1. Correspondências
provincianas:
aproximações
O mistério continua conosco, homens do século xx, embora diminuído pela luz elétrica e por outras luzes. Por que desconhecê‑lo ou desprezá‑lo em dias tão críticos não só para certas fantasias psíquicas como para certas verdades científicas, como os dias que atravessamos? Gilberto Freyre1 Com o título deste livro, Cartas provincianas: correspondên‑ cia entre Gilberto Freyre & Manuel Bandeira, gostaria inicialmente de su‑ gerir que são possíveis algumas formas particulares de aproximação en‑ tre os dois escritores. A palavra “correspondência”, portanto, pode ser entendida, de início, como um espaço de afinidades, como um univer‑ so de leituras a se entrecruzarem e a se expandirem. O elemento cen‑ tral do trabalho é a efetiva correspondência trocada entre os pernam‑ bucanos Gilberto Freyre (1900 ‑1987) e Manuel Bandeira (1886 ‑1968). A partir dela, novo material foi selecionado a fim de ampliar as possibilida‑ des de interpretação abertas pela epistolografia. Desse modo, o leitor poderá encontrar um conjunto aparentemente fragmentário e lacunoso, a partir do qual procurei aproximar algumas correspondências. Para tanto, diversos fo‑ ram os textos reunidos: cartas, cartões‑postais, ensaios, crônicas, poemas e fotografias. Elemento nuclear deste livro, o capítulo 2 abrange uma proposta de edição da correspondência de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (seção 2.2), de forma fidedigna e uniformizada, acompanhada por notas de edição, entre colchetes, e por notas exegéticas, que procuram dar amplo suporte ao leitor – desde a explicação de alguma palavra de uso incomum até aponta‑ mentos que associem determinadas passagens, eventos e pessoas citados no conjunto com o contexto de época e, num exercício eminentemente intertextual e interpretativo, com a totalidade da obra dos autores. A correspondência de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira perfaz 68 peças, sendo 14 de autoria de Gilberto Freyre e 1
Freyre, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. Rio de Janeiro: Record, 1987. p.16.
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54 de Manuel Bandeira. A quase totalidade dessa documentação permanecia inédita2 e seus manuscritos estão sob a guarda, respectivamente, do Arquivo ‑Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa e do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre. No segmento das correspon‑ dências, está disposto um conjunto iconográfico amplo, com imagens de car‑ tas, fotografias e dedicatórias. Na seção 2.3, há documentos, também editados de forma fidedigna e uniformizada, de remetente ou destinário diverso, que foram classificados como correspondência de Manuel Bandeira pela Fundação Gilberto Freyre. Em seguida, vem o capítulo 3, que avança a tarefa de edição de textos na trilha do capítulo 2. Nele, organizei material esparso, composto de ensaios críticos, crônicas, resenhas e poemas de autoria de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira, o que permite ampliar a leitura do capítulo 2 e, ao mesmo tempo, dar sustentação a um entendimento mais alargado das relações entre ambos, em perspectiva comparada. O aparato de notas do capítulo 3 seguiu critérios semelhantes aos adotados no capítulo 2. Alinhavando dados dispersos nos capítulos 2 e 3, o livro agrega, no capítulo 4, ensaios críticos elaborados de modo a ressaltar diversas facetas do diálogo, sempre cordial – e usei o termo ciente dos matizes que ele assume no Modernismo brasileiro –, entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. De uma crônica do encontro até questões relacionadas à edição propriamente dita, procurei aproximar‑me do todo sem disfarçar a lacunosidade do processo, ressaltando pontos de contato, bem como tensões entre textos e contextos de época.3 Como o olhar do provinciano – Freyre e Bandeira se diziam “provin‑ cianos” – que segue o rumo das beiradas, este trabalho também dá especial relevo às bordas, a um material, em princípio, periférico, delineado desde a seção 4.1 por meio do conceito de “impureza” textual, que se encontra difuso na obra ensaística do autor. Na sequência, as seções 4.2 e 4.3 apresentam uma
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Duas cartas que compõem este volume, as de número 7 e 9, foram fixadas conforme a seguinte edição: Freyre, Gilberto. Cartas do próprio punho sobre pessoas e coisas do Brasil e do estrangeiro. Sel., org. e introd. de Sylvio Ra‑ bello. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1978. Além disso, a fixação do texto de quatro cartas de Manuel Bandeira, as de número 2, 13, 23 e 31, foi cotejada com sua publicação prévia em: Bandeira, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. v.2. Os demais documentos são inéditos.
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Nesse contexto, pode ser interessante remeter ao conceito de “crítica biográfica”, tal como abordado por Eneida M. de Souza: “A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção.” (Souza, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. ufmg, 2002. p.105). De fato, este livro se propõe a lançar mão de uma perspectiva comparada e, no limite, a confrontar‑se com as fronteiras disciplinares. Porém, menos que um arcabouço vindo de fora, essa atitude, que poderia ser chamada de transdisciplinar, foi despertada a partir da leitura dos próprios textos analisados, por natureza heterogêneos, fronteiriços e moventes, como veremos adiante. Nesse sentido, a proposição de uma modernidade mais plural e descentralizada, catalisada, pelos autores aqui analisados, a partir de uma cidade de província, talvez possa ser mais adequadamente compreendida na contemporaneidade, época que busca romper com a hierarquização de textos típica das perspectivas modernas canônicas: “De uma perspectiva moderna e totalizante, restrita à valorização de um discurso em detrimento de outro, instaura‑se diferente sentido de intertextualidade – mais abrangente, pela modificação do prefixo inter para trans – voltado para o caráter superficial dos textos e desvinculado de qualquer intenção decifratória e heurística.” (Souza, Crítica cult, 2002, p.116‑117).
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leitura da correspondência recíproca ao lado de uma crônica do encontro, pro‑ curando inserir as cartas em uma perspectiva integradora em relação à obra de ambos, atenta a nuances biográficos, estéticos e históricos. Entrementes, em especial na seção 4.5, a “cordialidade”, com base em sentido empregado por Freyre, como sociabilidade característica do brasileiro, e sua relação com o processo de miscigenação, foram recuperadas de modo a problematizarem ‑se pontos suscitados pelos documentos reunidos no livro; outrossim, de modo mais amplo, aspectos da modernização do campo literário e artístico no Brasil são discutidos atentando‑se para a interação entre elementos como escritor, editor, financiador público e leitor. Por sua vez, as seções 4.4 e 4.6, no encalço de material paraliterário, inclusive inédito, destacam aspectos de uma produção multifacetada, no contexto de um Modernismo que coloca à prova, de modo empenhado, as fronteiras do literário e as relações tensas com a tradição. Especificamente na seção 4.6, vasculhando‑se os arquivos pessoais e procurando as “razões” dos “guardadores de papéis”, são arrolados outros documentos produzidos em paralelo às cartas e aos textos publicados em vida dos autores, que igualmente revelam traços da vida pessoal e social – mais uma vez valendo‑me de terminologia freyriana – de nomes envolvidos nas “crônicas” epistolares abordadas ao longo das linhas anteriores. Por sua vez, a seção 4.7 arremata a narrativa, uma espécie de epílogo atento a trajetórias, de pessoas e grupos, lidas a partir de entrecruzamentos espectrais4 – e, nesse sentido, abertos a outras reverberações e possibilidades de pesquisa – entre vida e obra. As imagens do caderno iconográfico, seguindo a via aberta pelas cartas, serão recuperadas em muitos pontos do capítulo 4. É importante ressaltar que o modo aparentemente solto de relacionar esse material esparso, situado muitas vezes entre a esfera privada e a esfera pú‑ blica, foi a solução que encontrei para estabelecer nexos plausíveis entre textos e objetos de naturezas bem distintas; e essa relação parece iluminar – ou, pelo menos, assim eu gostaria – discursos heterogêneos sobre nossa experiência social, delineados a partir de conceitos que fazem sobressair a ambiguidade, os deslocamentos e as fissuras, e que continuam a exercer, a despeito de suas incongruências, um fascínio muito peculiar. O tema da “província”, como ve‑ remos, alinhava tanto a produção de Freyre quanto a de Bandeira, destacando dois perfis com experiências artísticas e intelectuais convergentes – mas não similares. Assim, em ambos, evocação e pendor analítico combinam‑se como um exercício estético que é também enfrentamento de questões caras à nossa história. A província, desse modo, acaba por figurar‑se de modo paradoxal na obra de ambos, ressaltando questões situadas no bojo do que compreenderiam como processo contraditório de modernização do país, tendo procurado, entre
4 Discuto, do ponto de vista teórico, possíveis relações entre epistolografia e biografia crítica em: Dias, Silvana Moreli Vicente. Espectros postais: aproximações entre biografia crítica e correspondência de escritores. Outra tra‑ vessia, Florianópolis, n.14, p.131‑142, 2012.
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outros escopos, problematizar uma via diferenciada de modernidade, singular‑ mente combinada com tradição.5
1.1 Brasis
calcados
Na crônica “Sou provinciano” – editada pela primeira vez em livro em Andorinha, andorinha, de 1966, organizado por Carlos Drummond de An‑ drade –, Manuel Bandeira, ao ressaltar os laços com a província e sua condição provinciana, afirma: Conheço um sujeito de Pernambuco, cujo nome não escrevo por‑ que é tabu e cultiva com grandes pudores esse provincianismo. Formou‑se em sociologia na Universidade de Colúmbia, viajou a Europa, parou em Oxford, vai dar breve um livrão sobre a for‑ mação da vida social brasileira... Pois timbra em ser provinciano, pernambucano, do Recife.6 O texto, originalmente publicado em 12 de março de 1933 no jornal Estado de Minas, indica que, já naquela época, o nome de Gilberto Freyre circu‑ lava em outros redutos brasileiros que não somente o “provinciano” Pernambu‑ co. Pensar na figura de Freyre como “tabu” a partir da década de 1950, quando foi sistematicamente rejeitado por uma linha da sociologia acadêmica, de bases sólidas no meio universitário em franca consolidação, e quando foi acusado de apoiar movimentos reacionários, o que culmina com sua cooptação pelo governo militar brasileiro instaurado em 1964, é, nos dias de hoje, quase um lugar‑comum. Mas o fato de ser um “tabu” na década de 1930 é sintomático de uma 5
Longe de querer reforçar qualquer excepcionalismo brasileiro, é fato que a abordagem agregadora e parado‑ xal, burilada desde os anos 1920 e bem expressa em Casa‑ grande & senzala, encontra reverberações no presente. Observe‑se, nesse sentido, a afirmacão, espécie de mote introdutório, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, no recente Brasil: uma biografia: “No país, o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano com o rural; o exótico com o civilizado – e o mais arcaico e o mais moderno coincidem, um persistindo no outro, como uma interro‑ gação”. Sobre a contribuição de Freyre nos anos 1930, colocam objetivamente as autoras: “Mas não há casa‑ grande sem senzala, e foi em torno desse duo, que parece composto de opostos, porém, na verdade, abrange partes con‑ tíguas, que Gilberto Freyre publicou em 1933 seu clássico Casa‑ grande & senzala, evidenciando as contradições e relações que se estabeleciam entre senhores e escravos. […] ‘Equilíbrio de antagonismos de economia e de cultura’ foi a expressão utilizada por ele para demonstrar como paternalismo e violência, mas também negociação de parte a parte, coexistiam nesse cotidiano”. Mais adiante, vale destacar, as autoras consideram que Freyre idealiza a nova civilização, embora sem deixar de descrever a violência e o sadismo presentes nela. (Schwarcz, Lilia Moritz; Starling, Heloísa Murge. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. versão kindle.) Nesse contexto, uma leitura pormenorizada das tensões da escrita de Freyre é oferecida por Benzaquem de Araújo em seu Guerra e paz, segundo o qual: “[…] da mesma maneira que encontramos em CGS um vigoroso elogio da confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente endereçada aos escravos.” (A raújo, Ricardo Benzaquem de. Guerra e paz: Casa‑ grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. p.45).
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Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974. p.668.
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atitude polemista muito característica, imagem ainda mais reforçada por sua re‑ lação particularmente difícil com certos modernistas “do Sul”, os quais rejeitava por seu suposto “futurismo” e talvez como forma de oferecer o necessário con‑ traponto – compreensível em uma sociedade afeita aos debates públicos – que permitisse destacar sua bandeira em defesa de valores regionais e tradicionais.7 No final daquele ano de 1933 sairia Casa‑grande & senzala, que seria logo incorporado ao cânone do ensaísmo social brasileiro. A convivência de Ma‑ nuel Bandeira com Freyre teria se iniciado, por carta, em 1925. Bandeira logo se torna sólida figura mediadora, que recebe, em casa, o ensaísta em muitas de suas visitas ao Rio de Janeiro e facilita seu contato com modernistas – muitos deles jovens aspirantes a escritores – do Rio de Janeiro e de São Paulo. O encontro, para além das conquistas da amizade e do convívio social, naturalmente rende‑ ria muitos frutos, sobretudo do mais experiente ao “jovem quixotesco aprendiz”.8 Porém, em alguma medida, pode ter propiciado também ao poeta aprendizagens literárias mais consequentes; não só um repertório de temas parece começar a se expandir, mas também um estilo particular se delineia: “Foi nas páginas de A Província que peguei este jeito provinciano de conversar”,9 afirmaria Bandeira, que foi um dos colaboradores regulares do jornal do Recife, quando este era dirigido por Gilberto Freyre. De fato, a própria presença de Freyre na cultura brasileira toma‑ ria grande vulto naqueles anos: após Casa‑grande & senzala, sua reputação como escritor, sociólogo, historiador e antropólogo se consolidou no país, e seu nome passou a circular no exterior, especialmente nos meios acadêmicos norte‑americanos voltados para o estudo da América Latina. A forma de sua escrita o consagrou como um dos nossos grandes ensaístas, e suas formulações sobre o Brasil ainda se impõem como das mais importantes e produtivas já fei‑ tas ao longo de nossa história. Num país que não costuma ser “amigo do livro”, como diria Freyre, é emblemático o fato de termos duas grandes e criteriosas biografias – e não são as primeiras – lançadas recentemente num curto espaço de tempo: o meticuloso Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos, de Maria
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Em artigo publicado no Diário de Pernambuco em 20 de maio de 1923, afirma Freyre: “A mocidade de São Paulo, que eu suponho a mais culta do Brasil, sofre neste momento a nevrose do que entre nós se chama indistinta‑ mente futurismo. É pena. […] está, sem nenhuma noção do ridículo, arremedando Dadá. Compreende‑se, explica ‑se, justifica‑se até Dadá na Europa, onde o cansaço dos museus, das bibliotecas, das grandes coisas estratificadas amolece o espírito criador que não é senão o espírito da juventude. Mas entre nós!” (Freyre, Gilberto. Introdução . Tempo de aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade do do autor. In: autor: 1918‑1926. São Paulo: ibrasa; Brasília: inl, 1979. v.1, p.261).
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Aproveito a expressão “quixote” valendo‑me das próprias palavras de Gilberto Freyre, que qualifica o tom dos primeiros artigos no Diário de Pernambuco, cujo início se deu quando tinha apenas 18 anos, como de “um quixo‑ tismo de adolescente desvairado”, “uma quixotesca busca” (Freyre, Tempo de aprendiz, 1979, v.1, p.27). Outra não é a postura do próprio José Lins do Rego, segundo testemunha do amigo: “José Lins do Rego, na sua adolescência de panfletário, há vinte anos, no Recife, fartou‑se de atacar Estácio Coimbra e Pedro Paranhos. Que eram uns auto‑ cratas. Inimigos do povo. Que Estácio Coimbra não descia até o povo com medo de sujar os punhos da camisa ou . Região e tradição. desmanchar o laço da gravata de seda.” (Freyre, Gilberto. Fidalgos pernambucanos. In: Rio de Janeiro: José Olympio, 1941. p.231).
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Lúcia Pallares‑Burke,10 e o panorâmico Gilberto Freyre: uma biografia cultural, de Guillermo Giucci e Enrique Rodríguez Larreta.11 E, no início do século xxi, a obra de Gilberto Freyre continua provocando acaloradas discussões. De outro modo, a inserção do nome de Manuel Bandeira no cânone da literatura brasileira do século xx é indiscutível. Diferentemente de Freyre, cuja fortuna crítica tem gozado de consideráveis oscilações ao longo do tempo, Bandeira, por sua vez, parece ter desconhecido altos e baixos e, mesmo após sua morte, continuou – como até hoje – sendo lido e apreciado por um público leitor considerável, tendo inclusive presença certa na formação escolar em nível secundário e superior. Em sua trajetória, assumiu a tarefa de “abrasileiramento do Brasil” ao seu modo, trazendo à tona, em plenas décadas de 1920 e 1930, temas como a formação nacional, a língua, a música, a religião e a arquitetura brasileiras, com uma coerência insuperável em sua geração. Circulou por diver‑ sos grupos modernistas e foi simultânea e sintomaticamente amigo de Mário de Andrade e de Gilberto Freyre, bem como de outros paulistas e pernambucanos, ao lado de cariocas, mineiros etc. Seus poemas, suas crônicas e seus ensaios sobre temas brasileiros, num sentido amplo, mostram em que medida buscou construir formas sólidas, nada abstratas ou cartesianas, de aproximação com a experiência e a matéria local. É indiscutível que páginas fundamentais do Modernismo no Brasil foram escritas por Gilberto Freyre, que nasceu e viveu praticamente toda a vida no Recife, e Manuel Bandeira, pernambucano radicado no Rio de Janeiro, em definitivo, desde o início da adolescência. O encontro dos dois, assim, não seria de menor importância. Nessa trilha, um termo que parece alinhavar tanto parte de seus escritos quanto também o contorno de seus valores e de suas atitudes ideo‑ lógicas, em certa medida partilhadas por outros de sua geração, é o da “provín‑ cia” – abraçada, reverenciada e às vezes sintomaticamente abordada em chave de riso e ironia. O tema, entretanto, não é tão simples como possa à primeira vista parecer: basta dizer que tanto Freyre quanto Bandeira delimitaram o seu emprego para significar um retorno, o que ressalta, portanto, seu caráter de desvio, de retomada que também engloba seu afastamento, o olhar a partir de fora. No caso de Freyre, o regresso ao ambiente recifense deu‑se após cinco anos fora do país, vivendo em meio a culturas ditas hegemônicas como a norte‑americana e de vários outros países europeus, entre 1918 e 1923.12 No caso de Bandeira, 10 Pallares‑ Burke, Maria Lúcia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Ed. unesp, 2005. 11 Giucci, Guillermo; L arreta, Enrique Rodríguez. Gilberto Freyre: uma biografia cultural: a formação de um inte‑ lectual brasileiro: 1900‑1936. Trad. Josely Vianna Baptista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
12 Porém, vale afirmar que o período de formação de Gilberto Freyre se deu nos Estados Unidos, primeiro na Universidade de Baylor, Texas, entre 1918 e 1920, e depois na Universidade Columbia, New York, entre 1920 e 1922. Nesse período, a hegemonia dos Estados Unidos do ponto de vista econômico saltava aos olhos e as transformações modernizadoras do país, bem como suas contradições, eram percebidas pelo jovem Freyre, como podemos observar nos artigos de jornal enviados pelo então estudante para publicação no Diário de Pernambuco. Porém, a posição geopolítica norte‑americana de destaque internacional só se consolidaria decisivamente após a Segunda Guerra, à qual se segue a polarização de poder que passa a dividir com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Como afirma Henry Kissinger: “When America entered the international arena [em 1917] , it was young and robust
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“Recifense criado no Rio [...] falava num carioca federativo”, ou seja, muitas de suas referências de formação provêm do Rio de Janeiro, então capital federal, cidade que gradualmente se modernizava e cuja realidade socioeconômica e cultural era, em muito, distinta daquela vivenciada pelo Recife da infância do poeta. Assim, a província e suas leituras apontam para várias dimensões da experiência do eu e da cidade, de modo que as idas e voltas, os desvios deste livro, também têm por objetivo mostrar uma parte da complexidade desses perfis provincianos, certa aderência comovida que não deixa de apresentar um sabor “acre”, como diria João Cabral de Melo Neto acerca de Bandeira.13 Numa dessas possíveis leituras, ambos, Freyre e Bandeira, ao se‑ guirem a trilha da província e do provinciano, parecem contribuir com um veio que se poderia chamar, segundo Michael Löwy e Robert Sayre,14 de “fi‑ gurações românticas na sociedade”, ao procurarem se apropriar, em certa medida, de valores pré‑modernos e anticapitalistas como forma de atuação no presente. A “província”, ao englobar uma crítica aos valores cosmopolitas, como o racionalismo, o individualismo e o tecnicismo da sociedade burguesa, parece mostrar que os autores estavam acompanhados em alguma medida de um amplo espectro de pensadores e artistas de linhagem romântica com variáveis conservadoras e de esquerda. Daí teóricos como Walter Benjamin, o jovem Georg Lukács e Theodor Adorno, enquanto críticos do Iluminismo, mostrarem‑se, em alguns momentos, produtivos para tornar mais complexo o estudo da correspondência e da obra dos dois escritores. Trata‑se, pois, de formas de proposição diferentes, modernas e ao mesmo tempo de fundo ro‑ mântico, em ação contra um mundo desencantado, que se lançam para o pas‑ sado procurando respostas, de consequências e perfis certamente variáveis, acerca dos limites do presente, fazendo sobressair, em muitos momentos, um forte sentimento de contradição.15 and had the power to make the world conform to its vision of international relations. By the end of the Second World War in 1945, the United States was so powerful (at one point 35 percent of the world’s entire economic production was American) that it seemed as if it was destined to shape the world according to its preferences.” (K issinger, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster, 1994. p.19). É interessante, nesse sentido, que Freyre tenha se deslocado para os Estados Unidos para realizar seus estudos, e não para a Europa, como fazia a maior parte dos jovens intelec‑ tuais brasileiros, que tinha como referência países do Velho Mundo, sobretudo a França. Parte da explicação advém do fato de que ele foi educado por missionários norte‑americanos, que fundaram o Colégio Americano Gilreath no Recife em 1906, do qual seu pai, Alfredo Freyre, chegaria a ser vice‑ diretor. Segundo Diogo de Melo Meneses: “Teve efetivamente dito colégio uma fase de esplendor, dada aquela preferência, reflexo talvez do entusiasmo então generalizado no Brasil de admiração por ideais e métodos norte‑americanos através dos fervores americanistas do grande Joaquim Nabuco, e dado também o fato de seu corpo docente ter reunido por algum tempo ótimos profes‑ sores vindos especialmente para esse fim da América do Norte […]” (Meneses, Diogo de Melo. Gilberto Freyre. 2.ed. rev. atual. Recife: Fundaj / Ed. Massangana, 1991).
13 Eis o belo poema de João Cabral de Melo Neto, “O pernambucano Manuel Bandeira”: “Recifense criado no Rio, / não pôde lavar‑se um resíduo: não o do sotaque, pois falava / num carioca federativo. / Mas certo sotaque do ser, acre mas não espinhadiço, / que não pôde desaprender / nem com sulistas nem no exílio.” (Melo N eto, João Cabral de. A Educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p.57‑58). 14 Löwy, Michael; Sayre, Robert. Romantismo e política. Trad. Eloísa de Araújo Oliveira. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 15
A propósito, Gilberto Freyre flagra uma tendência romântica, em muitos momentos, ao interpretar as contradi‑ ções que o cercam: “No gosto contraditório pelo familiar e pelo estranho, ao mesmo tempo; no interesse por teorias e figuras contraditórias – por um Joyce ao lado de um Proust, por um Lucas Evangelista ao lado de um Pater – tão
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As leituras dessa província calcada – que se entenda como pisada, em estreita ligação com a terra, mas também menosprezada e reprimida –, ao se voltarem para o passado e ao proporem, como um dos eixos de seu discurso, a preservação – da arquitetura colonial, da língua “brasileira”, dos valores “autên‑ ticos”, da memória, apenas para citar alguns dos temas recorrentes na produção dos autores nesse período –, acabaram por constituir uma linha característica no Brasil da primeira metade do século xx, que não deve passar despercebida. Embora obviamente o componente imaginativo seja ingrediente fundamental dessas configurações provincianas, sua problemática não pode ser simplesmen‑ te explicada como se na esteira de um movimento deliberado de “invenção de tradições”,16 mesmo porque nunca se pretendeu que elas fossem estruturadas e aparentemente imutáveis. Seu motor, como os escritos dos autores sugerem, é a variabilidade e adaptabilidade. A própria força com que ambos os escritores procuraram trazer os elementos antes marginais, como a herança africana, para o centro do debate artístico e intelectual então em curso é exemplo de uma revalorização positiva, consciente e empenhada de “elementos provincianos”,17 os quais a crítica em geral, sobretudo aquela guiada por critérios de fundo progressista, não aborda de forma pacífica. Escolher um termo, já àquela épo‑ ca, carregado de significados negativos, tanto em português quanto nas várias línguas neolatinas, mostra uma especial tendência para o confronto e para a resistência: com origem na Roma Antiga, de uma acepção inicial como território administrativo, nação, estado e colônia, a “província” passa a significar qualquer delimitação ou esfera de interesse, genericamente, até apontar para a escassa importância econômica e cultural de um território frente a outros maiores e, logo, para “o fechamento”, “o sufocamento” e “o atraso” supostamente próprios daquele grupo, tão do autor, há evidentemente uma marca romântica. Pois todo bom romântico está de acordo com Pascal – o maior dos românticos do seu tempo e, ao mesmo tempo, um realista agudo – em que a contradição não é sinal de falsidade; nem a ausência de contradição sinal de verdade.” (Freyre, Região e tradição, 1941, p.39). Além da romântica contradição entre seu gosto pela tradição e pela província, em contraposição ao seu entusiasmo pelo cosmopolitismo vanguardista, afirma ainda o autor: “Romântico ele é, ainda, no gosto de falar de si próprio à som‑ bra de qualquer pretexto; e mesmo sem pretexto nenhum.” (Freyre, Região e tradição, 1941, p.39). Essa tendência autobiográfica se aprofundaria com os anos.
16 Para o historiador Eric Hobsbawm, em introdução ao livro A invenção das tradições: “Aliás, o próprio apareci‑ mento de movimentos que defendem a restauração das tradições, sejam eles ‘tradicionalistas’ ou não, já indica essa ruptura [da continuidade]. Tais movimentos, comuns entre intelectuais desde a época romântica, nunca poderão de‑ volver, nem preservar um passado vivo (a não ser, talvez, criando refúgios naturais humanos para aspectos isolados na vida arcaica); estão destinados a se transfomarem em ‘tradições inventadas’. Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não devem ser confundidas com a ‘invenção de tradições’. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conversam” (Hobsbawm, Eric; R anger, Terence. A invenção das tradi‑ ções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p.16). Veremos que o “provincianismo” de Bandeira e Freyre não é meramente “restituidor” ou tão somente “saudosista” – mesmo quando empregados, os termos e seus similares são sempre problematizados –, de modo que o debate levantado aqui pode ser pensado sob diversos vieses.
17 Nesse contexto, segundo Leyla Perrone‑ Moisés, a presença de Gilberto Freyre foi decisiva na década de 1930 para a valorização do elemento mestiço: “No século xx, sobretudo depois da obra de Gilberto Freyre, Casa‑ grande & senzala (1933), a situação inverteu‑se, e os intelectuais passaram a declarar suas origens negras. Essa assunção lhes dava boa consciência e os marcava como verdadeiros brasileiros, diversos dos novos imigrantes europeus ou orientais. [...] Independentemente do que possam especular os intelectuais a respeito dela, a mestiçagem é um fato permanentemente consumado na América Latina e, em termos culturais e artísticos, produz resultados originais.” . Vira e mexe nacionalismo: (Perrone‑ Moisés, Leyla. Paradoxos do nacionalismo literário na América Latina. In: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.45).
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das pessoas ditas provincianas ou de pensamento pequeno‑burguês.18 É contra tal acepção restritiva e pejorativa que os autores se posicionam. De fato, para muitos naquele período, a província, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, deveria ser superada e transcendida, fosse em prol de valores cosmopolitas, fosse em favor de valores nacionais mais agre‑ gadores e generalizantes. O trajeto cultural dessa província parece seguir uma linha que se expressa, no campo da política, pela tentativa de contraposição ao federalismo, e a consequente autonomia das províncias, com vistas a estabele‑ cer um governo centralizador, como de fato aconteceria com a substituição da República Velha pela República Nova a partir dos eventos desencadeados pela Revolução de 1930. Na vertente nacionalista, a província se misturou, no Brasil, com o projeto ideológico dos anos 1930, mas sua perspectiva ainda ficou repri‑ mida como expressão de meros regionalismos, de nacionalismos ameaçadores ou de nostalgias retrógradas. Ela foi, ao final, assumida muito mais como valor periférico na cultura brasileira – e também ocidental. Contudo, hoje, pode‑se ver nela uma ação diferenciada e transnacio‑ nal, já presente no início do século xx. Apesar de ser evidente que a proposição dos autores pode ser mais bem entendida agora do que há alguns anos, também não pretendo inserir este trabalho em nenhuma corrente teórica mais recente ou mesmo fazer uma leitura que se encaminhe nesse sentido. As cartas serão lidas sobretudo no contexto dos empenhados debates modernistas em curso nos anos 1920 e 1930. No caso de Gilberto Freyre, os questionamentos acerca do “apenas moderno”, ou seja, dos limites do moderno, convergem para o paradigma que tomaria a cena, num futuro não muito distante, principalmente em países de língua inglesa. Ainda assim, não deixa de ser sugestivo que o escritor, em 1973, publicasse um livro chamado Além do apenas moderno, prefaciado por José Guilherme Merquior. Nele, Freyre declara‑se um anarquista conservador, de‑ senvolve um pensamento contra o utilitarismo, propondo o “rurbano”19 como superação das mazelas cosmopolitas e liberalizantes, desenvolvendo o conceito de “tempo tríbio” (segundo o qual passado, presente e futuro se interpene‑ 18 Dos vários dicionários consultados por mim em português, espanhol, francês e italiano (numa busca eviden‑ temente não exaustiva), apenas um deles, o Grande Dizionario della Língua Italiana di Salvatore Battaglia (Torino: Unione Tipográfico‑ editrice Torinense, 1988), apontou para um uso positivo do termo “província”, como algo “che sorge in un centro minore e ha dimensioni modeste e aspetto dignitosamente dimesso”. Mas isso após afirmar de forma contundente: “L’insieme dei centri minori di una regione o di una nazione, in contrapposizione al capoluogo o alla capitale. In partic.: l’ambiente che gli è proprio, considerato per lo piú chiuso e tradizionalista, meschino e un po’ volgare, arretrato nella cultura e nei costume (o, all’opposto, supinamente e ostentatamente incline alle ultime mode), nonché indolente e torpido, in contrasto con il febbrile movimento delle metropoli.” Esse sentido negativo do “provinciano”, como “fechamento” e “reclusão”, está registrado, por exemplo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa e no Michaelis: moderno dicionário da língua portu‑ guesa. Diga‑se ainda que, a partir do Segundo Reinado, a “província” significava uma das grandes divisões adminis‑ trativas, governadas, cada qual, pelo respectivo Presidente da Província; portanto, o uso da palavra era corrente na época. Com o fim da República Velha, acabam as províncias e surgem os estados.
19 Pode‑se dizer que Gilberto Freyre antecipa a elaboração de neologismos que se disseminariam algumas décadas depois, como “glocalização” (do inglês glocalization, fusão de globalization e localization), o qual se propõe a fazer refletir sobre a tensão entre resistências e convergências da cultura local com relação ao global. Cf., por exemplo, Bau‑ man, Zygmunt. Glocalization and hybridity. Glocalism, Journal of Culture, Politics and Innovation, 1, 2013. Disponível em: <http://www.glocalismjournal.net/Issues/HYBRIDITY/Articles/>. Acesso em: jun. 2015.
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tram) e lançando‑se contra o objetivismo cronométrico da modernidade;20 bem como, em outros textos, continua a falar, e muito, sobre si, espalhando belas e fabulosas histórias na mídia da época com evidente objetivo de manter‑se no centro dos refletores, a ponto de ficção e realidade perderem completamente a fronteira e se imporem como espetáculo.21 Nesse sentido, Gilberto Freyre pode ser visto, com seu cabotinismo peculiar, como um intelectual pós‑moderno e midiático avant la lettre. Como exemplo da possibilidade de o ensaísta continuar falando pro‑ dutivamente na contemporaneidade, veja‑se a analogia entre a proposição de Gilberto Freyre, que defende a combinação entre originalidade e liberdade, e o pensamento de um filósofo como Giorgio Agamben, crítico ferrenho da mo‑ dernidade nos dias de hoje, ao mostrar os limites do tempo linear e do histori‑ cismo de fundo progressista e ao defender uma reaproximação com a “história autêntica”, por uma nova concepção de tempo e pela experiência poética da infância.22 Em 1925, Manuel Bandeira publicou um poema, “Evocação do Re‑ cife”, escrito a pedido de Gilberto Freyre, que poderia ser lido, aproximando ‑se dessa linha, como a realização literária de uma mitologia inovadora, que congrega experiência e infância, história e mito, como uma forma de romper com a descontinuidade imposta pela época moderna e como possibilidade de avizinhar‑se, em última instância, da morte – num sentido amplo, subjetivo, histórico e arquetípico:
20 Note‑se reflexão de Freyre sobre o tempo: “Talvez se possa dizer do tempo que não há um tempo só vivido de modo unilinear pelo indivíduo; e sim vários tempos, variamente, contraditoriamente, vividos por ele. Um que morre antes do indivíduo; outros que lhe sobrevivem. O mesmo se poderá dizer das relações sociedade‑ cultura‑tempo.” (Freyre, Gilberto. Além do apenas moderno. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. p.140‑141).
21 A fábula inventada do casamento de Freyre com uma rica herdeira norte‑americana, às vésperas de seu re‑ torno ao Recife depois do exílio forçado pelos acontecimentos deflagrados pela Revolução de 1930, é exemplar da forma antecipadora com que o escritor se relaciona com a mídia. Leia‑se a seguinte passagem de Giucci e Larreta: “A notícia de seu casamento com uma herdeira norte‑americana tão rica quanto feia espalhou‑se no Recife e chegou à imprensa da província. Num jornal local de junho de 1931, na seção ‘Casamentos’, registra‑se a notícia: ‘Por carta particular, sabemos que se realisará no próximo mez, na Califórnia, o casamento do escriptor brasileiro sr. Gilberto Freyre com miss Louise Marie Bianchi Hill, filha do coronel Monson Horace Bianchi Hill, de Rothontas, conhecido como o ‘rei da Esmeralda’, por possuir algumas importantes minas no Pacífico. Após o consórcio, o jovem par deverá seguir para a ilha do Pacífico, Kelley‑ Gon, de propriedade da família Bianchi Hill, que tem ali o seu palacete de verão’. [...] Numa carta enviada a Olívio Montenegro, pede‑lhe reserva absoluta, muito tato e alguma imaginação. Trata‑se de difundir uma mentira. Qual é o motivo da mentira? ‘Já que começo a ser ahi (Recife) uma legenda, até mesmo um phantasma, quero contribuir eu proprio para o mytho. Minha primeira contribuição é esta que envio: creio que provocará invejas maiores que o convite de Stanford. Irão outras depois. Todas baseadas na seguinte psychologia: provocar invejas e ao mesmo tempo dar opportunidade ao pobre diabo, roido de inveja, dizer, como compensa‑ ção (a superioridade moral é sempre uma compensação): que péssimo charater esse Gilberto Freyre. Aqui esta a ultima desse nefando Bigodinho – casar‑se por dinheiro com a filha de um milionário’ (GF a Olívio Montenegro, 18/05/1931).” (Giucci e L arreta, Gilberto Freyre, 2007, p.405‑ 406).
22 Segundo Agamben, seria lícito às novas gerações uma inovadora proposta: “Ao tempo vazio, contínuo, quan‑ tificado e infinito do historicismo vulgar, deve ser oposto o tempo pleno, partido, indivisível e perfeito da experiência humana concreta; ao tempo cronológico da pseudo‑história, o tempo cairológico da história autêntica; ao ‘progres‑ so global’ de uma dialética que se perdeu no tempo, a interrupção e a imediatez de uma dialética imóvel.” (Agamben, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. ufmg, 2005. p.168).
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Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu [avô.23 Em seu Itinerário de Pasárgada, Bandeira fala inclusive sobre a for‑ mação de uma mitologia pessoal enraizada na infância como materialização de uma experiência distinta da propiciada pela regularidade do tempo linear e cronológico: Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com pequenos veraneios nos arredores – Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa Viagem, Usina do Cabo – construiu‑se a minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônio Ro‑ drigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozi‑ nheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heroica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas Ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Tróada; a casa de meu avô, a capital desse país fabuloso. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice e quais‑ quer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela qua‑ dra distante.24 Assim, Freyre e Bandeira apontam, em vários momentos, para a von‑ tade de reunirem experiência e mito – o que evidentemente implica formas diferentes de abordagem do passado, em perspectiva pendular entre a reapro‑ priação melancólica, que dialoga, sempre de forma ametódica, com o estilo do memorialista, e a experiência residual, em que certa narratividade sobrevive literariamente apesar da descontinuidade e da negatividade –, redirecionando o homem para um mundo encantado, como forma de contactar‑se com uma dimensão original de tempo e de história, para além da ideia de um progresso inexorável, de um processo quantificável. Um dos projetos de Freyre que se 23 Bandeira, Poesia completa e prosa, 1974, p.214. 24 Bandeira, Poesia completa e prosa, 1974, p.35.
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esboçam na década de 1930, confiado ao amigo Bandeira em carta com nota de confidential, por exemplo, mostra o propósito de desenvolver estudo que aliasse ciência à descoberta da intimidade e da vida da criança no Brasil25 – em época em que ainda não se falava, por exemplo, em História da Intimidade e do Cotidiano. Parecem significativas, nesse sentido, as escolhas do tipo de escrita aos quais os autores se dedicariam, a poesia, para Bandeira, e o ensaio, para Freyre, formas em si historicamente mais descentralizadas e assistemáticas que, por exemplo, o romance ou o tratado acadêmico. Portanto, o exercício de trazer Gilberto Freyre, Manuel Bandeira e a província, juntos, não poderia ser pacífico. Este livro, mais ainda, não pretende ser conciliador ou minimizar evidentes contradições de um projeto pleno de pa‑ radoxos, nem sequer dar uma resposta coerente e definitiva para questões tão amplas e que atravessam o século; de outro modo, espera tão somente mostrar que o debate está longe de um desfecho unilateral ou pacificador.
1.2 Estas “cartas
provincianas”: deslocamentos
Para discutir o papel do crítico na modernidade, Roland Barthes par‑ te da seguinte proposição: Ora, escrever é de certa forma fraturar o mundo (o livro) e refazê‑lo Que se pense aqui no modo profundo e sutil, como de hábito, que a Idade Média encontrou para reger as relações do livro (tesouro antigo) com aqueles que tinham o encargo de reconduzir essa ma‑ téria absoluta (absolutamente respeitada) através de uma nova fala. Só conhecemos hoje o historiador e o crítico (e ainda querem que, indevidamente, os confundamos); a Idade Média tinha estabelecido em torno do livro quatro funções distintas: o scriptor (que copiava sem nada acrescentar), o compilator (que nunca acrescentava coi‑ sas suas), o commentator (que só intervinha por si próprio no texto recopiado para o tornar inteligível) e afinal o auctor (que dava suas
25 “Vai esta com a nota de confidential porque é assunto que desejo fique encoberto dos literatos. Agora que es‑ tou ganhando um pouco mais (embora reunindo responsabilidades e deveres de três indivíduos) estou empregando as economias na compra de livros referentes à vida íntima do Brasil (muitos deles só de passagem), a estudos sociais, em geral, sobre a família e especialmente sobre a vida e a história da criança, em vários países e em diferentes condi‑ ções de cultura. Já estou com um bom começo de biblioteca especializada e outros desses livros me estão a chegar. Esse trabalho e essa reunião de livros – como você é um dos raros a saber – prende‑se a um estudo, sob o ponto de vista psicológico e histórico, que há anos me prende, e adiado pela falta absoluta de entusiasmo e falta de recursos de estudo e leitura aqui. Sucede que apareceu uma fagulhazinha de entusiasmo e, em vez do miserável dinheiro que me trazia sempre em dívidas, estou ganhando (embora com sacrifício de conforto e saúde) o bastante para me dar ao luxo de adquirir livros sobre um estudo especializado como o que me vem há tempos ocupando a um estudo da vida de menino no Brasil.” (Cf. capítulo 2, documento 5, com datação “Recife, 6 de maio de 1929”).
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próprias ideias, apoiando‑se sempre sobre outras autoridades) [...].26 A modernidade teria recusado a validade dessa distinção engenhosa por seu rigor impossível, uma vez que a visão subjetiva pode minar justamente as fases em que se pretende o respeito ao livro, como a atividade do compilator. A crítica, na modernidade, começaria a atuar já como compilator, pois “não é necessário acrescentar coisas suas a um texto para o ‘deformar’; basta citá‑lo, isto é, cortá‑lo: um novo inteligível nasce imediatamente”.27 Mas o crítico lite‑ rário, de fato, seria uma espécie de commentator, intermediando, traduzindo a significação, reconduzindo o texto, “redistribuindo” os elementos constituintes de uma obra para lhe conferir inteligibilidade. Em princípio, o editor ou organizador de correspondência encontrar ‑se‑ia diante de muitas questões problemáticas suscitadas por essa reflexão. Se, por um lado, não poderia promover a confusão entre papéis que deveriam ser o mais possível distintos, segundo os critérios da crítica atual, ou seja, o respeito pela fala original do documento seria desejável em qualquer circunstância, por outro lado, deveria estar atento para o fato de que seu papel pode ir, realmente, da perspectiva do scriptor ao auctor. O desafio, portanto, é de monta: sem se sobrepor ao texto das cartas, seu trabalho pode ser visto como uma espécie de coautoria, pois ele pode construir, em meio a certa flexibilidade, todo um aparato também de criação. O leitor, ao final, pode ter, diante de uma edição acabada, uma relação de leitura tanto pragmática quanto prazerosa. Minha proposta é, ao editar a correspondência de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, recorrendo às palavras de Barthes e observando a impossibi‑ lidade de um rigor absoluto, procurar circunscrever as esferas de commentator e auctor, funções, por certo, mais sujeitas à discussão, para a elaboração do estudo que fecha o livro. Será possível observar que minhas considerações procuram dar conta de certos problemas convergentes de natureza literária, cultural e histórica cujo objetivo é tornar mais fecunda a leitura das cartas. Mas tal estudo pode ser dispensado se o leitor preferir limitar‑se apenas ao universo da correspondência propriamente dita, que vem antes. Já as funções de scriptor e de compilator podem ser observadas na transcrição da correspondência, na fixação do texto e em todo o aparato de notas de edição, principalmente as de caráter filológico – isso sem excluir a possibilidade de que o commentator também se manifeste na feitura da edição, já que um emaranhado de citações e remissões a obras dos próprios autores e a de outros é constituído de modo a oferecer possibilidades de leitura contí‑ guas ao universo das cartas. A voz do editor ou do organizador surge, assim, para estabelecer conexões, as quais, ao final, podem ser vistas como modo de “tornar o texto inteligível”. Porém, mais uma vez, afirmo que, se o leitor preferir,
26 Barthes, Roland. Crítica e verdade. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1982. p.229. 27 Barthes, Crítica e verdade, 1982, p. 229.
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a correspondência já fala por si. Tentei justamente deixar bem delimitados esses níveis para facilitar a aproximação do leitor ao(s) texto(s) conforme aquilo que lhe for mais conveniente ou desejável. Desse modo, ao passo que informações de natureza mais descritiva, técnica, informativa e explicativa mínima dominariam o processo de anotação, ao estudo poderia ser reservado o objetivo dominante da crítica ou da exegese. Assim, o estudo da correspondência, espécie de híbrido entre commentator e auctor, na medida em que também se pode elaborar uma escrita peculiar, por extensão en‑ saística, permite exercitar algo complementar ao discurso de acompanhamento, de ancoragem no tempo, no sentido aplicado por Becker,28 que se realiza nas notas. Vê‑se que editar correspondência é, de fato, um desafio e um risco, e propor um estudo amplo dela pode parecer uma extrapolação dos propósitos normalmente buscados por editores críticos ou organizadores. A epistolografia tem especificidades várias e, além disso, o trabalho demanda uma criteriosa e muitas vezes demorada pesquisa em arquivos. O universo de estudos que se abre quando esse material é editado pode ser vasto. Pensando nas principais perspectivas que o estudo com cartas possi‑ bilita, Marcos Antonio de Moraes observa: Pode‑se, inicialmente, recuperar na carta a expressão testemu‑ nhal que define um perfil biográfico. Confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista contam a trajetó‑ ria de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra. A segunda possi‑ bilidade de exploração do gênero epistolar procura apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período. Nesse sentido, as estratégias de divulgação de um proje‑ to estético, as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística (livros e periódicos, exposições, audições, altercações públicas) tem raízes profundas nos “bastidores”, onde, muitas vezes, situam‑se as linhas de força do movimento. Um terceiro viés interpretativo vê o gênero episto‑ lar como “arquivo da criação”, espaço onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual reelaboração. A carta, nesse sentido, ocupa o estatuto de crônica da obra de arte.29 28 Colette Becker utiliza essas palavras a propósito da anotação de correspondência, questão que será discutida na seção 2.4 – “Dos arquivos à edição: apontamentos”. Cf. Becker, Colette. Les discours d’escort: l’annotation et ses problèmes (à propos de la correspondance de Zola). In: Françon, André; Goyard, Claude. (Orgs.). Les corresponden‑ ces inédites. Paris: Economica, 1984. Colloque sur les correspondances inédites, Paris, 9‑10 juin 1983.
29 Moraes, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. Ciência e Cultura, Campinas, v.59, n.1, p.30‑32, jan./mar. 2007.
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Penso que são frutíferas todas essas linhas de leitura tendo por base a correspondência de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, ou seja: como docu‑ mento de caráter biográfico; como documento que testemunha a vida artística – e, poder‑se‑ia dizer, a vida intelectual – de determinado período; e como “arquivo da criação” – linha esta que remete à crítica genética. De resto, seria importante acrescentar às considerações que exploram o caráter paraliterário da correspondência a possibilidade de se ler a carta como discurso que goza de um estatuto literário particular – e, tendo em vista seu tipo fronteiriço, tal como a forma do ensaio ou da crônica, sua literariedade híbrida seria um ponto de constante estímulo ao leitor e ao pesquisador. Apesar de não terem sido, em princípio, escritos pensando‑se num receptor indeterminado ou público sem contornos precisos, ou seja, de existirem apenas como forma de comunicação entre remetentes e destinatários específicos, numa relação estri‑ tamente privada, não se pode escapar do fato de que são textos de escritores muito relevantes – no caso de Gilberto Freyre, sobretudo um ensaísta, e, no caso de Manuel Bandeira, um poeta e cronista – e que, por isso mesmo, para além do pragmatismo peculiar a esse tipo de comunicação, tais textos podem ser um campo de experimentação das possibilidades de escrita. A visão híbrida que o texto das cartas pode implicar, simultaneamen‑ te como valor documental e como texto de caráter literário, é, por exemplo, muito bem notada por Sophia Angelides ao discutir a correspondência trocada entre os escritores russos Anton P. Tchékhov e Máximo Górki.30 No nosso caso, no universo literário, o diálogo escrito das cartas explora principalmente a ora‑ lidade, que tanto em Bandeira quanto em Freyre é característica determinante do tipo de escrita que os situa no centro das inovações formais no Modernismo brasileiro. Nessa linha seria possível flagrar vários momentos em que a escrita exemplar dos dois autores se ilumina nas cartas – de maneira móvel e relativa, destaque‑se –, as quais, por sua vez, poderiam se beneficiar das diversas pos‑ sibilidades hermenêuticas e críticas que se encontram disponíveis atualmente. Desse modo, no estudo crítico, pretendo discutir questões referentes ao contexto em que a correspondência foi escrita, bem como questões de natu‑ reza ideológica, ética e estética, surgidas a partir da leitura da correspondência em conjunto com a obra de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Mas, além e apesar de procurar conferir a esse estudo um caráter crítico, é possível que o texto tenha se contaminado pelo tom despretensioso da crônica ou pela aber‑ tura do ensaio, patentes tanto na correspondência de Freyre e Bandeira quanto na obra de ambos. Assim, há uma distensão de temas que, em princípio, pode causar estranheza, mas a qual, ao final, espero que faça sentido. Levantar e discutir relações problemáticas, como a contaminação en‑ tre epistolografia, ensaio e crônica, podem – e isto seria desejável – alargar as reflexões sobre a natureza mesma da correspondência e sobre suas relações com o Modernismo brasileiro. Outro fio condutor para a leitura deste conjunto 30 A ngelides, Sophia. Carta e literatura: correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: Edusp, 2001.
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de cartas e outros textos foi – ao lado do tema da “província” – a “cordialidade”, termo aqui entendido como sociabilidade que promoveu o estreitamento do vínculo entre as pessoas e que fez largo uso dos índices da familiaridade, de‑ senvolvidos sobretudo no universo da cultura oral. Partimos do princípio de que a amizade cordial ajudou a estreitar conexões que certa escrita modernista reflete na forma e no conteúdo. Para Gilberto Freyre, a cordialidade explica o contato entre classes privilegiadas e populares, numa espécie de imbricamento de discursos, diluidor (mas não destruidor) de hierarquias. Nesse contexto, o espaço das cartas, seguindo as palavras de Guimarães,31 tornou‑se um substi‑ tuto efetivo da conversa, em perspectiva assimiladora, enriquecendo‑se com a qualidade oral que, segundo Freyre, também é típica do brasileiro.32 Quanto à “província”, como veremos, não se trata do sentido pejorativo normalmente atribuído a ela, “em tom de queixa ou autocensura”, que provocou de modo generalizado e “mais difundido o medo de ser provinciano”.33 A cordialidade e a provincianização, portanto, não deixam de ser dois dos veios significativos da complexa, plural e heterogênea experiência modernista. Nessa linha, o título Cartas provincianas recupera o significado desta correspondência cordial e alude aos vários momentos da coletânea de cartas, bem como aos textos dos anexos, em que os termos “província” e “provincia‑ no” surgem destacando de modo positivo o veio comunicativo de natureza memorialística, de profunda relação com o lugar, com a singularidade do es‑ paço, procurando, paradoxalmente, dar um sentido para as contradições entre questões regionais e universais, entre modernidade e tradição, entre localismo e cosmopolitismo, temas que circulavam amplamente no contexto da época em que as cartas estão inseridas.34 31 Guimarães, Júlio Castañon. Contrapontos: notas sobre correspondência no modernismo. Rio de Janeiro: Fun‑ dação Casa de Rui Barbosa, 2004. p.24. 32 Embora o imbricamento entre o público e o privado tenha deixado forte impressão na escrita literária (e paraliterária) de nossos modernistas, inclusive ao dinamizar imagens que reforçam a convivência de elementos díspares, não podemos deixar de ressaltar que a constatação não amaina as sequências deletérias do autoritarismo, da violência e da discriminação fortemente arraigadas em nosso desenho social. Nesse contexto, as palavras de Elide Rugai ponderam algumas das contribuições de Freyre em meio a um debate longe de uma sedimentação definitiva: “[…] Porém, não podemos deixar de assinalar a acuidade das contribuições de Gilberto Freyre, tão importantes para a definição do povo brasileiro, em direção da superação das afirmações que apontavam a inferioridade das raças não brancas. Nessa direção, podemos dizer que sua tese sobre igualdade racial, tendo sido elaborada nos anos 1930, pode ser pensada como a demarcação de uma agenda política retomada nos dias de hoje. Assim, pode servir de base para reivindicações que coloquem em pauta fórmulas efetivas para a realização da igualdade […].” (Bastos, Élide Rugai. Gilberto Freyre e seu tempo: contexto intelectual e questões da época. Sinais sociais, Rio de Janeiro, v.7, n.19, p.84, ago. 2012). 33 Enzensberger, Hans Magnus. Linguagem universal da poesia moderna. In:
. Com raiva e paciência: en‑ saios sobre literatura, política e colonialismo. Sel. e introd. Wolfgang Bader. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Instituto Goethe, 1985. p.42.
34 Vale dizer que o instigante livro Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference, de Dipesh Chakrabarty (Princeton: Princeton University Press, 2008), parte de pressupostos que parecem convergir com Gilberto Freyre em alguns aspectos – constatação que merece ser investigada em outra oportunidade. Para Chakrabarty, muito do pensamento da intelectualidade indiana partia do pressuposto de que a Europa seria o lugar da “democracia”, da “civilização burguesa”, da “cidadania”, do “capital” e do “socialismo”. Pelo contrário, ou de modo diverso, ele partiria do pressuposto de que: “European thought is at once both indispensable and inadequate in helping us to think through the experiences of political modernity in non‑Western nations, and provincialing
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O título Cartas provincianas foi sugerido pelo livro Lettres provinciales, de Blaise Pascal, constituído por 18 cartas escritas com o pseudônimo Louis de Montalte, com datação que vai de 23 de janeiro de 1656 a 24 de março de 1657.35 O humor e a sátira dão o teor da correspondência que trata de temas polêmicos ligados à sociedade francesa da época. Sua finalidade primeira era defender um amigo de Pascal, o jansenista Antoine Arnauld, autor do tratado De la frequente communion (1643), cuja publicação foi decisiva para sua condenação por ideias heréticas pela Sorbonne em 1656. As Lettres provinciales foram largamente lidas por filósofos iluministas no século seguinte. O autor fictício das Lettres provinciales é um parisiense falando sobre o que ocorria na capital, abordando sobretudo as esferas da Igreja e da Univer‑ sidade, para dois destinatários: um homem de província – e cabe lembrar que, à época, a província era uma subdivisão subordinada ao poder monárquico – e padres jesuítas.36 Portanto, não são nada cordiais no sentido defendido por Gilberto Freyre, apresentando abertamente – e sem contar com o horizonte da conciliação – polêmicas questões filosóficas e religiosas, além de políticas.37 Porém, tal como nas cartas de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, há uma tensão evidente entre província e capital. Nas Lettres provinciales, uma vez que na capital se concentravam os problemas e as mazelas do campo teológico e político, o confronto com a província – uma solução literária bastante inteli‑ gente – poderia devolver o senso crítico, poderia desmascarar o que havia de mais incongruente nos círculos da grande cidade e no âmbito da Igreja. Já em Freyre e Bandeira, ser provinciano é questionar frontalmente os valores e as formas produzidas sobretudo nas metrópoles, numa época de intensas transformações, que evidenciavam os limites de certos modelos emi‑ nentemente burgueses, como o da democracia liberal, adotado por inúmeros países, em especial pelos Estados Unidos, onde o sociólogo viveu. Os dois escri‑ tores sentem e pressentem as ondas das catástrofes do século xx, na perspectiva
Europe becomes the task of exploring how this thought – which is now everybody’s heritage and which affect us all – may be renewed from and for the margins.” Buscaria então: “[…] to explore the capacities and limitations of certain European social and political categories in conceptualing political modernity in the context of non‑ European life ‑worlds” (p.16 e p.20, edição kindle).
35 Em italiano, também há uma outra obra, menos conhecida que Lettres provinciales, de Achille Giovanni Cagna (1847‑1931), com título parecido: Provinciali: la vita d’una piccola città di província (Villalbana, 1847‑1870). Trata‑se de um livro realista e alegórico, que procura reconstruir literariamente o ambiente social de uma pequena cidade.
36 A estrutura das Lettres provinciales é a seguinte: da primeira à décima carta, o canal comunicativo é entre Louis de Montalte e “un provincial de ses amis”. Montalte fala da capital, Paris, remetendo ao amigo, ao todo, nove cartas. Uma dessas primeiras dez cartas, precisamente a de número 3, é uma “Réponse du provincial aux deux premières lettres de son ami”, com datação “2 février 1656”. Posteriormente, da carta 11 à carta 18, o destinatário são os “révérends pères jésuites” (Pascal, Blaise. Les provinciales: ou, Les letteres écrites par Louis de Montalte, à un provincial de ses amis, et aux rr. pp. jésuites sur le sujet de la morale et de la politique de ces pères/Blaise Pascal. Édition présentée, étabile et annotée par Michel Le Guern. Paris: Gallimard, 1987). 37 Textos posteriores que retomam o modelo de Pascal, apresentando como autores supostos missivistas que escrevem de uma posição periférica, tendo como efeito de sentido a exposição de clivagens sociais mediada pelo riso e pela mordacidade, são as Lettres persannes (1721), correspondência fictícia escrita por Montesquieu (1688‑1755), e Cartas chilenas, poemas satíricos que circularam nas vésperas da Inconfidência Mineira, com autoria atribuída a Tomás Antônio Gonzaga (1744‑1810).
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de Eric Hobsbawm,38 e, em seus textos, literariamente bem logrados e também engajados no propósito de uma ação social e intelectual, mostram a necessidade de que se fizessem escolhas que desviassem os brasileiros das aporias do libe‑ ralismo, das vanguardas e da modernidade sob o signo do individualismo e de valores preponderantemente abstratos. Afora essa tensão entre província e capital, extensiva à obra de Gil‑ berto Freyre e de Manuel Bandeira, as cartas de Pascal foram reconhecidas como literárias, inaugurando, segundo alguns historiadores da literatura, a mo‑ derna prosa francesa. Além disso, Freyre era um grande leitor e admirador de Pascal – e não podemos nos esquecer de que há, na constituição da prosa mo‑ derna, uma relação estreita entre carta e ensaio, como bem articula o sociólogo na passagem a seguir: O ensaísmo representa atualmente, nas letras ocidentais, em ge‑ ral, nas brasileiras, em particular, não só uma ressurgência – a de uma forma superior de expressão literária tornada clássica por franceses como Montaigne e Pascal, ingleses como Lamb e New‑ man, espanhóis como Gracián e em termos modernos avivada por Unamuno e Ganivet – mas uma insurgência sob a forma de nova abrangência: a insurgência de um neogeneralismo superador de excessos tecnocráticos de especialismos. Insurgência em face do que começou a ser uma intolerante ortodoxia dessa espécie de tecnocracia: o extremo especialismo no trato de assuntos sociais ou socioculturais. Excesso, nesse neogeneralismo, de citações? É possível. Mas o fato é que o Brasil de hoje conta com generalistas de qualidade não apenas notáveis pelo número já considerável: superação, já, de romancistas e de poetas, nas próprias letras.39 Porém, neste ponto, seria oportuno interromper o fluxo ensaístico e deixar as cartas falarem.
38 Em síntese, afirma o historiador sobre o contexto das Guerras Mundiais: “Para essa sociedade, as décadas que vão da eclosão da Primeira Guerra Mundial aos resultados da Segunda foram uma Era de Catástrofe. Durante qua‑ renta anos, ela foi de calamidade em calamidade. Houve ocasiões em que mesmo conservadores inteligentes não apostariam em sua sobrevivência. Ela foi abalada por duas guerras mundiais, seguidas por duas ondas de rebelião e revoluções globais que levaram ao poder um sistema que se dizia a alternativa historicamente predestinada para a sociedade capitalista e burguesa e que foi adotado, primeiro, em um sexto da superfície da Terra, e, após a Segunda Guerra Mundial, por um terço da população do globo. Os imensos impérios coloniais erguidos durante a Era dos Im‑ périos foram abalados e ruíram em pó. Toda a história do imperialismo moderno, tão firme e autoconfiante quando da morte da rainha Vitória, da Grã‑ Bretanha, não durara mais que o tempo de uma vida humana – digamos, a de Winston Churchill (1874‑1965).” (Hobsbawm, Eric. Era dos extremos. Trad. Marcos Santarrita. Rev. téc. Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.16).
39 Freyre, Gilberto. Insurgências e ressurgências atuais. Rio de Janeiro: Globo, 1983. p.76.
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