De medos e assombrações

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As capas do diabo

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enhora Dona Manoela Maria de Magalhães e Távora de Taborda, fazendeira das maiores, vivia nos seus feudos roceiros, entre Capelinha e Nazaré, nos fun‑

dos de Anicuns, ali por volta de 1865. Tinha essa senhora terras e gado, pastos e canaviais. Escravos e cambembes trabalhavam nos seus eitos, moviam seus engenhos, marcavam suas crias, lavravam suas roças. Comiam da sua paçoca e viviam do seu pirão. Recebiam suas pagas, certas e regradas, isso os cambembes e agrega‑ dos. Já aos cativos eram dadas, duas vezes por ano, mudas de camisa de baeta vermelha e sungas grossas de tear. Por graça e regra da nobre senhora, eram‑lhes sepa‑ radas nesgas de roçado, onde plantavam suas mandiocas e batatas‑doces. Domingos e dias santos eram relevados. Depois de ouvida a missa na capela, eram livres. Podiam andar pelos matos, caçar com seus mundéus, pescar nos corgos e alagados; e de noite, acender fogueira e fazer seus quibungos no terreiro e, ao som dos maracás e de ataba‑ ques, dançar o jequedê e o batuque.

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Dona Manoela era pontual, metódica, cuidadosa e boa. Guardava os preceitos e tinha caridade. Um escravo de confiança, de nome Fidêncio, era o feitor do terreiro da fazenda e uma escrava de nome Roxa, mulher desse mesmo feitor, era encarregada de reger a casa e feitorizar o serviço caseiro das escravas. Essas faziam de tudo. Da mangueira ao coalho, da fari‑ nhada às gomas diversas, dos tachos de refinar aos pesa‑ dos pilões, onde se socava de três, conjugadamente. Na cozinha enorme não faltava fogo na fornalha, nem pane‑ la cozinhando. O forno ali estava, sempre provido de lenha para assados e merengues, roscas e biscoitos, e mulheres para tudo isso. Da copa para dentro, nos estrados de costura e nas esteiras, eram as mucamas novas e novatas aprendendo e executando serviço fino, compenetradas e atentas, silen‑ ciosas, de agulha e dedal, cada hora se movendo para lavar as mãos e não enxovalhar a costura. Eram bordados e crivados, tudo no linho, caprichado, esmerado, perfei‑ to. Vinham peças de bramante da Corte, dentro de gran‑ des caixas envidraçadas. Enormes meadas de linha sedosa, branca e em cores delicadas, eram componentes

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inseparáveis. Linhos diversos, telas finíssimas, outras de larguras inéditas, destinadas aos lençóis, às fronhas e às toalhas. Todo o bragal da casa, vasta e aparatosa, era tra‑ balhado com perfeição. Toalhas e fronhas tinham coplas bordadas, temas amistosos, versificados, alusivos aos senhores cônegos que rezavam a missa cada mês, paren‑ tes de alta estima, compadres e afilhados de boa proscí‑ pia e alta linhagem que vinham ali homenagear, solicitar favores, tomar ares, convalescer, e se faziam hóspedes de honra, com primazias de cabeceira, copos e talheres de prata na farta mesa senhorial. Dona Manoela tinha mandado pedir ao seu corres‑ pondente da Corte que lhe mandasse uma peça da mais fina holanda que ali fosse encontrada. Meses depois, chegava o pedido. Coisa fina de ver. Dona Manoela mandou cortar, daquele cabedal, uma vasta camisa de chimango e duas saias brancas de baixo. Encaminhou aqueles cortes para o estrado, com reco‑ mendações do maior apuro e perfeição. Tempos depois, terminado o trabalho, em costuras, cheios, abertos e barafundas, perfeitamente acabados, Dona Manoela lou‑ vou aquele trabalho em curtas falas e mandou que a escrava guardasse tudo, como estava, no escaninho de

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segredo, da grande arca, do canto da sua alcova. Ali aquelas peças deviam permanecer à mão. Eram elas para seu corpo, depois de morta. Faziam parte de sua mortalha de adamascado de seda roxa que há tempos mandara costurar e que lá estava dobrada, dentro de uma toalha de linho com pedras de cânfora. Que ninguém mais bulisse naquilo, até o dia de sua morte. Foi a palavra final. Era a festa do Senhor Divino Espírito Santo em Anicuns. Festa de pompa e de arromba, de imperador, capitão do mastro e alferes da bandeira, cabendo sempre tais honras e mercês, a gente de prol e recursada do lugar. Festas de novenas, tríduos e procissão, fogueiras, lanternas e luminárias, levantamentos de mastro, folias, congadas, danças de taieira, corridas de cavalhadas e fogos de vista. Na casa do imperador, rico trono de veludo e balda‑ quino franjado de ouro, com a coroa e o cetro; mesa posta, doçama derramada, pipas de vinho e bebidas se perdendo. Gente de toda parte corria para Anicuns a pagar suas promessas, cumprir com os preceitos, batizar os pagãos, acertar situações íntimas, crismar seus meninos,

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