Poesia Completa Cecília Meireles

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O meditar místico de Cecília

Quando li os primeiros poemas de Viagem – eu tinha 15 anos de idade –, fui tomado de surpresa e espanto – surpresa e espanto que se repetiram no passar das páginas, diante de uma fala que era moderna porque antiga. Em contraste com o que vinham fazendo os seus companheiros de geração, Cecília Meireles valia­‑se de versos bem escandidos e rimas nítidas, para se procurar no mundo. Muitos dos poemas de Viagem lhe foram ditados pela solidão, a amargura e o desamparo que a afligiram durante os meses que an‑ tecederam e se seguiram ao suicídio de seu primeiro marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, vitimado por uma depres‑ são sem remédio. Eu sabia da história por minha mãe, que a ouvi‑ ra de meu pai, amigo de Correia Dias, e encontrei em Viagem, sob os mais diferentes disfarces, ressonâncias desse enredo. Raramente como elegia; quase sempre como canção. Canção triste, mas canção. E quero crer que o morto que se foi por desespero reaparece no afo‑ gado de vários momentos da obra de Cecília Meireles – e talvez seja o seu interlocutor em algumas passagens de Solombra. Em fins de 1963, ao ser publicado Solombra, eu caminhava para os meus 33 anos, e a poetisa se encostava à morte. Li o livro muitas vezes, fascinado pelo novo timbre de seus versos e vencido pela beleza com que se fechavam em mistério. A cada releitura, So‑ lombra me parecia, mais do que um adeus, um acerto de contas com a dor e o esplendor da vida. Se, com Viagem, nascera para mim uma bela voz poética, com Solombra Cecília Meireles alcançava aquela altíssima área da criação que se assemelha ao meditar místico. E isso se anuncia na quadra que serve de epígrafe ao livro e lhe dá um segredo por nome:

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Levantei os olhos para ver quem falara. Mas apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que era no Céu e na Terra. E disseram­‑me: Solombra.

E esta palavra “Solombra”, o que nos diz? Não basta que me ensinem ser uma forma arcaica do vocábulo “sombra”, que persiste entre os que falam o mirandês. Ao encontrá­‑la como título de livro, julguei que definisse o conflito e o enlace entre o sol e a sombra, mas, depois, quis mais e pedi­‑lhe que evocasse em mim a parte mais escura da mancha solar, a umbra, o centro negro da luz. Entre Viagem e Solombra, Cecília Meireles parece ter feito a apos‑ ta de não deixar passar um dia sem a visitação da poesia. Deixou­‑nos uma obra tão volumosa que nos inclina a acreditar no que então se dizia: que ela passava dias inteiros reclusa no escritório de sua casa no Cosme Velho, à espera dos poemas. Os que reuniu em Vaga música (o livro que se seguiu, em 1942, a Viagem) lhe chegavam desenhados com lápis de ponta fina, a tentar reter com precisa delicadeza o que se tem por breve e fugaz – a onda, a nuvem, a brisa, o assovio, a flor, a borboleta. São poemas de partida e de perda – e até mesmo do que se quis ou imaginou que tivesse sido e nunca foi. Os adeuses continuaram em Mar absoluto e outros poemas e em Retrato natural, publicados em 1945 e 1949. Embora neles persista a concisão dos suaves traços negros, Cecília Meireles, sem abandonar uma poesia centrada na emoção do pensamento, cede às paisagens do mundo e as colore de tons mansos. Ela parece querer dizer­‑nos que a vida não se explica; a vida vê­‑se e sente­‑se, a escoar diante de nós. Daí a crescente dedicação de Cecília aos poemas narrativos, que se conjugam com os de grande fôlego, como a bela “Elegia” a sua avó, Jacintha Garcia Be‑ nevides. Ou como três poemas ou grupos de poemas reunidos em dois livrinhos, em 1951 e 1952, Amor em Leonoreta e Doze noturnos da Holan‑ da & O Aeronauta, nos quais se retomam as perguntas que a poetisa se fez e nos faz sobre a brevidade da vida e a fragilidade do mundo. Por essa época, Cecília Meireles já estava entregue a uma empresa que a desafiava desde que, para escrever sobre a Semana Santa nas cidades históricas de Minas Gerais, visitara pela primeira 14

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vez Ouro Preto: refazer poeticamente a Vila Rica do último terço do século XVIII e devolver­‑lhe as personagens que nela amaram, conspiraram e padeceram. A essa tarefa dedicou quatro anos, e dela surgiu a mais ambiciosa de suas obras, o Romanceiro da Inconfidência. São 96 poemas, que podem ser lidos separadamente ou como um único e longo poema. Para 85 deles Cecília escolheu os formatos do romance ibérico tradicional e, com uma linguagem que se quis sim‑ ples, sem deixar de ser inventiva, como a dos cantadores dos sertões do Brasil, nos trouxe a música para a leitura silenciosa. Era de sempre o fascínio de Cecília Meireles pela poesia de dic‑ ção popular e pelos versos das cantigas, sobretudo daquelas nas quais os refrães marcam o ritmo dos enredos. Desde jovem, ela apegara­‑se ao estudo do folclore, que conhecia como poucos, e se impregnara de valores e modos de expressão dos cantadores e seresteiros. Tomou gosto pela redondilha maior e, embora de forma mais discreta, pelos versos de seis, cinco e quatro pés. A redondilha modela quase todo o Romanceiro da Inconfidência, e continuará a ter uma presença insisten‑ te no que Cecília Meireles então produziu ou logo depois escreveu. Se isso mal se nota nos belos, e tantos deles dolorosos, Poemas escritos na Índia (em 1953), não se deixe escapar que de estrofes de versos curtos são todas as Canções (de 1956), várias delas com vocabulário ou jeito de modinha, e boa parte das peças de Metal rosicler (que é de 1960). Muito da melhor poesia de Cecília Meireles se desenvolve em adágio e até mesmo num largo penseroso. Em suas mãos, o que aspira a exprimir­‑ se não se deforma no verso pequenino, nem se dilui no amplo. Pois a mestra em compor cantigas escreveu alguns dos mais requintados e enigmáticos poemas de seu tempo. Quem sabia ser alta “a alucinação da provada Beleza” e que os que a contemplam veem “um fim que não tem fim”, podia ensinar­‑nos, sem sair do tema de quanto nos cobra a perfeição da poesia, que o pássaro

que ontem cantava já não canta. Morreu de uma flor na boca: não do espinho na garganta.

Alberto da Costa e Silva Apresentação

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Espectros Nas noites tempestuosas, sobretudo Quando lá fora o vendaval estronda E do pélago iroso à voz hedionda Os céus respondem e estremece tudo, Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda, Erguendo o olhar, exausto a tanto estudo Vejo ante mim, pelo aposento mudo, Passarem lentos, em morosa ronda, Da lâmpada à inconstante claridade (Que ao vento ora esmorece, ora se aviva, Em largas sombras e esplendor de sóis), Silenciosos fantasmas de outra idade, À sugestão da noite rediviva, – Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.

Defronte da janela, em que trabalho, Nas horas quietas, em que tudo dorme, Sobranceira e viril, como um carvalho, Alevanta­‑ se espessa árvore enorme. O zéfiro um momento encrespa um galho À sua barba: e, ou seja que a transforme O vento ou meu olhar, a árvore enorme, Erguida ante a janela em que trabalho,

Espectros

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Toma a feição de uma cabeça rude, Sonolenta e selvática oscilando Numa estranha, fantástica atitude. E, posta a contemplá­‑la, esta alma cuida Ver sob o azul do céu, diáfano e brando, A fronte erguer, leonina, o último druida.

Brâmane Plena mata. Silêncio. Nem um pio De ave ou bulir de folha. Unicamente Ao longe, em suspiroso murmúrio, Do Ganges rola a fúlgida serpente. Sem ter no pétreo corpo um arrepio, Nu, braços no ar, de joelhos, fartamente Esparsa a barba ao peito, na silente Mata, o Brâmane sonha. Pelo estio, Ao sol, que os céus abrasa e o chão calcina, Impassível, a sílaba divina Murmura... E a cólera hibernal do vento Não ousa à barba estremecer um fio Do esquelético hindu, rígido e frio, Que contempla, extasiado, o firmamento.

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