a ponto de vir regra expressa determinando não somente a nomeação de juízes e promotores de justiça, mas também de defensores públicos para as comarcas, pareando o sistema de justiça (MAIA, 2017, p. 2). Mas afinal, quem são os abarcados pela Defensoria Pública, tratando-se de saúde pública no Brasil? O art. 134, da CRFB, aduz que a Defensoria Pública é o órgão do Estado que prestará a orientação e defesa, judicial e extrajudicial, dos direitos dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIX, da Carta. 21
Neste contexto, tem-se que não apenas aos desprovidos de recursos financeiros serão os destinatários da atuação da Defensoria, eis que, ante ao conceito aberto do termo “necessitado”, a vulnerabilidade não se restringe apenas às causas estritamente econômicas, mas variadas, como gênero, ou idade (ALVES;GONÇALVES, 2017, pag. 17). Gebran Neto aborda o assunto, e mencionando haver quatro grupos sociais que se utilizam dos serviços de saúde, público e privado, separando, entre esses, quais são aqueles que potencialmente acionam a Defensoria Pública para ações relacionadas ao direito à saúde. Um grupo bastante minoritário tem a possibilidade de arcar com os custos de uma saúde privada, tendo acesso aos mais modernos equipamentos e tecnologias de ponta, com médicos altamente qualificados, tendo uma relação de mercado com esses profissionais e esses serviços (GEBRAN NETO, 2015, p. 62). Uma segunda parcela, um pouco maior que a anterior, é vinculada por planos ou seguros de saúde, regidos por um liame consumerista. Dessa segunda parcela, retira-se o terceiro grupo, que são aquelas pessoas que possuem algum plano de saúde, mas esses planos não prestam a cobertura que necessitam, vez que oferecem planos básicos, sem serviços que demandam uma alta tecnologia, ou mal oferecem o mínimo estabelecido pela agência reguladora, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Por último, tem-se a grande maioria da população, que depende exclusivamente dos serviços públicos de saúde, representada pelas filas nos postos de saúde, pela falta de médicos especialistas, ausências de leitos e UTIs, associados a uma parcela do terceiro grupo, quando os planos de saúde contratados não fornecem os serviços necessários (GEBRAN NETO, 2015, p. 62). Imagine-se agora o caso em que há a falta da saúde e não haja Defensoria Pública no local da omissão para exigir o seu direito. O cidadão simplesmente está a mercê dos governantes. Aqui, está-se diante de dois direitos fundamentais que se entrelaçam: o direito à saúde e o direito ao acesso à Justiça. Nas lições de Cappelletti e Garth: Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de “efetividade” é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa “igualdade de armas” — a garantia de que a condução final depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que,
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no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo. Em outras palavras, quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça podem e devem ser atacados? A identificação desses obstáculos, consequentemente, é a primeira tarefa a ser cumprida. (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 5).
Os citados autores afirmam que a efetividade da Justiça passa pelo que denominam “ondas renovatórias da justiça”, quais sejam, a assistência judiciária gratuita, os interesses difusos e coletivos e o que se chamou de “enfoque do acesso à Justiça”, sendo esse último relativo às projeções de alteração das normas processuais, com o fito de se dar maior efetividade à Justiça, com enfoque nas atividades extrajudiciais e de conciliação (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 5). A Defensoria Pública e o direito à saúde têm estrita ligação, eis que ambos são fenômenos diretos dos chamados “direitos de segunda geração”. Nesse ponto, a passagem de Ré: A Defensoria Pública, por sua vez, é essencialmente fenômeno de segunda geração, de direitos sociais. Ela não se volta tanto ao mero legalismo, mas exige o cumprimento do papel provedor do Estado, em certos casos, mesmo contra a lei, mas próxima da justiça. É fato que tutela a liberdade, a propriedade (primeira geração), bem como o meio ambiente e o consumidor (terceira geração), mas a sua essência se assenta na promoção dos direitos de segunda geração […]. (RÉ, 2015, p. 21).
De nada valeriam textos declaratórios de direitos fundamentais, bem como meios jurídico-processuais capazes de fazerem valer esse direito, em um país de milhões de miseráveis sem acesso sequer, a bem das vezes, à alimentação para o sustento da sua própria vida. Sem um órgão da estirpe da Defensoria Pública, seriam como tijolos e cimento sem estrutura metálica para segurá-los (SCHWARTZ, 2015, p. 60). Note-se que não apenas as ações individuais são possíveis de serem intentadas para a garantia do direito à saúde, mas é possível também o manejo de ações coletivas para fazer com que o direito à saúde não seja letra deitada em berço esplêndido, sem força vinculante. Ademais, o papel do defensor no prévio ingresso da demanda judicial é fundamental, eis que, antes do ajuizamento, faz salutar oportunizar ao ente público resolver a situação de forma administrativa,
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sem a necessidade do ajuizamento da demanda, para que haja economia para os cofres públicos dos custos decorrentes de um processo judicial. À Defensoria Pública, são disponibilizados os meios e instrumentos para fazerem valer o direito à saúde. De início, cumpre dizer que, ao lado dos demais legitimados, a Defensoria Pública poderá ingressar com ações coletivas com vistas a compelir o Poder Público a tornar concreto o direito à saúde, conforme art. 134 da CRFB, que, expressamente, dispõe acerca da orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos (BRASIL, 1988). Esta concepção de ações de natureza coletiva não é peculiaridade do mundo contemporâneo. Na civilização romana, já se tinha uma preocupação com as ações de cunho coletivo. Donizetti e Cerqueira resumem a construção das ações coletivas: Em síntese, portanto, pode-se dizer que na Europa e nos Estados Unidos ocorreram de modo mais acentuado, nas primeiras décadas do século XX, reivindicações sociais pela proteção de interesses de massa, as quais evidenciaram a insuficiência do modelo processual clássico, marcadamente individualista. A regulamentação do processo coletivo inserese, pois, nesse contexto, como forma de permitir a adequada tutela de bens jurídicos de natureza transindividual, que, até então, eram quase que desconsiderados pelas ordens jurídicas. (DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 2).
No Brasil, de forma eminentemente individualista, o CC de 1916 e o CPC de 1939, seguido pelo de CPC de 1973, são exemplos de legislação que se preo cupou apenas com ações individuais. Nesse ponto, surge Didier Júnior, citando Mazzei: Propugna e demonstra que o art. 76 do Código Civil de 1916 foi geneticamente projetado por Clóvis Beviláqua para a limpeza do sistema, quer dizer, pensado para afastar do direito civil do Código, marcadamente individualista, centrado no proprietário e na autonomia da vontade do cidadão, qualquer possibilidade de abertura para as tutelas coletivas. (MAZZEI apud DIDIER JÚNIOR, 2010, p. 25).
Apesar do viés individualista retratado no CC de 1916, paralelamente à vigência deste, surgiu a legislação de caráter coletivo no Brasil, embora pontual, podendo-se citar a ação popular, prevista na Constituição de 1934, com disciplina na Lei n. 4.717/1965. 24
Em sequência, foram criadas diversas outras legislações, culminando com a Lei n. 7.347/1985, que trata da ação civil pública, legislação esta recepcionada pela Carta de 1988. Dentre os variados legitimados para a propositura da ação civil pública, tais como o Ministério Público, a União e as autarquias, tem-se na Defensoria Pública, com a redação dada pela Lei n. 11.448/2007, legitimidade esta referendada por decisão unânime do STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3943, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (BRASIL, 2015). No mesmo passo da legislação infraconstitucional, adveio a Emenda Constitucional n. 80/2014, fortalecendo a legitimidade de Defensoria Pública para essa atuação, expressando ser fundamental sua atuação no plano coletivo, em defesa do cidadão vulnerável. Ademais, veja-se que o art. 185 do novo CPC/15 também realçou referida atuação, em uma constatação de que mesmo o óbvio deve constar de forma expressa. Extrai-se, dessa forma, quão superada está a ideia de que o defensor público é aquele que atua apenas no processo individual, como patrono da causa. Daí, vê-se a distinção entre o advogado e o defensor público, e entre este e o promotor de justiça. A Defensoria Pública deve atuar de todas as formas, seja como patrono, seja como ente legitimado coletivamente ou como órgão interventor nas ações que envolvam número considerável de pessoas hipossuficientes. O magistério de Fenterseifer, tratando da superação do sistema judicial anterior, informa que o pacto constitucional de 1988 decretou o fim do paradigma individualista do sistema de Justiça que influenciou o direito privado do século XX (FENTERSEIFER, 2015, p. 32). Tessler aduz que a CRFB de 1988, em várias de suas passagens, tem uma preocupação marcante pelos direitos coletivos. Já no preâmbulo, fala-se em assegurar os direitos sociais e individuais. O art. 5º menciona os direitos individuais e coletivos, bem como faz expressa menção às entidades associativas em representar coletivamente seus filiados, citando o mandado de segurança coletivo. O art. 129 e seus incisos conferem competência ao Ministério Público para velar pelos serviços de relevância pública, promoção do inquérito civil, da ação civil pública para promoção e proteção do patrimônio social, meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. E, por fim, tema afeto ao presente trabalho, o art. 134 atribui expressamente e fundamentalmente a defesa, em todos os graus, dos interesses individuais e coletivos (TESLER, 2003, p. 2). 25
Diante disso, a Defensoria Pública passou de um órgão representativo de interesses dos hipossuficientes exclusivamente individuais a um papel de destaque no âmbito processual coletivo, principalmente com o advento da Lei n. 11.448/2007, que foi alterada pela Lei n. 7.347/1985 – a chamada Lei da Ação Civil Pública –, trazendo a Defensoria Pública como órgão plenamente legitimado a propor ação coletiva, bem como com a redação da Emenda Constitucional n. 80/2014, que alterou o disposto no art. 134 da Carta Magna, colocando a Defensoria Pública como órgão atuante em prol dos direitos individuais e coletivos. Com relação às ações coletivas, é possível à Defensoria Pública manuseálas, com vistas a responsabilizar o ente estatal por dano moral coletivo pelo não fornecimento à saúde, direito este considerado, como visto acima, transindividual. Nesse sentido, acerca da relação de ações coletivas e individuais sobre a saúde, citam, Gutier, Rubens Júnior e Ventura: Essa coletivização da judicialização e a consequente garantia dos direitos fundamentais de todo cidadão passam necessariamente pela reflexão sobre a tutela processual coletiva do direito à saúde, e como o Supremo Tribunal Federal interpreta o direito fundamental à saúde, entendendo a busca desses direitos como um importante passo ao pleno exercício da cidadania. Não obstante, ressalta-se que o excesso de demandas individuais pode contribuir para que políticas públicas de saúde sejam obstadas e inibidas para que o poder público cumpra ordens judiciais pontuais. (GUTIER; RUBENS JÚNIOR; VENTURA, 2015, p. 49).
Assim, violado o direito difuso à saúde, tendo a Defensoria Pública legitimidade para figurar no polo ativo da ação coletiva em face da responsabilidade do ente estatal pela omissão, e, havendo condenação em dinheiro, conforme art. 13, da Lei n. 7.347/1984, serão, os valores, repassados a um fundo, com a função, não de ratear os valores entre interessados, mas de fomentar a prevenção a eventuais futuros problemas relativos ao tema em foco, fazendo com que a coletividade como um todo, e não individualmente, seja beneficiada, concretizando o direito difuso, com seu retorno realizado de forma societária (TEIXEIRA NETO, 2014, p. 203). Possível também aqui falar-se em responsabilização internacional por violação aos direitos humanos, em casos de omissão ao direito à saúde, como citado por Cook, que menciona o caso Alyne, onde houvera uma falha na realização dos exames de sangue e urina em tempo hábil do feto, que contribuiu para o atraso na extração deste já morto, com um atraso de 14 horas na rea26
lização da cirurgia de curetagem, necessária para remover a placenta, sendo que essa curetagem fora feita em um centro privado de saúde, inadequado ao caso, sem equipamentos, centro hospitalar este que estava prestando serviços por meio de um contrato com o município (COOK, 2014, p. 155). Em comentário acerca do caso e de seus desdobramentos, inclusive, com o falecimento de Alyne, cita, Cook: O Comitê determinou que os serviços eram inapropriados por conta da demora de 8 horas para transferir Alyne para o hospital público municipal, porque o hospital se recusou “a fornecer sua única ambulância para transportá-la, e sua família não teve condições de pagar por uma ambulância privada”. A transferência foi ineficaz porque o centro de saúde, apesar do tempo disponível para fazer os arranjos necessários, falhou ao transferi-la sem sua ficha médica. Além disso, quando ela chegou ao hospital, houve uma falha no seu atendimento, pois “ela foi deixada bastante desassistida, numa área provisória do corredor do hospital durante 21 horas até ela morrer” (COOK, 2014, p. 155).
A República Federativa do Brasil foi levada ao Comitê para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o qual condenou o Brasil pela falha em fiscalizar instituições privadas, quando conveniadas com o Poder Público, pela omissão em atender “as necessidades de saúde específicas e distintas” de Alyne durante sua gravidez (COOK, 2014, p. 156). Assim, verificou-se acima o papel central da Defensoria Pública com relação à concretização do acesso à saúde por parte dos usuários do SUS, eis que quase a totalidade da população brasileira é feita, basicamente, de pessoas desprovidas de recursos, dependentes única e exclusivamente do poder público para ver seu direito efetivado, e sem o enfoque à Defensoria, meio de acesso ao Judiciário por esse esmagador setor da sociedade, não se teria o acesso devido a esse Poder, a fim de que se evite minimizar o ceifamento perene, cruel e silencioso, por parte do Poder Público, de direitos minimamente garantidos na CRFB, que não sai nas páginas dos jornais.
CONCLUSÃO Alguém que não age quando tinha o dever de agir ou alguém que se omite quando não poderia agir dessa forma, deve ser responsabilizado. E isso é perceptível no senso comum como algo lógico, antes mesmo de ser jurídico. É, portanto, um valor que está tão consagrado na mente do homem médio brasi27
leiro que, consequentemente, espraia-se e alcança a esfera jurídica. Imagine-se a hipótese em que há um mandamento constitucional, impondo uma conduta, e sua não conduta, por motivos dos mais variados, resvala numa situação em que invade a integridade física de outrem, causando diversos males, até mesmo a morte. Pois bem, esse é o foco central do que se tentou esboçar nas linhas vazadas acima. Para tanto, de início, observou-se a compreensão da centralização do ser humano no Direito, em suas diferentes épocas históricas, passando de uma vertente filosófica, como aquela apregoada por Kant, pelos ideais cristãos, até a força cogente de um determinado dispositivo constitucional. Tomando por base o senso comum, ponto de partida (mas nunca de chegada) de qualquer investigação científica, sem a saúde, nada do que é destinado à pessoa tem sentido e efeito (popularmente conhecido como “o que importa é saúde e paz, o resto se corre atrás”). Veja-se que, no Direito, ordem positiva de valores, considerados de suma importância para determinada sociedade, o direito à saúde é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. O distanciamento do previsto na norma (o “dever ser”) da realidade (o “ser”), aqui também estudado, por vezes, há um caminho a ser percorrido e um abismo existente entre o abstrato da espécie normativa em relação à “vida como ela é”, tornando, o direito posto, muitas vezes, apenas peça de ornamentação do arcabouço legislativo, sem nenhuma aplicabilidade prática. Os fundamentos apresentados por parte dos entes são, principalmente, quanto às questões de ordem financeira, vez que incontroversa, é a necessidade de aportes financeiros para a concretização desse direito. A aparente dissociação acadêmica entre Economia (reserva do possível) e Direito (mínimo existencial) não conseguiu sobrepor-se à ligação existente entre ambas no campo prático. Tais ciências trabalham diferentes métodos, sendo que uma procura a disseminação da circulação de bens, outra busca a justiça, em óbvia síntese. Ocorre que, por vezes, esses termos são antagônicos e, comumente, há tensões, uma vez que, por vezes, decisões judiciais respingam diretamente nas raízes econômicas. A teoria reserva do possível, oriunda da Alemanha, é um dos institutos invocados pelos diversos entes para a negativa das demandas, judiciais ou administrativas, ajuizadas em busca dos diversos fármacos ou cirurgias na justiça ou junto aos próprios entes. Não se trata aqui de prescindir acerca das particularidades oriundas da complexa teia orçamentária que exige a administração de um país de linhas 28
e contornos continentais como o Brasil, mas, sim, fomentar a discussão dos limites que pairam sobre o uso destas verbas públicas sem o debate primário do tudo ou nada, mas, sim, de equacionarmos os interesses do Estado e do administrado, que, por vezes, são colidentes, quando não deveriam sê-los. Acerca desses limites e, em contrapartida, a essa máxima da reserva do possível, encontra-se o mínimo existencial, construção esta de vertente teórica que trás, em seu âmago, o conceito de justiça ou do que é simplesmente certo, como afirma Kant. Não se persegue o senso comum de que o Estado deva ser paternalista e prestar todas as necessidades do ser humano, que, cediço, são infinitas diante dos recursos, que incontestadamente possuem características de finitude. Contudo, não se pode esquecer dos mais variados problemas que marcam, ainda, a sociedade brasileira, cujas origens são calcadas por uma sociedade escravocrata, com estrutura social deficitária e destacada no mundo como uma coletividade plural, com regiões diametralmente opostas, tendo os mais variados tipos de problemas que não são nem serão solucionados apenas com boas intenções. Contudo, um mínimo direito de permanecer vivo ou ter sua integridade física incólume exige-se como papel principal do Estado. A incapacidade de gerir a saúde pública acarreta todo tipo de argumentação pelos administradores, mas note-se que a inação quando se trata de prestar a saúde não deve ser guiada pela condescendência, nem com respostas parasitárias por parte das instituições incumbidas constitucionalmente de promoção de direitos garantidos na Carta de 1988. Percebe-se que há um inconformismo latente na coletividade diante dos sucessivos descasos relativos à saúde pública protagonizados pelos órgãos públicos. Com isso, a presença de instituições tidas como proativas, como a Defensoria Pública, são fundamentais diante desta incontroversa e reiterada conduta omissiva do Poder Público, sendo este órgão instrumento vital da insurgência social. Há revoluções silenciosas, que não são vistas a olho nu, nem são festejadas na imprensa ou nas redes sociais e não são detectadas até mesmo por estudiosos da área, mas que são vistas no cotidiano das tratativas individuais protagonizadas por diversos setores, seja da iniciativa pública ou privada. Essas mudanças de comportamento social, em silêncio, são paulatinas e perenes e observadas a olho nu pelo defensor público, membro da Defensoria Pública, órgão vital para o reconhecimento da prestação efetiva do serviço público da saúde como ponto de partida para conquista plena dos demais direitos previstos na CRFB. 29
Decerto, que há dificuldades a serem detectadas nas diversas causas que levam ao descumprimento do fornecimento ao serviço público da saúde, sendo o fator financeiro visto mais claramente e mais fácil de ser detectado de forma direta. Contudo, note-se que há outros fatores, laterais, também como causas dessa flagrante inoperância estatal, como corrupção secular no país, políticas públicas escolhidas com objetivos estritamente eleitorais, associados a uma mão de obra deficitária, tendo como consequências inevitáveis, diretas e indiretas, a má qualidade dos serviços prestados na saúde, colocando vidas em risco, desembocando, inevitavelmente, no Judiciário, principalmente, por meio da Defensoria Pública, órgão de envergadura constitucional representativo da população que vive, basicamente, do SUS.
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O LOCAL DE NASCIMENTO E O RECONHECIMENTO DA CIDADANIA AFETIVA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes1
RESUMO Foi sancionada no final do ano de 2017 a Lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, a qual altera a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos. Com a alteração, passou a ser permitido que conste no local de nascimento o município de residência da mãe, em detrimento do local efetivo do nascimento. O critério da territorialidade pode ser então afastado em razão da questão afetiva. O presente artigo analisa as consequências da alteração, benefícios e desvantagens, especialmente à luz da erradicação do sub-registro.
PALAVRAS-CHAVE Sub-registro Civil. Naturalidade. Territorialidade. Afetividade. Consequências.
ABSTRACT The law about public registration was modified in september 26th of 2017 with the sanction of lar 13484. The modification allows that the place of birth be the place where the mother lives instead of the place of birth itself. So the place of birth can be changed because of the affectivity. This article analises the consequences of the alteration, the benefits and disadvantages, specially in light of the erradication of sub-registration. Ana Carolina Neiva Gondim Ferreira Gomes é defensora pública do Estado do Ceará, especialista em Direito Processual pela Universidade de Santa Catarina - UNISUL.
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KEYWORDS: Sub-registration. Naturalness. Territoriality. Affectivity. Consequences.
INTRODUÇÃO Para o ano de 2018, a Associação Nacional de Defensores Públicos escolheu o tema “Onde existem pessoas, enxergamos cidadãos, Defensoras e Defensores Públicos pelo direito à Documentação Pessoal” para campanha nacional de educação em direitos em conjunto com a Defensoria Pública dos Estados e as associações estaduais de Defensores Públicos, inclusive a Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará - Adpec. O tema envolve a erradicação do sub-registro com foco nas ações de registro de nascimento tardio, retificação de registro e de documentos, emissão de 1ª e 2ª via de documentos. A população mais vulnerável financeiramente é a mais impactada, com destaque para a população em situação de rua, comunidades ribeirinhas, indígenas, população LGBT, privados de liberdade, etc. A legislação sobre o assunto envolve a lei de registros públicos, a qual foi recentemente alterada, em dezembro de 2017. Foi sancionada no ano passado a Lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, a qual altera a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos. O presente artigo é fruto de inquietação e pesquisa sobre a referida alteração, buscando a análise da mens legis do legislador, bem como os reais efeitos do dispositivo na prática.
TERRITORIALIDADE EFETIVA X AFETIVA A alteração específica, que é objeto do presente artigo, é a que dá nova redação ao § 4º do artigo 54, da Lei 6.015. O novo artigo versa que: “a naturalidade poderá ser do Município em que ocorreu o nascimento ou do Município de residência da mãe do registrando na data do nascimento, desde que localizado em território nacional, e a opção caberá ao declarante no ato de registro do nascimento.” (NR)
O dispositivo altera a construção doutrinária e legislativa anterior, de que a naturalidade para efeitos de registro civil de nascimento se restringiria ao critério da territorialidade. Para nomear a situação, utilizaremos o termo naturalidade afetiva, em detrimento da naturalidade anteriormente compreendida, a qual era restrita ao 37
local do nascimento efetivo, em reconhecimento do princípio da territorialidade. A alteração foi inicialmente objeto de medida provisória MP 776/17. De fato, já existia a nacionalidade afetiva, nos termos da doutrina, a qual corresponde à situação do filho de brasileiro que nasce no exterior, mas em determinado momento opta pela cidadania brasileira, nos termos do artigo 12, alínea c, da Constituição, a qual dispõe que: c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.”
Assim, já existia previsão de opção, porém, em relação à nacionalidade brasileira e não à naturalidade, município de origem, pois em relação à naturalidade, havia essa coincidência obrigatória entre naturalidade e local de registro, obrigando os pais que de fato residissem em outra localidade a se dirigir com a declaração de nascido vivo até o município que desejassem estar vinculados. Entre os motivos, a alteração é uma resposta para a questão fática na qual as mães se deslocam para outra cidade para acessar maternidade de maior porte no momento da realização do parto, sendo que não desejam manter vínculo com a referida localidade. Assim, a contabilização do total de habitantes para efeito de transferência de recursos e políticas públicas passa a ser real, sem prejuízo aos pequenos municípios em detrimento dos maiores. Porém, em que pese a explanação acima, a lei possui outras consequências a serem apontadas. Inicialmente, deve ser dito sobre o benefício para simplificar o registro dos bebês no momento em que nascem, sem necessidade de adiar o ato e correr risco que crianças não sejam registradas, contribuindo com a erradicação do sub-registro civil e, por esse motivo, o dispositivo se relaciona até diretamente com os objetivos da campanha dos Defensores Públicos. A lei colabora com a desburocratização, simplificação e contribui para que um maior número de bebês sejam registrados logo após o seu nascimento. Algumas questões surgem, não como pontos negativos, mas como situações a serem dirimidas na prática. Uma delas, apontada pela autora Márcia Fidelis Lima é: “a forma de mencionar a naturalidade na certidão de nascimento, já que a lei já está em vigor e o Modelo Padrão não foi alterado pelo CNJ”. No artigo “Texto Comentado – Lei Federal 13.484/17” por Márcia Fidelis Lima disponível no site https://www.anoreg.org.br/site/2017/10/02/artigo-texto-comentado-lei-federal-13-48417-por-marcia-fidelis-lima/ acessado em 17 de agosto de 2018. 38
Para a autora: “E, para não existir confusão, já que cada registrador poderá preencher de forma diferente as certidões, o ideal é que se constasse a naturalidade SEMPRE no campo “Observações”, mesmo que a opção seja pelo município de nascimento.”.
Essa é uma das questões, além de outras, como a dificuldade em obter segunda via, a qual poderá ser solucionada com a virtualização dos cartórios. Além da questão dos campos de preenchimento e da dificuldade em obtenção de segunda via, existe a questão da situação pretérita. Uma vez que a legislação permite o registro no local afetivo, indaga-se se é possível correção ou mesmo apenas inclusão de naturalidade afetiva para quem está na situação de ter nascido anteriormente e não ter nenhuma vinculação com a cidade em que nasceu. Referida situação não é rara, pois há tempos as estatísticas médicas apontam um número maior de nascimentos em grandes centros, muito antes da alteração legislativa. Deve ser dito que além da alteração do parágrafo 4º do artigo 54, a mesma Lei 13.484 trouxe possibilidades de alteração de registro pela via administrativa, incluindo erros que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata de necessidade de sua correção, além de outros casos, como a ausência de indicação do Município relativo ao nascimento ou naturalidade do registrado, nas hipóteses em que existir descrição precisa do endereço do local de nascimento, e elevação de Distrito a Município ou alteração das suas nomenclaturas por força de lei. Ressaltando-se que essas correções são possíveis administrativamente no próprio cartório, sem excluir os demais casos, passíveis de correção pela via judicial. O que se quer dizer com o referido paralelo é que, uma vez que é possível alterar o local de nascimento na via administrativa, não resta dúvida de que também na via judicial é possível ocorrer alteração do local de nascimento. Evidentemente, a nova Lei busca desburocratizar a retificação, trazendo mais hipóteses para a retificação pela via administrativa, deixando para a via judicial aqueles casos que exijam maior indagação. Sobre a possibilidade de alteração judicial: Apelação Cível : AC 69850 PE 0000484599 Direito Civil e Processual Civil. Jurisdição voluntária. Pedido de retificação do nome da genitora, além de data e local de nascimento constantes do registro de nascimento do autor. Possibilidade de retificação. A certidão de batismo, em con-
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junto com outros elementos extraídos dos autos, revela-se suficiente para elidir a presunção de veracidade do registro público. Recurso a que se dá provimento, julgando-se procedente o pedido contido na inicial, para determinar a retificação dos dados ali referidos, nos termos constantes do assendo de batismo. (3ª Câmara Civel - TJPE).
Uma hipótese, por exemplo, pode ser o reconhecimento de local de nascimento em comunidade rural, a fim de caracterização como segurado especial. A situação é possível, uma vez que existem mulheres que optam por partos em cidades vizinhas maiores com unidades de saúde mais equipadas. A lei não especifica que documentos devem ser exigidos para comprovar e respaldar o real local de residência da mãe a fim de evitar fraudes e também não trata da possibilidade em relação ao pai, prevendo apenas o local de residência da mãe. Assim, essa podendo ser considerada uma desvantagem, qual seja, a necessidade de documentação, a qual por sua vez, caso não bem regulamentada, pode ocasionar fraude. Ademais, a falta de estudos sobre outras possíveis consequências é real, uma vez que o registro civil é documento que acompanha o cidadão por toda sua vida.
CONCLUSÃO Analisadas todas essas nuances, pode-se então concluir que a previsão da cidadania afetiva é importante vetor para a erradicação do sub-registro de nascimento, na medida em que possibilita que os pais registrem o bebê ainda na maternidade logo após o nascimento, constando no registro o local de residência da mãe, sem precisar se dirigir ao cartório daquele município posteriormente, sem o risco de que aquela criança seja registrada tardiamente ou permaneça sem registro civil. Deve ser dito ainda que o dispositivo permite o reconhecimento pelo direito do sentimento, da afetividade, em relação ao conceito de naturalidade, o qual já não se restringe mais ao critério territorial propriamente dito. A utilização do dispositivo na prática, no entanto, nos parece depender de maior divulgação e conhecimento pela população e pelos profissionais envolvidos com o próprio nascimento, médicos, enfermeiros, parteiras, assistentes sociais, funcionários dos cartórios, etc. Além disso, as consequências reais da alteração ao longo do tempo ainda são imensuráveis e deve ocorrer cautela em relação à documentação exigida para evitar fraude.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LIMA, Márcia Fidelis. Texto Comentado – Lei Federal 13.484/2017. 2018. Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/2017/10/02/artigo-texto-comentado-lei-federal-13-48417-por-marcia-fidelis-lima/ . Acesso em 15 set. 2018. BRASIL. Lei 13484 de 26 de setembro de 2017, a qual Altera a Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/ fed/lei/2017/lei-13484-26-setembro-2017-785521-norma-pl.html BRASIL. Tribunal de Justiça de Pernambuco, Apelação Cível. 69850 PE 0000484599 Disponível em: https://tj-pe.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/15325596/apelacao-civel-ac-69850-pe-0000484599
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O TEMPO E O DIREITO: A DEFENSORIA PÚBLICA E A CENTRAL DE TRANSPLANTES DO CEARÁ José Valente Neto1
SUMÁRIO: Introdução; 1. A tutela jurisdicional e a dignidade da pessoa humana; 2. A constituição e o juiz; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO A vida surpreende com alguns casos singulares. Em um, receio, não terei a faculdade do esquecimento. Era maio de 2016 e a equipe de médicos e enfermeiros encontrava-se na Central de Transplantes de Órgãos do Instituto Dr. José Frota, o “Frotão”. A priori, um cidadão, natural de Russas, não deixou herdeiros. Em sua homenagem apenas duas primas. Não houve titubeio na doação dos órgãos. Em atenção ao convênio celebrado entre a Defensoria Pública e a Secretaria de Saúde do Estado, providenciou-se o alvará judicial para fins de suprimento de vontade. É que a lei de remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano somente contempla com a autorização para doar os parentes até o segundo grau, conforme o artigo 4º da Lei 9.434/97. O pedido foi distribuído para uma das varas cíveis da Comarca de Fortaleza. A decisão remeteu o processo para uma das varas da Fazenda Pública. O declínio da competência baseou-se na presença da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará no convênio. Redistribuído, o juízo rejeitou-o liminarmente. Tratava-se de uma questão simples, com lastro na lei, na jurisprudência e na doutrina.
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Mestre em Direito Constitucional (Unifor). Defensor público do Estado do Ceará.
A Secretaria de Saúde funcionou apenas como uma longa manus do Estado, a responsável pela execução das políticas públicas, pelo fomento de um programa sem fins lucrativos, uma reação da legalidade, do próprio Estado, a fim de impedir a mercancia de órgãos ou qualquer tipo de contraprestação.
1. A TUTELA JURISDICIONAL E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Além da inexistência de celeumas, o fato reclamava urgência e sensibilidade do julgador. Com o progresso do tempo, a tendência era o perecimento dos órgãos e, obviamente, a frustração nas filas de transplante. Em sede de tutela de direitos, o magistério de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2003, p. 229) acentua que “é necessário que o juiz compreenda que não pode haver efetividade sem riscos. A tutela antecipatória permite perceber que não é só a ação (o agir, a antecipação) que pode causar prejuízo, mas também a omissão.” No bojo da salvaguarda dos princípios mais caros à condição de ser humano, a reafirmação da sua dignidade, apesar da consagração nas constituições da maioria dos países do Ocidente, ainda se manifesta como um desafio. Para Immanuel Kant (2009, p. 73), “age de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio.” A justiça não prescinde da sabedoria, da alteridade. “Se desejamos a reforma moral, não podemos nos poupar do autoexame e da autocrítica.” (MORIN, 2013, p. 354). Por um lado, todo o esforço, toda a concentração; por outro, a dispersão, o estrabismo. “É essencial pensar a decisão final como produto de uma multitude de pequenas decisões tomadas por atores os mais diversos, dentre os quais, nem todos são juízes, nem mesmo juristas.” (GARAPON, 1999, p. 162-163). Houve negativa por via indireta. Negativa sem julgamento, sem ponderação. De acordo com o pensamento de George Steiner (1997, p. 137-138): A produção da grande arte, literatura ou investigação filosófica tem sido acompanhada por inomináveis privações pessoais, ridicularização, isolamento e obscuridade, já para não falar da perseguição por razões político-ideológicas. Podemos ser em grande parte responsáveis pela romantização das imagens em Espinosa, Schubert ou Van Gogh – mas os testemunhos de sofrimento e solidão são ainda imensos. No meio da desumanidade e da indiferença históricas, um punhado de homens e mulheres foram criativamente possuídos pelo fascinante esplendor do inútil (o daimonion socrático)
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– o que constitui a eminente dignidade, o caráter principesco da nossa espécie brutal. É possível que, justamente com os santos religiosos ou seculares, este orgulho dos matemáticos, compositores, poetas, pintores, lógicos ou epistemológicos (os investigadores da investigação) resgate de algum modo a humanidade. Agrada-me a possibilidade de o surgimento de um Platão, de um Gauss ou de um Mozart entre nós, justificar e redimir a espécie que concebeu e executou Auschwitz.
Um direito novo apoia-se em princípios substanciais e não apenas em procedimentos, por mais criativos que sejam. O processo não possui apenas o escopo jurídico, mas também o político e, fundamentalmente, o social. No Estado Democrático de Direito “é indispensável a consciência de que o processo não é mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas, acima disto, um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado.” (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 1992, p. 45).
2. A CONSTITUIÇÃO E O JUIZ O juiz constitucional vinculado à dignidade da pessoa humana deve interpretar a lei à luz dos grandes postulados da contemporaneidade e repudiar “generalizações a pontos intoleráveis, tratando os casos peculiares como se não fossem portadores de peculiaridades, na ingênua crença de estar com isso sendo fiel ao direito.” (DINAMARCO, 2013, p. 231). O tempo é a sucessão, o acontecimento. No tempo, sua medida é o nosso sentimento. O tempo nunca será o texto, mas, sim, o contexto, o movimento, a interpretação. Implacável em seu curso, não recua. A inércia do tempo é o nada, o vácuo, a estupidez. Com efeito, “toda temporalidade que se absolutiza é virtualmente desconstituinte; isso é válido também para o tempo do questionamento. Superada a dialética que o liga à memória e à promessa, recai instantaneamente no vazio e encerra-se num instantâneo insignificante.” (OST, 2005, p. 307).
CONSIDERAÇÕES FINAIS A interseção entre sujeitos e objetos, ideias e significados, traduz equidade, sensatez. Ousar co contrário, por engano ou má-fé, vaidade ou prolixidade, medo ou obscurantismo, é um tributo à injustiça. “O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo: é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade.” (KOSIK, 2002, p. 23). 46
As vicissitudes, seus desígnios e suas chagas não transcorrem incólumes. São as reminiscências de Jorge Luís Borges: “- Mas esse tempo que passa, não passa por inteiro.” (2011, p. 68). A história não poupará o divórcio entre o acaso e o descaso, entre o tempo e a memória. 5 de maio de 2016: um dia que não terminou.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, Jorge Luís. Borges, oral & sete noites. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luíza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999. GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2009. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. São Paulo: Paz e Terra, 2002. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Tradução de Edgar de Assis carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. OST, François. O tempo do direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005. STEINER, George. Errata: revisões de uma vida. Lisboa: Relógio D’Água, 1997.
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O DEFENSOR PÚBLICO E SUAS PRERROGATIVAS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES BRASILEIROS Nadinne Sales Callou Esmeraldo Paes
RESUMO A Defensoria Pública é instituição com assento na Constituição Federal Brasileira de 1988, onde é qualificada como “essencial à função jurisdicional do Estado” e “expressão e instrumento do regime democrático”. Em face dessa importância e atentando-se às peculiaridades das funções defensoriais públicas, o ordenamento jurídico brasileiro deferiu aos agentes que pertencem a essa carreira jurídica algumas prerrogativas. Trata-se de instrumentos que viabilizam ou facilitam o exercício do mister, a bem dos interesses dos assistidos por eles representado. Têm assento na lei orgânica da Defensoria Pública, onde são elencados em rol passível de alargamento pelas leis orgânicas estaduais das diferentes defensorias nas unidades federativas. O presente estudo, a partir de revisão bibliográfica e de análise jurisprudencial, pesquisará algumas dessas ferramentas, perspectivando-as e legitimando-as em face de análise crítica da jurisprudência das cortes superiores brasileiras. Ao final, demonstrar-se-á que as prerrogativas dos defensores públicos são indispensáveis ao profícuo exercício das funções institucionais da Defensoria Pública, encontrando-se justificadas, factual e juridicamente, sobretudo em face da realidade de trabalho desses agentes públicos. Nadinne Sales Callou Esmeraldo Paes é defensora pública do Estado do Ceará, mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Universidade do Porto, Portugal); especialista em Ciências Jurídicas (Universidade do Porto, Portugal), em Direito e em Processo Tributário (Faculdade Leão Sampaio) e em Direito do Trabalho (Universidade Gama Filho; graduada em Direito pela Universidade Regional do Cariri; e professora.
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PALAVRAS-CHAVE: Defensor Público. Prerrogativas. Prazo em dobro. Intimação pessoal. Poder de requisição. Inexigibilidade de mandato. Jurisprudência. Tribunais Superiores Brasileiros.
ABSTRACT The Public Defender’s Office is an institution based on the Brazilian Federal Constitution of 1988, where it is described as “essential to the jurisdictional function of the State” and “expression and instrument of the democratic regime”. In view of this importance and taking into account the peculiarities of the public defense functions, the Brazilian legal system granted the agents that belong to this juridical career some prerogatives. They are instruments that enable or facilitate the exercise of the duty, in the interests of those assisted by them represented. They are based on the organic law of the Public Defender’s Office, where they are listed in a roll that can be enlarged by the state organic laws of the different defenders in the federative units. The present study, based on a bibliographical review and jurisprudential analysis, will investigate some of these tools, looking at them and legitimizing them in the face of a critical analysis of the jurisprudence of the Brazilian higher courts. In the end, it will be demonstrated that the prerogatives of public defenders are indispensable to the productive exercise of the institutional functions of the Public Defender’s Office, being justified, factual and juridical, especially in view of the reality of the work of these public agents.
KEYWORDS Public Defender. Prerogatives. Deadline in double. Personal Intimacy. Request power. Unenforceability of mandate. Jurisprudence. Superior Courts in Brazil.
1. DEFENSOR PÚBLICO: INCUMBÊNCIAS E QUALIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL O Brasil, à semelhança da grande maioria dos estados do continente americano , optou por propiciar aos seus cidadãos hipossuficientes o acesso à justiça através de uma instituição estatal criada para este fim precípuo: a Defensoria Pública. 1
A inspiração foi buscada no modelo estadunidense Salaried Staff Model, conforme historiado em dissertação de mestrado (PAES, 2013, p. 85).
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Concebida em âmbito nacional em 1988, através de previsão na Constituição Federal do mesmo ano2, a Defensoria Pública brasileira foi inserta no rol das instituições essenciais à justiça em seção própria3, recebendo tratamento apartado em relação aos poderes instituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e à própria advocacia, pública e privada. Essa topologia constitucional, por si só, já indicava a autonomia da instituição em tablado. Esse atributo, contudo, foi expressamente ratificado a partir de reformas constitucionais operadas pelas emendas nº 45 e 74 nos anos de 2004 e 2013. Desde então, a Defensoria Pública dos Estados, da União e do Distrito Federal, respectivamente, passaram a ser instituições explicitamente autônomas nas perspectivas funcional, administrativa e orçamentária por comando constitucional. Seguidamente, em 2014, a instituição em comento foi novamente prestigiada na Carta Magna brasileira quando da edição da emenda constitucional nº 80, que conferiu-a as qualificações de “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado” e de “expressão e instrumento do regime democrático”. Nesse norte, a Defensoria Pública, instituição de cariz marcadamente democrático, passou a ser qualificada no STF como “instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas”, nas palavras do decano ministro daquela corte4. Em paralelo, a emenda constitucional aludida operou sensível abertura no rol de atribuições do defensor público, a partir do manejo da expressão “fundamentalmente” no caput do art. 134 da Constituição Federal. As novas vertentes de atuação são elencadas em rol numerus apertus pela própria Carta Magna, consistindo em: i) orientação jurídica; ii) promoção dos direitos humanos e iii) defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. Com efeito, esclarece o eminente Sepúlveda Pertence, à época em que ministro do STF5, que a assistência jurídica aos necessitados é apenas uma “atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública”, o que não exclui a possibilidade de atuação dos agentes desta carreira em outras frentes. Registra-se que antes mesmo da Constituição Federal, no estado do Rio de Janeiro, foi instituída a Defensoria Pública fluminense pela emenda nº 37/87 à constituição do aludido estado. Seção IV do Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça) inserido no Título IV (Da Organização dos Poderes). 4 Celso de Mello (ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 01.12.2005, Plenário, DJe de 19.09.2008). 5 Em manifestação na ADI 558-RJ, atualmente relatada pela Min. Carmem Lúcia, ainda pendente de julgamento de mérito no STF. 2
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Na esteira desse novo panorama constitucional, a Lei Orgânica da Defensoria Pública6 passou por sensível reforma em 20097 e incluiu inúmeras outras funções institucionais à referida carreira. De sorte que, em paralelo à tradicional orientação jurídica e defesa dos “necessitados” (na acepção econômica do termo) em todos os graus, ao defensor público passou a incumbir a tutela de outros vulneráveis, como a criança/o adolescente, a mulher vítima de violência doméstica e familiar, o consumidor, a pessoa com deficiência, dentre outros grupos socialmente vulneráveis. Outrossim, sua atuação no âmbito criminal foi estendida para além da defesa processual de réus sem advogado, sendo-lhe conferida legitimação para atuar na seara pré-processual penal, na defesa da vítima, no patrocínio de ações penais privada e subsidiária da pública, bem como para atuar nos estabelecimentos penais e de internação de adolescentes, com o escopo de assegurar àqueles privados de liberdade o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais. No contexto hodierno, o defensor público posta-se, também, como promotor e garantidor dos direitos humanos, inclusive perante os sistemas internacionais. É, ademais, agente fomentador da solução extrajudicial das demandas. À instituição passou a ser incumbida a função de propiciar acompanhamento multidisciplinar aos cidadãos que dele carecerem8. Pois bem, é com base nessa nova qualificação constitucional outorgada aos membros da carreira da Defensoria Pública que se passará, a seguir, à análise de algumas das prerrogativas destes agentes, perscrutando-as, criticamente, em face da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros.
2. PRERROGATIVAS DO DEFENSOR PÚBLICO NO BRASIL Semanticamente, a ideia de prerrogativa identifica-se como uma “vantagem com que se distingue pessoa ou corporação”9. Juridicamente, as prerrogativas associam-se a algumas condições especiais deferidas a determinados agentes públicos para o melhor exercício da função em que estão investidos. Pois bem, Ao defensor público foram conferidas algumas prerrogativas pelo nosso ordenamento jurídico10. Essas vantagens encontram-se previstas na lei orgânica da Lei Complementar nº 80/1994. Através da edição da Lei Complementar nº 132/2009. 8 Nesse sentido, conferir atuais funções institucionais da Defensoria Púbica, a partir de 2009, com a nova redação do art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994 pela Lei Complementar nº 132. 9 Aurélio. Curitiba: Editora Positivo, 2010, p. 608. 10 A Lei Complementar nº 80/94 trata distintamente as “garantias” e as “prerrogativas” dos defensores públicos. 6 7
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instituição e, segundo Humberto Peña de Moraes e José Fontenelle T. da Silva (1984, p. 145), justificam-se à medida que não é suficiente “que o Estado crie, tão-só, o órgão específico, sem que garanta, institucionalmente, aos seus agentes as prerrogativas indispensáveis ao exercício pleno do múnus apartado de influências outras, ainda que os interesses em choque sejam do próprio Estado”. Sem prejuízo desse rol de prerrogativas elencado da lei orgânica federal da instituição, não se exclui a possibilidade de as Defensorias Públicas Estaduais acrescerem outras em suas leis orgânicas, a partir da autonomia de cada ente federativo (ALVES e PIMENTA, 2004, p. 118). Pertinente que se registre não se tratar de vantagens para o envaidecimento do ocupante do cargo. Tampouco representam favores ou benesses capazes de alçar a condição de defensor público a patamar superior em relação ao das outras carreiras do sistema de justiça. Trata-se, sim, de ferramentas que se justificam a bem do próprio assistido presentado pela Defensoria Pública. Como bem explica Felippe Borring Rocha (2015, p. 269), são “componentes de um arcabouço normativo que visa conferir ao Defensor Público condições materiais para bem exercer os seus ônus funcionais, diante das peculiaridades e limitações de sua atuação”. Embasadas do ponto de vista teleológico, sabe-se que são muitas as prerrogativas estabelecidas em favor do defensor público na Lei Orgânica da instituição11. A seguir, serão enfocadas algumas destas principais vantagens, perspectivando-as à luz do entendimento dos tribunais superiores brasileiros. Registra-se que a presente pesquisa debruçou-se, especialmente, sobre as prerrogativas que suscitaram maior debate perante os tribunais superiores brasileiros12.
O elenco consta nos artigos 44, 89 e 128 da LC nº 80/94 e é deferido, respectivamente, aos defensores públicos da União, do Distrito Federal e Territórios e dos Estados. 12 Eis a íntegra das prerrogativas deferidas na legislação orgânica federal da Defensoria Pública (Lei Complementar nº 80/94, arts. 44, 89 e 128): a) receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se lhes em dobro todos os prazos; b) não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, caso em que a autoridade fará imediata comunicação ao Defensor Publico-Geral; c) ser recolhido a prisão especial ou a sala especial de Estado ¬Maior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena; d) usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública; v) ter vista pessoal dos processos fora dos cartórios e secretarias, ressalvadas as vedações legais; e) comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos, ainda quando esses se acharem presos ou detidos, mesmo incomunicáveis, tendo livre ingresso em estabelecimentos policiais, prisionais e de internação coletiva, independentemente de prévio agendamento; f ) examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos; g) manifestar-se em autos administrativos ou judiciais por meio de cota; h) requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições; i) representar a parte, em feito administrativo ou judicial, independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais a lei exija poderes especiais; j) deixar de patrocinar ação, 11
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2.1. A intimação pessoal A Lei nº 1.060/50, antes mesmo da edição da Lei Orgânica da Defensoria Pública, estabelecia em favor daquele que exerce a assistência judiciária organizada ou mantida pelo Estado a prerrogativa de ser intimado pessoalmente dos atos do processo13. No contexto processual penal, também se fez constar semelhante previsão no nosso Código de Processo Penal14, na década de 40 do século passado, em favor do “defensor nomeado”. A Defensoria Pública foi constitucionalmente instituída em 1988 e, a seguir, editada a Lei Orgânica da instituição (Lei Complementar nº 80 em 1994), que, igualmente, previu idêntica prerrogativa15. A mesma ideia foi reforçada pelo atual Código de Processo Civil em 201516, que inovou ao normatizar, como derivação dessa prerrogativa, a práxis há muito corrente de se postular a intimação da pessoa do assistido da Defensoria Pública, quando o ato processual depender de providência ou informação que somente por ele possa ser realizada ou prestada17. Por muito tempo se perscrutou como essa vantagem processual se implementaria na prática, questionando-se se a sua efetivação não deixaria excessiva margem de discricionariedade ao defensor público quanto à definição do dies a quo de fluência dos prazos processuais. Afinal, careceria de que o oficial de justiça conduzisse os autos à presença do defensor público para intimá-lo? Ficaria a cargo do defensor público deslocar-se, quando reputasse oportuno, à secretaria de vara, para efetuar carga dos autos a si disponibilizada para fins de intimação? Atualmente, encontra-se consolidada no Supremo Tribunal Federal a interpretação que associa a intimação pessoal à remessa dos autos e recebimento na instituição18. O Código de Processo Civil atual regulamenta que essa intimação pode se dar “por carga, remessa ou meio eletrônico” (§1º, art. 183, CPC/15). A prequando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio, comunicando o fato ao Defensor Publico-Geral, com as razões de seu proceder; k) ter o mesmo tratamento reservado aos magistrados e demais titulares dos cargos das funções essenciais à justiça; l) ser ouvido como testemunha, em qualquer processo ou procedimento, em dia, hora e local previamente ajustados com a autoridade competente. 13 Art. 5º §5º. 14 Art. 370 §4º, CPP. 15 Arts. 44, I; 89, I e 128, I, LC nº 80/94. 16 Art. 186 §1º, CPC/15. 17 Art. 186 §2º, CPC/15. 18 Nesse sentido, julgados adiante mencionados confirmam entendimento da primeira e segunda turmas do STF: HC 125270, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 23/06/2015, processo eletrônico DJe-151 divulg 31-07-2015 public 03-08-2015; RHC 116061, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 23/04/2013, processo eletrônico DJe-112 divulg 13-06-2013 public 14-06-2013.
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ferência pelo meio eletrônico de intimação constante do CPC/1519 acarreta a obrigação para a Defensoria Pública de manter cadastro nos sistemas de autos eletrônicos20. Não sendo esta forma de comunicação possível, a intimação deve ser efetivada através de remessa dos autos ao setor de recepção do órgão. Felippe Borring Rocha (2015, p. 273-274) analisa a compatibilidade desta última forma de comunicação dos atos processuais à Defensoria Pública estatuída pelo novo Código de Processo Civil, na esteira da Lei do Processo Eletrônico21, em face da forma de intimação prevista na Lei Orgânica da Defensoria Pública (em qualquer processo ou grau de jurisdição, mediante a entrega dos autos com vista, seja por carga ou remessa)22. Conclui o aludido autor pela procedência da alteração, a partir da nova lógica do processo na era da informatização. A vantagem se encontra justificada pelo próprio STJ que, por meio da sua Terceira Seção, legitimou que: “tal prerrogativa se mostra consentânea não só com o complexo e relevante papel desempenhado pela instituição, mas também com a necessidade de otimizar a eficiência dos serviços oficiais, dependentes do acompanhamento e da fiscalização de vultosa quantidade de processos.”23 Tamanha a importância dessa prerrogativa que há entendimento firmado no âmbito da mesma corte cidadã no sentido de que a falta de intimação pessoal do defensor para a sessão de julgamento de recurso em segundo grau enseja nulidade absoluta por cerceamento de defesa24. Entretanto, impõe-se o registro à ressalva da mesma corte, que compreende que a exigência de intimação pessoal se perfaz com a mera ciência da Instituição da Defensoria Pública, por intermédio de ofício ou mesmo de mandado, devidamente recebido. Destarte, o prazo recursal iniciaria sua fluência a partir data de entrega dos autos na repartição administrativa, e não no momento do “ciente” aposto pelo membro da instituição25. A partir desse entendimento, seria prescindível a expedição de mandado para intimação do mesmo defensor público oficiante na causa26. O entendimento jurisprudencial é embasado no princípio da indivisibilidade e parte da premissa que deve a instituição organizar-se internamente para proceder às comunicações devidas entre os Art. 270, CPC/15. P. ú. do art. 270 c/c §1º do art. 246, CPC/15. Lei nº 11.419/06. 22 Art. 44, I; 89, I e 128, I, LC nº 80/94. 23 HC 296.759/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 23/08/2017, DJe 21/09/2017. 24 HC-304.957/SC, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, DJe de 6/5/2015. 25 REsp 1.349.934/SE, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, DJe 14/9/2017. 26 HC 24.683/RS, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ de 7/3/05; também nesse sentido: HC 305.041/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/11/2014, DJe 12/12/2014. 19 20 21
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integrantes da carreira. Já se decidiu, por exemplo, que a intimação reputa-se perfeita se feita em nome do Núcleo da Defensoria Pública em 2ª Instância, sendo despicienda a aposição do ciente do membro que anteriormente atuara no processo27. Ainda sobre o tema, impõe-se trazer à colação o debate recentemente dirimido pelo STJ, no julgamento de recurso especial sob rito dos recursos repetitivos, quando se consolidou o tema 959, segundo o qual: “O termo inicial da contagem do prazo para impugnar decisão judicial é, para o Ministério Público, a data da entrega dos autos na repartição administrativa do órgão, sendo irrelevante que a intimação pessoal tenha se dado em audiência, em cartório ou por mandado.”. Registra-se que, posteriormente, o acórdão proferido no HC 296.75928 foi analisado em face do aludido tema consolidado, tendo o gabinete do ministro relator concluído que a tese também se aplicaria aos membros da Defensoria Pública. Criativa a solução forjada pela corte superior que, a bem do interesse dos assistidos, desassociou a intimação da sentença do dies a quo para fluência do prazo recursal apelatório. Veja-se trecho do acórdão alusivo a essa questão: (...) 6. É natural que, nos casos em que há ato processual decisório proferido em audiência, as partes presentes (defesa e acusação) dela tomem conhecimento. Entretanto, essa ciência do ato não permite ao membro integrante da Defensoria Pública o exercício pleno do contraditório, seja porque o referido membro não poderá levar consigo os autos, seja porque não necessariamente será o mesmo membro que esteve presente ao ato a ter atribuição para eventualmente impugná-lo. 7. A distinção entre intimação do ato e início da contagem do prazo processual permite que se entenda indispensável - para o exercício do contraditório e a efetiva realização da missão constitucional da Defensoria Pública - que a fluência do prazo para a prática de determinado prazo peremptório somente ocorra a partir do ingresso dos autos na Secretaria do órgão destinatário da intimação. Precedentes. 8. Assim, a não coincidência entre a intimação do ato decisório (em audiência ou por certidão cartorial) e o início do prazo para sua eventual impugnação é a única que não sacrifica, por meio reflexo, os direitos daqueles que, no âmbito da jurisdição criminal, dependem da escorreita e eficiente atuação da Defensoria Pública.(...)29 (realce inovado)
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HC 301.061/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 06/11/2014, DJe 24/11/2014. DJe de 21/9/2017. HC 296.759/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 23/08/2017, DJe 21/09/2017.
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2.2 Da duplicidade do prazo A duplicidade do prazo para o defensor público já constava da Lei 1.060/5030, após sua alteração em 198931, antes mesmo da previsão na Lei Orgânica da Defensoria Pública32. Hodiernamente, a matéria recebeu influxos do Novo Código de Processo Civil que, para todas as manifestações processuais, deferiu prazo em dobro ao membro da Defensoria Pública33. Foi ressalvada a hipótese de previsão de prazo próprio específico para a Defensoria Pública em outra legislação, caso em que este, e não a regra geral, deve se aplicar34. Inova, outrossim, o mesmo código, ao deferir idêntico tratamento em matéria de prazo para os escritórios de prática jurídica das faculdades de Direito reconhecidas na forma da lei e às entidades que prestam assistência jurídica gratuita em razão de convênios que tenham sido firmados com a Defensoria35. A norma recém editada superou o entendimento do STJ em sentido contrário.36 Conquanto se tenha por legítima a atuação da advocacia pro bono no ordenamento jurídico brasileiro37, Felippe Borring Rocha (2015, p. 279) faz importante alerta quanto à inaplicabilidade da duplicidade processual de prazo no caso do advogado que, individualmente, atue de forma graciosa. A celeridade impregnada na órbita dos Juizados Especiais Federais, atrelada a um dispositivo da Lei nº 10.259/0138, embasaram a edição de um enunciado pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais, no sentido da inaplicabilidade do prazo em dobro no citado contexto. Alerta-se que essa defesa fundamenta-se em equivocada premissa, pois o que afasta o prazo diferenciado é o fato de figurar um ente público como parte e, não a Defensoria Pública, que, no caso, não atua como parte, mas como patrona da parte ordinariamente (ROCHA, 2015, p. 280). Pois bem, a garantia em questão, à semelhança da intimação pessoal, encontra-se sobejamente justificada em face da quantidade considerável de pessoas assistidas pela Defensoria Pública o que enseja vultoso número de atos a serem praticados pelo defensor público no exercício das suas funções. Art. 5º §5º, Lei nº 1060/50. Pela Lei nº 7.871. 32 Arts. 44, I; 89, I e 128, I, LC nº 80/94. 33 Art. 186, CPC/15. A prerrogativa também consta dos artigos 44, I, 89, I e 128, I da LC nº 80/94. 34 §4º, art. 186, CPC/15. 35 §3º, art. 186, CPC/15. 36 Registra-se que não obstante a vigência do CPC/15, o STJ entende inaplicável o prazo em dobro para os núcleos de prática jurídica com relação a recursos interpostos em momento no qual ainda vigia o CPC/73 (AgRg no AREsp 907.937/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 07/03/2017, DJe 15/03/2017). 37 Atividade regulamentada através do Provimento nº 166/2015 do Conselho Federal da OAB. 38 Art. 9º. 30 31
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Legitima essa prerrogativa39 a busca pela igualdade material no processo, haja vista a enorme quantidade de demanda de cada defensor público, bem como a distância que, na maioria das vezes, os separa das partes e das provas. Apenas para que se tenha uma ideia, traz-se à tona que, de acordo com dados do IV Diagnóstico da Defensoria Pública promovido pelo Ministério da Justiça brasileiro, no ano de 2014, cada Defensor Público brasileiro, em média, realizou 1.826 atendimentos e ajuizou 668 ações aproximadamente (BRASIL, 2015). Nesse sentido, destacamos o que leciona o ministro Napoleão Nunes Maia Filho que, analisando a prerrogativa em tablado em conjunto com a da intimação pessoal em julgamento do STJ, conclui: “são autênticos elementos da validade do devido processo legal, por se tratar de prerrogativa funcional expressa em lei específica (art. 5º, § 5º da Lei 1.060/50), cujo fundamento é a promoção e inclusão dos mais pobres nas garantias formais da jurisdição”40. Cleber Francisco Alves e Marilia Gonçalves Pimenta (2004, p. 117) advogam a inaplicabilidade da prerrogativa em espeque em relação ao defensor dativo. Nesse mesmo sentido, tem entendido pacificamente o STJ em relação aos defensores dativos, ainda que sejam estes credenciados oficialmente pelo Estado através de convênio, porquanto não há equiparação ao defensor público neste particular41. Também restou consolidada a inaplicabilidade da prerrogativa ao Ministério Público42 e à Fazenda Pública quando se trata de matéria penal43.
2.3 Do poder de requisição O poder de requisição é prerrogativa dos defensores públicos com assento na Lei Orgânica da Defensoria Pública44, também reproduzida nas leis orgânicas de algumas defensorias estaduais45. Ao contrário do requerimento, o ato de requisitar representa ordem, de sorte que deve ser cumprida por seu destinatário, salvo quando flagrantemente A par do Brasil, Bolívia, Honduras, República Dominicana e Venezuela são exemplos de Estados que também concedem essa prerrogativa aos seus Defensores Públicos. 40 STJ, HC 99.583/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 28.05.2008, DJE 04.08.2008. 41 Nesse sentido: AgRg no AREsp 1130826/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 01/03/2018, DJe 12/03/2018; HC 27.786/SP, Rel. Min. Humberto Gomes De Barros, Corte Especial, julgado em 23/10/2003, DJ 19/12/2003, p. 300. 42 HC n. 213.297/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, Dje 3/9/2015. 43 AgInt no AREsp 1077283/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 06/02/2018, DJe 19/02/2018 e AgRg no REsp 1523182/PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 07/08/2018, DJe 17/08/2018. 44 Arts. 44, X; 89, X e 128, X, LC nº 80/94. 45 A exemplo da Lei Complementar do Ceará nº 6/97, que, em seu art. 64, IV, vai além em relação à legislação federal, ao permitir o direcionamento de requisições até mesmo em relação às autoridades privadas. 39
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ilegal, conforme admoestam Cleber Francisco Alves e Marilia Gonçalves Pimenta (2004, p. 117) sua inobservância pode caracterizar os crimes de desobediência46 ou de prevaricação47 e ensejar, na seara cível, a interposição de mandado de segurança para a proteção de direito líquido e certo48. Nesse norte, leciona a doutrina de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2009, p. 842) ao analisar análoga prerrogativa deferida aos membros do Ministério Público: “Em nenhuma hipótese a requisição pode ser negada, sendo que o desatendimento pode caracterizar crime de prevaricação ou desobediência (RT 499/304), conforme o caso (CP 319 e 330)”. Da forma como prevista na legislação orgânica federal, a requisição pode ser dirigida à autoridade pública e ter por escopo a apresentação de exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições. Trata-se de importante ferramenta na prática defensorial, que se justifica pela relevante natureza das funções da instituição e, sobretudo, a bem do assistido que é representado pela Defensoria Pública. Revela-se como expressão da igualdade material e intenta compensar, em alguma medida, a hipossuficiência da parte presentada pela Defensoria Pública que, na grande maioria das vezes, não dispõe de prova documental necessária a instruir a ação que pretende ajuizar através daquele órgão. O Supremo Tribunal Federal perquiriu a constitucionalidade dessa prerrogativa em sede de controle concentrado de constitucionalidade de dispositivo da constituição estadual do Rio de Janeiro49, que conferia esse poder a defensores públicos fluminenses. A pretensão foi objeto da ADI 230/RJ50, que teve como autor o então governador do Estado do Rio de Janeiro. Naquele azo, advogava-se que a prerrogativa em espeque representaria violação à isonomia, implicaria em transformar o defensor público verdadeiro “superadvogado”, o que afrontaria a paridade de armas que deve existir entre as partes. Após intenso debate, a mais alta corte decidiu pela inconstitucionalidade da previsão, assentando que isso exacerbaria as prerrogativas asseguradas aos demais advogados. Em seu voto, a Ministra Carmen Lúcia – relatora do caso, inicialmente entendeu que “Advogado requer, quem requisita é quem exerce
Art. 330, CP. Art. 319, CP. 48 Nesse sentido, art. 4º, IX, LC nº 80/94. 49 Art.178, IV, “a” (atual art. 181, IV, “a”). 50 Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 01/02/2010, DJe-213 divulg 29-10-2014 public 3010-2014 ement. vol-02754-01 PP-00079. 46 47
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a função judicante ou a condição de advogado da sociedade, que é o papel do Ministério Público, este, entretanto, com os limites legalmente estabelecidos.” Data máxima vênia, reputa-se que a prerrogativa em análise justifica-se pela natureza das funções defensoriais. Em verdade, não obstante o defensor público enfeixe, dentre suas atribuições, o exercício de atos de advocacia, suas funções institucionais não se resumem a isto. Com efeito, a partir sobretudo da nova redação da Lei Complementar nº 80/94 conferida pela LC nº 132/09, o rol das incumbências institucionais dos defensores públicos foi sobremodo alargado, a ponto de se permitir compreender a instituição como verdadeira “expressão e instrumento do regime democrático”. Olvida o STF que – sem qualquer desmerecimento à classe dos advogados, o defensor público não pode ser tratado identicamente a estes. Nesse norte, convém o registro à própria arquitetura constitucional das instituições advocacia privada e advocacia pública; após a EC nº 80/2014, Defensoria Pública foi retirada da seção dos advogados e recebeu seção própria. Também a corroborar essa tese convém o registro à recente decisão do STJ no sentido de não obrigatoriedade de inscrição dos defensores públicos nos quadros de advogados da OAB, oportunidade em que se decidiu: “Defensores Públicos exercem atividades de representação judicial e extrajudicial, de advocacia contenciosa e consultiva, o que se assemelha bastante à Advocacia, tratada em Seção à parte no texto constitucional. Ao lado de tal semelhança, há inúmeras diferenças, pois a carreira está sujeita a regime próprio e a estatutos específicos (...)”51. Assim sendo, o poder de requisição encontra-se justificado não apenas em função do assistido, mas dos interesses, muitos deles de índole supra individual, que se descortinam por trás dele. Em interessante artigo sobre o tema, Marcel Joffily de Souza (2015) chegou à seguinte louvável conclusão: como a Constituição Federal diferencia a Advocacia (ou o Advogado) da Defensoria Pública (ou do Defensor Público), outorgando a esta última, como primordial missão, a orientação jurídica, gratuita e integral, aos necessitados (que é verdadeiro direito fundamental), a prerrogativa de requisição em análise nada mais é do que um eloquente instrumento de concretização, seja da missão institucional da Defensoria Pública, seja do direito fundamental dos cidadãos à orientação jurídica gratuita e integral por aquela prestada, seja do direito fundamental à razoável duração do processo e dos meios que assim a assegurem.
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REsp 1710155/CE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 01/03/2018, DJe 02/08/2018.
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Pertinente que se rememore que o público alvo da Defensoria Pública é composto de pessoas hipossuficientes, desconhecedoras muitas vezes dos seus direitos e do caminho e exigências legais para efetivá-los. Assim sendo, os assistidos, predominantemente, não portam, ou sequer têm conhecimento da importância de documentos essenciais a propositura de algumas ações. Citam-se, por exemplo, documentos essenciais, comumente não disponibilizados pelo assistido ao defensor público: certidão de casamento, certidões dos cartórios acerca da situações de imóveis em possessórias/usucapiões. Negar o poder de requisição, assim, representaria na negativa do próprio acesso à justiça. A par disso, o poder de requisição defensorial vem ao encontro da prestação de uma assistência jurídica célere e efetiva aos cidadãos, evitando, muitas vezes, o ajuizamento de ações desnecessárias cujo objetivo é atendido através de um mero ofício. Ademais, corrobora a prerrogativa em comento, a teoria dos poderes implícitos, como associa Marcel Joffily de Souza (2015): Desta forma, se a CF quer que a Defensoria Pública preste aos necessitados, de forma integral e gratuita, orientação jurídica, deve conferi-la os meios necessários à consecução de tão nobre fim. Além disso, devem ser assegurados os meios para que haja uma razoável duração do processo, judicial ou não. É aí, portanto, que se enquadra a prerrogativa do Defensor Público de requisição.
O fato é que, a despeito da declaração da inconstitucionalidade da norma fluminense, entende-se que a prerrogativa continua vigente com fundamento na Lei Complementar Federal nº 80/94 e, eventualmente, em outras leis orgânicas estaduais. O efeito geral e vinculante da decisão do STF recaiu, rigorosamente, sobre o objeto do seu controle – que foi a norma constitucional estadual fluminense, e não a lei complementar federal. Assim sendo, reputa-se que a prerrogativa requisitória ainda possa e deva ser aplicada, a bem de uma assistência jurídica célere e eficaz em favor das pessoas hipossuficientes.
2.4. Da atuação em geral independentemente de mandato A atuação do defensor público embasa-se na sua nomeação e posse em cargo público. A partir desse provimento inicial do cargo através de concurso público, estabelece-se relação de índole pública-estatutária. De sorte que, por esta razão, afigura-se inexigível o instrumento de mandato em face dos defensores públicos, a fim de legitimar a representação processual destes agentes em relação aos seus assistidos. 62
Com efeito, é prerrogativa prevista na lei orgânica da instituição a dispensa da outorga de mandato por estes em favor do defensor público52. É que a capacidade postulatória destes agentes decorre diretamente da Constituição Federal, como vêm entendendo o STJ53 e o STF54, e não de outorga de procuração. Trata-se de mandato ex lege, de acordo com o Min. Gilmar Mendes do STF55. Os ensinamentos de Humberto Peña de Moraes e José Fontenelle T. da Silva (1984, p. 153) vêm ao encontro dessa ideia: De fato, o vínculo mantido entre o membro do órgão público encarregado de dinamizar a assistência judiciária e o juridicamente necessitado deflui da dicção da lei e a investidura do agente no cargo e não da outorga de mandato. É um liame de natureza público-estatutária, exsurgente da legislação que estabelece a estrutura do órgão, comete atribuições específicas e disciplina as atividades dos seus componentes e não de natureza privatísitica-contratual.
Entretanto, há que se ressalvar a necessidade de apresentação do mandato pelo defensor público se a representação pretendida tiver escopos específicos56, não contemplados na cláusula geral para o foro57, como, por exemplo, quando envolver o recebimento de citação, confissão, o reconhecimento da procedência do pedido, transação, desistência, renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação, o recebimento, dar quitação, firmar compromisso e a assinatura de declaração de hipossuficiência econômica. Igual raciocínio se aplica em matéria de queixa-crime58 e de oposição de exceção de suspeição de magistrado59. Importante diferenciação foi realizada pela corte cidadã, ao perquirir se a prerrogativa em tablado se aplicaria ou não aos escritórios de prática jurídica das instituições de ensino jurídico superior. No azo, o STJ assentou que “O Núcleo de Prática Jurídica, por não se tratar de entidade de direito público, não se exime da apresentação de instrumento de mandato quando constituído pelo Arts. 44, XI; 89, XI e 128, XI, LC nº 80/94. Através da sua quinta turma, no julgamento em 04/08/2016 do RHC 61.848/PA, relatado pelo Min. Felix Fischer, DJe 17/08/2016. 54 AI 616.896-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 14/06/2011, DJe-123 divulg 2806-2011 public 29-06-2011 ement vol-02553-02 PP-00247. 55 AR 1937, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 02/02/2017, publicado em DJe-021 divulg 03/02/2017 public 06/02/2017. 56 Nesse sentido: STJ, REsp 1431043/MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 16/04/2015, DJe 27/04/2015. 57 Art. 105, CPC/15. 58 Art. 44, CPP. 59 Nesse sentido: AgRg no AREsp 959.615/ES, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 20/10/2016, DJe 28/10/2016 e REsp 1431043/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 16/4/2015, DJe 27/4/2015. 52 53
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réu hipossuficiente a quem cabe a livre escolha do seu defensor, em consonância com o princípio da confiança”60. Entretanto, quando a mesma entidade atuar por nomeação do juiz em favor de réu hipossuficiente, neste caso é dispensada a apresentação do mandato61.
3. CONCLUSÕES A Defensoria Pública enquanto instituição essencial à justiça foi alçada, por reformas constitucionais realizadas nos últimos tempos, à condição de instrumento e expressão do regime democrático. A partir do atual texto constitucional, também se percebeu sensível alargamento das incumbências do defensor público, demonstrando-se que este agente, dentre outras funções, posta-se, hodiernamente, como verdadeiro garante dos direitos humanos das pessoas vulneráveis, em uma acepção ampla deste termo. Essa contextualização inicial legitimou o deferimento a estes agentes públicos de algumas prerrogativas, dentre as quais realçaram-se aquelas que maior debate ensejaram perante os tribunais superiores brasileiros. A partir da análise crítica desenvolvida na pesquisa das decisões do STF e do STJ, conclui-se que essas condições especiais deferidas ao defensor público restam legitimadas, a partir da condição especial de trabalho do defensor público e dos assistidos que são por ele representados, de sorte que consolidam-se como indispensáveis ao profícuo exercício defensorial.
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AgRg no AREsp 1192663/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 12/06/2018, DJe 22/06/2018. 61 EAREsp 798.496/DF, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Terceira Seção, julgado em 11/04/2018, DJe 16/04/2018. 60
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A INTERVENÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CUSTOS VULNERABILIS EM FAVOR DA PESSOA PRESA PROVISORIAMENTE: UM RELATO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NO NÚCLEO DE ASSISTÊNCIA AO PRESO PROVISÓRIO E ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA (NUAPP) DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ Jorge Bheron Rocha
I – RESUMO DA SITUAÇÃO-PROBLEMA Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizada em junho de 2016 e publicado em dezembro de 20171, o Brasil conta atualmente com mais de 726.712 pessoas encarceradas, o que resulta em uma taxa de ocupação média de 197,4% do sistema prisional, em que faltam 358.663 vagas em todo o país. Observe-se que, no levantamento anterior, existiam 622.202 presos e faltavam 250.318 vagas, a uma taxa de ocupação era de 167%2 . Ressalte-se que o número de presos no ano de 2000 era de 232.755. O STF, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, reconheceu na Medida Cautelar o chamado “Estado de Coisas Inconstitucional” relativamente às violações impostas aos presos, em condições indignas, desumanas e efetivamente cruéis, em seus direitos fundamentais perpetradas pelo próprio Poder Público. Embora a prolação desta decisão pela mais alta Corte de Justiça do Brasil, não há no horizonte atual nenhuma perspectiva de planejamento que deixem DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização – Junho de 2016. Brasília, 2017. Disponívem em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/ noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2018. 2 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Infopen – Dezembro de 2015. Brasília. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2018. 1
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antever a implementação de políticas públicas sérias que se verifique impactar nos números catastróficos do cárcere brasileiro. Saliente-se que a perspectiva caminha em sentido contrário, fundamentado em um irrazoável pensamento punitivista de vingança, as propostas apresentadas dramatizam o quadro, pois culminam com a criminalização de mais condutas3, elevações das penas de condutas já criminalizadas4, propostas de endurecimento nas regras de progressão de regime5, restrições às hipóteses de indulto e comutação de penas no decreto presidencial6. E ampliação da execução da pena privativa de liberdade para as condenações ainda não transitadas em julgado7. É despiciendo salientar que a prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes, falseando a idéia disseminada a partir do século XIX, segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional”8. Ademais, há estudos que indicam que o índice de reincidência é menor em relação àqueles que não tenham passado por anterior prisão provisória. Por exemplo, entre os réus beneficiados pela suspensão condicional do processo, a reincidência fica na casa de 17,2%, conforme pesquisa feita pelo Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília9, enquanto que em relação aos condenados a penas privativas de liberdade, “a cada quatro apenados, um é reincidente legalmente”10, conforme relatório do Conselho Nacional da Justiça. A partir de 2011 fora possibilitado aos magistrados a decretação de inúmeras medidas cautelares diversas da prisão, com o advento da Lei 12.403. Curiosamente, entre 2008 e 2011, portanto, antes de sua vigência, a taxa de encarceramento provisório subiu em 3%, era de 31% e foi para 34%. Já entre 2011 e 2014, este percentual subiu de 34% para 40%, um aumento de 6% – o
Projeto de Lei n º 4850/2016. Lei Nº 13.330/2016 – ver MOREIRA, Rômulo de Andrade ROCHA, Jorge Bheron. Direito Penal das Castas: a solução tupiniquim de como piorar os problemas. Disponívem em: <http://emporiododireito.com.br/ direito-penal-das-castas-a-solucao-tupiniquim/>. Acesso em: 10 abr. 2018. 5 Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/ministro-vai-propor-mais-rigor-na-progressao-de-penas-de-estupro.html>. Acesso em: 10 abr. 2017. 6 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8940.htm>. Acesso em: 20 jun. 2018. 7 STF – HC 126.292. 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 1. 9 Disponível em: <http://www.unb.br/noticias/unbagencia/cpmod.php?id=59973>. Acesso em: 2 set. 2018. 10 Relatório final de atividades da pesquisa sobre reincidência criminal, conforme Acordo de Cooperação Técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/07/572bba385357003379ffeb4c9aa1f0d9.pdf>. Acesso em: 2 set. 2018. 3 4
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dobro do anteriormente verificado, demonstrando a não aplicação da lei, a compreensão de seus objetivos ou, pelo menos, sua ineficácia. Segundo pesquisa realizada pela 7ª Defensoria Pública do Núcleo Apoio do Preso Provisório, em agosto de 2017, aplicada à Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), localizada em Itaitinga-CE, de um total de 1.406 internos, cerca de 220 estão encarcerados há mais de um ano sem que haja sequer sentença condenatória em primeiro grau de jurisdição no processo pelo qual tem mandado de prisão preventiva. Mais de 50 pessoas já se encontram nesta situação a tempo superior a dois anos. Estas pessoas presas com tempo excessivo concentram diversas vulnerabilidade, a do encarceramento, a social, em razão da saúde11 e, principalmente, econômica. Os dramas são mútiplos: (i) muitas das pessoas presas têm, pelo menos formalmente, advogados constituídos no processo, entretanto, com eles não costumam manter contato direito, senão por intermédio de familiares; (ii) outras não têm qualquer contato com familiares ou amigos, permanecem completamente esquecidos do mundo exterior e tem como únicas relações sociais as quem mantém com os próprios companheiros de cárcere; (iii) e um percentual considerável dessas pessoas se encontra presa na capital ou Região Metropolitana, mas sua origem é do interior do Estado, assim como o domicílio de sua família e, ainda, é lá que se dá o trâmite de seu processo penal. Na lição de Carnelutti: “o mais pobre de todos os pobres é o preso, o encarcerado”12.
II – METODOLOGIA E FERRAMENTAS UTILIZADAS A metodologia utilizada para a prática foi o levantamento das situações de vulnerabilidade antes narradas e a implementação do entendimento de que a Defensoria Pública está imbuída de legitimidade ordinária para a realização finalística da missão institucional de promoção dos direitos humanos e de acesso à ordem jurídica e social justa às pessoas e coletividades vulneráveis, prevista no art. 134 da Constituição Federal e detalhado no ordenamento jurídico no microssistema jurídico-defensorial, formado principalmente pelas normas inseridas na Lei Complementar 80/94, Código de Processo Civil e Lei de Ação Civil Pública. As pessoas privadas de liberdade têm, em média, uma chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose, segundo os dados publicados pelo Ministério da Saúde. Disponível em: <http:// portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/743-secretaria-svs/vigilancia-de-a-a-z/tuberculose/l2-tuberculose/11941-viajantes-tuberculose>. Acesso em: 2 set. 2018. 12 CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Tradução de Carlos Eduardo Trevelin Millan. São Paulo: Editora Pillares. 2009, p. 24. 11
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Para o relato, fora realizada pesquisa basicamente com análise bibliográfica e o estudo documental das peças processuais dos membros da Defensoria Pública, dos pareceres ministeriais e das decisões judiciais. Inicialmente, buscou-se fazer uma revisão da literatura tradicional que ostentava, ainda, uma visão tradicional e individualista do acesso à Justiça e, por conseguinte, da assistência jurídica gratuita, delimitando a atuação da Defensoria Pública a processos onde figurassem pessoas pobres sem qualquer condição de constituir advogados privados, vedada sua atuação onde houvesse já um procurador judicial com poderes outorgados diretamente pela pessoa presa. Também se verificou que a Defensoria Pública tem um perfil constitucional e institucional revolucionário na Carta de 1988, que estabeleceu como objetivo a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza (art. 3º, III, CRFB), garantindo a todos o acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB), como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB), independente de origem, cor, raça, posição social, gênero ou orientação sexual, convicção filosófica, política ou religiosa, idade, entre outros (art. 3º, IV, CRFB), erigida pelo constituinte originário uma Instituição especialmente dedicada à orientação, defesa e promoção jurídicas (art. 134, caput, CRFB) em favor dos necessitados (art. 5º, LXXIV, CRFB). O múnus da Defensoria Pública não se liga exclusivamente à proteção daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica, senão em diversas outras situações relacionadas a direitos indisponíveis, como a vida, a liberdade, a dignidade, a saúde, ou, ainda, indivíduos ou coletividades especialmente protegidas, como crianças, adolescentes, mulheres vítima de violência, idosos, doentes, populações de rua, abrangendo outras vulnerabilidades sob o prisma organizacional13.
Vê-se que a Defensoria Pública atua legitimidade ordinária quando “defende interesses institucionais primários, ou seja, visa a realização finalística de sua missão institucional de promoção dos direitos humanos e de acesso à ordem jurídica e social justa às pessoas e coletividades vulneráveis”14. Nestes casos, a atuação do defensor público se dá em presentação da própria instituição Defensoria Pública, em nome próprio e no regular exercício de sua Procuratura
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada>. Acesso em: 20 ago. 2017. 14 ROCHA, Jorge Bheron. Enunciados Jornada de Direito Processual Civil STJ/CJF – Organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodivm, 2018, prelo. 13
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Constitucional das Vulnerabilidades15, que se encontrem os indivíduos ou as coletividades, conforme inscrito no art. 134 e em consonância com os fundamentos, objetivos, direitos e garantias proclamados pela Constituição Federal e [...] se dirige para realizar o necessário equilíbrio nas relações político-jurídicas em que o indivíduo - ou o grupo - vulnerável está submetido, que em razão de esta vulnerabilidade lhe dificultar ou obstacularizar a realização da (ou a busca pela ou o acesso à) Justiça ou com a finalidade de reduzir ou de dissipar a própria vulnerabilidade existente16.
No processo penal, a atuação do defensor público no processo penal pode se dar como representante judicial na defesa da parte acusada ou de assistente de defesa, mas também como representante judicial do ofendido ou seus sucessores para o patrocínio da ação penal privada ou da assistência à acusação. Contudo, as funções institucionais da Defensoria Pública devem ser exercidas em defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (art. 4º, XI), promovendo, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios (art. 4º, II), exercendo suas atribuições em processos administrativos e judiciais, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses (art. 4º, V), inclusive todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela (art. 4º, X), o que possibilita a atuação em nome próprio, seja como autor, seja como terceiro interessado, na condição de custos vulnerabilis — e não como representante direto de uma das partes da demanda penal, já suficientemente representadas por advogado particular. Luigi Ferrajoli sugere que o defensor público, enquanto magistrado — na significância de carreira estatal que desempenha as funções ligadas à Justiça —, atue como um Ministério Público da Defesa, responsável pela consecução do interesse público na tutela dos acusados, como órgão complementar e subsidiá rio ao procurador constituído, e não em substituição deste, com poderes públicos para a investigação e colheita de elementos para a refutação das provas. A Defensoria Pública é órgão interveniente na execução penal para a defesa em todos os graus e instâncias das pessoas encarceradas, que se configuram, individual e coletivamente, uma massa vulnerável organizacionalmente, em razão da dificuldade de recursos para mobilizar sua defesa, das limitações STF – ADI n. 3943-STF e EREsp n. 1192577. ROCHA, Jorge Bheron. Legitimação da Defensoria Pública para ajuizamento de ação civil pública tendo por objeto direitos transindividuais. Florianópolis: Empório Modara Editora, 2018, p. 20.
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lógicas de locomoção e de contato com o mundo exterior17, inclusive com seu procurador judicial que tem dia e hora para lhe visitar e conversar reservadamente, não podendo, por exemplo, lhe apresentar em toda a extensão os elementos de prova que tem a acusação, nem mesmo os próprios elementos de defesa, como testemunhas, filmagens, lugares ou objetos. Ademais, [...] não obstante tenha constituído advogado privado para a defesa, não possui condições financeiras para incluir no contrato os custos com o deslocamento deste causídico até a capital onde fica a sede dos tribunais de Justiça estaduais, ou, ainda, em caso de processo perante a Justiça Federal, podendo inclusive exigir deslocamento para outro estado da federação distante milhares de quilômetros de onde se encontre, se levarmos em consideração que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem sede em Brasília e compreende as seções judiciárias do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins18.
Assim, a Defensoria Pública tem como missão atuar nos estabelecimentos penitenciários, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais (art. 4º, X e XII, LC 80/94), constituindo-se órgão de execução penal (art. 61, XVIII, Lei 7.210/84), que deverá velar pela regular execução da pena, da medida de segurança (art. 81-A, Lei 7.210/84) e da prisão provisória (parágrafo único, Art. 2º, Lei 7.210/84), resultando que lhe é possível atuar, para o fiel cumprimento de sua missão constitucional, como um terceiro interveniente, sem substituir ou dispensar o procurador judicial do acusado, uma vez que este já se encontra suficientemente representado no feito em análise por membro da advocacia privada, que presta serviço público e exerce função social (art. 2º, §1º, EOAB) indispensável à administração da justiça (art. 133, CRFB), cuja atuação está protegida pelo Princípio do Defensor Privado Natural (art. 5º, LIII, CRFB). É neste sentido que a Defensoria Pública do Estado do Ceará instituiu o Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência – NUAPP com o objetivo de promover a assistência jurídica, social e psicológica aos presos provisórios, às vítimas de violência e aos familiares de ambos, a partir da análise da vulnerabilidade. TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 237-238. 18 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jul-11/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-complementaridade-advocacia-privada>. Acesso em: 13 abr. 2018. 17
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Vale ressaltar que a atuação do NUAPP não se dá apenas de forma individualizada, ao revés, grande parte de sua atuação, em obediência às prescrições constitucionais e legais que norteam a atuação da Defensoria Pública, se dão de forma coletiva, v.g. com as inspeções que são realizadas nos estabelecimentos prisionais, verificadas as instalações, as condições de higiene, dormitórios, alimentação, etc19. O Núcleo de Apoio ao Preso Provisório atua diretamente nos estabelecimento de privação provisória de liberdade e, com as prerrogativas que são asseguradas à instituição e aos seus membros, a Defensoria Pública – a quem a Constituição incumbe a promoção dos direitos humanos – atua como Custos Vulnerabilis, em processos que têm advogados privados constituídos, carreando ao autos dos processos penais informações e argumentos aptos a colaborar não apenas com o contraditório substancial, mas, e, principalmente, a auxiliar no esclarecimento de aspectos importantes das condições do preso, do estabelecimento prisional, a fim de analisar especificamente cada caso e encontrar, dentre as possibilidades existentes, uma solução para a liberdade e (re)constituição social da pessoa ergastulada.
I.3 – CASOS CONCRETOS DE ATUAÇÃO CUSTOS VULNERABILIS I.3.1 – NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU (INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL, RELAXAMENTO, REVOGAÇÃO DE PREVENTIVA E AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA) A família do preso provisório S.S.S. procurou a Defensoria Pública por saber que existe em sua estrutura orgânica o NUAPP e que este realiza visitas, atendimentos e inspeções regulares nos presídios da Região Metropolitana de Fortaleza, o que possibilitou o pedido de ingresso da Instituição como terceiro interveniente, levando aos autos do incidente de insanidade mental informações imprescindíveis para o mais adequado tratamento do acusado que, certamente, não seria no cárcere onde se encontrava.
Artigo 2º -¬ Compete ao Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e às Vítimas de Violência (NUAPP): […] X – realizar inspeções nos estabelecimentos nos quais os presos provisórios da comarca de Fortaleza estejam recolhidos, bem como nas Casas de Privação Provisória de Liberdade, nos hospitais e nos manicômios ligados ao sistema penal da Região Metropolitana de Fortaleza, zelando pela efetivação de seus direitos fundamentais (Resolução nº 31/2010).
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Neste caso, a Defensoria Pública levou aos autos a cópia do prontuário médico de S.S.S., reiterando os argumentos apresentados pelo advogado constituído e, ainda, apresentando a quesitação para o exame clínico a ser realizado. O representante do Ministério Público com atuação no específico processo, como guardião da lei e da ordem jurídica - Custos Legis et Iuris – , ofereceu parecer favorável à admissão da Instituição no incidente, ao lado do advogado constituído, tendo o promotor de Justiça Neemias de Oliveira Silva se manifestado nos seguintes termos: [...] é cediço que a Defensoria Pública age em defesa de entes encarcerados, velando e zelando pelos direitos atinentes aqueles, circunstância essa que reforça a admissibilidade de sua intervenção no presente incidente, sem contar que o excesso de patrocínio do paciente, na específica demanda, não acarreta prejuízo a sua pessoa […] devendo ser aceita também a intervenção da Defensoria Pública no vertente processado, com a aceitação de sua quesitação […] a intervenção da Defensoria Pública no pleito em palco, em razão da matéria sondada ser afeta a defesa de direito fundamental – direito a saúde –, bem como ter natureza de ordem pública, não pode ser embaraçada, na medida em que a mesma se situa no círculo inerente ao CUSTOS VULNERABILIS (fls. 61/62, 14/6/2017).
A juíza de Direito Adriana Aguiar Magalhães, em atendimento ao referido pedido, assim decidiu por acolher “a súplica do nobre causídico e também a atuação defensorial como custos vulnerabilis para determinar a realização do exame de sanidade em S.S.S.” (fls. 64). A Defensoria Pública também já atuou em pedidos de liberdade em que o advogado particular concordou expressamente com o pedido. O NUAPP também passou a atuar diretamente requerendo medidas de liberdade, como custos vulnerabilis, para as pessoas presas na capital cujos processos estavam com trâmite paralisado no interior do Estado do Ceará, com elevação de 3 pedidos em seis meses (setembro de 2017 a fevereiro de 2018) atuando como representante judicial para 60 pedidos entre março e julho de 2018. Também a partir de março de 2018, a Defensoria Pública passou a atuar como custos vulnerabilis em audiênca de custódia realizada, requerendo medidas benéficas para o acusado, em complementação ao advogado constituído, especialmente em se tratando da sindicância da ocorrência de torturas nas esferas policiais e sua eventual apuração. 75
I.3.2 – HABEAS CORPUS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em sede de Habeas Corpus impetrado por advogado privado em favor de réu preso, a Defensoria Pública apresentou Pedido de Juntada de documentos e requereu sustentação oral enquanto interveniente para amplificar a ampla defesa da pessoa presa provisoriamente. O desembargador Teófilo Neto do Tribunal de Justiça do Estado do Cea rá, analisando o pleito defensorial, determinou a intimação da “Defensoria Pública na condição de custos vulnerabilis, conforme requerido na petição de páginas 84/87, acerca da realização do julgamento do presente writ” (fls. 93 dos autos respectivos). Não obstante, ao final, tenha sido o HC denegado, em razão de omissão no julgado quanto à aplicação de medidas cautelares, a Defensoria Pública, ainda na condição de Custos Vulnerabilis, e no uso da ampla legitimidade recursal desta modalidade interventiva, apresentou Embargos de Declaração que, embora ainda não julgados, receberam parecer favorável do procurador de Justiça Eulério Soares Cavalcante Júnior. Em outro HC, acompanhando o parecer da Procuradora de Justiça, que reconheceu expressamente a legitimidade da atuação da Instituição, o Tribunal admitiu a intervenção da Defensoria Pública custos vulnerabilis. Na decisão, o Desembargador deixou consignado que: De início, admito a intervenção da Defensoria Pública do Estado doCeará na condição de ‘’guardiã dos vulneráveis”, independentemente de haver ou não advogado particular constituído, por entender que essa manifestação defensorial é um mecanismo para abrandar a vulnerabilidade processual daquelesw mirados ou atingidos pelo Poder Punitivo Estatal, compensando a falta legislativa com a igualdade processual e paridade de armas, potencializando beneficamente o exercício do mister constitucional da Defensoria Pública, à luz do art. 134 da Constituição Federal, com a máxima efetividade. Registre-se, por pertinente, que o papel de custos vulnerabilis é institucional, objetivando a proteção dos interesses dos necessitados em geral, não se confundindo com a representação da parte (ainda que feita pela própria Defensoria Pública mediante atividade de representação) e sempre respeitando a atividade de representação do advogado constituído no processo.
O citado HC foi impetrado contra prisão preventiva determinada por juiz do interior do Estado, onde era assistido por advogado dativo, demonstrando a importância da atuação da Defensoria Pública em promoção dos direitos humanos. 76
I.3.3 – HABEAS CORPUS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Perante o Supremo Tribunal Federal, o NUAPP apresentou pedido de intervenção como Custos Vulnerabilis em Habeas Corpus proposto pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), em que foi requerida a substituição da prisão preventiva de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mães de crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade. Embora ainda sem decisão, o relador do HC 143.641, ministro Ricardo Lewandowski, admitiu a intervenção da Defensoria Pública Custos Vunerabilis enquadrando esta atuação em figura típica de intervenção do processo civil, a assistência, bem assim deferiu requerimento de intimação do Defensor Público Geral Federal para atuar no processo como defensor público natural custos vulnerabilis no STF: “Defiro, por fim, a intimação do Defensor Público Geral Federal, para que esclareça sobre seu interesse em atuar neste feito”.
I.4 – OUTRA ATUAÇÕES O Nuapp da DPCE fez a primeira intervenção como custos vulnerabilis no STF e também no STJ, mas negado seguimento ao HC impetrado. Também já atuou junto ao Conselho Nacional de Justiça e à Procuradoria Geral da República. Extrajudicialmente, principalmente na seara administrativa, é amplo o leque de atuação do NUAPP, podendo obter desde certidões e declarações para o exercício de direitos até a transferência de presos para enfermarias ou o requerimento de visitas médicas e o fornecimento de medicamentos ou alimentos especiais em decorrência de características alimentares diagnosticadas. De fato, um dos objetivos do atendimento realizado semanalmente junto às Unidades Prisionais do Estado do Ceará é o registro de questões de saúde relatadas pelos internos. Muitos referem coceiras, tosses, insônias e outros males. Tais reclamações acerca da saúde são encaminhadas ao departamento de saúde para providências. Também os presos referem problemas nas visitas, principalmente visitas íntimas, tendo em vista uma série de requisitos que são impostos pela Secretaria de Justiça, nomeadamente os que estão previstos no Regimento Geral dos Estabelecimentos Prisionais do Ceará, aprovado pela Portaria nº 0240/2010. Muitos dos casos podem ser resolvidos mediante requerimentos administrativos, demonstrando uma melhor interpretação das disposições, bem como sua necessária compatibilidades com as leis e a Constituição. 77
A título de exemplo, lapidar é o caso de preso que fora encaminhado às pressas para hospital externo para atendimento de emergência em que o NUAPP solicitou ao departamento de Assistência Social o encaminhamento do prontuário médico para as medidas cabíveis.
III – BENEFÍCIOS INSTITUCIONAIS ALCANÇADOS A intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis em favor dos presos provisórios sem retirar o protagonismo jurídico dos procuradores judiciais reforça as medidas judiciais requeridas por estes, bem assim, faculta na seara administrativa o atendimento multidisciplinar da instituição a esta categoria de vulneráveis. A atuação custos vulnerabilis da Defensoria Pública é ainda uma atuação em gestação, mas que já aponta para as grandes resultados futuros, figurando, como principais: a) humanização do atendimento à pessoa encarcerada: os presos poderão ter um atendimento jurídico, social e psicológico da Instituição, independente de ter outorgado procuração para advogado particular representá-lo judicialmente nos autos do processo penal a que responde perante à Vara criminal, tendo em vista que a atuação da Defensoria Pública, com este viés, não dispensa e nem substitui a importante tarefa conferida ao causídico particular. b) possibilidade concreta de diminuição da excessiva massa carcerária, uma vez que poderão ser fornecidos e utilizados elementos outros de informação, v.g. acerca da saúde física e mental do preso, para que possibilite o seu desencarceramento; c) aprimoramento dos serviços públicos oferecidos dentro das instalações carcerárias, em prol de todos os presos, uma vez que poderão relatar problemas e soluções todas as pessoas presas, e não apenas aqueles que previamente solicitaram assistência jurídica em autos de processo penal. Até o presente momento, as atuações como custos vulnerabilis em prol de acusado com problemas mentais (fornecimento de informações no incidente de insanidade mental), de saúde (relatório de ocorrências e reclamações de doença dos presos ao departamento de saúde e solicitação de prontuário em hospital externo) têm se mostrado como firme esperança de solução de problemas que antes se mostravam mais penosos. Jorge Bheron Rocha
Defensor público titular da 7ª Defensoria Pública do Núcleo de Apoio ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência - NUAPP.
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PRÁTICAS EXITOSAS DO NÚCLEO DE ATENDIMENTO NA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA DEFENSORIA PÚBLICA – NADIJ, NO PERÍODO DE 2017 A 2018 Ana Cristina Teixeira Barreto
O Núcleo de Atendimento na Infância e Juventuda da Defensoria Pública - NADIJ tem atuado de forma a garantir às crianças e adolescentes acolhidas o gozo dos direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, assegurados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo a lhes proporcionar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, por meio da efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao acesso à cultura, ao lazer, ao esporte e à convivência familiar e comunitária. O NADIJ promove, além da assistência jurídica integral e gratuita, por meio do acompanhamento periódico da situação processual de cada acolhido, meios de concretização dos direitos fundamentais, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 71. A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Dentre as atividades culturais e esportivas já proporcionadas, podemos citar, desde o mês de fevereiro de 2017 até o mês de agosto de 2018, várias ati80
vidades lúdicas e esportivas desenvolvidas em alusão ao Dia das Crianças, como peças de teatro, passeio ao Museu da Fotografia, passeio a parque temático, torneio de futebol, oficinas de culinária, sessão de cinema, peça infantil, gincana cultural, voleibol, oficina de pipa, fantoches, rodízio de pizza, tudo em parceria com universidades, parques temáticos, restaurante, campos de futebol, museus, teatros, e a Associação dos Defensores e Defensoras Públicas do Estado do Ceara. O Núcleo realizou o primeiro concurso de Redação “Uma viagem dentro do livro”, do projeto Defensoria Amiga dos Abrigos, que visa fazer uma ponte entre as instituições de abrigamento provisório, os direitos das crianças e jovens e as políticas públicas, com a participação de 46 crianças e adolescentes dos doze abrigos de Fortaleza. Os três primeiros ganhadores foram agraciados com tabletes e o primeiro lugar ainda ganhou uma biblioteca completa, com 1.200 livros para a unidade de acolhimento. Além disso, o NADIJ promoveu Oficina sobre sexualidade e saúde reprodutiva para crianças e adolescentes acolhidos 81
a partir de 12 anos de idade, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará, momento em que puderam se informar sobre temas ligados à saúde sexual, sexualidade e gênero, de forma lúdica e interativa. Ainda no ano de 2018, mais de 400 crianças e adolescentes tiveram acesso à magia do circo, os quais jamais tinham assistido a um espetáculo circense. Em defesa dos direitos às crianças e adolescentes com deficiência, o Nadij realizou reunião com o INSS e as vinte instituições de acolhimento às crianças e aos adolescentes de Fortaleza, visando estabelecer um fluxo de atendimento para crianças e adolescentes, assistidos pelas unidades, para agilizar o acesso delas ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Esses momentos representam a concretização da assistência integral da Defensoria, em todas as searas. Registre-se que as crianças e adolescentes agraciadas com essas práticas exitosas encontram-se inseridas em um contexto de extrema vulnerabilidade, abandono, maus tratos, violência física, psicológica, sexual, que resultaram em medida protetiva de acolhimento institucional.
Ana Cristina Teixeira Barreto é defensora pública do Estado do Ceará; mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR; especialista em Direito Processual Civil pela UNIFOR, Direito Empresarial pela UECE e Direito de Familia e Sucessões pela ESMEC.
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CRÔNICAS Sérgio Luis de Holanda Barbosa Soares Araújo
A EXPERIÊNCIA QUE FAZ DIFERENÇA Os defensores criminais passam suas tardes em audiências velando pela garantia do devido processo legal e aplicação justa da lei penal. Pela elevada demanda que atendem, dificilmente se ausentam das salas e, inclusive, assistem como espectadores as defesas particulares, até porque não é incomum haver desistências e abandonos de causa, que culminam em suas nomeações e passam a ter que se esforçar para continuar a defesa iniciada. Em uma dessas, na qual estava apenas como ouvinte, presenciei a defesa de réu acusado de porte ilegal de arma de fogo, quando as testemunhas de acusação relataram que apreenderam a arma nas proximidades em que o acusado se encontrava, mas que não viram o mesmo dispersar a arma nem portá-la. Assim, foram os relatos dos dois policiais ouvidos e mais nenhuma outra prova da acusação. O Juiz questionou ao causídico se gostaria de ouvir testemunhas para defesa do réu e, para surpresa de todos, o mesmo disse que achava importante e, entre suas observações, revelou sua militância na área trabalhista, onde tinha experiência sobre a importância da oitiva das testemunhas de seus constituintes. Assim foi feita sua vontade e o juiz determinou que fosse chamada a testemunha. Ao ser indaga sobre se teria visto a arma no dia do fato, a primeira logo entregou o réu. Disse que ele tinha passado a tarde toda mostrando a arma na rua e, no momento em que a polícia chegou, estava justamente na roda com ela em punho, vindo apenas a jogá-la longe quando os policiais desceram da viatura. Só aí o nobre causídico entendeu que sua experiência na área trabalhista só tinha peso em outra instância. O réu, logicamente, quedou-se condenado. 84
FILHO NÃO É MUSEU Era uma audiência para tentativa de conciliação sobre fixação de pensão alimentícia. O suplicado, na ânsia de mostrar sua razão, alegou que havia deixado de contribuir e assistir materialmente sua filha porque estava sendo impedido de visitála pela mãe, e que só voltaria a pagar quando pudesse visitar novamente sua filha. Sem deixar que o mesmo tomasse fôlego, a mãe da suplicante logo rebateu de pronto: “Minha filha não é museu nem recebe por bilheteria”. Depois explicou que as visitas não estavam acontecendo diante do desrespeito do suplicado em relação aos horários e ao tratamento com a própria genitora. Terminei a audiência com a autodefesa da assistida em mente. Seu raciocínio empírico explicou a razão jurídica do direito de visitas não ser vinculado ao pagamento da pensão.
MARCAS DE UM CRIME NA PRIMEIRA INFÂNCIA Após algum tempo, veio-me na lembrança fato que parecia corriqueiro e normal no cotidiano da defensoria criminal. Ao término das audiências era comum ser autorizado um breve contato dos familiares com o acusado preso. Os mesmos chegam uniformizados e algemados, o que esconde em muitos certos traços pessoais e os coloca na vala comum da clientela da justiça criminal. Durante sua submissão ao sistema criminal terminam tratados como se não lhes restassem o mínimo de humanidade. Trazem consigo histórias e experiências que passam ao largo. Tudo é muito rápido porque a pauta de audiências não permite maiores delongas, mas, mesmo assim, é a oportunidade daquele parente que não vai às visitações no presídio rever seu ente querido. Naquele dia, quando chamei os familiares do preso para rever o acusado deparei-me com uma mãe, esposa do acusado, angustiada porque sua filha não desejava vê-lo. Achei estranho porque ainda não tinha visto alguém, ainda mais uma criança, não desejar rever seu pai que há muito não tinha contato. 85
Vi que a menininha olhava para o mesmo entre as frechas da cortina e pelo vidro da sala, mas, mesmo assim, não queria entrar para vê-lo. Voltei à sala e pedi para tirar as algemas do preso porque pensei que isto estivesse provocando a resistência da criança. No retorno, chamei-a novamente e ela já chorosa disse para a mãe que não iria e que estava com medo. Me aproximei, estendi-lhe a mão, disse que a levaria e que não precisaria ter medo. Foi quando a mãe disse que ela tinha medo do policial porque tinha presenciado a morte de seu tio. Como vi que não teria sucesso em levá-la, retornei e comuniquei ao acusado que sua filha não entraria porque estava com medo, quando, então, ele repetiu a história da morte do tio. Ao final de todas audiências, a família ainda estava lá e foram ter comigo na sala de atendimento. Curioso, questionei sobre o temor da criança. Soube pela mãe que sua filha com apenas 1 ano e 6 meses estava na calçada de casa, ao lado de seu tio, quando o mesmo foi morto a tiros, não se sabendo ao certo quem teria efetivado o disparo, mas que logo teriam chegado policiais. Não soube as razões de tal homicídio. Soube apenas que, desde esse dia, a criança tem medo da polícia e chora toda vez que vê um policial ou uma viatura. Relatei o andamento do processo de seu esposo e sugeri que procurasse um tratamento psicológico para sua filha com a maior brevidade possível. Encerrei minhas atividades pensativo com as marcas da primeira infância.
HABEAS PORCUS Logo após assumir a Defensoria Pública de Nova Russas (CE) fui designado para atuar em Graça (CE), comarca de primeira entrância, com aproximadamente vinte mil habitantes, localizada no pé da Serra da Ibiapaba, com um único caminho para ir e voltar. Cidade pequena, com a população eminentemente rural, dependente da agricultora de subsistência, com uma única agência bancária, uma loteria e uma farmácia, sem ruas asfaltadas e com um comércio local que atendia apenas as necessidades mais primárias da população. 86
A presença de um defensor público contrastava com sua ausência em comarcas bem maiores, muito embora a necessidade de seu povo demonstrasse a imprescindibilidade da Defensoria Pública e a carência de acesso à Justiça por lá. Como a maioria das comarcas do interior do Ceará, lá jamais tivera um Defensor Público, mas, em decorrência de uma ação civil pública, terminei aceitando o encargo mesmo sem conhecer sua realidade e mais impulsionado pela proximidade com minha terra natal. Com pouco tempo que ali estava fiz o atendimento de três ou quatro trabalhadores rurais, homens simples, rudes e sem escolaridade alguma. Em seus rostos a angústia de estar ali, tendo que comparecer no fórum da cidade, e o pior, acusados criminalmente. Sequer sabiam se expressar, mas entendiam que estavam sendo acusados de terem praticado crimes. Eis que leio a denúncia e visualizo se tratar de contravenção penal, todos acusados de deixarem animais bravios em via pública. Para eles, pessoas que apenas tinham o nome a zelar e proteger, era quase uma sentença de morte. Tinham deixado seus porcos transitando livremente nas ruas da cidade e por tamanha negligência estavam sujeitos a jurisdição penal. Por se tratar de contravenção, eram beneficiários da transação penal e suspensão condicional do processo. Logo percebi que aqueles homens não se tratavam de criminosos a estarem sujeitos a jurisdição criminal e mesmo com a possibilidade da realização de acordo judicial, visualizei que estavam a sofrer constrangimento indevido, ainda mais observando a realidade local, onde a maioria da população possui porcos em suas casas e sabem lidar com os mesmos em seu cotidiano. Como a audiência admonitória demoraria ainda alguns dias e diante da possibilidade de eles virem a assumir encargos indevidos, impetrei habeas corpus preventivo. Em pouco tempo, a Turma Recursal deu-lhe provimento, determinando o arquivamento dos feitos. A decisão inclusive se prontificou a esclarecer que o Judiciário tinha outras prioridades do que se ocupar com demandas daquela natureza. Mesmo assim, já tendo alcançado êxito na minha pretensão, procurei saber a natureza daquilo tudo e o porquê de donos de porcos estarem sendo demandados judicialmente.
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Soube, então, que alguém teria sido mordido por uma leitoa e sofrido lesões graves. Tal fato em si poderia parecer grave se não fosse a circunstância da vítima ter ido mexer com os bacurins de leitoa que estava mojada e acabara de dar cria. A ordem natural permaneceu inalterada.
ADVOGADO BOM É O QUE NÃO DEIXA FALAR! Sempre que recebi novos assistidos sou acometido pelo impulso da curiosidade e surpreendido por novas experiências e testemunhos. Desta vez, fui procurado por um casal; ele, com aspecto de sessenta anos, e ela, com seus setenta anos. O atendimento referia-se a uma causa de desobediência de medidas protetivas ordenadas em favor da senhora, avó do acusado. Muito embora fosse a beneficiária da medida protetiva, ela buscava defesa para seu neto que se encontrava preso por outra circunstância. Durante a análise dos antecedentes do acusado, seu pai se adiantou e passou a relatar que sofria com o mesmo desde seus doze anos de idade e que conhecia todas as bocas de fumo e vendas de drogas de Fortaleza. Já tinha ido pagar e resgatar seu filho das mãos de traficantes que sempre lhe ligavam sob ameaça de fazer mal ao rapaz. Temeroso pela vida de seu filho não lhe restava outra coisa senão pagar o que nem sempre tinha sido consumido. Sua luta já fazia quatorze anos e tinha perdido todo seu patrimônio, seja porque o rapaz havia furtado de casa, seja porque tinha vendido seus bens, seja porque tinha gasto em casas de recuperação. Mesmo assim sabia que o rapaz não pararia por aí porque estava dominado pelo vício. Relatou, inclusive, que o mesmo tentou viver em Salvador (BA) e, por lá, após quatro meses de recuperação, perdeu-se novamente e passou um ano vivendo na rua e em praias. Sua voz cansada, pele enrugada e olhar de tristeza transmitiam bem todo aquele sofrimento. Por último, relatou que seu filho encontrava-se preso e acusado da prática de homicídio já fazia mais de dois anos, mas que o nobre colega defensor que 88
lhe assistia o defendeu com perfeição e mostrou ao juiz que não haviam provas aptas a demonstrarem sua participação naquela morte. Disse ainda que o juiz até ia soltá-lo, mas por infelicidade de um comportamento seu durante a audiência, teria redesignado outra data para nova apreciação de provas e pedido de restauração de sua liberdade. Após suas explicações sobre a causa, asseverou que o defensor público se mostrou muito hábil na defesa de seu filho, justamente porque não deixou a acusação falar. Mostrou com veemência o excesso de prazo e a ausência de provas que implicasse seu filho e que justificasse tal prisão. Depois deste relato, a senhora então voltou ao crime de desobediência e relatou que à época do pedido da medida protetiva todos estavam muito apavorados porque o jovem rapaz, toda vez que fazia uso de drogas ficava incontrolável e agressivo. Sua entonação refletia bem que a medida adotada foi em desespero e como última tentativa para contê-lo, ainda mais que toda a família vivia muito abalada e sempre no desespero e ameaça de algo pior acontecer a qualquer instante. Encerrado o diagnóstico e dada as providências que se seguiriam, fiquei então a pensar naquele sofrimento e impotência que se repetia para inúmeras famílias. Mais ainda na percepção daquele senhor, para quem advogado bom é o que não deixa a acusação falar e que mais importante que o juiz, é o advogado que o convence do que é o certo. Suas admirações seriam outras se tivesse tido melhor sorte na vida...
SURRA DA MORTE Me pareceu uma jovem distinta. Com a entrevista soube que tinha trinta e quatro anos. Filha de pais católicos, mas separados, com valores não tão usuais aos familiarizados com a pobreza e ao mundo do crime. Dessas pessoas que lutam pela independência pessoal para alcançar a paz e afastar quem queira invadir seu espaço. Dizia que todos os domingos saía de madrugada de casa, toda arrumada e escondida da mãe e dos irmãos. Não participava dos almoços da família no 89
domingo e com sua voz sempre firme, dizia-me que ninguém lhe questionava, mas que do coração de mãe nada podia se esconder. Conheceu a razão desta vida uma semana antes dele ser preso e já ia dez meses à prisão lhe visitar. Com o olhar meio envergonhado e sofrido, daqueles de quem sabe que pode esperar mais da vida, dizia que não o abandonava, mas se ele fizesse de novo não lhe daria outra chance. Temia pela saída dele, tanto por ele reincidir como pela possibilidade de seu segredo ser descoberto. Temia seu pai porque sabia que iria receber a “surra da morte”! O histórico do namorado já contava com uma condenação criminal transitada em julgado, mas com tempo para progredir para o regime aberto e outro processo, cuja ação foi praticada quatro meses depois do primeiro crime e que também caminharia para outra condenação. Até informei a ela sobre a possibilidade de ele sair em liberdade e logo em seguida ter que voltar por conta do outro processo. Não prestou muita atenção nesta informação, queria ele solto o mais rápido possível. Pediu apenas uma declaração para justificar sua ausência no emprego, mas até esta não podia fazer menção sobre a consulta criminal. Uma vida encobrindo erros do namorado. Foi ali buscar informações sobre a possibilidade dele se soltar e eu que fiquei preso entre os pensamentos sobre como seria a “surra da morte” e se tinha razão para tamanha paixão.
SEXO ILÍCITO Estava no início da minha vida profissional e advogava em Teresina após ter estagiado em alguns órgãos públicos, onde fiz amizades e conheci muita gente. Faltava-me, ainda, experiências e amadurecimento para tratar de certas questões, mas estava ansioso para me firmar profissionalmente e ter uma boa carteira de clientes. 90
Também nutria diversos mitos da profissão, entre outras vaidades que depois fui entender estarem mais ligadas a ideia de poder do que a própria busca por Justiça. Certa manhã adentrou em meu escritório uma senhora com cabelos lisos e longos que ultrapassavam sua cintura, sem nenhum corte, vestida com saia longa cinza, sem maquilagem ou joias. Estava acompanhada da Bíblia e logo entendi que era evangélica. Iniciou a conversa dizendo que teria me procurado por ter ouvido falar sobre meu trabalho. Discorreu sobre as dificuldades de seu matrimônio e em torno do convívio com seu companheiro. Ansiava por retirá-lo de casa, ficar com a guarda dos filhos e receber pensão alimentícia. Pretensão dentro da possibilidade senão fosse a ausência de motivos para retirá-lo de imediato de sua própria casa. Sem uma motivação razoável não teria como obter uma ordem judicial. Explanei sobre tamanho obstáculo e sobre a dificuldade de obter tal decisão, já que ele não era agressivo nem havia lhe ameaçado ou praticado violência física aparente. Até a violência psicológica necessitava de maiores comprovações e perícias de psicólogo, o que dificultaria obter medida liminar satisfativa. Para minha surpresa e apesar de todos os esclarecimentos das consequências que o pedido provocaria, especialmente em relação aos filhos, ela insistiu que havia motivos para seu despejo do lar. Sem deixar eu retomar minhas palavras, disse que ele estava lhe obrigando a fazer “sexo ilícito” e que por não aceitar, discutiam e brigavam acintosamente. Com minha pouca idade e preocupado mais com questões processuais, fiquei na dúvida do que se tratava. Ela ainda tentou explicar de outra maneira. Invocou a proibição divina para a prática daquele tipo de sexo, narrado como coisa das trevas e segundo a mesma, imundo. Não querendo adentrar em detalhes e até mesmo buscando outra alternativa, encaminhei-a à Delegacia da Mulher para que a mesma me trouxesse o registro policial da ocorrência e, assim, pudesse materializar com provas o pedido que iria se suceder. Dois dias depois eis que ela volta com o referido boletim policial.
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Após a narrativa que lá constatava percebi que o registro detalhou ilicitudes além do provável. Qualquer ajuizamento da demanda traria exposições para além da medida e terminaria respingando inclusive em quem abraçasse a causa. Como conhecia o autor da ilicitude resolvi convocá-lo ao escritório. Registro policial apresentado, o acusado do “sexo ilícito”, logo aceitou sair amigavelmente de casa. A ilicitude ficou para ser processada apenas no tribunal divino.
NEM SEMPRE ONDE HÁ FUMAÇA O FOGO DEVE SER APAGADO Durante o período em que atuei na comarca de Graça (CE), fui acionado por uma assistida que vivia com problemas de vizinhança. Na casa vizinha havia uma padaria cuja fornalha emitia fumaça da queima de madeira e carvão de onde saía fuligem e contaminava toda a vizinhança. A assistida informou que suas roupas, redes e a própria casa permaneciam encobertas de cinzas. A situação se agravava porque seu pai, um senhor idoso, e seus filhos menores apresentavam problemas respiratórios. Na entrevista seguinte, após solicitar apresentação de provas e indícios, informou ainda que na casa onde funcionava a padaria não havia banheiro e as pessoas que trabalhavam no local se serviam no quintal da casa para suas necessidades. Diante desta situação, o responsável pela padaria foi convocado para uma tentativa conciliatória, oportunidade em que o mesmo relatou ser a padaria o sustento de sua família e que procuraria evitar a queima da madeira com a substituição da fornalha pelo forno a gás, mas negou-se a subscrever e formalizar acordo extrajudicial. Pouco tempo depois soube que não havia parado a queima da lenha, e que em outras casas também havia queima de madeira e carvão em padarias locais. Diante da abrangência desta demanda, dos riscos à salubridade pública e de interesses de hipossuficientes, foram encaminhados ofícios para as células de representação do Inmetro e da Secretaria de Saúde para fins de obtenção de informações sobre a autorização de funcionamento de padarias no município. 92
Dentre outras, foi verificada a necessidade de balanças de precisão, chaminés com filtros, fornos a gás, o que não existia na localidade. Diante das peculiaridades do município, da baixa renda de seus moradores e da carência de informações, providenciou-se audiência pública em que representantes das referidas células compareceram para expor as exigências legais, tudo como primeiro passo para conscientização local. Ficou assentada que as mudanças exigiriam investimentos acima da capacidade e da possibilidade econômica dos gracenses, mas que a fiscalização seria mais presente. Resultado: a queimada da lenha cessou por um período; a produção de pão sofreu baixa e sua aquisição passou a ser de municípios vizinhos e a preço mais elevado.
Sérgio Luis de Holanda Barbosa Soares Araújo
é defensor público do Estado do Ceará, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR e especialista em Direito Processual pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
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