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CONTRA A GLOBALIZAÇÃO DA INDIFERENÇA

Em tempos de recrudescimento da xenofobia na Europa, família italiana usa a própria fortuna para resgatar refugiados no Mediterrâneo

DA REDAÇÃO

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Oano passado foi um exemplo de como a Europa vive, ainda, uma dura queda de braço entre a xenofobia e a solidariedade. Na Itália, um confronto político e social, tendo a audiência de vasta plateia estrangeira, foi presenciado entre ONGs de apoio a refugiados e setores da extrema-direita do governo contrários à imigração. Em maio, em decisão inusitada até então, a justiça italiana autorizou o desembarque de imigrantes em solo nacional, resgatados na costa da Líbia. Na época, a deliberação irritou Matteo Salvini, então ministro do interior, que havia proibido o desembarque. Demonstrando que as intenções de Salvini não representavam a opinião pública majoritária na Itália, moradores da ilha de Lampedusa, na Sicília, saudaram a chegada dos 47 imigrantes no navio Sea-Watch 3, de bandeira alemã, com cartazes e mensagens como: “bem-vindos a Lampedusa” e “quem salva uma vida salva o mundo inteiro”. A iniciativa popular italiana não é um fato isolado de solidariedade explícita na península. Há cinco anos, inconformada com alto número de migrantes e refugiados que perdem a vida ao tentar cruzar o mar Mediterrâneo rumo à Europa, uma família com cidadania italiana e americana gastou metade das suas economias para comprar um barco de resgate e, desde então, tem sido considerada uma inspiração para organizações humanitárias mundo afora. Em vez de doar recursos para ONGs que prestam ajuda, o casal Christopher e Regina Catrambone empregou aproximadamente US$ 7 milhões para criar sua própria ONG e equipá-la com um barco para resgatar náufragos no mar. “Já havia instituições ajudando os migrantes na Europa, mas as pessoas estavam morrendo no mar e ninguém estava fazendo nada. Se os governos não agem, é responsabilidade da sociedade civil responder. A Moas [Migrant Offshore Aid Station] foi a primeira ONG a ir ao mar resgatar pessoas”, declarou Regina Catrambone em 2015, em entrevista à BBC Brasil, falando de Malta, onde a família vive e mantém a sede da organização. No momento da entrevista, Regina contou que havia acabado de retornar de duas semanas no mar, acompanhando uma missão de resgate. Ela disse que faz questão de estar a bordo, atuando como ponte entre a equipe de técnicos, médicos e os refugiados resgatados.

GILES CLARKE/GETTY IMAGES

O casal no barco Phoenix

3 mil vidas salvas em menos de uma semana

O casal se conheceu em 2006 na Itália. Christopher tinha retornado ao país de seus avós após a devastação do furacão Katrina no sul dos Estados Unidos. “Ele morava e trabalhava no Caribe naquela época. Foi um choque para toda a região a passagem do furacão”, diz Regina. Em Malta, a família abriu uma empresa de seguros, assistência emergencial e inteligência, a Tangiers. Antes de criarem a Moas, Regina era o braço direito do marido nos negócios da família, cuidando da parte financeira da empresa.

Mas outros fatos mudariam drasticamente a vida do casal. “Tudo começou quando, em 2013, decidimos passar um final de semana passeando

MOAS

de barco no mar e fomos para Lampedusa. De lá, partimos para Túnis. No meio do caminho, avistamos pedaços de roupas no mar. Provavelmente de alguém que cruzava o Mediterrâneo no sentido contrário, tentando chegar à Europa. Foi o primeiro encontro concreto que tivemos com a questão”, explicou Regina.

Mais tarde, a tragédia de outubro de 2013 na ilha de Lampedusa (quando 400 migrantes morreram afogados no mar) e o apelo do papa Francisco pelo fim da “globalização da indiferença” foram decisivos para o casal criar a Moas em 2014. No mesmo ano, a ONG colocava em operação no Mediterrâneo uma embarcação de 40 metros, a Phoenix, equipada com botes infláveis, satélites, dois drones, clínica médica e coletes salva-vidas. Só nos primeiros seis dias de operação, 3 mil pessoas foram resgatadas.

Até 2015, a Moas já contabilizava o resgate de cerca de 11 mil pessoas no Mediterrâneo. O custo de manter a Phoenix no mar supera os 500 mil euros por mês. Mas, no mesmo ano, a iniciativa do casal ganhou apoio de peso, após fechar uma parceria com os Médicos Sem Fronteiras (MSF), para ampliar os resgates no Mediterrâneo. Foi só o início de parcerias e doações promissoras para a ampliação das atividades da Moas, que se expandiram para ações também em terra entre 2017 e 2020, como a construção de abrigos e hospitais de campanha para refugiados da guerra no Iêmen e para os rohingyas, expulsos de Myanmar.

Regina grava depoimento para vídeo da Moas em Unchiprang, no Bangladesh, onde a entidade construiu campo de ajuda humanitária para a etnia rohingya

Olhos como estrelas

Entre tantos resgates no mar, as memórias mais caras de Regina são justamente as de crianças acolhidas no Phoenix. “Lembro-me perfeitamente de um menino chamado Hani [resgatado em 2014]. Desesperada, sua mãe nos entregou o menino, que fervia de febre, não comia e não bebia havia dias. Eles eram da Eritreia. Após horas tomando soro e sendo atendido pelos médicos a bordo, ele se recuperou. Quando ambos desembarcaram, a mãe tinha os olhos como estrelas, muito brilhantes e emocionados”, conta Regina.

A Moas conta com a ajuda de uma equipe com técnicos e médicos. Enquanto esperam para desembarcar, após os primeiros socorros, ela e os voluntários do MSF brincam com as crianças a bordo. “As pessoas que resgatamos no mar são pessoas como nós. São médicos, advogados, professores, cabeleireiros. Poderiam ser eu ou você”, diz Regina, conversando com uma repórter.

Grande parte dos desembarques da Moas ocorrem na região de Reggio Calabria, no sul da Itália. “Foi ali que nasci e fui criada. Digo aos

WIKIPÉDIA

Regina, tendo o barco Phoenix ao fundo

refugiados e migrantes que o resgate e o desembarque em terra são apenas o começo de suas jornadas e de novas vidas”, diz Regina. Em 2015, a organização passou a receber jornalistas a bordo. “Podemos salvá-los no mar, mas é muito importante dar voz a essas pessoas, contar suas histórias para o mundo. Queremos partilhar uma mensagem de solidariedade em relação aos migrantes e refugiados. Não é um problema apenas europeu. É por isso também que é preciso continuar falando e debatendo o assunto”, conclui ela.

ALLIED NEWSPAPERS LTDA.

Migrantes resgatados pela Moas

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