Antes do depois

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Não me lembro mas não quero esquecer.

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Nasci com 57 anos. Hoje, tenho 118. Foi em agos‑

to, diziam, mês de vento e desgosto. Dia do Sol‑

dado. Eu desfilava no Sete de Setembro vestido de farda, carregando a bandeira. A Pátria era um pre‑ cioso patrimônio, aprendi com a diretora da escola. Minha mãe aplaudia e me olhava mansa como a lua. A lua tem um jeito branco de mãe e de tempo em tempo também fica grávida. O Tenente Josué morava em um sobrado, na esquina da rua. Pesava uns 200 quilos só de banha. Ele olhava o desfile dos meninos da escola de cabe‑ ça erguida e peito de pombo coberto de medalhas. Ficava ao lado do prefeito, do vigário, do juiz, da professora, do delegado. Via os pequenos soldados em fila e nos olhava com um desprezo que só os olhos sabem dizer. Parecia não confiar que fôsse‑ mos também os filhos da Pátria e seu futuro. Josué demorava quilômetros para subir as es‑ cadas de madeira da casa, parando em cada degrau para tomar fôlego. Tudo na vida precisa de fôlego. Nascer é ganhar fôlego e morrer é perder o fôlego... Meu pai trocava a marcha do carro para dar fôlego ao caminhão. Quando eu choro, preciso de uns pe‑ dacinhos de silêncio para dar fôlego às dores. Os pés pequenininhos do Tenente se esforça‑ vam para equilibrar um corpo assim tão redondo.

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Parecia uma lua esperando um filho gigante. Não mais podia marchar no Dia da Pátria nem correr se estourasse uma batalha. Naquele tempo o mun‑ do estava em guerra, mas a notícia só nos chegava pelo rádio. Ele vivia em cima da cristaleira coberto com um pano bordado. Era uma nobre presença. Guardava em sua garganta muitos assuntos. Bastava girar o botão para ele mudar de conversa. Taninha espiava o rádio pela parte de trás. Tentava descobrir quem estava lá dentro. O rádio foi o seu primeiro mistério. Buscava ver os homenzinhos que sabiam tanto de tudo e que falavam mais alto que a “Voz do Brasil”. Nunca fiz continência para o Tenente. Ele de‑ via ser mais novo do que eu. Em muitos momentos peso 500 toneladas a mais que o Josué. Quando estou pesado demais não subo escadas para não perder o fôlego. Nem quero morar em sobrado. As escadas não suportariam minha carga. Tem dia em que não passo em portas e meu tamanho não cabe na cama. Parece que o dentro vai derramando e eu vou me afogando no que sobra de mim. Mas tudo depende da minha memória. Há dias em que estou mais para esquecer e outros para mais lembrar. Tem instantes em que nem exis‑ to, sou algodão­‑doce. Em outros, eu existo demais, sou chumbo! Não conheço borracha para apagar

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memória. É uma boa coisa para a gente inventar e ficar rico. Memória não tem filtro e armazena tudo. Memória a gente não rasga, não joga no lixo, não lava com sabão. Memória é sentinela, e nos vigia sempre. A memória não vê mas não tira o olho. Vai somando vida afora. Tudo que a gente olha, ouve, toca, come e cheira, a memória não esquece. E, de repente, transborda mais rápido que enchente. Coi‑ sas que a gente só imaginou, a memória guarda. E fatos que a gente nem sabia que sabia rompem sem mais nem menos no pensamento. Memória é biblio‑ teca sem livros. Memória nos engorda sem ninguém perceber. E chegar ao mundo com 57 anos é ter, desde cedo, um grande peso de memória. Não se pesa memória em balança. Memória é traiçoeira e nos ataca em todos os momentos. Memória se equi‑ libra entre tristezas, alegrias e arrependimentos. Se a gente acha que esqueceu, num instante a memória acorda. E uma memória puxa outra. O Chico, meu primo, nasceu no dia de São Francisco. Todos diziam que ele tinha perdido a me‑ mória. Vagava de rua em rua, de porta em porta, de esquina em esquina, juntando tampinhas de garrafa. Eu suspeitava que ele andava sem paradeiro, pro‑ curando a memória perdida. Chico nunca falava. Assim também, mudo como uma flor, eu buscava adivinhar o que o menino queria tampar com tanta

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tampa. Nunca descobri. Guardei a sua falta de me‑ mória em minha memória. Dona Narcisa, parteira antiga, contribuiu para minha vinda ao mundo. Baixa, com as per‑ nas curvas, vencia as distâncias como se os passos estivessem entre parênteses. Carregava um guarda­ ‑chuva. Bastava botar o pé fora de casa para abri­‑lo e proteger­‑se da chuva ou do sol. Seu guarda­‑chuva servia a dois senhores. Ele era um dois­‑em­‑um ou irmão do arroz.

Marcaram a data do meu batizado. Esperaram

minha mãe levantar­‑se da cama. Não sei quantos dias ela ficou de resguardo. Mãe deve sentir cul‑ pa ao expulsar o filho do seu paraíso e gasta dias para tomar fôlego. A minha futura madrinha me dava banhos em água morna na bacia de alumínio e me passava talco com intimidade. Desrespeita‑ va minhas vergonhas. Depois preparava a canja de minha mãe perfumando a casa com aroma de recém­‑nascido. Minha mãe engolia um copo de cer‑

veja preta para aumentar o leite. Eu não chorava para não invadir o silêncio do quarto meio escuro, como se tudo estivesse em eterno crepúsculo. A gente nasce mas os olhos vão se abrindo devagari‑ nho. Acho que no princípio temos muito medo de ver. Imitamos a madrugada.

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Meu pai tinha 34 anos e minha mãe 23. Do meu

pai herdei uma fortuna de silêncio cheio de amo‑ res escondidos. Para esconder amor com sossego e no silêncio é preciso ser um mágico perfeito. Ele tinha chapéu mas não tirava nada de dentro. Nem coelho, pombo ou sedas coloridas. O silêncio não tem sombra para camuflar as coisas. Silêncio des‑ conhece fronteiras. Por ser vazio, fica povoado de tudo. O silêncio pode engolir até pessoas. O silên‑ cio comeu meu tio João e ficou difícil encontrá­‑lo. Sumiu do mundo sem ter morrido. O chapéu de meu pai servia apenas para proteger pensamentos. Memória mora no coração e dispensa chapéu. Sem ser mágico, meu pai gostava de circo com elefante. Naquele tempo ele não conhecia luta de sumô. Por ser assim, seu melhor amigo era o Tenente Josué. Bebiam cerveja e discutiam o depois. Quem fala a palavra “depois” tem certeza de que vai viver mais

um dia. Eu só digo “depois” por descuido.

Meu pai chegava em casa pisando com as pontas dos pés, nas madrugadas, depois de ter saí‑ do no crepúsculo. Minha mãe resmungava e sofria. Com seus 23 anos, ela me presenteou com suspi‑ ros e lonjuras. Olhava para o horizonte como se tudo estivesse muito remoto, em antigos antes. Eu desconfiava que ela via além dos olhos. Seu maior descanso era visitar mundos invisíveis. Seu coração

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era um cofre e só ela tinha a chave. Trancar no coração é não deixar nem o coração ver. Todo co‑ ração é cego. Os olhos do coração enxergam pela fantasia. Eu sabia que ela fantasiava ao me dizer que vivia sonhando acordada. Fantasiar é poder escolher os sonhos. Mas são demais as fantasias que não viram verdades. Ela rezava, acendia velas para Nossa Senhora das Dores e suplicava paciência. Paciência para não perder a esperança. Santa cheia de dores, com sete espadas enfiadas no coração. Nunca soube quantos punhais minha mãe tinha enterrados no peito. Eu confundia a palavra paciência com a palavra pre‑ guiça. Para não pecar, eu me desculpava dizendo estar com paciência em vez de estar com preguiça. Paciência e preguiça parecem ovo. Difícil gostar da gema sem gostar da clara.

Nasci conhecendo matemática. Aprendi depressa

a tabuada. Comecei brincando de contar estrelas: as Três Marias e o Cruzeiro do Sul. Havia tantas estre‑

las que ao tentar contá­‑las eu me perdia nas contas. O firmamento vinha dormir dentro dos meus olhos. Durante a noite, o céu ficava mais infinito e mais escuro que os pensamentos de minha mãe. Para al‑ cançar o céu, só com alma muito santa e atravessa‑ da de flechas, eu calculava. Agora esqueci parte das

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quatro operações. Faço melhor contas de diminuir. Perdi meu cachorro chamado Âmbar, meu cabrito de nome Xavante e o meu galo Jeremias — cego de um olho. O Âmbar me amava balançando o rabo como para­‑brisa de caminhão, Xavante me gostava ber‑ rando e Jeremias me benqueria se empoleirando no meu joelho. Cada um ama com o amor que tem, eu pensava. Isso sem falar em pessoas que se fo‑ ram. Partiram e não deixaram o número do telefone. Tem gente que vai embora sem tempo para dizer

“até logo”. Viaja, sem dizer para onde. Com ne‑ nhum correio ou telefone se chega lá. Hoje não sei por onde o Âmbar late, por onde Xavante berra e por onde Jeremias canta. Mas a memória não deixa nada morrer. Se meu telefone não toca, cismo que esque‑ ceram de mim. Meu telefone é também relógio e mede minha solidão. Detesto telefone mudo. Quan‑ do atendo telefone me alegro em sentir que todos falam comigo ao pé do ouvido. Há muito tempo perdi de vista os vagalumes, tanajuras e lobisomens. Vagalumes eram meus car‑ rinhos com faróis feitos de mistérios, rodando nas ruas da noite; tanajuras surgiam nas tardes, de‑ pois da poesia da chuva; lobisomens só apareciam quando as pessoas partiam sem deixar endereço.

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O medo é que inventa lobisomem. Foram­‑se também brinquedos que me fizeram companhia na infância. Sumiram outras coisas que abrem feridas em pensar. Só não perdi o medo de perder. Vivo escondendo o que tenho debaixo de sete chaves, amarrado com sete correntes. Recebi de minha mãe a mania de es‑ conder o mundo trancado na arca do coração.

Não sei se me recordo ou se é apenas uma vaga lem‑

brança. Guardo uma quase certeza de que estive pre‑ sente no meu batizado. Vi tudo. Não confirmo porque vão dizer que estou louco ou sonhando. Para muitos, enlouquecer e sonhar são defeitos. Desconhecem que só enlouquecemos ao não viver os sonhos. Afinal, o batizado era meu e não me custava estar presente. Jamais estaria ausente da minha primeira festa. Se eu não me lembro, também não quero esquecer.

Cheguei com 57 invernos. 34 pais + 23 mães =

57 filhos. Peguei o trem na última estação. A prima‑

vera, primeira estação, começa em setembro. E só

quem nasce na primavera pode colher primaveras. No inverno os dias ficam mais calados. O frio traz melancolia e a alma fica sufocada entre tantos aga‑ salhos. O corpo permanece embrulhado. Nasci no inverno e com frio. Por isso preciso de mais abraços

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do que todo mundo. Dormi, muitas vezes, enrolado em cobertores entre meu pai e minha mãe. Entre o sol e a lua. Vivem juntos no céu mas separados pelo movimento da Terra. O melhor do inverno é estar próximo da primavera. Tive uma prima chama‑ da Vera. Nasceu na primavera. Seus vestidos eram estampados de raminhos de flores. Ela tinha 11 pri‑ maveras sem contar o pai e a mãe. Eu apenas come‑ çava e já somava muitos invernos.

Marcaram a data do batismo com o padre. Muitos

diziam que ele dormia no confessionário e chegava mesmo a roncar. Não se animava nem com os peca‑

dos cabeludos dos outros. Um dia ele deve ter sonha‑ do e gritou: “Diabo de cachorro!” A igreja inteira es‑ cutou. O cristão saiu do confessionário escondendo o rabo entre as pernas de tanto acanhamento. Parecia o Âmbar com vergonha. Não importava o tamanho do pecado. A penitência para todos era sempre três Ave­‑Marias e um Pai­‑Nosso. Nunca conheci cristão que tenha morrido de pecado mortal. — Ter um padre na cidade era uma bênção do céu; onde tem padre tem missa e tem salvação — dizia a madrinha. Dona Lucrécia falava que não há sábado sem sol, domingo sem missa e segunda­‑feira sem pregui‑ ça. Há sábados, no meu inverno, em que não vejo o

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